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Nova Classe Média ou Novo Proletariado? Barbara Heliodora Franca Retomamos neste artigo a sempre dificil discussio te6- rica sobre as chamadas “classes intermediérias” ou “classes médias”, este enorme contingente de pessoas que carecem de definigdo sociol6gica, pois nao sio burgueses, proprieté- rigs dos meios de produgao, nem operérios, trabalhadores manuais. A importincia e a atualidade da questi, no Brasil, re- fere-se ao fato de que foram todos reunidos na protegida — embora nfo confortével — classificagiio de “classe m termo consagrado hoje no interior da sociologia brasileira. Ora, como as famosas “classes médias” para alguns,! e “classe média” para outros nunca foram bastante estudadas, podem ser graves as conseqiitncias desta imputagao. Baseados, principalmente, em dois estudos clissicos fei- tos para os capitalismos americano e inglés da metade deste século,? temos nos contentado aqui em repetir as caracteris- ticas politicas ¢ ideol6gicas que jé tinham sido atribuidas 20 conjunto deste extenso grupo. 1hara Hellodora Franga — Socidloga, Profesor a Universidade Federal Fumi sense, Dovtorana da Universidade de Paci VIL TE" Nora, que recouhecem as dificsldades em he tb homogenidad, 2 MILLS, W. A Nova Clase Médio, Rio de Jncico, Zhar Editors, 1969. LOCWOOD.D.ETTrahajadordetaClaseMedia—umestuioscbrelaconsclenla de cle. Mari, Ail, 1962, 42 Em nome disto, pode-se dizer hoje que a CUT ¢ 0 PT so drgios de classe média, que as classes médias exer- ‘cem a vanguarda do sindicalismo brasileiro, que a impor- tancia estratégica do proletariado diminui e, até mesmo, ‘que marchamos, sem diivida, para uma sociedade de classe média, E assim que entendemos a necessidade de “remexer” nesta questo antiga, que diz respeito ao conhecimento ¢ reconhecimento da sociedade brasileira em um dos seus as- pectos fundamentais: sua estrutura de classes. final, quem somos nés hoje? Que diferengas e identi dades nos separam e nos unem em grupos antagdnicos? E aqueles que ficam “no meio”, constituem-se como um gru- oa parte? Tém seus contomos delimitados? Que conseqlién- cias politicas envolvem essas definigdes? Estas sfo algumas das questdes que estio por detrds deste artigo, ainda que nossa intengao seja mais a de problematizar do que a de buscar respostas nem sempre féceis. No desenvolver deste texto discutiremos a pertinéncia da atribuigo do conceito de “classe média” a certas catego- rias de trabalhadores assalatiados, tomando como referén- cia os funcionérios piiblicos brasileiros. Voltemos, entéo, & formulagao inicial: todo proble- ma comeca a surgit quando nos propomos a estudar um ‘grupo social que nao se enquadra nos critérios de defini- Go de burgués, proprietério privado, capitalista, enfim a classe dominante, e que também ndo exerce um trabalho assalariado manual, ou seja, 0 conhecido operério ou proletétio. Dizemos que o problema comega af porque estamos con- siderando que a grande maioria dos cientistas sociais reco- nhece, na relagao capital-trabalho, os pardmetros definidores das grandes classes sociais em oposi¢ao antagOnica numa sociedade de classes. A aceitagao destes pardmetros, no en- tanto, nem sempre é explicita, sendo comum a utilizagdo de expresses ¢ conceitos novos para a formulagio deste mes- ‘mo conteddo. Pouco esforgo tem sido feito, por exemplo, para definir conceitos e nogdes tais como exclufdos, domi- nados, desprivilegiados ou subalternos? Por outro lado, a sociologia de inspiragio americana, que estratifica as sociedades em um sem-némero de classes, nfo fez carreira entre n6s. So raros os estudos que, fazendo uso da estatistica, classificam as populagées segundo critérios de propriedade de bens, em classes de A a X. No entanto, a questo nao est ainda centrada correta- mente: 0 fato 6 mais delicado porque, mesmo os cientistas sociais que adotam uma postura metodolégica critica, ten- dem a reunir também todas estas categorias profissionais na rubrica de “classe média”, Neste caso, tomam como critério certas caracterfsticas atribufdas a subjetividade destas cate- gorias: seja tragos de sua ideologia, seja limites de sua cons- ciéncia. © que pretendemos ¢ demonstrar que nenhum dos elementos tomados para caracterizar a “classe média” & capaz de distinguir ou dar uma identidade propria ao con- junto assim considerado. Por isto, nos estudos de casos con- cretos, em que se deparam com a diversidade do real, os cientistas sociais so obrigados a fazer uso de novos con- ceitos para exprimir a pluralidade interna deste grupo: pe- quena burguesia tradicional, nova pequena burguesia, alta classe média, baixa classe média, “nova” e “velha” classe média. 3. Atmalment, na Fania, substiuise © pomposo “lumpempoleariado” ¢ ae mesmo, impreciso “pobce porSDF" Sem Domi Fixe), por vers também hamados de “eeludoe” 4 SAES, D. Clase Média « Sutema Police no Bras. Sto Paul, T. A. Quekvoz Bator, 1985, 9.126 ‘5. Nio importa, neste caso, que o propitsio sje 0 Bstado-patio, nem que © trabalho nfo se materialize mum objeto mereadora, 6 SAES,D.Op.cit,p 4 Referee a0 pequene prope om si fia eeu com um poqueno admero de assleriads ‘So Paulo em Perspectiva, (1):42-51,janeiro/margo 1994 “saco de gatos” Pequena burguesia e assalariados “improdutivos” Décio Saes € um dos tedricos que tém contribufdo para relativizar 0 estatuto conceitual de “classe média” e cujos trabalhos tém servido de referéncia a estudos empiticos pos- teriores. Este autor, ainda que localize suas andlises no inte- rior do que tem sido considerado “um problema de classe média”, chama a atengio para a “incoeréncia légica de um tal conceito: a jungdo de ‘classe’ ”, que & definida ao nivel das relagées sociais de produgio, e de “média”, que sugere a posig&o num sistema de estratificagao social. Defendendo a tese do fracionamento ideolégico polf- tico desta “classe” ao longo da nossa histéria, reconhece que " ‘classe média’ recobre um leque de grupos profissio- nais € sociais bastante diversos cuja unidade ideolégica e politica seria no minimo problemética.”