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CONTRIBUTO PARA UMA TEORIA


DO ESTADO DE DIREITO

®FORTLIVROS
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Fone: (IS) 3173 3872
JORGE REIS NOVAIS
Professor da Faculdudc de Direito de Lisboa

CONTRIBUTO PARA UMA TEORIA


DO ESTADO DE DIREITO
do Estado de Direito liberal
ao Estado social e democrático de Direito
CONTRIBUTO PARA UMA TEORIA
DO ESTADO DE DIREITO
AUTOR
JORGE REIS NOVAIS

EDITOR
EDIÇÕES ALMEDINA, SA
Rua da Es1rcla. n.• 6
3000- 161 Coimhra
Tel: 239 851 904
Fa x: 239 85 1 90 1
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ÍNDICE

PREFÁCIO À REEDIÇÃO....................................................................................... 9

CAPÍTULO 1
Introdução

1. Da multiplicidade das propostas... .................................................................... 22


2 . ...ao esboço preliminar de um conceito de Estado de Direito........................... 25

@ CAPÍTULO II
As Origens do Estado de Direito

1. Os discutíveis antecedentes ............................................................................. 29


1.1. No Estado grego ........................................... .... ....................................... 30
1.2. Na Idade Média........................................................................................ 34
2. O Estado de Polkia e o Estado de Direito .............................. :...... . ................. 36
2.1. O Estado de Polícia como poder não limitado do Monarca..................... 36
2.2. A limitação ju1ídica do estado como ohjcctivo da reacção burguesa contra
o Estado de Polícia.......... ......................................................................... 40
3. A elaboração originária do «Rechtsstaat» e os conceitos ali ns ....................... 45
3.1. A introdução do conceito de «Rechtsstaat» na Aleman ha do
século X I X.......... .............. .................... ...... ................. ............................ 47
3.2. As garam ias político-constitucionais e a espccilicidadc do «État
Constitutionncl» ....................................................................................... 51
3.3. O caso particu lar da lnglatc,rn e a «mie of lmv» ..................................... 53

CAPÍTULO Ili
A «AdJcctivação» Liberal do Estndo de Oireilo

1. Os pressupostos teóricos ......................................................... ........................ 59


1. 1. Adam Smith e a separação Estado-economia .......................................... 60
1.2. Kant e a scp;u·ação Estado-moralidade..................................................... 65
1.3. Humboldt e a separação Estado-sociedade ............................ .................. 69
6 Contribwo para 111110 Teoria do Eswdo de Direito

2. Natureza e elementos do Estado de Direito liberal .......................................... . 73


2.1. Os direitos fundamentais ......................................................................... . 76
2.1.1. A teoria dos «direitos subjectivos públicos» ............................... . 81
2.2. A Divisão de Poderes .............................................................................. . 86
2.2.1 . O «império da lei» ....................................................................... . 89
-- 2.2.2. O princípio da legalidade ............................................................. . 93

( i)) CAPÍTULO IV
Estado de Direito (Material ou Formal) e Estado de Legalidade

1. A pcrspcctivação material e íonnal do Estado de Direito liberal ..................... 103


2. Do Estado de Direito ao «direito do Estado» .................................................. 112
2. 1. De ST,II IL a K ELSl!N .... ..... .. .......... .............. .... ... .... ...... ..... ..... ..... ... ... ....... ... 113
3. O «Estado de Legalidade» - seu sentido e seus valores ................................... 121

( j) ) CAPÍTULO V
O Es tado de Di reito e as Experiências Anti-Liberais
na Europa do S('Culo XX

1. Os Estados totalitários da Europa ocidentai corno Estados de (não) Direito ........ 128
1 .1. O Estado fascista italiano ........................................................................ . 129
1.1.1. O «Estado ético» .......................................................................... .. 140
1.2. O Estado nacional-socialista ..................................................................... 145
71@12.
!
V
A revolução anti-capitalista na Europa oriental e o Estado de Direito .............
2.1. O «Estado de legalidade socialista» ..........................................................
160
170

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CAPITULO VI
-
O Estado de Direito Perante as Novas Exigências de Socialidade
e Democracia no Século XX - O Es tado Social e Democn,tico de Direito

1. A estadualiz.ição da sociedade e a. socialização do Estado - o E.~do social ........ 179


1.1. <<Estado social» e conceitos afins ............................................................. 187
2. A compatibilização do Estado social com o Estado de Direito - o Estado social
de Direito ......................................................................................................... 192
3. A alteração dos elementos do Estado de Direito liberal ................................... 200
3.1. As regras da democracia política como dimensão essencial do
fatado social de Direito - o Estado democrático de Direito .................... 207
4. O Estado social e democr:ítico de Direito como Estado de Direito material
aberto a uma pluralidade de concretizações ..................................................... 21O

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 219

-------~------------- - ---~-
Aos meus Pais
PREFÁCIO À REEDIÇÃO

A obra aqui apresentada constitui a dissertação que apresentá-


mos, em L985, na Faculdade ele Direito da Universidade de Coimbra,
numa altura em que já iniciáramos a carreira académica na Faculdade
de Direito de Lisboa e em que, no plano legal , se fazia a transição
entre os anteriores cursos de pós-graduação (que iniciáramos em
Coimbra) e os actuais cursos de mestrado. O facto de este trabalho,
apesar ele praticamente indisponível, continuar a ser indicado e utili-
zado como obra de referência no estudo do Estado de Direito, parti-
cularmente no Brasil, justificou o amável interesse da Almedina na
reedição da publicação originária, datada de 1987.
Salvo correcção de gralhas e pequenos aspectos formais, o texto
originário mantém-se inalterado, o que, desde logo, justifica uma
primeira advertência sobre a necessidade de se ter em conta que
parte das obras consultadas e referenciadas na bibliografia fina l e
notas de rodapé, nomeadamente os manuais portugueses, tiveram
entretanto novas edições. Mas é, sobretudo, relativamente às ques-
tões de fundo que se justifica tecer algumas considerações prelimina-
res de enquadramento do texto agora reeditado.
Na altura em que foi escrito e apresentado na Universidade,
1985, o Mundo ainda não tinha passado pela mais significativa mu-
dança ocorrida na segunda metade do século passado - a imploscio
do chamado império sovié1ico. Sem curar da importância geral do
fenómeno, importa ter especialmente cm conta que, no domínio aqui
abordado, essa circunstância, ou seja, a persistência da concorrência
entre os dois blocos e as correspondentes bases ideológico-progra-
máticas, mantinha o Estado de Direi to, tal como acontecia desde a
sua origem, como conceito de lula po/í1ica e, na época, como verda-
deiro objecto directo de disputa e competição entre modelos.
10 Co111rib1110 f]ara uma Teoria ,lo Est"do de Direito

Entre nós, essa centralidade política do conceito de Estado de


Direito era particularmente nítida. Basta atentar nas discussões que
envolveram a consagração expressa do princípio no texto constitucio-
nal para se perceber que, na altura em que escrevíamos, mesmo nos
meios académicos mais avançados, o Estado de Direito estava longe
de merece r o assentimento gene ralizado e ine quívoco de que hoje
beneficia. Em geral, pode dizer-se que havia duas grandes dú vidas e
linhas de controvérsia subjacentes à discussão l11sa da época, inevita-
velmente muito marcada pelo contexto pós-Revolução de Abril que,
então, ainda se vivia intensamente.
A primeira dúvida, responsável pelas resistências à plena recep-
ção d o princípio no texto constitucional, respeitava a saber se o
conceito de Estado de Direito, fortemente conotado, na sua origem
histórica e no seu aprimorame nto conceptual, com o ad vento do
Estado liberal burguês. seria adequado a operar nu m contex to radical
e qualitativamente diferente, sobretudo quando o próprio projecto
que emergia da nova Constituição se afirmava pelas suas preten.as
singularidade e novidade políticas. Em nom e do novo projecto cons-
titucional, alguns círculos de esquerda punham em causa a capacidade
de sobrevil'ê11cia e adaptação do velho Estado de Direito ou sustenta-
vam a necessidade de um Tffti11111 ge1111s construído na confluência
indolor e fria do princípio do Estado de Direito com o princípio de
legalidade socialista .
A segunda dúvida consti:uía como que o negativo dn primeira e
desen vo lvia-se em torno da discutida compatibilidade en tre as pro-
fundas alterações económicas e sociais ocorridas na prática política.
e posterior ou simultaneamente acolhidas na Constituição. e os dita-
mes clássicos do princípio do Estado de Direito. Procurava-se, desse
ponto de vista, na altura corrente na lguns círc ulos de direita, de-
monstrar. i1 luz do princípio do Estado de Direito, a ilegitimidade das
transformações acolhidas e programadas pela Constituição: era a
é poca das pretensas normas cons ti tucionais i11 co11sti t11cionais.
Como se verá, o nosso trabalho confronta qualquer destas
objecções e dú v idas e tomi claramente partido na discussão que
e ntão se desenvolvia na arena política e que se reflectia. de fomia
particularmente intensa, no meio académico e em tudo quanto nele
se produzia.
Prefâcío à Ree.liçtio I1

De um lado, apoiados numa concepção de Estado de Direito


essencialmente baseada na garantia dos direitos fundamentais e
numa teoria de direitos fundamentais constitucionalmente adequada,
sustenuimos a ideia de uma radical incompatibilidade e impossibili-
dade de convergência entre os modelos autocráticos, incluindo o
Estado de legalidade socialista, e o Estado de Direito. Do outro,
apoiados numa concepção de dignidade da pessoa humana liberta
cios constrangimentos políticos e ideológicos do individualismo pos-
sessivo e conservador, sustentámos a abertura do conceito de Estado
de Direito a uma multiplicidade de concretizações, garantidos que
estivessem, no plano cio regime político, um quadro de democracia
representativa e, no plano dos fins cio Estado e do seu relacionamento
com o indivíduo, a garantia e promoção dos direitos fundamentais,
entendidos como garantias jurídicas de autonomia pessoal e de digni-
dade da pessoa de que o poder político, mesmo que democrático,
não pode dispor.
Em meios universitários portugueses da primeira metade dos
anos oitenta, uma posição destas não era muito popular, à esquerda e
à direita.
Alguma esquerda (ainda) não concedia no reconhecimento da
insustentabilidade teórica e política do modelo soviético, numa altura
em que o seu colapso iminente era ainda inimaginável. Daí que,
neste domínio particular, essa esquerda não percebesse que a crítica
pretensamente radical do Estado de Direito, não era apenas insusten-
tável de um ponto de vista de emancipação social, como só servia
para entregar à direita a exclusividade de um conceito de enorme
potencial legitimador.
Por sua vez, uma certa direita, particularmente a formada no
conceptualismo jurídico do Estado Novo, não via com bons olhos ser
desapossada dessa exclusividade da parente, habituada como estava
a utilizar o conceito de Estado de DireiLo como tr111ifo ideológico
indiferenciadamente arremessado, a torto e a direito, contra qualquer
vislumbre de transformação económica ou social das antigas estrutu-
ras de domit1ação. Nesse mesmo senlido, a própria ausência de uma
referência expressa ao Estado de Direito no articulado da Constitui-
ção era invocada como prova dessa incompatibilidade congénita do
novo regime constitucional com o Estado de Direito.
-
12 Co111rib1110 para uma Teoria do Estado de Direito

Num campo de disputa tão ideologicamente crispado, o nosso


co111rib11to para uma teoria do Estado de Direito, sem escamotear as
implicações políticas das posições sustentadas e tomando claramente
partido na defesa de uma posição própria, não é um manifesto políti-
co, antes se situando estritamente no domínio da construção dogmá-
tica. Só tal postura lhe permite, ainda hoje, num contexto radicalmente
diverso daquele que o viu nascer, ser tão (ou tão pouco) útil para a
compreensão do conceito e princípio do Estado de Direito quanto o
era na altura em que foi originariamente apresentado.
Em termos de conteúdo, o trabalho agora reeditado faz, de um
lado, uma síntese siste::mática <.laquilo que era já o acquis relativa-
mente consolidado na doutrina portuguesa acerca da origem, evolu-
ção histórica e principais elementos do Estado de Direito, mas preo-
cupa-se, por outro, em abordar alguns dos temas mais controversos
suscitados neste domínio e em sugerir, a propósito, algumas linhas
de desenvolvimento teórico.
Assim, de entre as principais posições próprias aqui desenvolvi-
das, salientamos. em primeiro lugar, o esforço de deslocação da
tónica, na abordagem do Estado de Direito e do seu conceito, da
ideia de império da lei para a ideia de direitos fundamentais.
Esta posição, segundo a qual, mais e diversamente do que ser o
Estado do império da lei, o Estado de Direito é um Estado dos
direitos fundamentais, pode, hoje, parecer uma banalidade. Mas não
o é e muito menos o era na época em que escrevíamos. Durante
décadas, sucessivas gerações de juristas portugueses foram formados
na convicção da identidade entre princípio da legalidade e Estado de
Direito e, ainda hoje, sintomaticamente, quando, no ensino universi-
tário, se inquirem os alunos sobre qual a primeira ideia que sugerem
para definir Estado de Direito, a primeira resposta que inevitavel-
mente surge é, tão só, a de que Estado de Direito é o Estado que age
com base na lei ou em conformidade à lei.
Essa ideia, tendo algum sentido e justificação histórica, é, no
entanto, inaceitável nos dias de hoje. Inaceitável porque deixaria os
cidadãos desarmados perante a lei e, sobretudo, perante as interven-
ções restritivas actuadas com base na lei, numa situação em que ela
fosse violadora de direitos fundamentais. Mas é também inaceitável
porque, à sua luz, teríamos hoje, por exemplo, de considerar como
Prefácio à Reediçcio 13

Estados de Direito a China ou os Estados regidos pelo mais estrito


fundamentalismo islâmico. Em quaisquer destas experiências, e
exceptuados os períodos de maior repressão ou fervor radical, o
Estado actua na forma e em conformidade à lei vigente; ainda assim,
essas experiências não podem ser consideradas Estados de Direito,
sob pena de este conceito não servir para nada, já que, então, qual-
quer Estado seria Estado de Direito desde que aplicasse a lei que ele
próprio tivesse aprovado, por mais abomináveis que fossem os res-
pectivos fins e conteúdo.
Por isso que, na obra aqui reeditada, a primeira preocupação
seja a da clarificação, distinção e aprofundamento, entre outros, dos
conceitos de Estado de Direito, Estado de legalidade, Estado de
Direito em sentido formal, Estado de Direito em sentido material.
Em segundo lugar, a centralidade dos direitos fundamentais no
conceito e na instituição do Estado de Direito, obrigou-nos a estabe-
lecer, nesse plano, uma rígida linha de separação entre Estado de
Direito e os dois grandes tipos de Estados autocráticos que se desen-
volveram no século XX. Não chega - e, sobretudo, não era suficiente
na altura -, para assentarmos na radical incompatibilidade entre Esta-
do de Direito e Estado autocrático. definir, pura e simplesmente,
esses Estados como ditaduras. Tal qualificação respeita aos respecti-
vos regimes políticos, tem a ver com a relação de incompatibilidade
desses regimes com a democracia, mas, sem uma compreensão apro-
fundada da relação entre os fundamentos teóricos dessas experiências
e os direitos fundamentais, não é possível compreender verdadeira-
mente as raízes da sua aversão estrutural ao Estado de Direito.
Parte substancial deste trabalho tem como objecto, nesse sentido,
as concepções que fundam o Estado fascista italiano, o nacional-
-socialismo germânico e o Estado soviético e, designadamente, nela
se faz uma avaliação crítica dos fundamentos teóricos da sua diversa,
mas comum, rejeição essencial da ideia de direitos fundamentais do
indivíduo contra o Estado e o poder político.
O facto de estes Estados terem saído como os grandes vencidos
do século XX não deve constituir fundamento de menorização da
importância das conclusões. Por um lado, porque milhões de pessoas
continuam, nos nossos dias, a viver sob este tipo de poder estatal;
por outro, porque as experiências estatais de fundamentalismo
-
14 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

islâmico demonstram, hoje, a possibilidade prática real, e não mera-


mente académica, de um poder político democraticamente legitimado,
eventualmente saído de eleições livres e pluralistas, ser assumida-
mente exercido em frontal violação dos princípios do Estado de
Direito.
Este facto remete-nos para a terceira ideia capital deste trabalho
e que é a ela distinção conceptual de Estado de Direito e de democra-
cia, a ideia de que é possível, conveniente e necessário distinguir os
dois planos. A fórmula constitucional de Estado de Direito democrá-
tico carece, nesse sentido, de uma interpretação e compreensão ade-
quadas, na medida em que podemos ter, pelo menos num plano
histórico, um Estado de Direito que não seja democrático, tal como
podemos ter, nos nossos dias - de forma pontual, mas também estru-
turalmente - , uma democracia que não seja Estado de Direito ou não
actue como tal.
Tanto quanto é do nosso conhecimento, foi a primeira vez que,
entre nós, se insistiu nessa ideia de que enquanto na democracia o
que conta é a participação dos governados no exercício do poder
político, no Estado de Direito o que é determinante é a dimensão de
garantia dos direitos fundamentais. Estas duas linhas de desenvolvi-
mento do Estado de Direito democrático são unificadas pelo mesmo
princípio estruturante que lhes dá justificação e sentido - o princípio
da igual dignidade da pessoa humana - , mas só através da perfeita
distinção das duas dimensões se apreende adequadamente a sua
combinação e complementaridade e se delimita o respectivo alcance.
Viríamos posteriormente a explorar desenvolvidamente esta
ideia, sobretudo do ponto de vista da relação entre direitos funda-
mentais e princípio da maioria (seja em As Restrições aos Direitos
Fundamentais ... , seja no recente Direitos Fundamentais: Trunfos
contra a Maioria), mas foi neste estudo de 1985 que, em torno da
busca de um conteúdo essencial do conceito de Estado de Direito, a
sustentámos originariamente.
Em qmu·to lugar, procedemos nesta obra a um esforço de análise
da transição do Estado de Direito liberal para o Estado social e demo-
crático de Direito, preocupando-nos essencialmente com uma com-
preensão e identificação adequada da especificidade e do sentido da
dimensão social do actual Estado de Direito, sustentando, não apenas
Prefácio à Reetliç,io 15

a compatibilização do princ1p10 da socialidade com o princ1p10 do


Estado de Direito, mas também a exigência de o Estado de Direito
cios nossos dias se constituir necessariamente como social e demo-
crático.
Por último, cabe realçar, neste trabalho, a defesa da concepção
de uma abertura estrutural do princípio cio Estado de Direito a uma
pluralidade de concretizações políticas. Como se perceberá, a exem-
plificação das diferentes modalidades dessa possível concretização
pode parecer anacrónica, muito marcada que está pela percepção
pessoal elas disputas políticas da época e pelo envolvimento na con-es-
pondente discussão teórica, mas o essencial, ou seja, o princípio de
abertura do Estado de Direito e da sua não identificação com um
modelo único de concretização política, continua tão válido quanto o
era na altura.

Setembro de 2006
ABREVIATURAS DAS REVISTAS
MAIS FREQUENTEMENTE CITADAS

BFDC - Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra


RAP - Revista de Administración Pública
REP - Revista de Estudios Políticos
RFDL - Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
RCIJ - Revue de la Commission Internationale de Juristes
RDP - Revue de Droit Public et de la Science Politique en France
et à I' Étranger
RIDC - Revue lnternationale de Droit Comparé
RDDP - Rivista di Diritto Pubblico
RIFD - Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto
RTDP - Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico
CAPÍTULO I
lntroducão >

É objectivo deste trabalho contribuir para fundamentar a elabo-


ração do que possa constituir, nos nossos dias, um sentido actual e
actuante do conceito de Estado de Direito.
Não obstante as inúmeras certidões de óbito que lhe foram su-
cessiva e prematuramente passadas, a ideia de Estado de Direito
revela urna presença tão viva que a prova da sua actualidade redunda
quase supérflua. Não só no meio universitário, mas sobretudo no
plano político ou jornalístico. assistimos hoje à invocação quotidiana
e não raras vezes abusiva do Estado de Direito pelo homem comum,
pela oposição política, pelos detentores do poder.
Curiosamente, esta múltipla instrumentalização do conceito, longe
de provocar a respectiva degradação ou ineficácia, antes gera a cres-
cente interiorização do que já foi designado corno o seu sentido
mítico 1 *, ou seja, a crença de que o reconhecimento como Estado de
Direito constitui condição decisiva da legitimidade de qualquer poder
político.
É esta adesão emotiva recolhida pelo princípio do Estado de
Direito que, em grande medida, garante e potencia a sua actualidade,
num grau que se poderia dizer proporcional à subsistência ou proxi-
midade de situações de poder arbitrário, de violações cios direitos
fundamentais ou, genericamente, de insegurança do cidadão perante

1 N. l...oP€7. CALERA, «Mi1ificación y Dialectica cn el Es1ado de Dcrccho», in Anafes de


la Cátedra Francisco S1uírez, n." t 1, 1971 , pp. 91 e scgs ..
* Quanto iis noias de rodapé cabe fazer duas adve11êncius: as obras serão aqui ciiaclas
abreviadamcn1c e na edição utilizada, sendo as referências gerais remetidas para a «Biblio-
grnfia» final; só se indica m. a tímlo uc informação. as (Jbras cfcctivamentc utilizauas. dado
que, perante a multiplicidade e vastiuão dos assuncos tratados. uma rcfcr~ncia mais desen-
volvida - que, de resto, poue ser encontrada nos Ma111111is publicado.; cmrc nós - poderia
transformar-se num rolciro bibliográfico quil~e imerminávcl.
- •

r
1. 20 Contributo para uma Teoria do Estudo de Direito

l: invasões ilegítimas do Estado. Nesse sentido, o Estado de Direito está


! tão mais presente quanto mais distante ou duvidosa se revele a sua
realização 2 ; daí a renascida vitalidade política do princípio após as
experiências totalitárias na Europa, claramente manifestada na consa-
gração da fónnula em algumas Constituições do pós-guerra.
Assim, se, por um lado, é o sucesso político que justifica o
renovado interesse académico pelo Estado de Direito, por outro é o
uso indiscriminado da expressão, que lhe vem igualmente associado,
que coloca a instituição universitária perante a responsabilidade de es-
clarecer o seu sentido, tanto mais quanto se constata que, indepen-
dentemente das diversas abordagens que ao longo de século e meio
pareceram neutralizá-la ou esvaziá-la de sentido útil, a ideia de Estado
1
I• de Direito não é hoje menos polémica que na altura da sua elabora-
ção originária, na exacta medida em que os pressupostos em que se
funda e as ilações que sugere não são hoje menos interessados que
os móbeis inspiradores dos liberais do século XIX.
A esta generalizada necessidade de clarificação acrescem, no
caso português, algumas razões, como sejam:
a) a desaplicação prática do princípio, as amputações que o
afectavam decisivamente nos planos constitucional e legisla-
tivo' e o ambíguo ou desvirtuador tratamento doutrinal por
parte do anterior regime;
b) a polémica que em torno do princípio se gerou durante os
debates que acompanharam a elaboração da Constituição de
1976, quer no que se refere à sua (não) consagração, quer à
legitimidade de algumas normas constitucionais4 ;

2
Nesta perspectiva o Estado de Direito eleva-se à categoria de ideal cujo desapueci-
mento só se consuma com a sua realização definitiva e acabada; assim; como diz Lr.GAZ \'
LACAMORA («EI Estado de Derecho en la Acwalidad». in Re1·ista General de Legis/aciâ11 y
Jurisprudencia, t. 163. 1933, p. 789), «o valor do Estado de Direito é o da sua trag.:dia:
suprimir-se a si mesmo. Aí reside a sua grandeza e a sua miséria».
1
Cfr.. JoRGG MIRAND,,, A Consriwiçiio de 1976. Lisboa, 1978. pág. 477 e seg. e
Co111rib1110 para 11ma Teoria t!a /11cr111stir11cio11alidatle. Lisboa, 1968. págs. 93 e segs ..
' Cfr.. Diário da Assembleia Co11stit11i11tc, n.º 28, págs. 719 e scgs. e ainda n.0 24,
p,íg. 603, n.• 29, págs.738 .: scgs., n.º 130, pág. 4358 e n.º 132. p,ígs. 44-t9 e segs.. No
plano doutrinal cfr. JoRGE MIR,\NDA, np. cit., págs. -477 e segs.; J. GOMES CANOTILHO, Direito
Co11stit11cional, Coimbra, 1983. págs. 268 e scgs.; MARCELO REOELO DE SOUSA, Direito
Co11Stiwcio11al, 1, Braga, 1979. págs. 303 e segs.; A. RoDRJGUES QuEIRó, Liçlies de Direito
llltrodução 21

e) a natureza e sentido controversos da fórmula «Estado de Di-


reito democrático», nomeadamente após a sua integração no
articulado da Constituição (e não já só no Preâmbulo) com a
revisão constitucional de 19825 •
Com vista ltquele objectivo de clarificação , procuraremos com
este trabalho determinar o núcleo que constitui o precipitado essencial
e universalizável de uma elaboração teórica com mais de cem anos,
o que, situando essencialmente o nosso trabalho no âmbito do pensa-
mento jurídico e político, implica igualmente a referência permanente
às vicissitudes e circunstâncias históricas que acompanharam a sua
concretização institucional.
Ora, perante a diversidade deste circunstancialismo e a vastidão
das construções teóricas que de alguma forma surgem conotadas
com aquele ideal, todo o nosso percurso seria feito praticamente à
deriva se, desde logo, não traçássemos, como referência balizadora
da investigação, um esboço daquilo que em rigor deveria ser a última
das conclusões, ou seja, a determinação, o mais genérica e abstracti-
zante possível, do conceito de Estado de Direito.
Será este um Estado fundado no Direito ou antes um Estado que
tem como fim o Direito ou, ainda, que actua na forma do Direito?
O essencial no Estado de Direito serão as técnicas formais de limita-
ção do Estado ou os direitos individuais que se procuram garantir?
E, dentro destes, estará o núcleo fundamental nos tradicionais direitos
«contra o Estado» - sobretudo no direito de propriedade - ou, prefe-
rencialmente, nos direitos a prestações positivas por parte do Estado?

Administrativo, Coimbra, 1976, págs. 299 e segs.; HEINRICH E. HbRSTER, «O imposto com-
plementar e o Estado de Direito». in Revista de Direito e Economia, 1977, n.0 1, págs. 39 e
segs.. 58 e seg,. e 116 e segs..
s Cfr., JoRoc; MIRANDA, op. cit., págs. 499 e scgs.; GoMes CANOTILHO, 01>. cit .. p:ígs.
287 e scgs.; M. Rr:nr:1.0 OE Sous,,, op. cit., pág. 307; GOMES CANOTIUIO e V1T1\L MOREIRA,
ConsTi111içüo da República Portuguesa Anotada, 1.0 Vai.. Coimbra, 1984, págs. 73 e segs.;
CASTANllf.lRA NEVES, O /nstitlllo dos «assemos» e a fimçiio jurídica dos Supremos Tribu-
nais, Coimbra, 1983, págs. 472 e 483 e segs..
Cfr.. ainda. para o deha1e na rcvisiio constitucional, Diário da Assembleia da ReJJIÍ·
biia,. n.º 129. de 29-7-82, págs. 5451 e segs. e li." Série, 3.0 Supl. ao n.º 108 de 8-10-81,
págs. 3332 (36) e segs.; 3.º Supl. ao n.º 106 de 16-6-82, págs. 1998 (66) e segs. e (77) e
segs.; 2.º Supl. ao n.º 136 de 3-8-82, págs. 2438 ( 18) e scgs..
22 Co111ri/J1110 para uma Teoria do Eswdo de Direito

Tratar-se-á de uma verdadeira limitação do Estado pelo Direito ou


antes de uma autolimitação resultante do próprio processo de criação
do Direito pelo Estado?
De certo que a tentativa de fornecer fundadamente uma resposta
de síntese a todas estas questões só poderá ser feita ao longo do
processo de análise das vicissitudes, adaptações e transformações
sofridas pela ideia de Estado de Direito durante mais de um século.
Tentaremos, por enquanto, proceder ao referido esboço, com a cons-
ciência de que, mesmo no plano de uma definição hipotética e preli-
minar, a tarefa não é fácil. De facto, veremos como as respostas se
multiplicaram da parte dos autores que têm considerado o problema.

1. Da multiplicidade das propostas...

O Estado de Direito surge-nos como um conceito marcadamente


polissémico, . moldando-se aos contornos que lhe advêm da aplicação
a realidades substancialmente diferentes e recolhendo as contribuições
e diferenças de perspectivas dos autores que mais profundamente o
analisaram. Assim, já no século XIX BLUNTSCHLI assinalava cinco
significados diferentes do Estado de Direito, como sejam: a ideia de
«que o Estado se destina simplesmente a proteger os direitos dos
indivíduos»; «que o Estado deve ordenar os direitos da comunidade
ao mesmo tempo que faz reconhecer os direitos privados»; «que ao
Estado incumbe fornecer o bem público, mas fundando toda a coacção
no direito»; a «negação do fundamento religioso do Estado e a afir-
mação do seu fundamento e limites humanos»; a <duta contra o
poder absoluto e o Estado patrimonial [... ] e a afirmação do direito
de os cidadãos participarem nos assuntos públicos»6.
Mais recentemente, ainda SARTORJ atribuía à expressão pelo menos
quatro significados, descurando intencionalmente as variantes secun-
dárias:
1) «como sinónimo (ou tradução) de rufe of law;
6
BLUNTSCHI.I, Théorie Génémle de / 'Etat, trad., 2.• ed., Paris, 1881, pág. 58 e scg ..
Curiosamente, também 8LUNTSC11u comribuiria para aumentar a equivocidadc do concciw.
ele pr<Íprio caracterizando o «Estado da Idade Média» como «Rcchtsstnat», embora com
«uma delieiente protecção por parte dos tribunais» (lbid., p:íg. 51; cfr., igualmenlt.\ a refe-
rência de CARL SCHMITT Teoria de la Comtil11ció11, t.rad., Madrid, 1982, pág. 141).
/11trod11ção 23

2) como equivalente de Estado constitucional na acepção garan-


tista do termo;
3) como Estado de justiça administrativa;
4) na acepção formalista para a qual Estado e Direito coinci-
dem, sendo qualquer Estado um Estado de Direito»7 •
Noutra perspectiva, tomando como critério a natureza das limi-
tações que envolvem o Estado, L EGAZ v LACAMBRA considera como
variantes de Estado de Direito «o Estado submetido à limitação
imanente pelo Direito posi tivo, à limitação transcendente-imanente
pelos direitos individuais ou à limitação transcendente pelo Direito
natural» 8 •
Sob esta perspectiva, seria possível prolongar a exposição quase
ilimitadamente, com referências às múltiplas formas de conceber a
essência do Estado de Direito, desde as teorias mais acentuadamente
fonnalistas, como a de KEI.SEN, para quem, da identificação de Direito
e Estado decorre a indiferença perante a «estéril» tentativa de delimi-
tar as esferas próprias do indivíduo e do Estado e a inev itável
consequência de que todo o Estado é Estado de Direito9, ou CARL
ScHMITI, para quem, «segundo o significado geral da expressão, pode
caracterizar-se como Estado de Direito todo o Estado que respeite
sem condições o Direito objectivo vigente e os direitos subjectivos
que existam» 10 , às teorias que, pelo contrário, condicionam a existên-
cia do Estado de Direito a uma prévia valoração material dos fins do

7 G1ov ANN1 SARTORI, <<Nota sul rapporto ira S1a1o di dirillo e Stalo di giustizia», i11
RIFD, 1964, pág. 310.
8 LEGAZ y LACAMORA. «EI Estado de Derccho», i11 BFDC, 1951 . pág. 81.
Y HANS KELSEN, Teoria General dei Eswdo, 1rad., Barcelona, 1934, passim e, especial-

mente, págs. 53 e ~egs. e 118 e segs ..


"'CARL SCHMITr, Teoria de la Constit11ci611, pág.1-41; daqui decorre naturalmente que,
para o mesmo Autor (Legalidad y leJ:itimidad, tracl., Madrid. 1971, pág. 23 ), «a expressão
Estado de Direi/o pode ter tantos signilicados distintos como a própria palavra Direito e
como organizações a que se aplica a palavra Estado. Há um Estado de Direito feudal. um
estamental, um burguês, um nacional, um social. além de outros cm conformidade ao
Direito natural, ao Direito racional e ao Direito histórico».
ScHMrrr chegaria, inclusivalllcntc, a utilizar a fóm1ula Eswdo de Direito Nacional-
-Socialisra, referida à Alemanha nazi (11a1io11al.wzialis1ischer Rechtss/aat ou
nationalsozia/istischer de11tsc/1er Rec/11.uwat) - cfr.• assim, FRA1'CO Pn,RANDRf:I, / Diriui
Subbienivi Pubblici nell'evol11zio11e dei/a donrina gemwnica, Torino, 1940. pág. 226 e GOMES
CANOTILHO, Direi/o Co11s1iwcio11al, pág. 270.
- --- · ·-

P'
4i

1;
24 Contributo para uma Teoria do Eswdo de Direito

l;
Estado, como, entre nós, CASTANHEIRA NEVES, que, desde logo, consi-
jl
derava corno requisito indispensável a subordinação do Estado «à
condição suprema de não preterir e de não deixar de visar, como seu fim
essencial, a realização da justiça na vida real da sua comunidade» 11 •
No mesmo plano, enquanto FoRSTHOFF, «contra todas as tentativas
para lhe atribuir (ao Estado de Direito) conteúdos sociais, éticos ou
outros conteúdos materiais», defende, numa perspectiva de conser-
vação social, «que o Estado de Direito deve ser entendido em sentido
formal , ou seja, partindo de determinados elementos estruturais de
organização constitucional [... ] que no seu complexo constituem o
Estado de Direito>> 12, já, entre nós, GoMES CANOTILHO se opõe a este
entendimento de Estado de Direito «como conjunto de artifícios técnico-
-jurídicos», antes lhe associando intimamente os princípios da demo-
cracia e da socialidade numa perspectiva que permita ao conceito de
Estado de Direito assumir «um ideário progressista» 13 , no que nos
parece convergir JORGE MIRANDA quando considera o Estado de Direito
como síntese, modelo ou ideia em que se traduzem urna organização
constitucional orientada para a garantia e promoção dos direitos fun-
damentais e um princípio democrático dinamicamente harmonizado
com a livre formação da vontade popular e a possibilidade de previ-
sibilidade do futuro e segurança individuais 14•
E, mesmo quando há coincidência no elencar dos elementos do
Estado de Direito, a tónica é diversamente colocada nesta ou naquela
das suas vertentes. Assim, enquanto BuROEAU 15 salienta como aspecto

11
CASTANHEIRA NEVF.5. Quesuio dt! Focro. Quesrão de Direito, Coimbra. 1967, pág. 539.
2
' ERNST FoRSTHOl'F. Sraro di diriuo i11 rrm1sfomwzjo11e, trad., l\-1ilano, 1973, pág. 6;
cfr.• entre nós, a posição algo semelhante de ANTÓNIO Jost BRANO,\Q (Sobre o co11ceir11 de
1 Constiruiç<io Políricu, Lisboa. 1944, págs. 59 e 61 ), para quem o Estado de Direito era tão

[ só visto «como um conjunto de medidas engenhosas. como um complexo e frágil meca-


nismo de pesos e contrapesos, cuja montagem e cujo funcionamento se destinavam a refrear
e a neutralizar politicamente todas as fonnas políticas»; assim, o Estado de Direito consenti-
ria «em se mesclar com os princípios político-fonnais de todas as fom1as de governo, sejam
elas autocráticas. aristocráticas ou democráticas, sempre que elas o respeitarem como mé-
todo de relativização do Poder político»; dr., do mesmo Autor e no mesmo sentido, «Estado
Ético contra fatado Jurídico'!», i11 O Direito. 1941, págs. 259 e segs ..
" GuMFS CANOrn.110. op. cit., pág. 269 e scg..
"JOR(,E M1R,\N()A, A Co11sti111iç<io de /976. pág. 473.
,s GEOllGl;S BuRDEAU, «L'institutionnalisatiun du pouvoir, condition de l'Étal de
Droit», i11 /JFDC, 1980, págs. 37 e scg..
-
/11trod11çüo 25

fundamental a «subordinação dos governantes a regras jurídicas [...]


acompanhadas de sanções igualmente positivas» funcionando como
limitação do poder, G1usErP1No T1<cVHS 16 considera como elementos
essenciais da concepção de Estado de Direito a liberdade individual e
a sua protecção, apesar de, consoante os países a que se aplica ou os
diferentes modos de conceber a relação indivíduo-Estado, variarem
quer a amplitude da primeira quer as técnicas da segunda.

2....ao esboço preliminar de um conceito de Estado de Direito

Perante a diversidade das concepções referidas, e rejeitando a


perspectiva formalista por a considerarmos vinculada a um contexto
e interesses não generalizáveis (o que procuraremos demonstrar nos
próximos capítulos), parece-nos possível isolar, como componente
essencial e determinante do conceito, o núcleo constituído pela liber-
dade e direitos fundamentais do cidadão. Coincidindo com GrusEPPINO
TREVES, atrás citado, parece-nos que, independentemente da época,
países ou condições de vigência, este será o elemento sem o qual não
haverá Estado de Direito. Nesta perspectiva, o outro pólo da ideia - a
limitação jurídica do Estado e dos titulares do poder - só adquire
sentido, justificação e inteligibilidade em função do respeito, garantia
e promoção dos direitos e liberdades fundamentais.
Podem variar as técnicas formais de vinculação e limitação do
Estado; pode haver «muito» ou «pouco» Estado; as formas de orga-
nização do poder político e os sistemas de governo não serão necessa-
riamente idênticos, mas só haverá Estado de Direito quando no cerne
das preocupações do Estado e dos seus fins figurar a protecção e
garantia dos direitos fundamentais, verdadeiro ponto de partida e de
chegada do conceito.
Ponto de partida porque, desde logo, desde o momento consti-
tuinte , o Estado terá de visar, como núcleo essencial dos seus fins, a
realização dos direitos; o que não será, contudo, suficiente, pois não
seria Estado de Direito aquele que deliberada ou involuntariamente
se desviasse daquele objec.:tivo, pelo menos na medida em que a sua

16 GiusEPrlNO Tn EvEs, «Considcrnioni sullo Stato di diriuo», i11 S111di i11 011ore di
Emilio Crosa, li, Mil ano, 1960, pág. 1599.
26 Co11tributo para uma Teoria do Estado de Direito

realização esteja objectivamente ao seu alcance. A efectiva garantia e


protecção dos direitos será assim, igualmente, ponto de chegada,
ainda que, como dissemos, nunca plena ou absolutamente alcançado.
Estado de Direito será, então, o Estado vinculado e limitado
juridicamente em ordem à protecção, garantia e . realização efectiva
dos direitos fundamentais, que surgem como indisponíveis perante
os detentores do poder e o próprio Estado.
Dir-se-á, com razão, que é pouco, mas com um dado de partida
diferente estaríamos num outro caminho. É irrecusavelmente pouco,
pois ficam por responder muitas das questões que atrás enunciámos;
fica por descortinar, apesar de implícita, a natureza da limitação jurí-
dica e o alcance da vinculação do Estado; não se revelam as modali-
dades ou técnicas formais da limitação; não se definem os parâme-
tros das formas políticas que se consideram compatíveis com os
objectivos do Estado de Direito e, por .último, fica por explicitar o
sentido e alcance dos direitos objecto de protecção. É, no fundo, a
procura destas respostas que justifica as páginas que se seguem.
Naturalmente, se partíssemos de outra hipótese de definição seriam
obviamente distintas as respostas, o que poderia levar-nos a concluir
pelo subjectivismo ou arbitrariedade desta opção. Porém, tal como
refere R ENATO TREVES 17, o verdadeiro problema do sentido do Estado
de Direito não reside na tentativa de determinar científica e objectiva-
mente uma sua substância ou essência - o que seria um problema
insolúvel - , mas antes o determinar qual o sentido mais oportuno a
atribuir à fórmula com vista a evitar equívocos e esclarecer, acres-
centaríamos, os grandes problemas suscitados pelo conceito, desde a
elaboração originária até aos nossos dias.
Ora, deste ponto de vista, a base de que partimos é a única via
que em nosso entender, e como procuraremos demonstrar, permite:
1. apreender o sentido da construção teórica do Estado de Di-
reito no contexto do século XIX;
2. distinguir as diferentes perspectivas de aproximação do con-
ceito no próprio âmbito do pensamento liberal e elucidar os
valores e interesses que lhes correspondem;

17
RENATO TREVES, «Sta!o di Diritto e Stati Totalitari», in S111di i11 ,more di G. M. de
Fra11cesco, II, pág. 58.
Introdução 27

3. demarcar o Estado de Direito das experiências anti-liberais


que na prática o excluem e evidenciar as deficiências ou
ambiguidades teóricas que historicamente caucionaram a
manipulação autoritária do conceito;
4. conferir-lhe operatividade no quadro das novas exigências
democráticas e de socialidade, sem lhe limitar as possibilida-
des de abertura aos estádios de evolução que tais exigências
potencialmente comportam.

-
-

CAPÍTULO II
As Origens do Estado de Direito

l. Os discutíveis antecedentes

Não é pacífica a questão dos possíveis antecedentes históricos


do Estado de Direito. Amores há, como A. JosÉ BRANDÃO, que rejeitam
expressamente a tentativa ele «arranjar uma imponente árvore genea-
lógica a este regime político, hoje conhecido por Estado de Direito,
descobrindo-lhe antepassados na antiguidade impropriamente cha-
mada cl,1ssica, ou querendo-o justificar com autores antigos e medie-
vais»18. Para aqueles Autores, o Estado de Direito é algo de novo na
História das ideias e acontecimentos políticos, localizado histórica e
politicamente no liberalismo do século XIX 1'1 •
Para outras posições, como a de Guroo FAsso20, a concepção do
Estado de Direito não está ligada a pruticulares condições históricas e
a ideologias ou filosofias específicas, mas «na sua essência ela é tão
antiga como o próprio pensamento filosófico-político: e é mais ou
menos elaborada quando, na Antiguidade, de ARISTÓTELES a MARSluo,
a CuSANO e outros, os teóricos políticos advogavam a soberania das
leis, inteligência sem paixão, racionalidade, contrapondo-a à concepção
segundo a qual a vontade caprichosa do Príncipe é soberana>>. O Estado

•• A. JostBRANDÃO, Sobre o conceito de Co11stit11içüo Política. pág. 58.


1''Numa pcri;pec1iva suhstanch1lmc11tc dis1in1a é 1a111bé111 csla a posição de E1.1,1s D1,1z,
p.ira quem «ante~ do controlo jurídico não há Estado de Direito. mas Estados mais ou
menos absolutos; as limitações de carác1cr rcligiosn, ético nujusnntur:ilista são insulicicntes
para dar lugar a um autêntico Estado de Direito. Este só surge com os controlos e regula-
mentos assinalados ao Esrndo pcl:i lei posi tiva (... I. E essa siwação alcança-se com uma
certa generalidade (com preccde111cs i111pona111cs no mundo anglo-saxónico) graças à Revo-
lução Francesa e /1 implantação no s.:culo XIX do Estado Lihcrnl» (ELIAS D1,,z, Estado de
Derecho y Sociedad Democralico, Madrid, 5." cd., 1973. pág. 15).
20 Gumo FAssô, «Stato di Dirillo e Stato di Giustizia», i11 RJFD. 1963, p.íg. 85.
30 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
J

de Direito seria assim, não algo que irrompe no século XIX, mas
antes o resultado de uma evolução milenar2'.

1.1. No Estado grego

Grande parte da doutrina faz do «império da lei», do «reino das


leis», a característica fundamental do Estado de Direito, contrapondo-a
ao «domínio dos homens», ao reino do arbitrário, à utilização discri-
minatória da medida individual ( «[ ...] a government of Jaw, not of
mcn [...]» - Massachussett's Declaration o.f Rights of 1780). É exacta-
mente sob este prisma que surge a tentação de estabelecer um paralelo
entre o Estado de Direito e o Estado antigo, particularmente no caso
grego. É que, também neste, o domínio e a generalidade das leis eram
justamente assinaladas como garantias contra a tirania do governo
dos homens, da medida individual. Com efeito, a cidade (e o cida-
dão) consideravam-se li vres quando o Estado estatuía por via geral,
já que, podendo embora o Estado fazer tudo, só o podia fazer na via
do Direito, ou melhor, em conformidade a uma regra geral por todos
fo nnulada 22•
Neste sentido, ARISTÓTELES considera o domínio das leis ( «razão
sem paixões») como uma soberania equivalente ao «governo de
Deus e da Razão», contrapondo-a à soberania dos homens equiva-
lente a um «impulso animal»23• Acresce ainda, como realça CASTANHEIRA
NEVES 2~, que, diferentemente da racionalidade formal que resultava
da universalidade e generalidade da lei típica do iluminismo, a racio-
nalidade emergente do reino das leis de ARISTÓTELES era axiologica-
mente fundada. Assim, ARISTÓTELES distingue a Democracia em que a
lei é soberana - «na qual não surge nenhum demagogo e os melhores
cidadãos estão no poder» - da Democracia em que o povo, através dos
decretos das assembleias, é soberano e onde suroem os demaoooos25•
"' "' "'
11
Cfr., G OMES CANOTILHO, op. cir., pág. 271.
22
Cfr., LCON Duou1r, Trairé de Droit Co11stitt11io1111el, Paris. 2.' ed., 1923, t. II, pág.
152 e scg., t. Ili, pág. 552. Para Ducu1r, contudo. os an1igos nunca teriam concebido a
liberdade como limiiação do Es1ado, «nem a limitação do poder do Estado, da cidade, no
interesse elo indivíduo».
13
Políriw. livro III, cap. XI.
u Cfr., O i11stit11to dos «assemos» .... cit.• págs. 123 e 496.
" Política. livro Ili, cap. XI.
As Origens do Estado de Direito 31

Também PLATÃO teria sido defensor de uma concepção muito


próxima do Estado de Direito, já que, em seu entender, as melhores
condições possíveis na vida de um Estado seriam atingidas quando a
lei, expressão dos <<ditames da razão», fosse ela «própria o soberano
absoluto dos governantes e os governantes apenas os escravos da
lei» 26 •
Esta ideia não seria, de resto, contraditória com a concepção
platónica de Politeia ideal onde, como refere CASTANHEIRA NEvES 27 , a
Polis se constituía ela mesma como a realidade da justiça, numa
identificação de política e ética que omitia o direito e prescindia das
leis. E não haveria incompatibilidade entre os dois momentos pois a
Politeia visaria conter o processo de decomposição da democracia
grega, pelo que o modelo aí proposto aos atenienses - na sua severi-
dade e austeridade - se explicaria como transigência com as necessi-
dades do momento; de resto, a doutrina de PLATÃO sobre os fins do
Estado confirmaria esta interpretação, já que, como contraponto ao
modelo espartano de Estado de conquista, o Estado ateniense seria
um autêntico Rechtsstaat, vinculado à paz, existindo apenas para
garantir o pleno desenvolvimento das faculdades e justos direitos dos
indivíduos 28 •
Assim, poder-se-ia concluir, com JELLINEK, que <<as modernas
teorias do Estado de Direito formuladas por MOHL, STAHL e ÜNEIST não
acrescentaram qualquer nova nota às doutrinas de PLATÃO e
ARISTÓTELES sobre O Estado legal» 29•

26 As leis, 714-a e 7 J 5-d; cfr., por todos, A. BECCARt, «Lo Stato legale platonico», i11
RIFD, 1933. págs. 349 e segs..
27 Cfr.. O instituro dos "assentos»... , cit., págs. 493 e scgs ..

2M Cfr., neste sentido. ALPRED YERPROSS, Grundziige der a11tike11 Rec/1ts 1111d

Staatsphilosop/Jie, Wien. 1946, segundo uma recensão feita por CAllRAL Dll MoNCADA,
«Platão e o Estado de Direito», in Eswdos Filo.wifico.r e Históricos, 11. Coimbra, 1959, pág.
381 e seg.. Contraditando vivamente a teoria de YERDROSS, ver CAnR,\L oE MONCAo,,, ihid.,
pág. 384 e segs. e, no mesmo sentido, G 10Ro10 or:L V 1:cc1110, Liç,ies de Filosofia do Direito,
trad., Coimbra, 1979, pág. 496 e seg., Au1or que integra a doutrina platónica dos fins do
Estado na linha de pensamento que, a1ribuindo fins omnicomprcensívcis e ilimitados ao
Estado, desaguaria modernamente no Estado de Polícia e, logo. cm contraposição frontal ao
pensamento de Estado de Direito.
29 Cfr., Teoria General dei Estado, trad., Buenos Aires, 1973, pág. 464; no mesmo
sentido, REINHOLD ZIPPELIUS (Teoria Geral do Estado, trad., Lisboa. 1984, pág. 154) VI! no
Estado de Direito «a versão moderna da ideia platónica de supremacia do direito,,.
l
1 32 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
j
Com um fundamento diferente - agora em função da distribuição
l racional e, Jogo, eficazmente controlada do poder político - também
LoEWENsn,1N salienta a «profunda aversão dos gregos em relação a
todo o tipo de poder concentrado e arbitrário, e a sua devoção quase
fanática pelos princípios do Estado de direito de uma ordem
( e11110111ia) regulada democrática e constitucionalmente, assim como
pela igualdade e a justiça igualit{tria (isonomia)» 3º.
Porém, se quisermos fazer uma aproximação global do problema,
não poderemos limitar-nos à consideração parcelar de alguns aspectos
- no caso, o império da lei ou a estruturação racional do poder
político - que, pelo menos na nossa per~pectiva, não são elementos
por si só decisivos na caracterização de um Estado como Estado de
Direito; haveria que, recorrendo à noção preliminar que propusemos,
deslocar o problema para a sua sede determinante, isto é, para a
relação Estado-indivíduo, na medida em que ela afecte ou condi-
cione a questão dos direitos fundamentais.
Teríamos, em primeiro lugar, que considerar a forma particular
como os gregos concebiam a democracia e que CoNSTANT recolheu na
célebre disti nção entre liberdade dos antigos e liberdade dos moder-
nos, segundo a qual «entre os antigos, o indivíduo, soberano quase
habitualmente nos assuntos públicos, é escravo em todas as suas
relações privadas}>, nada sendo «concedido à independência indivi-
dual, nem no que respeita às opiniões, nem à indústria, nem, sobre-
tudo, no que respeita à religiâ0>> 31 •

3" Teoria de la Co11stit11ció11, trad., Barcelona, 1979, pág. 155 e segs.. LoEwENSTEJN
ilustra a afirmação com as técnicas de 1~1cionalização e limitação do poder utilizadas nas
Cidades-Estado gregas: a distribuição das diferentes funções estaduais por vários titulares,
órgãos e magistrados; a nomeação por sorteio dos titulares dos cargos; o curto período de
duração e a rotatividade nos cargos; a proibição de reeleição; as figuras da proscrição e
desterro dirigidas contra o cvcn1ual aparecimento de demagogos que colocassem em perigo
a eslrutura democrática do Estado.
Em sen1ido convergente, GOMES CANOr11.110, (Direito Co11.wit11cio11a/, pág. 271) consi-
dera também que «a conjugação das ideias de dike (processo), tllemis (direito)-e ,wmos (lei)
apontava já para a limitação racional dos poderes do Estado» e que «a defesa de uma
co11sti111içtio mista trazia implícita, desde a antiguidade, a necessidade de um poder mode-
rado, contraposto à 1irania scm limites».
Jo BENJAMIN CoNSTANT, «De la libcrté dcs ancicns comparée à celle des modemes>>, i11
Co11rs de Politique Co11stit111io11el/e, Paris, 2.ª ed., 1872, volume IV, pág. 242 e seg..
As Origens do Estado de Direito 33

No entanto, e recorrendo à demonstração de JELLJNEK32 - anteci-


pando desde já que a nossa conclusão será necessariamente diver-
gente, pois divergentes são também os pressupostos de que partimos
na consideração da natureza do Estado de Direito -, parece resultar
claro que, tal como no Estado moderno, também aqui se reconhecia
ao indivíduo uma esfera livre e independente do Estado, embora
nunca se tenha chegado, na Antiguidade, «a ter consciência do
carácter jurídico desta esfera». Não existindo aqui a consciência de
uma oposição entre indivíduo e Estado (o povo dos cidadãos é o
próprio soberano), faltava o pressuposto essencial da consciência de
uma esfera livre dos cidadãos como instituição jurídica33•
Mas, para além disso, a diferença fundamental entre Estado de
Direito, tal como o concebemos, e Estado antigo radica indirecta-
mente naquela forma particular de conceber o povo como «povo dos
cidadãos)), pois, como reconhece e salienta J ELLJNEK, «nunca a Anti-
guidade chegou a reconhecer o homem por si mesmo como pessoa»,
mesmo tendo a escrav idão em Atenas «um carácter muito mais
doce» que na Roma pré-estóica.
Como refere LEGAZ Y L ACAMBRA, não basta não ser ajurídico ou
anti-jurídico para existir como Estado de Direito; é necessário que
uma juridicidade consubstancial a uma concepção personalista «se
estenda a certo âmbito e se institucionalize em certos conteúdos)>
necessariamente incompatíveis com um mundo onde a escravidão
era um instituto legítimo e onde, por outro lado, o poder do Estado
era considerado ilimitado frente aos próprios homens livres, pelo que
«não teria sentido dizer que a Polis helénica era um Estado de Direito,
ainda que o Direito fizesse parte da essência da Polis tal como as
demais manifestações do espírito como a arte, a religião e a filoso-
fia» J~.35 .

i2 Teoria General dei Eswdo, págs. 219 e segs..


