Você está na página 1de 5

A Chegada, dirigido por Denis Villeneuve, e a ficção científica

como espelho do imaginário social 195

Realização: Film Nation Entertainment,


Lava Bear Films e 21 Laps Entertainment
Distribuição: Paramount Pictures

Cinema e ficção científica são


companheiros de jornada praticamente
desde o surgimento do primeiro. Basta
lembrar que as primeiras sessões realizadas
pelos irmãos Lumiére datam de 1895, e já
em 1902 Georges Mélliès adaptaria em
forma de filme o romance de Júlio Verne
Viagem à lua (com coisas emprestadas de
Os primeiros homens na lua, de H.G. Wells,
lançado no ano anterior). Curiosamente,
Mélliès também seria o responsável, em

A Chegada, dirigido por Denis 1907, pela primeira adaptação de que se


tem notícia de Vinte mil léguas submarinas.
Villeneuve, e a ficção científica
Com o tempo e a gradativa sofisticação das
como espelho do imaginário social
técnicas de filmagem, edição, montagem
Carlos André Moreira 1
e da própria ambição do cinema como
Submetido em 9 e aprovado em 11 de plataforma narrativa, foram sendo
março de 2017.
estabelecidos códigos próprios ao longo
dessa relação centenária, ligando as grandes
Ficha Técnica
inquietações do tempo a determinadas
A CHEGADA (ARRIVAL)
Direção: Denis Villeneuve produções de ficção científica que se
Ano de lançamento: 2016 tornaram representativas do imaginário
Produção: Shawn Levy, Dan Levine, Aaron
Ryder e David Linde social. Um espelho de como vemos o
Roteiro: Eric Heisserer, adaptado de Story futuro, em outras palavras – e de como o
of Your Life, de Ted Chiang
Elenco principal: Amy Adams, Jeremy tememos, no caso de algumas produções
Renner, Forest Whitaker como o recente sucesso televisivo Black
Gênero: Ficção Científica
mirror, por exemplo.
Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 17, n. 1, 2017, p. 195-199
196 Carlos André Moreira

As produções de Mélliès, bem como soviética em seu romance. Ao fim da II


a grande incidência na primeira metade Guerra, depois de dois conflitos de escala
do século XX de adaptações de autores planetária e do aparecimento da arma
como Wells e Verne são um exemplo de guerra mais destrutiva já criada pelo
desse “espírito do tempo”. Maravilhados homem, O dia em que a Terra parou (1951)
com o desenvolvimento tecnológico que oferecia uma visão crítica ao belicismo
o próprio cinema representava, os filmes humano e conclamava ao entendimento
se voltavam para ficções científicas pacífico entre as nações. O terror atômico
de autores que, na transição do século vai gerar também um bom número de
XIX para o XX, fizeram da busca do produções em que acidentes em laboratórios
conhecimento ela mesma a aventura num ou testes nucleares clandestinos terão como
universo de maravilhas produzidas pela resultado monstros em fúria destrutiva –
ciência iluminista. Após a eclosão das duas sendo Godzilla o exemplo mais presente
grandes guerras e do advento dos regimes ainda na cultura pop.
fascistas e comunistas, cada um animado Por essa capacidade de apresentar,
ou justificado a seu modo por princípios nas entrelinhas, as obsessões e dúvidas
científicos, ainda que distorcidos, a ficção do imaginário social, a ficção científica
científica literária vê surgir histórias que humanista no cinema passa por ondas, por
representam uma advertência para os vezes dando a impressão de que está em
rumos perigosos da pura ciência a serviço baixa ou que foi substituída em definitivo
da desumanização, como Nós, de Evgeny por aventuras escapistas focadas em luzes
Zamyátin (1924); Admirável mundo novo, brilhantes e robôs engraçadinhos, mais
de Aldous Huxley (1932); 1984, de George concentradas na parte “ficção” do que na
Orwell (1949). “científica”. Mas o gênero sempre retorna,
No cinema, as inquietações de uma e ao fazer isso traz uma nova leva de
sociedade de alto progresso material mas interrogações sobre o que a humanidade
extrema desigualdade social se fazem espera de si mesma. E da onda mais recente,
presente no clássico Metropolis, de Fritz que inclui produções como Gravidade
Lang, lançado apenas três anos depois de ou Interestelar, talvez nenhuma encarne
Zamyátin abordar a ditadura tecnicista de modo tão completo os desassossegos

Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 17, n. 1, 2017, p. 195-199


A Chegada, dirigido por Denis Villeneuve, e a ficção científica
como espelho do imaginário social 197