*E preciso ir mais adiante, Trata-se, em primeiro lugar, de distinguir dois grupos que so, em geral, considerados como parte da “classe mé- dia’: a pequena burguesia (rural ¢ urbana) ¢ os trabalhado- res assalariados do setor chamado “improdutivo”. ‘Nilo passa de uma grande confusdo considerar que tra- balhadores nao-manuais do setor de servigos — como ban- cérios, comerciarios, trabalhadores de escrit6rio, os pequenos funcionérios piiblicos, etc. — fazem parte de uma mesma classe social, juntamente com diferentes setores da peque- na burguesia rural ou urbana, como pequenos produtores agr{- colas, artesanais, pequenos comerciantes e profissionais liberais. Os primeiros sdo trabalhadores assalariados, sub- metidos a relagdes de compra e venda de seus servigos no mercado. Do seu tempo de trabalho, uma parte Ihes sera re- tirada como sobretrabalho, valor que deve retornar a0 pro- prietério dos meios de produgao que utilizou.s Os segundos sdo trabalhadores auténomos, nao submetidos ao assalaria- mento, proprietarios de seus capitais e, portanto, dos meios que precisam para produzi ‘No caso da realidade brasileira, é possfvel ainda—como Saes o assinala — que nfo tenhamos entre nés a constitui- ao de uma pequena burguesia consistente enquanto classe. De fato, no Brasil, nunca foram expressivos nem econdmica nem politicamente, seja 0 campesinato, seja a pequena pro- dugao industrial e comercial, nos moldes como ocorreu na Europa.* Nossa pequena burguesia constituiu-se, principal- mente, dos chamados profissionais liberais, prestadores de servigos independentes. Classe e categoria Uma primeira afirmagao se faz possfvel: a pequena burguesia ¢ definida enquanto classe social porque se deter- mina, essencialmente, pelas relagdes sociais de produgo que engendra. Por outro lado, os trabalhtadores assalarisdos nfo- manuais, nas suas diversas profissdes ¢ atividades, s6 po- dem ser definidos enquanto categorias sociais, uma vez que iio sfo as relagbes sociais de producZo que lhes constituem enquanto sujeitos soci Michael Lawy, a propésito dos intelectuais, afirma: “Os intelectuais no so uma classe social mas uma catego- ria social; eles no se definem por seu lugar no processo de produgio, mas por sua relagdo com instancias extra-econ6- micas da estrutura social; assim como os burocratas € os mi litares definem-se por sua relago com a politica, da mesma forma os intelectuais definem-se por sua relagio com a st- perestrutura ideolégica.”” Em decorréncia destas afirmagées, alguns pontos pre- cisam ser aprofundados, Primeiro, estudantes, clero, inte- lectuais, funciondrios piiblicos, por exemplo, nao podem ser reunidos enquanto membros de uma mesma classe soc Nao é 0 corte de classe que permite delimité-los; nio é af ‘que se definem os tragos capazes de Ihes fomecer sua espe- cificidade. Esta especificidade s6 pode ser buscada no conjunto das relagdes engendradas por sua insergio na es- trutura social, ainda que fora da produgio direta de merca- dorias. Segundo, estas categorias sociais podem ser originérias, de todas as classes ¢ camadas sociais, portanto, existem es- tudantes e funciondrios piblicos, por exemplo, oriundos das diferentes classes sociais. Por ultimo, vale lembrar que, em decorréncia da possibilidade de mobilidade social, mesmo ‘em sociedades altamente estratificadas como a nossa, hé uma relativa independéncia entre a origem de classe e o fato de diferentes membros de uma categoria pertencerem a esta, ‘Um militar ou um médico nio pertencem necessariamente “classe média”, nem pelo fato de terem sido oriundos de algum setor da pequena burguesia, nem de realizarem um trabalho chamado “improdutivo”: tudo é diferente se o mé- dico € assalariado de um hospital municipal ou proprietério de uma elfnica, se 0 militar é soldado ou general 7. LOWY, M. Pour ane Soclologte des Inelectues Révoluionnaies, Pas, PUE, 44 Ser médico ou funcionétio pablico ¢ nfo trabalhar no setor produtivo da economia nao confere a estas categorias a homogeneidade necesséria para sua insergiio como classe nem, a0 mesmo tempo, 0 atributo da mediania. # grande a dificuldade em encontrar tragos de unidade ppara este grupo to heterogéneo que, na verdade, nao cons- titui uma classe tinica. Diferentes autores buscaram, no en- tanto, distinguir esses elementos unificadores capazes de permitir a caracterizago da “classe”. Eles serao analisados aseguir Principais contribuigdes tedricas segundo critérios de atribuigao de classe Renda, status, poder Préximo & metade deste século, os paises de capitalis- ‘mo avangado tiverem fortalecidos ndo s6 uma importante camada pequeno-burguesa, como também certos setores as- salariados, Nessas citcunstancias, alguns autores, como Mills ¢ Lockwood, passaram a ter seus nomes praticamente iden- tificados a0 estudo dos “empregados”, como foram chama- dos os assalariados trabalhando fora da produgto. Grande parte de suas afirmagGes permanece ainda accita para con- junto da chamada “classe média”, Por esse motivo, retoma- ‘mos alguns de seus resultados em forma de sintese. Sociélogo estudioso das camadas médias americanas, Wright Mills apontou, j4 no inicio da década de 50, a apro- ximagio crescente entre os trabalhadores de colarinho bran- co—oempregado modemo —e 0s opersrios trabalhadores do setor produtivo* Afirmava, ento, que do ponto de vista da propriedade, asituagio de classe do empregado € igual Ado operirio, uma ‘vez que ambos no sfo proprietérios dos seus meios de pro- dugdo. Bo mercado de trabalho, e nao o controle da propri- edade, que pode thes dar acesso a0 dinheiro, prestigio ou algum poder. Por outro lado, os trabalhos que os dois grupos execu- tam sio de naturezas diferentes: aos operdrios caberia apro- ducdo direta dos objetos e aos “colarinhos brancos” toda a ‘maquinaria social que coordena e organiza 0 trabalho dos primeiros. ‘Ainda assim, para Mills, esses dois critérios —a ausén- cia da propriedade dos meios de produglo e a natureza dife- rente do trabalho — nfo sio suficientes como princfpios distintivos da real situago de classe de um grupo ou catego- ria