JJ De notar que, ainda assim. J(:l.LINEK conclui, num plano jurídico-fomml. pela com-
pleta equivalência daquela esfera individual à realidade da liberdade moderna; de facto. panin-
do da teoria da autolimitação do Estado. considera JEu1NEK que «as limitações do Estado
moderno no que respeita à liberdade individual são limitações ele si mesmo». pelo que. neste
particular, a única diferença entre fataclo antigo e moderno é que «a liberdade do indivíduo
moderno está expressamente reconhecida na lei do Estndo, enquanto na Antiguidade era tão
evidente e clara que nunca teve lugar na legislação» (op. cit., págs. 232 e segs.).
J.1 L tGAZ v L ACAMOR,\, «EI Estado de Dcrccho», cír., pág. 85.
34 Co111rib1110 para uma Teoria do Estado de Direito

1.2. Na Idade Média

Na época feudal a relação indivíduo-«Estado» coloca-se em ter-


mos radicalmente diferentes. A ideia de i.tm poder público do Estado
desvanece-se em favor de um sistema político fundado numa rede de
vínculos unindo suseranos e vassalos; a ideia de imperium é substi-
tuída pela de dominiwn, entendida como mera superioridade territorial
por parte do Príncipe, mas compatível com a vinculação deste, num
plano de igualdade relativamente aos restantes senhores, ao complexo
entrelaçado de direitos e deveres que caracterizava a sociedade medie-
val36. De facto, nesta vasta cadeia de dependências recíprocas, cada
um era titular de jura quaesita, direitos adquiridos, garantidos pelos
tribunais comuns independentemente do lugar que o autor da violação
ocupasse na hierarquia feudai3 7•
Sería, então, com base nestes direitos adquiridos, ou, mais pro-
priamente, nestes privilégios recíprocos, que se poderia falar de um
«pensamento medieval da liberdade no direito» 38 ou, mais audacio-
samente, de um verdadeiro Estado de Direito medieval39•

l l Note-se que. com estes juízos, não tratamos de <~ulgar» arbitrariamente a civiliza-
ção antiga através dos óculos do homem modemo (cfr. neste sentido as prudentes reservas
de UMBERTO CERRONI, «Introdução» ao Pensamemo Polírico, trad .. Lisboa. 1974). mas tão
só de procurar localizar. com vista a uma interpretação adequada, a origem histórica das
notas que reputamos essenciais a um conceito de Estado de Direito actual e operativo. Por
outrO lado. a natureza e vastidão do tema não pe1mitem a desejável atenção aos cambiantes e
diferença de atitudes localizáveis no Mundo Amigo (cfr., neste sentido. JELUNEK, op. âr.,
págs. 219 e segs., incluindo as importantes advertências sobre a necessidade de distinguir o
Estado romano do Estado helénico, de consillcrar as diversas fases de evolução deste e de
não tomar os textos dos lilósofos como fotogralia lia realidalle; convergcntemente. cfr.
GOMES CANOTLLHO, Direiro Co11sri111cio11a/, pág. 423).
'" Cfr.. EHRHARDT SoARFS, lmeresse Ptíblico. legalidade e Mériro, Coimbra, 1955,
pág. 48 e seg ..
37
Com base nesta estrutura escalonada de posições jurídicas pô<lc HER~tANN HEI.LER
(Teoria do Esrado, trad .. S. Paulo, 1968. pág. 231) falar. relativamente à Idade Média, de
uma «espécie de divisão de poderes» traduzida «na partilha de poderes jurídicos subjccti-
vos, como jura q1111esira, entre os diversos depositários do Direito».
3
' Go.,1Es CANOTILHO, Direito Co11srir11cio11al, pág. 271.
3• Seria não só a opinião de BLUNTSCHU (cfr. supra. nota 6), mas também de M,,x

WEBER, para quem aquele «cosmos ou, segundo os casos, caos de privilégios e obrigações
subjcctivas» constituiria um «Esrado de Direira fundado não cm ordenamentos jurídicos
1 1
objecrivos, mas sim em direitos subjectivos» (Eco110111ia y Sociedad, trad., México, 1944.
vol. IV, págs. 223 e 239).
As Origens do Estado de Direito 35

Porém, não encontramos aqui quaisquer dos elementos que


referenciámos como caraterizadores do Estado de Direito. Por um
lado, a limitação que afecta o Príncipe não é de natureza essencial-
mente jurídica, mas sobretudo ético-religiosa (no caso do estamento
eclesi.1stico)40 ou social (no caso do estamento nobiliárquico)41 • Por
outro lado, não encontramos na Idade Média o reconhecimento de
uma esfem independente de direitos fundamentais do homem. Haverá,
como diz GOMES C ANOTJLH042, «a liberdade que advém de determinado
estatwo», mas não a titularidade de direitos enquanto homem, indiví-
duoH.
Assim, e tendo em conta a existência de uma jurisdição que
tutelava os privilégios de todos contra todos, com mais propriedade
que de Estado de Direito se poderá falar, relativamente à Idade Média,
de um Estado de justiça (Justiz.staat)44. •
Tal não invalida, porém, que se dê o justificado relevo a elementos
que, presentes neste período, encontrarão o necessário desenvolvimento
justamente no Estado de Direito. Entre estes elementos cabe destacar as
chamadas cartas de franquia ou os forais ibéricos, que constituíam ver-
dadeiras convenções ou pactos entre os suseranos e a aristocracia feudal,
traduzindo-se numa limitação efectiva do Príncipe e na aquisição ~os
indivíduos de direitos específicos; tal facto tem autorizado a ver nestes
documentos os primórdios das modernas declarações de direitos e as
raízes da concepção moderna dos direitos fundamentais45, tanto mais

40 Cfr., kLLINEK, Teoria... , cit., pág. 241 e scg..


41
Cfr., EuAs D1A2, Estado de Derecho..., cit., págs. 19 e segs. e N1cos PouLANTZAs,
Poder Político e Classes Sociais. trad., Porto, 1971, I, págs. 192 e segs..
42
Direito Co11stit11cio11al, pág. 271.
43 43 Cfr., GARCJA-PELAYO, «La Constitución Estamental», i11 REP, 1949, vol. XXIV,

págs. 115 e scgs..


.., Cfr., EHRHARl)T SOARES, Imeresse P1íblico..., cit., pág. 49; ainda assim, como salienta
EuAs D1,,z (op. cit., pág. 21 ), só impropriamente se poderá falar de uma tutela jurisdicional
de todos co11tm todos, pois as camadas situadas na base da hierarquia feudal só indirecta e
remotamente bcneliciavam das limitações recíprocas que derivavam da existência de cstalu-
tos de privilégio.
' 5 Cfr., RGINHOLD Z1rrR1us, Tt!oria... , cit., pág. 161 ou EttAS D1Az, op. cit., pág. 23;
MARCl!l.LO CAETANO («O respeito da legalidade e ajustiça das leis», i11 O Direito, 1949, pág.
6), embora reconheça no foral o carácter de um verdadeiro pacto entre o Rei (ou o senhor da
terra) e a comunidade local - apesar de formalmente se trntar de documento outorgado-,
caracteriza, contudo, a Idade Média como «era do privilégio», onde a própria legalidade era
concedida como privilégio e não como direito.
36 Contrihlllo para uma Teoria do Estado de Direito

quanto a autoridade débil, vendo-se obrigada a respeitar aqueles di-


reitos, tendia a justificá-los filosofi camente considerando-os como
direitos naturais46•

2. O Estado de Polícia e o Estado de Direito

2.1. O Bst,ulo ,Je Polícia como Poder não limitlldO do Monarca

Enquanto Poder que progressivamente se coloca acima do direito,


o Estado absonuto é considerado pela generalidade da doutrina como
o anti-modelo contra o qual se erguem a teoria e a construção prática
do Estado de Direito. De facto, nas duas fases do Estado absoluto - a
patrimonial e a ele polícia47 -, a vontade arbitrária do Príncipe impõe-
-se à medida do gradual desaparecimento das possibilidades de defesa
judicial dos particulares relativamente às. ofensas do Poder48, não
obstante a crescente importância que a regra de direito assume no
Estado de Polícia no domínio da disciplina jurídica das relações entre
os indivíduos4' 1•
Na França ou na Alemanha, os Parlamentos e os tribunais impe-
ri ais, que tratavam igualmente de interesses públicos e privados ou
especificamente das relações entre o Príncipe e os súbditos, perderam

•b Cfr., BERll!AND DE Jouvrnc,L, «La idca dei Derecho Natural», i11 Crítica dei
Derecho Nmural, Lrad., Madrid, 1966. pág. 211.
47
É corrente a distinção, no Estado absoluto, entre uma primeira fase na qual o
Estado é considerado um bem patrimonial do Príncipe e uma segunda fase - com apogeu no
século XVIII - , designada como «de polícia», na qual o Príncipe se assume plenamente na
tarefa de prover a felicidade e o bem dos súbditos e cm que o anterior fundamento divino do
poder é substituído por um fundamento racional (cfr. EHRHARDT SOARES, /111eresse P1íb/ico....
r cit., págs. 49 e scgs. e JoRG!l MIRANDA, Manual de Direito Co11sri111cio11a/, t. 1, Coimbra,
1985, pág. 75 e scgs.}.
"São elucidativas, neste sem ido. as palavras que, segundo BERTHÉLEMY ( «Prefácio» a
Vroit Ad111i11ism11(f Alle111a11d <lc Orro MAYER, Paris. 1903, t. J, pág. Víll}. um cortesão
dirigia a Luis XIV: «Todos os vossos súbditos vos devem a sua pessoa. os seus bens, o
seu sangue. sem terem o direito a pretender n:1da. Sacrificando-vos tudo o que têm, eles
cumprem o seu <lever e nada vos dão pois tudo é vosso».
•• Cfr.. Jr:11N-P1E1mn H ENRY, «Ver.; la lin de l'Étal de Droit?>>, ;,1 RDP. 1977, n.º 6,
pág. 1208; L. CORTINAS PELÁEZ, «Estado Dcmocmtico y Administración Prestacional», i11
RAP, n.º 67, p,íg. 98 e seg..
As Origens do Estado ,le Direito 37

progressivamente as faculdades de tutelar os direitos dos particulares


contra o soberano que, por sua vez, invocando cada vez mais frequen-
temente um direito de autodefesa contra os súbditos (Selbsthilfrecht),
se dispensava de propor acções judiciais para fazer valer os seus
50
privilégios . E, quando toda a atenção do Príncipe e a actividade do
Estado se dirigem para a transformação dos seus países em socieda-
des cultas e esclarecidas, a já enfraquecida preocupação em defender
os interesses dos patticulares é ainda mais relativizada.
Como salienta GoMES CANOTILHo51 , dada a impossibilidade de manter
uma coexistência de direito natural entre o jus eminens e os jura
quaesita 52 , o direito de intervenção do Príncipe, outrora excepcional,
vai-se alcandorar, com o despotismo iluminado, a um plano superior.
Se na primeira fase era o conceito de «soberania» que servia de
cobertura para a assunção de poderes absolutos pelo Monarca, agora
recorre-se sobretudo à ideia de polícia, de jus politiae, compreendida
como direito de o Príncipe intervir em todos os domínios no interesse
do bem público, em nome da raison d'État.
A partir do dever que o Príncipe tem, enquanto <<primeiro servi-
dor do Estado)), de providenciar o bem-estar geral, atribui-se-lhe,
através do jus politiae, a possibilidade de - pessoalmente ou por
intermédio dos funcionários do Estado - intervir sem limites em
todos os domínios, dos mais aos menos importantes, desde que o
próprio Príncipe o considere necessário para a prossecução do bem
público. «É ao Príncipe que incumbe pessoalmente a imensa tarefa
de prosseguir os fins do Estado. Se a natureza humana lho pennitisse,
ele tudo faria, sozinho»53•

50 Cfr., EHRHARDT SOARES, op.


cit., pág. 52.
1, O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Coimbra, 1974,
pág. 33 e scg..
12 Os jura quaesiw. direitos adquiridos, diferentemente dos direitos «originários» do

indivíduo, eram os direitos individuais fundados num título especial produzido por determi-
nado facto jurídico (convenção, prescrição, concessão imperial) e, como tal, protegidos
pelos tribunais; nessa medida eram considerados como limites aos direitos de superioridade
territorial do Príncipe (/a11desherrlid1e Hoheitsrechte).
Porém, a título excepcional, quando estava em causa o interesse público, a mison
d'État, reconhecia-se ao Príncipe a possibilidade de ultrapassar as barreirns constituídas
pelos jura quaesita, fazendo apelo a um direito supremo, a uma pre1TOgativa especial - o jus
emi11e11S (cfr., Orro M AYER, Droit Administratif Alh'lllwul, 1. 1, págs. 32 e segs).
SJ ÜTTO MAYER, op. cit., pág. 44.
38 Co111ribwo para uma Teoria do Estado de Direito

Entende-se, então, que ao lado das matérias de direito, aplicá-


veis às relações entre particulares e judicialmente tuteladas pelos
tribunais ordinários, há as matérias de administração, correspondentes
à esfera da polícia, área em que os direitos dos particulares podiam
íl
j.
[
il
ser lesados pela actividade administrativa praticamente sem qualquer
protecção54 •
De facto, para além da responsabilidade pessoal dos funcionários
~ por actos ilícitos (dificilmente exequível)55, os particulares não dispu-
f nham de quaisquer mecanismos de defesa perante o Estado. Porém e,
no sentido de resolver a contradição entre a necessidade de garantir o
1 princípio supremo do Estado de polícia - a ideia da omnipotência do
Estado na prossecução do bem público, e consequentemente, da
insindicabilidade dos seus actos - e a necessidade de proteger os
particulares eventualmente lesados pela actividade de polícia, ressurge,
nesta altura, a doutrina do Fisco, originária do direito romano.
Ou seja: uma vez que o Estado propriamente dito se situava à
margem do direito, fora do controlo judicial, produziu-se uma cons-
trução segundo a qual o Estado se desdobrava numa outra pessoa
moral de direito privado, capaz ,<de entrar em comércio jurídico com
os particulares, de se obrigar contratual e extracontratualmente, de ter
capacidade judiciária activa e passiva» - o Fisco56 •
Assim, e uma vez que só as matérias de direito - relações jurídi-
co-privadas - eram judicialmente tuteladas, através deste expediente
possibilitava-se aos lesados pela actividade do Estado accioná-lo judi-
cialmente na pessoa do Fisco.
Porém, e apesar da sua importânci a como única garantia de
salvaguarda dos interesses individuais no regime de polícia, a doutrina
do Fisco não visava a protecção de uma esfera autónoma dos direitos

!>4 Cfr., fatRHARDT SOARES, op. cit., págs. 57 e segs..


is Cfr.• GOMES CANOTlLHO, A responsabilidade..., cit., págs. 27 e segs..
56
fatRIIARDT SOARES, op. cit., pág. 60; o Fisco é considerado como um verdadeiro
proprietári~ dos bens af:cl?s aos lins do Estado (distinguiam-se, portanto, os bens do Fisco
~o~ ~n~ pri_v~dos do Prmc1pe) e que, na administração dos seus bens, se sujeita ao direito e
Junsd1çao c1v1l, bem como aos encargos, ordens e obrigações que lhe sejam impostas pelo
Estado propriamente dito.
. Sobr~ a. ~o~trina d.o. Fisco•. cf~.. Orro MAYER, op. cit., págs. 55 e segs.; JauNEK.
Sistema dei Dmrtt Pubbltct Subb1etttvi, trad., Milano, 1912, págs. 67 e scgs. e, entre nós,
por todos, EHRHAROT SOARES, O /111eresse Ptíblico ..., cit., pág,s. 59 e segs..
As Origens do Estado de Direito 39 •
------....:..:.::.....::::..:..:.2~.::::...::~~~.=.'..'..'.'..-----__::_:_

dos particulares, mas tão só minorar patrimonialmente os prejuízos


que sofressems1.
O Estado de Polícia confirmava-se, pois, no essencial, como
Estado acima do direito58, já que este artifício engenhoso de distin-
guir duas personalidades no Estado traduzia, quando muito, uma
«submissão parciaJ»S9.
Alguns Autores, procurando relativizar o alcance desta conclu-
são, invocam a vinculação do Príncipe à lei natural, à religião, ou
seja, como diz BuRDEAU, «a feliz impotência em que se encontravam
(os Monarcas) para transgredir quer os caminhos da Providência quer
as leis fundamentais do reino»<'°.
Porém, não será decerto muito ousado concluir que, sendo a
valoração daqueles vínculos deixada exclusivamente ao arbítrio do
Príncipe, e num contexto em que o entendimento dos conceitos de
soberania e jus politiae impeliam o monarca ao livre desenvolvimento
dos seus desígnios e à intromissão em todas as esferas da vida social
e privada, as referidas limitações se revestiam, na prática, de interesse
muito reduzido, já que os particulares estavam destituídos de quais-
quer direitos de natureza pública face ao Estado.
Em igual plano se pode considerar a concepção que, através de
um processo de despersonalização e objectivação do poder, procurava
matizar a identificação do Príncipe com o Estado e a Administração,
pois enquanto na fase patrimonial do Estado absoluto o monarca
detinha a soberania a título pessoal, na fase de polícia passa a exercê-la

57
«Corno não há nada a fazer contra o próprio Estado e corno o fisco nada mais pode
fazer além de pagar, toda a garamia da liberdade civil no regime de polícia se resume nestas
palavras: <<submete-te e apresenta a conta»» (OTTo MAYER, op. cit., pág. 61, nota 22).
5~ Para Orro MA YER, «a responsabilidade perante Deus e a sua própria consciência,

por um lado. e a consideração prudente do que é útil e realizável, por outro, é tudo o que o
Príncipe resp~ita; talvez a força do costume também desempenhe um papel importante, ainda
que não se goste de o confessar. O direito não conta para nada» (op. cit., pág. 44).
~• Cfr. GARRI.DO FALLA, Tratado de Den:cho Ad111i11istrativo, Madrid, 1958, vol. I,
págs. 62 e segs. e, entre nós, A. MARQUES GUEDES, O Processo Burocrático, Lisboa, 1969,
pág. 11 e seg. e E. VAZ DE OuvEJRA, O Processo Admi11is1rativo Gracioso. Lisboa, 1962,
pág. 188.
oo GEoRc;r~~ Bu1mEAu, «L'institutionnalisation ...», cit., pág. 37; sobre este tipo de
limitações cfr., GA1uuoo FALI.A, op. cit., págs. 48 e scgs.; cfr., igualmente, R. Z1rPEL1US, op.
cit., pág. 138 e, entre nós, em sentido análogo, pois «nenhum fütado existe à margem do
Direito», JoRGE MIRANDA, Ma1111al de Direito Co11sti111cio11al, t. I. pág. 75 e seg..
• :_4~º----~C~o~11t'..'..r~ib~ut~o'..lp:'.!:a'..'.:ra~111:,::11~a..!T..:::.eo::.,:r~ia~do::....::E::.:st:.=a.::.do:.....:.:.de.;__D_ir_e_ilo_ _ _ _ __

enquanto órgão do Estado; assim, para esta construção, era a ideia de


Estado que surgia com relevância primordial, na medida em que toda
a actividade do Príncipe se fundava, não numa prerrogativa pessoal,
mas na representação do Estado de que o Príncipe era o «primeiro
servidor»; os funcionários administrativos - de que o monarca se
rodeara, sobretudo na Prússia - não obedeciam formalmente às ordens
do Rei; mas sim às regras e instruções emanadas dessa figura trans-
cendente que era o Estado.
Porém, produzindo efeitos bem mais reais que esta construção
teórica, permanecia o princípio supremo de que a lei não obriga o
poder soberano, bem como os fortes laços que ligavam e faziam
depender a mc1quina administrativa da pessoa do monarca (ligação
que persistiria mesmo sob os limites impostos pelo Estado de Direito).

2.2. A limitação jurídica do Estado como objectivo da reacção


burguesa contra o Estado de Polícia

O constrangimento individual e a falta de previsibilidade e segu-


rança, decorrentes da actividade discricionária e ilimitada de um
Príncipe empenhado na construção de uma «nação culta e polida»,
provocariam inevitavelmente a reacção da burguesia ascendente con-
tra o Estado de Polícia.
Ainda que beneficiando da política económica mercantilista, a
burguesia, afastada dos lugares de governo, necessitava de erguer
uma barreira às arbitrariedades do Poder ou, pelo menos, de domesti-
car uma Administração cujas providências concretas. individuais, e
logo potencialmente discriminatórias, não se coadunavam com a
calculabilidade, liberdade e igualdade de oportunidades dos agentes
económicos requeridas por um pleno desenvolvimento das bases
económicas em que assentava o emergente poder burguês.
Numa primeira fase, aquela reacção fazia-se ainda acompanhar
do apelo nostálgico à reposição das estruturas da sociedade por
degraus, das esferas de autonomia da sociedade estamental, da liber-
dade entendida como privilégio; contudo, globalmente desfavorecida
na arrumação hierárquica da sociedade, a burguesia cedo deslocaria
«as reivindicações de liberdade do plano duma liberdade social de
As Origens do Estado de Direito 41

dimensão tradicional para o duma liberdade individual»6 1 ; ela não se


propõe, então, renovar os antigos jura quaesita, mas antes afirmar,
perante a actuação potencialmente arbitrária do Príncipe, a existência
na esfera de cada homem de um núcleo de direitos naturais concebi-
dos como direitos subjectivos insusceptíveis de invasão por parte do
Estado.
Eliminados que foram os privilégios estamentais e abertas as
vias do advento da empresa capitalista, a burguesia sentia, agora, as
condições suficientemente maduras para se libertar do dirigismo e
paternalismo da Administração, opondo, como diz EHRHARDT SOARES, à
ética do Príncipe a razão da sociedade. Ganha então relevo a ideia do
público pensante que se interessa pelas questões que a todos respei-
tam e com capacidade para participar na discussão das soluções
nacionais; e, curiosamente, o impulso do iluminismo e o apelo ao
esclarecimento - que quando monopolizados pelo Príncipe justifica-
vam a arcana praxis - são agora recuperados pela burguesia na sua
exigência de publicidade dos negócios do Estado62 •
O projecto de autonomia e auto-regulação da vida económica e
a exigência de «debate público» das questões nacionais (ou seja,
num certo sentido63 , as reivindicações específicas da burguesia como
classe e da burguesia como público, identificadas e apresentadas
como reivindicações da sociedade) convergiam, assim, num programa
revolucionário de racionalização integral do Estado segundo os inte-
resses da sociedade.
Esta racionalização, requerida essencialmente pelas necessidades
de cálculo e segurança inerentes à produção capitalista, projecta-se
na exigência de racionalização das funções do Estado e, em primeiro
lugar, no controlo da Administração; um Estado racionalizado será
um Estado cuja actuação é previsível, em que a Administração está

61 Cfr., E1lR.HARIYf SOARES, Direito Ptíblico e Sociedade Térnica, Coimbra, 1969, pág. 164.
62 Jbid., pág. 47 e segs..
6J Cfr., GJANfRANCO POGGI, A, evoluç<io do Estado Moderno. trad., Rio de Janeiro,
1981, págs. 89 e segs.; este autor, seguindo JO~GEN HABERMAS,_ S~ruk11_mvaru!el der
Ôffentlichkeit, distingue a burguesia como classe (ac11v1dadc emprcsanal msenda no Jogo do
mercado) da burguesia como ptíb/ico (ou melhor, variedade de públicos, como identidade
social distinta resultante das actividades literárias, ru1fsticas, intelectuais da «burguesia
esclarecida» da época e de alguns elementos da nobreza e baixo clero).
-
42 Co111ributo para uma Teoria do Estado de Direito

limitada por regras gerais e abstractas, em que as esferas de autonomia


dos cidadãos e a vida económica não estão à mercê de ingerências
arbitrárias do Monarca, mas antes protegidas e salvaguardadas pelas
decisões racionais da sociedade esclarecida, representada no órgão
da vontade geral.
Assim se prescindia de qualquer fundamento de carácter teoló-
gico para justificar a origem e a estrutura das sociedades em favor da
explicação e legitimação do Estado como facto humano resultante da
natureza, das paixões e dos interesses dos homens, se superava a
antiga concepção de poder pessoal em favor da ordenação genérica e
objectiva levada a cabo pela lei entendida como emanação racional
da vontade geral, ao mesmo tempo que ao transcendentalismo social
e político de procura do bem comum e da salvação da sociedade se
substituíam os valores individualistas da «defesa da sociedade de
homens iguais, que o mesmo é dizer, a sociedade dos produtores
burgueses» 64 •
Dentro destes parâmetros, o processo de racionalização do Estado
é indissociável do objectivo da sua limitação jurídica. Com efeito, se,
por um lado, os fins últi!llos visados com aquele processo - a protecção
das autonomias individuais - só encontravam efectiva protecção no
seu reconhecimento jurídico (através das Declarações de Direitos e
Constituições do liberalismo), por outro, as próprias técnicas dirigi-
das a garanti-los - divisão de poderes e princípio da legalidade da
Administração - eram também técnicas essencialmente jurídicas legi-
timadas pelo império da razão legisladora vinculativa para todos65•
Na base deste processo de conversão tendencial do problema da
limitação do Estado em problema jurídico situa-se a teoria da perso-

~ EflRHARDT SOARES, Direi10 f'_úblico... , cil., pág. 164; sobre a comum fundamenta~·ào
filosóhca JUSnaturahsta para a tentauva de cons1ruir uma teoria racional do Estado, cfr.. por
todos. N. B~n~ro («IJ mod~llo giusnaturalistico». i11 Società e Stmo llella filosofia poli rico
''.1odenw, ~'.lao, 1979, max'.me ~ágs. 101 e segs.), que salienta, todavia, as diferentes moda-
lidades P?hllcas de concreuzaçao do modelo, inspiradas grosso modo em HOBBES (governo
monárquico), Esr1~oz...: E RoussEAU (governo democrático) ou LocKE E KANT (govemo
representauvo constuuc1onal).
65
Cfr., F. LUCAS PJRES, O problema da Co,wit11içüo, Coimbra, 1970, pág. 42 e seg..
As Origens do Estado de Direito 43

nalização jurídica do Estado, que se revelaria decisiva na específica


construção do Estado de Direito66 •
De facto, para que as relações entre o Estado e os cidadãos se
pudessem constituir em relações jurídicas - exigência daquele pro-

"" Foi ALllllECHT quem pela primeira vez (numa recensão a um livro de
MAURllNUREC"lll'R [)Ublica<la cm 1837) delineou esta teoria, a qual encontraria posteriores e
decisivos <lcscnvolvimentos cm GmwERe Jr:u.1NEK.
Gi:nnrn, que inicialmente rejeitara a teoria proposta por At.nRECtrr, considera, em 1865
(Grwubigc cines Systcm des deutsche11 Staatsn:chts), que a concepção do Estado como
pessoa jurídica é o ponto central e o pressuposto de qualquer constrnção do direito público.
T:imhém JEtUNEK (cfr., Sistema dei Dirilli..., cit., maxime págs. 31 e segs.) assentará
nesta teoria a sua construção da natureza do Estado; para ele, a noção de Estado como
pcssoajurí<lica. titular e sujeito do poder público concebido como um direito subjectivo - a
Harschq/i - , <<apresentava-se com clareza científica no preciso momento em que se reco-
nhece no Estado uma vontade unitária, distinta da <los indivíduos que o constiluem» (op.
cit., p:lg. 36). Entre n6s, Roc11A SARAIVA (Co11stmç1io Jurídica do Estado, Coimbra, 1912,
li. págs. 9 e scgs. e «As doutrinas políticas germfinica e latina e a teoria da personalidade
jurídica do Estado», in RFDL. 1917, vol. li, n."' 3 e 4, págs. 283 e segs.) assume a defesa
dcst,1 teoria, cuja origem hist6rica - sobretudo no domínio <la submissão do Estado ao
Direito no plano das relações internacion,1is - localiza em GR0T1us, PUFFENOORF, HonnES,
ROUSSEAU e, mesmo, BoDIN.
Para ROCHA SARAIV,1, longe <le constituir uma cobertura <las tendências autoritárias
que envolveram o desenvolvimento da teoria na Alemanha (cfr. «As doutrinas germânica e
latina ...», cit., págs. 284 e seg.), ela constitui um pressuposto da submissão do Estado ao
Direito; «considerar o Estado como uma pessoa jurídica é afirmar que ele s.e encontra
submetido ao direito. Dizí:-lo soberano apenas significa que ele não está sujeito a nenhuma
colectividade superior e de modo nenhum que se lhe não imponha o direito objectivo» (op.
cit., pág. 299 e seg.).
Assim, a teoria da personalidade jurídica <lo Estado (e, consequentemente, a conside-
ração do «direito de soberania» como direito fundamental da pessoa juódica Estado) é a
teoria que melhor satisfaz a necessidade de uma construção jurídica do Estado; «graças a
ela, as questões políticas e administrativas adquiriram uma forma jurídica. Para conjurar o
arbítrio, para submeter ao direito o poder público, nenhum meio mais eficaz, mais directo e
seguro do que considerar o Estado como pessoa jurídica» (Construção Jurídica do Estado,
II, pág. 25).
Sobre a teoria da personalidade jurídica do Estado, para além de ROCHA SARAIVA
- que em Construção..., cit., pág. 16 e segs., inclui uma síntese crítica das posições de
opositores corno Orro MAYER, BERTHÉLEMY, HAURtOU ou DuCUIT -, cfr.• ainda entre nós,
JORGE MIRANDA, Manual de Direi/O Co11sti111cio11al, t. Ili, Coimbra. 1983, págs. 31 e segs.
- com indicações bibliogr:lficas sobre a controvérsia na doutrina portuguesa - . bem como,
entre muitos, FRANCO PIERANDREI, Dirilli S11hhiettil'i.... cit., pág. 43 e seg., GARRIDO FALLA,
Tratado de Derecho Ad111i11istrativo, vol. 1, págs. 287 e segs. e, numa perspectiva critica,
LEON Ducutr, Traité de Droit Crmstit11tio1111e/, l. 1, págs. 9 e segs. ou «La doctrine
allemande de l'auto-limitation <le l'État», i11 RDP, 1919, págs. 162 e segs.
''
'/ -
44 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

jecto de racionalização integral da sociedade e do Estado - era ne-


cessário que este fosse considerado como sujeito de direito, pessoa
jurídica capaz . de assumir direitos e deveres nos contactos que esta-
belece com os demais sujeitos de direito. Consequentemente, o Mo-
narca, que até então se identificava com o Estado, passa a ser apenas
um dos órgãos da pessoa jurídica-Estado, ao mesmo tempo que os
seus anteriores direitos senhoriais se convertem em faculdades orgâ-
nicas, definidas e limitadas pela Constituição. Neste sentido pôde
FORSTHOFF afirmar. com propriedade, que a teoria da personalidade
jurídica do Estado se revelaria como «o mais relevante ataque inte-
lectual contra a constituição monárquica do Estado»66ª.
Um Estado racionalizado é, assim, um Estado fundado e limitado
pelo Direito, numa acepção em que limitação do Estado não se dis-
tingue claramente de limitação do Monarca, com a subordinação do
Executivo ao Legislativo, e em que limitação pelo Direito se confunde
com império da lei emitida pelo Parlamento.
À justificação patrimonial ou religiosa do poder, traduzida no
governo da vontade discricionária do Príncipe, as Revoluções libe-
rais opunham agora o governo da Razão, a soberania da vontade
geral expressa no Parlamento através de normas gerais e abstractas, o
«government of law, not of men» 67 , ou seja, a racionalização do Es-
tado em função da garantia dos direitos fundamentais do homem68 •
Porém, o verdadeiro sentido deste projecto não era unívoco.
Pois, se o império da lei e a divisão de poderes eram geralmente
entendidos como subalternização dos órgãos executivos e judiciais
relativamente à supremacia do Parlamento, já a natureza do reconhe-
cimento dos direitos fundamentais dependia do alcance que se atri-
buísse à soberania da lei. Dirigir-se-ia a protecção dos direitos contra
o próprio legislativo ou, pelo contrário, Estado limitado pelo Direito
não seria mais que Administração limitada pela Lei?

66> E. FoRSTifOFF, El Eswdo de la Sociedad !11d11stria/, trad., Madrid, 1975, pág. 13.
67
Fónnula americana correspondente à proclamação constitucional francesa «il n'y a
point en Francc d'autorité supérieurc à cellc de la loi».
68
Como diz M1RKINE·GU1:TZÉV1TC11 (embora noutro contexto histórico, o que se suce-
de à 1.• Guerra Mundial), princípio do Estado de Direito ou racionalização do poder é uma e
a mesma coisa; o «Estado de Direito é não somente uma a111ropocracia. mas também, em
igual ou maior grau, uma raciocracia» (Les nouvelles re11da11ces d11 Droit Co11stit11tio1111el,
Paris, 1931, pág. 46).
As Origens do Estado de Direito 45

Da resposta a esta questão depende, em grande medida, a evolu-


ção posterior do conceito de Estado de Direito e, desde logo, a
natureza da sua contraposição ao Estado absoluto, já que, se viesse-
mos a concluir que o Estado de Direito se reduz ao princípio da
legalidade da Administração, então teríamos de reconhecer que,
como pretende fORSTliOFF, no termo desta evolução o Estado não teria
afinal perdido «o direito, conquistado na época absoluta, de dispor
dos bens e da liberdade»69•
As Revoluções liberais converteram o antigo problema da limi-
tação do Poder político em problema jurídico, mas controvertido no
programa revolucionário em ainda o verdadeiro alcance da limitação
juríuica.
Vimos como o processo de luta da burguesia contra o poder
absoluto do Monarca colocou na ordem do dia o problema da limita-
ção jurídica do poder; veremos posteriormente como os interesses da
mesma burguesia Uá em fase de estabilização) condicionarão a res-
posta a dar ao problema do sentido daquela limitação.

3. A elaboração originária do «Rcchtsstaat» e os conceitos afins

O Estado limitado juridicamente aparece, como vimos, indisso-


ciavelmente ligado à luta da burguesia contra o Estado de Polícia e à
sua tentativa de racional ização integral da vida da sociedade e do
Estado. Antes mesmo da sua teorização como tal, o Estado de Direito
surge moldado praticamente pelo liberalismo «vivido» na Inglaterra
a partir do século XVII] e, sobretudo, pelas instituições saídas das
Revoluções liberais vitoriosas em França e na América. Assim, po-
der-se-ia dizer que, mais do que conceito filosófico, o Estado de
Direito surge como um indirizzo político ou um conceito de luta
política característico dos movimentos e das ideias prevalecentes no
século XIX 70•

m ERNST FoRSJltOfF, Traité de Droit Admi11istf'(ltijAllema,uf. trad., Bruxclles, 1969, pág. 81.
'º Cfr., FELICE BATIAGLIA, «Ancora sullo Stato tli Diritto», i11 RIFD, 1948, pág. 169 e
scg. ou GoMES CANOT1u10, Direito Co11sti111cio11a/, pág. 273: «mais do que um conceito
jurídico, o Estado de Direito cr:i um conceito político e, além disso, um conceito de luta
política (polirischcs Kamplbcgrifl)».
rr
f 46 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
l
'~
Neste sentido, não poderá ser pacífica a frequente pretensão em
~ considerar o Estado de Direito como fórmula e ideia especificamente
l1 alemãs. Se autores germânicos como Lorenz voN STEIN ou, mais recen-
il
[ temente, BôCKENFÕRDE e STERN defendem essa posição71 , já Orro
! MAYER a contradiz frontalmente, antes localizando os principais
1
contibutos para o desenvolvimento do conceito no processo francês
il
' e nas suas vicissitudes72 •
Se bem que reconhecendo a contribuição decisiva da publicís-
tica alemã, não nos parece que se possa, de facto, considerar o
Estado de Direito como uma «ideia alemã» ou mesmo como tendo
«um certo sentido especificamente alemão» 73 . Desde logo porque
- como procuraremos salientar - não nos parece que haja uma concep-
ção alemã do «Rechtsstaat», mas antes várias e por vezes contraditó-
rias propostas feitas por Autores alemães; como veremos, são bem
distantes - apesar da proximidade de tempo e lugar - as teorias do
«Rechtsstaat» de um MoHL, um STAHL ou um STEIN. Além de que, e
sobretudo, encontramos os mesmos traços essenciais que se desta-
cam na doutrina do «Rechtsstaat» originário - a racionalização do
Estado com vista à protecção dos direitos e realização do indivíduo -
nas ideias que, sob fórmulas diferentes, se generalizam na Europa e
América do século XIX.
Com efeito, exprimindo o mesmo projecto de fundo, encontramos
expressões como o Estado constitucional na França e nos Estados
Unidos, a rufe of law britânica, o representative government anglo-

71
Cfr., STl:lN, Die Venva/11111gsrech1. Stuttgart, 1869 (referenciado por GNfüST, li>
Stc110 secando il Diri110, trad., Torino, 1891, pág. 1145, nota); BôCKl:NFÕRDE, «Entstchung
und Wandel des Rechtsstaatbegriffs>,, i11 Stam. Gesellschaft, Freiheit - Studien zur
Staatstheorie um/ zum Ve,fassu11gsrech1, Frankfurt am Main 1976; STERN, Das Staatsrecht
der Bundesrepuhlik Deutscl1/a11d, 1977 (referenciados por LUCAS VERDú, «Estado de
Derecho y Justicia Constitucional», i11 REP, n.º 33, 1983, pág. 9).
72
«Nada mais errado que as tentaLivas feita~ para reivindicar como uma particularidade
alemã a ideia de Rec/11.waar, do Estado sob o regime do direito. Em todos os seus elemen-
tos essenciais essa ideia é comum a nós e a todas as nações irmãs que passaram pelos
mesmos desenvolvimentos sucessivos, sobretudo a nação francesa, à qual, apesar de tudo. o
destino nos ligou pela comunidade de espírito» (Ono MAYER, Le Droit Admi11istratif
Allemand, 1. pág. 81 ).
73
HENRJCH E. HORSTER, «O imposto... », cit., págs. 56 e seg.; segundo este autor
sobressairiam nesta ideia especificamente alemli do Estado de Direito «os componentes não
políticos, individualistas e alheios ao Estado, ou seja, as garantia~ de liberdade e pmpried<Uii• ....
As Origens do Estado de Direito 47

-saxónico, o government under law americano, a primauté du droit


ou régne de la foi franceses.
Naturalmente, uma tão grande diversidade de fórmulas incluirá
diferentes perspectivas de enfoque <lo problema e cada uma delas
salientará este ou aquele aspecto particular dentro das características
que, no seu conjunto, constituem a ideia de Estado de Direito. Po-
rém, dada a dificuldade em determinar, com rigor, as diferenças entre
os vários conceitos e perante a reconhecida pluralidade de sentidos
que cada um deles tem assumido, não nos parece abusiva a generali-
zação da fórmula Estado de Direito, nem a utilização, por vezes indis-
criminada. das diferentes expressões7~, desde que reportadas à mesma
ideia tle fundo: a racionalização do Estado operada mediante uma
limitação jurídica dirigida à eliminação do arbítrio e à protecção de
uma esfera indisponível de autonomia individual.

3.1. A introdução do conceito de «Rechtsstaat» 11a Alemanha


do século XIX

O conceito de <<Rechtsstaat» é introduzido na discussão política


por ·ROBERT voN MoHL em Staatsrecht des Konigsreichs Wiirttemberg
(Giessen, 1829), ainda que a expressão tivesse sido já anteriormente
utilizada por outros Autores75 mas é sobretudo na obra Die Po/izeiwissen-
schaft nach den Grundsiitzen des Rechtsstacrtes ( 1832-1833) que VON
MOHL desenvolve largamente o sentido do conceito a cuja história
fica de tal forma ligado que B ISMARCK se referiria posteriormente ao

"Como exemplo desta utilização, mas sem perda de inteligibilidade, cfr. os textos da
Comissão Internacional de Juristas, aplicando indiferentemente à mesma realidade fóm1ulas
como «rule of law», princípio da legalidade» ou «Estado de Direito»; assim, entre mui1os,
le príncipe de /a légulité da11s 1111s sucieté libre, Nouvelle Delhi, 1959.
n ADAM M uu.ER, Die Ele111e11te der S1aa1kww (1809), <! referido como o primeiro a
utilizar a expressão, ainda que num scntiuo muito vago, tendo-se seguido CARL Tu.
WEI..CKER, Die /etzte11 Griilule 111111 Recht. St1u1t 1111d Strafe (Giessen, 1813) e J. C. FRF.111ERR
voN ARETIN. Staatsrec/11 der K111wit11tio11el/,•11 Mo11arcl1ie, (i\llcnburg. 1824) - cfr., PADLO
LUCAS VERoú, «Estado de Derccho y Jus1icia Constitucional», pág. 10 e, ~obretudo, JoAQUIN
ABEI.LAN. «Liberalismo aleman dei siglo XIX: RonERT voN Mo11L», i11 REI', n.º 33, 1984,
págs. 123 e segs., que seguimos de perto cm wua esta parte ua cxposiç:10. SousA E 81U1 u,
«A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Co11stit11ição, 2.º vol., Li sboa, 1978, pág.
225. cita referências que localizam a primeir.i utilização em J. W. PLAaous ( 1789).
48 Co111rib1110 para uma Teoria do Estado de Direito

Estado de Direito como um termo técnico, «uma expressão artificiosa


do senhor voN Mom.» 76.
Este «avanço» alemão na construção teórica pode ser visto
como um processo - já salientado por MARX num outro plano, no da
filosofia e da sua realização77 - segundo o qual a burguesia compen-
sava no domínio teórico a sua incapacidade de realizar politicamente
o seu poder na forma de governo parlamentar78 •
De facto, a consagração teórica originária do conceito de Estado
de Direito ( «Rcchtsstaat») faz-se numa Alemanha onde ao longo de
todo o século XIX a burguesia não conseguira impor as soluções
libcraisn. Ora, este contexto impróprio - marcado pela debilidade e
falta de homogeneidade da burguesia, o atraso económico e a predo-
minância da estrutura agrária e feudaJ 80 - condicionaria a evolução da
teoria germânica do «Rechtsstaat», na medida em que a impossibili-
dade de moldar constitucionalmente o Estado cm função da garantia
dos direitos fundamentai s estimu lava a perspcctivação do conceito
em torno da sua dimensão técnico-formal (princípio da legalidade da
Admin istração e justiça administrativa) ou mesmo a sua redução
fonnalista a Estado de legalidade compatível com formas de governo
autoritárias (cf. i11fra, IV).
Forçada a aceitar o Obrigkeitstaat, a burguesia dirigiria os seus
esforços, não para a conquista do Estado, mas para a eliminação das
1
• Citado por CARL SCHMITT, Disputation iiber de11 Rechtsstaat, 1935 («ein
Kunstausdruck des Herrn von Mohl»), segundo a referência de LECAZ y LACAMBRA, «EI
Es1ado de Dcrecho», cit.. pág. 66.
77
Cfr., KARL MARX, Cri1ica de la Filosofia dei Estado de Hegel, trad., Buenos Aires,
1946, bem como a introdução a esta edição de S. LANDSHlIT e J. P. MAYER, maxime, págs.
12 e segs..
'" Cfr., CARi.O AMIKANTE, «Prcscntazione» a Srato di Dirirro in Transformazione, cil.,
de E. FoRSTHOFF, págs. XXI e XXII; em sentido análogo, B. BARRET-KR1ECEL, «De l 'anti-
·éta1ismc à l'anti-juridisme», i11 Ésprit, 1980, n.º 39, págs. 38 e segs.; T HEODOR ScHEIOER,
.-S1a1o di Diriuo e S1a1o Socialc», i11 Crisi dei/o Swto e Storiograjia Co11fl'mpora11ea de R.
Rur..n.1 (org.), Bolonha, 1979, págs. 110 e scg..
79
Como assinala E1rn11ARDT SOARES, (Direito Público ..., cil., p:íg. 51 }, enquanto nas
constituiçõt!s revolucionárias e na organização política inglesa «se pode ver um Estado que
exprime global mente a sociedade burguesa, j:í nas constituições dos estados alemães até ao
nosso século[ ...] vai 111an1cr-sc parcialmcn1c o modelo de Estado absoluto, com o monarca e
o governo defensores de um núcleo de interesses tradicionais e o parlamento prosseguindo
os interesses da sociedade, ou seja, da burguesia».
111
Cfr., KARL MARX, Re1·oluçtio e Comra-Revoluç<io, trad., Lisboa, 1971, págs. 20 e segs..

.
.
''..
..
•1
_J
As Origens do Estado de Direito 49

arbitrariedades e a vinculação do governo às normas de direito racio-


nal. Num processo inverso ao que se tinha verificado em França, a
passagem do Estado de Polícia ao Estado de Direito faz-se aqui de
uma forma gradual, sendo a protecção dos direitos subjectivos alcan-
çada através da progressiva restrição do domínio do antigo
Regier1111gsgewalt (poder ele governo)8i, enquanto através das insti-
tuições cio «Rechtsstaat» se procurava emancipar a burocracia do
comando individual do Monarca, elemento este fundamental na
constmção da imagem de um Estado forte, neutral, acima das classes,
capaz de conduzir, «a partir de cima», uma revolução burguesa sem
direcção ela burguesia82• A concepção originária do «Rechtsstaat»
não deixaria, assim, de ser marcada por esta sua específica relação de
convivência com o lastro do Estado ele Polícia.
Por último, cabe referir que, ao contrário da doutrina que vê no
Estado de Direito uma oposição irredutível a qualquer consagração
constitucional de uma intervenção assistencial do Estado, toda a teo-
ria desenvolvida por ROBERT VON Mo1-1L vai no sentido de harmonizar
o «Rechtsstaab> com uma actividade de polícia83.
Em MOHL, tal como nos Autores que introduziram a expressão
«Rechtsstaat» na específica situação da Alemanha, os fins do Estado
de Direito identificavam-se com a racionalização do Estado. Ora, na
medida em que a razüo deste Estado se orienta para o pleno e harmó-
nico desenvolvimento de todas as capacidades do homem, a activi-

~, Cfr., E11RHARDT SoARr,s, /111eresse Público.... cir., pág. 64.


"' Sobre a especificidade da tardia revolução burguesa na Alemanha e a relativa
autonomia do Estado bismarckiano cfr. N1cos Pou1.ANT2AS. Poder Político e Classes Sociais,
cit., I, págs. 216 e segs. e Fasci111e et Dicu1111re, Paris, 2.ª ed., 1974, págs. 24 e segs ..
Porém, FoRsrnor-r- (Traité de Droit.... cit., pág. 82) contesta o sucesso des1a tentativa
de auionomização da burocracia relativamente ao monarca por virtude da sua nova submissão
à lei; no seu en1cndcr, o poder discricionário, a necessidade das ins1ruçõcs administrativas,
as ligações orgânicas Príncipe-Administração, fozil m com que os laços entre eles sc manti·
vessem tal como linham sido estabelecidos no princípio do século e daí a acrescida impor-
tância, na Alemanha do século XIX, da ausência de responsabilidade dos ministros peran1e
o Parlamento.
11.1 «Quem desejaria e poderia viver num Estado que só administrasse justiça e ne-
nhuma ,tiuda de polícia? 1...J. O Esiado 1e111 que providenciar (sorgcn) tanto polícia como direito»
(ROBERT VON MOHL, Die Poli~eiwi.m:nscluift 1urc/1 de11 Gr11111/siitze11 des Rec/11sswa1es, 3.'
ed., 1866, citado por JoAQUIN Allfil,\N, 0/J. ât.. pág. 129 e FH,\NÇESCO Dll SANCTIS, «ROBERT
VON MoHL: una critica Jiberale all'individunlismo», i11 RIFD, 1976, l. n.º 30).
-
50 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

dade de polícia surge como uma sua componente imprescindível. No


quadro da razão e do direito, «o homem só pode ter como único fim
da sua existência terrena a formação o mais completa e harmónica
possível de todas as suas potencialidades e forças. [...] o Estado de
Direito só pode ter este fi m: ordenar de tal maneira a vida colectiva
que cada um dos seus membros seja apoiado e estimulado no máximo
grau no exercício e aproveitamento de todas as suas forças, livre e
integralmente»ij·1•
Neste sentido, enquanto conformação racional fun dada nos di-
reitos do indivíduo e dirigida para o seu pleno desenvolvimento, o
«Rechtsstaat» originário escapava ainda ao processo de formalização
que viria a marcar o posterior desenvolvimento do conceito85• Por
outro lado, ex igi ndo uma ampla actividade de apoio e fomento com
vista à salvaguanla daqueles objecti vos (actividade que, de resto, a
partir de 1815 se ligava à necessidade de uma actuação administrativa
premente orientada para a superação das consequências da guerra e
da depressão económica que se lhe seguiu), a concepção originária
do «Rechtsstaat» ilegíti ma. à partida, as posteriores tentativas de invo-
car para o Estado de Direito uma qualquer incompatibilidade histórica
ou natural com a actividacle assistencial do Estado e as exigências de
socialidade86 •

84 ROBERT VON MoHL, op. cit., (apud loAQUIN ABELLAN, op. cit., pág. 128). Portanto,
para MOHL, esta actividade de polícia não era contraditória com a concepção liberal do
carácter negativo da intervenção do Estado (cfr. infra IIl.1 .3.), na medida em que se subor-
dinava e dirigia exclusivamente ao objectivo de garantir a liberdade individual: «A liberdade
do cidadão é, para esta concepção de vida, o princípio mais elevado[ ...] daí que a função do
Estado deva ser de car:ícter meramente negativo e consistir unicamente na e~iminação dos
impedimentos que, por si só, a força do indivíduo seria incapaz de superar, [...) o Estado
tem apenas a tarefa de proteger e tomar possível a liberdade do cidadão» (voN MoHL, op.
cit., segundo FR,\NCO P1ERANDREJ, / Diritti Subbiettivi Pubblici. pág. 36).
No mesmo sentido, para DE SANCT1s (toe. cit., pág. 35), em VON MOHL, Estatlo tle
Direito e o antigo Estado de bem-eswr não eram consequentemente considerados em ter-
mos de exclusão/oposição, antes se distinguindo porque o Rechtsstaat encontrava a sua
razão úllima na su1isfação dos fins de vida do indivíduo, mais que no hipotético e abstracto
bem-estar da totalidade do povo. Defendendo est:1 intt:rprctação da obra de voN MoHL e
rejei tando «a falsa oposição entre Pofb,istaat e Rechrsstaat, cfr., ainda, LÉON CoRTINAZ
PD.ÁEZ, ,,Estado Dcmocratico y Adminislracion Prcstacional», cit., pág. 89 e seg..
s.s Cfr.. HERMANNH EU .ER, Recht.waat oder Diktatur?, Tübingen, 1930, pág. 8 e seg..
116
O próprio FoR~111orr, expoente doutrinátio destas tentati vas, não dei xará de corro-
borar que «os mais significativos teóricos do Estado do meio do século passado, como voN

--
As Origens do Estado de Direito 51

3.2. As garantias político-constitucio11ais e a especificidade


do «État Constitutionuel»

Com a reserva já assinalada quanto à diversidade e subjectivi-


dade de sentidos que cada um destes conceitos encerra, será em todo
o caso possível descortinar entre a expressão francesa «État constitu-
tionnel» e o «Rechtsstaat» germânico uma diferença de perspectivas,
reconduzível a uma diferente sensibilidade na valoração dos meca-
nismos de garantia das esferas de autonomia individual e, em certa
medida, da própria natureza dessa autonomia.
Assim, enquanto a especificidade da teoria do «Rechtsstaat»
consistiria em ter intuíd o a importância das regras «jurídicas» no
processo de li mitação do Estado - e daí a insistência no princípio da
legalidade e na justiça administrativa -, já no caso do Estado consti-
t11cio11al de matriz francesa a tónica seria, antes do mais, colocada
nos mecanismos «políticos», como o controlo parlamentar e as garan-
tias constitucionais 87 •
As concepções da superioridade formal da Constituição e da sua
rigidez, próprias do Estado constitucional, estão, por sua vez, estreita-
mente vinculadas à ideia da existência de limites supra-estaduais.
Através das «Declarações de Direitos>> ou mediante consagração
constitucional directa88 , os direitos e liberdades individuais recebem
aqui (especialmente na França e nos Estados Unidos) uma protecção
reforçada, na medida em que a Constituição, mais que limite dirigido
ao poder executivo ou judicial - como era o caso nas concepções
restritivas do primado da lei -, se impõe globalmente a todas as
funções do Estado.
A vontade geral (expressa no Parlamento) encontra-se, também
ela, vinculada ao respeito dos direitos inatos e naturais, verdadeiros

MOliL, STEIN e GNEIST [... ] não viram contradição alguma em aprovar a intervenção colabo-
radora do Estado nos processos sociais sem renunciar à separação Estado-sociedade» (E/
Estado de la Sociedad /11d11strial, trad., Madrid, 1975, p:íg. 30).
s7 Cfr., salientando estas tlifcrcnças, ÔRLANDO (Primo Trartato Completo di Diritto
Amministrativo Italiano, Milano, 1897, págs. 34 e segs.), que, considerando as garantias
político-constitucionais «insuficúcntcs para satisfazer os desiderato do Estado jurídico»,
destaca como méri to científico da teoria do «Rechtsstaat» a resolução do problema das
garantias individuais «exclusivamente no campo do direito» (op. cit., pág. 37).
38 Sobre a relação entre «Declarações de Direitos» e Constituição cfr., entre nós,
MARCELO REBELO OE SOUSA, Direito Co11stitttcio11al, págs. 156 e scg:s..