contemporâneos como o A Chegada – um número), Louise é chamada pelo exército


filme sobre futuro e comunicação feito em americano para encontrar uma forma de se
uma época em que a comunicação é cada comunicar com os alienígenas, que nada
vez mais árdua e o próprio futuro voltou a têm dos humanoides vagamente alterados
ser incerto. que povoam 90% dos filmes do gênero,
Mantendo a relação umbilical entre representando, em vez disso, o resultado de
cinema e literatura na ficção científica, A um caminho diverso da evolução da vida
Chegada, dirigido pelo cineasta canadense saída do mar. Em um primeiro momento,
Denis Villeneuve, é adaptado de A história os governos da Terra colaboram, e Louise
de sua vida, um conto denso e comovente e outros colegas cientistas trocam ideias
do escritor sino-americano Ted Chiang. por videoconferência. Mas logo as tensões
A história curta original aborda questões imanentes da humanidade ameaçam
como o quanto premissas diversas levam romper a colaboração e substituir o
ao desenvolvimento de pensamentos interesse mútuo da humanidade e dos
científicos diferentes sobre os mesmos alienígenas por desconfianças e paranoia.
fenômenos naturais, bem como discute uma O que torna A Chegada uma
inquietação cara ao ser humano desde os produção tão original no atual panorama da
primórdios de sua consciência intelectual: a ficção científica no cinema é justamente o
oposição entre livre arbítrio e predestinação. que mais tem faltado a muito da produção
O filme, embora enxugue inevitavelmente mainstream do gênero: imaginação
muitas das discussões sobre o primeiro ancorada em ciência de verdade. Louise
tópico, se sai muito bem em transplantar é uma linguista, e como tal, faz sentido
para a tela a segunda questão. que uma hipótese fundamental para o
A protagonista é uma doutora em entendimento da trama seja uma teoria da
linguística, Louise Banks, vivida no filme Linguística, a de Sapir-Whorf, que postula
por Amy Adams em uma interpretação que os idiomas moldam os modos com
ricamente nuançada. Na sequência de uma que seus falantes percebem a realidade, e
visitação alienígena, com o aparecimento que aprender uma nova língua é, de certa
de 12 naves elípticas espalhadas pelo forma, modificar plasticamente muitas
planeta (no conto elas são em maior das estruturas cerebrais que mediam nossa

Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 17, n. 1, 2017, p. 195-199


198 Carlos André Moreira

relação com o mundo. Levando essa teoria capitalismo tardio, Fredric Jameson, por
ao paroxismo, o filme (e o conto de Ted exemplo, aponta como a cultura de massa da
Chiang) imagina o que aconteceria com mídia eletrônica funciona à base da rotação
Louise ao aprender a língua dos alienígenas, incessante de elementos desalojados no
escrita em ideogramas circulares, nos quais momento seguinte, quase numa descrição
o início da frase pode estar em qualquer da própria escrita apresentada pelos
ponto e a leitura pode ser realizada em alienígenas no filme. Já Zygmunt Bauman
qualquer sentido indiscriminadamente. fala mais de uma vez, em seus livros sobre
A leitura e a fala são atividades a “modernidade líquida” e seus aspectos,
que se processam no tempo, o fim de de como a sensação predominante
uma frase situando-se sempre a segundos em um mundo dominado pelo caráter
ou até minutos de seu fim no processo de incessante do consumo é uma vaga noção
enunciação ou decodificação. Ao começar desmemoriada de “eterno presente”. São
a dominar um idioma que pode ser lido questões que ressoam diretamente não
em qualquer direção, Louise tem alterada, apenas com a jornada de Louise, mas com
também, sua relação com o tempo. Eventos a própria estrutura que o filme usa para
do passado e do futuro se entrelaçam com contá-la. A Chegada é estruturado em uma
os do presente, no que constitui a grande série de momentos circulares, as primeiras
revelação do filme. Nessa maneira de cenas espelhando as últimas, mas estas
retratar o tempo dentro da narrativa, mais acrescidas de uma dramaticidade maior
do que dialogar com nossos tumultuados após o espectador entender que várias
dias, A Chegada parece muitas vezes passagens do filme estão fora da ordem
responder a eles. cronológica e, portanto, têm um peso maior,
Grandes teóricos da contemporânea o das consequências diretas das ações que
pós-modernidade já apontaram como a vimos. Está aí talvez o que permita apontar
nossa própria percepção do tempo foi A Chegada como uma FC “pós-moderna”,
afetada pela sensação de “presente eterno” que é, em certa medida, cética sobre a
despertada pelo fim das grandes utopias capacidade da humanidade de alterar seu
e mesmo da proposta “fim da História”. próprio futuro, um comentário sobre o
Em Pós-modernismo, a lógica cultural do tempo presente como um círculo repetitivo

Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 17, n. 1, 2017, p. 195-199


A Chegada, dirigido por Denis Villeneuve, e a ficção científica
como espelho do imaginário social 199

que, no entanto, é aceito por vezes com CHIANG: Ted. História da sua vida e
outros contos. Rio de Janeiro: Intrínseca,
serenidade, outras vezes com revolta.
2016.
Em outro eixo, o personagem de Amy
COUSINS, Mark. História do cinema: dos
Adams – uma protagonista memorável em clássicos mudos ao cinema moderno. São
Paulo: Martins Fontes, 2013.
um momento em que se discute mais espaço
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo
para as mulheres nas grandes produções
novo. 22.ed. São Paulo: Globo, 2014.
de Hollywood – também parece escolhido
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a
com rara presciência para se conectar com a lógica cultural do capitalismo tardio. 2.ed.
São Paulo: Ática, 2007.
contemporaneidade. Embora Louise já seja
ORWELL: George. 1984. São Paulo:
uma linguista no conto original, publicado
Companhia das Letras, 2009.
no fim dos anos 1990, faz todo sentido que
ZAMYATIN, Yevgeny. We. London:
seja ela que nos guie ao longo do filme. Em Penguin Books, 1993.
uma época de “pós-verdade”, em que as
Nota
convicções valem mais do que fatos e em
1
Bacharel em Comunicação Social e Jornalismo e
que políticos se elegem fazendo campanha Mestre em Literatura Portuguesa, pela UFRGS.
Jornalista da área de Cultura na empresa RBS, Rio
contra o que é estrangeiro e diverso e Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. carlozandre@
pode ameaçar a “integridade” de uma gmail.com

determinada cultura (contra o que é, em


última análise, “alienígena”), é um triunfo
do filme que sua personagem não apenas se
abra ao conhecimento integral do outro, mas
que se permita ser modificada radicalmente
por ele.

Referências

BAUMAN: Zygmunt. O mal-estar da pós


modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as
consequências humanas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1999.

Interfaces Brasil/Canadá. Florianópolis/Pelotas/São Paulo, v. 17, n. 1, 2017, p. 195-199

Você também pode gostar