profissional. Essencialmente, o critério para delimitar uma situagiio de “classe média” € 0 tipo de emprego. A anélise ‘mostra como as diferentes ocupagdes (que so também fon- tes de renda) implicam diversos niveis de especializagdes & fungdes que, por sua vez, articulam graus diferenciados de prestigio e poder. Desta maneira, para a sociedade norte-americana naquele ‘momento ¢ como tendéncia possfvel de desenvolvimento das sociedades capitalistas, Mills entendia que as diferengas en- tre os dois grupos se expressavam tanto pelo montante da renda mediana familiar como pelo status ou prest(gio. Em ambos os casos, os maiores privilégios pertencem aos traba- Ihadores nio-operérios. Ainda que o autor ressalte como importante fator psico- légico a suposta existéncia de maior prestigio social entre ‘8 trabalhadores ndo-opersrios, reconhece que as bases desse prestigio slo frdgeis e imprecisas. O autor tem, entre outros, ‘0 mérito de apontar que a heterogeneidade no interior do grupo nfo permite pensaros assalariados nao-operdrios como uma “camada horizontal compacta” e que, embora sua situ- ago geral de classe seja ligeiramente superior & dos operd- rios, as diferencas entre os dois grupos tendiam a ser cada ‘vex menores. Passados cingllenta anos, o livro de Mills continua sen- do a referencia principal para aqueles que estudam 0 con- junto de trabalhadores que a sociologia batizou de “nova classe média”*A dificuldade em superar a anélise feita por este autor € que, embora descreva a sociedade norte-ameri- cana de fim dos anos 40 como aquela em que os trabalhado- res de “colarinho branco” ultrapassavam em ndmero antiga “classe média” e pareciam consolidar-se como “modelo” daquela sociedade, 0 autor deixou em aberto algumas alter- nativas para o futuro desta classe. Entre as possibilidades ja previstas por Mills, duas eram extremas: no futuro, poderia 9. "Classe médiawadicional ou “antgn classe média, diz respeito 3 pequena argues: pequenospropeitros da agricultua, como, servigos ou india, sresdes ¢eflsioaas liberi, todospreduores autiaomes."Novaclasse méia™ feferes 2 cosjuma das ocupardes ou ategriasprofssionissslarindss, mas Ho vnculadasdietanent A produpio de mercedoriss, 10, LOCKWOOD, D. Op. et. UL, LOWY, M.Op. cit, p.289 12, EmLockwood areass em pensrapossbldade de “castemési"seproletarzar, lata que como perspective te, justin a fasio ene os coneits “pole ‘do e“eperariado” Pr isso, para ele, ands gee sea iseatvl 4 que classe erence um tabalhadoe de exer, ¢Iigico que aio ectence, 20 Netos, a0 ‘operands ness sentido qu di desague fase de Centers:"O fat de que um ‘pesos se um trabalhadr de eseitlo no € tanto uma rao pars incluto ma Elase mdi como pra nd inclulo na case oper LOCKWOOD, D. Op. cit, p. 132, ctu R. Centers The Psychology of Social ‘Clases: A Study in Clas Consciousness, de 1949. Sto Peulo em Perspectiva, (1):42-S1, jancirofmarco 1994 se dar tanto 2 consolidagao de uma importante sociedade de ‘classe média” quanto, ao contrério, a proletarizagio da maioria dos “colarinhos brancos” e, conseqiientemente, a inexpressividade social destes. Outro autor consagrado pelo estudo de trabalhadores nao- operdrios 6 David Lockwood, estudando os empregados de escritério na Inglaterra a partir do século XIX." Neste caso, ‘a0 contrario do estudo precedente, 0 autor procura dar des- taque aos aspectos que buscam mostrar a distingdo entre os operarios e os trabalhadores de escritério, numa evidente polémica contra a andlise marxista." Buscando, através da investigagio empfrica, conhecer a cconscincia de classe do empregado, afirma que “o fato co- mum da privago de propriedade resulta em conseqiiéncias econdmicas e experiéncias sociais nfio necessariamente idén- ticas” para o empregado e 0 operatio. Desta forma, as varia- «es encontradas na consciéncia de classe destes dois grupos teriam, por hipétese, correspondéncia com as variagdes exis- tentes na sua situagao real de classe. Por situago de classe entendia a complexa interdepen- déncia entre situago de mercado (compreendendo 0 salé- tio), condigdes de trabalho e status. Defendendo a necessidade de complementar a teoria marxista com a teoria weberiana, Lockwood centra sua ané- lise nos fatores psicol6gicos sociais que, ao contrério dos econmicos, permitiriam distinguir os trabalhadores de escritério como membros da classe média. ‘Mesmo a aproximago econmica geral encontrada en- tre operarios e empregados nao € entendida pelo autor como o resultado de um proceso de “proletarizagao”. Ao contré- rio, afirma que durante ¢ logo apés a 2 Guerra Mundial, ocorreria melhoria das condigdes econdmicas do operariado endo dos empregados, num perfodo especial de pleno em- prego e escassez de mao-de-obra. ‘Suas conclusdes so as de que os trabalhadores burocré- ticos, tanto do ponto de vista dos ganhos reais (e nfo apenas do salério) e das condigdes ¢ relagdes de trabalho quanto do maior reconhecimento de status socialmente atribufdo.a eles, tém, no geral, uma posi¢ao social mais favorvel que 0 ope- rariado. Conelui, ainda, que a barreira imprecisa que separa a classe média da classe operdria e que as aproxima quase ‘numa superposigdo de seus extremos — o “proletariado de colarinho branco” e a “burguesia operiria” — nao apaga, no entanto, para o conjunto dos dois grupos, “um agudo distanciamento social impedindo uma plena identificagao de classe, por um ou outro lado.”"? 