L
52 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

limites pré e meta-estaduais que as «Declarações» não constituem,


mas tão só reconhecems9 • Era este tipo de limitação do Estado que
BENJAMIN CoNSTANT, já em 18 15, propunha como caracterizador do seu
«État constitutionnel»: «a soberania só existe de forma limitada e
relativa. Onde começa a independência da existência individual de-
tém-se a jurisdição dessa soberania»90 .
Deste ponto de vista, o Estado co11stit11cio11al ia mais além que o
«Rechtsstnat)) e parecia, naquela assunção de limites supra-positivos,
precaver-se contra a redução formalista que afectaria este. Mas, num
outro plano, ficava aquém, pois, desvalorizando relativamente as formas
jurídicas9 ', não retirava, com prejuízo da protecção dos direitos indi-
viduais, todas as consequências potencialmente decorrentes da ideia
de limitação jurídica do Estado92•

'"«Os representantes do povo francês t... J resolveram cxpór cm declaração solene os


direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem [... l» (do Preãmbulo da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidaclcin de 1789).
Cfr.• com mais desenvolvimento, infra, 111.2. 1..
~ CONSTANT. Príncipes de Politique. Paris, 1815. pág. 17.
9' O que não invalida que também o mesmo Co:-.STANT desde logo antecipasse a

posterior divini::.açtio elas fo rmas que caracterizaria a evolução do «Rechtsstaat»: <<O que
preserva do arbitrário é a observância das fonnas. As fo,mas são as divindades tutelares das
associações humanas: [...] é só às fonnas que o oprimido pode recorrer» (Príncipes de
Politiq11e, pág. 292).
92 Assim distinguia Orro M AYER (Droit Administratif Al/ema11d, 1, págs. 73 e segs.)

os dois conceitos, na medida em que o «Rcchtsstaat» seria «algo mais que um Estado
constitucional»; não se resumindo ao simples estabelecimento de uma Constituição, o
«Rechtsstaat» exigiria toda uma submissão da actividadc da Administração ao direito; ele
seria. quando muito. um «État consti tutionnel achevé» (op. cit., pág. 76).
Entre nós, enquanto JoRGE MIRANDA identifica no essencial as duas expressões (cfr.
Ma1111al de Direi/o Co11s1i111cio11al, t. r. pág. 76 e seg.), também MARCCLO REBELO DE SouSA
parece atribuir à expressão Estado de Direito um âmbito mais vasto, pois, além de recolher
as notas que individualizam o Es111do constit11cional, imcgrnria outras características, como
sejam, a naturc7.a jurídica praticamente exclusiva das funções do Estado. o império da lei, a
tutela da legalidade por pane de tribunais independentes e o princípio da legalidade da
Administrnção (cfr., Os Pa11ido.1· Políticos 110 Direito Co11stit11cio11a/ Por111g11ês, Braga,
1983, págs. 19 e segs.).
Seria igualmente com base nestns diferenças. e particularmente perante as resistências
em consagrar o controlo jurisdicional da Administração. que ÜNEIST, mais radicalmente,
caracterizaria o Estado francês como «negação do Rcchtsstaat» (cfr., Lo Stato ..., cit. , págs.
1230 e segs. ).
As Origens do Estado de Direito 53

3.3. O caso particular da Inglaterra e a «rule of law»

Não é pacífica a questão de saber se a Magna Carta do século


XIII era já algo de substancialmente distinto das cartas de franquia
correntes no medievo europeu93; mas, parece-nos poder concluir-se
que, apesar de na sua natureza originária se tratar · de um acordo
- típico na época - entre Príncipe e senhores feudais, onde a troco do
reconhecimento da supremacia real se concediam privilégios aos
estamentos e interesses locais, a Magna Carta veio a revelar um
diferente alcance. De facto, como refere GOMES CANOT!LHO, embora
consagrasse fundamenta lmente direitos estamentais, a Magna Carta
«fornecia já aberturas para a transformação dos direitos corporativos
em direitos do homem», o que viria a ser confirmado através de um
processo de generalização e individualização daqueles direitos94.
Mas é sobretudo o século XVII, com as convulsões sociais e
políticas que o atravessaram, que consagra na Inglaterra o reconheci-
mento dos direitos do homem, não já como privilégios outorgados
ou pactuados, mas como liberdades naturais oponíveis ao Poder,
incluindo ao Parlamento por cuja soberania entretanto se lutava. A
«G lorious Revolution» fazia-se não só em nome da limitação do
poder real a favor do Parlamento, mas também a favor das liberdades
individuais progressivamente consideradas como invioláveis mesmo
relativamente ao próprio legislador. O «homem livre», cujos direitos
a Magna Carta reconhecia, deixa então de ser identificado com o
proprietário da terra, pois os direitos não são já o mero resultado de
um equilíbrio imposto ao Monarca pelos estamentos socialmente
mais poderosos, mas antes concebidos como verdadeira exigência da
natureza humana 95 .
Esta evolução - traduzida implicitamente nos vários documentos
constitucionais do século XVII na Inglaterra - é tanto mais significa-
tiva quanto na Europa Continental se atingia, na altura, o apogeu do
poder absoluto e ilimitado do Monarca. Por outro lado, estas con-
cepções, longe de se limitarem ao plano da teoria política e da espe-
culação filosófica - e é deste plano que releva a teoria da divisão de

93
Cfr., CARL ScHMITf, Teoria ... , cit., pág. 67 e scg..
94
GOMES CANOTJLHO, Direito Co11stit11cio11al, pág. 424 e seg..
9s Cfr., R. ZrPPELIUS, Teoria ..., cit., págs. 162 e segs..
54 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

poderes de LocKE, bem como a sua concepção dos direitos inaliená-


veis da pessoa em oposição à doutrina da soberania sustentada por
BomN -, são essencialmente o resultado de um liberalismo vivido e
não de um pensamento desenvolvido à margem ou em contraponto à
realidade política vigente, como sucederia durante muito tempo com
o pensamento revolucionário no Continente.
Pode, assim, dizer-se que, sobretudo a partir do século XVIl, a
Inglaterra evidencia uma vivência efectiva de limitação do poder
dirigida ao reconhecimento dos direitos e liberdades individuais, an-
tecipando na prática - mais aprofundada e significativamente que
quaisquer outras experiências - os ideais do Estado de Direito. A
«ru le of law» constituirá, no fundo, a expressão conceptual desta
experiência de limitação do poder e reconhecimento dos direitos
fundamentais cuja íntima conexão com a ideia de Direito já JOHN PvM,
em 1641, sintetizara na máxima: «a lei é a fronteira entre as prerroga-
tivas do rei e as liberdades do povo»96•
Diferen temente do enquadramento que assinalámos ao desen-
volvimento da ideia de Estado de Direito no Continente Europeu
- projecto de racionalização do Estado em ruptura com o ancien
régime - , a «rule of law» constitui-se segundo o modelo da continui-
dade histórica que marca o desenvolvimento das instituições consti-
tucionais britânicas. Com efeito, a doutrina e a experiência do «império
das leis>> remontam, na Grã-Bretanha, à ideia medieval do «reign of
law», vão-se sedimentando ao longo dos anos e recebem definitiva
consagração nos sucessos do século XVII, quando se confirma a
subordinação do Rei e dos seus ministros ao common Law e à
souvereignity of Parliament97 , sendo então a «rule of law» entendida,
não já como supremacia da lei de Deus ou da Igreja, mas do direito
consuetudinário e do Parlamento.
É com base nesta evolução secular que DICEY 98 propõe uma
síntese da «rule of law>> nos seguintes três elementos, «distintos ainda
que próximos»:

<li, /hid., pág. 163.


97
Cfr., MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 1o.• edição,
1980, págs. 19 e scgs..
98
Na sua obra Introduction to the Study of rhe /aw of the Constitwion, 1885, (utilizá-
mos a edição francesa, Paris, 1902), D1cEY propõe-se expôr sistematizadamente a sua

-
-
As Origens do Estado de Direito 55

1 . supremacia absoluta ou predominante da lei elaborada se-


gundo o processo ordinário, em contraposição à influência
do poder arbitrário, da prerrogativa ou do poder discricioná-
rio do governo;
2. igualdade perante a lei ou sujeição igual de todas as classes
à lei ordinária; neste sentido se prescrevia a obediência de
qualquer funcionário - do cobrador de taxas ao primeiro-
-ministro - à lei ordinária e se proibia qualquer evasão à
jurisdição dos tribunais ordinários;
3. as regras constitucionais britânicas não são a fonte mas a
consequência dos direitos dos particulares definidos e defen-
didos pelos tribunais; ou seja, a posição da Coroa e dos seus
funcionários determina-se, não por uma lei constitucional
prévia, mas pela extensão dos princípios de direito privado
levada a cabo pelos tribunais e pelo Parlamento99•
Esta visão da «rule of law» viria, porém, a ser largamente con-
testada pelos críticos de D1cev 1()(1, não só por não se ajustar à situação
da Inglaterra no século XX, como por tão pouco corresponder ao
período em que fo i formulada . A ilustrar esta crítica referem-se as
imunidades e privilégios de que gozam certas entidades, a série de
tribunais especiais existentes na Inglaterra da época de D1cEY, a
indissolubilidade da relação direito ordinário/Constituição ou a falta
de limites rigorosos ou de fundo aos poderes administrativos 101 • Mas,
a visão da «rule of law» de D1cEY estaria, sobretudo, inquinada de

interpretação - discutível, como veremos - do legado britânico da «rule of law», numa


tentativa para superar a ambiguidade que, no seu entender, acompanhava a utilização dos
tennos reino, supremacia ou predomi11t/11cia da lei referidos à Constituição britânica (op. cit.,
pág. 167).
99
D1cEv, op. cit., pág. 180 e segs ..
mi Para uma visão geral das concepções de D1cEv, bem como das principais objecções
dos seus críticos, cfr., por todos, GARRIDO FALA Trarado.... cit., vol. 1, págs. 80 e segs. ou
ÜARCJA-PELAYO, Deri:cho Co11stit1.1cio11al Comparado, Madrid, 7.ª cd., 1964, págs. 278 e segs..
101 «Se a «rulc of law» significa unicamente que os poderes devem derivar do Direito,

todos os Estados civíli1.ados a admitem. Se significa princípios gerais do governo democrá-


tico é desnecessário autonomizá-la. Se significa que o Estado tem como única função
conduzir as relações externas e manter a ordem, não é verdade. Se significa que o Estado só
deve exercer essas funções, traia-se apenas de uma regra política dos ll'higs» (JENNINGS, The
Law and the Constitution, London, 3.ª ed., 1945, pág. 291).
54 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

poderes de LocKE, bem como a sua concepção dos direitos inaliená-


veis da pessoa em oposição à doutrina da soberania sustentada por
BootN -, são essencialmente o resultado de um liberalismo vivido e
não de um pensamento desenvolvido à margem ou em contraponto à
realidade política vigente, como sucederia durante muito tempo com
o pensamento revolucionário no Continente.
Pode, assim, dizer-se que, sobretudo a partir do século XVII, a
Inglaterra evidencia uma vivência efectiva de limitação do poder
dirigida ao reconhecimento dos direitos e liberdades individuais, an-
tecipando na prática - mais aprofundada e s ignificativamente que
quaisquer outras experiências - os ideais do Estado de Direito. A
«rule of law» constituirá, no fundo, a expressão conceptual desta
experiência de limitação do poder e reconhecimento dos direitos
fu ndamentais cuja íntima conexão com a ideia de Direito j á JOHN PYM,
em 1641, sintetizara na máxima: «a lei é a fronteira entre as prerroga-
tivas do rei e as liberdades do povo»96 •
Diferentemen te do enquadramento que assinalámos ao desen-
volvimento da ideia de Estado ele Di reito no Continente Europeu
- projecto de racionalização do Estado em ruptura com o ancien
régime -, a «rule of law» constitui-se segundo o modelo da continui-
dade histórica que marca o desenvolvimento das instituições consti-
tucionais britânicas. Com efeito, a doutrina e a experiência do «império
das leis» remontam, na Grã-Bretanha, à ideia medieval do «reign of
law», vão-se sedimentando ao longo dos anos e recebem definitiva
consagração nos sucessos do século XVII, quando se confirma a
subordinação do Rei e dos seus ministros ao common law e à
souvereignity of Parliament97, sendo então a «rule of Iaw» entendida,
não já como supremacia da lei de Deus ou da Igreja. mas do direito
consuetudinário e do Parlamento.
É com base nesta evolução secular que D tcev 98 propõe uma
síntese da «rule of Jaw» nos seguintes três elementos, «distintos ainda
que próximos»:

96 lbid., pág. 163.


97 Cfr., MARCELLO CAETANO, Mam,al de Direi10 Ad111i11istm1ivo, Coimbra, 1O.ª edição,
J980, págs. 19 e segs..
Na sua obra Introductio1110 lhe S111dy of lhe law of 1he Co11sti1wio11, 1885, (utilizá·
98

mos a edição francesa, Paris, 1902), D 1cEY propõe-se expôr sistematizadamente a sua
As Origens do Estado de Direito 55

1. supremacia ,absoluta ou predominante da lei elaborada se-


gundo o processo ordinário, em contraposição à influência
do poder arbitrário, da prerrogativa ou do poder discricioná-
rio do governo;
2 . igualdade perante a lei ou sujeição igual de todas as classes
à lei ordinária; neste sentido se prescrevia a obediência de
qualquer funcionário - do cobrador de taxas ao primeiro-
-ministro - à lei ordinária e se proibia qualquer evasão à
jurisdição dos tribunais ordinários;
3. as regras constitucionais britânicas não são a fonte mas a
consequência dos direitos dos particulares definidos e defen-
didos pelos tribunais; ou seja, a posição da Coroa e dos seus
funcionários determina-se, não por uma lei constitucional
prévia, mas pela extensão dos princípios de direito privado
levada a cabo pelos tribunais e pelo Parlamento99•
Esta visão da «rule of law» viria, porém, a ser largamente con-
testada pelos críticos de D ICEYJOº, não só por não se ajustar à situação
da Inglaterra no século XX, como por tão pouco corresponder ao
período em que foi formulada. A ilustrar esta crítica referem-se as
imunidades e privilégios de que gozam certas entidades, a série de
tribunais especiais existentes na Inglaterra da época de D1cEY, a
indissolubilidade da relação direito ordinârio/Constituição ou a falta
de limites rigorosos ou de fundo aos poderes administrativos 101 • Mas,
a visão da «rule of law» de D1cEY estaria, sobretudo, inquinada de

interpretação - discutível, como veremos - do legado britânico da «rufe of law», numa


tentativa para superar a ambiguidade que, no seu entender, acompanhava a utilização dos
termos reino, suprenwcia ou predominância da lei referidos à Constituição britânica (op. cit.,
pág. 167).
w D1cEY, op. cit., pág. 180 e segs..
iro Para uma visão geral das concepções de D1cEY, bem como das principais objecções
dos seus críticos, cfr., por todos, GARRIDO FALA Trarado..., cit., vol. I, págs. 80 e segs. ou
GARCIA-PEl.AYO, Derecho Co11srit11cio11al Comparado, Madrid, 7.ª ed., 1964, págs. 278 e segs..
101 «Se a «rufe of faw» significa unicamente que os poderes devem derivar do Direito,

todos os Estados civilizados a admitem. Se significa princípios gerais do governo democrá-


tico é desnecessário autonomizá-la. Se significa que o Estado tem como única função
conduzir as relações externas e manter a ordem, não é verdade. Se significa que o Estado s6
deve exercer essas funções, trata-se apenas de uma regra política dos whigs» (JENNtNGS, The
Law and the Constitution, London, 3.ª ed., 1945, pág. 29 1).
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J
56 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

falta de operatividade, dada ·a sua não correspondência com a situa-


ção actual, manifesta no aumento significativo das atribuições dele-

1 •
gadas ao executivo no quadro global do reforço da intervenção da
Administração e da Planificação, exigindo inevitavelmente uma
reavaliação do princípio 1º2•
Em todo o caso, o desajustamento da visão tradicional da «rule
of law» perante as real idades criadas com a nova intervenção do
Estado britânico no pós-guerra não nos parece assinalar algo de signi-
ficativamente distinto da reavaliação que o século XX provocou na
concepção liberal do Estado de Direito. Pelo contrário, os problemas
gerais , que afectam o desenvolvimento da «rule of law» e do «Estado
de Direito» são essencialmente idênticos, na exacta medida em que
ao aparecimento dos dois conceitos presidiu uma intenção inicial
comum: a ideia de limitru· juridicamente o Estado com vista à protecção
dos direitos individuais.
Assim, e independentemente da originalidade ou natureza especí-
fica das técnicas colocadas ao serviço deste objectivo - naturalmente
condicionadas e influenciadas por diferentes contextos histórico-cul-
turais -, é aquela identidade que nos parece o mais importante dado a
reter na análise comparativa dos dois conceitos.
Já se procurou ver na «rule of law» unicamente a componente
ou concepção administrativista do Estado de Direito, o que significa
identificá-la tão só com o princípio da legalidade 1º3; inversamente se
tem caracterizado a «rule of law» britânica como o «verdadeiro»
Estado de Direito, pois só aí - e na medida em que o Estado era
limitado por um direito não-estadual, o common law - o Estado
encontraria no Direito um limite de que não dispunha1(}1.

101
Cfr., MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, t. 1, pág. 22 e seg.;
de resto, o próprio D1cEYreconhecia este desfasamento quando, na reedição da sua obra em
1915, escrevia: «a antiga veneração pela ru/e of /aw na Inglatem1 sofreu nos últimos trinta
anos um marcado declínio>, (apud Roscrn; PouNo, «The Rufe of Law» in Encyclopaedia of
the Social Sciences, London, 1934, XIII, pág. 465).
101
Cfr.• PASSERJN o'ENTREVES, «Lcgalità e Legitimità» in St11di i 11 onore di Emilio
Crosa, H, Milano, 1960, pág. 1309 e seg..
r<J.1 Cfr., GusTAV RADBRuc11, w Spirito dei Diritto Inglese, trad., Milano, 1962, pág. 24:
«A Inglaterra é, de forma particular e exemplar, um Estado de Direito. Aí se realizou. mais
que em qualquer outro país, a autonomia do direito à margem e acima do Estado, a subordi·
nação ao direito mesmo do poder estadual, a «rufe of law»»; RADBRUC!l salienta, depois,
As Origens do Estado de Direito 57

Porém, se este último aspecto é, de facto, obstáculo a uma evo-


lução fom1alista da «rule of law» - com a consequente redução do
«Estado de Direito» ao «Estado de Legalidade» (cfr. infra, IV) - não
pode a possibilidade dessa evolução ser excluída à partida. Pois,
como contraponto ao reforço da limitação do Estado implicado na
predominância de um direito extra-estadual, não pode deixar de ser
considerada na «rule of law» britânica a sua indissociável ligação
com a ideia de soberania do Parlamento, já salientada na obra de
DICEY.
Ora, se é certo que esta soberania, como salienta RADBRUCHios,
encontra limites na força da opinião p ública, no prestígio dos Tribu-
nais e «na prudente autolimitação do Parlamento», não pode, toda-
via, ser exclu ída a possibilidade de um seu aproveitamento, através
da ratificação parlamentar dos actos da Administração, como cober-
tura a posteriori de eventuais ilegalidades ou arbitrariedades por esta
praticadas. Nesta última hipótese - já pontualmente verificadaio6 - , a
«rule of law» revelar-se-ia como uma garantia «não juridicamente
mais sólida que a que é própria da concepção administrativista do
Estado de Direito» 107•
Donde, também na abertura que manifestam a uma perspectiva-
ção material ou a uma redução formalista, «Estado de Direito» e
«rule of law» se revelam como conceitos tendencialmente afins 108 •

como verdadeira base do Estado de Direito na Inglaterra a autonomia da magistratura e o


espírito de casta dos juristas (cfr., págs. 25 e segs.).
Cfr., também, Gumo FAssô, Stato di Diriuo..., cit., pág. 115 e seg., que vê no
Estado de rufe of /mv, por motivos análogos. «uma nova e mais ajustada concepção do
Estado de Direito, que poderá efcctivamente coincidir, pelo menos na teoria, com o
Estado de Justiça».
IO) Lo Spirito ... , cit., pág. 28.

106 Cfr., GARCIA·PELAYO, Dereclzo Co11stitucio11al Comparado, pág. 279 e seg..


107 G!USEPPINO TREVES, «Considernzioni... » , cit., pág. 1596.

1os Neste sentido, também GIOVANNI SARTORI («Nota sul rappono ... », cit., págs.310 e
segs.), que fundado na característica da não estadualidade do direito britânico começara por
salientar unia irredutível diferença entre «rulc of Jaw» e stato di diritto» - quando este é
entendido segundo a teoria redutora da autolimitação -. acaba por concluir pela estreita
ligação entre os dois conceitos com base na identidade dos objectivos que visam.
--

CAPÍTULO III
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito

1. Os pressupostos teóricos

Toda a caracterização liberal do Estado de Direito se funda, em


última análise, numa mundividência construída em tomo do pressu-
posto duma ideal separação entre o Estado e a Sociedade ou, mais
especificadamente, naquilo que se pode designar como a ideologia
das três separações:
a) a separação entre política e economia, segundo a qual o Es-
tado se deve limitar a garantir a segurança e a propriedade
dos cidadãos, deixando a vida económica entregue a uma
dinâmica de auto-regulação pelo mercado;
b) a separação entre o Estado e a Moral, segundo a qual a
moralidade não é assunto que possa ser resolvido pela coacção
externa ou assumido pelo Estado, mas apenas pela consciên-
cia autónoma do indivíduo;
e) a separação entre o Estado e a sociedade civil, segundo a
qual esta última é o local em que coexistem as esferas morais
e económicas dos indivíduos, relativamente às quais o Estado
é mera referência comum tendo como única tarefa a garantia
de uma paz social que permita o desenvolvimento da socie-
dade civil de acordo com as suas próprias regras'()().
Nestes termos, parece-nos justificar-se uma consideração desenvol-
vida destes pressupostos, aqui considerados enquanto quadro ideoló-
gico no qual se inscreve a construção jurídica originária do Estado
de Direito.

109 Cfr., PJETRO BARCELLONA, «La imagen dei jurista, de la doctrina y de los magistra-
dos», in P. BARCELLONA y G. CoTURRI, El Estado y /os Juristas, trad., Barcelona. 1976,
págs. 77 e segs..

-
60 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

Com este objectivo referenciar-nos-emos às posições de autores


tão representativos como A DAM SMITH, KANT e HuMBOLDT, nos quais
não procuramos, obviamente, encerrar os fundamentos teóricos do
liberali s mo, mas tão só como tentativa para ilustrar de forma
significante os pressupostos ideológicos da adjectivação liberal do
Estado de Direito e assim desvendar o relativismo implicado na sua
circunstância hi.stórica.

1.1. Adam Smith e a separação Estado-economia

A teoria da separação Estado-economia - enquanto tentativa de


constmção de um modelo adequado ao funcionamento do capitalismo
concorrencial - é obra da escola clássica inglesa e, nomeadamente,
do «naturalismo optimista» de ADAM SMITH. Tomando a liberdade de
empresa e a liberdade de concorrência como pilares do modelo, A.
SMITH parte da ideia da existência de uma ordem natural (e conse-
quentemente j usta) para concluir que é da livre iniciativa de cada
membro da sociedade e do funcionamento espontâneo do mercado
que· resultará automaticamente a máxima vantagem para todos' 'º·
O bem-estar colectivo resultará, não de uma actividade conscien-
temente dirigida a atingi-lo, mas antes do livre encontro dos fins:
individuais, da livre concorrência de produtores e consumidores mo-
vidos e dirigidos por uma mão invisível através da procura e oferta
de mercadorias 111 • Porém, para que estes resultados se produzam é
necessário que as leis internas da economia se possam desenvolver

°Cfr., VrrAL MOREIRA, A ordem jurídica do capitalismo, Coimbra, 1976, págs. 77 e segs..
11
111
«Cada indivíduo esforça-se conlinuamente por encontrar o emprego mais vanta-
joso para todo o capital de que dispõe. Na verdade, aquilo que tem em vista é o seu próprio
benefício e não o da sociedade; mas, os cuidados que toma com vista à sua própria vanta-
gem levam-no, naluràlmenle, ou melhor, necessariamente, a preferir o emprego mais vanta-
joso para a sociedade [... ). Na realidade, ele não pretende, normalmente, servir o bem
público, nem sabe até que ponto está a ser útil à sociedade [...]. Só está a pensar no seu
próprio ganho; neste, como em muitos outros casos, está a ser conduzido por uma mão
invisível a atingir um fim que de nenhum modo faz parte das suas intenções. Ao ten~ar
satisfazer apenas o seu interesse pessoal, ele promove, frequentemente, o interesse da socie-
dade, com mais eficácia do que se realmente o pretendesse fazeo> (ADAM SMITH, The Wealtli
of Nations, trad., Paris, 1822, III, págs. 54 e 59).

.
~l

A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 61

sem interferências exteriores e, logo, sem intervenção do Estado na


esfera económica, para que a política não venha alterar a livre con-
corrência dos agentes económicos.
«No sistema da liberdade natural o soberano tem somente três
deveres a desempenhar [... ]: o primeiro é proteger a sociedade de
qualquer violência ou invasão por parte das outras sociedades inde-
pendentes. O segundo é proteger, tanto quanto possível, cada mem-
bro da sociedade contra a injustiça ou opressão de qualquer outro
membro, ou seja, o dever de estabelecer uma rigorosa administração
da justiça. E o terceiro é criar e manter certas obras e instituições
públicas que nunca atraiam o interesse privado de qualquer indiví-
duo ou pequeno grupo de indivíduos na sua criação e manutenção,
na medida em que o lucro não compensa as despesas [... ]» 112 •
Garantida, assim, a paz externa e a segurança interna, toda a
acção política superveniente se revela não só supérflua como, even-
tualmente, prejudicial, na medida em que surge como ingerência
perturbadora de uma ordem natural. Daí o fascínio que a obra de
SMITH apresenta aos olhos de uma burguesia ansiosa por se libertar da
coacção e do arbítrio da omnipresente intervenção estadual.
De facto, ADAM SMITH não só assume, no plano teórico, as suas
aspirações como as eleva à dignidade de leis naturais: deixem o
homem sozinho e ele salvar-se-á; «eliminando completamente todas
as medidas de privilégio ou limitação surgirá e estabelecer-se-á por si
próprio o sistema simples e fácil da liberdade natural» 113 • ADAM SMITH
completava assim, segundo LASKI, «urna evolução que vinha sendo
contínua desde a Reforma. Esta substituiu a Igreja pelo Príncipe
como fonte das leis que regulavam o comportamento social. LocKE e
a sua escola substituíram o Príncipe pelo Parlamento [... ]. ADAM SMITH
foi mais além e acrescentou que, com algumas excepções secundári-
as, não havia necessidade alguma de o Parlamento interferir [... ]» 11 4 •
Neste contexto, a presença da burguesia no Parlamento não vi-
sava tanto a imposição de uma determinada política económica - tida
como desnecessária e nociva - quanto permitir a cada capitalista a
possibilidade de defender os seus interesses particulares, o que signi-

112 ADAM SMITH, op. cit., Livro IV, cap. IX, pág. 557.
11 3
ADAM SMITH, ibid., pág. 556.
114 HAROLD LASKI, o liberalismo europeu, trad., S. Paulo, 1973, pág. 130.
62 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
r

ficava não deixar impôr um pretenso interesse de classe global que


lhe fosse desfavoráveP 15 •
Porém, a separação política-economia - mesmo considerando só
o modelo teórico - não é tão absoluta como uma certa leitura de
1 SMITH sugere. Como vimos, nas tarefas atribuídas ao Estado, A. SMITH

l1 previa a criação e manutenção de serviços e instituições que, por não


serem lucrativos, não interessavam à iniciativa privada. Ora, nesta
1 constatação, SMITH reconhece limites às possibilidades de auto-
t -regulação do mercado, já que esta não abrangia a totalidade da
l
esfera económica; as tarefas não lucrativas, onde se incluíam as
l1
infra-estruturas necess,frias ao funcionamento da economia, tais
J
como a construção de portos, vias férreas, pontes e os seguros sociais,
continuavam a ser asseguradas pelo domínio público.
De facto, a partir do momento em que A. SMITH reconhece a
necessidade de uma certa intervenção do Estado na esfera econó-
mica 11 6, torna extremamente frágil o critério da separação Estado-
-economia que antes propusera; se o Estado intervém com base nas
insuficiências ou no disfuncionamento do mercado, deixa de haver
limites precisos ou critérios definíveis a priori para determinar aquela
separação. 117
Também BENTHAM (com a sua separação entre os sponte acta -
acções individuais que conduzem ao aumento de riqueza colectiva
sem interferências exteriores - e os agenda - actividades que o
Governo deve realizar para favorecer a expressão dos sponte acta ou
remover os seus obstáculos) ou B uRKE (com a sua tentativa de delimi-
tação de um domínio público e um domínio privado) tentaram a

115
Cfr., ERNEST MANOEL, Le troisieme âgc du capitalisme, trad., Pmis, 1976, t. III,
págs. J79 e segs..
116
Embora, em rigor, se pudesse dizer que estas actividades não constituíam interven-
ções na economia, pois «abstinham-se de modificar a ordem social introduzindo alterações na
repartição dos bens» (E. FoRSTJIOFF, Traité de Droit Administrar/( Allemtmd, pág. 120) ou
não se traduziam em <<directa repercussão jurídica na esfera do domínio da vontade privada»
(ANA PRATA, A tutela consti111cional da a11to110111iu privada, Coimbra, 1982, pág. 40).
117
Cfr., P1ERRe R osANVALLON, La crise de l'État-Provide11ce, Paris, 1981, pág. 68:
«Mesmo entendida como simples acção de «restauração» dos mecanismos do mercado, a
intervenção do Estado pode não encontrar limites claramente deli níveis. É impossível distin-
guir entre as acções de co1Tccção (que podem pressupor indefinições ou vícios intrínsecos
ao princípio do mercado) e as acções de restauração (que partem do princípio de. que se
trata de restabelecer os mecanismos do mercado artificialmente perturbados)».
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 63

fixação de critérios operatórios capazes de demarcar claramente as


duas esferas, mas, em geral, pode dizer-se que o liberalismo clássico
nunca chegou ao estabelecimento de fronteiras rigorosas à interven-
ção do Estado e, ainda que assentando a sua construção teórica na
auto-regulação do mercado, nunca abandonou a representação de
um Estado-protcctor 118 •
É exactamente nesta fluidez de limites que se inscreve a duplici-
dade do posicionamento da burguesia relativamente ao Estado, já
salientada por E1-1RHARDT SOARES quando referia que «o problema que
se põe à organização política do mundo burguês é o de reivindicar
uma sociedade autónoma, isto é, separada do controlo do Estado,
mas ao mesmo tempo, sem se comprometer, ir gradualmente conse-
guindo que o Estado se proponha garantir essa autonomia e, para
isso, venha mais tarde ou mais cedo a surgir como um mandatário
dessa mesma sociedade» 11 9 •
De resto, não será difícil ver naquela duplicidade uma estreita
correspondência com a situação de uma burguesia que, começando
por surgir em oposição ao Estado do ancien régime, se vê depois,
consolidada a sua hegemonia política, confrontada com as reivindi-
cações do quarto estado, procurando então utilizar o Estado contra a
exigência democrática e «impedir que se passe do estádio da demo-
cracia governada para o da democracia governante» 120•
Por outro lado, a separação Estado-economia deve ser encarada
de forma tanto mais relativa quanto se considere a inserção do Estado
liberal no conjunto do modo de produção. Pois se a fluidez dos
limites entre as duas esferas dizia já bastante acerca do alcance do
princípio do «quanto menos Estado melhor», se focalizarmos o Estado
liberal do ponto de vista do papel global que desempenha na manu-
tenção das relações de produção do capitalismo concorrencial, mais
claramente se desvanecerá o seu pretenso carácter neutral e se reve-
lará a faceta de Estado-protector.
Desde logo, na confrontação do modelo teórico com a realida-
de, o carácter empenhado e protector do Estado liberal transparece

11 s Cfr., PIERRE RosANVALLON, op. cit., p ágs. ó9 e segs..


119 EHRHARDT SOARES, Direito Ptíblico e Sociedade Térnica, pág. 50.
120 GEORGES BURDEAU, O liberalismo, trad, Lisboa, s/d, pág. 150; no mesmo sentido,

cfr., K ELSEN, Teoria General dei Estado, cit., pág. 42 e seg..


64 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

na sua intervenção no mercado de trabalho - onde reprime aberta-


mente o direito à greve, o direito de associação sindical e, na genera-
lidade, as acções colectivas dos trabalhadores - ou, num outro plano,
no papel activo que o Estado desempenha na colonização e no
aproveitamento dos territórios coloniais como fornecedores de maté-
rias primas 121 •
Neste sentido denunciando a «neutralidade» do Estado liberal

como cobertura de uma dominação de classe, cabe destacar a crítica
das correntes marxistas, para as quais a relativa autonomia do apare-
lho de Estado liberal está directamente relacionada com a forma
particular de dominação burguesa.
Ou seja: a natureza específica do modo de produção capital.ista,
enquanto único sistema de produção mercantil generalizada, leva até
ao limite a separação das esferas privada e social. Como modo de
produção que institucionaliza a concorrência de todos contra todos, o
capitalismo não permite a representação dos interesses do conjunto
através da simples reunião dos capitalistas individuais; neste sentido,
a burguesia necessita de autonomizar uma instância de poder, suposta
capaz de representar imparcialmente os interesses de classe globais,
pelo que esta instância - o Estado - não pode, enquanto tal, envol-
ver-se na cadeia de produção 122 ; como diria KARL KAUTSKY, «a bur-
guesia reina, mas não governa» 123- 124 •
121
Cfr., VITAL MoRr;JRA, A Ordem .... cit., págs. 43 e segs..
m Cfr.. ERNESr MANOEL, op. cir., págs. 176, e segs..
11
2. KARL KAuTSKY, La RévolutioJ1 Socia/e, trad. Paris, 1921, pág. 43.
12
• Da mesma matriz, mas com conclusões algo diferenciadas, é a constmção de
PoULANTZAS, para quem a rela1iva separação do Estado e economia não traduz um
posicionamento de exterioridade do político relativamente à esfera económica, mas «é ape-
nas a forma precisa que reveste, sob o capitalismo. a presença constitutiva do político nas
relações de produção e na sua reprodução, (L'Érar, le po111•oir et {e socialisme, Paris, 1978,
pág. 20). Para PouLANíLAS, o Es1ado esteve sempre constitutivamente presente em qualquer
modo de produção; se no capitalismo se apresenta sob a forma de uma relativa separação,
isso é apenas uma consequência derivada de específicas relações de produção. Assim, uma
vez que o capitalismo se funda em relaçôes «livres» entre trabalhadores des,1possados dos
meios de produção e os proprietários desses meios com a consequente transfonnaç.ão da
força de trabalho em rncrc.'ldoria, a realização da mais-valia pode fazer-se na esfera económica
<<livre» da intervenção do Estado. Pelo contrário, nos modos de produção pré-capitalistas, o
relativo domínio do processo de trabalho pelos produtores - eles detêm a posse. ainda que
não a propriedade, dos meios de produção - exige a intervenção directa do Estado para
extorquir o sobre-trabalho e daí a consequente imbricação Estado-economia.

--
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 65

1.2. Kant e a separação Estado-moralidade

Empenhado na construção de uma «metafísica dos costumes»


(ou seja, uma construção racional, a priori, sintética, sobre a conduta
humana), KANT confronta-se com o velho problema das relações entre
Moral e Direito e resolve-o no sentido de uma separação, e mesmo
de uma antítese, entre as duas instâncias. Se para a Moral o que
interessa é a determinação interior da acção do homem, aquilo que o
leva a agir, para o Direito é só o aspecto físico, a componente externa,
que é relevante. Assim, se o Direito se conforma com a mera legali-
dade, ou seja, a simples concordância do acto com o comando, a lei
moral tem em conta o respectivo móbil, exige o seu cumprimento
por dever ético 125•
Se para a Moral a lei suprema é «age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se tome lei
universal», para o Direito é «age exteriormente de tal sorte que o

Sob este prisma. as diferenças entre a relação Estado-economia no capitalismo liberal


ou no monopolista são também, e apenas, as diferentes modalidades que assume. no modo
de produção capitalista. a «presença-acção do Estado nas relações de produção» (cfr., op.
cit., págs. 18 e segs. e A crise do Es1ado. trad .. Lisboa. 1978, págs. 26 e segs.).
125 Cfr., a visão global em CA STANHEIRA NEVES, O ins1i111ro dos «assemos» ...• cit.,
págs. 553 e segs.. que seguimos de peno, e, entre muitos, GroRGIO DEL YEcrnro, op. cit.,
págs. J 35 e segs. e Gumo FASSO, Historia de la Filosofia dl' la Derl'c/W, trad., Madrid,
1981, págs. 266 e segs..
De notar, porém. que a independência recíproca e mesmo a oposição entre Direito e
Moral não invalida a unidade tendencial das duas instâncias numa realidade supra-sensível,
no reino dos fins ideal, onde. através da convergência das exigências da perfeição interna
(Moral) e da coexistência externa (Direito). será !inalmente possível tanto «uma legalização
da moral, como uma moraliwçüo do direito» (GroELE SoLARI, S111di Storici di Filosofia dei
Dirilto, Torino, 1949, pág. 224 e seg.; no mes mo sentido, cfr.• Gumo FASSo, op. cit.. págs.
279 e segs.; salientando a relacionação íntima entre Direito e Moral em KMrr, cfr., também,
RooRJGUEZ PANJAGUA, Historia dei Pe11samie1110 Jurídico, Madrid, s.• cd.,1984, pág. 250 e
seg., e, ainda, TRUYOL y SERRA, His1oria de la Filosofia dei Dereclw )' dei Estado. Madrid,
II, págs. 302 e segs., que considera não haver em KANT uma separação marcante e, muito
menos, uma contraposição entre Direito e Moral, já que ambos teriam o mesmo fundamen-
to, ou seja, «assegurar a liberdade do homem impedindo que ele possa ser rebaixado à
condição de simples meio»).
Para uma, informação detalhada sobre esta questão, nomeadamente no que se refere
às nuances que se verificam ao longo da obrn de KANT, cfr., A. PHJLONF.NKo na sua «Intro-
dução» a KANT, Métaphysique des Moeurs, trad., Paris, 1979, págs. 60 e segs..
-
66 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
j
,,!
livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um
segundo uma lei universal» 126 •
Desta dicotomia KANT deduz uma nova separação, a de Estado-
-mora Ji dade, pois, sendo o Direito a liberdade exterior 121 , era ao
Estado que competia realizá-Ia coactivamente, garantindo a coexistên-
cia das várias liberdades e fazendo desse objectivo - onde no fundo
coincidiam defesa das liberdades e actuação da ideia de direito - o
seu único fim.
Assim. tal como ADAM SMITH afirmara a autonomia da esfera
económica face à política, também KANT, através de uma operação
paralela, autonomiza a moral relativamente à legalidade. Se na eco-
nomia a abstenção do Estado garantia um progresso nascido do livre
encontro dos interesses individuais, também no campo da moralidade
não pode haver, para KANT, ingerência ou coacção exterior nas esfe-
ras da exclusiva responsabil idade das consciências individuais. À
auto-regulação do mercado de A. SMITH corresponde, em KANT, a
auto-eleição dos fins e a auto-regulação da esfera moral de cada um,
sendo excluída qualquer moral social enquanto moralidade assumida
como fim do Estado e imposta do exterior às consciências individuais.
Para KANT. e em inteira contraposição ao Estado de polícia, não
deve o Estado prosseguir quaisquer fins morais, quaisquer tarefas de
realização do bem comum ou visar a felicidade dos súbditos; o seu
único fim é o Direito, no sentido de que lhe compete exclusivamente
assegurar a ordem jurídica, garantir a cada um a liberdade exterior
que lhe permita determinar os seus próprios critérios morais e pro-
curar a felicidade pessoal 128•
Confinado intencionalmente a um formalismo alheio a fins mo-
rais, o Estado de KANT afirma-se como Estado jurídico, na estrita
medida em que, visando unicamente a «coexistência dos arbítrios»,

126
KANT, respcclivamcntc. F111u/a111e11fllçiio tia Metafísica dos Cos111111es, trad ..
Coimbra. 1960, pág. 56 e Metaphysique tles Moeurs, I, Introdução, § C, pág. 105.
121 O Direito é «o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um

pode coexistir com o arbítrio dos restantes, de harmonia com uma lei universal de liberda-
de» (KANT, Mé1aphysique des Moeurs, 1, Introdução, § B, pág. 104).
12
~ No que respeita aos interesses individuais no domínio da actividade económica,

cultural, moral, pode o Estado estabelecer limites dirigidos à regulamentação dos efeitos
externos daquelas actividades, mas nunca, sob pena de se tornar um Estado opressor.
substituir-se aos próprios indivíduos (cfr., G10ELE SOLAR!, op. cit., pág. 232 e segs.).

-
A «Adjectivação» liberal do Estado de Direito 67

se constitui como «unificação de uma multiplicidade de homens sob


leis j urídicas» 129• Assim realizava K ANT, num Estado dominado pelas
formas j urídicas, a outra face da autonomia individual, a autonomia
moral, e garantia ao homem uma dignidade (fundada nos «atributos
jurídicos)) a priori: a liberdade legal, a igualdade civil e a indepen-
dência civil , ou sej a, a personalidade civil 13º) que finalmente o cons-
tituía como fim em si mesmo 131 •
Por outro lado. o Estado jurídico de K ANT surgia, não como
Estado particular de uma época ou uma classe, mas como forma
j urídica universal que, exigida pela «coexistência inevitável entre os
homens» 132• se constituía como pura necessidade racional 133 .
O Estado jurídico de K ANT é, pois, o Estado do racional absoluto,
a que são estranhos os fins individuais e os móbeis espirituais, um
Estado adequado - como dizia K ANT - até a um povo de demónios
desde q11e dotados de inteligência 13~. «O Estado afirma-se então

19
: KANT. Métaphysique t!es 1\,foeurs, 1. § 45, pág. 195.
10
~ lbid., § 46, pág. 196.
'" Cfr., KANT, Fundamemação da Mewfísica dos Cosfllmes, págs. 74 e segs.; «Só o
homem considerado como pessoa. isto é, como sujeito de uma razão prática, está acima de
qualquer preço; [...) como tal deve considerar-se não como simples instrumento de outros
indivíduos humanos [...] mas sim como fim cm si mesmo: quer dizer, ele possui uma
dignidade (um valor interno absoluto)» (Métaphysique des Moeurs, li, pág. 62).
m Alétaphysique des Moeurs, l, § 9, pág. 188.
rn «[... ) a sua forma é a de um Estado em geral, ou seja, de um Estado segundo a
ideia (in der Idee) tal como se concebe que ele deve ser, segundo os puros princípios do
direi to» (Métaphysique des Moeurs, § 45, pág. 195).
Assim, se no contrato social de Roussú, u uma renúncia à liberdade natural tem como
contrapanida a criação de uma nova ordem social, no contrato originário de KANT visa-se
unicamente a consolidação e realização mais perfeita e racional da ordem jurídica («não se
pode dizer que o homem no Estado sacrificou a uma ce11a linnlidade uma parte da sua
liberdade exterior inata, mas sim que ele abandonou completamente a liberdade selvagem e
sem lei para reencontrar a sua liberdade numa dependência legal, quer dizer. num Estado
jurídico, logo de uma forma total, porque esta dependência procede da sun própria vontade
legisladora» - Méraphysique t!cs Moeurs, I; § 47, pág. 198). O contrato originário (acto
através do qual os homens saem do eswtlo de natureza - estado cm que apesar de haver
direitos não havia um poder coercivo destinado a gar:1111i-los - para o estado civil) constitui,
então. :i :iccitação de uma exigêncin ,~1cional de limitação dos arbítrios mediante a construção
de um Estado jurídico; surge, portanto, como exigência racional implícita na ideia de Direito
- «coexistência dos arbítrios» -, como «uma pura id<'ia da Rauio» (cfr., CASTANHEIRA
NEVES, O instituto dos «assentos» ..., cit., pág. 554; G10ELI, Sm.ARI, op. cit., pág. 315).
•J.< «[ ... ] do ponto de vista racional [... ) o homem é constrangido a ser, se não
moralmente bom, pelo menos bom cidadão. O problema da constituição de um Estado pode
-
68 Co11tributo para uma Teoria do Estado de Direito

como Estado de Direito, não no sentido de que o direito seja a


origem do Estado, mas de que o Estado encontra no direito a sua
justificação e o seu limite racional» 135 •
Contudo, também em KANT - mesmo sem confrontar o modelo
com a realidade, isto é, não saindo do donúnio da sua doutrina - o
carácter não universal, mas classista, do Estado liberal não deixaria
de se revelar. Vimos como o Estado jurídico kantiano se propunha
garantir a cada indivíduo a liberdade como homem, a igualdade
como súbdito e a independência conto cidadão; porém, estes atributos
jurídicos, considerados em princípio como «inseparáveis da natureza
de cidadãos do Estado ( «cives»)» 136, acabam por ser apenas extensí-
veis, na sua plenitude, ao cidadão burguêsm. Para KANT, o trabalha-
dor, que enquanto homem tem direito àqueles atributos jurídicos, não
os possui enquanto cidadão, já que só o direito de voto constitui a
pessoa como cidadão; ora, o trabalhador, porque dependente do arbí-
trio de outros para a sua conservação, não pode reivindicar este
direito 138 •
Portanto, e enquanto cidadão-passivo. o trabalhador só em potên-
cia possui aqueles atributos, ou seja, só os realizará através da possi-
bilidade de metamorfose de <<trabalhador» em «burguês». Isto significa
que, na chocante expressão de GALVANO DELLA VoLPE, no Estado de
Direito kantiano «o cidadão trabalhador é uma larva de homem que

ser resolvido até para um povo de demónios por estranho que isso pareça (desde que eles
sejam dotados de inteligência)» (KANT, Vers la Paix Pe,petuel/e, trad., Paris, 1958, 11
secção, 1.0 supl., pág. 123).
rn Cfr., G101oLE SoLAR1, (op. cit., pág. 3 15), para quem esta justificação do Estado
em função do direi to foi a grande conquista de KANT que forneceu assim ao liberalismo
político a sua sistematização racional. Neste sentido se pode dizer, com CASTANHEIRA
NEVES ( O instituto dos «assentos» ..., cit., pág. 554). que LOCK!l e RouSSllAUsão verda-
deiramente superados cm KANT, só neste se consumando a superação do natural pelo
racional; do jusnaturalismo tradicional por um puro jusracionalismo. Cfr.• igualmente.
G1UL1ANO MARINI, «Lo Stato di Diriuo Kantiano e la critica di Hegel», i11 RIFD, 1964.
(-II, págs. 227 e segs..
J KANT, Mé1aphysiq11e des Moeurs, r. § 46, pág. 196.
16
7
Jl Cfr., R. WmrnõLTER, Le Formule Magiche dei/a Scienza Giuridica, trad .• Roma,
1975, págs. 75 e segs. e GALVANO DELLA VoLPll, Rousseau e Marx, trad., Lisboa. 1982,
págs. 62 e segs..
133
Cfr., KANT, Métaphysique des Moeurs, 1, § 46, pág. 196 e segs..
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 69

se desenvolve em plenitude - quando se desenvolve - naquela escola


de promoção de classe que é a sociedade civil, burguesa» 139•

1.3. H11mboldt e a separação Estado-sociedade

Das duas separações analisadas - Estado-economia e Estado-


-ética - resulta, no plano global, a separação Estado-sociedade. Na
sociedade civil desenvolvem-se livremente, ai nda que numa relação
de conflitualidade, as autonomias morais e económicas dos particula-
res, cuja coexistência pacífica cabe ao Estado garantir. O Estado, se
bem que dotado de uma rac ionalidade e fins próprios, abandona
qualquer intenção de promover um bem comum, um interesse público,
em favor da livre expansão dos interesses individuais 14º. Qual «guar-
da-nocturno» (Nachtwachterstaat, na expressão de L ASSALLE) colocado
numa posição de exterioridade, o Estado só tem que assegurar o livre
jogo da concorrência entre os particulares e impedir a invasão das
respectivas esferas de autonomia.
O optimismo liberal de oitocentos pressentia na sociedade uma
racionalidade imanente, uma dinâmica própria comandada pelas leis
naturais da . competitividade individual, as quais, protegidas que fossem
de ingerências exteriores, assegurariam por si só, do nível económico
ao moral e intelectual, o advento da ordem mais j usta. O progresso
resultaria «naturalmente» do antagonismo inato nos homens, da sua
«insociável sociabilidade» (ungesellige Geselligkeit), como referia
KANT: «tal como as árvores de um bosque, dado que cada uma pro-
cura arrebatar o sol e o ar às outras, se constrangem reciprocamente

139
ÜALVANO DELLA VOLPE, op. cit., pág. 65; como diz SOLAR( (op. cit., pág. 235), o
Estado jurídico de KANT realizava nesta redução um dos postulados do liberalismo: a assoc ia-
ção, num vínculo indissolúvel, de liberdade e propriedade. A propriedade assume, de facto,
o papel de princípio supremo no sistema de KANT, sendo inclusivamente a necessidade de a
garantir, de fazer cessar o seu cstatulo provisório, que exige a passagem do estado de
natureza ao estado de naturew d11i/ (cfr., KANT, Métaphysiq11e des Moe11rs, l, §§ 8 e 9, págs.
130 e scgs.).
1•0 Dizia B ENJAMIN CoNSTANT, Co11rs de Politique Co11stit11tio1111el/e, t. I, pág. 44: «O

que é o interesse geral se não a transacção dos interesses particulares(...]? O interesse geral
é disti nto, sem dúvida, dos interesses particulares. mas não lhe é de todo contrário [...]. O
interesse público não é mais que os interesses individuais colocados reciprocamente em
condições de não se prejudicarem».
,,

70 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

para os alcançar e por isso crescem esbeltas e direitas, enquanto as


árvores que crescem em liberdade, longe umas das outras, estendem
os seus ramos ao acaso e crescem torpes, retorcidas e tortuosas»,
também no «recinto fechado da sociedade civil» os impulsos compe-
141
titivos dos homens produziriam os melhores efeitoS •
No entanto, se para KANT a relação entre Estado e sociedade era
um problema filosófico, para a burguesia, como classe, era essencial-
mente um problema político. Se, para KANT, a abstenção do Estado
decorria de uma pura exigência racional, para a burguesia ela era
uma necessidade política, já que cada intervenção do Estado repre-
sentava aos seus olhos um «desperdício» de mais-valia social que
poderia ser valorizada de forma produtiva 142 •
O problema da racionalização do Estado tendia, portanto, a ser
cada vez mais o problema da determinação dos limites para além dos
quais a actividade do Estado seria nociva para o equilíbrio natural dos
interesses que se disputavam no «recinto fechado da sociedade civil».
Vimos como A. SMITH e a escola clássica o tentaram resolver no plano
específico da intervenção na esfera económica; veremos como; agora
no domínio da política, W!LHELM voN HUMBOLDT procura encontrar uma
solução globalizante para o mesmo problema, ainda antes do fim do
século XVIII, no seu Ensaio sobre os limites de acção do Estado 143 •
Problematizando as possibilidades de actuação do Estado com
vista à realização do ideal supremo da existência humana - «o desen-
volvimento mais elevado e proporcionado das faculdades do homem
e da sua específica individualidade [... ] segundo uma vontade pró-
pria», HuMDOLDT considera para o Estado duas possibilidades de orien-
tação: ou uma dimensão positiva expressa na procura da felicidade e
do «bem geral material e moral da nação» ou uma dimensão negativa
limitada a «evitar o mal proveniente da natureza ou provocado pelos

"' Apud Luc,o CoLLirrn, Ideologia y Sociedad, pág. 321.


2
" Cfr., ERNEST MANDEI., op. cit., pág. 178 e seg ..
143
W1u1cLM VON HUMBOLDT, ldee11 w ei11e111 Versuch die Griinze11 der Wirksamkeit
des Staars w besti111111e11, Breslau, 1851 (noie-se que apesar de só integralmente publicada
já depois da mone de HuMBOLD'f, a obra foi escrita muito antes, em 1792. Uliliz.ámos a
tradução italiana, Saggio sui limili de/l'azio11e dei/o Staro, publicada cm Turim, 1891. na
«Biblioteca di Scienze Politiche», vol. VII). Para uma visão global do comexlo histórico e
filosófico da formação do pensamento de HuMBOLDT, cfr.. GioELE SoL.ARI, «G. Humboldt e il
suo pensiero politico», in Srudi Storici di Filosofia dei Diriuo, págs. 315 e segs..
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 71

144
homens» • Perante estas duas possibilidades, que a análise revelará
dicotómicas - em termos de alternativa procurar o bem-estar positivo
ou garantir a segurança -. HUMBOLDT rejeita globalmente a actividade
positiva do Estado.
De facto, na medida em que essa actividade gera a uniformidade
de condições, opõe-se ao livre desenvolvimento da individualidade e
personalidade humanas' 45 , cujos pressupostos são, pelo contrário, «a
liberdade de acção e a diversidade de condições». Por outro lado,
H uMBOLDT procura demonstrar que, independentemente das intenções
dos seus autores, a intervenção positiva gera uma dinâmica incontro-
lável que afasta sucessivamente as novas medidas dos objectivos
iniciais e que produz inevitavelmente os malefícios típicos do Estado
de polícia.
Quanto mais o Estado procura responder às insuficiências da
sociedade civil, mais essas insuficiências se multiplicam e novos
males se revelam: «[ ... ] a expectativa da ajuda do Estado, o esmoreci-
mento da iniciativa pessoal, a presunção falsa, a preguiça, a incapaci-
dade! O vício de onde nascem estes males é, depois, por eles engen-
drado»; o corpo de funcionários cresce. a burocracia aumenta e o
formalismo que envolve necessariamente os problemas que se pro-
curavam resolver gerará, por si só, novos e avolumados. problemas 146•

144
HUMDOLDT, op. cit., págs. 644 e seg. e 649 e seg..
1
•s «O homem desenvolve-se tanto mais quanto actua por si próprio» (op. cit., pág.
666): «sempre que o Estado assume uma atitude positiva, quer relativamente aos bens exter-
nos e materiais quer aos que respeitam intimamente ao ser interno, só a pode realizar transfor-
mando-se num obstáculo ao desenvolvimento da personalidade» (op. cil., pág. 659); «nestas
condições, por mais benéfico e sensato que seja o espírito governativo, impõe-se sempre a
unifonnida,le à nação, ou seja, uma fonna de agir que lhe é estranha. Os homens obtêm enfüo
os bens com prejuízo das suas faculdades[ ... ]. Na diversidade que surge da reunião de muitos
indivíduos reside o maior bem que a sociedade pode oferecer e essa diversidade aumenta
justamente à medida que se reduz a ingerência do Estado» (op. cil., pág. 651 ).
l,I(, HuMOOLDT, op. cit., pág. 661.

«Os que tratam dos assuntos do Estado tendem cada vez mais a negligenciar a
essência das coisas para só considerar a sua forma, na qual introduzem, realmente,
melhorias reais; mas, na medi.da em que não prestam atenção suficiente à questão principal,
as próprias melhorias se revelam prejudiciais. Daí, novas fonnas, novas complicações,
frequentemente novas prescrições restritivas que, naturalmente, provocam novo aumento de
funcionários. Daí que, cm cada dez anos, na maior parte dos Estados, se verifique aumento
do número de pessoas empregadas, extensão da burocracia, restrições à liberdade dos
súbditos» (ibid).
72 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

Perante a irreversibilidade desta dinâmica, a saída consiste na


rejeição liminar da dimensão positiva da actividade do Estado e na
fixação de limites rigorosos à sua intervenção; «que o Estado se
dispense de qualquer procura do bem-estar positivo dos cidadãos;
que não desenvolva outra acção que a estritamente necessária para
garantir a segurança interna e extema» 147•
Contudo, esta caracterização dos fins do Estado, se bem que
delimitando os contornos exteriores da sua actividade em termos de
exclusiva procura do «bem negativo dos cidadãos», não era ainda
bastante para evitar a tendência incontrolável para o autodesenvolvi-
mento progressivo dos círculos da actividade estatal; se se quiser, e
sob um prisma actualizado, poder-se- ia dizer que o problema de
H uMBOLDT era já o de como evitar a irresistível atracção da passagem
do Estado-protector ao Estado-providência 1~8•
Na procura da solução para este problema, HuM BOLDT é levado,
numa tentativa de estabelecer limites objectivos, a restringir a acção
do Estado à defesa conlra os actos «em que se lesem os direitos de
outrem», «em que se ampute alguém, contra a sua vontade, de uma
parte da propriedade ou da liberdade pessoal», ou seja, reconduz a
garantia de segurança à garantia da liberdade legítima 149•
Nestes termos se pode dizer que o Estado de H UMBOLDT se define
como Estado de Direito, na exacta medida em que a tarefa do Direito
é delimitar e assegurar a esfera de liberdade e propriedade individual

147
HuMBOLnT, op. cir.. pág. 664. Na verdade, para HuMoOLDT, «a conservação da
segurança, quer contra os inimigos externos quer contra as perturbações internas. é o fim
que se <leve propor o Estado», já que sem segurnnça - «o único bem que o homem isolado e
abandonado às próprias forças não pode alcançar por si só» - «o homem não pode desen-
volver as suas faculdades nem gozar os rcsullados destas, pois sem segurança não há
liberdade» (op. cit., pág. 668).
l'K Cfr., P1ERRtl ROSANVALLON, la crise de /'Érat-Providence, pág. 76 e GEOROES

BuRoEAu, O liberalismo, págs.156 e segs..