45 Como vimos, as conclusdes de Mills e Lockwood sio bastante préximas ao constatarem uma posigdo de classe mais privilegiada para os trabalhadores intelectuais do que para os operérios. Mills, no entanto, destaca os elementos que demonstravam, jf naquele momento, 0 processo de proletarizagao que se manifestava nas condigdes gerais de vida, de salério e de trabalho (tornado cada vez mais meca- nizado). Além disso, expds como se davam as contradigdes ‘entre 0s interesses da chamada “nova classe média” assala- riada e da “classe média tradicional” de pequenos proprieté- rigs. J4 Lockwood, que, nas palavras de Lowy, “negligenci © ponto de vista mais interessante sociologicamente: as tendéncias em dire¢do ao futuro”, busca descobrir as dife- rengas que se estabelecem entre os dois grupos a partir do momento em que ambos surgiram na Inglaterra, Além de ‘estar mais atento a melhoria das condigdes de vida dos ope- rérios especializados — que caminhariam em dirego a uma situagao de classe média —, esse autor, entre muitos, enfati- za uma suposta identificagio de interesses culturais, ideol6- gicos ou psicolégicos entre trabalhadores intelectuais e a burguesia. Subordinagdo ideoldgica Segundo Saes, classe média “é 0 conjunto de efeitos politicos reais produzidos sobre certos setores do trabalho assalariado pela ideologia dominante que apresenta a hierar- quia do trabatho como a expressdo de uma pirdmide natural de dons e méritos”, Mais claramente, “classe média é antes, de tudo uma nogao pritica. Fa nogdo das priticas politicas dos diferentes setores do trabalho assalariado improdutivo numa sociedade capitalista determinada que pode definir uais dentre eles se submetem 2 ideologia dominante da hie- rarquizago do trabalho”."* Esta andlise diz respeito, portanto, a diferentes grupos de trabalhadores improdutivos e, entre eles, aos trabalhado- res da administragao publica, mas essa insergdo s6 esté as- segurada “se a ideologia dominante apagou da consciéncia desses trabalhadores improdutivos (30 menos daqueles me- nos diretamente ligados ao mundo da fébrica e as tarefas 13, LOWY, M.Op. et p. 260 14, SAES,D. “Cass médi epoca de clase”. Contrapont, Rio de ani, 10, cezembro 1977. 15, Mom, siden. 16. SWEEZY,P Teoria do Desenvolvimento Capitalists, Ri Se lac pals 17. SAES, D. Op. ci. (atodugt). Zaha 196, 46 manuais) a contradi¢io entre capital e trabalho assalariado, ‘substituindo-a pelo sentimento da superioridade do trabalho ndo-manual com relago a0 manual”.!5 E extremamente dificil dizer quando a ideologia domi- nante apaga a contradigdo entre capital e trabalho e, mais ainda, saber se a categoria ja teve em algum momento cons- cigncia desta contradi¢ao. Ao mesmo tempo, é possivel afir- ‘mar que a categoria dos funcionérios paiblicos tem tido uma prética politica bastante combativa e em nivel equivalente a outros setores trabalhadores. Percebe-se, portanto, a possi- bilidade de critérios como estes nos encaminharem para and- lises bastante subjetivas. Subordinagdo objetiva Para Sweezy, “a nova classe média” de funcionétios, professores, profissionais liberais e outros 6 aumentada pelo exército de publicitérios, vendedores e empregados assala- riados os mais diversos que, por obterem suas rendas direta ou indiretamente da mais-valia, sofreriam as conseqiléncias de uma possfvel redugo desta. O lago que uniria a sorte dessa “nova classe média” A burguesia &, portanto, objetivo, ge- rantindo 0 apoio social e politico dessas categorias para os ccapitalistas e nao para os operérios."* Em conseqiiéncia, estariam as camadas médias fadadas ‘a serem submissas & ideologia dominante por razoes objeti ‘vas ou subjetivas? Mais que isso: as camadas médias pode- riam formar um bloco homogéneo e estranho, cuja referén- cia objetiva é proletéria e cuja consciéncia de si mesma & burguesa? De fato, os estudos de diferentes grupos inclufdos na “classe média” nflo demonstram, em todos os casos, apoio social ¢ politico a burguesia, nem uma prética politica idén- tica para todo o conjunto. E o préprio Saes quem o reconhe- ce: “a intervencdo da classe média urbana na cena politica, a0 longo dos sucessivos perfodos (oligarquico, populist, autocritico-militar), ndlo se faz sob forma unitéria e sim sob forma fraciondria. Mais ainda: a classe média urbana nao é, 40 longo dos perfodos mencionados, um bloco politico mo- nolitico alinhado com a “classe dominante”, mas um agre- gado de fragGes politicamente divididas entre a velha classe dominante e a nova classe dominante, ou entre o bloco das classes dominantes e as classes populares”.!” Por sua vez, definir as indmeras categorias sociais como ‘classe média” a partir de suas praticas politicas mais ou ‘menos prximas da burguesia pode niio ser sempre tarefa evi- dente. Kowarick acredita que “afirmar que a ‘nova classe ‘média’ tende a apoiar a classe dominante e com ela se iden- tificar expressaria o erro de reduzir as préticas politicas des- se conjunto heterogéneo aos interesses imediatos advindos da posigdo de grupos na eseala de identificagao social.”"* Esta discussdo nos remeteria & nogiio de consciéneia de classe “falsae verdadeira” e nos obrigaria a desenvolver uma ‘enorme e interessante polémica, 0 que no é aqui possivel. ‘No entanto, ¢ preciso observar que a andlise marxista de clas- ses sociais implica, no seu interior, 0 pressuposto de que 0 proletariado toma-se uma verdadeira classe, uma classe “para si”, no processo em que ganha consciéncia da possibilidade de ter um projeto hist6rico de transformagio da sociedade."? Em um recente trabalho em que retoma o tema da conscién- cia de classe de algumas categorias de trabalhadores bra leiros, Maranhio afirma: “O proletariado no nasce, portanto, ‘com uma consciéncia de classe verdadeira, captadora da rea- lidade e superadora da imediatidade, mas com uma conscién- cia do seu momento, permeada pela ideologia burguesa.” Trabalho produtivo improdutivo E natural que uma certa produgio sociolégica sempre procurou destacar as possiveis manifestagdes de mobili- dade social ascendente do operariado na tentativa de negara teoria marxista da proletarizagao, conseqiéncia da acumu- lagio de capital. Tornou-se difundida, sem necessidade apa- rente de maiores comprovagdes, a afirmagao facil de que estaria ocorrendo o crescimento das sociedades de “empre- gados” ou “sociedades de classe média”. Esta sociedade se- ria 0 resultado de um certo processo de desenvolvimento teenolégico, que tenderia a reduzir continuamente o ntimero de operarios (trabalhadores “produtivos”) e a substitui-los por trabalhadores intelectuais (‘“improdutivos"), membros da “classe média” em ascenso, Nestas circunstncias, as 1, KOWARICK. L."Trabathoprodutivasimprodutivo”. Clases Soci Tabatha Produsve. Ro de Tneite, CEDEC —Paz¢ Tere, 1978, p 83. 19, Constr sobre a asent: LUCKAS, G. Hitriae Conscitnia de Clase, Pcs, Ed Minit, 1960, MESZAROS. I. "Consciéocia de Clases Comingente Necesiris.Aspectosde Ta Hisbriay la Conscience de Case, Mico Uni, Nie. Autnoma, 1973, 137 20, MARANHKO, R. Clan Opera, Sindiatos« Partido no Brasil. 3, Sto aslo, Cots Ets, 1990, p21 Nest iv ainda que nto aja ums discus tric sabe stag ode classe de ‘certs categoras de trabalhadores,o autor avangs com a questo, uma ver gue inci sus enlises ano opedros como wabalhadores em otlas bares, comers feroisir. 21, BRAVERMAN, H. Trablko e Captalsmo Monoplista. Rio de Jantir, Ed. uasabars, 1974 22, LOWY, M Opt,» 261 So Paulo em Perspectiva,8{1):42-51, janeiro/marco 1994 importancias tanto econ6mica quanto politica do operariado tenderiam a decrescer. De fato alguns autores, tomando como critério funds- mental de distingao de classe 0 distanciamento fisico do trabalho em relagdo & produgdo de mercadorias ou a possi- bilidade de extragdo direta da mais-valia, resistem em in- cluir, como parte do proletariado modemno, diferentes grupos € fragdes, entre eles 0 pequeno funcionétio pablico. Esta questo € discutida também em relagao as transfor ‘mages no cardter do trabalho dos operdrios, com a existén- cia da informatica e da cibernética, Neste caso, a dificuldade encontra-se no fato de compreender 0 novo operério como aquele que tem diploma universitério cujo trabalho é es- sencialmente ou o de conceber sistemas de informitica ou 0 de programar robés. No caso dos ndo-operitios, é preciso relembrar o quan- to & esclarecedor 0 conceito de “trabalhador coletivo” de ‘Marx: 0 conjunto de todos os trabalhadores individuais, em suas qualificagdes particulares, que realizam as fungdes de producao, distribuicdo e circulagio das mercadorias. Que di- ferenga faz que estejam no interior do Estado ou fora dele? Enquanto parte do trabalho coletivo, 0 funcionalismo pabli- co, exercendo as chamadas fungdes burocraticas, contribui necessariamente para a valorizagio do capital. Assim & que, ‘enquanto o chamado trabalho produtivo tende a dectescer ‘em proporgo a0 aumento de sua produtividade, o trabalho “improdutivo” cresceu unicamente como resultado do au- ‘mento da mais-valia gerada pelo trabalho “produtivo”. Quan- to mais 0 capitalismo se desenvolve, maior & a necessidade de novas especializagdes no controle da propriedade e au- menta o niimero de intermedisrios entre a produce 0 con- sumo, A realizado do capital exige vigilancia, registro, € contabilidade, tanto na esfera privada quanto no Estado.** No mais, como lembrou Engels no prélogo & 3* edigo alema de O Capital, o que € fundamental na situagao de classe do proletariado nio é a unio direta com os meios de produ- Zo, mas sim a sua separagdo deles. Marx, a propésito desta questi, ja havia citado como exemplo, entre outros, que 0 mesmo “trabalho improdutivo”, como o ato de cantar, tor- na-se produtivo no momento em que 0 cantar passa a fazer parte de um contrato que o transforma em mercadoria. Léwy faz uma pergunta provocativa sobre este proble~ ‘ma, expressando bem a ineficécia da anélise que super- estima o trabalho fabril: “Se s6 € operdrio o trabalhador pro- dutivo, um varredor que abandonasse seu emprego na fabri- ca Citron para varrer um grande hospital puiblico deixaria de ser proletério para tormar-se pequeno-burgués?” 47 Vender servico ou forca de trabalho Para fazer a distingo entre um trabalhador pequeno- burgués ¢ 0 que foi proletarizado, Liwy reconhece que, es- sencialmente, o critério s6 pode ser a diferenga entre a venda de servigos e a venda da forga de trabalho. Isto significa dizer que, enquanto o pequeno-burgués “elissico” & um pequeno produtor independente, proprie- tério do seu “negécio”, trabalhando s6 ou com a ajuda da familia, “as outras categorias pequeno-burguesas so, em G- tima andlise, derivadas desta pequena burguesia “cléssica”. profissional liberal ¢ um pequeno produtor independente, que vende servigos ao invés de mercadorias. O professor ti- tular, o oficial superior, ochefe administrativo e oengenheiro fo “profissionais liberais” su generis, empregados de uma instituigo ou empresa que compra regularmente seus servi- ‘40s. Estas observagdes sio especialmente importantes, mostram que a “perda de controle sobre 0 contetido de sua pr6pria atividade” € um sinal manifesto de proletarizagao, esclarecendo, ainda, como uma mesma categoria social pode estar presente em diferentes classes sociais. por isso que um advogado proprietirio de seu escritério de advocacia ‘mantém-se auténomo, mesmo que tenha seus servigas con- tratados eventualmente por um sindicato ou por um érgdo piiblico, enquanto é totalmente distinta sua situago quando € empregado assalariado de uma empresa ou de uma repar- tigdo piblica e subordinado &s regras e rotinas impostas pela instituigao. No caso dos funciondrios de um Ministério, existem os, que, pelo cargo que ocupam e pelas tarefas que realizam, dispdem de grande independéncia nas tomadas de decisdes € na maneira mesmo como organizam seu trabalho ¢ admi- nistram seu tempo. E esta, por exemplo, a situaco de um Procurador Geral da Justiga ou do Reitor de uma Universi- dade, em tudo diferente da realidade de um arquivista ou de ‘um técnico em contabilidade. 23, LOWY, M. Op ct, p. 263-268. 24 Singer, quando imerprets dadosetastcos edemoprsfco para uma anise dat clases no Brasil greg como “peoetariado urbana” osempregadoe ni agrfclat {uve trabalnan em empresas, ms os empregados em asmiistasto pubis, com ‘exces ds que ttn ala remuneragoefunges diretivas, Segundo o autor, ambos foram o praetariado ubano porque “wenden & Intervie no process social ¢ (GER, P. Domina e Desigualdade. Ri de Jnr, Paz Tere, 1976. 