149
HUMBOLDT, op. cir.• págs. 709 e 712.
«Os cidadãos gozam de .1·eg11ra11ça no Estado quando não há usurpação do exercício
dos seus direitos, tanto no que respeita à sua pessoa como à sua propriedade.
Consequentemente, a segurança é a garantia da liberdade /eg(rima [...]. Tal segurança não
será, portanto, perturbada por qualquer acto que impeça o homem de exercer as suas
faculdades ou gozar os seus bens, mas tão só por aqueles que o impeçam ilegitimamente»
(op. cir., pág. 706).

J
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 73

e a única função do Estado é proteger o ordenamento juódico reduzido


a tal tarefa 150 •
Assim, e na conclusão do percurso que nos levou de SMITH a
KANT e a H ur-,rnOLDT, vemos como as duas premissas da separação
Estado-economia e Estado-moralidade - intimamente ligadas à exi-
gência de protecção dos direitos e garantias individuais - convergem
no projecto de racionalização e limitação do Estado, no quadro de
uma terceira separação que constitui o pano de fundo da caracteriza-
ção liberal do Estado de Direito, a separação Estado-sociedade.

2. Natureza e elementos do Estado de Direito liberal

De acordo com o entendimento que temos vindo a defender, só


haverá Estado de Direito quando o objectivo de protecção da liberdade
e direitos fundamenta is do cidadão mobiliza na sua prossecução e
garantia o empenhamento do Estado. Assim, e por definição, o enfoque
liberal do Estado de Direito não deixará de orientar o seu projecto de
racionalização do Estado para a realização daquele objectivo.
Porém, o contexto histórico do advento do Estado de Direito
moldaria necessariamente os seus contornos a um entendimento
compatível com os interesses da burguesia ascendente, para quem,
como vimos, mais que um conceito filosófico, o Estado de Direito
era, sobretudo, um conceito de Juta política dirigida simultaneamente
contra a imprevisibilidade reinante no Estado de Polícia e as barreiras
sociais legadas pela sociedade estamental. É para garantir um núcleo
de direitos fundamentais interpretados e integrados à luz dos valores
supremos da iniciativa privada, da segurança da propriedade e das
exigências de calculabilidade requeridas pelo funcionamento do sis-
tema capitalista que se orienta o projecto de racionalização do Estado
levado a cabo pela burguesia.
Vimos, no número anterior, como a racionalidade inerente ao
desenvolvimento das relações de produção capitalistas pressu punha
uma sociedade tanto quanto possível liberta da acção do Estado;

º Cfr.,
15 PIERRE ROSANVALLON, op. cit., pág. 77 e HILLERS Oll LuQUE, «El Estado de
Derecho como gara.ntia de las libertadcs publicas», i11 Revista de la Facultad de Dereclw de
la Universidad Complutense, Madrid, 1982, n.º 65, pág. 33.
74 Co 11 1rib1110 para uma Teoria do Estado de Direito

mas, para além disso, a mesma racionalidade - e, concretamente, 0


objectivo de redução do número de variáveis a considerar na acção
económica1s1 - exigia que a intervenção pública, por mm1ma que
fosse, pudesse ser mensurável, previsível, pudesse ser considerada
como um dado pelos agentes económicos. Assim, a racionalização
burguesa do Estado teria de compatibilizar dois aspectos aparente-
mente contraditórios: constituir um Estado separado do corpo social,
mas, ao mesmo tempo, subordiná-lo ao seu controlo e adaptá-lo às
suas exigências.
O quadro da resolução do problema da subordinação do Estado
havia já sido fornecido pela Revolução Francesa, quando esta impusera
a transformação da soberania transcendente em soberania imanente,
na qual o soberano não é já algo de exterior ao corpo social - como
era o Rei absoluto - . mas sim a própria sociedade. E, na medida em
que tal transformação se reflectia na substituição das concepções
patrimonialistas pelo reconhecimento da personalidade de um Estado
que mantinha relações jurídicas com os cidadãos 152, aquela racionali-
zação convertia-se, no fundo, no problema da limitação jurídica do
Estado, no problema do Estado de Direito.
A racionalização liberal do Estado virá, assim, a surgir formal-
mente, não só como vitória da Sociedade sobre o Estado - não
obstante servir os objectivos de hegemonia política da burguesia -,
mas também do Direito sobre o arbítrio, já que, através de uma
parLicular concepção de divisão de poderes, a limitação do Estado se
fazia essencialmente através de técnicas de natureza jurídica. Referi-
mo-nos concretamente ao estabelecimento de um conjunto de órgãos
(dos quais pelo menos um deriva da eleição nacional) com compe-
tências pré-determinadas constitucionalmente, no âmbito de uma divi-
são de poderes que consagra a supremacia do órgão legislativo (a
representação popular) através do «império da lei>> e da subordinação
do executivo garantida pelo «princípio da legalidade».
Portanto, se, por um lado, a representação política (com sufrágio
censitário, autonomia dos representantes e mandato representativo)
institucionaliza a relativa separação e autonomia do aparelho de Estado,

" ' Cfr., sobre a mciomllidade económica do capitalismo. VITAL MOREIRA, A Ordem
Jurídica do Capitalismo, págs. 98 e segs..
m Cfr., Sllf)ra, nota 66.
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 75

a divisão de poderes - entendida naqueles termos garantia a


previsibilidade da intervenção do Estado, ao mesmo tempo que,
complementada pela institucionalização da justiça administrativa, se
revelava como técnica jurídica adequada à protecção dos direitos
individuais e à subordinação do Poder às exigências da sociedade.
Assim, o objectivo último de garantir a liberdade e os direitos
fundamentais do indivíduo traduzia-se no estabelecimento de um
sistema de garantias (de natureza jurídica) que impregnava toda a
estruturaÇãó dó Estado e enquadrava as suas relações com a socie-
dade. Por um lado, procedia-se à repartição de funções por órgãos
distintos e atribuía-se um valor jurídico hierarquizado aos diferentes
actos estaduais; por outro, através do reconhecimento da subjectivi-
dade jurídica do Estado - com a con~equente titularidade de direitos
e deveres perante os cidadãos - e da tutela jurisdicional destas situa-
ções subjectivas, as relações entre os particulares e o Estado consti-
tuíam-se em relações essencialmente jurídicas, submetidas ao império
do Direito.
Direitos fundamentais e divisão de poderes (com império da lei
e princípio da legalidade), surgem, pois, como os elementos funda-
mentais do Estado de Direito liberal, tal como proclamava, de forma
lapidar, o artigo 16.º da Declaração de Direitos de 1789. O que não
significa, como poderia inferir-se da conhecida teoria de CARL
ScHMJTI 153, que a validade destes elementos se confine à forma bur-
guesa do Estado de Direito; pelo contrário, como decorre da concepção
que vimos defendendo, consideramo-los necessários a toda a mani-
festação histórica de Estado de Direito.
A «adjectivação» liberal do Estado de Direito advém, portanto,
não do princípio de limitação jurídica do Estado dirigida à garantia

•~J CARL SrnMm (Teoria de la Co11sriruciô11, págs. 138 e segs.), reconduzindo estes
elementos el\clusi vamente ao «Estado burguês <le· Direito, sintetizava a essência deste nos
seguintes princípios dirigidos à protecção da lihcr<la<lc burguesa:
- um princípio de di.1·rribuiçtio («Verteilungsprinzip» - princípio de repartiç,io na
terminologia de Rui MAClfüTE i11 Co11te11cioso Ac/111i11istrativo, Coimbra, 1973, pág. 14),
segundo o qual a liberdade <lo indivíduo é considerada como um dado anterior ao Estado e,
como tal, é em princípio i/imiwda («prinzipiell unbegrenzt»). enquanto a faculdade de o
Estado a invadir é em princí[liO limirada ( «prinzipicll begrenzt»);
- um princípio de orga11izaçüo («organisat·ionsprinzip»), instrumental relativamente
ao princípio de distribuição e que se traduz na dou1rina <la divisão de poderes.
. .1

'•
1 '
'
í'
76 Co111rib11to para uma Teoria do Estado de Direito

dos direitos e liberdades fu ndamentais, mas sim da concretização


particular que as técnicas jurídicas de limitação assumem no contexto
do Estado liberal e, sobretudo, do condicionamento dos direitos fun-
damentais pelos valores burgueses. Daí que, na abordagem dos ele-
mentos do Estado de Direito liberal a que vamos proceder, além de
incidirmos apenas nos aspectos que se relacionam com o nosso tema,
nos preocupemos essencialmente em destacar o que neles há de
histórica e ideologicamente condicionado.

1
.\• 2.1. Os Direitos Fundamentais
•'
i1
1
Enquanto «princípio básico de distribuição em que se apoia o
Estado de Direito liberal-burguês» (no sentido de SCHMITT), os direitos
fundamentais não devem, em rigor, ser considerados como um entre
vários dos seus elementos, mas como verdadeiro fim da limitação
jurídica do Estado. Face aos direitos fundamen tais, os restantes ele-
mentos do Estado de Direito liberal manifestam um carácter marca-
damente instrumental, não obstante não devam ser reduzidos a meras
técnicas, já que, e na medida em que surgem como os meios idóneos
para garantir a realização dos direitos individuais, aqueles outros
elementos - divisão de poderes, primado da lei, princípio da legali-
dade - se afirmam como verdadeiros e autonomizáveis valores,
potenciando, como veremos, a sua identificação com o próprio con-
ceito de Estado de Direito.
Porém, e em nosso entender, o conteúdo essencial do Estado de
Direito não reside nestes elementos - reconduzíveis ao objectivo de
submeter a Administração à Lei -, mas antes deve ser localizado nos
fins últimos visados por esta submissão, ou seja, o reconhecimento
de uma esfera de autonomia onde os indivíduos são titulares de
direitos subjectivos, oponíveis a terceiros e ao Estado, a esfera dos
direitos fundamentais.
Na base do relevo que os direitos fundamentais assumem na
concepção liberal do Estado de Direito está a ideia da sua natureza
pré e supra-estadual, cuja teorização global remonta a LocKE e à sua
teoria do contrato sociail 54•

15
'Vivendo inicialmente num esrado de natureza, num contexto de liberdade e igual-
dade plenas, os homens seriam titulares de direi tos inatos e inalienáveis para cuja garantia
A «Adjectivação» liberal do Estado de Direito 77

Neste carácter dos direitos fundamentais radica o último sentido


da limitação do Estado, já que, quando se obriga a respeitar e garantir
os direitos, o Estado reconhece-os como anteriores e superiores a si
próprio, como verdadeiros limites indisponíveis em cuja reserva só
pode penetrar, como diz Sc1-1M1Tr, em quantidade mensurável e só de
acordo com procedimentos pré-estabelecidos•ss. Quando as Consti-
tuições do liberalismo e as respectivas Declarações de Direitos con-
sagram as liberdades individuais tal não significa que o poder sobe-
rano concede dire itos aos particulares, mas tão só que reconhece
juridicamente os direitos originários dos homens e os proclama sole-
nemente com a finalidade de melhor os garantir 15<•.
Daí o ahismo 151 que separa as Declarações Americanas de 1776
ou a Declaração dos Dire itõs do Homem e do Cidadão de 1789 dos
seus antecedentes britânicos (Magna Carta, Petição de Direitos de
1672, Habeas Corpus de 1679, Decl aração de Direitos de 1689),
pois, enquanto estes procuravam apenas limitar os poderes do Rei,
proteger o indivíduo e reconhecer a soberania do Parlamento, aque-
las, inspiradas na existência de direitos naturais e imprescritíveis do
homem, visavam limitar, através do Direito. os poderes do Estado no
seu conjunto.
Porém, a consagração constitucional dos direitos fundamentais
só se traduzia plenamente em limitação de todos os: poderes do Estado
quando acompanhada do reconhecimento da supremacia da Consti-

constituíam o Estado, mas de que não podiam eles próprios dispor e, logo, não podiam ceder ao
novo soberano; no comraro social de Lcx:KE, quando constituem o Estado civil, os indivíduos
não renunciam aos seus direitos naturais para conservarem alguns deles (como na construção de
HOBIJl3S ou ESPINOZA), mas renunciam apenas ao direito de fazer justiça por si próprios para mais
bem garantirem e conservarem todos os outros, mom1ente o direito de propriedade (cfr., o
segundo dos Two Treatises of Cove111111e111, maxime, caps. II, V, VII, VDI e IX). Para uma
visão global compar:uiva das diferentes te-0rias do contratualismo jus naturalista, cfr., por todos,
N ORllERrn B0no1o, «li modcllo giusnaturalistico», cit., 111ari111e, págs. 59 e segs. e 73 e segs.;
espccificadamcnte sobre UX:KE. cfr., por todos, C. B. MACPHERSON, La Teoria Política dei
Individua/ismo PosC'sivo, tmd., Barcelona, 1979, págs. 169 e segs..
iss Cfr., CAJU. S CIIMllT, Teoria de la Constituciâ11, p:íg. 169 e seg ..
•~ Cfr.. quanto ao carác1er meta-estadual dos direitos reconhecidos pelas Declara-
ções, CARL SCJJMJTr, ibit!.; LEON Duc;urr, Traité... , cit., Ili, págs. 554 e segs.; Z1PPELJUS, op.
cit., pág., 169 e seg.; GEORGLlS BuROEAU, O Lihemlismo, págs. 32 e segs. _e V rE!RA DE
ANDRADE, Os Direitos Fundamemnis na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983,
págs. 14 e segs..
157 Cfr., DuGUJT, op. cit., pág. 558.
78 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

tuição relativamente ao poder legislativo ordinário, sob pena de o


Estado readquirir pela via do legislador parlamentar os poderes que
perdera com o reconhecimento do carácter supra-estadual dos direi-
tos. E, se é certo que o liberalismo não extraiu todas as consequên-
cias da superioridade formal da Constituição, desde logo ficou aberto
o caminho, como se comprova pela distinção operada entre poder
constituinte e poder constituído ou, num plano prático, pela história
da fiscalização judicial da constitucionalidade nos Estados Unidos da
América.
De resto, o pensamento liberal eliminara, à partida, o problema
da eventual contradição entre constitucionalismo como limitação do
Estado e soberania da vontade geral legisladora, na medida em que
só concebia a existência de uma Constituição q uando houvesse o
reconhecimento dos direitos fundamentais 158•
Associada ao ineliminável individualismo que acompanha a se-
paração Estado-sociedade, a caracterização liberal dos direitos funda-
mentais concebe-os essencialmente como esferas de autonomia a
preservar da intervenção do Estado; a sua realização não pressupõe a
existência de prestações estaduais, mas apenas a garantia das condi-
ções que permitam o livre encontro das autonomias individuais. En-
quanto objectivo ce ntral de um projecto de racionalização dirigido
contra o Estado absoluto, os direitos fundamentais assumem, natural-
mente, o carácter de direitos contra o Estado, de garantias da autono-
mia individual contra as invasões do soberano. Ou seja, e de acordo
com a classificação de JELLJNEK (cfr. infra, 111.2. l. l .), são direitos à
liberdade, reconduzíveis a um status negativo do indivíduo, a uma
esfera livre da intervenção estatal onde se prosseguem fins estrita-
mente individuais.

iis <<Qualquer sociedade cm que não esteja assegurada a garantia dos direitos. nem
estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição» - art. 16.º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Em sentido contrário, e defendendo a natureu
insuperável da antinomia direitos naturais-soberania, efr., J. M. PÉRITCM, «La notion de
Rechtstaat et le principe de légalité», in BFDC, 1949, vol. XXV, pág. 325 e seg..
P~ra este ~ut?r, qualquer limitação jurídica do Estado redundaria na supressão da
soberama e do propno Estado, pelo que a teoria do «Rechtsstaat» conjugada com os efeitos
«nocivos e perigosos» do d~r~ilo de resistência redundaria na caminhada progressiva para
«o desaparecimento da espec1e humana e a sua substituição por uma nova espécie, a do
U11terme11sch (sub-homem), e da Humanidade por uma U111ermemchtum (sub-humani-
dade)» (ibid., pág. 324).
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 79

Daí decorre - tendo como pressuposto o quadro de uma socie-


dade civil apolítica, ou seja, considerada num processo de auto-
desenvolvimento situado à margem de qualquer intervenção política
(do Estado) - a possibilidade, não só de alhear os direitos fundamen-
tais de qualquer exigência de participação política, como ainda de
distinguir, de entre os direitos fundamentais (isto é, direitos que se
exerciam no plano isolado da sociedade civil), os direitos do homem
enquanto tal dos direitos do homem enquanto cidadão, ou seja, na
sua relação com os outros homens159•
Verdadeiros direitos fundamentais seriam, assim, os direitos do
homem individual, isolado e abstracto, tais como a liberdade de
consciência, a liberdade pessoal, a inviolabilidade de domicílio, o
sigilo de correspondência, a propriedade privada'('°.
Por outro lado, os direitos que envolviam o homem na sua
relação com os outros homens - tais como a liberdade de manifesta-
ção do pensamento, a liberdade de culto, a liberdade de reunião e de
associação - só podiam ser considerados direitos fundamentais en-
quanto permanecessem apolíticos, não extravasando a área do social
puro; se tal não acontecesse, se o exercício dos direitos resultasse em
associações ou lutas de classes entre si, então invadir-se-ia o domínio
do político, com o que tais direitos perderiam a característica de
direitos fundamentais; seria este o caso típico da liberdade sindical e
do direito à greve que, destruindo os pressupostos do livre encontro
das esferas de autonomia individual, deixariam de se situar na área
de liberdade garantida pelo Estado de Direito liberal, antes sendo
considerados como formas de sedição, de promoção de interesses
mesquinhos, egoísticos, opressores da verdadeira liberdade 161 •
Resulta óbvio que no âmago desta concepção se situam os inte-
resses de classe da burguesia, não obstante esta apresentar as suas

1s9 Cfr., KARL MARX, La question juive, trad., Paris, 1971 , págs. 103 e segs.; GOMES
CANOTILHO, Direito Co11stitucio11al, pág. 428.
160 Ou seja, e segundo K. MARX (ibid.), «nenhum dos direitos ditos do homem
ultrapassa o homem egoís1a, o homem tal como é enquanto membro da sociedade burguesa,
isco é, um indivíduo virndo sobre si próprio, sobre o seu interesse e prazer privados e
separado da comunidade»; sobre o sentido da critica marxista dos «direitos do homem» cfr.,
F. GENTILE, «I diritti dell'uomo nella critica marxiana dell'emancipazione política», i11 RIFD,
1981, n.0 4, págs. 571 e scgs..
161 Cfr., CARi. SCHMITT Teoria .. ., cit., pág. 170 e seg.; VIEIRA DE ANDRADE, Os

Direitos..., cit. pág. 44.


-
80 Comributo para uma Teoria do Estado de Direito

aspirações como reivindicações de toda a sociedade face ao Estado


(e, na medida em que se traduziam em protecção efectiva contra as
arbitrariedades do Estado, os direitos fundamentais eram, potencial-
mente, uma conquista de toda a sociedade). Sustentada numa discutí-
vel interpretação de L OCKE 162 - que neste sentido bem poderia ser
considerado «o pai do Estado de Direito liberal» 163 -, a concepção
dos direitos fundamentais inspirada no individualismo possessivo é
essencialmente marcada pela defesa da propriedade como critério
que condicionava a interpretação, valoração, alargamento ou atribui-
ção dos restantes direitos, num contexto em que a constituição da
sociedade política visa, como diz LocKE, «a mútua conservação das
vidas, liberdades e bens, que eu denomino, genericamente, de pro-
priedade» 164 •
No Estado de Direito liberal, sob a égide da burguesia, mais que
conteúdo de um direito fundamental, a propriedade é, como diz
VIEIRA DE ANDRADE, «uma condição objectiva (uma garantia) de liber-
dade - constituindo e distribuindo o. poder de escolha (de compra) -
e, simultaneamente, de felicidade» 165 • É, com efeito, a necessidade
de defesa da propriedade burguesa que justifica os entorses aos direi-
tos fundamentais, especialmente na área onde a concepção liberal é
mais acentuadamente redutora, ou seja, na exclusão dos direitos polí-
ticos ao quarto estado e, desde logo, do direito de voto. A teorização
do sufrágio restrito pode ser mais ou menos elaborada, mas os inte-
resses de classe que lhe estão subjacentes não deixam de se revelar
nos argumentos dos seus defensores, sobretudo quando se é tão
frontal (ou tão cínico, segundo GALVANO DELLA VOLPE) como BENJAMIN
CONSTANT:

«[ ...] só a propriedade toma os homens capazes do exercício dos


direitos políticos [... ] o fim necessário dos não proprietários é chegar
à propriedade (... ] esses direitos (os direitos políticos) nas mãos da
massa servirão infalivelmente para invadir a propriedade. E isso será

161
Cfr., a demonstração cm C. 13. MACPHERSON, La Teoria Politica ... , cit., págs. 169
e segs..
3
'" CARL ScHMm·, «Introdução» a Legalidad y Legitimidad, cit., pág. XIX.
164
LocK~. no segundo dos Two Treatises of Govemmem, § 123.
16
s Os Direitos Fundamemais... , cit., pág. 44.
A «Adjectivação» liberal do Estado de Direito 81

feito por essa via irregular, em vez da via natural, a do trabalho; para
eles será uma fonte de corrupção, para o Estado uma fonte de desor-
dens» 166 •

2.1.1. A teoria dos «direitos subjectivos públicos»

Em estreita conexão com a caracterização liberal dos direitos


fundamentais e a construção jurídica do Estado desenvolveu-se, sobre-
tudo na doutrina alemã da segunda metade do século XIX167 , a teoria
dos chamados direitos subjectivos públicos 168•
Partindo da concepção do Estado como pessoa jurídica que
mantém com os particulares relações de carácter jurídico (mesmo
quando o Estado e os entes públicos surgem investidos de soberania),

166
BENJAMIN CoNSTANT, Principes de Po/irique, cit., págs. 106 e 108 = a Cours de
Politique Constitutio11nel/e, cit., t. I, pág. 252 e seg.. ·
167
Porém, o facto de a teoria dos direitos subjectivos públicos, sob esta designação,
ter encontrado os desenvolvimentos decisivos na Alemanha, não faz dela um exclusivo da
doutrina germânica, desde logo porque, na sua origem. ela é indissociável do movimento
liberal no seu conjunto e, particularmente, da Revolução Francesa. Cfr., neste sentido, V. E.
ORLANDO, «Prefácio» a JELLINEK, Sistema dei Diritti Pubblici S11bbietrivi, cit., pág. VI e seg.;
FRANCO PtERANDREJ, / Diritti Pubblici Subbiettivi..., cit., pág. 69 e seg.; Euo CASETTA, «Diritti
Pubblici Subbiettivi», in Encic/opedia dei Diritto, XII, 1964, pág. 792 e PAUL DuEZ,
«Esquisse d'une définition réaliste des droils publics individueis» in Mélanges R. Carré de
Ma/berg, Paris, 1933, págs. 116 e segs..
Entre nós, ROCHA SARAIVA (Construçiio Jurídica do Estado, II, págs. 75 e segs.) faz
assentar a origem germânica desta teoria na sua ínlima ligação à teoria - também com
origem na Alemanha - da personalidade jurídica do Estado, já que, «provindo os direitos
públicos subjectivos das relações entre o Estado e as várias pessoas que no seio do Estado
vivem, é óbvio que uma teoria verdadeiramente científica sobre tais direitos só podia aparecer
depois de claramente afirmada a personalidade jurídica do Estado» (op. cit., pág. 75); porém,
o próprio ROCHA SARAIVA, se bem que criticando a «falta de precisão e rigor jurídico» da
doutrina individualista francesa dos di reitos nawrais, não deixa de sustentar, contra a teoria
de matriz germânica da au10Iimitação do Estado, a «submissão do Estado a uma regra
anterior e superior de direito» (op. cit., pág. 85).
168
Os dois conceitos - direitos fundamentais e direitos subjectivos públicos - não
são, no entanto, coincidentes. Cfr., neste sentido, JoRGE MIRANDA (Aditamemos de Direito
Constitucional, Lisboa, 1982, págs. 144 e segs.), que opera a distinção baseando-se, sobre-
tudo, no facto de os direitos subjectivos públicos abrangerem, para além dos direitos funda-
mentais, «direitos que relevam do Direito administrativo, do Direito fiscal ou do Direito
processual» e incluirem «tanto direitos dos particulares como direitos de entidades públicas».
-
82 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

esta doutrina considera o Estado e os particulares - igualmente consi-


derados como sujeitos de direitos - titulares de posições subj ectivas
que, na medida em que são tuteladas pelo direito, se revelam como
direitos subjectivos (de natureza pública) e correspondentes deveres 169•
Através desta construção era possível conciliar e colocar sob a
égide do Direito quer a liberdade dos particulares quer a soberania
do Estado e daí a importância que assume esta teoria, independente-
mente das concepções particulares em que assentam cada um daqueles
dois vectores. Com efeito, a teoria dos direitos subjectivos públicos é
compatível tanto com a fundamentação j usnaturalista - de matriz
francesa - dos direitos fundamentais, concebidos como limites exte-
riores e originários à soberania do Estado, como com a construção -
de matriz germânica - que vê no Estado a fonte, condição e medida
dos direitos concedidos aos particulares, num processo de autolimita-
ção da soberania estadual 170•
Porém, durante muito tempo, mesmo quando na prática os direi-
tos individuais encontravam salvaguarda jurisdicional contra as inva-
sões da Administração, a doutrina germânica - marcada pelo peso do
autoritarismo e o primado da estadualidade - tardava em reconhecer
a possibilidade teórica da existência de direitos subjectivos públicos 171 •
É GERB ER ( Über offentliche Rechte, 1852, e Grundziige eines
System des deutschen Staatsrechts, 1865) que, pela primeira vez

169
Contestando frontalmente a qualificação como direitos das posições do Estado,
bem como o seu pressuposto - a consideração do Estado como pessoa jurídica - , cfr., H.
BERTHÉLEMY, no seu Prefácio ao Droit Ad111i11istrat(f Al/ema11d, cit., de Orro MAYER, págs.
VIII e segs ..
Também Orro MAYER (ibid., pág. 140 e seg.) considera que só impropriamente se
pode falar em «direitos do Estado», pois «esses pretensos direitos [...] são apenas manifes-
tações do seu poder pré-existente[... ]. O que existe aí é algo de diferente de um verdadeiro
direito. L •Éwt n 'a pas de droits parce q11 'il a 111ie11x».
17
° Cfr., Euo CASEITA, op. cit.. pág. 792 e V. E. ORLANDO, op. cit., pág. VII e seg..
Este último Autor salienta a importância da obra de JELLINEK neste processo de
compatibilização, na medida em que representava o trait d'u11io11 entre as tendências políticas e
científicas latinas baseadas na «teoria da liberdade» e as germânicas (onde os interesses do
autoritarismo prnssiano conduziam frequentemente à negação ou subvalorização dos direi-
tos subjectivos públicos).
171
Cfr., SANTI ROMANO, «La Teoria dei Diritti Pubblici Subbiettivi», i11 ORLANDO,
Primo Trattato ... , cit., págs. 1 17 e segs. e FRANCO PIERANDREI, op. cit., pág. 72 e seg..
'
A «Adjectivação» Uberal do Estado de Direito 83

- embora de forma obscura e contraditória 172 -, sustenta a existência


dos direitos subjectivos públicos no quadro de uma perspectiva global
orientada contra o pretenso carácter natural e originário dos direitos
fundamentais; para ÜERBER, de acordo com a teoria voluntarista da
natureza do direito subjectivo que propugnava - cujo reflexo no
domínio público se traduzia, perante um conflito de vontades entre
indivíduo e Estado, em dar prevalência à vontade do Estado soberano -,
os direitos dos cidadãos são essencialmente efeitos reflexos do direito
soberano do Estado, nascendo e desenvolvendo-se à medida da von-
tade deste 173•
O expoente da teoria dos direitos subjectivos públicos foi, toda-
via, JELLINEK (System der subjektiven offentliche Rechte, 1892), que
fez desta construção um elemento indissociável da sua teoria da
autolimitação do Estado e do Estado de Direito.
Para JELLINEK, nota distintiva do Estado moderno é o reconheci-
mento dos seus súbditos como pessoas, como sujeitos de direito
capazes de «reclamar eficazmente a tutela jurídica do Estado» 174;
assim, ao contrário dos tipos históricos de Estado que o precederam,
o Estado moderno exerce a sua soberania sobre homens livres aos
quais reconheceu, através de um processo de autolimitação 175, uma
personalidade jurídica. Pelo simples facto de pertencer ao Estado, o
indivíduo situa-se, nas relações que com aquele estabelece, em con-
dições juridicamente relevantes. Ora, «as pretensões jurídicas que
resultam de tais condições são o que se designa por direitos subjecti-
vos públicos. Os direitos subjectivos públicos consistem, pois, [... ]

m É possível, apesar da direcção geral referida no texto, encontrar nas obras de


GERBER afirmações opostas quanto à admissibilidade dos direitos subjectivos públicos (cfr.,
por todos, SANTI RoMANO op. cit., págs.l 14 e segs.); nesta ambiguidade, tem sido possível
considerar G ERBl.:R como o fundador da teoria dos direitos públicos subjectivos (cfr., SANn
ROMANO, ORLANDO, E. CASE1TA, ROCHA SARAIVA) ou, pelo contrário, considerá-lo como
primeira expressão da con:cnte doutrinal que minimiza ou nega a sua existência (cfr., neste
último sentido, JELUNEK, Sistema dei Diritti Pubblici Sttbbiettivi, pág. 6, ou F. PIERANDREI,
op. cit., pág. 76). ..
173 GERBER, Diritti Pubblici, Roma, 1936, (trad. italiana de Uber offe111/iche Rechte,

Tübingen, J852), especialmente, pág. 38 e seg. e págs. 57 e segs..


174
JEWNEK, Sistema..., cit., págs. 92 e segs..
175 Cfr., infra, IY. I., maxime nota 247.
............

. .1

84 Contribwo para uma Teoria do Estado de Direito

em pretensões jurídicas («Anspriiche») que resultam directamente de


condições jurídicas ( «Zustiinde» )» 176•
A classificação dos direitos subjectivos públicos proposta por
JELLINEK decorre, então, dos diferentes estádios da posição do indiví-
duo relativamente ao Estado: status passivo, status subjectionis (está-
dio de subordinação, de ausência de autodeterminação individual e,
logo, de personalidade); status negativo, status libertatis (estádio em
que o indivíduo é titular de uma esfera de liberdade individual, à
margem da intervenção do Estado); status positivo, status civitatis
(estádio em que o indivíduo tem direito a prestações a fornecer pelo
Estado) e status activo, status activae civitatis (estádio em que o
indivíduo é já sujeito do poder político, tem direito a participar no
exercício do poder) 177 •

176
JELUNEK, Sistema .... cit., pág. 96.
Para a sua construção dos direitos subjcctivos públicos, JELL!NEK parte da concepção
de direito subjectivo como «poder de querer que o homem tem, reconhecido e protegido
pelo ordenamento jurídico, enquanto se refere a um bem ou a um interesse» (ibid., pág. 43),
constituindo o «poder de querer» e o «bem ou interesse», respectivamente, o elemento
formal e o elemento material do direito subjectivo.
Segundo JEL LINEK, a distinção entre o direito subjectivo público e o privado revela-se
especificamente em cada um daqueles dois planos - formal e material (ibid., págs. 46 e segs.
e 50 e segs.). Assim, no domínio do elemento formal. o direito subjectivo privado é
resultado do reconhecimento jurídico de faculdades e capacidades já existentes, física e
naturalmente, na esfer.i do indivíduo enquanto homem e refere-se a rdações entre sujeitos
colocados em posições jurídicas iguais; por sua vez, o direito subjeclivo público, consis-
tindo «exclusivamente na capacidade de pôr em movimento nom1as jurídicas no interesse
individual» (ibid., pág. 56), traduz-se num «posse» dirigido a obter um reconhecimento ou
uma protecção jurídica e funda-se exclusivamente, não em faculdades pré-existentes, mas
numa exclusiva concessão do ordenamento jurídico positivo. Nesta medida, o direito sub-
jectivo público refere-se às relações entre o Estado (entidade que criá o direito) e as entida-
des investidas de poder público e o indivíduo.
No domínio do elemento material, ainda que a distinção não se possa fazer tão
rigorosamente - pois todo o direito individual (público ou privado) «deve necessariamente
ter por conteúdo um interesse individual» -. considera JELUNEK que o interesse subjacente
ao direito subjectivo público é reconhecido pelo ordenamento jurídico essencialmente por
razões de interesse geral, reílectinclo o «indivíduo, não como personalidade isolada, mas
como membro da comunidade. Portanto, no que se refere ao elemento material, o direito
subjectivo público é o que pertence ao indivíduo em virtude da sua qualidade de membro do
Estado» (ibid., pág. 58).
Para uma critica destes critérios de distinção cfr., SANTI RoMANo, /oc. cit., págs. 1T/ e segs..
177 Cfr., J ELLINEK Sistema... , cit., págs. 96 e segs ..
A «Adjectivaçcio» liberal do Estado de Direito 85

A estes quatro diferentes estádios corresponderiam, então, res-


pectivamente, os direitos públicos do Estado e os direitos de liberda-
de, cívicos e políticos dos súbditos, escalonados sucessivamente num
processo de engrandecimento da vontade do indivíduo que, do dever
de prestações ao Estado, passa ao direito a prestações do Estado e,
finalmente, às prestações por conta do Estad0 11s.179.
Por último, a teoria dos direitos subjectivos públicos é indisso-
ciável quer da questão da tutela jurisdicional dos direitos (cfr. infra,
III.2.3.3.) quer da distinção entre direitos subjectivos e «direitos re-
flexos» ou «interesses legítimos». Pois, se o direito subjectivo público
é o último e mais sólido grau de subjectivação que o ordenamento
jurídico reconhece na esfera do indivíduo, não deixam, no entanto,
de se manifestar outros graus de protecção de interesses nas relações
dos particulares com o Estado e os entes públicos.
Como diz J ELLINEK 180, pode muito bem acontecer que «quando as
normas jurídicas de direito público prescrevem uma determinada
acção ou omissão aos órgãos do Estado no interesse geral [ .. .] o
resultado aproveite a determinados indivíduos, sem que o ordena-
mento jurídico [... ] se tivesse proposto alargar a esfera jurídica pró-
pria das pessoas. Em tal caso poder-se-á falar de um efeito reflexo do
direito objectivo». Isto significa que o indivíduo pode retirar certas
vantagens - juridicamente tuteladas - das imposições que o
ordenamento j urídico estabelece aos órgãos do Estado, ainda que

' 111Jbid., respectivamente, págs. 213 e segs., 105 e segs., 127 e segs. e 151 segs..
179 Outras classificações dos di reitos subjectivos públicos foram, na altura, propostas
(cfr., a síntese de SANTI ROMANO, op. cit., págs. 133 e segs.). Assim, para LABAND haveria
direitos do Estado (à obediência e à fidelidade dos súbditos) e direitos dos cidadãos (a obter
a protecção interna, a protecção externa e a participação na vida constitucional do Estado);
HAUR1ou considerava três espécies de direitos: direitos políticos ou cívicos (através dos
quais o cidadão é admitido a participar na constituição e fundamento do Estado), direitos de
liberdade e direitos a serviços do Es1odo (o mais importante dos quais seiia o direito à
assistência pública); OITo MAYER que caracteri1.a o direito público individual (subjectivo)
como «um poder jurídico sobre o exercício do poder público» (op. ci1.. pág. 140?, con~es~a o
«status Jibertatis» de J ELLINEK enquanto esfera susccptívcl ele gerar verdacle1ros d1re1tos
subjcctivos, considerando apenas os direitos próptios dos su1111s pusitivu e aclivo; po_r sua
vez, SANTt ROMANO (op. cil., págs. 143 e segs., maxime, 209 e segs.) acrescenta à classifica-
ção de JELLtNEK os chamados direitos públicos patrimoniais, como o direito de expropriação
por utilidade pública ou os direitos sobre coisas do domínio público.
"'º JELLINEK, Sistema ..., cit., pág. 79.
.... ..-----· - ..

86 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

não lhe seja atribuído um correspondente direito subjectivo, pelo que


a esfera jurídica individual não resulta ampliada'ª' .

2.2. A divisão de poderes


\
Tal conto referimos, o sentido da divisão de poderes enquanto
1• elemento do Estado de Direito liberal é inseparável do seu papel de
i, garantia dos direitos fundamentais do homem. Historicamente é possível
l
encontrar manifestações do princípio da divisão de poderes remon-
tando a ARISTÓTELES, PLATÃO, às magistraturas de Roma ou ao Estado
estamental 182; porém, só no processo de luta do constitucionalismo
liberal contra o Estado absoluto é que surge e triunfa a ideia da
divisão de poderes como especialização jurídico-funcional e, sobre-
tudo, ela se legitima em função da garantia da liberdade individual 183,
pelo que, como diz HELLER, constituiria uma radical incompreensão
do Estado de Direito constitucional considerar as duas instituições
- direitos fundamentais e divisão de poderes - à margem de uma
relação de fim-meio 18\
Esta incompreensão viria, contudo, a generalizar-se à medida
que ganhava foros de mito a teoria que, erroneamente atribuída a
MoNTESQU1EU 185 , concebia formalisticamente a divisão de poderes
como valor abstracto e ideal de organização do Estado e segundo a
qual deveria existir uma rigorosa separação entre três poderes, reco-
brindo cada um uma função própria: o executivo (rei e ministros), o
legislativo (parlamento) e o judicial (corpo de magistrados).

181
Sobre a distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos e a sua relevância
actual, sobretudo em Itália, onde os tribunais competentes para garantir uns e outros são
diferentes, cfr., Droao FR EITAS oo AMARAL, Direito Administrativo, Lisboa, l 983, Vol. II,
págs. 237 e segs..
un Cfr., REINHOLD Z1rrE1.11,1s, op. cit., págs. 146 e segs. e JORGE MIRANDA, Ciência
Política, Lisboa, 1983, págs. 115 e segs..
183
Cfr., KARL LoEWENSTI,IN, Teoria de la Constit11ci611, pág. 56 e JORGE MIRANDA, ibidem.
1
11-1 HERMANN HEU. ER, Teoria do Estado, pág. 321.
185
Cfr., CIIARL!lS E1SENMANN, «L'Ésprit des !ois et la séparation des pouvoirs». i11
Mé/anges R. Carré de Ma/berg, Paris, l 933, págs. 165 e segs.; Louis ALTHUSSER,
Montesquieu, a Política e a História, trad., 2.ª ed., Lisboa, 1977, págs. 127 e segs.; GARCIA
DE ENTERRIA, Revolución Francesa y Admi11istraci611 Comemporanea, Madrid, 1981.
maxime, págs. 33 e segs..
--
A «Adjectivação» liberal do Estado de Direito 87

Considera MONTESQUIEU que, perante a inevitável tendência para


o titular do poder dele abusar, a liberdade individual resulta protegida
caso o poder não esteja concentrado; para que «le pouvoir arrête le
pouvoir», propunha, então, a distribuição das funções do Estado
pelos vários titulares, não em termos, porém, de uma repartição/
/separação, mas antes de uma colaboração implicada nas «faculté de
statuer» e «faculté d'empêcher» em que decompunha cada um dos
186
poderes (mais precisamente, o poder legislativo e o executivo, já
que o poder judicial era em rigor um poder nulo, pois os juízes eram
tão só «a boca que pronuncia as palavras da lei, os seres inanimados
que não lhe podem moderar nem a força nem O rigoD> 187).
No fundo, o que MONTESQUIEU, fundado numa discutível leitura
da Constituição inglesa 188, pretendia era, como salienta EHRHARDT
SoARES 189 , «assegurar uma forma de Estado equilibrado, uma consti-
tuição mista em que os elementos monárquico, aristocrático e demo-
crático se balanceassem para garantir os direitos adquiridos». Procura-
va-se, assim, refazer o pluralismo da sociedade organizada por estados,
cuja harmonia fora rompida com a concentração de poderes levada a
cabo pelo despotismo esclarecido, embora, diferentemente do que
sucedia na sociedade estamental - onde o pluralismo resultava da

186 «Chamo faculté de swwer o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir aquilo
que foi ordenado por outro. Chamofaculté d'empêcher o direito de tomar nula uma resolu-
ção tomada por qualquer outro» (MONTESQUIEU De L'Ésprit des fois, Livro XI. Cap. VI).
Com base nestas faculdades, não só o poder legislativo e executivo se encontravam
ligados numa comunicação permanente e numa inlluência recíproca, como eram mesmo
obrigados a actuar concertadamente: «o corpo legislativo será composto por duas partes (as
duas câmaras) imbricadas pela faculdade recíproca d'empêcher. Ambas estão ligadas ao
poder executivo, tal como este está vinculado ao legislativo. Estas três forças deveriam
constituir-se num repouso, numa inacção. Mas, como pelo necessário movimento das coisas
são constrangidas a agir, terão de o fazer concertadamente» (ibid.).
1117
lbid.
No entanto, 0 carácter nulo do poder judicial está longe de se traduzir em falta de
relevância deste poder no sistema de divisão de po<leres de MoNTESQUIEU. Como observa
GARCIA DE ENTERRIA (op. cit., págs. 35 e segs.), a independência do poder judicial (reflectida
nos poderes dos «Parlamentos» dominados pela aristocracia) era um momento essencial
numa divisão de poderes orientada para a conservação de uma ord~m _equilibrada, mode-
rada, onde os poderes intermediários - mormente a nobreza - conslltmam a chave regula-
dora de todo o sistema.
iss Cfr., por todos, C!iARl-ES ErsENMANN, op. cit., maxime págs.179 e 184 e seg..
189
Direito Público..., cit., pág. 147.

-
88 Contributo para 11ma Teoria do Estado de Direito

limitação social do poder -, a divisão de poderes de MONTESQUIEU se


apresentasse form almente como uma especialização orgânico-funcio-
nal integrada num processo de limitação j urídica do poder'9º. No
entanto, como procura demonstrar E1sENMANN, também em MONTESQUIEU
a conjugação daqueles elementos monárquico, aristocrático e demo-
crático correspondia essencialmente à tentativa de forjar um equilí-
brio entre as forças sociais (as três «puissances» rei, nobreza e povo)
que sustentam os poderes legislativo e executivo.
Assim, levantada a cortina constituída pelos aspectos técnico-
-organizatórios, se revela que a teoria da divisão de poderes do Estado,
mais que especialização jurídico-funcional, «é, politicamente, uma
form a de equilibrar (...) forças da sociedade ·que pretendem alcançar
um monopólio sobre ele>> 191 •
O verdadeiro problema será, então, o de saber quais os inte-
resses subjacentes à divisão de poderes concretizada no Estado de
Direito liberal, ou seja, determinar a quem aproveita politicamente o
equilíbrio encontrado entre as três «puissances».
Neste sentido, será, pelo menos, prudente considerar os dois
planos a que nos temos reportado: a teoria original de MONTESQUIEU e
a sua aplicação prática. E se, quanto a MONTESQUIEU, se procurou já,
fundadamente, demonstrar que a sua teoria avalizava os interesses de
uma aristocracia (mal) colocada entre a concentração do poder real e
a ascensão da ordem burguesa192, ao nosso tema interessará essencial-

190
Assim correspondia MoNTESQUIIW às exigências de decomposição e análise própria.~
do racionalismo da sua época, ao mesmo tempo que reatava as tradições da ideia de equilí-
brio que dominava o pensamento europeu desde o século XVI. Cfr., JoRcE MIRANDA,
Ciência Política, pág. 127; R. ZIPPELIUS, op. cit., pág. 147; CARL SCHMilT, Teoria de la
Constituci611, pág. 187.
191
EHRARDT SOARES, Direito Público.... cit., pág. 149.
192
Cfr., ALTfiUSSER, op. cit.. págs.135 e segs.; N,cos PouLANJ'ZAS Poder Político ..., cit.,
II, págs. 146 e segs.; MICHEL M1A1t.LE, L'État dtt Droit, Grenoble, 1978, págs. 212 e segs..
Seguindo a demonstração de ALTIIUSSER. conclui este últi mo Autor: «Considerando
ponto por ponto os poderes reconhecidos à nobreza, apercebemo-nos que, seja pelafaculré
de sraruer seja pclafaculté d 'e111pêc/1er. a nobreza pode decidir ou, pelo contrário, bloquear
as decisões tomadas à sua margem. Intermediária entre o rei e o povo, serve de écra11 a cada
um deles: sob pretexto de defender o povo do rei rirano controla o poder real; relativamente
ao reJ, assegura-lhe que nada tem a recear do povo, nomeadamente através do direito de veJO
das propostas da Câmara baixa. Situada, pois, no ponto central das instituições, mas num
ponto central oculto pelo artifício da separação e do equilíbrio dos poderes, a nobreza
domina na realidade o sistema constitucional» (op. cit., pág. 219).

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-
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LU°: ~
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 89

mente apreender o sentido da realização prática do modelo da divi-


são dos poderes pelo Estado liberal do século XIX.
Nesta tentativa, parece-nos imprescindível centrar a atenção
nesses outros dois princípios que virão patentear a verdadeira natureza
da divisão de poderes como técnica de organização do Estado visan-
do a garantia das liberdades individuais, mas servindo politicamente
uma burgues ia em luta pela hegemonia no aparelho de Estado;
referimo-nos, concretamente, ao «império da lei» e ao «princípio da
legalidade», que exprimem, no plano jurídico, as duas fases dessa
luta: uma fase de transição, em que a atribuição do poder legislativo
ao Parlamento o constitui na fortaleza que permite à burguesia o
desenvolvimento da «guerra de posições» contra o Executivo - «ex-
pressão autêntica ou só fantasma do Estado do Príncipe e da burocra-
cia» 193 - e uma fase decisiva em que, concomitantemente ou não à
responsabilidade política dos ministros perante o Parlamento, ela pro-
cura assegurar o controlo geral da actividade administrativa através
do princípio da legalidade.
Desta forma, como veremos, a divisão de poderes do Estado de
Direito li beral não reflecte um equilíbrio abstracto e neutral, antes
traduzindo o predomínio do «poder supremo» (no sentido de LocKE,
também aqui «pai do Estado de Direito liberal» 194), ou seja, do corpo
legislativo e, sobretudo, da força social que progressivamente o
hegemoniza - a burguesia 195•

2.2.1. O «império da lei»

Considerámos como pressuposto teórico do Estado liberal a


ideia de separação Estado-sociedade, segundo a qual a não interven-
ção do Estado tinha como contrapartida a auto-regulação da esfera

193 EHRHARDT SOARES, Direito Público ... , cit., pág. 149.


19• Cfr., L OCKE, no segundo dos Two Tremises of Govemment. maxime caps. XI,
XII e XIII.
195 Como diz H ERMANN HELLER (Europa y el Fascismo, trad., Madrid, 1931, pág.

104), «é a proeminência do poder legislativo sobre o executivo e o judicial, a submissão de


todos os órgãos do Estado às leis, que, no sistema do Estado de Direito, confere à divisão
de poderes e aos direitos fundamentais o seu verdadeiro sentido».
90 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

social, baseada no entendimento/concorrência das autonomias indivi-


duais, regulando juridicamente os seus interesses - qualquer que
fosse a sua natureza - através da figura do contrato. Porém, por
resolver estava ainda a outra ineliminável dimensão do Direito, ou
seja, a da heterónoma sanção (reconhecimento/protecção), por parte
do Estado, daquela espontânea e paritária composição de interesses196,
sendo certo que, no quadro político e filosófico da época, ela devia,
não só corresponder à natureza de uma soberania que se pretendia
imanente, como ser dotada de uma racionalidade intrínseca que ex-
cluísse qualquer possibilidade de arbítrio ou de não previsibilidade197•
Ou seja: a legalidade do Estado de Direito liberal teria de superar
a velha dicotomia entre lei entendida como ratio (na linha de
compreensão que remonta a ARISTÓTELES e S. TOMÁS), segundo a qual,
como diz CASTANHEIRA NEVES, as leis positivas não teriam outra função
nem outro fundamento de validade que não fosse o determinar do
«justo natural>} («a voluntas política seria apenas uma função
determinativa que tinha na ratio material o seu fundamento»), e lei
entendida como expressão incondicionada da vontade política do
soberano (que encontra plena tradução no leviathan de H OBBES -
«auctoritas noq veritas facit legem») 198•
Seria RoussEAU a unificar estas exigências numa síntese que,
posteriormente completada por KANT, resultaria no entendimento
iluminista da lei recebido pe la Revolução Francesa e que viria a
constituir as bases teóricas do ,,império da lei» e da específica divi-
são de poderes consagrados pelo Estado de Direito liberal 199•
De facto, se em RousSEAU a lei era expressão do voluntarismo
político que resulta da volonté générale, esta era concebida como
uma universalidade racional200, ao mesmo tempo que a generalidade

ICJ6 Cfr., sobre o semido desta dupla manifestação do Direito, ORLANDO DE CARVALHO,
A teoria geral da relaçüo jurídica, Coimbra, 1981, págs. 17 e segs..
197
Nestas duas exigências distinguia CARL Sc11M1rr (cfr., Teoria de la Co11stit11ció11,
págs. 149 e segs.. 111,uime pág. 156), respectivamente, o sentido «democrático-político da
lei» e o sentido de «lei próprio do Estado de Direito».
198
Cfr., CASTANHEIRA NEVES, A Revoluçüo e o Direito, Lisboa, 1976, págs. 222 e segs..
199
Cfr., CASTANHEIRA NEVES, ibid., págs. 224 e segs. e O instituto dos «assentos» ....
cit., págs. 538 e segs., que seguimos de perto.
zoo «Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum
a pessoa e os bens de cada associado e em que cada um, ao unir-se a todos. só a si mesmo
obe~eça e continue t~o livre como antes. Tal é o problema fundamental que no C<>ntrat<>
Soc,al encontra soluçao» (RoussEAu, D11 Contrat Social, Livro J, Cap. VI).
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A «Adjectivação» liberal do Estado de Direito 91

e ~ ~ªb~tracção própria~ ~a lei por ela aprovada correspondiam às


ex1genc1as de forma propnas da razão iluminista.
Assim, enquanto a participação ioual de cada um na volonté
générale resolvia o problema da iguaidade, o problema da justiça
encontrava-se eliminado à partida, pois, sendo cada um legislador,
ninguém seria injusto para si pr6prio2(H; por último, obedecendo cada
um «apenas a uma vontade geral e racional, ninguém estaria depen-
dente de ninguém ou sujeito ao arbítrio de quem quer que fosse. Daí
que a liberdade estivesse em obedecer às leis e não aos homens, que
a democracia e a liberdade se identificassem com a exclusiva sobera-
nia da lei» 202 .
O primado da volonté générale resolvia-se, desta forma, no pri-
mado da lei - por definição, lei geral203 -, com o que pode CASTANHEIRA
NEVES concluir que vontade geral e lei são apenas duas faces da
mesma realidade, a face política e a face jurídica do povo soberano;
na lei - entendida conto estatuição geral da vontade geral - se resol-
via o problema político (o problema da «conciliação entre liberdade
e autoridade») ou, mais significativamente, o problema político resol-
via-se, afinal, em termos jurídicos. Na coincidência entre vontade
geral e lei residia «a chave do mistério - o mistério da coincidência,
da identificação no fundo de todo este pensamento, entre a vontade e
a razão. Se o impulso vem da vontade, a realização está na razão»20l .

201 «Partindo desta ideia, imediatamente se vê que não é preciso perguntar a quem
compete a elaboração das leis, dado que são actos da vontade geral; nem se o príncipe est,1
acima das leis, visto que é membro do Estado; ou se a lei pode ser injusta, porque ninguém
é injusto para consigo mesmo; ou como se pode ser livre e estar submetido às leis, dado que
estas são expressões da nossa vontade» (Du Co11tra1 Social, Livro 11, Cap. VI).
202 CASTANHEIRA N 1:v Es, A Revolução e o Direito, pág. 224 e seg ..