25. Emsetembr de 1988, dos S61 328 uscfndriospblicos cvs ederas existent, am cargo de nivel soperion. CNPC — Cadasira DAP, Presidéncia da Repblica, 26, Asreferacias fits 2s funclendvios pics tem por bate o lio FRANCA, B. H. O Barnabl-Conscéncia Police do Pequeno Funciondlo Pablo. S89 Paulo, Cones Eater, 1993 48 ‘Como este tema permite sempre uma larga margem de impreciso, Lowy” chama a atengfo para a dificuldade em se “saber a partir de qual grau de subordinagio ou depen- déncia um quadro administrativo médio deixa de ser peque- no-burgués para tornar-se proletétio.” Daf a necessidade de se empregar conceitos aproximativos como “semi-proleté- rios” ou “semi-pequeno-burgueses” para designar este es- ‘pago social intermedirio (por exemplo, para certas categorias de professores, de engenheiros, de médicos assalariados, et.) Por este motivo, a pergunta “onde acaba o que é um. pequeno-burgués e onde comeca um burgués pequeno?” toca ‘no ponto central da questo da intersegdo entre as classes sociais e da diversidade interna das categorias. Esse também € 0 caso dos funcionérios ptiblicos. En- quanto 05 altos funciondrios da administragao piblica permanecem pequenos-burgueses ¢ diferentes nfveis e es- tratos sociais médios so definidos por conceitos aproxi- mativos, a grande maiotia faz parte, hoje, do proletariado modemo.™ 0 servidor pablico brasileiro: uma categoria prole- tarizada Em primeiro lugar, é preciso dizer que mais de 80% dos funcionérios piblicos brasileiros pertencem & categoria fun- ional Nivel Médio, cujos cargos no exigem diploma uni- versitério®s De fato, tio muitos os tragos que podem expressar a perda de uma situago econdmica relativamente estivel e segura e da respeitabilidade da funco publica, ou a desvalorizacio de seu conhecimento especifico como forma de distingio, ainda que todo esse processo ocorra em meio a muitas con- tradigdes e ambigtidades.** A expresso mais imediata e que no precisa de inter- ‘mediagées é a da situagdo econdmica da categoria. Os servi- dores piblicos, como todos os trabalhadores, tiveram uma ‘queda no seu nfvel geral de vida, principalmente nos iilti- mos vinte anos, além da ameaga constante de desemprego, algumas vezes levada a efeito pelas novas politicas de “en- xugamento da méquina burocrética”. Hoje, com excegdo dos funcionérios da Previdéncia Social e das Universidades — que fazendo greves consecu- tivas nos dltimos dez anos conseguiram um diferencial po- sitivo de salério —, o funcionalismo péblico, na grande ‘maioria, tem salérios ¢ renda familiar iguais ou inferiores 20 de operirios de maior especializagdo ou de determinados setores chamados de ponta. A pauperizagdo tem seu resulta- do mais grave entre 0s funcionétios civis dos Ministérios militares. Se a pauperizagio nao é, na verdade, sin6nimo de pro- Tetarizagio, neste caso, no entanto, desempenha também um, papel importante na manifestagdo exterior do fendmeno. Isto porque, a0 contrétio de categorias pequeno-burguesas que se proletarizaram, como 0s intelectuais, 0s funcionérios pi- blicos nao passaram para uma condigdo de assalariamento, uma vez. que nunca foram auténomos. Por sua vez, enquanto as manifestagdes vis{veis da pro- letarizagao passam por um processo de clarificago no tem- po, encontram, por parte das camadas proletarizadas, diversas formas de resisténcia, seja organizando-se politicamente, seja buscando estratégias individuais de sobrevivencia. Lwy, citando Piccone-Stella,” afirma ainda que:“A pro- letarizagdo significa também freqiientemente a desqualifi- cago, a subocupagdo, 0 desemprego, os baixos salétios, 0 trabalho parcelério, ftagmentado, mecanizado, monétono € emburrecedor”. As tarefas tipicas realizadas pelo servidor ptiblico no Brasil, assim como seus baixos saldrios e sua desqualificacdo, enquadram-se bem nesta descri¢ao, Ainda que a tendéncia manifesta seja a méxima infor- matizagio dos sistemas, no se pode perceber, de maneira clara, a perda de autonomia ou da independéncia do traba- Iho essencialmente burocritico através da mecanizagao ou da automagio. No Brasil. nfo s6 a informatizacio é ainda restrita a poucas repartigdes, como a propria mecanizagao de alguns servigos parece nfo ter afetado, fundamentalmen- te € até 0 momento, as tarefas e rotinas administrativas. As miquinas, onde existem, aparecem mais como subordina- das ao trabalho global, do que agentes transformadores dele. Braverman” parece ter compreendido a sutileza de tal situagio 20 afirmar: “Na rotina dos servigos de escritério, 0 emprego do cérebro nunca é totalmente desprezado...(mas) ‘98 processos mentais tomam-se ou repetitivos € rotineiros, ‘oussiio reduzidos a um fator tdo pequeno no processo do tra- balho que a rapidez.¢ a destreza com as quais a parcela ma- 27, LOWY, M.Apud PICCONE-STELLA, S. nteletualte Copal. Bari, DeDonsto, 1972 . ISL ¢ MANDEL, E, Werkers under neo-capitaism, Ferecional Socialist Review. Nov Dee, 1968.8 BRAVERMAN, H. Op. ct. (Capitulo 15) ‘Alda que nto os pose desenvolverneste exo fa-s necethrie astna- lac que 0 que estd em pout ¢ 0 podrto de ergaizaco do Estado brasileiro, ‘conseqdente com uma cet formasio social. neste contexte qu cabea dscussio Sobre Seu desempeaho e eficcla 30, Pea qualidade dese uabalho pla fora de su difusto, refazemos os pasos seguidos po Décio Sas em Classe Média e Siutema Politico no Bra op. BR ‘Sao Peulo em Perspectiva, (1):42-5I, janeirolmarco 1994 ‘nual da operagdo pode ser efetuada dominam todo 0 traba- Iho. Nada mais do que isso se pode dizer quanto a0 processo de trabalho manual e como se aplica ao trabalho em escrité- rio; ambos ficam reduzidos ao mesmo nivel, igualando-se em suas formas mais simples o trabalho do operétio ¢ do burocrata.” Uma outra manifestagio desta proletarizagao € que as condigdes especificas de produgiio e reprodueao das re- lagGes sociais no interior do Estado brasileiro no permi- tem, hoje, que a afirmacao de Lockwood seja verdadeira: “© mundo do pequeno funcionério piiblico se caracteriza, essencialmente, como o mundo da promogéo; aquele em que as questoes de prest(gio € de status social sdo as mais importantes”. Neste pais, a campanha desenvolvida por setores priva- tizantes tem conseguido desvalorizar os funciondrios © os 6rgdos piblicos perante a populagdo em geral. Em segundo lugar, os mecanismos de promogo no estio sendo adequa- damente eficientes para sustentarem diferengas significati- vas de status € prestigio, seja