Exemplar na concretização deste pensamento é, entre nós, a Constituição de 1822 que


no seu art. 2.º proclama: «A liberdade consiste ern não serem obrigados a fazer o que a lei
não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A 1.:u11servação desta liberdade
depende da cxacta observância das leis». . ,
21,J «[ ...) a matéria sobre a qual estatui é geral como a vontade que estatut. E a este acto
que eu chamo uma lei. Quando digo que a finalidade das leis é sempre geral, entendo que a
lei considera os súbditos em abstracção nos corpos e nas acções, nunca um homem como
indivíduo, nem uma acção particular[... ] toda a função que se refira a um objecto individual
não é da alçada do poder legislativo [...] o que o próprio soberano d~t~rmina quanto a um
objecto particular também não é uma lei, mas um decreto» (RoussEAu, i/ml.).
20! CASTANHEIRA N EVES, O instituto dos «assentos» ..., cir., pág. 544 e segs ..
92 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

Nesta concepção de lei, entendida não como comando configu-


rador, mas como quadro formal de garantia das liberdades e da segu-
rança da propriedade, o Estado de Direito liberal realizava-se como
Estado de razão, como reino de leis, onde a cooperação da represen-
tação popular garantia a realização de uma justiça imanente ao livre
encontro das autonomias individuais e o carácter geral e abstracto
das leis assegurava a segurança e a previsibilidade requeridas pela
auto-regulação do mercado.
Neste sentido, o conceito político de lei não se distingue do
conceito de lei próprio do Estado de Direito, pois se a generalidade
(com as características inerentes) é a forma «constitutiva da lei»205, a
vontade racional do povo soberano expressa na assembleia legisla-
tiva é a fonte exclusiva da sua imperatividade. Consequentemente, o
«império da lei» traduz-se, a nível político, na soberania do poder
legislativo, pois a vontade geral só é soberana quando actua por via
geral e abstracta, ou seja, no seu momento legislativo; assim, de entre
os órgãos constitucionais - e das forças sociais que os hegemonizam -
será soberano quem detiver a função legislativa206 •
A identificação do poder com a lei transformava, então, a
assembleia parlamentar - que uma particular e interessada concepção
de representação política, marcada pelo sufrágio censitário, o mandato
representativo e a autonomia dos representantes 2º7 erigia em órgão
da vontade geral - na placa giratória que vai permitir à burguesia
assegurar o controlo efectivo da vida política e do aparelho de Estado,
deslocando em favor dos homens burgueses uma divisão de poderes
que era suposta excluir todo o domínio dos homens. Tal como a
separação Estado/sociedade e a função racional das leis gerais e
abstractas encobriam a possibilidade de «desiguais poderes sociais»
na medida em que só se propunham ser instrumento do livre e igual
desenvolvimento dos indivíduos2ºR, o «império da lei» encobria a

205
lbid., pág. 563.
206
Cfr., JOSÉ CARLOS MOREIRA, «O princípio da legalidade na Administração». i11
BFDC, 1949, vol. XX.V, pág. 391.
'1il1 Cfr., JoRGE MIRANDA,Ciência Política, págs. 75 e segs..
:l.08 Cfr., GoMr.s CANOTILHO, Constituiçiio Dirigente e Vincu/aç<io do Legislador.
Coimbra, 1982, pág. 42.
A «Adjectivação» Liberal do Estado de Direito 93

natureza de classe da específica divisão de poderes no «Estado


legislativo parlamentar»209.
P~d~r:mos, pois, concluir, com EHRHARDT SOARES, que através de
uma d1v1sao de poderes globalmente condicionada pelo reconheci-
mento do «império da lei» se conseguiu:
«instituir um sistema que legislativamente exprime os interesses
da classe burguesa; apresentá-lo como um instrumento que não pre-
tende preocupar-se com interesses particulares, nem mesmo com a
sua soma, mas somente com a descoberta do direito justo; furtar a
sociedade a todo o domínio, porque o «domínio da lei» não é de
homens, mas da ordem natural; e finalmente fornecer à burguesia a
satisfação do seu desejo de certeza ou daquela garantia de
calculabilidade que M AX WEBER apontava como sentimento constante
em todas as burguesias»21 º.

2.2.2. O princípio da legalidade

O Estado legislativo fundado no «império da lei» pressupõe,


não só a clara distinção entre a lei e a sua execução concreta ou
aplicação particular 211 , bem como o carácter soberano da função
legislativa, traduzido quer na subordinação do executivo quer na
vinculação do poder judicial aos comandos da lei.

209 «Por Estado legislativo entende-se aqui um determinado tipo de comunidade polí-
tica, cuja pcculariedade consiste em que vê a expressão suprema e decisiva da vontade
comum na proclamação de uma espécie qualificada de normas que pretendem ser Direito e
às quais, consequentemente, são reduzíveis todas as outras funções, competências e esferas
de actividade do domínio público[ ...]. Neste Estado imperam as leis e não os homens ou as
autoridades. Mais exactamentc: as leis não imperam, limitam-se a vigorar como normas. Já
não há poder soberano ou mero poder. Quem exerce um e outro actua na base de uma lei
ou em nome da lei. Limita-se a fazer valer na forma competente uma norma em vigoo>
(CARL SCHMIIT, legalidad y legitimidad, pág. 4 e seg.).
210 Direito Público ... , cit., pág. 57,
211 Da ideia de separação Estado/sociedade resulta que o legislador se limita a estabe-

lecer nom1as posteriormente aplicadas pelas autoridades administrativas; assim, enquanto a


actividade nom1ativa «como função da ratio» compete à representação popular, o «acto»,
«como função da vontade dirigida a um determinado objectivo», é remetido para a Adminis-
tração (cfr., ERNST FoRSTHOFF, Stato di Diri110 i11 tra11sfor111azione, pág. 103; Orro MAYER,
Droit Administratif Allemand, t. I, págs. 64 e segs., maxime págs. 74 e segs.; GARCIA DE
ENTERRIA, Revoluci611 Francesa .... cit., pág. 16 e seg.).
..
f '
' '
94 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

De facto, no entendimento específico que lhe foi atribuído pelo


Estado de Direito liberal, a independência judicial significava essen-
cialmente independência orgânica e ideológica do juiz relativamente
às pressões e vontade dos homens, o que só se garantia mediante a
exclusiva submissão do poder judicial ao domínio das leis; neste
plano, a divisão de poderes traduzia-se concretamente na estrita su-
bordinação do juiz aos ditames da lei emitida pelo Parlamento, como
forma de garantir a sua independência relativamente às directivas ou
pressões exercidas à margem da representação nacional, nomeada-
mente às oriundas do governo monárquico; independência judicial
significa aqui «independência para a exclusiva dependência da lei»212•
Porém, é no plano específico da relação entre Parlamento e
Executivo que se centram os esforços do Estado liberal de Direito no
sentido de excluir o arbitrário e garantir a protecção dos direitos
individuais. E, dado que se atribuía exclusivamente à representação
nacional o poder de limitar ou garantir estes direitos através da forma
de lei, o essencial da luta contra o arbitrário no domínio das relações
entre os «poderes» traduzia-se no objectivo de subordinar a Admi-
nistração à lei. Garantido o respeito da lei por parte da Administração,
assegurada a legalidade de todos os seus actos, estariam automatica-
mente tutelados os direitos dos cidadãos.
Nesta altura, a prossecução dos interesses burgueses não exigia
tanto a subordinação do Executivo ao Parlamento em termos de res-
ponsabilidade política, quanto em termos de submissão da Adminis-
tração à lei. De fac to, e dada a separação Estado/sociedade, à bur-
guesia não interessava tanto controlar a execução de um programa

m Cfr., CASTANHEIRA NEVES, O in.1·titt110 dos «assentos» ... , cit., págs. 103 e 580 e segs ..
Neste sentido, mais impo11an1e que a independência dos juízes era preservar o
legislativo das interferências do judicial, o que explica a relutância cm admitir a fiscalização
judicial da conslitucionalidade das leis (cfr., JORGE MIRANDA, Contributo para 11111a teoria
da inco11stit11cio11a/idade, pág. 79 e scg. e Manual de Direito Constilllciona/, t. II, 2.' ed.,
1983, pág. 318); e ao facto de nos Estados Unidos da América tal não se ter verificado não
será alheio - para além de circunstâncias particulares, como o federalismo - o consenso que.
mesmo no século XIX, ali se produzira cm torno da ideologia liberal (cfr., t,,tAURICE
DuvERGER, lnstit11tio11s Pnlitiques et Droit Co11s1it111io1111e/, Paris, 1980, págs. 351 e segs.),
pelo que o reconhecimento do poder de fiscalização da constitucionalidade das leis aos
tribunais não se traduzia em qualquer pa11ilha social do poder (como se comprovaria a
contrario, no século XX, com a reacção contra o ascenso do «governo dos juízes>>).
-
A «Adjectivaç(io» Liberal do Estado de Direito 95

político (que não existia em termos de configuração da sociedade,


m~ se resumia à .garantia das condições de segurança que permitissem
o hvre desenvolvimento das relações de concorrência entre os parti-
culares), quanto assegurar que os direitos individuais - a liberdade e
a propriedade - não seriam invadidas ou perturbadas por uma activi-
dade arbitrária ou não prevista da Administração (como acontecia no
Estado de Polícia}213 •
Na medida em que os direitos individuais se sustentavam na lei
emanada do Parlamento, a liberdade e propriedade burguesas só
estariam juridicamente protegidas quando também a actividade admi-
nistrativa - eventualmente não hegemonizada pela burguesia - se
encontrasse, nos termos que a seguir explicitaremos, sob reserva e
preferência da lei ou, dito de outra forma, só através do (e no)
princípio da legalidade da Administração se realizava plenamente o
Estado liberal de Direito. O princípio da legalidade da Administração
(corolário do «império da lei») constituir-se-ia, assim, como eixo
decisivo do Estado liberal e da específica divisão de poderes que este
consagrou, o q ue proporcionaria a sua ulterior identificação com o
próprio conceito de Estado de Direito.

m Quando muito, a responsabilidade política (bem como a responsabilidade criminal


que a precede) dos membros do Executivo perante o Parlamento era concebida como meio
auxiliar (ou, numa primeira fase, único) de controlar as eventuais violações da lei por parte
da Administração.
De notar, porém, que a autonomia relativa do Executivo face ao Parlamento na divi-
são de poderes do Estado de Direito liberal - quer no plano da responsabilidade política
quer no desenvolvimento da função administrativa - está estreitamente condicionada pela
natureza da~ relações políticas e institucionais que, no concreto, existam entre os dois
órgãos. Assim, se aquele quadro geral é sobretudo pensado para um sistema de monarquia
limitada - em que o poder executivo tem uma legitimidade monárquica e o Parlamento tem
uma legitimidade democrática - (cfr., FREITAS oo AMARAL, Direiro Admi11isrra1i1·0. vol. li,
págs. 197 e segs.), a sua configuração concreta será naturalmente diferente num sistema em
que o Executivo emana directamente ou se identifica com o Legislativo; cfr., neste sentido, a
imponância que GARCIA DE Et-rrERRIA (op. cir.. págs. 33 e segs.) atribui ao que designa por
dissidência ou heterodoxia da Revolução Francesa face àquele modelo teórico e que se viria
a traduzir no afirmar da autonomia do poder executivo perante os outros poderes (não só
perante O poder j udicial - que abordaremos a seguir-, mas t~mbém perante o leg!slativo -
j
fundamentando neste caso o poder regulamentar do Executivo) e na emergência de um
poder administrativo poderoso e autónomo que, se, por um lado, se legitimava na referida :!
identificação política ou institucional do Executivo com a representação nacional, por outro
era exigida pela gigantesca tarefa de reestruturação social prosseguida pela Revolução.

-
96 Contribwo pnra 11m11 Teoria do Estado de Direito

Ao contrário da margem de liberdade de que dispunha no Estado


de Polícia, a vinculação da Administração à legalidade, ao Direito,
manifesta-se agora em dois vectores: por um lado, a sua competência
funda-se juridicamente, ou seja, nos textos legais emanados do Paria-
mento214 e não apenas nas instruções ou comandos do Príncipe215; por
outro lado, e era este o aspecto mais relevante na primeira fase do
Estado de Direito liberal, os direitos dos particulares - tutelados pela
lei - surgem também como limite externo à actividade da Adntinis-
tração216.
' Numa primeira fase do Estado liberal de Direito pode dizer-se
que a vinculação legal da Administração se traduzia na obrigatorie-
dade de não violar a lei, de actuar dentro dos seus limites, já que ela
possuía preferência face às restantes actividades do Estado (Vorrang
des Gesetzes); ou seja, a supremacia da lei significava tão só - no
que se refere às suas relações com a Administração - que os actos de
grau inferior não podiam ser dirigidos contra legem. Dentro dos limites
da lei a Administração movia-se, ainda, numa esfera considerada
juridicamente irrelevante e, logo, actuava livremente, não necessitando
de fundamento legal217 • Nesta fase, o princípio da legalidade - enten-

:u A defi nição rigorosa <las competências pela lei correspondia. na tem1inologia de


CARL SCHMJTT (cfr., Teoria de la Co11s1i111ciâ11, pág. 142 e seg.), à exigência de
mensurabilidade de todas as manifcstaçõc~ do poder do Estado que decorre do já referido
princípio de distri buição do Estado de Direito li bcr:il, sendo esta mensurabilidade genérica o
pressuposto da sua ~indicabilidad1:.
m Porém, ta l como assinala FoRsntOFl' (cf'r .. Droit Ad111i11i.wm1ifAlle111a11d, pág. 82).
«apesar dos receios do Rei e das cspcranças dos burgueses. a administração não se tomou
estTanha ao monarca pelo fac10 da sua ~ubmiss5o à lei. Exagera-se a imponância da lei na
determinação d:a ac1ivid ade admini Mrativa. Existem poucos casos cm que a execução da lei
se possa fazer sem inslruçõcs a<lministralivas. Os assuntos que exigiam a apreciação <liscti-
cionária da Administração continuavam sob influência do Príncipt:. Pelo contrário, os laços
orgânicos entre a administração e o monarca impediram o Parlamento e os políticos de
exercer uma iníluência <lirecta sobre a administração. Da í a razão da imponância de os
ministros continuarem a não ser responsáveis perante o Parlamento».
21
• Cfr., famllARIJT SOARES, l11teresse Ptíbliro... , cit., págs. 62 e segs., que nqui segui-
mos <lc perto.
217
Cfr., neste scn1ido, Orro B AIIR, Der Rec/11ss1aa1, 1864 (segundo a tradução ita-
liana publicada em 1891 na Biblioteca tli Scienze Po/itiche, vol. VII, sob o título Lo Sww
Git,ridico). págs. 322 e scgs ..
81\ttR distingue a diferente natureza da subordinação à lt:i por parte da uctividadc
jurisdicional e da actividade administrativa; assim, enquanto (<OS tribunais devem n:aliiar a

1
IO..,l
A «Adjectivaç<io» Liberal do Estado de Direito 97

dido como preferência ou prevalência da lei - postulava essencial-


mente a impossibilidade de condutas contra /egem por parte da Admi-
nistração, cuja actividade podia, assim, ser decomposta numa área de
«administração contenciosa» (em que a violação da lei era proibida e
judicialmente sancionável), e de «administração pura» (em que, res-
peitando as barreiras da lei, a Administração actuava livremente).
Contudo, a consciência de que esta situação prolongava perigo-
samente, embora num contexto agora marcado pela abstenção do
Estado, a di stinção típica do Estado de Polícia entre matérias de
direito (J11stizsache11) e matérias de administração (Regierungssachen),
apelava a uma extensão do entendimento do princípio da legalidade,
o que viria a concretizar-se no princípio da reserva de lei (Vorbehalt
des Gesetzes). Não bastava já que os actos da Administração não
violassem a lei - e os direitos subjectivos que esta consagrava - , mac;
exigia-se também que certos domínios - a liberdade e a propriedade
individuais - só pudessem ser regulados por lei ou com base numa lei.
A reserva de lei surgia, assim, como um princípio geral de defesa
da liberdade e propriedade individuais. vinculando toda a ::ictividade
da Administração que se desenvolvesse nesta área - quer se tratasse
de regulamentos ou de simples actos administrativos - a encontrar
um fundamento específico num acto legislativo emanado do Parla-
mento218, pelo que, além de limite à actividade administrativa, a lei
passa a ser .também seu fundamento necessário.

lei e o direito, a autoridade administrativa deve operar dentro do direito e da lei. Paro os
juízes, o direito e a lei constituem o princípio positivo, íntimo, exclusivo, da sua actividade.
Para as autoridades de governo. o direito e a lei constituem somente a barreira exterior de
uma actividatle, mais ou menos livre, cujo princípio positivo é o bem público, os interesses
que procura satisfazer» (op. cir.• pág. 322).
No quadro tia submissão tio Estado ao Direito, tal como a generalidade dos autores
alemães da época. IlA11R concebia a administração como actividade livre dentro dos limites
tia lei; assim, a AdministrJção encontr.1v:1-se face à norma na mesma situação em que se
encontrava o indivíduo («aposição da autoridade administrutiva face à lei e ao direito não é,
pois, verdadeiramente diversa tia do citlatlão. Todos nós nos movemos numa esfera relativa-
mente livre no interior tia qual, não o di reito, mas o nosso interesse, o nosso bem pessoal,
dá a razão positiva que determina os nossos actos» - O. 8/\ttR, ibid.,). Ou seja. como refere
At'10Ré G ONÇALVES PEREIRA, (Erro e ilegalidade no acto "d111i11is1ra1i1·0, Lisboa, 1962, pág.
20), «a administração teria a sua esfera própria de acção cm que, tal corno os prutieularcs,
estaria apenas limitada pelo dever jurídico de não infringir a lei».

L
98 Co11trilmto para uma Teoria do Estado de Direito

O princípio da reserva da lei - coincidindo na defesa da liberdade


e propriedade com o sentido «material» de lei do liberalismo219 -
delimitava, portanto, uma zona em que a Administração perdia a
autonomia, pois a actividade administrativa praeter legem (até aqui
livre, nos lermos do princípio da preferência de lei) passa a ser legal
só na medida em que não se situasse na esfera da liberdade e proprie-
dade individuais; por outro lado, a própria transição de sistemas ou
formas de governo dentro da monarquia constitucional (da monar-
qui a limitada à monarquia orleani sta e à monarquia parlamentar220)
potenciava, à medida que o Partamente se transformava no órgão
central, o aparecimento de urna legislação destinada a definir os fins
e meios da actividade administrativa, restringindo progressivamente
o espaço em que a Administração actuava com inteira liberdade22 1•
O princípio da reserva da lei evoluiria, então, modernamente,
para o chamado princípio da reserva total de lei, segundo o qual
toda a actividade administrativa, independentemente da natureza que

m No fatado de Direito liberal o princípio da legalidade da Administração traduz-se


cxclusivameme na submissão desta à lei formal emitida pelo Parlamento e não a todo o
«bloco de legalidade» a que posteriormente se referirá HAURIOU (cfr., entre outros. GoNÇ,,LVES
PERETKA, Erro e ilegalidade... , cit., pág. 47 e scg.; S!lRVULO CORREIA, «Os princípios consti-
tucionais da Administração Pública», in Estudós sobre a Constiflliçrio, 3.º vol., Lisboa,
1971, págs. 666 e seg. e F1mT,,s oo AMARAL, Direito Admi11istratfro, vol. II, págs. 198 e
204 e seg.).
219
Cfr., para o sentido material de lei e o princípio da reserva de lei. CARL Scm1m,
Teoria de la Co11s1i1ució11, pág.156 e seg.; EHRl~ARDT SOARES, Interesse P1íblico..., cit., págs.
71 e scgs. e, numa visão crírica de conjunto. Rui MACIIIITI!, O Conte11cioso Ad111i11istrarivo,
págs. 17e 21.
Porém, já na formulação de LAOAND, o princípio da reserva de lei não abrangia os
acto~ ad"'.'inistrati vos que íavorcccsscm a liberdade e propriedade individuais. os quais
contmuanam apenas sujeitos às limitações dcriv;1das do princípio da preferência de lei; cfr.•
~ u1.M~CHETE (op. cit.'. ~ágs. 2 1 e scgs.), que vê nesta distinção - correspondente à moderna
d1s1mçao cn~rc _<<adm1nis1ração agressiva» e «administração prestadora de serviços» (cfr.•
~ara a relevanc1a actual desta distinção, 0 1000 FRErrAs 00 AMARAL, «Direito Administra·
"
1
vo!.
llvo»,. li, r ~gs. 207 e scgs., e E111<11ARDT SOARES, «Princípio da legalidnde e Administração
con~tllullv~,, '. 11• B~IJC, vol. LVII, 1981, págs. 175 e segs.) - o início do desmentido da
tcona ~a co111c1dcnc1a entre lei mmeria/ e rcse1w1 de lei formu lada por ANscHUTZ.
:~ Cfr., JORGE. MIRANDA, Ciência Política, págs. 165 e segs., maxime p:1g.• 195.
-
21
Cfr·• A · Qu E -IRó , A c1
· ..e11cw
· do dll'eito
· . br:i•
ad111i11istmtivo e o seu objerto, Conn
1970. pág. 28 e seg..
A «Adjectivaçtio» Liberal do Estado de Direito 99

revestisse ou da área em que se verificasse, pressupunha a existência


de um fundamento legal222.
Portanto, e no termo da evolução do princípio da legalidade no
Estado de Direito liberal, a «administração pura)), enquanto actividade
juridicamente irrelevante e onde a Administração se move livremente,
vê o seu âmbito reduzido, refugiando-se, como diz EHRHARDT SOARES,
«nos interstícios, nos espaços mortos entre os círculos da actividade
legislativa efectiva ou virtual, entre as matérias legisladas ou reserva-
das à leh> 2 J3 •
Por último, mas de decisiva importância na submissão da Admi-
nistração 11 lei e directamente relacionada com a divisão de poderes,
há que considerar o problema das modalidades institucionais encon-
tradas pelo Estado de Direito liberal para garantir a vinculação legal
da Administração, o que nesta altura se traduz, sobretudo, no reconhe-
cimento dos meios idóneos para defesa dos direitos subjectivos dos
particulares.
Até aqui, conto vimos (cfr. supra, 11.2.1), a protecção jurisdicio-
nal das posições individuais perante o Estado realizava-se de forma
parcial, através da figura do Fisco, e unicamente no domínio das
relações de carácter privado, já que não estava ainda consagrada a
teoria da atribuição aos particulares de direitos subjectivos públicos.
Porém, a partir do momento em que se reconhece a atribuição bilateral
de direitos e deveres de carácter público aos particulares e ao Estado,

m Cfr., GOMl:s CANOT1u10, Direito Co11sti1t1cio11al. p,íg. 291 e segs..


Neste sentido, os princípios da preferência e da reserva de lei (coincidindo, respecti-
vamente, com os sentidos lato (im weiterem Si1111) e restrito (im strengen Si1111) de que falava
BUHLER - cfr., E. SOARES, Interesse Ptíb/ico... , cit., págs. 65 e 74) correspondem, respectiva-
mente, aos princípios de compatibilidade e de cm1/im11idat!e de CHARLES EtSEN~1ANN («Le
droit administratif ct le príncipe de légalité», i11 Études et D0c11111e111s du Conseil 1/'État,
1957, fase. 1J, págs. 30 e scgs.) ou, pese embora a contradição terminológica, às concepções
restritiva e ampliativa do princípio da legalidade na tipologia de GoNÇALves PEttEtlv\ (op. c:it.,
págs. 20 e segs.).
w /111eresse Ptíblirn ... , cít., pág. 75 e scg.; o que não signilica, note-se, concluir pela
irrelevância da remanescente margem de independência da Administração. Como salienta o
mesmo Autor ( «Princípio da legalidade e Administrnção constitutiva», págs. 174 e segs.),
aqui se integrava ainda todo o sec/Or org1111iza1<írio, o domínio das relações especiais de
poder 011 relações de s11bordi1111çri" ,•sppf'i(I/ e o sector das prestaçües aos partic11/ares,
para além da ideia de uma liberdade 11m11ml dos actos do Executivo sempre que a lei não
lixe o respectivo conteúdo.
r
100 Comributo para uma Teoria do Estado de Direito

adquire relevância fundamental o problema da tutela jurisdicional


destas posições jurídicas recíprocas. De facto, só com a instituciona-
lização das garantias j urídicas dos particular~s contra a Administra-
ção se salvaguardam as posições j urídicas individuais e se garante a
conformidade/compatibilidade da actividade administrativa aos limi-
tes legais pré-detcrminados22 -t.
E, se podemos dizer que só com a criação da j urisdição adminis-
trativa se real izam completamente os objcctivos e pressupostos em
que assenta a atribuição dos direitos subjectivos públicos, também
neste domínio podemos registar uma evolução que, a partir da exis-
tência inicial de garantias s6 polít icas e administrativas, relacionadas
com a fisca lização parlamentar e os vínculos de hierarquia e tutela,
vai alé à consagração das garantias contcnciosas 225•
Numa primeira rascw', uma visão algo mecanicista da divisão
de poderes via com desconfiança qualquer intervenção do j udicial
nos restantes poderes e, logo. na actividadc da Administração; esta
rcluti\ncia era particularmente acentuada cm França, onde a anterior
actividadc dos «parlamentos (que nos séculos XVII e XVIII actuavam
por delegação do Rei e concentravam funções jurisdicionais e admi-
nistrativas) fazia recear aos revolucionários de 89 novas intromissões
do poder judicial, que, no pós-Revolução, constituía o principal
bastião de reacção contra o ideal revolucionário. Assim, desde 1790,
a divisão de poderes foi interpret(lda como «separação», no sentido
de impedir os juízes de interferir na actividade administrativa227 •

124 Cfr., FR,\NCO PIERANDREI, / Diritti SubbiettÍl'i Pubblici, págs. 72 e seg. e 137 e segs..
m Cfr., M,\RCEl.to CAET,\NO, Manual de Direi/o Administrativo. t. li. Coimbra,
1972. págs. 1177 e segs. e DIOGO FREITAS DO A~IARAL, Direito Ad111i11istratil'o, vol. Ili.
págs. 319 e segs ..
2:y, Nilo nos referimos aqui aos países que, como a Inglaterra (cfr.. supra, 11,3.3.).

desde mui10 cedo consagraram o chamado sistema de ~dministração judichíria. Para estes.
cfr.. D1oc.o FREITAS oo AMAR,,1., op. cit., págs. 396 e scgs. e a visão geral de GARRIDO F ALL\,
Tmwdo de Derecl/f/ t\d111i11i.1·tmtil·o, vol. ), págs. 80 e ~egs.; cfr., tamh.:m. V1N1C10 RIOEIRO,
O Estado de Dirâfll e o l'ri11d11io da Legalidade tia Atf111i11istraçiio, Coimhra, 1979, págs.
29 e segs..
m Cfr., MA1tc1:i.1,o CAETANO, /\'11111110/ t!e Dirl'ito Administrativo, t. II, págs. 1220 e
segs.; A. Qur;mó, O l'odcr Discricionririo 1/11 Ail111i11istraç110, Coimbra, 1944, págs. 153 e
scgs.; DIOGO FkEITAS oo AMARAL, Of'. cit., vol. 1, pág. 60; GARCIA DE ENTERRlA, op. cit.. págs.
34 e scgs..

J
l

Ll
'
:
A «Adjectivaçüo» Liberal do Estado de Direito 101

Porém, a constatação prática das insuficiências das garantias


políticas e graciosas para uma efectiva defesa dos direitos dos adminis-
trados acabaria por vencer as relutâncias iniciais, pelo que se passaria,
progressivamente, a consagrar o contencioso administrativo (inicial-
mente através do sistema do administrador-juiz, segundo o qual a
Administraçüo chamava a si o julgamento - através de recursos hierár-
quicos jurisdicionalizados, judiciários na forma - das próprias ilegali-
dades e, posteriormente, através dos tribunais comuns ou administra-
tivos228).
Finalmente, o princípio da legalidade, entendido não só como
protecção dos direitos subjectivos dos particulares, mas igualmente
dirigido lt protecção da legalidade objectiva, assumirá nova amplitude
quando a legitimidade do recorrente contra ilegalidades da Adminis-
tração passou a basear-se tanto na ofensa de direitos como de interesses
legítimos, abrindo caminho à sindicabilidade judicial da regularidade
formal dos actos da Administração e da sua correspondência com o
fim previsto pelo Iegislador2~9•

22
~ Cfr.• JOSÉ CARLOS MOREIRA, «O princípio da legalidade da Administração», pág.
396 e seg.; D1000 FREITAS DO AMARAL, op. cit.. vol. III. págs. 391 e segs.; YINICIO RIBEIRO,
op. cit., págs. 36 e scgs.; para o caso particular da Alemanha, cfr.. por todos, FRANCO
P1ERANDRf:I, / diritti .rnbblici suhbiettii:i, págs. 137 e segs..
w Cfr.. JosÉ CALOS MOREIRA, op. cit., págs. 399 e segs. e Dioc;o FREITAS oo AMARAL, op.
cit., págs. 237 e segs.; parJ a história da polémica acerca da distinção entre direito subjectil'O
ptíblico, imeressc e direito reflexo. cfr.. por todos, FRANCO P1ERANDRE1. / diritti subbiettfri
pubblici, págs. 113 e segs. De facto. numa primeim fa-;e do Estado liberal de Direito, a vertente
do princípio da legalidade dirigida às questões de competência dos órgãos administrativos e da
forma dos seus actos estava obscurecida pcrame o in1eresse primordial colocado na defesa dos
direitos individuais; então, «o recurso só teria lugar na hipótese de ler havido ofensa de direitos.
exigência justificada pelo próprio conceito de lei. Parn os homens da Revolução a lei é sempre
reconhecimento de direitos subjecúvos. De sorte que. entre estes dois momentos - violar uma lei
e ofender um direito - não há transição. O acto ilegal é simultaneamente violaçfio da lei e ofensa
de direitos» (JosÉ C,1n1.os MOREIRA, op. cit.. pág. 399 e scg.).
Daí a importância que teve a equiparação de i111eresses legítimos a direitos subjectivos
como fundamento de rccur.;o para a fiscalização judicial quer da regularidade fonnal dos
actos administrativos quer dos próprios regulamentos (até então insindicáveis, já que, como
disposições de carácter geral. não ofendiam dir.:itos).
É, portanto, perfeitamente deslocada a alusão de E. HüR~if:R, O imposto comp/ememar
e o Estado de Direito, pág.9:5 e seg., quando vê na fúnnula do a,1. 206.~ da C.R.P. - «im:umbe
aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos» - não um
aprofundamento do sentido do p1incfpio da legalidade tal como cm entendido na primeira fase
do Estado de Direito liberal, mas «mais uma» distorçiio marxisw do Estado de Direito.
102 Co11trib11to pClra uma Teoria do Estado de Direito

Assim, e no termo do processo comlucente à integral submissão


da Administração à lei - desenvolvido em torno e com base no
princípio da legalidade - resulta que, parafraseando a síntese de
F REITAS oo AMARAL230 , em primeiro lugar, toda a actividade adminis-
trativa - e não só as actividades privadas da Administração, como no

.1 Estado de Polícia - fica subordinada à lei; em segundo lugar, a


actividade administrativa, com base na sua submissão à lei, assume
carácter jurídico e, em terceiro lugar, com base na sujeição da Admi-
nistração ao controlo dos tribunais, os particulares adquirem garantias
que lhes asseguram o cumprimento da lei pela Administração.

2.10 D1oc.o FREITAS 00 AMARAI., op. cit.. vol. 1. p,íg. 56 e scg..

d
CAPÍTULO IV
Estado de Direito (Material ou Formal)
e Estado de Legalidade

1. A perspectivação material e formal do Estado de Direito liberal

De acordo com a concepção que temos vindo a defender, o que


distingue o Estado de Direito liberal dos tipos históricos anteriores,
nomeadamente do Estado absoluto, não é tanto uma diferente estru-
turação e organização dos poderes, quanto o assumir da defesa e
garantia dos direitos naturais do homem como fim primordial do
Estado. Neste sentido estamos perante um Estado de Direito material,
já que a limitação jurídica do Poder se justifica em função da garantia
de um núcleo de valores considerado indisponível pelo próprio Es-
tado. Assim, se a validade formal dos actos estaduais decorre da sua
conformidade à lei , de acordo com o princípio da legalidade, a sua
legitimidade - aquilo que verdadeiramente permite a sua qualificação
como actos de um Estado de Direito - é condicionada pela «concor-
dância material do seu conteúdo com uma tábua de valores que lhe é
anterior e superior» 23 1•

231
Sous" r; BRITO. «A lei penal na Constituição» cit.. pág. 227. Este Autor distingue
Estado de Direito formal de Estado de Direito 11u11eria/ na medida cm que o primeiro seria
um «Estado limitado pelo direito que cria», enquanto no segundo o Estado estaria ainda
«essencialmente vinculado à ideia de direito ou, noutra fórmula, ao din:ito natural» (op. cit.,
págs. 222 e scgs.).
Como se concluirá da exposição, é diversa a tipologia que defendemos, fazendo
corresponder àqueles dois conceitos, respectivamente. as designações de Estado de le11ali-
dade e Estado de Direito liberal (material ou formal). Esta divergência radica. como se
procurará demonstrar desenvol vidameme no texto, nas desvantagens de cquivocidade,
11eutrali;:.açt10 e falta de operacionalidade do conceito a que a classificação de SousA E BRITO
- ba~tante generalizada na douuina - poderia conduzir, genericamente pelas seguintes razões:
r
f

',1'

104 Co11trib1110 para uma Teoria do Estado de Direito

A perspectivação material do Estado de Direito liberal assenta


portanto, não só na limitação da forma de agir do Estado, mas,'
sobretudo, na limitação do seu próprio querer por valores cuja plena
realização só pode ser garantida com a instauração de uma nova
ordem - uma ordem que, fundada sobre a ideia do primado do
homem e da livre esfera dos seus direitos naturais, conduz à sistemá-
tica compressão dos fins do Estado. Neste sentido, continuando com
EHRHARDT SOARES, podemos dizer que o Estado de Direito liberal apre-
senta um sentido material «que ultrapassa os arranjos técnicos da
defesa da liberdade, para exprimir uma fundamental intenção de inde-
pendência do homem no seu mundo do económico e da cultura»232•
Tal concepção corresponde historicamente ao sentido da oposi-
ção originária da burguesia ao Estado absoluto. Sustentada numa
particular ideia de Direito, de justiça material, a burguesia rompia
com o a11cien régime em nome de valores que, propostos como fins
do Estado, faziam do projecto liberal do Estado de Direito - nesta
primeira fase em que ele era essencialmente um conceito de luta
política - uma construção acentuadamente material.
Naturalmente, esta intenção material tende a esbater-se sempre
que a burguesia se erige em titular efectivo do poder, pois, se até
então a sua omnipresença se justificava como legitimação de um

1. Faz passar a fronteira de distinção entre Estado de Direito material e fonnal pelo
interior do mesmo tipo de Estado - o liberal -, erigindo exclusivmnente no domínio <la
ideologia uma contraposição fundamental, sem coffcspondência relativa na realidade histórica;
2. Permite a qualificação como Estados de Direito (formal) de Estados verdadeiramente
situados nos antípodas do ideal de limitação jurídica do Estado cm favor d:1 protccçào dos
direitos fundamentais; o Estado fascí~ta - co nsiderado na sua prctcnsn fase «legalista» - sc1ia
um Estado de Direito na medida em que respeitasse e se vinculasse à legalidade fascista:
3. Permite a quali(icação como Estados de Direito (material) de Estados que. na
realidade e na teoria, se demarcam substancialmente daquele ideal: o fatado soviético. na
medida em que se afirma como globalmente limitado e vinculado por uma tábua material de
valores que lhe é «anterior e superior» - não já o «direito natural», mas «a constru~·ão do
socialismo» - seria um Estado de Dirciw (como veremos. a especilicidade do sentido do
princípio da «legalidade socialista» seria incompreensível sem a referência permanente e
global a esta tábua material de valores).
2.12 EHRIIARDT SoARl3S, Direi/o P,íhlico ... , cit., pág. 227.

Neste sentido, como escreve BAl'flSTA MACHADO (Participaç<io e Desce11rrali:.aç1io,


Coimbra, 1982, págs. 95 e scgs.), a autonomia e liberdade individuais não são limites
extrínsecos, acidentais ou precários do «Rechtsstaat», mas antes uma dimensão.que lhe é
originariamente superior e que verdadeiramente o constitui como específica forma de f:stado.

_J
r

Estado de Direito (Material 011 Formal) e Estado de Legalidade I05

proclamado projecto de ruptura, os valores em que se funda consti-


tuem-se, agora, em base - interessadamente oculta - do novo consenso
social. Assim, na medida em que surgia conotada com uma anterior
intenção revolucionária e prospectiva, a caracterização material do
Estado de Direito era tendencialmente incómoda, pois, proclamando
o primado do homem e dos seus direitos como fulcro da organização
do Estado, induzia a assunção das reivindicações de liberdade pelo ·
quarto-estado, em oposição a uma burguesia já politicamente domi-
nante.
Ganha, então, relevo uma concepção de Estado de Direito que,
pressupondo o reconhecimento dos direitos individuais, considerava
como dimensão determinante ou excl usiva da racionalização do Es-
tado as próprias técnicas de garan tia daqueles direitos, concebidas
agora como valores autónomos.
Esta tendência geral receberia um impulso especial na Alemanha
do século XIX, onde, como vimos (supra, Il.3.1.), a particular situação
da burguesia a impelia para a via do compromisso com a nobreza,
num contexto pouco estimulante ~l proclamação dos seus valores
mais contundentes.
O conceito de Estado de Direito surge, assim, cada vez mais
identificado com os seus elementos formais-instrumentais, nomeada-
mente o princípio da legalidade da Administração e da justiça admi-
nistrativa233, e o ideal de submissão do Estado ao Direito progressiva-
mente reduzido à integral subordinação da Administração à lei234 •
Estes são os contornos do conceito de Estado de Direito em
sentido formal, tal como viriam a ser determinados por uma evolução
doutrinal que, tendo os seus gérmens em K ANT235, passaria do plano I'
233 Cfr., GoMfS CANOTILHO, Direito Consti111cio11a/, págs. 274 e segs.; note-se que
«justiça administrativa» vem sempre entendida no sentido de «garantias jurídicas dos parti-
culares» (cfr., FREITAS oo AMARAL; Direito Administrativo, vol. II, pág. 233).
:?J• Cfr., A. QumRó, O Poder..., cit., pág. 124 e EHRHARDT SOARES, lmeresse P1í-

blico... , cit., págs. 82 e segs..


235 Uma vez que na concepção de l<i\NT o Estado, enquanto mera coexistência de

liberdades exteriores, se alheia dos fins morais, do bem comum ou da felicidade dos súbdi-
tos (cfr., supra, JJl, 1.2), a ela se remete normalmente a origem douuinal da vertente «técni-
co-fonnalista» do Estado de Direito (cfr.• entre outros, FELICE BATTAOLIA, «Stato etico e
stato di diritto», in RIFD, 1937, Ili. p. 243 e scg.; FERDINANDO o' ANTONIO, «Su la locuzione
Stato di diritto», in RDDP, 1938, I, pág. 200; N1so ClusA, «li conceito di Stato di diritto nel
personalismo giuridico», i11 RIFD, 1960, 1-íl, pág. 368).

-
106 Co11tributo para uma Teoria do Estado de Direito

filosófico para o jurídico através de STAHL e AHRENS2J6 , e vma a ser


desenvolvida por Autores tão importantes como BÃHR237, GNE1sr2Ja,

Porém, como diz BAnAGLIA (ibid.), «o filósofo não excluía, todavia, que uma exigên-
cia de justiça o pudesse impelir (ao Estado) e tomá-lo, no próprio âmbito do Direito,
instrumento do progresso (o Estado segundo a razcio transforma-se em critério de acção e
legitimidade face ao Estado de mero direito)»; em sentido convergente, cfr., EflRHARDT
SOARES, Lições de Direito Co11stitucio11al, Coimbra, 1971, pág. 32 e seg., para quem a
concepção de Estado de Direito de KANT é ainda «fortemente inclinada para uma concepção
material. enquanto vê no Estado a possibilidade duma auto-detem1inação do homem por
uma liberdade moral».
lló AHRENS coincide com STAHL na consideração do «Rechtsstaat» como Estado que

se funda, existe e desenvolve 11a forma do Direito e na consequente rejeição da sua


especificidade burguesa: «o Estado tem de preparar as vias e meios para a realização dos
fins sociais, ele é /e mediate11r de la destinée lmmaine»; «como o direito compreende as
condições essenciais da existência humana e do desenvolvimento social, nenhum estado de
vida é concebível sem um correspondente Estado de direito[ ...] consequentemente, o Estado
de direito começou entre os homens com a existência da família» (AHRENS, Co11rs de Droit
Nature/ ou de Philosophie d11 Droit, 4.ª ed.. Bruxelles, págs. 220 e 229).
237 Para Orro BAHR ( Der Rechrsswar, 1864, segundo a tradução italiana citada) o

conceito de «Rechtsstaat» significa que «o Estado deve definir e regular exclusivamente


med iante preceitos jurídicos toda a vida que nele se desenvolve [...]; que o Estado deve
elevar o direito a condição fundamental da sua existência [...]; que a rel:lção entre
governantes e governados não deve ser regulada pela força unilateral, mas antes pelo direito,
sendo uns e outros reciprocamente titulares de direitos e deveres» (op. cir.. pág. 286).
Porém, ao contrário dos autores que, como STAHL, viam no controlo judicial da
Administração uma fonna de degradação ou renúncia do Poder. BiiHRavança no sentido do
reconhecimento do princípio da submissão das autoridades administrativas ao controlo exer-
cido por órgãos judiciais independentt:s, fazendo deste princípio «uma condiçcio essencial
do Rechrssraar» (op. cit., pág. 323).
Neste sentido, Bil.HR é considerado como o mais notável representante da doutrina que
considera o fatado de Direito como «Justizstaat», entendido, não como fataclo dirigido à realiza-
ção da justiça material, mas como ordenami:nto onde a Administração é controlada pelos tribu-
nais ordinários (cfr.. R. ZrPt'EIJUS, Teoria Geral do Estado, pág. 153 e segs.; FRAI\'{'() PmR,\NDREI,
op. cit., pág. 142 e seg.; Ruc M ACHE'rE, O Co11te11cioso Ad111i11isrrati\'O, pág. 18).
2.18 Quanco aos contornos do Estado de Direito, 0N1'1ST ( Der Rechrssra111 tmd die

Ve,wa/1111,gsgerichre i11 Dett1schla11d, 1879, trad. italiana cit.) defende uma concepção análoga à
de BXHR; diferentes são, porém, as suas concepções no plano das garanti:t~ jurídicas dos parti-
culares. Assim, GNl!IST opõe-se abertamente à «Justizstaatlichkeit» (doutrina que defendia a
competência dos tribunais ordinários nas questões de direito administrativo), propondo a criação
de uma ju1isdição adrninistmtiva especializada (Venvalttt11gsgerichsbarkeil). Conuuriando a dou-
trina «civilista» de BJ\HR (para quem o Estado era em tudo semelhante a uma sociedade de direito
comum), GNEJST concebe o tlireito público como orden:1111ento objec1ivo tia actividad~ estadual,
pelo que o controlo da Administração pelos tribunais (administrativos) é essencialmente
objectivo e não tanto dirigido à protecção dos direitos subjcctivos (como era para B,\HR).
-
Estado de Direito (Material 011 Formal) e Estado de Legalidade 107

239
LABAND ou Orro M AYER240, nos países germânicos, e ÜRLAND0241 e
R ANELLETII 2~2, na It,álº1a.

Por outro lado, empenhado em salientar a especificidade anglo-saxónica do


,,Rechtsstaat», GNrnsT destaca como elemento decisivo do conceito o contributo b1itânico do
a1110-govemo local (se((-govemment) consubstanciado em órgãos locais, espontaneamente
gerados pelo corpo social, funcionando como limites aos eventuais excessos de poder
estat:11: neste sentido, GNEJST propõe a participação da administração local autónoma
(Srlbs11•e111·al11111g) no exercício das funções estaduais - verdadeiro «ponto de Arquimedes
do hodierno Rec/rtsstaat» - e, desde logo, uma ampla participação de detenninadas categorias
de cidadãos nas instfincias inferiores dos tribunais administrativos (cfr., GNEJST, np. cir..
passim e especialmente págs. 1159 e segs., 1230 e scgs. e 1300 e scgs. e, ainda, FRANCO
PtERANDREI, op. cit., págs. 144 e segs.). 1
:.w Segundo LAll;\ND (Le Drnit 1'11/Jlic de l'empire allemand. t. II. Paris, 1901, ed.
francesa), se «o poder do Eswdo in "bstracw nunca está subordinado à lei, pois pode
1
sempre modificá-la [...], a lei vincula o indivíduo a quem compete exercer o poder em
confom1idade com a vomade do Estado» (op. cit., pág. 363): ou seja, «apesar do poder
soberano que lhe permite conformar o Direito, o Estado está subordi11ado. na sua actividade
administrativa, ao Direito por ele estabelecido» (op. cit., pág. 519). Neste sentido, LABAND
faz assentar no princípio da legalidade a sua constrnção de Estado de Direito (cfr., Rui
t,.1AcHETE, op. cir.• pág. 23), acabando mesmo por identificar os dois conceitos:
«O imperium não é no moderno Estado civilizado um poder arbitrário, mas ames
regulado segundo máximas jurídicas; a característica do Recl11ssraa1 é que o Estado não 1

1
pode exigir dos seus cidadãos um acto positivo ou negativo, impor-lhes ou proibir-lhes o
que quer que seja. a não ser em vinude de um princípio jurídico. Estas regras podem relevar
do Direito costumeiro, mas ordinariamente, no Estado moderno, são leis. Estas leis têm por
função restringir o poder do Estado: regulamentam juridicamente as invasões que o Estado
se pode permitir na pessoa e fortuna dos subordinados; por outro lado, lixam simultanea-
mente a esfera que está juridicamente ao abrigo dessas invasões» (LAnAND, op. cit., pág. 526).
i:r, Ono MAYER (Le Droit Admi11istra1if Alle111a11d, cit.), recusando a pretensa
especificidade alemã do conceito de Estado de Direito (cfr., supra, nota 72), assenta a sua
construção de Rechrsstaat na distinção entre acro ad111i11isrrativo e lei formal aprovada com
o concurso da representação nacional e a cuja soberania se deveriam submeter todas as
restantes actividadcs do Estado (cfr., op. cit., págs. 64 e scgs., 111tL\'ime 74 e scgs.). E, dado
que o ramo do poder executivo actuando como justiça (op. cir., p;íg. 71) estava já enquadra-
do pela soberania da lei, o ideal de Reclrrsswal traduz-se na exigência de que também a
actividade administrativa seja «tanto quanto possível dirigida por regras de direito» (op. cit.,
pág. 77); através da n<>va ideia de acto administrativo submetido à lei - contributo da
Revolução Francesa (op. cit., págs. 70 e segs.) - se «completa a grande ideia do
Reclrtsstaar. do Estado submetido ao regime de direito através da adaptação à administração
das formas da justiça» (op. cit., pág. 80).
E, ainda que seja possível à Administr:ição atingir este ideal de fonna absoluta (o
Reclrrsstaat «designa uma coisa que :iinda não existe ou, cm todo o caso, não está acabada,
que deve ser. O s~u significado varia singularmente pois cada um pretende inculcar-lhe o
seu ideal jurídico» - op. cit., pág. 75), Orro MA VER conclui:
108 Comributo para uma Teoria do Estado de Direito

Todavia, em nosso entender, a distinção entre estes dois senti-


dos de Estado de Direito - material e formal2 43 - , desde que não
extravase os quadros do pensamento e do Estado liberal, não tem a
'.1
:I
1
1 «Um Estado que não tem, na sua administração, nem a forma de lei nem a de acto
administrativo. não é um Recl11sstaat. Um Estado que tem ambos é mais ou menos perfeito
como Rec/11ssraat ;1 medida que usa essas formas e lhes garante os efeitos» (op. cit., pág. 82).
141
Para ORLANDO (Primo Trattato Completo di Diritto Ammi11istrativo ltalia110, cit.),
,, 1 o mérito científico e a especificidade do conceito de «Rechtsstaat», no seu sentido restrito
1:
- já que haveria um sentido amplo do conceito segundo o qual, numa identificação como
Estado Consri1t1cio11al (Ve1fas.m11gsstaat), o Rechtsstaat significaria a necessidade de o
\, Estado se conformar ao direito, às necessidades e aos sentimentos de progresso civil e
1
'I' político (op. cit., pág. 34) -, consistiria em ter intuído a necessidade de resolver no campo
''
·1 do direito a questão das garantias dos particulares face ao Estado (op. cit.. pág. 37). E era
'! 1 justamente neste objectivo que se situava ,1 diferença específica entre o Rechtsstaat e o
1'
Estado comti111cio11a/ de matriz francesa (cfr., l·11pra, 11.3:2.).
it
,• ~'I'
Para ORLANDO,«[ ... ] o alcance do Estado jurídico consiste na introdução de normas e
garamias que circunscrevem o exercício do poder público: no rmas e garantias que, reconhe-
,,
• 1
cidas pelo direito, se traduzem em direitos nos sujeitos tutelados»; porém, estes direitos só
i ., se realizam juridicamente quando acompanhados dos correspondentes órgãos da justiça
1 1: 1
administrati va, pois. «fixada a norma apta a garantir o interesse individual e a sua tradução .
1 í
1 em direito, não se esgota a missão do Estado jurídico, a qual necessita de ser completada
através das garantias jurisdicionais adequadas» (op. cit., p;íg. 47).
22
' RANaLETTI (Pri11cipii di Diritto Am111i11istrativo, vol. I, Na poli, 1912) faz coinci-
dir o <<Rechtsstaat» com o Estado moderno, no qual «o Direito é colocado acima de todas as
actividades; todos, incluindo o Estado, devem submeter-se-lhe, viver e actuar de acordo com
as suas nonnas. O Estado. na medida cm que se submete ao Direito e assegura a sua
observância, mesmo no que a si próprio respeita, através de instituições adequadas, é 'Estado
de Direito» (op. cir., pág. 142).
243
As duas perspectivas são, por vezes, também designadas, respectivamente, por
perspectiva constitucional ou ampla e administrativista ou restrita (cfr., assim, G1usEPPINO
TREvEs, Considerazio11i sul/o stato di diritto, cit., pág. 1591 e scg. ou M,\SStMO GIANNINI,
«Stato sociale: una nozione inutile», i11 // Politico, 1977, n.º 2, pág. 212),já que, enquanto
na primeira releva uma esfera constitucional - o próprio legislador encontra-se limitado por
valores indisponíveis constitucionalmente consagrados -. ganhando importância a fiscaliza-
ção da constitucionalidade das leis, na segunda prevalece o perfil administrativo, com a
referida ident ilicação do conceito de Estado de Direito com apenas alguns de entre os seus
elementos (e daí a ideia de redução, de restrição do conceito) ·- o princípio da legalidade e/ou
a justiça aclmi nistrativa.
. Por razõe~ idênticas falam .º~tros Autores de um «Estado de legalidade» (ou «Estado
Liberal de Legalidade») autononuzavel do Estado de Direito (em sentido material ou Esrado
Liberal de Direito) e co1Tespondendo à transição do j usnaturalismo para o positivismo (cfr.•
MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Polftica e Direito Constitucional, 5.º ed., Lisboa,
1967, págs. 293 e segs. e MARCÊLO Rrnao DÊ SousA, Direito Constitucional, págs. 298 e
segs. e Os Partidos Políticos..., cit., pág. 24 e segs.).

--
Estado de Direito (Material ou Fomwl) e Estado de Legalidade 109

relevância que geralmente se lhe atribui. De facto, ela não traduz a


existência de formas alternativas de conceber a relação fundamental
entre governantes e governados, antes constituindo o produto de
diferentes perspectivas teóricas na abordagem da mesma realidade.
Na medida em que os pressupostos políticos em que se fundava o
Estado liberal estavam, expressa ou implicitamente, presentes nas
duas noções, pode-se dizer que a diferença reside apenas na autono-
mização ou ace ntuação de dimensões parcelares do mesmo
fenómenoH 4 •
Quando os juristas, sobretudo os administrativistas alemães,
construíam uma teoria de Estado de Direito liberal politicamente
asséptica, tal não significava uma desvalorização essencial dos direitos
e liberdades individuais propugnados pelo liberalismo - cerne do
sentido material do Estado de Direito liberal -, mas apenas uma
autonomização científica dos mecanismos jurídicos que, na situação
particular da Alemanha do século XIX, se propunham garanti-los. A 11
emergência da construção formal do Estado de Direito legitimava-se,
portanto, numa adesão subjacente e subentendida àqueles valores,
li
1
ainda que a esta vinculação implícita se não reconhecesse relevância 1

jurídica autónoma245 . 1
No fundo, como diz M ARCELO R EBELO DE SousA246, o que varia no
trânsi to do «Estado liberal de Direito» para o «Estado liberal de
legalidade» é o fu ndamento filosófico da limitação jurídica do poder
político, no sentido da passagem de uma heterolimitação para uma

:i.i, Esta conclusão não permite, porém, menosprezar a iníluência da diferença de

perspectivas teóricas na prevalência ou implementação práticas de umas ou outras institui-


ções. Assim, a perspectiva formal preocupava-se sobretudo com a protecção do indivíduo
face à aplicação da lei por parie da Administração e daí o relevo do princípio da legalidade e
das garantias jurídicas dos particulares.
Doutra pane. a perspectiva material levantava o problema da lei «justa» (com referên-
cia aos princípios liberais da liberdade, segurança e propriedade individuais) e, como tal,
incidia num conjunto de instituições capazes de a garantir, como a tripartição de poderes: o
governo representativo, a supremacia da representação popular e, em geral, as garantias
político-constitucionais dccon-entes da dbtinção entre poder constituinte e poder consti tuído.
?-Is Cfr., neste sentido, e convcrgcntcmentc, GrusEPPINO TREVES, «Considerazionc sullo
Stato di diritto», pág. (592 ou «Stato assistcnzialc e Stato di di rino, i11 ~frista lra/ia11a di
Previdenza Sociale, ( 959, pág. 3 e GARCIA-Pt:LA vo, Las Tra11sformact011es dei Estado
Comemporâneo, Madrid, 1977, págs. 52 e scgs..
2' 6 Direito Co11stüucio11al, pág. 298 e seg ..