no interior da categoria, seja enire esses e os trabalhadores manuais. Por gltimo, o nepo- tismo ¢ 0 clientelismo existentes desmoralizaram 0 concur- so piblico como forma democrética de ingresso e elemento importante de distingao entre funcionérios pablicos e traba- Ihadores sem estabilidade.” Conclusio 0s diferentes critérios tomados como delimitadores ot definidores da “classe média” tém-se mostrado inoperantes, diante da andlise concreta das categorias sociais, como pro- curamos demonstrar no exemplo dos funcionérios péblicos brasileiros. Com efeito, quaisquer que sejam os critérios to- mados como determinantes, estes encontram sempre um sendo, excegées, casos particulares e, no geral, anecessida- de de um outro critério complementar que o especifique. De maneira sintética, nos apropriaremos dos principais critétios aceitos por cientistas sociais brasileiros na parti- cularizagio da “classe média” (critérios, portanto, comple- mentares) para demonstrar suas limitagGes intrfnsecas, apresentadas a seguir, ainda que, muitas vezes, j4 tenham sido apontadas no texto de Saes. A tealizagdo de um trabalho “improdutivo”: é improdu- tivo todo trabalho que néo contribui diretamente & produgio de mercadorias, ou seja, que nao participa diretamente do processo capitalista de produgdo da mais-valia, O corte ana- 49 Iitico € aqui empreendido no dmbito das relagBes sociais de produgio, No entanto, toma uma certa concepgdo de pro- dugo estritamente ligada a participago direta ou fisica da prodlugio de objetos-mercadorias.*" Mas 0 conceito de “pro- dutivo" é completamente outro se tomamos como definigo de produgao todo 0 circuito da produgio e reprodugo do capital, no sentido de “produgao em geral”, definido por ‘Marx na Introdugdo Critica da Economia Politica, ow ainda no Capitulo VI do Capital. Neste caso, produtivo & todo © trabalho (ou servigo) que contribui para a valorizactio do capital. E 0 critério produtivo-improdutivo que vai, entao, permitir a possibilidade do erro de reunir aqueles que reali- zam um trabalho assalariado e fornecem um sobretrabalho a0 proprietério capitalista (ou ao Estado-patrao) juntamente ‘com pequenos e grandes trabalhadores independentes, niio- assalariados ¢ proprietérios de seus meios de produgao. Este critério € reconhecido como amplo demas, j4 que engloba uma grande diversidade de grupos profissionais, Ele exige, assim, uma outra especificagao: a realizago de um trabalho que, além de “improdutivo”, seja “naio-manual”. Apesar de fazer uso de uma distingdo que é fisiologica- mente duvidosa, a insergio deste critério se faz necesséria Porque os estudos feitos em situages concretas demonstra- ram a possibilidade de identificagio, e mesmo de fusio, dos trabalhadores “improdutivos no-manuais” com trabalhado- res operdtios. Ainda assim, nem todos “improdutivos nfio-manuai mostraram disposigdes ideolégicas e politicas comuns. 31, Necessro diner que o autor firma nos propor aestbelecer,n ita trabalho, exatalina demacatciaenre os rabalhadres prodaivs eos impodutves. to mesmo tempo em quendonegaaimportiaci erica do problems. No nosso entendimento,eatetant,¢mporant camara testo para fto de ue o que eat em discuss ¢ a prépiapetncia asics do concsto “produc Avo" (enendido como todo auele que contribu detamente para «prude de rmercadoras) para delimit grupos de “classe ma 32 "Com o desenvolvimento da subordinagio rea 4 ako ao capital ov do modo ‘specitiamente capitalist, nlo€ 0 opti individsl que re converte no agente realdoprocesso de wabalbo no sev conjumo, mar sim ume capacidadede abatho :0clalmente combina. como as divesss eapaciddes de bala que ope: "am formam a mquia rodutiv tol paricipam de mania muito diferete no ocesso media deforma de mercadrias, ou mor nest cao, de prodtos um testaha mais com at mloe, ut mie com a bey, sete como dietor, engemic,tdenico, et, auelecomocapatar, acl outa come prio anal (a come servente —, temas quero cada ver em aio admers a fungdes de capecilade de trabalho incluida no consitoimedato de taba proto, firemen exporades pelo capital esubordnade, em gral, 3 seu proves Je ‘along de posto MARX, K Capt Ido 4°0 Capital. Porc, Publi es Bsorpito, 1975, odo no Bra, Si Paul, Editors da UNICAMP, 1991, participa de Desta forma, outro critério deve ser justaposto: a estrutura ocupacional, ‘No caso dos trabalhadores improdutivos é preciso acei- tar a ascendéncia da estrutura ocupacional sobre as relagSes sociais de produgo. Em outras palavras, a estratificagto social filtra os efeitos das relagées sociais de produgio impede que estas se manifestem diretamente e sem media- ‘so nos planos ideolégico € politico." Por estratificagio social compreende-se 0 grau de qualificagao profissional, a hierarquia de salérios ou o nivel de consumo, enfim, a mes- ‘ma coisa que Mills havia condicionado ao “tipo de empre- 20” e que Lockwood havia chamado de “situagdo de classe”. Portanto, mesmo 0 conjunto capaz de ser formado segundo esses elementos de distinc, ainda assim nao apresenta tragos de unidade politico-ideoldgica e no pode ‘se constituir enquanto classe social. E Saes quem reconhece: “A ‘classe média’ € a ‘estratificagdo social’ foram criadas pela classe dominante ¢ pelo Estado capitalista para tornar mais ‘funcional’ uma sociedade que nasceu sob o signo do antagonismo ¢ do conflito”.»* Chega-se, por este processo, A conclusio de que & impossfvel falar de “classe média"” No maximo pode-se falar em “grupos médios”, constituidos de trabalhadores “improdutivos” classificados como “nio- manuais” que, por nao participarem diretamente do nticleo da extrac de mais-valia, seriam incapazes de compreen- derem completamente a contradigao capital-trabalho e de ortarem as dimensdes ideol6gicas de “oposi¢ao” e “incom- patibilidade”. Assim, mais um critério 6 acrescido: sua consciéncia. (© trago comum a estes grupos médios € o fato de pos- sufrem uma “consciéncia média”, em que se dé a recusa 20 nivelamento social entre “manuais” e “nio-manuais”. Mes- ‘mo que no seja garantia de uma unidade ideolégica de to- dos estes grupos, constitui-se como 0 limite no interior do qual estes podem oscilar para a direita ou para a esquerda. Sustentados na ideologia dos “dons” e dos “méritos” natos ou adquiridos, estes “grupos médios” sentiriam-se superio- res aos trabalhadores manuais, seriam mais atrafdos pela ideologia da ascensio pelo trabalho que os desviariam das ‘organizagdes ¢ lutas coletivas.