-
1IO Contributo para uma Teoria do Estado de Direi/O

autolimitação do Estado pelo Direito que vai criando. O Estado libe-


ral não prescindia dos direitos individuais outrora proclamados, mas
transformava os respectivos fundamentos teóricos, na medida em
que os entendia., não j á como direitos naturais, mas como espaços
deixados à livre actuação dos indivíduos em virtude de um processo
de autolimitação do poder político, de uma concessão que o próprio
Estado fazia através da lei positiva247 •

2• 1 A teoria da limitação jurídica do Estado desenvolvida pela publicística alemã do


século passado está intimamente associada à referida concepção do Estado como pessoa
jurídica. ·
Mas, se originariamente a pessoa jurídica Estado era considerada externamente limi-
tada pelos direitos pré e meta-estaduais, o advento do positivismo jurídico põe em causa o
cátáctcr heterónomo desta limitação. Como pode o Estado, como pessoa jurídica, ser limi-
tado pelo Direito se ele é o seu criador exclusivo?
É no plano da superação desta diliculdade que se inscreve a teoria da a1110/i111iwçcio
do Estado iniciada com JHERJNG ( Der Zu·eck im Recht. 1877) e desenvolvida por 11.:1.1.L'< EK.
Considera JHERING que, apesar de deter o monopólio do poder e a faculdade exclusiva
de criação do Direito, o Estado tem um interesse egoísta na sua voluntária subordinação ao
Direito, por ele próprio estabelecido, através de um processo de autolimitação; de facto, a
experiência mostra-lhe que essa submissão reforça a Jcgitimidade do Estado e assegura a
obediência dos particulares.
J ELLINEK (cfr., Teoria General dei Estado, passim e especialmente págs. 27.t e segs. e
320 e segs.) aprofunda e desenvolve a teoria da autolimitação de JBERING: o Estado moderno
é Rechtsstaat na medida em que se subordina voluntariamente (autodctcnninação) ao Direito
que ele próprio estabelece (autolimitação). O Estado pode a todo o tempo alterar ou revogar
as suas próprias leis (desde que o faça na forma do Dia·cito); mas, enquanto elas vigorarem
o Estado submete-se-lhes e responde - tal como os particulares - perante os tribunais por
eventuais violações cometidas pelos seus 6rgãos.
Só neste processo de autolimitação - dirigido, segundo JELLINEK, para o reconhed-
menlo dos direitos dos súbditos - o Estado se realiza como poder jurídico e se torna.
também ele, sujeito de direito.
«O Estado, considerado em si como poder de facto, transforma-se, através do reco·
nhccimento da personalidade dos súbditos, num poder j uridicamente limitado. Dcss:1 fonna,
o poder de facto do Estado, estabelecido e limitado pelo seu próprio ordenamento jurídico,
adquire o carácter de poder jurídico e os seus interesses tomam o carácter de interesses
j~rídicos [...]. Em virtude das li111i1açõcs que lhe são ímpostas pelo seu ordenamento jurí·
d1co, o Estado toma-se sujeito (Triiger), cm sentido jurídico, de direitos e deveres relati va·
mente aos seus súbditos» (Sistema dei Diritti Pubhlici Subbieuivi, pág. 214).
Porém, esta autolimitação não se processa de forma arbitrária, segundo uma qualquer
livre inte~retação d~s titulares do poder soberonü. Na medida em que <' direito público do
'. ' ~stado ex~st.e exclus~vamente no interesse geral, «ainda quando O Estado é 1corica1ne111c

f h:r: de e_:"tgtr a obediência dos súbdilos e tem o poder jurídico de se alirrnar como c1ia1for do
d1rc1to, nao lhe é de alguma fo1ma lícito exercer a sua liberdade ou O seu poder arbitrariamente.
Estado de Direito (Material 011 Fonnal) e Estado de Legalidade 111

Este afastamento do Estado de Direito liberal dos seus funda-


mentos jusnaturalistas correspondia, como dissemos, às mutações
produzidas na posição relativa da burguesia face ao Estado, as quais
transformavam o direito natural num foco de instabilidade; ou porque
impunha a sua dominação ou porque enveredara pela via do com-
promisso, a burguesia transferia para o direito positivo as suas aspira-
ções de segura1iça e estabilidade, ao mesmo tempo que colocava na
defesa dos direitos adquiridos, dos direitos privados, o essencial da
reivindicação da autonomia individual.
Como diz WtET HôLTER, o liberalismo «elimina os conteúdos
jusnaturalistas da liberdade, presentes ainda em K,,NT, absolutizando-os
e cindindo-os em liberdade de propriedade, liberdade de contratar,
de herdar e de testar (.a que se juntaram depois a liberdade industrial,
empresarial e de concorrência), a defender contra o Estado [... ]. O
Estado transforma-se num Estado de instituições e formas jurídicas,
Estado de direito legislativo e administrativo», onde a esclerose dos
conte!Ídos políticos ia de par com a redução da Constituição e do
Direito a meros problemas organizativos248 •

No reconhecimento de que existe em função do interesse geral. o Estado impõe-se a si


próprio. como regra suprema de acção. fazer coincidir o preceito jurídico com o moral:
regula todos os teus actos de forma a que correspondam. da melhor forma, ao interesse
geral 1...). E da consciência deste dever resulta uma autolimitação. a sua transfonnaçiio de
sujeito de um poder de facto (Machtsubjl'kt) cm ~ujeito jurídico» (ihid.. pág. 220).
E, se e~ta auto-obrigação do Estado decorre da prôpria natureza jurídica do Poder
político - pois. quando estabelece as regras jurídicas. o Estado assume o compromisso de as
aplicar e fazer respeitar-. ela corresponde, por outro lado. à ncccssidac.k, j,í reconheciJa por
JttERING, de gerar nos paniculares a confiança social exigida pelo desenvolvimento Ja
cultura e do comércio.
Nesta autolimitação fundada exclusivamente na vontade do Estado - nos termos relati-
vos acima apontados - se esgota. para hu.1NEK, o sentido pos.sivcl cio Rechtsstaat, pois estes
1'
são os únicos !.imites compatíveis com o incliminávcl carácter soberano do 1x1der de Estado.
Sobre .1 teoria da autolimitação cfr., por todos, LEON DuculT, Lt, dnctrinc al/e11u11ulC'
de /'a1110-li111itation de /'État, cit .. e ainda BALI..AOORE PALl.lERI, A Doutrina do Estado, trad.,
Coimbra. vol. 1, págs. 79 e segs.; ROCHA SARAIVA, Comtmçtio J11rídil:11 do fatwlo. li, págs.
70 e segs.; MARCRLO CAETANO, Manual de Ciéncia Política e Direito Co11stit11cio11al, págs.
272 e segs.; GusTAV RAOllRUCII, Filosofia do nirei/0, tr:1d., Coimbr.1, 1961, vol. li, págs.,
133 e scgs..
2-13 RuooLF Wu:m-1õ1.TER, Lc for11111le 111agiche... , pág. 94 e, ainda, «Gli interessi dcllo
stato di diritto borghese», i11 P. Barcellona (org.). L'uso alrenwtil'o dei diri110, 1, Roma-
·Bari, 1973, pág. 38.
112 Co111rib1110 para 11111a Teoria do Estado de Direito

2. Do Estado de Direito ao «direito do Estado»

A relativização, a que procedemos, da importância da tradicio-


,
l

,1
nal contraposição entre Estado de Direito material e formal pressupu-
1
nha, como dissemos, uma comum referência das duas expressões aos
parâmetros da ideologia e da prática do liberalismo. A formalização
do Estado de Direito careceria, então, da relevância que habitualmente
lhe é atribu ída, na medida em que os mecanismos técnico-formais
não deixavam de actuar, no plano da realidade do Estado, os mesmos
valores e conteúdos políticos que davam sentido à caracterização ma-
terial do Estado de Direito.
Porém, quando novas necessidades de manutenção do domínio
pressionam a burguesia a abandonar o modelo liberal, é o próprio
conceito de Eslado de Direito que se encontra confrontado com o
problema da sua operacionalidade num tipo de Estado que, velada
ou expressamente, desvalorizava, descaracterizava ou até eliminava
o pólo que considerámos como cerne essencial do conceito - a garan-
tia dos direitos fundamentais.
A perspectivação formal do Estado de Direito seria então utiliza-
da para fornecer o âlibi jurídico ao autoritarismo. Nessa altura, quan-
do se quebram os vínculos entre lei e garantia da liberdade, a lei
positiva limita-se a constituir o «pressuposto técnico duma actividade
administrativa. A concepção do Estado de Direito abandona todos os
elementos materiais para se reduzir a um esquema formal. Já não
interessa indagar o que o Estado pode querer - basta verificar se quer
na via do direito» 249 •
«Casca vazia da legalidade» (SCHEUNER) ou «velho Estado de
polícia com gola de veludo» (GUMPL0w1cz) 2S0 são, então, designações
que se ajustam a um Estado de legalidade que perde progressiva-
mente todas as referências explícitas ou implícitas ao objectivo último
de garantia das Iiberdades e protecção dos direitos individuais.
No termo desta evolução, que transforma o Estado de Direito
num «positivo Estado de lei com as portas abertas para um Estado de
~I não-direito» 251 , e ncontraremos, finalmente, a ambígua convivência

!' •1
!A~ EHRHARDT SOARES,
250
Direito P1íblico...• cit., pág. 166.
Cfr., respectivamente, EHRHAl<DT SOAR ES, Direito Público.... cit., p:lg. 167 e
MEucc10 Ru1N1, «La Repubblica haliona come Stato di dirino», i11 RDDP, 19~8. pág.171.
•• 251 EHRIIARDT SOARES, ibid..
Estado de Direito (Material 011 Formal) e Estado de Legalidade 113

do conceito com os regimes totalitários que sobrevêm na Europa do


século XX. Porém. os gérmens deste processo - que a partir da
caracterização forma l do Estado de Direito evoluiria para a pretensa
neutralidade do puro Estado de legalidade e consequente abertura à
manipulação autoritária do conceito - podem desde togo ser localiza-
dos no século XIX.

2.]. De SrnuL a KEJ..SEN

Se a generalidade dos Autores que citámos como expressão da


concepção formal do Estado de Direito (tais como BAHR, GNEtST, O.
MAYER) compatibilizava o colocar da tónica nos elementos formais
do conceito com a salvaguarda implícita dos direitos fundamentais,
já em FRIEDRICH Juuus STAHL - normalmente indicado como expoente
daquele processo de formalização - o Rechrssraat é concebido à
margem das coordenadas do liberalismo.
Com efeito, o «Rechtsstaat» de STAHL, mais que construção for-
maF52, é uma tentativa de compatibilizar o Estado de Direito com o
princípio monárquico, o conservadorismo autoritário com as garantias
individuais 25 3. Numa perspectiva anti-liberal, STAHL considera o Estado
!'
i
252 Como dizia Sr,111L no seu lexto mais profusamente citado (cfr.• entre muitos, Orro
B ÃHR, op. cit., pág. 289 e seg.; F tucE BxIT,\GLIA, Srmo erico ,, Stato diriuo, pág. 243;
JoAQUJ!'l ABELLÁN, op. cit., pág. 133; A. Qur:IRó; O Poder Discricionário da Admi11istraçcio,
pág. 88; GOMES CAN01'1LHO, Direito Co11s1i111cio11al, pág. 274 e seg.), «o Estado deve ser
Estado de Direito; é a palavra de ordem e o sentido da evolução dos tempos modernos.
Deve determinar e garantir prccis:uncnte, sob a forma do direito, as linhas e os limites da
sua actuação, bem corno as esferas de liberdade dos cidadãos [... J. Es1c é o conceito de
Estado de Dirci10: não significa que o Estado se ocupe apenas do ordenamento jurídico
prescindindo de quaisquer lins adrninistralivos ou que pro1eja meramen1e os direitos indivi-
duais; significa. sobretudo, não o f1m e o con1cúdo do Estnt.lo, mas só o modo e o c;ir:íctcr
da sua real iz:i'rão» (Dir: P/li{osophie des Rechts, 1837).
m Cfr., por todos, HE1rnER1' MARCUSE, Na~cio e Rel'oluçcio, tr:id .• Rio de Janeiro,
1969, págs. 324 e segs..
is, St·AHL, Die Phisolophie des Rechts, ciiat.fo por MARCUSE, op. cit.. pág. 333.
m STAHL, Recl11s und Swmslehre, apud ÜTTO BAHR, op. cit., pág. 334. Assim, se, por
um lado, SrAHL se demarca do absolutismo («a lei não deve cons1i1uir p:ira o rei só uma
exigência íntima da sua consciência, como prc1cndcm os absolutistas, mas uma barreira
político-jurídica exterior»_ ibid., pág. 340), por outro lado considera que só o Estado, «isto é,
1 '

'1
·1
1
'
1

114 Contributo para uma Te11ria do Eswdo de Direito


1•
1 como «um poder e um sujeito anterior e superior aos indivíduos»
·1 tendo como nns «por um htdo o domínio como tal, isto é, a finalidad~
1!
'1
que a autoridade prevaleça entre os homens», e, por outro, «a protecção
e O progresso dos homens, o desenvolvimento da nação, o cumpri-
1 mento do preceito divino» 254 • Consequentemente, considerando 0
1 .:
Estado como autoridade moral superior aos indivíduos, STAHL rejeita
I' qualquer jurisdição sobre os actos cio governo, pois «em tal situação
1
1
o Estado deixaria de ser um verdadeiro Estado, um senhorio moral
' sobre os indivíduos. tornar-se-ia uma simples parte privada» 2ss.
1
1' 1
Com base cm tal concepção do Estado de Direito, pôde StAHL
1 afirmar-se, simultaneamente, como o expoente teórico do conserva-
dorismo e da reacção monárquica na Alemanha do século XIX. No
fundo, como dizia Bi\HR, a construção fo rmal de «Rechtsstaat» de
STAHL convertera-se «no manto esplendoroso com que os adversários
do Estado de Direito cobriram as suas aspirações absolutistas» 2s6•
Assim, e pela primeira vez. em termos da doutrina geral do Estado, a
redução formalista do Estado de Direito abria o conceito a um qual-
quer conteúdo e compatibilizava-o com qualquer tipo de Estado,
desde que agisse «na fomu.1 do direito».
Tal tendência de nellfra/ização do sentido político do Estado de
Direito seria abertamente potenciada pelo positivismo jurídico domi-
nante nos fins do século XIX. De facto, independentemente das moda-
lidades que assumiu257 , o positivismo jurídico traduziu-se invariavel-

o Governo, pode julgar o emprego legítimo das próprias funções. não há necessidade que
isso seja feito através de decisões de tribunais em jeito de terceiro poder» - ibid., pág. 344.
A limitação jurídica do monarca residia, em última análise, na pré-fixação de um processo
·' de formação das leis e da sua execução regular, no juramento do rei em as cumprir, na
fiscalização e censura do Parlamento e, sobretudo, na força moral da opinião pública.
w, Orro Bi\llR, 11p. cit., pág. 340; no mesmo sentido, para G NEtST, ,,o que ST,\ltL
designa por Estado de Direito poderia ser tex tualmente aprovado por todos os seus adversá·
rios» (R. G NEIST, op. cir.. pág. 1161 ).
ui Sobre os diferentes tipos de positivismo e as relações cmrc positivismo filosófico

e positivismo jurídico cfr., entre muitos, FRANZ WIEACKER, História do Direito Primdo
Moderno, trad., Lisboa, 1980, págs. 492 e scgs.; MARCEL WAUNE, «Positi\'isme
phisolophique, juridiquc ct sociologiquc», in Mélwi,:es R. Carré ele Malberg. Paris. 1933.
págs. 519 e scgs.; PÉ~C'Z LuNO, J11sm1111mlis1110 y l'osirivis1110 Juríclico e11 la Ira/ia Matfmw,
Bolonha, 197 l, págs. 39 e scgs. e 50 e segs.; N. Bonmo, Gi11s11a111ralismo e Posilll'ISIIIO
Giuridico, Milão, 1972, 111axi111e págs. 103 e segs.; Gumo FAssô, Historia de Ia Fi/osofit1
dei Derecho, trad., Madrid, 1981, Jll, págs. 151 e segs..

d
Eswdo de Direito (1\1/aterial 011 Formal) e Estado de Legalidade 115

mente numa pretensão de construir uma «ciência do direito» entendida


como estudo do direito experimentalmente constatável, ou seja,
como estudo elas regras de direito postas pelos homens, organizado
num sistema de conceitos abstractos, dominado pela lógica formal e
intencionalmente alheado dos valores 258• Ora, tal pressão «cientista»
e «formalista» marcaria inevitavelmente a concepção específica do
Estado de Direito, estimulando o abandono da sua caracterização
corno Estado limitado pela razão (KANT) e pelos direitos naturais2S9 e
acentuando o seu entendimento progressivo como Estado autolimitado
pelo seu próprio direito positivo, formalisticamente aberto aos con-
teúdos determinados por qualquer poder constituído, desde que verti-
dos em lei.
Em K E1-5EN teremos, porventura, a forma mais depurada e coerente
(porque consciente dos seus postulados) deste pensamento e desta
forma de conceber a racionalidade do sistema jurídico e das suas
relações com o Estado. Em KELSEN não se ignoram nem escamoteiam
os limites do positivismo, antes se assumem. Não se nega o axioló-
gico ou os valores no mundo do direito; simplesmente excluem-se da
ciência jurídica2 <'°.

~• Cfr, por todos. C,s-r,,NHEIRA NEVES, Q11estcio de Facto, Questão de Direito. págs.
870 e scgs. e O instit1110 dos assentos» ... , cit., págs. 528 e scgs; KARL L\RENZ, Metodologia
da Ciência do Direito, trad .. Lisboa. 1978. págs. 12 e segs. e 178 e seg.; Gu100 FASSÕ,
Historia...• cit., III, págs. J54 e scgs..
259
O mesmo STAIII, rcjeitn o jusnaturalismo e os direitos naturais como a expressão
mais perigosa do racionalismo ocidental conducente a afastar o homem de Deus (cfr..
HERBERT MARCUSE, op. cit., págs. 324 e segs.; CARLO AMIRANTE, ,<Introdução» a ERNST 1.:
foRSTHOFF, Stato di Diritto... dr .. pág. XVII; LuCAS VERDú. /.a /ucha por e/ Estado de 1 '
Dereclw, Bolonha, 1975, p.íg. 21 e seg.).
iw KEL~EN introduz uma dislinção funclamcnlal en1rc Direito (constituído pelas nor-
1
mas jurídicas) e a Ciência do Direito (expressa nas proposições que descrevem as relações
constituídas entre os foc1os :urnvés das normas jurídicas). E. ial como as leis nmurnis das
ciências da natureza. também as proposições jurídicas são totalmente a lhcias aos valores
(Wer(/i-eie) constituídos nas normas jurídicas que descrevem. A Teoria Pum do Direito é
1•
totalmente alheia a qualquer referência ao justo ou ao que deve-ser: pergunta apenas pelo
que é, sendo plena111cn1c assumida por KEL~EN como uma teoria do positivismo jurídico.
Por sua vez, a questão da validade das normas descritas pela ciência do direito
I· 1
resolve-se de maneira exclusivamente formal através de uma articulação cm que cada uma 1 j.
colhe a sua validade da norma que lhe é imcdialamcnte superior. m111111 cscalonação por 1 1'
andares, numa pirâmide cujo cume é a Gnmdnorm.
!I•
1
;,
'

116 Co11triblltO para 11111a Teoria do Estado de Direito

Da mesma forma, embora se admitam os fins do Estado (en.


1
quanto problema político), excluem-se do objecto da investigação
dos juristas. A Teoria do Estado, para se poder apresentar como
1
• ciência, não pode interrogar-se quanto aos fins prosseguidos pelo
Estado ou aos valores que fundamentam a sua actividade. «Do ponto
de vista da Teoria Geral do Estado a ordem coactiva estadual aparece
como um sistema fechado, logicamente autárquico, que não necessita
de ulterior fundamentação ou justificação perante uma instância situada
fora dessa ordem»i61• Nesse sentido o Estado é um fim em si mesmo;
para a Teoria do Estado, simplesmente, o Estado é.

Porém. esta norma fundamental não faz parte <lo sistema positivo; ela é um pressu-
posto, uma hipótese científica, uma condição do conhecimento do direito. KELSEN situa-se.
assim, na linha da teoria kamiana do conhecimento segundo a qual todo o conhecimento
ciemífico tem um carácter constitutivo do seu objecto, na medida em que transforma o caos
das sensações num todo com sentido, num cosmos. Só através da Ciência do Direito o
conjunto das normas postas pelos órgãos jurídicos se transfonna num sistema unitário
isento de contradições. O sistema é, par;i KetsEN. um produto do conhecimento. a síntese
superior dos dados da experiência jurídica operada por um sujeito individual colocado numa
atitude pllra perante o objecto, ou seja, um sujeito trcmsccndenwl que, metodologicamente,
pôs entre parêntesis os valores. as ideologias, os elementos decisórios e axiológicos que
enfonnam a sua posiçào existencial (cír.. LouRtVAL V1L<\NOVA, As Esrruturas lógicas e o
Sistema do Direito Positii'o, S. Paulo. 1977, p,ígs. 120 e segs.).
O sistema jurídico é sempre um sistema lógico. urna unidade fom1al resultante do
mesmo fundamento de validade que cada proposição tem no conjunto. E porque se trata de
uma unidade formal possuindo a sua própria lógica. este sistema autocontrola-se, funciona
sozinho. não necessitando de quaisquer reíer.:ncias a valores. a ideologias ou ao próprio
homem.
1 1 Com KELSEN podia finalmente o pensamento ju1ídico constituir-se como verdadeira
1
1 ciência, pois, sendo o seu ohjecto as normas jurídicas e as suas conexões de validade
1
fom1al. opera com conceitos rigorosamente definidos segundo o modelo das ciências for-
mais hipotético-dedutivas. Nes1c sentido, a Teoria Pura do Direito pode ser encarada como a
1! fonna mais acabada e coerente de aplicação ao Direito do monismo gnoseológico positi,ista
1, para o qual a racionalidade é teorética e o teorético se realiza cm sistema.
Cfr., por lodos. HANS Ko..s1.,111, Teoria Pura do Direito, trad .. Coimbra. 1976. passim
e. especialmente, págs. !09 e segs. e 267 e scgs.: CAsTANnmRA N12vr;s, Quemio de Focw.
Questão de Direiw, págs. 619 e scgs. e A unidade do sistl'ma jurídico: 0 seu problema e o
seu sentido. Coimbra. 1979, passim e, especialmente. p:ígs. 10 e scgs.; BArTtSTAMACIL~DO.
«Nota Preambular» à edição po11uguesa Je KEL%N - A justiça e O Direito Natural. tr.1d.,
Coimbra, 1963, págs. VII e segs.; LouRIVAL Vn.ANOVA, As Estmturas l6gicas e o Sistema
do Direito Posirivo. págs. 108 e scgs.; KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito.
.' ' págs. 81e segs..
2 1
• KELSC:N, Teoria Gt·neral dei Estado, pág. 52.

1
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1
•i
L.
l
-
Estado de Direito (Material 011 Formal) e Estado de Legalidade 117

E, tal como a Teoria Pura de KELSEN excluíra do seu sistema


jurídico qualquer possibilidade de individualização ou personalização
física, real, também excluirá, logicamente, qualquer hipótese de con-
sideração do Estado como entidade a se, autónoma relativamente ao
Direito. De facto, na cadeia de relações lógico-formais que constitui,
para K ELSEN, o sistema jurídico, não existe o homem, a pessoa física,
mas apenas a pessoa jurídica entendida como «unidade de um com-
plexo de deveres jurídicos e direitos subjectivos», ou seja, «a unidade
de um complexo de normas»262 .
Consequentemente, os mesmos pressupostos metodológicos
conduzem K ELSEN à redução do Estado a um mero esquema constru-
tivo·~úJ: o Estado é, não já um complexo parcelar de normas dentro da
ordem jurídica - como era a pessoa jurídica individual -, mas, e
apenas, o sistema de normas mais compreensivo, a personificação
jurídica mais compreensiva, porque se trata agora da recondução -
cientificamente concebível - da totalidade da ordem jurídica a uma
unidade. Assim se chega à identificação Estado-Direito ou, se se
quiser, à reabsorção exclusivamente formal do conceito de Estado
pelo de ordenamento jurídico2c,.1•
Esta recusa teórica do dualismo Estado-Direito arrasta ineluta- 1
1
velmente KELSEN para a crítica às concepções dominantes de Estado
de Direito nas suas duas vertentes, a jusnaturalista e a positivista
tradicional. À primeira. porque a postura positivista radical de KELSEN
afastava liminarmente a possibilidade de limitação do Estado pelos
direitos naturais do homem, considerados como instância pré e supra-

Cfr., KELSEN, Teoria Pura do Direito. pág. 244; «[...) uma análise mais aprofundada
:11.i
revela que também a chamada pessoa física é uma constmção aniticial da ciência ju1ídica [... ).
A chamada pessoa física não é, po11anto, um indivíduo, mas a unidade personificada das
normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mc$mO indivíduo. Não é uma
realidade natural, mas uma constmção jurídica criada pela ciência do Direito. um conceito
auxiliar na descrição de factos juridicamente relevantes» (ibid.. págs. 242 e 244).
Ou, como significativamente escreve ORLANDO OE C1RVA1.110 (Os direitos do homem
no direiro civil ponuguíJs. Coimbra, 1973, pág. 20), o formalismo kelscniano transfonna o
homem «de coração, que ele constitui, de toda a ordem ju1ídica [... ] num simples ponto
geométrico da rcgulamcnta~·ão cswhch:cida arbitrariamente pdo estado».
263 Cfr., por todos. E inmAIU>T SOARES, Liçcies de Direito Crmsti111cio11a/, p.igs. 50 e segs.
e LEoN Ducurr, «LeB doctrincs juridiqucs objectivistcs,,, i11 RDP, 1927, págs. 564 e scgs..
2"' Cfr., CARMELO C,1R1STJA, «Ventura e avventure di una formula: Rechtsstaat», i11

RDDP, 1934, 1, pág. 396.


4iili

118 Comrib1110 para 11111a Teoria do Estado de Direito

-estadual. Mas, não menos à segunda, na medida em que a reJetção


... daquele dualismo punha frontalmente em causa os alicerces da cons-
J
trução positivista tradicional de Estado de Direito (a construção que
.! globalmente temos vindo a designar como concepção formal), como
eram o entendimento elo Estado como pessoa e a doutrina ela auto-
limitação do Estado, os quais pressupunham a consideração do Estado
como entidade autónoma, anterior ao Direito e dele dispondo.
Na inevitável identidade entre Direito e Estado, KELSEN revelava
quer a verdadeira natureza cio Direito como «forma da ordem estadual»
e de todas as suas manifestações possíveis, quer a natureza do Estado
«como uma espécie de rei Midas que converte em Direito tudo quanto
toca», já que «não há l'im algum que o Estado possa prosseguir a não
ser na forma do Direito» 21' 5 • Simultaneamente, a superação do
dualismo Direito-Estado permitia levantar o véu ideológico que cobria
as doutrinas que lhe iam associadas (a doutrina ela personalização do
Estado e a concepção tradicional de Estado de Direito) e desmis-
tificar como interessada a legitimidade que elas conferiam a um
determinado tipo histórico de Estado.
Assim, se a personiticação do Estado constitui uma ficção inven-
tada para encobrir a dominação elo homem pelo homem, endossando
para a pessoa-Estado o ónus do imperium que é exercido por homens
reais 266, também a concepção tradicional de Estado de Direito, fundada
na teoria da autolimitação, se justifica pela necessidade de legitimar
um Estado que não podia mais recorrer à legitimação metafísico-
-religiosa. Nesse sentido, «o Estado deve ser representado como uma
pessoa diferente do Direito para que o Direito possa justificar o Esta-
do - que cria este Direito e se lhe submete»; o Estado, de simples
facto de poder, transforma-se então <<em Estado de Direito que se

! M Kru.srn, Teoria General dei Estado, págs. 55 e 57.

,, ""' Imputar os actos de i111peri11111, não a quem na realidade os executa, mas à pessoa
do Estado, «signilica. entre outras coisas. que o véu da pcrsonilicação do Estado encobre o
facto. contr,frio ao ideal democrático da igualdade. da dominação do homem pelo homem.
Nfio aceito ser dominado pelos meus semelhantes, mas tão só pelo Es1nclo; esqueço. porém.
,,' que o Estado é ,1pc11as a máscara que csconc.lc os meus semelhantes» (KELSEN. Teoria
1 General dei Estado. png. 88); cfr., o desenvolvimento desta ideia, integrado na i111c1prc1ação
de KE1.~r;11 ilcerca da liberdadl' na democracia e no lihcr:.ilismo, cm KEt-~EN, Teoria General
dei Estada, págs. 413 e scgs. e I Fo11da111e1ui dei/a De111ocrazia. tnd., Bologna 1970. págs.
14 e scgs..

,.

L,'.
p

Estado ele Direito (Marerial 011 Fonnal) e Estado de Legalidade 119

jus tifica pelo facto de fazer o Direito», o que coenvolve sempre


qualquer sentido de rectidão ou justiça161.
Diferentemente, o panteísnw jurídico kelseniano 26S, fundado
num «conhecimento do Estado isento de elementos ideológicos, e,
portanto, libe rto de toda a metafísic a e de toda a mística»269,
reconduz aos seus verdadeiros limites o problema das relações entre
Direito e Estado (que resolve numa identidade logicamente irrecusá-
vel) e ilumina dessa forma uma concepção científica de Estado de
Direito. Para esta, e a partir da referida identidade entre os dois
conceitos, resulta necessariamente que, como diz K ELSEN , «todo o
direito é um Staatsrecht e todo o Estado um Rechtsstaat» 21º.

167 Cfr.• KELSEN. Teoria Pttra do Direito. pág. 384; desta fonna KELSEN criticava o
positivismo do século XIX (que havia fo rmali::,ado a concepção material de Estado de
Direito, de matri z jusnaturnlista) por não ser suficiemcmcnte (ou coerentemente) positivista.
Nessa medida, denuncia a «sobrcvil'ência larvar» dos preconceitos jusnaturalistas no
positivismo tradicional. pois. também aqui, sob a capa da ciência, eram objcctil'os ideológi-
cos que se prosseguiam. isio é. a legi timação política ele um tipo panicular de Estado - o da
burguesia que pretendia estabilizar a su,1 dominação. Cfr., neste sentido, ALBERT
CALSAMIGLJA, «Estudio Preliminar» à tradução castelhana de ll'hat is J11stice de KELSEN,
Barcelona. 1982, págs. 28 e segs..
:c.s Cfr.• DuouJT, Les doctri11es juridiqucs objectivistes. pág. 562.
KELSEN desenvolve largamente o paralelo que, em seu entender, existe entre a Teoria
que concebe o Estado como entidade metajurfdica e a Teologia que defende a transcendência
de Deus face ao Mundo; para ambas, a questão fundamental é o problema da relação entre
Criador e criatura, entre Deus (Estado) e Mundo (Direito), e, em ambas, a solução encon-
trada é análoga; o mistério/dogma da Encarnação do Verbo divino (para a Teologia) e o
mistério/dogma da autolimiiação do Estado (para a teoria do Estado); tal como Deus, feito
homem, vem ao Mundo e se sub mete às leis da natureza (nasce, sofre e 11101re). também o
fatado-todo-podcroso se humaniza submetendo-se voluntariamente ao direito que ele pró-
prio criou. Só que, para aceitarmos este mistério da autolimi tação, teríamos que pennancccr
no domínio da Fé e não no ela Ciência. «E, assim como o caminho para uma autêntica
ciência da natureza somente foi desimpedido através do panteísmo. que identifica Dt.!uS com
o mundo, quer dizer, com a ordem de natureza, também a identificação do Estado com o
Direito, o conhecimento de que o Estado é uma ordem jurídica, é o pressuposto de uma
genuína ciência jurídica» (Teoria Pum do Direiw, págs. 423 e seg.); cfr., ainda, Teoria
General dei Estado, J>.~gs. 100 e :.egs..
2"" Teoria Pura do Direito, pág. 385.
1~' Cfr., L. Ducurr, Les doctri11es juridiques ol~icctfristes, págs. 563 e scgs ..
«[... ) do ponto de vista do positivismo jurídico. todo o Estado é um Estado de Di reito,
no sentido de que todos os actos estaduais são actos jurídicos porque, e na medida em que,
realizam uma ordem que há-de ser qualificada de jurídica» (KELSEN, Teoria General dei
Estado, pág. 57).

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:1 120 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
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Assim, a Teoria Pura liberta o «Estado de Direito» de toda a sua
carga ideológico-legitimadora, convertendo-o num conceito plconás-
·1 tico271, já que, sendo o direito «a forma de todos os possíveis conteú-
11
' 1
., dos»272, todo o Estado, independentemente dos valores em que se
1 I funde e dos fins que prossiga, é um Estado de Direito enquanto ordem
jurídica.
Porém, tal não significa que KELSEN escamo teie as diferenças
essenciais entre os vários tipos de Estado resultantes da diversidade
dos valores que os fundam ou negue a existência de uma espécie
particular de Estado que justifique a classificação de Estado de Direito
material; seria este um Estado que globalmente corresponderia às
I!
1
exigências da democracia e da segurança. onde jurisdição e adminis-
tração estariam vinculadas às leis criadas democraticamente e as liber-
~I
dades dos cidadãos garantidas 273.
I· Simplesmente, tal postura releva já do domínio da Política, da
' •• t ideologia, da superstição j11s11at11ralista. Empenhado na construção

lt' de uma genuína ciência j urídica , KELSEN exclui metodologicamente


tais considerandos. pois. do ponto de vista da Teoria Pura do Direito,

·, z71 Porém, se a elaboração acabada dos fundamenios teóricos desta crítica coube a
"
1 KELSEN, importa noiar que a ideia geral estava cmbrionariamente presente cm toda a postura
positivista; já no século XIX. VAN KRIEKEN (Teoria Organica dei/o Stato, trad., Torino, 1981,

','1..
1 ''
págs. 1355 e seg) considerava inlÍtil e supétf/110 designar um Estado como Rechtsstaat,
visto que o Estado [... ) deve visar um fim jurídico, tutelar o direito, situar-se no terreno
' jurídico: desde logo porque o C()ncei10 de direito já eslá contido no conceito de Estado».
271 KELSEN, Teoria General dei Eswdo, pág. 53.
273
Cfr.. K ELSEN, Teoria General dei Estado. pág. 120 ou Teoria Pum do Direito,
i,:: págs. 417 e 424.
Convém, no enlanto, referir que, para além ele remeter a caracterização material do
1 Estado de Direito para o domínio dos rreconceitos jusnatur:ilisUL~ (Tt>oria Pura ,to Direito.
pág. 417), KEJ.SEN reduz o seu alcance a um nível mcr:imcnle técnico (assim, idcntilka o
sentido material do Estado de Direito como sentido técnico ele Estado - Teoria G('tleml dei
!: ·I: Eswdo, pág. 120), na medida cm que. por um lado, com este conceito se procuraria unica-
1 ' mente responder à exigência de que os ac1os jurídicos individuais correspondessem às
normas gemis (ibid.) e, por outro, o v:for essc:ncial que com ele se visava salvaguardar não
i'
' era a libcrd:1dc ou os direitos dos cidadãos - o que scí rcllexamcntc se verificaria -. mas
•: ames a scgurJnça jurídica (cfr., neste sentido. Krc,sr,N, / Fmulamemi dei/a Democraúa.
:,l, . págs. 277 e segs.).
h
•'
·~..'' .'
G1uSEPl'INO TnEvES (Co11sidemzim1i sul/o stato di diriuo, pág. 1600) assinala. todavia.
1
'. l•• que nos úllimos anos da sua vida K ELSEN teria matizado o tecnicismo do sentido que atribuía
ao Estado de Direito material, realçando a garantia da lihcrdade por ele proporcionada.

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Estado de Direito (Material ou Formal) e Estado de Legalidade 121

0 Estado é apenas «uma ordem coerciva de conduta humana - com o


que nada se afirma sobre o seu valor moral ou de Justiça». E, então,
o Estado - qualquer Estado, autocrático ou democrático274 - «pode
ser juridicamente apreendido como sendo o próprio Direito - nada
mais, nada menos» 215 •

3. O «Estado de Legalidade» - seu sentido e seus valores

Se o sistema de KEl-'>EN é, de um ponto de vista lógico-formal,


impenetrável à crítica, o mesmo não poderá dizer-se se, contestados
os seus pressupostos metodológicos, confrontarmos a ciência jurídica
pura com a realidade social e histórica em que sistema jurídico e
cientista cio direito inevitavelmente se situam. E, aqui, não será ousado
concluir que a construção kclseniana de Estado de Di reito se
reconduz, como diz SARTORl rn', a uma circularidade tautológica na
medida em que quando arranca o Estado de Direito ao mundo de
dados históricos que lhe deram origem 277 , e a que ele procurava
responder, resolve o problema antes mesmo de verdadeiramente o
colocar. De facto, em torno da identificação Direito-Estado, K ELSEN
constrói um edifício lógico de uma coerência irrefutável, mas só 11
possível porque assente na voluntária ignorância epistemológica do 1
1
verdadeiro alcance do Estado de Direito enquanto projecto de limita-
ção jurídica dos detentores do poder com vista à salvaguarda dos
1
direitos fundamentais cios cidadãos. 1

Assim, fundamentando a sua crítica à inoperacionalidade e vacui- 1

dade da concepção tradicional de Estado de Direito em sentido formal


nos mesmos pressupostos positivistas que a haviam inspirado - pois
11
l
"' «O poder limitado [...] e a arbitrariedade do governo autocrático - 011 d.::spótico,
cnmo por vezes é chamadn - não é motivo suficiente para negar o caníctcr jurídico de
um ordenamento social que politicamente tem um caníctcr autocrático» ( KELSEN,
I Fo11da111e111i ..., dr .• pág. 283. nola).
"~ Teoria Pura do Direi/o, pág. 424.
"'' Crr., G1ov,1NNI S,111TOR1, Nota sul rapporto.... cit. , págs. 312 e segs..
117
«Do ponto de vista do positivismo 1... 1a unidade de Estado e Direito é essencial, é
independente de toda a valoração histórica e não pode ser considernda como faclO histórico,
porque todo o Estado, incluindo o Estado absoluto, é 11nm ordem jurídica» (KGt.Si,N, Teoria
General dei E.wado. pág. J03).
'

122 Co111rihuto para 11111a Teoria do Eswdo de Direito

estes, se levados às suas últimas consequências, precipítam obrigato-


riamcnle a conclusão de que todo o Estado é Estado de Direito -,
K ELSEN acaba por constituir teoricamente o Estado de Direito como
Estado de Legalidade. De facto, KELSEN apresenta um «Estado de
Direito» finalmente depurado dos valores que, explícita ou implicita-
mente, o acompanhavam desde a sua origem, culminando um pro-
cesso que, embora partindo da formalização do conceito originário,
desemboca numa construção teórica que, em nosso entender, justifica
a designação autónoma de Estado de Legalidade.
Se na sua caracterização material o «Estado de Direito» era
essencialmente um conceito de luta política por um tipo particular de
Estado fundado numa particular ideia de Direito; se na sua redução
fonnalista o «Estado ele Direito» oculíava os valores que enformavam
esta ideia para privilegiar as técnicas formais que a garantiam, já o
Estado de Legalidade só é de Direito porque actua na via do Direito
(positivisticamente identificado com legalidade) e não porque defenda
ou se sustente numa particular ideia de Direito278•
Se o Estado de Direito formal deixara apenas de se interrogar
pelos valores que, entretanto, garantia politicamente, o novo Estado
de Legalidade abre-se a quaisquer conteúdos, a quaisquer fins, desde
que actuaclos na via da legalidade. O primado da lei e o princípio da
legalidade transmutam-se, sucessivamente, de meras técnicas formais
ele realização dos valores liberais (no Estado ele Direito liberal, em
sentido material), em valores autonomizáveis (no Estado de Direito
r formal - onde uma intenção política liberal, de garantia e, nessa
medida, ética, lhes estava implícita 279 ) e, por último, no Estado de
Legalidade, em quadros neutros abertos à realização de quaisquer
fins.
No fundo, esta metamorfose do Estado de Direito (ou, na signi-
ficativa expressão de LOMBARDI: a conversão, por e.tcesso de co11fia11ça,
«da ideia do Estado de Direito na ideia do direito cio Estado» 2so)

'"' Cfr., C.,sTANHl;IRA Nnv1~~. O i11s1i11110 dns ,,as.wmros».. ., cit., piígs. 572 e segs. e
J11stiça e Direito, Coimbra, 1976, p,igs. 9 e scgs, e 29 e scg .• onde se cncomra par.1 este tipo
de Estadc a designação de «Estado-de-Direi to de /ewdidade».
"" Cfr .. CASTANHr:JM N EVES, O i11sri11110 dos «(ls.,·e11 ros» ..., cit., págs. 576 e segs. e
:l
! ' EH111MRD'f SOARilS, «Princípio da legalidade ... ,» dr .• pág. 172.
1
'" Apud CA!iT,\NlfülR,\ NEVJ:S, J11stiça e Direito. pág. 30.

.!
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i'h .
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Estado de Direito (M(l(erial 1111 Formal) e Estado de Legalidade 123

correspondia a um processo de integral «exaustão axiológica do Es-


tado liberal»~N,, na medit.la em que os valores remanescentes no Estado
de Legalidade crJm agora compatíveis com os mais diversos projectos
políticos. De fa cto, valores essenciais ao Estado de Legalidade são
apenas a certeza e segurança jurídicas inerentes à observância do
princípio da legalidade, isto é, valores exigidos pela necessidade de
estabili1.ação t.lc qualquer ordem estadual e não apenas da particular
ideia t.lc direito liberal à qual, na origem, vinham intimamente asso-
ciados.
Porém. a constatação das consequências do processo enunciado
- nomeadamente. a potencial abertura do conceito de «Estado de
Direito)) aos mais discutíveis conteúdos - não pode sign ificar um
qualquer menosprezo da importância daqueles valores, mesmo que
formalisticamente entendidos; na realidade, a simples observância do
princípio da legalidade traduz-se objectivamente em limitação da
margem de arbítrio do Poder.
Como diz K ELSEN. a rufe of lm v não resolve o problema da
arbitrariedade, na medida em que o poder de criação legislativa é, da
parte do órgão legislativo, praticamente ilimitado e na aplicação da
norma geral pelos órgãos administrativos e judiciários permanece
sempre uma margem de discricionaridade, pois a norma individual
não deixa de conter necessariamente algo de criação de direito; porém,
traduzindo-se em racionalização da actividade do governo («a rufe of
law não garante a liberdade dos indivíduos sujeitos ao governo porque
não se refere às relações entre governo e governados, mas a uma
relação situada no próprio âmbito do govemo»282 ) através da unifor-
mização das funções de criação e aplicação do direito, a ru/e of lmv,
visando embora unicamente a segurança jurídica resultante da capa-
cidade de prever a actividade dos órgãos administrativos e judiciários,
não deixa, nessa medida, de contribuir para evitar o governo autori-
tário283.
Tudo se passa, segundo a feliz imagem de ANTÓNIO JosÉ
BRANDÃ028\ como se César, quando aceila constituir-se como poder

11
= Cfr.• LUCAS PIRES. O problema tia Co11stit11ir(io, págs. 47 e scg~..
:u KELSEN, / Fomla111e111i dei/a De111ocmzi11. pág. 278.
:,, li .
,,,1., págs. 277 e scgs ..
~ ANTôN10 JosÊ BRANDÃO, «Estado ético contra Estado jurídico?», pág. 292.
...........
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t 124 Co11trib1110 para 11111a Teoria do Estado de Direito
.
~
1

político, se encerre no sistema normativo por ele criado, surgindo


assim «numa situação dependente parecida com a da aranha que,
depois de feita a teia, só consegue deslocar-se e prosseguir os seus
fins, respeitando o caprichoso entrelaçado dos filamentos». Ora, desta
(auto)limitação de César - e quaisquer que sejam os fins prossegui-
dos - resulta inevitavelmente, ainda que por mero efeito reflexo, a
criação de esferas relativas de liberdade dos cidadãos285 •
Inversamente, o reconhecimento da importância destes valores
não pode justificar, por si só, a qualificação do Estado de Legalidade
como Estado de Direito, como o pretende uma corrente de Autores
onde confluem quer as influências do positivismo jurídico quer o
relativismo axiológico dos que, para evitarem a perversão do Estado
de Direito às mãos de uma intenção material que, na sua ambição,
1
·1,' acabasse tendencialmente por subverter o projecto originário, redu-
''
1. zem preventivamente ao Estado de legalidâde a única expressão
válida de Estado de Direito2s6.
É que o primado da lei e o princ1p10 ela legalidade - e conse-

:1r i
quentes valores de certeza e segurança jurídicas - . embora constituam
limites ao arbítrio do Poder, não podem, por si só, ser considerados
como garantias globalmente dirigidas à salvaguarda dos direitos fun-
li damentais; de facto , na via da legalidade podem ser actuadas as
'
intenções mais diversas, incluindo as que objectivamente se alheiam

,, ,s Cfr., ne~te sentido. RADBRUCH, Filosofia do Direito, li, págs. 137 e seg.; GOMES
CANOTll.HO, Co11stituiçüo Dirigente e Vi11culaçüo do Legislador, pág. 48; JoRGE MIRANDA,
Manual de Direito Comti111cional, lll, págs.144 e scgs..
™ Cfr.. neste sen1ido. as posições de Guroo FASS() («Stato di Dirillo e Stato di
Giustizia», págs. 85 e seg.) e, parcialmcme, de STLFAN RoZMARYN («Comunicação ao Co16·
guio da Associação internacional das Ciências Jurídicas sobre a mie of lmv» em Chicago.
1957, i11 R!DC, 1958, n.º I, pág. 75).
Assim, para FAssó, ao contrário do projcc10 liberal de Estado de Direito (que, no seu
emcndcr, propugnava um verdadeiro Estado de Justiça na medida cm que correspondia a
um ideal ético). o Estado deve. antes. afirmar-se como .-E<tado de legalidade, cujo direim
realize apenas o valor da cc11cza - e da liberdade que lhe cst:í consequentemente irnpli·
cada» - e nunca como Estado de h·Kiti111id111le; também para Roz~uRYN, os valores do
Es1ado de Direito não devem confundir-se com os ideais de uma de1enninada filosofia. mas
constituir e limitar-se ao que design,1 como «valores inlrínsccos» - «a paz. a ordem, a
previsão, a segurança jurídica» - inerentes às ins1i1uiçõcs do Estado de Direito. embora
nestas ins1i1Uiçõcs ROZMARYN inclua como essencial «a existência de um conjunto de direitos
fundamentais, liberdades e garantias 1r:1dicionais».
-
Estado de Direito (Materit,/ 011 Formal) e Estado de Le11alida<le 125

ou atentam contra aqueles direitos e, logo, contra o Estado de Direito


tal como o entendemos.
Nesta hipótese, a absolutização do princípio da legalidade como
valor em si e a proclamação incondicional do dever de obediência às
leis positivas - que, no fundo, constituem os traços caracterizadores
da ideologia do positivismo e formal ismo jurídicos - não podem
deixar de ser entendidos como cúmplices daquela perversão dos ideais
da limitação jurídica do Estado, na medida em que funcionam objecti-
vamente como instrumentos de legitimação de toda a ordem vigente,
enquanto ordem jurídica estabelecida. Independentemente do juízo
global acerca da responsabilidade do positivismo no advento dos
regimes autoritários na Europa do pós-guerra287, urge reconhecer que
esta postura favorecia indistintamente a estabilização e conservação
de todo o Poder constituído.
Se, inicialmente, o positivismo se podia apresentar como pro-
gressista, na medida em que atacava os alicerces ideológicos do
ancien régime, virá posteriormente a assumir um cunho marcadamente
conservador de defesa do statu. De facto. pretendendo descobrir na
sociedade as leis que a governam inexoravelmente, o positivismo só
pode pregar a resignação perante o dado, a aceitação do facro e a
indiferença perante a possibilidade de transformação e mudança im-
primidas pelo homem. Ainda que se disfarce de neutro e imparcial
ou se convença que é anti-ideológico e anti-legitimador, o positivismo
jurídico é sempre a tolerância para com o direito dado (o que o torna "

2
1<1 Acolhemos nesla qucs1ão particular as dcmons1rações de D00010 acerca do
prelenso carác1cr conservador ou reaccionário do posilivi~mn e formalismo jurídico~ e,
segundo as quais. sendo ccr10 que c~1as ideologias defend.:111 indiscriminadameme a ordem
es1abelccida de Ioda a crí1ica que lhe seja dirigida cm nome de valnrcs exógenos, ludo
depcnder.l, cm úllima análi~e. da nalureza do s1ar11 q110 que s.: serve: :L~sim, se na hália.
numa primeira fa.~c. o posilivismo íoi uma bam:irn conlra as invcs1idas do fascismo ascrn-
demc (numa allura cm que a ordem e~lahclccida era ainda a lihcral), é indisc111ívcl que,
consumada a vi1ória dnquclc. o pnsi1ivis1110 jurídico lhe pres1nria vass:ibgem incondicional,
contribuindo, no seu domínio csp.:cífíco, para a csrnhilização e cons~rvação da ordem fas-
cis~ (cfr., assim, N. Bo1rn10, Gi11.mawrali.rn111 t• Po.sitfrismo Gi11ridico, págs. 12, 95 e scgs.
e 114 e segs.).
Cfr., ainda, as reflexões de Pt Rr:Z Lui'lo sobre a polémica em 10010 desta ques1ão
(J11s11a111ralismo y Positidsmo Jurídico en /a /tâ/ia Moderna, págs. 111 e segs.). o qual não
isen1a, porém, o posi1ivismo jurídico de responsabilidades efcclivas no próprio advento do
fascismo.
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I• aceitável por todas as ordens estabelecidas), é sempre adequado,
'1
1t como diz MARcusc288, a fundar uma teoria positiva da autoridade.
'•
11
11 Paralelamente, a construção positivista do Estado de Direito, que
1: inicialmente se justificava pela superioridade técnica e neutralidade
1 l ética dos seus fundadores 289, cedo conduzia à desresponsabilidade
axiológica do poder legislativo, de que resultava, não a autoridade
impessoal do direito, mas a legitimação do arbítrio do legislador.
Assim, a função legitimatória do conceito de Estado de Direito, que o
positivismo jurídico procurara erradicar através da sua caracterização
como Estado de legalidade290 , reentraria paradoxalmente pela janela
aberta por tal redução fonnalista; pois. se com ela se visava recusar a
legitimação de particulares tipos históricos de Estado, na realidade,
tal construção proporcionaria que Estados situados nos antípodas do
projecto originário de limitação jurídica do Poder pudessem - através
de uma agora ambígua caracterização como Estado de Direito (de
legalidade) - recolher parasitariamente a legitimidade resultante do
prestígio acumulado por aquele ideal.
188 HERBERT MARCUSE, RaZtiO e Revolução, pág. 309.
'"' Cfr., neste sentido, ERNST FoR~1·HoFF, Sraro di Dirilto i11 Tra11sformazio11e, p.ígs.
13 e segs. e E/ Eswdo de la Sociedad /11d11strial, pág.17; FRANZ W1F.ACKER, HisMria do
Direito Privado Modemo, p:ígs. 501 e segs.; GEORGES RirERT, Le Déc/i11 du Droit, Paris,
1949, págs. 1 e scgs.: defendendo uma posição contrária, cfr.. D0M1N1QUE CHARVET, «Crise
da Justiça. crise da lei e crise do Estado'!» in N1cos PouLAN1ZAS (org.). A Crise do fatado.
Lisboa, 1978, págs. 225 e scgs., 111axi111e pág. 228.
Também LuHM.ANN considera a positivação do direito como a caracterísl.ica mais pe-
culiar do Estado de Direito: para Lu11MANN (cfr.. Staro di Dirino e Si.l'te11111 Socia/e, 1rnd.•
,,,
;i
Nápoles. 1978. págs. 40 e segs.), o lacto de que a validade do direi10 passe a estar «comple-
tamente dependente de decisões organizadas 1... J sob a responsabilidade de um sistema
social oportunamente especializado» (op. cir., pág. 41 ), signilirn, no que se refere .io sistema
político, a transição de um sta/11 de «premissas dccisionais pré-estabelecidas externamente»
- corno era o caso do direito natural - para «premissas decisionais elaboradas internamente,
as quais devem apenas ser ltar111011iu ulas com o ambiente» (op. cit.. pág. 42).
Neste sen1ido, de um ponto de vista sistémico, ,,mi processo surgi1;í como um pro-
gresso, isto é, como um aumen10 da complexidade e da segurança ambienial da sociedade»
(op. cir., pág. 41 ).
Para a específica concepção de Estado de Direito de Lut1MANN, para além da obm
citada, mmiml' p:ígs. 32 e segs., cfr., ainda. a respectiva «Introdução» de AulERTO FEDBRAJO
e, entre nós, a síntese de Go~11~~ CANOTILIIO, Co11stit11içtin Dirigente e Vinrnlaçcio do le,~is·
lador, Coimbra, 1982, págs. 104 e scgs..
:•,o A superação metodológica do dualismo Estado-Direito dew,ia constituir-se, se·
gundo KELSEN, na «aniquilação impiedo~a de uma das mais eficiemes ideologia~ da legitimi·
dade» (Teoria Pura do {);reiro. pág. 425).
CAPÍTULO V
O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais
na Europa do Século XX

Anal isadas as diferentes perspectivas teóricas de utilização do


conceito de Estado de Direito, coloca-se-nos agora a questão - alvo
de desenvolvidas polémicas nos anos trinta - da propriedade da i','
caracterização como «Estados de Direito» de realidades estaduais
que, no que se refere aos fundamentos teóricos ou à concretização
prática, se colocam claramente nos antípodas do Estado liberal a que
o conceito surge historicamente associado ou do Estado democrático
sob o qual manifesta a sua actual vitalidade.
Ou melhor, e como refere R ENATO TREVES29 1 - ele próprio tomando
parte activa naquela polémica -, a questão não é tanto averiguar
daquela possibilidade (susceptível de resposta afirmativa ou negativa,
consoante se determina a es sência do Estado de Direito com o
objectivo, de acordo com as mais diferentes motivações psicológicas
ou políticas, de a fazer coincidir com o Estado totalitário), mas antes
o de saber se, de um ponto de vista do progresso e aprofundamento
do conhecimento jurídico - indissociável da necessária clarificação
de conceitos e eliminação de equívocos e confusões interessadas -. é ou
não útil, oportuno e histórica e logicamente fundado proceder àquela
operação.
Esta questão revela-se da maior importância para o nosso traba-
lho, na medida em que comprova indirectamente a justeza do enten-
dimento de «Estado de Direito» que temos perfilhado. Pois, se
empiricamente resulta nítida uma oposição radical entre os Estados
totalitários e o Estado liberal, importar,í esclarecer se, no plano teórico,
tal oposição se traduz num tratamento diferenciado das questões
ineliminavelmente vinculadas ao problema do Estado de Direito,
11
~ «Stalo di Diriuo e Stati Totalitari», cit.. pág. 58.
""'
128 Co111rib11ro para 11111l/ Teoria do Estado de Direito

como sejam a natureza da5 relações entre o indivíduo e o Estado e a


limitação jurídica do Poder. Confirmada esta hipótese, revelar-se-ia
adequada a concepção do Estado de Direito que, permitindo apreen-
der o sentido das diferentes perspectivas sob que foi analisado desde
a sua origem, simultaneamente impossibilitasse a sua apropriação por
parte de Estados que, historicamente, se colocaram à margem e em
oposição ao ideal que o fez nascer.
Daí o desenvolvimento e a importância, que diríamos decisiva,
do presente capítulo no nosso trabalho.