* Por tiltimo, mais um elemen- to deve ser incorporado na andlise destes grupos “médios’ a conjuntura. Uma vez que a histéria brasileira nfo registra coeréncia nem homogeneidade no comportamento politico destes grupos, € preciso conhecer a maneira pela qual eles se arti- culam e se opéem as préticas politica-burguesa e politica- proletéria, seus problemas e suas tensbes. Em resumo, as diferengas ideol6gicas existentes entre “os grupos médios” seriam dadas por certas “situagdes de trabalho” especfficas a cada um destes grupos, no interior de uma certa conjuntura (expressdo da correlagdo de forgas entre a burguesia e 0 proletariado). E preciso notar que, se separarmos a pequena-burguesia rural ¢ urbana do outro grupo formado por trabalhado- res assalariados “improdutivos”, muito pouco sobra como “especificidade” destes grupos médios, chamados por alguns ainda de “classe média”, Afinal o que sobra € a afirmagio nfo evidente da existéncia de uma ideologia que sustenta diferengas baseadas em dons e méritos. De fato, até os anos $0, 0 capitalismo promoveu uma intensa diviso social do trabalho, em que o fordismo € 0 taylorismo so exemplares, fracionando e especializando a0 maximo a organizacao da produgao em seu proveito. Até esta 6poca.e ainda durante os anos 60, para os pafses periféricos industrializados, tratou-se de convencer 0s trabalhadores de que a hierarquia do trabalho baseava-se em dons ¢ méritos, resultado de capacidades inatas acrescidas de outras adqui- ridas na escola. Com certeza, tal individualizacao do traba- Iho foi também responsavel pela consolidagto de uma ideologia escalonada do mundo entre os trabalhiadores, pro- vavelmente de uma maneira mais forte entre aqueles que se encontravam mais distantes da produgao de mercadorias. No entanto, nao é seguro que os trabalhadores fabris ndo te- nham sido também atingidos por tal ideologia, que afinal nio era s6 da classe dominante, mas que se imps como ideologia dominante na sociedade. De toda maneira, 0 que importa destacar é que, como toda visto de mundo, foi cons- ‘ruida a partir de elementos reais do processo de produgto daquela sociedade. Assim, os dons inatos ¢ adquiridos que distinguiam os trabalhadores “diferentes” ou que “mere- ciam mais” — “os que trabalhavam com a cabega” — daqueles que sabiam apenas trabalhar com as mos eram recompensados com mais méritos, ou seja, mais salério, mais prestigio social, mais acesso A cultura, ete. Nao € isto que ‘ocorre atualmente, As mudangas operadas pela informética ¢ pela cibernética transformaram completamente este qua- dro, Os contomos ja ténues entre trabalhadores “manuais” 236. Ainds que, cao don pais peiticos do caitaismo como o Brasil scores ‘sopecaptlizads convivam com sroresubcapitaliadeepecrindo a exitacia ‘Ge relager soins ideoogia desiguai combina {TL HANADA, M. Le Compromis Social au Japon: embiguté et mation (pape) & NILSSON, T.L’adaplation du Sydicalisme Sucdoir la Nowell Dame’ "le conorks” gape) spesentades no Seino Interaconl de Siniclion, Universicade de Evry, Frana, 20621 de janeiro de 1994, ‘a0 Paulo em Perspective, (1):42-S1, ancira/margo 1994 e “ndo-manuais” praticamente desapareceram: nas fbricas, méquinas comunicam-se diretamente com outras méquinas sem a intervengo humana; nos escrit6rios, as tarefas so cada vez mais mecanizadas ¢ menos “intelectuais”.* No mais, a ideologia “meritocritica” nfo poderia ser tomada como atributo de consciéncia proprio das “camadas mé- dias”, uma vez que é uma das caracterfsticas correntes hoje, tanto entre o operariado japonés como no interior das novas, equipes de trabalho em desenvolvimento na Suécia, os “co- works" A histéria do Brasil mostrou, ainda, que foi no bojo das lutas politicas que se manifestaram as diferengas de classe no interior das categorias sociais. Este também foi 0 caso dos funciondrios pablicos. De um lado esto aqueles que, nos escal6es superiores e mantendo uma relativa autonomia em relagio as suas atividades, prestam servicos a0 Estado. Estes ou participam da burguesia ou so muito préximos a ela e, quando criam seus sindicatos, tém o limite de sua cor- poracio profissional, jamais se “misturam” com trabalha- dores. Do outro lado esté a grande maioria de funcionérios subalternos que vendem sua forga de trabalho a0 Estado. Se ja tiveram uma posigao mediana na sociedade, hoje n30 tém mais; continuam a vivenciar um constante processo de proletarizagao. Suas agdes politica e sindical t&m sido coin- cidentes com as dos demais trabalhadores, sendo que sua presenga na Central Unica dos Trabalhadores denota a in- sergio da categoria no bloco que € o mais engajado num projeto alternativo de sociedade. Portanto, ainda que nao seja posstvel concordar com os fundamentos te6ricos da ideologia “meritocrética” como su- porte de distinglo de classe, para o Brasil atual, seria sem diivida um avango aceitar a proposigo de que este comple- xo entrelagamento de critérios exposto anteriormente deve- ria estar presente na investigagao dos grupos sociais chamados “médios”. De pronto, isto nfo s6 obrigaria os analistas a re- considerar 0 conceito “classe média”, como também permi- ia possibilidade de repensar a teoria de classes sociais. E possivel que fossem obrigados a reconhecer que os traba- Ihadores “improdutivos”, no Brasil, nfo s4o todos proleté- rios pelo fato de serem assalariados ou porque sofreram processo de empobrecimento. Da mesma forma, no sto todos “classe média”, portadores de uma ideologia “merito- ccrética”, incapazes de se apropriarem do “ponto de vista” ou da conscigncia proletiria. No mais, um passo seguinte poderia ser dado: tentar conhecer a composi¢ao do “novo proletariado” brasi leiro. . SL

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