I. Os Estados totalitários da E uropa ocidental como Estados


de (não) Direito

Quando a crise económica e social que se segue à primeira


guerra mundial patenteia a impotência em que se encontra mergulhado
o Estado liberal (cuja neutralidade, sustentada no forma lismo lega-
lista que realçámos no capítulo anterior, mal disfarçava uma ausência
de valores que o deixava inerte perante as convulsões sociais e a
crise çle legitimidade que assolavam a Europa), serão várias as direcções
programáticas em torno das quais se visará a superação do legado
liberal oitocentista.
Entre elas emerge uma corrente marcadmnente conservadora,
anti-liberal e anti-soviética, orientada para a conslrução de uma ordem
nova sobre as bases de uma crítica à neutralidade, vazio axiológico e
atomismo do Estado liberal, ao individualismo e egoísmo da sociedade
«burguesa» , ao parlamentarismo e ao racionalismo legalista, em
nome da deificação do Estado concebido como lim em si, da eticidade
do poder político, do culto indefinido de uma «rel igião do génio». da
crença no heroísmo predestinado e no papel determinante das elites
orgânica CHI biologicamente segregadas, num contexlO filosófico e
cultural de um irracionalismo bebido em H EGEL, Nit:TZSCHE ou BERGSON.
que, nas novas condições do pós-guerra, reproduzia em larga medida
os «Leitmotive» da contra-revolução francesa, dos românticos alemães
ou da escola llistórica do direito 292 •

'.!9? Cfr .. a visão glob.11 de H ERMANN H ELLER, Rechtsstam oder Dik1a111r?. TObing~n.

1930, 111axi111e págs. 11 e scgs. e E11rop11 y e/ Fasci.1wo, dr., págs. 35 e segs., bem co111n <k
H EROERT MARCUSE, Razlio e l<t:110/uçlio, págs. 361 e scgs ..

d
..
o Estado de Direito e as Experiências Ami-Liberais 129

Esle seria o indefinido corpo ideológico que, de algum modo,


enfonnou as experiências políticas que, a partir da Itália de Mussolini,
sucederam na Europa entre as duas guerras (Alemanha, Portugal,
;spanha, Grécia, Polónia, Hungria, _Turquia). Não sendo unívoca a
relação de cada um destes novos regimes com o quadro liberal donde
emergem, é, no entanto: possível d~tectar nas instituições em que o
Estado novo se concretiza um senttdo comum que encontrará a sua
expressão mais acabada nas experiências totalitárias que se constitui-
riam cm novo paradigma - o Estado fascista italiano e o sistema
nacional-social ista germânico.
Assim, e independentemente da extensão e dos contornos que
assumem os novos princípios e institu ições, é possível destacar,
como traços imlividualizadorcs do novo modelo: a centralização do
exercício do poder numa única pessoa (não eleita, embora eventual-
mente nomeada pelo Chefe do Estado, quando as duas figuras não
coincidem); a autoridade plena e ilimitada do Estado totalitário e o
não reconhecimento aos indivíduos de direitos e liberdades absolutos
ou originários; a identificação da sociedade nacional com o Estado,
a cuja elicidade intrínseca não são alheios qualquer actividade ou fim
particular; o carácler dogmático do Estado, expresso na rejeição da
possibilidade de uma oposição legítima (política ou doutrinária) e na
p11blicização do partido único; a conformação estadual das relações
económicas e laborais entre os corpos intermédios 293•

1.1. O Estado fascista italiano

Coincide a doutrina em constatar a ausência de um corpo ideo-


lógico sólido e de uma prévia teoria do Estado que o movimento e a
revolução fascistas se propusessem realizar. O movimento fascista
era essencialmente uma reacção irracionalista e instintiva contra um
status, um activismo glorificador da acção directa em prejuízo do

m Cfr., entre muitos, RonERT PEu .oux «Contribution à l 'étude des régimes
aut 0 · · •
. .n~aires contemporains,,, í11 RVP, 1945, págs. 334 e scgs.; GulDO LUCATELLO, «Profilo
i~undico dello Stato lotalitario», í11 Scríttí Gíurídíce i11 011ore dí Sa111i Romano, I, Padova,
4o, págs. 577 e segs. e G cRIIARD Lcm1101..Z, «li secolo XIX e lo S1a1o totalitario dei
presente,,, ín RIFD, 1938, págs. 1 e segs..

1
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Contributo para uma Teoria do Estado de Direito


130

intelectualismo que enformava a combatida «metafísica liberal do


progresso»294. Este vazio doutrinário, que abria a teoria fascista às
diferentes influências e argumentos, marcaria, nesta primeira fase, a
Teoria do Estado com um acentuado empirismo - posteriormente
apresentado como superioridade face ao racionalismo liberal para-
lizante - que permite explicar a convivência inicialmente «pacífica»
do movimento fascista com o quadro constitucional anterior.
Ou seja, na ausência de uma Teoria do Estado acabada que se
pudesse constituir como alternativa, o fascismo vitorioso aceita inici-
almente o Estatuto Albertino como quadro onde imprimirá sucessivas
e profundas reformas constitucionais295 ; nessa fase, o Estado conti-
nua, acriticamente, a ser cons iderado como pessoa jurídica titular da
soberania, sendo o Duce, enquanto Capo di governo, simplesmente
um dos seus órgãos296.
Posteriormente, consol idada a vitória, emergiria uma doutrina
fascista sob o patrocínio teórko directo de MussouN1297, a qual, não
obstante em grande medida corresponder a uma teorização a
posteriori das experiências do l'vlovimento, se traduziria num esforço
de elaboração - nem sempre pacífico e consensual no próprio campo
dos defensores do regime 298 - de uma autónoma Teoria do Estado

m A f?r~ula «o acto precede sempre a norma» do Estatuto do Partido Fascista e o


lema mussohn1ano
estado de , · d de . «temos
. . necessidade não de verdade , mas de acç.io», , · o
resun11am
• . esptrtto a pnme1ra lase do fascismo, na qual toda a doutrina se li mitava neoativa·
mente a luta contra a cnse , . do Estado e, on de o un1co
' · e proclamado objectivo programático "
era o de «governar a Itália» (cfr.• por to dos,· HERMANN I-I ELL ER. Europa \' e/ Fmcismo
63 ~ págs
. e scgs.; MARCI:L PRÉt.OT, «La théoric de l'État dans I D . .. . . . . • .
Ç{lrré de Malberg, Paris, 19 áos , . ' · e ro1t lasc1ste» m Mélanges R.
:!'I S C , 33· ' P_o·· 435 e segs., GF.R!tARD Lrnm1012, op. cit., p;ígs. 30 e scgs).
. . fr., quanto a evoluçao constitucional positiva G .. '. ' . . . .·
Cos/llUZ/011(1/e Comparllfo p d ' 198 , ' IUSEPI [: DE VF.RGOrrtNI, D1111/0
. . . · ª ova,, 1, pags. 593· e ·segs· · e L 1\,10 pAL\DIN, « Fasc1smo».
111 E11c1clopedia dei Dirillo XVI
.,·
2'11, . • , pags. 887 e scgs ..
Assim, Roem BONNARD «Le Droit l'É
i11 RDP, 1936, págs. 205 e segs.. ' et tal dans la doctrine nationale·socialiste»,
• 2'11 Referimo-nos ao ai1igo «Fascismo» bl' . . . .
assinatura do próprio MussoUNI (pa . • pu icado na Enc1c/opedw lta/w11a sob a
· r,, a1guns a auto ·· · d · f
Gumo FAssô, Historia ,!e la Filosofia , • na s;na e facto de GENTILE - c r..
posterior edição como La Dot1rina ~1e1. 0. erecho: li 1, pag. 255), que aqui u1iliz,1mos m1
m Cf 1 1 M1hno Rc 1933
• r., CARLO CoSTAM ' \GNA
' •
s,'e11,.·1ar mc1s1110
e D 011ri11a
' f' ,J r::· >ma,
· ·· · , O
segs., onde, a par cio esforço de constr _ d <e . asc1s1110, Tonno, 1938, pags. 13 e
'
1 dura polémica - no fünbito dos dcfei~so L'.Ç~~ e u~na lcona do fascismo, se desenvoh·c: uma
J.,. Estado novo com quadro liber·il ies O regime - com as tentativas de compalitiiliiar o
. O ' Ou mesmo de ent d d
de uma snnples depuração do Estado liberal. en er o Estado fascista como resulta ll
l'
f
1:
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1,

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O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais 131

cujas principais linhas de força, no atinente às relações com o problema


do Estado de Direito, procuraremos destacar.
Desde logo, e com uma influência decisiva nesta questão, nos
surge a relevância absoluta do Estado na doutrina fascista, com a
consequente desvalorização ou eliminação do pólo que temos vindo
a considerar como determinante no conceito de Estado de Direito -
as esferas de autonomia dos cidadãos. De facto, comum às várias
experiências autoritárias é a recuperação da ideia de Estado como
fim em si mesmo, como entidade transcendente cujo engrandeci-
mento ocupa o centro das preocupações de regeneração presentes
nas diversas Constituições europeias do pós-guerra299 • Mas, é sem
dúvida o fascismo italiano que de forma mais radical e consequente
proclama tal princípio, fazendo jus à fundamentada caracterização da
época fascista como «epoca dello Stato» 300•
MussouNI, que em diferentes ocasiões após a vitória qualificara
já de totalitário o Estado fascista emergente301 , desenvolve o sentido
desta fórmula no referido ensaio publicado pela Enciclopedia Italiana:
«para o fascista tudo está no Estado e nada de humano ou espiritual
existe, e muito menos tem valor, fora do Estado. Nesse sentido o
fascismo é totalitário e o Estado fascista, síntese e unidade de todos
os valores, interpreta, desenvolve e potencia toda a vida do povo»3º2•
Para o Estado fascista não há, portanto, esferas de autonomia parti-
culares (do foro espiritual ou temporal, individuais ou colectivas) à
margem da intervenção e da soberania absoluta, exclusiva e ilimitada
do Estado. Ao contrário do liberalismo, «que negava o Estado no
interesse do indivíduo particular [... ] a concepção fascista é pelo li
Estado» 303 ; é por um Estado entendido como a realidade histórica
11

~,, É o caso, entre ouu·as, das Constituições austríaca de 1934, polaca de 1935, 1

1
irlandesa de 1937, turca de 1937 e, também, da Constituição portuguesa de 1933, que, no
seu anigo 29.º, prescreve o «podc1io do Estado» como fim imediato da organização econó-
mica (cfr., para todas, CJ\llLO COSTAMAGNA, op. cit., págs. 149 e seg.).
"'' Cfr., SEHGIO PANUNz10, // se11ti111e11to dei/o Stoto, Roma, 1929, pág. 126.
301
«Tudo no Estado, nada fora do Estado. nada colllra o Estado» foi a fórmula
proclamada por MussouN1 no discurso no Scala em Outubro de 1925 e que, repetida à
cxaust.'io, seria retomada pelo próprio cm diversas ocasiões (cfr., referências em Gu1Do
LUCATFtLO, Op. cit., pág. 57 J) .
302
MussouN1, La Dottrina dei Fascismo, págs. 4 e scg..
JOJ /bid..

-
:q

132 Contributo para uma Teoria do Eswdo de Direito

definitiva e suprema, como um organismo específico com natureza e


des1ino próprios, com fins e objectivos distintos e superiores aos dos
indivíduos.
Porém, como compensação para as prerrogativas extremas que
daqui decorrem, o Estado totalitário - que a doutrina fascista se esforça
por disl inguir de arbitrariedade ou tirania 304 - é teoricamente apre-
sentado num invólucro de eticidade e espiritualidade resultantes da
relação de consubstancialidade que o Estado mantém com a Nação.
Constituindo a realidade primeira e fundamental, a Nação necessita
de uma estrutura que a actue e projectc na História, isto é, necessita
do Estado3º5 . Do sentimento nacional (como sentimento de unidade
cultural e espiritual) e do sentimento do Estado (como vontade de
estar submetido a uma autoridade soberana) nasce a exigência de
transformação e realização da Nação - societas sine imperio - na
societas cum imperio, no Estado 306 • Assim, e independentemente das
diferentes modal idades de conceber esta relação307, o Estado surge
como realização integral da Nação, à qual confere a forma jurídica e
política indispensáveis ao cumprimento da sua missão histórica; só
no Estado a Nação atinge a plenitude do seu desenvolvimento, pois
só ele garante a coesão estrutural e a unificação da vontade que
permitem a realização histórica - e nessa medida a própria existência -
de fins que relevam do plano cultural e espiritual.

:io, «Um Estado que se apoia em milhões de indivíduos que o reconhecem. o sentem e

estão prontos a servi-lo, não é o Estado tirânico do senhorio medieval. Nada tem em comum
com os Estados absolutos anteriores ou posteriores a 89 [ ...]. O Estado fascista organiza a
Nação. mas ileixa aos indivíduos margens suficientes; limita as I iberdades inúteis e nocivas
e conserva as essenciais. Quem julga neste terreno não pode ser o indivíduo, mas tão só o
Estado» (MUSSOLINI, np. cit., pág. 21 ).
5
"' Como diz PANUNZJO, tal como a matéria tende para a fom1a, a sociedade tende para
o Estado: sicw materia app<'tit formam, sociews appetit .war11111 (apud MARCEL PRt:.LOT, op.
cit., pág. 440).
JA)6 Cfr.. SF.RGJO PANUNZIO, li se111i111e1110 dei/o Srato, págs. 83 e segs ..

im De facto, se para ce1 1os teóricos do fascismo, como P ANUNZJO, Nação e Estado.
apesar de indissociáveis. seriam entidades distintas, parn outros, como CosTAMAGNA, haveria
mesmo identidade entre os dois termos ila relação. independentemente de poder ser atribuída
a prioridade a um ou outro. GENnLE, sustentando a tese da identidade, defende a prioridade
da Nação relativamente ao Estado oficial ou real, mas também a prioridade do Estado. se
neste se relevar, sobretudo. o elemento co11sciê11cia política.
Sobre estas diferentes posições, cfr. a síntese de GREGORIO DE YuRRE, op. cit., págs.
282 e scgs. e 304 e segs..
p

O Estado de Direito e as Experiências Anli·Uberais 133

Desta associação resulta que o Estado assimila as características


essenciais da Nação e, desde logo, o seu carácter transcendental. isto
é, o carácter de organismo com fins e objectivos diferentes e superio-
res aos dos indivíduos 308 ; mas, mais que organismo, a Nação é,
sobretudo, organismo espiritual. Assim, nele relevam essencialmente.
como factores que determinam a sua natureza, uma comunidade de
cultura (nos seus diversos elementos de território, língua, economia,
religião, costumes e raça309) e uma consciência nacional expressa na
vontade de comungar da mesma experiência de vida comum, isto é,
um sentimento nacionaP'º·
Ora. desta natureza da Nação decorre o carácter eminentemente
espiritual do Estado. Organismo transcendente, o Estado fasci sta é
uma realidade essencialmente espiritual e ética; nos antípodas do
,.
Estado liberal, vazio e agónico, o Estado fascista tem uma crença,
uma fé e uma moral próprias, autónomas e justificadas a se311 ; «tal
como o fascismo o concebe e actua, o Estado é um facto espiritual e
moral na medida em que concretiza a organização política, jurídica e
económica da Nação e esta organização é, no seu surgimento e
desenvolvimento, uma manifestação do espírito)) 31 =. Distinto de um
conglomerado material ou biológico, como de qualquer esquema

)>< É esse o scnLido fundamental da concepção fascista da Nação e do Estado. como

resulta da defini ção lapid;1r do ar1. I .º da Carw 1/el ú 11·oro (sohrc a im po nância
determinante desta no e<lifído consti1ucional Ju fa\c ismo, dr.. CARLO Co~ r.\~L\G11,. up. d t..
págs. 133 e segs.): «A Nação ital iana é um organismo J otado d~ u111:1cxis1ência. lins e
meios de acção ~upcri orc~. crn poder e duração, aos tios indi víduos, bolados uu associados,
que a compõem. É uma unidade ética, política e económica, que i.e realai.a integralmente: no
Estado fascista».
·' " Porém, di ferentemente do nacional-socialismo, a rJça é aqui concehida como um
entre vários demen1os da cultura nacional ~ não como o factor detenninante, ou único, de
nacionalidade; a Nação é, no fa...ci~mo, organismo e~sencialmente espiritual e não biológico.
Todavia, postcrionnenie, cm 1938. J at.las as conveniêndas políticas dns relações com a
Alemanha hitleriana, a !(jJia conheceria também a campanha anti-semita e as là, r.1ciais.
3'º Cfr., por todos, G REGORJO DE Y uRRE. Totalitarismo y Egolatria, Madrid, 1962,
págs. 293 e segs.. ·
m «Que seria o Estado se não ti vesse um espírito seu, uma moral sua [... } o Estado
fascista reivindica na plenitude o seu car:1cter de eticidade: é católico, mas é f~ c~ta: é, acima
de tudo. exclusiva e essencialmente fascista» (MussOLL'-1, Discurso na Câmara do) D.!puta-
dos, 13 de Maio de 1929, i11 La D0ttri11a dei Fascismo, pág. 32).
l ll MUSSOLINI, Op. cit., p:íg. 19.


- 1~
""'

134 Co111ribt110 para uma Teoria do Estado de Direito

jurídico-contratualista3 13 , o organismo estadual ético-orgânico do


fascismo só existe porque, e enquanto, se fundamenta numa força
natural, num sentimento - o sentimento do Estado, ou seja, «o senti-
mento da unidade moral e social do povo expressa e personificada
no Estado» 31 \ "
Por outro lado, longe de constituir a soma das vontades da
multidão dos indivíduos que a compõem, a Nação actua-se verdadei-
ramente na «iniciativa consciente das elites e dos condottieri» nas
quais se encarna o espírito daquele organismo superior315 • Assim, no
processo político concreto do Estado - através do qual se realiza a
Nação - tal transcendência legitima a rejeição da concepção demo-
crática da representação316, entendida como «força bruta do número»,

Jll Cfr., COSTI\MAONA, op. cit., págs. 151 e ~cg. e GcRHARD LEIBIIOLZ, l oc. cit., págs. 39
e segs ..
"" Cfr., SERGIO PANUNZIO, // se111ime1110 deito Sutto, pág. 70: para PANUNZJO, mais
que sentimenio de comunhão espiritual ou cultural, o scmimc:1110 do Emulo é desejo de
acatar e obedecer a uma autoridade. ele ser governado, de formar uma unidade política, sem
o qual um Estado agoni za como era o ca~o do Estado lihcral. Pelo contrário, sob a égide do
Duce, reas_~mne-se o instinto e o sentimento do Estado: o Fascismo é, enlflo. verdadeira
recuperação do precipitado histórico da Guerra - local por excelência de manifesrnç.io do
sentimento do Estado - e da sua imensa experiência espiritual (ibid.. págs. 59 e segs.).
,, «Sentimos todos hoje, na hália, que, na incerteza de tantos conceitos teóricos e
práticos, de nada estamos tão absolutamente seguros no íntimo da nossa consciência como
do sentimento do Estado: sabemos que isso é um ponto primário, um «ponto fechado» e
não analisável, um dado originário da consciência; sente-se o Estado: logo o Estado existe»
(ibid., pág. 79).
3IS CosTAMAGNA, op. cit., pág. 180. O reconhecimento teórico da «superioridade da
elite fascista» traduz-se, na prática. na consagração de privilégios e discriminações e na
consequente violação do princípio da igualdade, inclusive na sua vertente de igualdade
perante a lei (cfr. a demonstração cm HEI.LER, Rechrssraar oder Diktalllr?, pág. 22 e Europa
y et Fascismo, págs. 142 e scgs.).
316
Cfr.. MARCEL PRú.OT, op. dr., págs. 455 e segs.. Rejeitando a representação das
vontades dos indivíduos fundada no «igualitarismo político» expresso na eleição democrática.
os Autores íasci~tas defendem :1 superioridade da representação orgânica dos «sentimentos e
1 '
das ncccs.~idades colectivas», operada no Estado. sohretudo através do Partido Fascista e do
Ordenamento Corporativo (cfr.. FRA.Ncr.sco o' A1.ess10, «Lo Stato fascista come Stato di
diriuo», i11 Scrilli Giuridice in ////ore di Sm,ri Romano, I. Padova, 1940, p,lgs. 501 e segs.) ou
através da «interpretação autónoma» do Gm11 Comi11lio, sem, no entanto, romperem frontal-
mente no plano teórico com o ideal democrático (sobre as motivações psicológicas e políticas
da ambiguidade <lesta postura, cfr.. RENATO Tnr;vEs, «Stato di Diritto...». cit., pág. 65 e scgs.).
Assim, escrevia MussouN1: «O fascismo rejeita na <lcmocracin n mentira absurda do
igualitarismo político[ ... ). Mas, se a democracia puder ser entendida de outra fonna, i~to é.
-

O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais 135

à qual se c.:onlrapõe u valorização da minoria qualitativamente superior,


conduzindo à defesa da preponderância do papel do Partido e à
centralização do poder no Executivo e no seu Chefel• 7•
A Nação surge, ainda, como algo de metafísico, de divino, de
mitológico 318• Ora, a assimilação do Estado a tal conceito de Nação
revela-se da máxima importância para o nosso tema, na medida em
que o carácter metafísico daquela entidade transcendente impossibilita
a pré-determinação, e o enquadramento jurídicos dos interesses do
Estado, inviabilizando a existência de regras jurídicas estáveis vincu-
lando reciprocamente governantes e governados. Como diz M IRKINE-
-GUETZÉVITCH, «a concepção metafísica da Nação liberta os governan-
tes de qualquer obrigação perante a nação concreta, isto é, perante os
governados f... ] e conduz à legitimação da ditadura» 319.
Com base nestes pressupostos, a posição relativa do indivíduo
resulta inevitavelmente desvalorizada. A concepção fascista exige um
Estado concebido como realidade suprema e exclusiva, capaz de res-
ponder a todo o desígnio que decorra dos i11teresses da Nação, ou
seja, exige uma soberania «indefinidamente extensiva e expansiva»32º.
Nestes termos, as esferas de autonomia individual são necessaria-
mente comprimidas e a própria natureza da relação Estado/indivíduo
elaborada pelo pensamento liberal é perspectivada de forma radical-

se democracia não for afastar o povo das margens do Es1ado, poderemos definir o fascismo
como uma democracia org,Ni;:.ada, ce11tralir.ada e autoritária» (op. cir., pág. 15).
317
«Tal centralização corresponde à característica essencial do Estado como entidade 1
teleológica completamente dominada pelo objcctivo linal a alcançar, que só pode ser assegu-
rado e garantido por uma vontade única e superior dom inando, não formal, mas efcctiva- l
mente, toda a vida do Estado. No poder ccn1rali1.ado do Capo dei Go1·emo rcílcctc-
-sc o conceito da absoluta, ilimitada e não fraccionável soberania do Estado[ ...) exigida por 1.
uma superior idealidade, necessariamente unitária e totalitária: a de Pátria e de Nação»
(o'ALESSI(), op. cit., pág. 509).
3
' " Diz MussouN1: «O meu cspí1ito está dominado por uma verdade religiosa: a

verdade da Pá1ria (... ). Comungamos espiritualmente desta nova fé». No contexto desta
nova crença, a Nação - e, Jogo, o Estado - assume um papel central enquanto estímulo
«ultra-racional» da acção revolucionária, ou seja. enquanto mito no, seu sentido i
mussoliniano: «o mito é u111a fé, u111a paixão, não precisa de ser realidade. E realidade na
medida cm que é um aguilhão, uma fé. uma esperança, um valor. O nosso mito é a Nação
[ ... ) e a ele subordi namos tudo o mais» (apud Dil YuRRE. op. r.it.. pág. 25 1 e CosTAMAGNA.
op. cit., pág. 161).
l
m Les No11velles Telllla11ces d11 Droit Co11stitutio111ie/, cit., pág. 187.
320
Cfr., MARCEL PRÉLOT, loc. cit., págs. 443 e segs.. 1
1

l
l
136 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

mente invertida: o Estado é agora considerado como fim em si mesmo


e o indivíduo é reduzido ao papel de instrumento dos fins sociais. No
plano jurídico, esta instrumentalidade e subordinação indivíduo ?º.
implicam que ele deixe de ser considerado centro de direitos - que
incumbiria ao Estado proteger - , para se situar numa posição de
dever relativamente a este321 • Tal não significa a negação da existên-
cia de direitos individuais; porém, eles são agora concebidos não
como esferas de liberdade naturais, anteriores e superiores ao Estado,
mas antes como criações da vontade estadual, como dádivas que o
Estado concede para melhor garantir a realização dos seus fins322 •
Neste sentido, enquanto desvaloriza globalmente - no plano
teórico e prático3H - os direitos individuais relativamente ao carácter
supremo do Estado, o Fascismo, «época dos deveres e não dos direi-
tos e interesses» 32\ coloca-se claramente fora dos quadros do Estado
de Direito tal conto o temos caracterizado.
Que a tentativa de compatibilizar Estado fascista e Estado de
Direito era inviável ou, no mínimo, contraditória, demonstra-o a difi-
culdade em aceitar, por parte da doutrina fascista, a teoria da
personalização jurídica do Estado. Como vimos, esta teoria era uma
componente importante da ideia de Estado de Direito, já que, conce-
bendo as relações entre Estado e cidadãos em termos de posições

m Como diz CosTAMAGNA, a Revolução Fascista «determina a essência do &tado


como fim em si e exige como seu pressupoMo constitucional o «dever» e não mais o direito
do cidadão» (op. cit., pág.149).
m Se cenos Autores (como MARAVtGuA) perspcctivam estas concessões do Estado
em lermos de autolimi1ação, a generalidade da doutrina fascista considera-as antes no con-
texto da superação do conceito tradicional de homem pelo de parte de um orga11is1110 e,
como tal. no âmbito da inteira subordinação da célula ao rodo (cfr.. DE YuRRE. op. cit, p:igs.
338 e segs.); assim, o direito individual situa-se inteiramente à mercê <fas conveniências do
Estado q_ue, tal com? º.cor~ccde, o pod~ denegar a todo o momento e à margem de qualquer
pe_rs_pceuva de autol~m11~ça_o q~c, ~o dtLCr de CoSTAMAGN,, (OfJ. cit.; pág. 156), pressuporia a
rCJcttada «fonnulaçao tccmcti-.1und1ca da doutrina individualista» <las duas esferas concor·
rentes, a <:esfera do Estado» e a «esfer.i do indivíduo».
m Acerca do menosprezo legal e violação prática dos direitos e liberdades individuais
pelo Estado fasci?a - d~sdc. a inviolabilidade de domicílio, correspondência e protccção
~ontra as dc1cn~oe~ arbrtrán~s, aos direitos ele expressão do pensamento, liherdade de
imprensa, assocraçao e reumão, e ao elementar direito à cidadania _ cfr., por todos.
HERMA:;'.,NHELLER, Europa y e/ Fascismo, págs. 138 e segs. e 412 e segs..
SEROIO PANUNZIO, op. cit., págs. 69 e segs..

' 'l
1~11
~
1

O Estado de Direito e as Experiências Anti-liberais 137

jurídicas recíprocas entre iguais sujeitos de direito, constituía um dos


fundamentos da protecção jurídica dos cidadãos face ao Estado. Com
este alcance, esta teoria não poderia ser admitida pelos Autores fascis-
tas, para quem, antes de mais, o Estado era organismo metajurídico,
espiritual, titular de uma soberania absoluta e ilimitada face às células
_ indivíduos - que nesse organismo, e só nele, recolhiam vida e
sentido 32 5•
Não obstante, se Autores, como PERGOLESI, salientavam as difi-
culdades em qualificar como Estado de Direito o Estado fascista ou
recusavam fronta lmente esta possibilidade - como era o caso de
CARISTIA ou RENATO TREVES -. parte significativa da doutrina não só a
admitia como, inclu sivamente, reclamava para o Estado mussoli-
niano o atributo de modelo de Estado de Direito 326• É esta última a
postura de FRANCESCO D' ALESSIO e CARLO CoSTAMAGNA, a qual só é, no
entanto, possível porque, recuperando o legado formalista-positivista,
se reduzia o Estado de Direito a um qualquer Estado de Legalidade,
o que permitia escamotear as flagrantes e substanciais. violações que

J lj «Devemos afirmar, preliminarmente, o carácter substancial do Estado contra a

teoria da personalidade jurídica. a qual implica uma noção formal e contraditória da sobe-
rania [... ) e princípios morais e políticos rejeitados pela nova consciência civil»
(COSTAMAGNA, op. cit., pág. 156).
326
Cfr. a recensão das várias posições em CARMELO CARISTIA, «Ventura e
avventure...», cit., págs. 404 e segs..
Segundo RENATOTREVES («Stato di Diritto...», cit., pág. 65), ter-se-iam empenhado na
tentativa de compatibilizar os dois conceitos «aqueles que, embora aderindo expressamente
ao novo regime, se sentiam ainda ligados ao ambiente ideológico dos anos precedentes, no
qual foram educados (...], procurando, assim. alterar o conteúdo da fórmula (Estado de
Direito) adaptando-a aos novos tempos e aos novos acontecimentos». Seria esse o caso de
Autores como ERCOLE, SINAGRA, GRAY, COSTAMAGNA e o' ALESSIO. Integrar-se-iam, natural-
mente, nesta corrente os Autores que, igualmente fiéis à caracterização do Estado como
pessoa jurídica que haviam recolhido na teoria alemã do Direito e do Estado (de GERBER a
ÜIERKE e JaUNEK), procuravam acomodar esta doutrina ao quadro arbitrário cio novo regime
(cfr., ROGER BoNNARD. «Le Droit et l'État <lans la Doctrine National-Socialistc», p,ígs. 205 e
segs.); assim, o Estado continuaria a ser considerado uma pessoa jurídica titular de sobera-
nia, de que o Duce, enquanto Capo di Govemo, seria um dos órgãos jurídicos. Sobre estes
pressupostos, seria possível a autores como RANELLETn (cfr.. CARl~ílA, «II Rechtsstaat
all 'incanto», in Studi in onore di Caetano Zíngali, II, 1965, p:!gs. 75 e 79) admitir, sucessi-
vamente, como concretizações do Estado de Direito, quer o Estado liberal italiano do início
do século XX, quer o Estado fascista, quer a actual República democrática.
:q

138 Contribwo para uma Teoria do Estado de Direito

l! v1t1mararn o Estado de Direito - tal como se constituíra, na prática,


desde o século XIX - durante o consulado de MussouNI 327 .
l Assim, CosTAMAGNA afasta dos quadros do fascismo aquilo que
1 designa como concepção «subjectiva» do Estado de Direito (isto é, o
«Estado subordinado ao direito [... ]. O Estado pré-ordenado para a
act11:1ç:io do direito suhjectivo do indivíduo f...] intimamente conexo
com a divisão de poderes e a declaração e garantia dos direitos de
liberdade civil»), para acolher o seu sentido «objectivo» (isto é, o
«Estado legal», «segundo o qual o comando só tem validade quando
se manifesta através da lei ou tem nesta o seu fundamento»). Nesta
perspectiva, «não só o Estado fascista não deixa de ser um Estado de
Direito», como se pode caracterizar como «a mais completa realiza-
ção do Rechtsstaat»32K. Também, convergentemente, para FRANCESCO
o' ALEss10, o Estado fascista mantém o «seu carácter essencial como

3~ Referimo-nos, obviamente, às já assinaladas violações - no plano legislativo e


prático - dos direitos fundamentais dos cidadãos, à concentração de poderes no Executivo e
no seu f>11rP, hem corno à quehra na independência dos tribunais expressa no esvaziamento
da justiça constitucional, nas destituições de juízes por motivos políticos, na constituição de
tribunais eipeciais par.1 «defesa do Estado» e nas suas sentenças e procedimentos arbitrários
(cfr., por wdos, HERMANN Hl!l.LER, Europa y e/ Fascismo, págs.131 e segs.).
Do mesmo modo, apesar de formal e legalmente mantida, a justiça administrativa vê
substancialmente alterada a sua natureza, na medida cm que, ao invés de garantia constitucio-
nal de protecção dos direi1os individuais contra o Estado, ela é agora ins1n1111ento de
recondução dos órgãos públicos aos fins proclamados pelu Estado, num processo cm que o
interesse individual pode ser chamado a colaborar quando tal convenha ao Estado; ,1 ideia de
conílilo emre cidadão e Estado é liminarmente afastada, já que «ao Estado, no que se refere
aos poderes de soberania, não pode ser subtraída nenhuma esfera de vida individual e
colectiva; contra o Estado não pode o cidadão erguer-se para discutir, ainda que através da
função jurisdicional e no seu interesse, o exercício de um poder soberano» (CARLO BoZZJ.
«La Giustizia Amministrativa da Sílvio Spavcnta a Benito Mussolini», i11 RDDP, 1934,
págs. 267 e segs.); assim, quando um particular recorre de um acto ilegal não está a
defem.h:r o seu interesse individual, mas a 1.clar pelo interesse colcctivo, (cfr., FREITAS uo
AMARAL, Direito Ad111i11istrativo, II, pág.~. 201 e segs).
318
CAIU..O COSTJ\MAGNA, op. CÍ/., págs. 136 e 162 e scgs.; C.\RlSTIA, «Vcntur.i, ...». cit.,
pág. 407; oc YURRE, op. cit., p:íg. 343.
Convergente com CosTAMAGNA, embora chegando a conclusões aparentemente opostas.
está PANUNZIO, que, caracterizando o Estado de Direito como «Estado que se limita à pura
garantia da coexjstência e defesa dos direitos individuais», rejeita para o Estado fascista -
Estado essencialmente «idealista, espiritualista e educativo» - tal qualificação, mas não a de
' 1 '
: «Estado j urídico», ou seja, «Es1ado juridicamente conformado e organizado» (// Se111i111ento
:. l...1 dei/o Stato, pág. 21 1 e seg.).
'
. : '~

--
p í
1
1
'

O Estado de Direito e as Experiências Allfi-liberais 139

Estado de Direito», dado que «essencial para esta concepção é que


os órgãos chamados a querer por conta do Estado estejam ordenados
juridicamente»_; o_ra, «~ Estado fasci~ta não só aumentou o número
das normas obJect1vas visando a organização e competência das funções
públicas, como apurou, através das respectivas sanções, o carácter
jurídico obrigatório dessas normas»329•
A identificação do Estado fascista com o Estado de Direito cons-
titui, então, a expressão mais radical - e nessa medida, mais eluci-
dativa - das consequências que a via da redução formalista do conceito
· de Estado de Direito inelutavelmente produzia.
Pois, se na fase de ascensão do fascismo o apego à legalidade
constituía uma barreira contra as tentativas fascistas de destruição das
garantias jurídicas proporcionadas pelo Estatuto Albertino, numa se-
gunda fase - após a consumação da vitória e quando se faziam sentir
as necessidades de consolidação e estabilização do regime - , a atitude
positivista-legalista desempenharia um papel radicalmente diverso.
Na época das «leis fascistíssimas» o princípio da legalidade, conver-
tido em instrumento de actuação dos fins do Estado fascista , era
inevitavelmente uti lizado contra os direitos e liberdades individuais.
E, não curando aqui de apurar as eventuais responsabilidades do
positivismo jurídico no advento do fascismo 330 - mesmo admitindo
que tal problema se pudesse colocar -, poderemos concluir que a
caracterização do Estado de Direito como mero Estado de Legalidade
permitiu a sua recuperação por parte da doutrina fascista, proporcio-
nando objectivamente a legitimação jurídica de um regime politica-
mente orientado contra os ideais históricos do Estado de Direito.

·m FRANC!,SCO o'ALESSIO, op. cit., págs. 499 e 501; no mesmo senti'd O, eARLO e URCIO,
<•La Transformazionc dcllo Stato», ;,, RIFD, 1928, pág. 70.
.no Sobre o duplo papel do positivismo jurídico como resistência ao fascismo italiano,
m~s também, posterionnente, como sua caução, cfr., no mesmo sentido, Gu100 FAsso,
H,sroria de la Fí/osojia dei Derec/w, Ili, págs. 255 e scgs.; MARCEL PRÉLOT. op. cit., págs.
449 e segs. e, sobretudo, PÉRF-2 LuJilo, J11s11awrt1/ismo y Positil'ismo en la Ira/ia Moderna,
maxime págs. 111 e segs..

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4

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1 •
•i 140 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

l!· 1
1.1.1. O «Estado ético»
1
1
1
l
'

'
Se a separação Estado-sociedade e Estado-economia eram afas-
11 tadas, no fascismo, através de uma concepção de Estado totalitário
11
1 ,
que exercia uma soberania absoluta e ilimitada em «bases corpora-
! 1 tivas», também a separação Estado-moralidade - componente funda-
' mental do Estado de Direito kantiano - se via rejeitada pela assumida
caracterização do Estado fascista como Estado «ético».
Esta ideia da eticidade do Estado, que modernamente remonta a
HEGEL ( «o Estado é a realidade em acto da ideia moral objectiva»331),
é introduzida em Itália pela corrente neo-idealista, particularmente
l por ADOLFO RAVÀ, e, finalmente, recuperada para o fascismo através
de Ü ENTILE.
Cabe a RA vA a principal responsabilidade teórica na construção
do «Estado ético» quando, nos primeiros anos do século XX 332 ,
define o Estado como uma instituição com um «valor em si, um
valor de fim e não de meio, um valor ético e moral», donde resulta
que o Estado é um organismo com fins éticos próprios», manifesta-
dos na intenção «de promover e dirigir todas as actividades relativas
aos fins da vida»; o Estado não tem como fim permitir a coexistência
j urídica dos indivíduos - como pretendia a construção kantiana -,
mas é essencialmente a instituiçcio onde a ideia ética se realiza por
excelência 3 33.

1 •
11 331
Princípios da Filosofia do Direito,§ 257, trad., Lisboa, 2.ª ed., 1976, pág. 216.
m A DOLFO RAVÀ insere-se na corrente de reacção idealista colllra o positivismo,

li !'
fazendo publicar, respectivamente em 1911 e 1914, dois livros (// diritto come nomw
tecnica e Lo stato come organismo etico), reeditados conjuntamente em 1950 sob a designa-
ção Dirí110 e Stato nella Mora/e ldealistíca, Padova, 1950, nos quais desenvolve as bases
i da teoria do «Estado ético». Note-se que, para R AVÀ, a concepção do Estado como organis-
·1 ; mo ético é inseparável da redução do direito a mero meio técnico de manutenção da socieda-
de; a origem da concepção errónea do Estado como ente jurídico residiria, para R AVÀ, na
consideração do direito como norma ética que incumbiria, tão só, ao Estado aplicar. Pelo
:1 contrário, para RAVÀ, «o direito é uma nonna técnica, apesar de suscitar continuamente
ll
' 1
exigências éticas que o conduzem ao Estado; o Estado é organismo ético que tende continua-
mente a tecnicizar-se na forma do direito» (RAVÀ, no «Prefácio» a Diritto e Stato 11ella
1 Mora/e /dea/ístíca, pág. XI).
m Cfr., RAvÀ, Diritto e Swto nella Mora/e ldea/istica, maxime págs. 99 e seg., 125 e
:11'
' 1 seg. e 144.
1 '1
' 1:1 j
i' 1
!!+1
'' '{
1.
d
O Estado de Direito e as Experiêrrcias Arrti-Liberais 141

As relações que um Estado assim concebido mantém com o


Direito - _e com o conceito de Estado de Direito334 - nem sempre
transparecem isentas de. ambiguidade, mas resultam, naturalmente,
numa prevalência tendencial do carácter ético sobre o carácter jurídico
do Estado.
Como vimos, o Direito é pam RAVÀ meio técnico que, asseguran-
do a coexistência, permite que os entes éticos prossigam os seus fins
momis; assim, o Direito é «a condição negativa da moralidade, mas
não implica a prossecução positiva desta», pelo que os organismos
éticos - e sobretudo o Estado, como o principal de entre estes - estão
para além. e acima, do Direito. Logo, «não é possível reduzir o Estado
a um ente jundico, já que prossegue positivamente fins e não se limita
a tornar possível a sua prossecução» 335 • Portanto, o «direito é para o
Estado um consecutivum e não um constitutivum», o que significa que,
apesar de o Estado «necessitar do direito para a sua conservação, não é
um seu escravo, mas um seu senhor que dispõe do Direito como de
um meio que o serve»336• Nestes termos, a função jurídica do Estado
surge, para RAVÀ, como um posterius face ao prius constituído pela
função ética e, dentro desta, pelo que l<.A vA designa como função
educativa do Estado, «símbolo e expressão da preexistência e sobrevi-
vência do todo estadual face aos indivíduos que o constituem»337 •
Foi exactamente nesta medida, enquanto procediam a uma exal-
tação do Estado e a uma desvalorização do seu momento jurídico,
que estas bases teóricas puderam, sob a influência decisiva de GENTILE,
ser recuperadas pela Teoria do Estado fascista em termos de identifi-
cação Estado ético-Estado totalitário.

m Para RAVÀ, o «Estado de Direito» - nascido da necessidade de «salvar a


juridicidade do Estado comprometida pelo aumento contínuo das suas funções
extrajurídicas» - seria um Estado, não já limitado exclusivamenic à função jurídica (como
decorria da inicial concepção de Estado de pum dirf!i/1/ defendida exemplarmente por
HUMOOLDT), mas que, por um lado, fazia da tutela do direito a sua função principal e, por
outro, cumpria também as funções não jurídicas na fom1a e com as garantias do direito (cfr.,
RAv,1., op. cit., págs. 103 e 125 e scg.).
m Op. cit., pág. 127.
l'• RAVÀ, «Diritto, Stato cd Etica» i11 Scri11i Mi11orl di Filosofia dei Diri110, Milano,
1958, pág. 104.
m Diri110 e Sta/o nela Mora/e Jdealisrica, págs. 185 e segs.; assim, ÜGO REDANó,
«Realtà e Vita dello Stato» irr RIFO, 1928, pág. 325, caracterizava o Estado ético como
«Estado educador».

>
142 Co11triburo para 11111a Teoria do Eswdo de Direito

Porém, para RA vÀ, não, obstante proclamar a sua prioridade face


ao Direito, este Estado ético é não só compatível com as liberdades
individuais, como também as exige; estas são, para RAVÀ, «uma ca-
racterística ética fundamental do Estado moderno», pelo que a fim -
çcio educativa, se, por um lado, visa o próprio interesse do Estado,
deve, simultaneamente, orientar-se para a tutela da independência
individual, «na forma jurídica da liberdade individual e de consciên-
cia»3J8. Este «Estado ético» não se identifica, pois, com um Estado
de soberania absoluta e ilimitada e, segundo as palavras de R,wi\,
situa-se mesmo «nos antípodas do chamado Estado totalitário, com o
qual tende a ser confundido por certa doutrina sobre a eticidade do
Estado» 3•19•
Pt:lu <:unlráriu, para GENTILc - e parn a <luulrina oficial do fas-
cismo - o E.~tado é fonte suprema da moral e do direito, ambos recon-
duzíveis à sua vontade soberana e ilimitada; é Estado ético porque é
na eticidade que se revela o mais profundo do organismo espiritual
constituído pelo Estado. Desta forma se reata pretensamente a concep-
ção hegeliana de Estado como substância espiritual - e logo ética - ,
contra toda a tradição liberal que, tomando as liberdades individuais
como valor supremo, reduzia o Estado ao simples papel de instru-
mento ao serviço da respectiva preservação. Mas, enquanto, para
HEGEL, o Estado não era ainda a última etapa na progressão da filoso-
fia do espírito3~0, para ÜENTILE e os teóricos do fascismo o Estado é a

m Jbid., págs. 184 e scgs ..


-"" R,wA, Prefácio de 1950 a Oiri110 e Stato 11ella ,Womle ldet1/istica, pág. XV; cír..
igualmente, a nota <la pág. 201, também introduzida cm 1950, na qual R,w,i denuncia o
aproveitamento que, na ll,ília fascista, foi feito da sua construção de Estudo ético por pune
da dou1rinajusti:'icadom do Est:1do totali1ário, da qual R,w,\ se demarca claramcllle.
'"' l-h,<;1'1. csquemmiza a progressão da lilosolia do espírito cm três et:1pas, d,LS quais
o Estado constituía apenas o pomo mais elevado do segundo escalão - o espírito objec1ivo.
antítese da primcim elapa, o espíri,o s11bjecti110 - . acima da família e da sociedade civil, mas
que encontraria plena realização e superação no espírito abso/1110 (a arte, a religião e a
lilosolia).
1 t Sobre a concepção do Es1ado <lc HEGEL. cfr.. por todos, FRANÇOIS CHATEt.ITT, O
!j . pe11same1110 de Hegel, tmd. , Lisboa, 1976, 111axi111e págs.182 e segs. e o Plano do «Resumo
das Ciências Fi/ostíficas", págs. 248 e seg. . bem como NoRo1;1n-o Booo,o e M1omL,,NGELO
i.1
1 BovERO, Socielà e S/(/to ,u:lla Filosofia Politica Modema, mmime págs. 113 e scgs. e 127 e
1: scgs.; sobre o pretenso hegelianismo de G1:NTtLE, cfr., HEROl'iKT MARCUSE, Raztio e Revo/11-
!
çt10, págs. 361 e segs ..
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O Estado de Direito e as Experiências Aflti-liberais 143

. te exclusiva da eticiclade, o valor ético supremo , ou , seoundo as


t on .l-lJ o
palavras de CosTAMAGNA ' «a suprema experiência moral humana à
f·ice da cerra».i-u ·
' E. ial como s6 participando dos fin s transpcssoais do Estado
fasci sl!I, num imperativo de dever, o indivíduo lograva a verdadeira
liberdade - e assim se elimillc/lll/, por definição, qualquer eventual
conrradiç,io entre auLOridade fascista e liberdade individual -, também
scí através da assimilação (obediência) à moralidade do Estado, através
da uni vl.!rsali zaçiio da vontade individual pela sua integração orgânica
na vontade sacralizada daquele, o indivíduo se podia elevar do plano
particular a uma realização como ser é:ico•11•
Ncslc c:0111cx1U, e mesmo quando não se perspcctivava em opo-
siçiio ao Es1ado de Direito (obviamente cn1end ido como Estado de
Legalidade ou. c:01110 era corrcnle na lenninologia italiana da época,
como «stato giuridico»). o «Esiado ético» constituía-se, na teoria do
Eswdo fascisia, como conceilO prioritário, suscep1ívcl de comprimir,
à medida de t11ma natural expansibilidade determinada pela exis1ência
de tin s próprios, qualquer ideal de limiiação, ainda que apenas j urídi-
co-fonnal, cio Es1ado.
Assim, P,,NUNZ1t1 proclama abcrtarncnt..: a superioridade do «Estado
ético-pedag<Ígico» face ao «Estado de Direito» (concebido como
«slato giuridico»·w), resultado da correlativa «superioridade da moral
face ao direi10». pois, sendo o Dirci10 e a Moral manifestações de
promoção do cu empírico à universalidade, só a Moral se revel a
como racionalização integral do cu, já que o Direito é pura coexis-
1ência dos amípodas, mt:ru realização ncgnti va da ética.>J5•

"'' CoSTAMAGNA, op. ât.. p:lg. 290.


.1-11 Cfr.• neste se111ido, a crítica de GENTIi.E às limitações da teoria de Estado de HEGEL,
no cap. VII de / Fo11da111c111i dei/a Filosofia dei Diri110 (transcrito i11 U.,JOERTO CERRONJ, O
Pe11s,m1e111tJ Político. Vil. págs. 18 e se,gs.) e ADOLFO R,w.i. Prefácio a Dirillo e St(ltO 11ella
Mora/e ldl'alistim, pág. XIV.
'" Como c~cn:vc ANTóNJO Jost BRANDÃO, cEstado ético contra Estado jurídico?»,
pág. 297, "CÍS porque se di'l. que o Es1:1dn é liberdade étic:i, - pois ele. em virtude d:, própria
narurcz:i, cncon1ra-~c cninpclidn a rcaliwr a libcrcfadc na cticidadc. E eis ainda porque
ninrivo o homem ~c'i frui da :uuénrica li herdade enquanto a sua liberdade de homem coincidir
e se iclenrilit:ar co111 a lihcrd:idc do Es1:1do».
·" ' Cfr., .mpm, noJa :1211.
J.t.i Cf'r., F1-1.1n , B,1r1A1:1."', «Sta1n Elico e Sinto di Diri uo». p:ígs. 283 e ~g. e falt\S
DJA7~ Ew11do de O,•reclu, 1, S,win/111/ D,·mocratic11, págs. 69 e scgs.: cm sclllido coincidcnlc.
também Ut:o R EDANó (uS1a1o giuridico e Sraro clico» i11 RIFO, 1928. p:ígs. 514 e Sl!gs.) e
.l
r 144 Co111rihuto para uma Teoria do Estado de Direito
!.
1

No âmbito da teoria do Estado fascista, o Estado ético configu.


1
ra-se, pois, cm bases que desvalorizam globalmente as garantias jurí-
dicas de protecção dos indivíduos face aos detentores efectivos do
poder político, servindo, nssim, de cobertura teórica para as contínuas
e manirestas violações dos direitos fu ndamentais na altura verifica-
das. No rundo, e segundo as palavras de ANTÓNIO Josl'.i BRANDÃO, 0
«Estado ético>) relevaria rumlamentalmente de uma «metafísica esta-
dual» legitimadora do Estado fascista3~6•
A caracterização do Estado como realidade ética não implica
necessariamente a adesão a modelos autoritários. Vimos já como
RAvA denunciara o aproveitamento total itário da sua construção; tam-
bém BATI'AGLIA se opõe à compatibilização da sua teoria de Estado
ético com a teoria do Estado fascista, na medida em que, por um lado,
no seu entender. o Estado ético não teria realidade, essência ou fins
diferentes dos individuais («a sua cticidade é exactamente a mesma
do indivíduo») e. por outro lado, o carácter ético do Estado não
«preclude a constatação dos crimes que leve a cabo»; para ser consi-
derado um «bom Estado» é necess:írio que o querer estadual se
apresente, na prática, corno bom, mas, para que um juízo de valor
sobre tal eventualidade possa ser formulado, é necessário que o Esta-
do seja previamente considerado como um ser ético347 •

CARLO COSTAMAGNA (op. cit., p:igs. 157 e scgs.) defendem a prioridade lógica. filosófica e
política do fü1ado ético. enquanto «realidade metajurídica, isto é, realidade irredutível aos
esquemas de uma construção meramente intetcctualista, conduzida com os meios da lógica
jurídica».
''" «Estado ético contra Estado Jurídico?», p,íg. 297.
·"' Cfr.• PBJCE BATIAou,,, «Per la detenninazione der conceito di Stato clico» i11 RIFO,
1947, págs. 214 e scgs.; «o fatado é moral enquanto assume uma tarefa moral e esta não se
assume respeitando somente a dignidade humana, a personalidade dos homens que o com·
põem 1•..), ma., promovendo just:imentc a dignidade. a pcrronalidade dos indivíduos» (ibid.).
BATTAGI.JA. emhora defenda o conceito de Estado como organismo ético (na linha de
RAvA), chega a conclusões distintas dos Au1orcs ci1ados no que se refere ao plano das
relações fa1ado ético-G.tado d.: direito, na medida cm que s.1o tam~m diferentes as premissas
de que parte qunn10 às relações Moral-Direito. Para BAlT/\GUA (cfr.. sobretudo. ,,Stnto Etioo
e Stato di Dirillo», 11uuime pngs. 261 e segs., mas tam~m «Ancora sullo Stato di Diriuo»
i11 H/1-'l), 1948, págs. 164 e scgs. e «Per la dctcnninazionc... ", d t.), não h:í dualidade nos
tins humanos entre tins jurídicos e fins t ticos ou dualidade cnJre Direito e Moral, mns
apenas fins éticos que o DireilO enquadra e torna clicic111cs; consequentemente, no lugar de
uma pretensa dualidade hicr(arquica entre Estado ético e Estado de Direito, há antes uma
indissociabilidade dos dois concci1os. O Estado é ético porque se fundn no Etlws. porque

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1~ ......
1.
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1

O Estado de Direito e as Experiências Ami-Uberais 145

No entanto, e não obstante essas reservas, a realidade histórica


d Estado ético fascista parece constituir a derradeira confirmação do
.º, •ormulado por JELLINEK em 1900348, segundo o qual as teorias
JUIZ0 1 '
éticas sobre os fins .do Estado resultam inevitavelmente, em termos
ráticos «na arbitranedade do Governo e no aniquilamento da liber-
p' •
dade espiritual do .111d.tv íd uo» 349.

1.2. O Estado 11acio11al-socialista

Para uma análise das relações entre o Estado nacional-socialista


e a ideia de limitação jurídica do Estado cabe destacar, previamente,

desenvolve lins que são éticos: mas. enquanto se realiza no plano histórico. o Ethos é
«universal concreto, plasmando relações tle vida cfcct ivas». Logo. o Estado ético conligura-se
como complexo tle relações subjectivas. como orga·nismo relacional que, por isso mesmo,
se realiza essencial e necess;1riamcn1e na forma jurídica: «o Estado é um organismo [...] cuja
forma é a da juridicidade essencial e cujo conteúdo é dado pelo erl,os [...). O Estado só pode
ser, ponanto, erhos na forma tia juridicidade» («Stnto Etico e Stato di Diri1to•1, pág, 264),
Desta forma, os dois conceitos são, não só conexos, como incindfveis, pois, «tal
como o Estado ético necessita do Estado de Direito como meio de tradução normativa dos
princípios éticos [...], também o Est:ido de Direito opera absorvendo as formalidades do
Estado ético e tomando-a~ eficientes» (ibid., pág. 286 e seg.).
3# 1ELLtNl:.K, Teoria General dei Estado, pág. 182.
349
Que a caracterização do Estado como organismo ético, com fins próprios, implica
a sua exaltação como poder tendencialmente expansivo e ilimitado resulta, curiosamente e
apesar das reservas já mencionadas. ela própria construção de RAvÀ. Assim. ao mesmo
tempo que - cm plena época fascista - recusava ao Estado «uma eticidade própria, superior
e contraposta à ditada aos indivíduos pela sua consciência moral e religiosa» («Diriuo, Stato
ed Etica», pág. 93), R,wÀ legitimava. no mesmo a.nigo (cfr.. p:ígs. 107 e scg.), a expansão
imperialista do Estado ético nacional. De facto, para R,wÀ, ao Estado incumbe não só o
imperativo de impregnar toda a estrutura nacional com os lins éticos de que é portador,
como também difundi-los externamente, pois, «toda a grande fé moral é necessariamente
expansiva: deve comunicar-se, difundir-se. prevalecer sobre qualquer outra fé ou concepção
que considere inferior»; ora. se no caminho dessa difusão surgirem obstáculos que só
possam ser superados pela força, ted então «soado a hora suprema. a hora cm que o Esrndo
~e~e petlir aos cidadãos a oferta de todos os seus mdos e da própria vida para o triunfo da
ideia de civilização e moralidade que incarna» (ibitl., pág. 108).
E, desta forma. a constmção do Estado ético conduz RAvA à glorificação irr.1cional do
~pM·. . .
sionismo e da gue1Ta («naturalmente, isto não pode ser ohJecto de 11ualquer demons-
tração lógica. A verdade dos ideais éticos nacionais prova-se. como todas as grandes íés
~--1 com a própria vida») que encontraremos nos teóricos do Estado fascista, como
ANUNZio (cfr., // Se11time1110 de/lo Stato, págs. 59 e segs.).

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1 146 Co11trib1110 para w11a Teoria do Estado de Direito
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., alguns traços da mundividência nacional-socialista (Weltanschcmung),
,,'I enquanto pressupostos que dão a coerência e o quadro em que se
1,
: 1
1
desenvolve todo um novo co17J11s teórico. De facto, se, tal como na
Itália fascista, há uma corrente que, embora aderindo ao regime,
procura adaptar a dogmática tradicional à nova realidade, podemos,
todavia, detectar na doutrina germânica da época a franca prevalência
il'
' 1
dos Autores empenhados na construção de ruma nova teoria, situada
;.1 à margem e em oposição à elaboração doutrinária anterior350•
' 1 Desde logo, surge na base de toda a construção a ideia de
Volksgemeinschaft. de co1111111idade popular, concebida igualmente,
tal como a Nação-Estado fascista, em termos organicistas e trans-
pessoais, mas apresentada como realidade v ivente, concreta (e não
metafísica) e de fundamento étnico-biológico (e não já essencialmente
ético).
i1 Esta comunidade do povo alemão é analisável em dois elemen-
1 tos: um povo (Volk) constituído numa base rácica351 - portanto, não
1; mera criação jurídica do Estado ou resultado da adesão voluntarista-
-contratualista - e de que resulta uma comunidade (Gemeinschaft)
1 étnica, uma verdadeira comunhão e não mera entidade abstracta de
1 1 indivíduos justapostos por força de lei, como seria o caso da con11111i-
i • dade jurídica (Rechtsgemei11schaft) agora rejeitada. Mas, se esta comu-
i 1

35
" Na primeira correnle, que procurava moldar a mova realidade com os conceitos
1 recolhidos na tradição de G1ERKE (e por isso se denominava de Gierki.~che l?e11aim111ce -
1
cfr., LAVAGNA, La D011ri11a Na~io11al-socialis111 dei DiriJto e dei/o Swto, Milano. 1938,
f1 págs. 117 e scgs.), destacam-se os nomes de Koe:i_LR~UTERe M ERK; dos juristas que visavam
11 a construção ex 1101·0 de um genuíno sistema doutrin.írio nacional-socialisla cio Es1ado (e ix)r
1 isso se designam como a corrente 110m dogmática - cfr., LAVAGNA, op. cit .. p;\gs. 145 e
segs.) é RE1N11,,ROT HOHN a principal figura.
,1
LWAGNA (op. cit.. págs. 81 e segs.) distingue ainda uma terceira corrente que. par-
tindo de construções tcóri~'.a~ pessoais já plenamente am.iclurecidas - como era o caso de
SCHMITr e HuoER - , mas rejeilando a compatibilização cio E.~tado nacional-socialista com o
'1 , quadro lcórico liberal. se empenha - conjuntamente com a 11m·a dogmática - numa crílica
' l 1. radical às concepções tradicionais. mas sob uma perspectiva csscncialmenle pragm:ílica e
'1 não tanto oricnwtla para a construção de um sisicma novo.
( 351
Sobre a evolução do racismo nazi ((lcsdc a ideia inicial ele comunida(lc de sangue
1,1
de uma única origem. «a origem ariana», à posterior i1dmissão (lc uma certa comunhão de
'·I raças - «o sangue alemão ou aparentado»), cfr., a polémica entre Roci,RBoNNARD, «Le Droil
1 et l'État dans la Doctrinc Nationale-socialisle», cil., pág~. 218 e segs. e Uuurn ScuEUNER,
,'
•i
,, ,,Le Peuplc, l'État et la D0c1rine Na1ionalc-socialistc» i11 RDP, 1937, págs_ 44 e scgs..
11
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O Estado de Direito e as Experiências Anti-liberais 147

nidade é uma realidade orgânica, concreta, vivente, dela não está


ausente O elemento espiritual ou ético que, pelo contrário, assume
uma import,1ncia vital na agregação da comunidade; de facto, porque
é comunidade rácica, a Volksgemei11schaft segrega e é plasmada pelo
espírito do po_vo ~Volksgeist), elemento orgânico-espiritual que,
como força acuva 11npregnando as consciências individuais, possibi-
lita a comunhão dos indivíduos da mesma referência objectiva, garan-
tindo a existência do povo como verdadeira comunidade. Assim se
funde no conceito de Volksgemeinsclwft, como diz LAVAGNA, «a noção
universalístico-orgânica de colectividade (a que é inerente a ideia de
um espírito objectivo e geral) com a noção biológico-político-cultural
de povo»35~.
É da Volksgemeinschaft que emana - não em termos de repre-
sentação, mas de gestação natural, quase biológica - o Führer (guia)
da comunidade, que virá a constituir o eixo em tomo do qual funciona
todo o sistema político nacional-socialista. Em virtude da desigualdade
natural entre os homens, destaca-se ine.vitavelmente urna elite capaz
de interpretar e assumir de forma superior as aspirações e o ser da
comunidade, na medida em que foi privilegiada na desigual recepção
natural do Volksgeist pelas consciências individuais; ora, desta elite
surge, natural e inevitavelmente pelas mesmas razões, um indivíduo
que, pela excelência das suas qualidades intelectuais e morais, acolhe
de forma suprema o Volksgeist e, por i.sso, surge como predestinado
para assumir o poder político, a Fiihrung da comunidade.
Nestes termos, o poder do Führer resulta pessoal, originário e
autónomo, o que significa que ele é o único detentor do poder de
Führung, que esse poder não lhe foi transmitido ou delegado pelo povo
ou pelo Estado - o Führer é um produto natural da Volksgemeinschaft -
e que não está condicionado ou sujeito ao controlo de qualquer outra
entidade. Consequentemente, o Führerstaat é, por natureza, autoritá-
rio: o Führerprinzip 353 implíca a supressão da representação política
e da democracia e exige a concentração de poderes no Führer, que

m LAVAGNA, la D0ttri11a Nazio11a/socialista dei Diritto e dei/o Stato, pág. 48.


Sobre a Volksge111ei11schaji, cfr., por todos, RoGER DONNARD, op. cit., págs. 214 e segs. e
416 e segs..
lll Sobre o Führerpri11zip. cfr., por todos, RoaER BoNNARD, ihid, págs. 425 e segs ..
r
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•' 148 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito
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não responde perante quaisquer órgãosJH nem encontra limites à sua
uctuaçãonl.
Contudo, npesar do carácter autoritário e de reconhecida con-
centração de poderes na pessoa do Fiihrer (a ,,distinção de funções»
foz-se sempre sem prejuízo da sujeição hierárquica ao Fiihrer e. logo,
da ,,tmitbde do poder estadual»), a doutrina nacional-socialista recusa
pcrcmptoriamcntc a caracterização do Fii/,rerstaat como ditadura
pessoal ou como regime arbitrário. Desde logo porque o povo não é
aqui objecto do poder, não sofre as ordens do ditador (de resto, o
Fiilirel' n:io dá ordens. não com:rnda. antes se limitando a conduzir. a
guiar o povo): a rclaçüo que se cstnbclcce entre o Fiihrer e o Povo é,
diversamente, uma relação indissociável entre cabeça e corpo dum
organismo - a Vo/ksg e111ei11scl1aft - que. na forma prática da
Fiihrung, se desdobra numa dupla dimensão de guia ( Fiihrer) e corpo
que acompanha e segue o guia (G<folgsc/111ft). Enquanto portador
(Triiger) da vontade colectiva, o Fiihrer nüo exprime uma vontade
individual, mas torna patente, segundo a formulação de HunERJ16, a

-'~ O Fiil,rer só responde p,!rante :l comunidade de onde emanou e da qual é um


elemento natur.il. mas não um lírgão cm ~entido jurídico. Daí que aquela responsabilidade
assuma um c:1ráctcr cspecílico a que é alheio qualqw:r rncc::ulismo típico da relação demo-
crática entre gowmamcs e governados. corno a eleição ou a possibilidade de destituição; tal
responsabilidade existe. por definição. como rc~ulta.do natural da relação que caracteriza a
Fiihnmg. Em ten11os pr.iticos isso signilica que o Fiihrer só pode ser substituído por um
outro Fiihrer que. ::ur.ivés de um movimento emanado da Volksgeimeinschaft, demonstre
com a sua vitória que o anterior Fiihrer se transformara num ditador, ou seja. se afastara das
urefas e dos ideais da comunidade.
'" Daí a não responsabilidade do Executivo perante o Parlamento. a redução deste a
um corpo meramente consultivo ou sujeito à inici:itiva do Fiihrer, a rejeição do sentido
formal de Constituição que, de alguma forma, demarcasse limites à actividade d.o Fiihrer. a
ausência tle qualquer tipo de controlo - político, administr,llivo ou jurisdicional - dos seus
actos. Qu:indo muito (cfr., DoNNARD, op. cit., pág. 439), o Fiilrra estaria vinculado a actuar
de acordo com o Volksgl'ist; ma.~. quem mais qualificado que o próprio Fiihrer parn deter-
minar o que está ou não conforme ao VolksKt'i.w'!
Ainda assi m, Au1nn:s como Sn n·.IJNER (op. cir., pág. 51) rejeit:1m a hipótese de qualquer
limite, mesmo proveniente: do c,píri1n do povo; «o Vnlks.~eist é o sentimento de justiça que
vive no coração tio povo. Ma~. as ickia;~d\' direito cxistl'ntcs no povo são apcmt5 pensamentos
vagos nccc,,itando do snpro criador. E o Fiihrcr que, através tias suas ordens, através da lei,
crfa verd:ideiramenlc o direito: dc,la fonnn. ~le próprio colabora -na fonnação do c~pírito
popular. Nunca o sentimento popular poderá impor limites :1 iniciativa do Fiihrer».
no Cfr.. DoNNARD. «Constitution et Administration du lll Reich Allemand», i11 RDP,
1937. págs. 6 14 e segs..

d
O Estado de Direito e as Experiências Ami-Liberais 149

tade objectiva do povo, ou seja, a vontade que emana da comu-


von d' . da
nidade e que pode ser 1stmta vontade subjectiva, isto é, a vontade
ue resulta da pura soma das vontades individuais.
q As duas vontades são supostas deverem coincidir, mas, caso isso
não aconteça, é a vontade objectiva que tem a primazia. Daí que os
mecanismos que permitem uma relação entre Führer e Gefo/gschaft
não estejam vocacionados para encontrar decisões tomadas pela maio-
ria das vontades individuais - como seria o caso das democracias
liberais -, mas antes para fazer coincidir a vontade objectiva já formu-
lada pelo Führer com a vontade subjectiva do povo; assim, o sentido
das votações no Reichstag ou das consultas populares não será o de
impor decisões ao Führer, mas o de provocar e lhe exprimir a adesão
da Gefolgschaft. Porém - e isto seria decisivo para prevenir as arbitra-
riedades ou a ditadura -, entre ambos não existe uma relação de
sujeição entre governante e governado, mas uma ligação de confiança
mútua, onde a responsabilidade do Führer tem como contrapartida a
fidelidade e obediência voluntária da Gefolgschaft357 •
São estes os pilares teóricos em que a assenta a doutrina nacio-
nal-socialista do Estado, da qual sobressai, curiosamente, a ausência
de referências ao «Estado» propriamente dito. De facto, se bem que
as consequências políticas do poder político hitleriano não difiram
substancialmente das do fascismo italiano, as diferenças teóricas são
notórias, desde logo na relevância concedida ao «Estado» (de impor-
tância capital no sistema mussoliniano e aqui substituído pela posi-
ção atribuída à Volksgemeinschaft e ao Fiihrerprinzip) e não menos,
como veremos, na concepção das suas relações com o Direito.
Face ao primado da comunidade, o Estado perde a posição pri-
vilegiada de valor ético supremo, para ser concebido como simples
meio, como aparelho - mecanismo objectivo de indivíduos na de-
pendência directa do Führer 358 - que este utiliza na condução do

357
• Nesses tennos a Fiihru11g se distingue, quer da Regienmg (Governo) - porque esta
•~plica uma relação de sujeição dos governados relativamente aos governantes, que são
~tulares de um poder de comando ( Herrsc/,aft) - , quer da lei11111g (direcção), porque esta
implica uma posição de comando através de ~rdens e directivas que devem ser obedecidas;
Fü!irer do Panido Nacional-Socialista e da Volksgemeinsclwft, Adolf Hitler era, na hierar-
q~ do aparelho de Estado, chanceler e, só nessa medida, leiter do Estado (cfr., BONNARD,
« Droit et l'État...», cit., págs. 426 e seg.; oe YuRRE, op. cit.. págs. 572 e segs.).
Jlll Cfr., LAVAGNA, op. cit., pág. 166.
150 Co111rib1110 para 11111a Teoria do Estado de Direito

Povo, o que coloca a concepção do Estado como pessoa jurídica sob


o fogo da crítica da nova dogmática. Com efeito, a já referida associa-
ção desta concepção ü ideia de limitação juridica do Estado e protecção
dos direitos individuais faria dela um anacronismo individualista
contrário à tradição das comunidades germânicas; por outro lado,
enquanto ficção jurídica conducente à abstracção e anonimato do
poder, a construção do Estado como pessoa jurídica era inconciliável
com a natureza personalizada do poder do Fiihrer e com a concepção
da Volksgemeinschaft como realidade concreta, vivente, de facto,
que não necessita de ficções jurídicas nem de entidades abstractas
para produzir o seu próprio Direito ou gerar um Fiihrer capaz de lhe
indicar a via do seu destino político. ,.
•I

Além disso, a concepção do Estado como pessoa jurídica impli-


caria igualmente a caracterização do Führer como órgão do Estado,
o que contrariava abertamente a natureza pessoal, originária e autó-
noma do seu poder. Como diz H ôHN, «a personalização jurídica do
Estado conduziria à consideração do Fiihrer como uma pessoa indi-
vidual e, do ponto de vista jurídico, tomá-lo-ia necessariamente órgão
da pessoa invisível Estado, frente à qual se situariam os sujeitos. Mas,
dessa forma, o princípio da Führung, que exige uma Gefolgschaft viva
e concreta, perderia todo o conteúdo e qualquer possibilidade de
utilização» 359 •
Assim chega a nova dogmática nacional-socialista à redu.ção da
natureza do Estado a mero Apparat utilizado no interesse da comuni-
dade pelo Führer (tal como utilizava o Partido Nacional-Socialista) e
à rejeição da teoria da personalização jurídica ou qualquer outra que
de alguma forma restringisse a amplitude do Führerprinzip, na medida
em que sugerisse a dependência ou submissão do Fiihrer ao Estado360•

359 Apud P1ERANDREl , /Dirilli S11bhie1tivi Pubblici. pág. 222; sobre a posição de Hõ~b'l -
que, com os mesmos pressupostos, nega também o atributo de soberania, aplicado ao
• Fiihrer ou ao Fiilm:rsraar, porque baseado na ideia de separação Estado-sociedade já supe-
rada pela Volksgemeinschaft (ihid., pág. 206) - cfr.• oi; YuRRE, op. cit .. pág. 584 e segs. e,
mais globalmente. LA VAGNA, op. cir .• p;ígs.150 e segs..

'
1
y,o Porém, na tentativa de conservação teórica já referida, parte da doutrina procura
compatibilizar a ideia de Vnlksge111ei11scl1af1 com a salvaguarda da relevância do Estado. É
este o caso de KRIECK (o Estado é um organismo activo e não um simples meio, já que é
através dele que o espírito do povo (Volksgeist) se transforma em vontade colectiva
( Gemeinswille ). sem o que o Povo não poderia assumir politicamente a própria história);

-
p

O Estado de Direito e as Experiências Anti-Uberais 151

Também no que se refere à concepção nacional-socialista do


Direito, a Volksgemeisclwft surge como elemento decisivo. Tal como
comunidade não necessitava de ficcionar e personalizar uma enti-
~ade abstracta que lhe permitisse o ser politicamellfe, também para
fazer a sua história jurídica não necessita da intervenção da pessoa
invisível que seria o Estado. Se a ficção do Estado como pessoa
·urídica - titular de deveres e direitos, entre os quais o direito de
J .. . . . .
soberania que lhe permitia criar e impor as leis - era essencial para a
teoria individualista e positivista do Direito, a doutrina nacional-socia-
lista vai preencher com o primado da Volksgeme inschaft - e a
constatação dos seus mecanismos naturais de funcionamento - o
vazio criado com a rejeição daquela ficção.
É a própria comunidade que, pelo simples facto de existir, cria o
direito de que necessita para o prosseguimento dos seus fins; porém,
0 acto criador do direito não significa imposição estadual de regras
abstractas com objectivos de protecção de interesses individualistas,
mas é antes revelação do espírito objectivo (obj ectiver Geist) ima-
nente ao povo, quando esse espírito se apresenta juridicamente, ou
seja, como Rechtsgeist. Este espírito jurídico assenta no Volksgeist, é
imanente à comunidade, mas nesse estado ele é, como diz ScHEUNER361 ,

de Sat\lITT (o Estado nncional-socialista é um Estado-totalitário (101t1ler Staat) e complexo que


peneira nas esferas espirituais e materiais da comunidade e que compreende três componentes:
o Estado em sentido restrito - ,lllloridades e serviços estatais, incluindo o exército -. o
Movimcn10, elite política constiluída no Partido Nacional-Socialista. e o Povo cm sentido
restrito - organizações sociais, económicas, culturais) e de HunER (é através do Estado que o
Povo se transforma de pura realidade material - 11<1111rhaftes Volk - cm realidade política.
politfrches Vo/k; o fatado é, assim. a «fonna da vicia política de um povo»; o Fiilirer nem é
representante do Povo nem órgão do Estado, mas sim, o ponador - Trtiger - da vontade
colcctiva). Cfr., para todos. LwAGNA, op. cit., respectivamente, págs. 66 e scgs. e 108 e segs..
Outros Autores. como KnLU.R!;IJTER e M r:RK, 1en1am mesmo concili:ir o Fiilm:rprin:ip
com a teoria da pcr~onalidade jurídica do Estado. Para M ERK (cfr., DE YuRRE. op. cit.. p:ig.
588 e LAVAGNA, op. cit., p. i:n e seg.). os co11cci1os de Filhnmg e Gefolgsc/wft não são
co~ccitos jurídicos, pelo que não poderiam resolver o problema político na sun vcnente
Jundica; ora, como o Povo se revela, do ponto de vista jurídico. como unidade ca paz de agir
e é O Estado que representa essa unidade, então o Estado ~ pessoa jurídica); para
K<>eu.RWTER (cír .. LAVAGNA. º/1· dt., págs. 131 e scgs.). sendo o povo um iodo orgânico
que, aspirando a uma vontade autónoma e unit:iria. rcali1,a poli1icamcnte essa aspiração no
E~ta~o. então o próprio Estado é pessoa jurídica, entendida não como pura abstracção ou
crrnçao, ma~ como forma J·urídica concreta e 11a11icular cio povo como en1idade política.
361 ' . '
Cfr., ULRICH SCHEUNER, loc. cit., págs. 51 e 54 e scgs..
q

152 Co11trib11to para uma Teoria do Estado de Direito

um pensamento vago, um sentimento de justiça que, para se transfor-


mar em acto concreto, em vontade colectiva, necessita de «um sopro
criador» que lhe dê forma clara e precisa, ou seja, necessita da deci-
são e do acto do Führer162 •
O Direito é, na formulação de L ARENZ363, simultaneamente ideal
e realidade imanente à colectividade popular, constituindo o seu
ordenamento vital; não é uma norma abstracta produzida pela vontade
estadual, mas antes uma dimensão do Volksgeist. Assim, a comuni-
dade vive, «não segundo o direito», mas «dentro, através e com o seu
direito», o que significa que, primariamente, o direito é um ser (Sein);
secundariamente, na medida em que, através da vontade do Fiihrer,
o direito se constitui como «forma na qual e através da qual a
Volksgemeinschaft dirige e plasma de modo unitário a própria vida
co!ectiva», ele é também um de ver ser (Sollen). Entre as duas dimen-
sões a harmonia é natural, já que o dever ser - exigência de ordem
na vida política - se modela de acordo com as formas de vida social
e as aspirações e pulsar da comunidade traduzidas na sua vontade
objectiva formulada pelo Führer.
Nestes termos, como diz L AVAGNA36-I, «a consideração do dever
ser como um modo particular e necessário de apresentação da reali-
dade jurídica em acto, conduz à reunião das três formas jurídicas da
legislação, execução e jurisdição como três momentos, distintos no
oi
tempo, da actuação concreta da Gemeinswille jurídica».
No que se refere à legislação, resulta óbvio o papel determi-
nante, ou mesmo exclusivo do Führer, não obstante a existência de

362 Segundo HõHN (cfr., LAVAGNA, op. cit., págs. 164 e seg.), e ao contrário do que
pretendia M F.RK (vd., nota 360), Führer e Gefolgsc/raft são também conceitos jurídicos,
porque, participando na criação do direito, não podem ser ignorados pela ciência jnrídica.
Todavia, nem o povo é pessoa jurídica estadual nem o Fiihrer é um seu órgão jurídico, mas
sim realidades vivemes e naturais.
363
1 Cfr.. LAVAGNA, op. cit., págs. 50 e seg. e 57 e segs., e PmRANDREI, op. cit.• p:ígs.
• 1 210 e segs..
1.i 36-1 Op. cit., pág. 59.

!
1•
:1'
365
Este pensamento encontra cabal tradução na fórmula de Sc11Mn-r «a lei é a vontade
e o plano do Fiíhren, ou, mais propriamente, e porque o Direito era indissociável da Política

1 li - seria logicamente impossível proceder a uma demarcação mecânica de uma esfera jurídica
no Volksgeist, pelo que a Gemei11swille recobria inelutavelmentc as duas dimensões -, «a lei
é hoje a expressão da vontade política do Fiihrer» (SCI-IEUNER); cfr., DE YuRRE, pág. 574 e seg..
l11
r
!
.1 1

i:
!lt
-
O Estado de Direito e as Experiências Anti-liberais 153

• modalidades de lei (Regierungsgesetze, leis emanadas do Go-


tres
1
1
verno, Reichstagsgesetze, aprovadas pelo Parlamento, ou Volksgesetze,
. submetidas a referendo). Se, em termos teóricos, a criação da lei
1e1S . d . 1d
apresentada corno po er vmcu a o, na medida em que não era
. 1ar do Rechtsgeist imanente à comuni-
eraais que a revelação part1cu
:de, na prática surgia como actividade discricionária e ilimitada do
Fiihrer, pois a vontade deste era o único critério na determinação do
verdadeiro ordenamento v1ta . 1 do povo365 .
Idênticas consequências tem a atitude anti-positivista do nacio-
nal-socialismo no que se refere ao princípio da legalidade. Coerente
com a distinção operada entre Direito (ordenamento vital imanente à
comunidade) e Lei (expressão parcelar e dependente daquele
Rechtsgeist), o pensamento jurídico dominante no nacional-socia-
lismo negava o carácter absoluto do princípio da legalidade, ao qual
substituía o princípio mais abrangente e ambicioso da jurídicidade
ou conformidade ao direito ( Rechtsmiissigkeit). Isto significa que
mais importante que a conformidade de um acto de administração à
lei é a sua identificação com o sentimento jurídico da comunidade,
com o Direito. Neste contexto, seria legítimo um acto administrativo
que, embora não sustentado numa lei prévia, ou mesmo em contradi-
ção com ela366, respondesse, contudo, às aspirações da comunidade,
à sua vontade objectiva.
Pelas mesmas razões, também o juiz, tal como o funcionário
administrativo, deve orientar a sua actividade, não pelo modelo mental
e passivo da aplicação da lei proposto por MONTESQUIEU, qual «bouche
qui prononce les paroles de la loi», mas sim por uma adestio ao
Direito criativa e empenhada.
Neste sentido, o juiz não pode apelar apenas à letra da lei. A
norma positivada é uma precipitação do ordenamento vital do povo
operada pelo Fiihrer, mas não é a única modalidade dessa precipita-
çã?; ao juiz incumbe, pois, impregnar as suas decisões de todos os
pnncípios jurídicos revelados pelo Führer, independentemente da sua

lG6 Nesta sua formulação extrema, o princípio da juridicidade só era admitido pela
p, . rad"icaJ da nova dogmática que, desta forma, subvertia todos os canones
corrente • do o·ireuo
·
8ubhco até então admitidos (cfr., PmRANDREI, op. cit, págs. 231 e segs. e 236 e segs.;
~m«co··
Ar-oN ' 11s111u11011 et Admi11istratio11 da11s /e /li Reic/1 Al/emanl1
», ,pags.
6 0 9 e segs.;
so QUEJRó, O Poder Discricio11ário da Administração, pág. 150 e seg.).
-
154 Co111rib1110 para uma Teoria do Esta,lo de Direito

consagração legal. Enquanto esfera de fu nções integrada no poder


unitário da Fiihnmg, a função judicial não é neutral nem apolítica;
não pode, portanto, o juiz refugiar-se num apego individualista a
uma metafísica da justiça quando a comunidade lhe exige - enquanto
Volksgenosse, camarada do povo - a participação na realização dos
seus tins jurídicos. Tão pouco pode o juiz reivindicar a independên-
cia da sua função, com o que se converteria, segundo ScHMIIT, «num
anti-Führen>; em última análise, a inspiração do juiz tem como fonte
directa a vontade do Fiíhrer de quem o juiz é, segundo HUBER, um
mero comissário ou, na expressão do ministro F RANK, um soldado367 •
Nestes termos, o poder político encontrava na retórica da supe-
ração da legalidade individual ista os argumentos que lhe possibilita-
vam uma intervenção ilimitada em todas as esferas da vida social e
política, mediante a invocação não controlada da realização do Direito
imanente na comunidade. Consequentemente, a postura anti-positi-
vista de contraposição do Direito à legalidade funcionava, no contexto
autoritário do nacional-socialismo, não como protecção contra a
omnipotência legislativa do Estado - e na Itália fascista o positivismo
jurídico serviria, de facto, os desígnios do Estado totalitário -, mas
antes como armadura teórica da intervenção arbitrária do Führe,.368.
Que o autoritarismo e o menosprezo dos direitos fundamentais
eram essenciais ao regime demonstra-o, no puro plano teórico, a
posição nacional-socialista àcerca dos direitos públicos subjectivos.
Desde logo, a invocada superação do liberalismo implica que é, agora,
em função da comunidade e não do indivíduo que se orienta primaria-
mente o ordenamento público. É só mediante a sua integração comu-
nitária que o homem ganha sentido, não já como indivíduo atomistica-
mente considerado, mas como ser social, como célula do organismo
vivente que é a Volksgemeinschaft. O homem é fundamentalmente
um membro da comunid ade, um camarada no seio do povo
( Volksgenosse); é só nessa dimensão que ele tem uma relevância

1
·" ' Cfr. DE YuRRE. op. cit., págs. 575 e segs. e 600 e segs.; daí a não admissão do
princípio da inamovi hilidadc dos juízes e a necessidade do aval do Partido Nacional-Socia-
lista para a sua nomeação, no quadro da submissão do poder judicial ao Fiihre1pri11zip.
3611
Cfr., neste sentido, ANDRÉ GONÇALVES PERtiRA, Erro e Ilegalidade 110 Acto Admi-
nistrativo, pág. 30 e l;eg., e DE YuRRE, op. cít., págs.601 e scgs..

--
O Estado de Direito e as Experiê11cias Ami-Liberais 155

olítica e jurídica e não já como sujeito de direitos e deveres, como


P · ídºica369 .
pessoa JUr
Estava, portanto, afastada a relação Estado-indivíduo concebida
como relação entre pessoas jurídicas titulares de recíprocos direitos e
deveres. Por um lado, o Estado não é pessoa, mas mero instrumento;
por outro, o indivídu~ não se a presenta separado do Estado, salva-
ouardando a autonomia de uma esfera própria imune à intervenção
.
~
do Estado e. muito menos. a e1e contraposta. Integrado na comuni-
dade, o Volksgenosse não é, então, titular de direitos subjectivos
oponíveis ao Estado, mas s im de uma situação que é jurídica
(Rechtssrell1111g) na medida e m que imanente à Volksgemeinschaft
está um ordenamento jurídico de que resultam - como fracções deste
ordenamento objectivo que afectam particular e diferentemente cada
Volksgenosse 370 - situações especiais.

:iw Tal como a ficção da Rechtsgemeinschaft fôra substituída pela realidade concreta
Volksgemeinschaft. também a ideia de sujeito de direito cedia a favor da entidade concreta
constituída pelo camarada do povo, o Volksgenosse. É este o entendimento proposto pela
"º"ª dogmârica (cfr. , L AVAGNA, op. cir .. pág. 160 e seg), ao qual estava subjacente um
fundamento biológico: confonne se estabelecia no Programa do Partido Nacional-Socialista.
na legislação sobre direito de cidadania e no Projecto do chamado Volksgeset:b11ch, havia
uma distinção entre cidadão (Staarsbürger). que em virtude de uma dada origem r:ícica
(«sangue alemão ou aparentado») podia gozar de todos os direitos como Vo/ksge110.ue. e o
nacional (Staatsgehéiriger), que só podia gozar dos direitos «que segundo o seu espírito»
fossem compatíveis com o «sangue não alemão» (cfr.. BONNARD «Le Droi1 et l'État...». cit..
pág 227 e segs., e ORLANDO DE CARVA1.110, A teoria 1:eral.. ., cit., p:ígs. 2 1 e 62 e seg.).
Numa formulação menos radica l, mas ainda assente na distinção entre «camarada de
raça» e «camarada de raça estranha», LARENZ, porque conservava a ideia de Rechtsge111ei11schaft,
mantinha, consequentemente, o conceito de personalidade, de sujeito de direitos, o
Redusgenosse; porém, o processo de criação e a inteligibilidade das entidades jurídicas
eram invenidos: «não são os indivíduos que, mediante um contrato ou algo semelhante,
constituem a colectividade jurídica, mas é a colectividade natural, real e orgânica, dotada de
um espírito e uma vontade próprios, que, como Rech1s11e111ei11sclwji (isto é, na sua actuaçiio
jurídica), possibilita aos seus membros, por meio do seu ordenamento concrl!to, concluir
contratos e estabelecer relações jurídicas» (LWAGNA, op. cit., pág. 60).
• • l1t> Não há a ideia de uma capacidade jurídica abstracta titulada igualmente por cada
~ndivfduo, mas sim a da mera ocupação de uma situação jurídica correspondente à
integração panicular do indivíduo na comunidade. Como diz ORLANDO DE C,,RVALHO (Os
~ireit?s do Homem ... , cit., pág. 9), a noção de personalidade tornou-se «num conceito de
contcudo ondulante segundo o lugar ocupado dentro da co1111111idade jurídica: praticamente
um re""'ss
"" o as ' concepções dos jus ronwm1111 na sua fase mms · prnm11va
· · · e cme1, um
regresso às capitis de111im11io11es, sem ignorar os extremos da 111rpi111do e da i11fa111ia».
156 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

Desta forma, a doutrina nacional-socialista predominante rejeita


a ideia de direitos subjectivos públicos a que contrapõe - com
enquadramento e atributos substancialmente diferentes - a noção de
situação jurídica do associado (Rechtsstellung der Volksgenosse)3 71 •
Assim, enquanto concretização particular do direito objectivo - e não
poder de vontade oponível ao Estado - a situação jurídica é, na
formulação de LARENZ372 , essencialmente estática, como o posto que
um determinado Volksgenosse (ou Rechtsgenosse) ocupa na comuni-
dade: «não se tem uma posição jurídica, mas está-se numa determi-
nada posição jurídica. Como tal, o conteúdo de tal situação não se
reconduz a um poder de agir (potestas agendi), mas antes a uma
relação de dever (Sollen) do indivíduo para com a comunidade de
que é membro.
Nestes termos, a situação jurídica reconhecida ao Volksgenosse
tem uma natureza essencialmente distinta de um direito subjectivo
público; o valor do indivíduo, a esfera individual, é aqui um mero
reflexo do bem geral - a integração na comunidade. As próprias
faculdades que irradiam da situação jurídica têm uma natureza
«funcionalista», pois, subordinadas àquele bem geral - como «frag-
mentos do interesse geral que integram a esfera de acção do indiví-
duo como membro da comunidade»373 - , estruturam-se e devem ser
exercidas em função das exigências da colectividade, em função dos
deveres do indivíduo como Volksgenosse. Orientada para a satisfa-
ção dos interesses da comunidade, da situação jurídica está ausente
todo o carácter de anterioridade ou superioridade relativamente ao
Estado; reflexo objectivo da integração do indivíduo na comunidade,
a situação jurídica é uma relação puramente técnica que, ao contrário
do direito subjectivo público carregado de conotações individualistas,
exprime essencialmente uma posição de dever da parte relativamente

Assim, não coincide, desde logo, a capacidade jurídica do Volksge11osse com a do


Rechtsgenosse não cidadão, a quem, de acordo com a sua particular Gliedstellung é conce·
dida uma capacidade mais ou menos restrita. A essência da situação jurídica consiste «no
dever e no poder de participar na vida da comunidade, de acordo com o direito objectivo»
(BoNNARD, «Constitution et Administration ... », cit., pág. 611).
m Sobre a polémica gerada a este propósito na doutrina nacional-socialista, cfr.,
PIERANDREI, op. cit., págs. 253 c segs..
372
Cfr., LAVAGNA, op. cit., pág. 61 e seg..
313
PJERANDREI, op. cit., pág. 267.
O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais 157

ao todo e, como tal, se ajusta ao carácter autoritário do regime e à


óação dos direitos fundamentais por este operada.
neo Esta atitude relativamente à posição do indivíduo na comunidade
implicaria, igualme~te, uma consideração ~specífica do problema da
justiça administrativa po~ ~a~te ~~ dou!nna nacional-socialista. E,
coerentemente com os pnnc1p1os Ja anahsados de rejeição da perso-
nalidade jurídica do Estado e dos direitos subjectivos públicos, lógica
será, igualmente, a recusa da jurisdição administrativa374 • Não foi ,
contudo, esta a doutrina oficial do regime que, sob a voz autorizada
dos seus dirigentes, viria não só a defender a manutenção da justiça
administrativa (embora com um enquadramento radicalmente dife-
rente), como até a avançar no reforço da sua institucionalização375 •
Esta operação exigiria necessariamente uma tentativa de harmo-
nização da justiça administrativa com o quadro autoritário do novo
regime, só possível com a desvirtuação do seu sentido originário de
garantia de uma esfera de liberdades dos indivíduos através da pro-
tecção institucionalizada dos direitos subjectivos dos administrados
contra o Estado. No âmbito das novas ideias, os fins e a justificação
da justiça administrativa são agora os do reforço da comunidade
mediante a garantia do ordenamento jurídico objectivo, nomeada-
mente (mas não exclusivamente) no que se refere à observância da
lei emanada da vontade do Fiihrer.
374
É a posição sustentada, entre outros, por HõHN: se, por definição, a actividade
jurisdicional opera sobre uma disputa entre dois sujeitos àcerca de um direito, então a
jurisdição administrativa é impossível na medida em que nem o Estado é sujeito jurídico
nem o indivíduo lhe pode opor direitos subjectivos. Tal não significaria, porém, a identifica-
ção do regime nacional-socialista com ditadura ou arbitrariedade, pois, como vimos, a
~dministração, submetida à Fii/1ru11g, estaria vinculada ao Direito imanente na comunidade;
~t~p.lesmente, os mecanismos de controlo daquela sujeição e do respeito do ordenamento
Jund1co do povo teriam uma natureza não jurisdicional, mas admi nistrativa.
. !" idêntica conclusão chegam os defensores do regime que desvendam na justiça
admm~strativa potencialidades incompatíveis com o Fiihrerprir,zip e a natureza autoritária
do ~cg,me; como diz SOMMER, o cidadão «consideraria qualquer êxito num Tribunal adminis-
1'.'ltivo contra um funcionário nacional-socialista como uma vitória sobre o Nacional-Socia-
ltsm?''. (cfr., para a corrente doutrinária que nega a possibilidade de compatibilizar justiça
admrnistrativa e nacional-socialismo, PJERANDREI, op. cit.. p,ígs. 183 e segs.).
M' . J7S Quer na Let. sobre o Estatuto dos Funcionários quer cm textos e .mtervençoes - dos
P tnistros FRICK e FRANK, se defendia a manutenção da j ustiça administrativa (cfr.,
IERANoREt, op. cit., pág. 291, e ROGER BONNARD, «Constitution ...», cit., pág. 612), após o
que se const't · · · · · - d "'
, 1 u,u o Tnbunal /\dmi11istra1ivo do Reich, previsto na Cons11tu1çao e vvEIMAR
mas nunca instituído (cfr., GARRIDO FALLA, Tratado de DerechoAdministrativo, vol. I, pág. 71).

.._-...._
158 Co11trib11to para 11111a Teoria do Estado de Direito

Neste contexto, a intervenção dos tribunais administrativos pode


ser suscitada, não com fundamento em lesão de um interesse indivi-
dual por parte da Administração, mas por motivo da perturbação do
ordenamento geral como efeito da ofensa ao interesse individual; a
justiça administrativa intervé m quando, em consequência de um acto
administrativo que prejudica um particular, a harmonia da
Volksgemei11schaft é perturbada, pelo que só na medida em que pro-
1 1 tege o ordenamento objectivo a justiça administrativa protege, reflexa~
:1 mente, as situações jurídicas dos particulares.
Igualmente, o interesse do particular quando acciona a j ustiça
administrativa não é a defesa de um pretenso direito subj ectivo pú-
blico, mas do próprio ordenamento objectivo, pois, em função de uma
particular situação em que se encontra, ele tem um interesse especial à
j
na observância da legalidade; nas palavras de JERUSALEM376, «o sujeito
individual com a sua Klage exerce uma função estadual que se realiza
com a manutenção da segurança e do ordenamento jurídico».
A justiça administrativa não é, portanto, concebida como um
controlo da justiça sobre a Administração, mas como um processo de
descentralização administrativa no qual os tribunais administrativos,
fundamentalmente interessados na colaboração com a Administração,
se assumem como instituições que integram o aparelho administrativo.
Nestes termos, a compatibilização teórica da justiça administrativa
com a Welta11schauu11g nacional-socialista resulta num esvaziamento
do seu sentido originário, traduzido posteriom1ente, em termos pníti-
cos, na exclusão da possibilidade do recurso directo do particular aos
tribunais administrativos; de facto, um Erlass do Fiihrer, de 1939,
substitui esse procedimento pelo recurso administrativo hierárquico,
pelo que só com prévia e discriciomíria autorização dos órgãos admi-
nistrativos - «atendendo ao significado fundamental ou às circuns-
tâncias particulares da fattispecie» - o particular pode recorrer aos
tribunais 377 •

l 76 Cfr.. PmRANDREI, op. cit,, pág. 295.


377
Da mesma forma, duma scn1cnç;1 jurisdicional administrJliva só pode haver recurso
para um tribunal superior com prévia au1orização do tri bunal recorrido (cfr., P1ERANDRm. op.
' cit., pág. 291 e seg.).
1
Não se ,rataria, pon!m, segundo A FONSO QuEmó ( O Poder Discricio11ârio da Atlmi·
'! nistraçiio, pág. 150 e seg.), de instituir o arbítrio, já que a orientação predominante ia 110
..--
O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais 159

Perante tais concepções, não só da justiça administrativa e do


·ncípio da legalidade, como, sobretudo, do próprio Estado e dos
pn ·
direitos subject1vos ~u'bl. ·
. 1cos -, que constituem, em termos práticos, 0
Estado naciona1-sociahsta como Estado totalitário, de concentração
de poderes e violação sistemfüica dos direitos e garantias fundamen-
tais do cidadão378 -, resulta claramente excluída a possibilidade de
compatibilizar o Estado nacional-socialista com os quadros do Estado
de Direito como o temos caracterizado. De resto, é esta a posição de
parte significativ a da doutrina nacional-socialista379 • No entanto, tal
con,o acontecera na Itália fascista, mas agora sob argumentos de
matriz anti-positivista, alguns juristas afectos ao regime não só consi-
deram adequada a qualificação de Estado de Direito dada ao Estado
nacional-sociali sta, como apresentam mesmo como «verdadeiro Es-
tado de Direito»Jso o «Estado de Direito nacional-socialista» ou, na

sentido de considerar sujeita ao Direito toda a actividade administrativa; <<O que pode suce-
der é que duas ou mais medidas tenham objectivamente o mesmo valor jurídico e (ou) que
a.~ autoridades administrativas sejam consideradas as únicas capazes ou as mais capazes de
distinguir o justo do arbitrário. de apreender as últimas exigências da «ordem» administra-
ti va. e que, assim, seja retirado pelo legislador aos tribunais o direito de sindicar a actividade
administrativa sob o ponto de vista jurídico».
Cfr., especialmente. sobre a concepção da justiça administrativa na doutrina nacional-
-socialista, Pn,RANDREI, op. cit., págs. 282 e segs.; BoNNARD, «Constitulion ct Administrntion...»,
cit.. págs. 612 e segs.; ScrrEUNER, «Le Peuple, l'État. ..» , cit., págs. 55 e segs..
m Sobre as violações dos valores fundamentais do Estado de Direito levadas a cabo
pelo poder nacional-socialista, mesmo admitindo o respeito da própria legalidade, não só no
que se refere aos direitos de participação política, como nos domínios do direito penal e, do
direito privado, cfr., por todos, FRANZ WtAECKER, História do Direito Primdo Moderno,
págs. 592,e 616 e segs., e DE YuRRE, op. cit., págs. 602 e seg..
379
E o caso, não só da corrente designada por nova dogmática, mas de Autores como
ScuMm ou Sc111,uNCR; cfr., deste último, «Lc Peuple, l'État... >>, cit., pág. 54 e scgs. e, sobre
Sc11~mT, LwAGNA, op. cit., págs. 99 e seg .. Sc11M11T, apesar de ter utilizado a fónnula
Estado de Direito 11acio11al-socialisw (ver supra, nota 10), considera o conceito de Estcu/o
de Direito insuficiente para designar o novo Estado totalitário nacional-socialista, propondo
antes, para este, a classificação de Estado justo, como Estado correspondente ao
ordenamento concreto do povo e não resultado de uma qualquer vontade arbitr.\ria.
• • Ji!IJ Estão neste último caso: N1cotA1 (para quem o Estado de Direito liberal nem era

Direito nem Estado); LANGE (pois só no Estado nacional-socialist:1, ultrapassada a separação


~ibera! entre Direito, moral e costume, o Direito encontra o seu verdadeiro significado de
tdent_ificação COlil o espírito do povo); SrnwErNtCHEN (prcssupôtldo o Rechts.,·wat uma ver-
dad_e,ra relação entre Estado e actuação do Direito, só no Estado nacional-socialista tal se
verifica
, .
p · E · · ·· · d
• 0 1s o ·stado liberal do século XIX não ultr.ipassava os lnmtes pos1tl\'lstas e um
~f,'co_E~tado legal («typischer Geset;;essraar»)) _ cfr.• para estas posiç_ões, PrERANDREI, op.
·· pags. 228 e seg., e RENATO TRINES, «Stato di Diritto e Stati Totalitan», pág. 63 .

. ____ -·"
q

160 Co111rib11to para uma Teoria do Estado de Direito

fórmula do M inistro H . FRANK, o «Estado de Direito alemão de A.


Hitler>) ( «deutscher Rechtsstaat A. Hitlers» )381 •

2. A revolução anti-capitalista na Europa oriental e o Estado


de Direito

Ao contrário da ambiguidade que caracteriza a doutrina oficial


dos Estados totalitários da Europa ocidental no que se refere à adopção
do conceito de Estado de Direito, a doutrina dos países saídos das
1

revoluções anti-capitalistas no Leste europeu tem, aparentemente,


1
uma posição definida quanto ao problema, caracterizada pela rejeição
lj do conceito e a defesa de uma construção globalmente altemativa382•
H Fundado na crítica marxista do Estado capitalista e no seu pro-
grama revolucionário, o projecto político do Partido Bolchevista, vito-

!
1
'f
l
rioso em Outubro de 1917, situava-se, não só em oposição frontal ao
absolutismo czarista - incluindo o pretenso Estado constitucional
saído dos acontecimentos de 1905 - . como também à margem dos
quadros políticos e teóricos do liberalismo, na medida em que o
• programa marxista de transformação social exigia a prévia instaura-
ção de um Estado classista de d itadura revolucionária do proleta-
riado como primeiro acto de um processo de imediato e progressivo
perecimento do Estado até ao advento da sociedade comunista 383 •

Mais moderadamente, porque não recusa ao Estado liberal o atributo de Rechtsswat,


KoELLREUTER desenvolve, a partir da compenetração opcrnda entre Direito e Estado. a ideia
da extensão daquele conceito ao Estado nacional-soeialist.1; distinto do Estado de Dirci10
burguês tradicional, o Estado de Direito nacional-socialista, tal como o fascista, fundaMe-ia
nos princípios da raça, da autorid:ide, da Fiihnmg; sempre, em todo o caso. exercício do
poder político garantido pelo ordenamento jurídico, fora do qual o Estado degeneraria cm
ditadura e não seria digno dos atributos de Ku/turstaat e volkischer S111at - cfr.. sobre
KOELLREt.rrER, LAVAGNA, op. cit., págs. 226 e 297.
1 Js, Cfr.. P1ERANDREI. op. cit.. págs. 226 e 297.
382
Consideraremos. sobretudo, nesta parte da exposição, a experiência prática e a
1. elahoração teórica desenvolvidas na Rússia soviética após a Revolução de 1917, quer pJr
ter sido, durante mais de duas décadas, um processo isolado quer por se ter posterionnente
convertido no modelo teórico e no guia político das restantes experiências sobrcvindas na
Europa oriental.
383
Quando o proletariado se apodera do poder do Estado (que até aí só «era o
representante oficial de toda a sociedade [...) na medida em que era o Estado da classe que

............
... .

o Estado de Direiro e as Experiências Anti-liberais 161

Não obstante, est~~ ~ndamentos teóricos não implicavam, à parti-


uma atitude de reJe1çao do Estado de Direito tal como O entende-
da, . poder-se-ia. mesmo, dizer que os clássicos do marxismol~ e os
mos,des partidos sociais-
. . democratas da CI.• Internacional, na medida
oran . - 'fi
" que teorizaram a trans1çao pac1 1ca para o socialismo _ desde que a
em resentação nac1ona
. 1 detivesse
. um poder efectivo na sociedade _ e a
rep - /'d ·r· - d
compatibilizaça~ 1. enll 1caça?. a d'1tad.''.ra do proletariado com os
adros da republica democraflca e leg1ttmavam historicamente O seu
q~ojecto de transformação social com a necessidade de desalienação
~o homem - com a consequente superação do espartilho que a con-
cepção liberal, atomist~ e :_goísta, impu.nha aos direitos e liberdades
individuais - e emanc1paçao da humamdade3840 , eram, a seu modo,
ioualmente protagonistas do ideal de Estado de Direito38s.
"
represen1ava, no seu tempo. toda a sociedade» - Et>GELS, A111i-Dilhri11g. trad .. Lisboa. 1971,
pág. 344) e socializa os meios de produção, destrói-se a si próprio como proletariado e
suprime o Estado como Estado. Assim, «o primeiro acto pelo qual o Estado se manifesta
como sendo realmente representante de toda a sociedade, quer dizer. a tomada de posse dos
meios de produção em nome da sociedade, é, ao mesmo tempo, o último acto próprio do
Estado. A intervenção do Estado nos assuntos sociais torna-se progressivamente supérflua
e acaba por extinguir-se. A administração das coisas e a direcção dos processos de produ-
ção substitui o governo das pessoas. O Estado não é abolido; mo1Te» (ENGELS, ibid.).
A par desta autodesmobilização do Estado poderá, então, na fase superior d:i socieda-
de comunista, «o limitado horizonte do direito burguês ser definitivamente ultrnpassado e a
sociedade podení escrever na~ suas bandeiras: 'de cada um segundo as suas capacidades, a
cada um segundo as suas necessidades!',, (MARX, Crí1ica do Programa de Gotlw).
l84 Defendendo esta interpretação do marxismo (fundamentada sobretudo nos chama-

dos «escritos de juventude,, de MARX. nomeadamente a Crítica da Filosofia do Dirdto dt•


Hegel, mas também A Questcio judaica, bem como em vários textos de EI\Gl'LS, como a
Crítica do Programa de E,jim ou a /mrodução de 1895 à L111a de Classes <'lll França. de
K. MARX), cfr., entre muitos, S. LANDSlllJT e J. P. MAYER. «hnponancia de las obras
juveniles de MARX para uma nueva comprcnsión dei marxismo» /Introdução à edição
argentina de 1946 de K. M,,Rx. Critica de la filosofia dei Eswdo de Hegel, trad .• Buenos
Aires, 1946, maxime págs. 25 e segs.); EuAs D1AZ, «MARX y la teoria marxista dei Derecho
Y dei Estado», in Sistema, Outubro, 1980, J11axi11111 pág. 36 e segs.; FERNANDO C L.AUDIN,
Marx, Engels y la revolució11 de 1848, Madrid, 1975, e E11mcomu11is1110 Y Socialismo.
~adrid, 197'., págs. 79 e scg.; 1-JAL DRAPER, «Marx y la dictadura .de~ proletariado», i11
onthly Rewew, Dez., 1977; Emcu FROMM (org.), Humanismo Soctaltslll, trad .• Lisboa.
1976, ma:âme págs. 151 e scgs ..
\8.1, Sobre a concepção marxista dos direitos do homem, cfr., por todos, FRANCESCO
? ~;nL\ «I di;itti dell'uomo nella critica marxiana dell'emancipazione polilica». i11 RIFD,
9 • n. 4, pags. 571 e se"s
ll!S o ..
Cfr., neste sentido, HERMANN HELLER, Rechtsswat oder Dikrawr?, pág. 3.

>
162 Contrib11to para 11ma Teoria do Estado de Direi/o

Segundo esta perspectiva, a frontal rejeição do Estado de Direito


e a afirmação da chamada «teoria marxista-leninista do Estado»
como modelo alternativo e incompatível com os seus quadros são,
sobretudo, resultado da discutível adaptação do marxismo às condi-
ções da sociedade russa levada a cabo por LENINE386 e da teoria do
Direito e do Estado que emerge do processo revolucionário por ele
liderado.
Tal como os clássicos do marxismo a concebiam, a revolução
proletária deveria desencadear-se prioritariamente nos países indus-
trializados do ocidente, onde o desenvolvimento das forças produtivas
constituíra o proletariado em maioria da população; só neste contexto
a revolução proletária pôde ser perspectivada como movimento da
«iinensa maioria em benefício da imensa maiorifü) e a constituição
do proletariado em classe dominante identificada com a «conquista
da democracia», como se dizia no Manifesto 381•
Porém, a revolução russa viu a luz num país economicamente
atrasado, quase feudal, onde o proletariado era uma pequena minoria
da população e o partido bolchevique, vitorioso e no auge da sua
força, não obtivera mais de 25% dos votos para a Assembleia Consti-
tuinte contra 58% dos socialistas-revolucionários 388 • Serão exacta-
mente estas condições que, a partir do momento em ·que o Partido
bolchevique decide conservar o poder a todo o custo e levar a cabo
um programa de apropriação colectiva dos meios de produção atra-
vés do Estado, vão marcar indelevelmente a experiência revolucioná-
ria soviética e a teoria do Estado a que d,1 origem.

1811 Sobre a t!is1orç(io bolchevista do marxismo clássico e as eomradições teóricas e


práticas que envolvem a sua aplicação por parte de L1;NJNE e. sobretudo. de EsTAl.lNE, cfr.,
por todos, KARi. KAursKY, La dictmure d11 proléwri111, trnd., Paris, 1972. e Le Bolchévisme
dans /'impasse, trad., Paris, 1982; HANS Kn sr:N, /\ T,,mia Política do Bolchel'ismo, uma
a,uílise crítica, i11 RFDL, 1953 e 1954, e KAZEM RAOJ,WI, u, dicrm11re d11 proléwriat et /e
depérissement de /'É:m de Marx à L<:11i11e, Paris, 1975, págs. 122 e scgs. e 223 e segs..
7
·'" Só nestas condições era concebível a propugnada supressão do exército penna-

ncnte e do aparelho hurocrá1ico-rcprcssivo. bem como a desmobiliz.'lção do Estado. e só


com base nessas premissas pôde a Comuna de Paris de 1871 - citada por ENGELS como
exemplo vivo de ditadura do proletariado - não só manter como alargar os direitos políticos
dos cidadãos, como o sufrágio universal, e, mesmo em situação de guerra. garantir a
realização de eleições livres, com pluripartidarismo e direi10 de oposição, incluindo os
panidos mais conservadores.
™Cfr., os números do próprio LENINE em Oem•res, 1. 30, Paris-Moscow, 1976, p.'\g. 260.

1
'
-
O Estado de Direito~e as Experiências Antí-Ubemis 163

É assim que, ao arrepio da teoria dos clássicos do marxismo e


intlectindo a própria elaboração leninista anterior a 1917, a revolu-
ção proletária passa a ser teorizada como movimento levado a cabo
pela «minoria consciente», pela «vanguarda do proletariado», pelos
«operários conscientes» em favor da imensa maioria389; que as insti-
tuições da democracia, agora designada como «de pura forma» ou
«burguesa». são suprimidas - vide a dissolução da Assembleia Cons-
tituinte cm Janeiro de 1918 - em favor do poder e da «democracia
dos sovietes» (onde os bolcheviques asseguravam uma larga maioria);
que se considera legítimo, no quadro da nova «democracia proletária»,
a supressão prática - e posteriormente consagrada pela Constituição
- do pluripartidarismo e o «recurso ao poder ditatorial pessoaJ»390; e
que, particularmente no que se refe re ao nosso tema, é sustentada
uma teoria substancialmente inovadora quanto à natureza, fins e orga-
nização do Estado e aos direitos dos cidadãos.
Segundo esta nova teoria, longe de constitui r um aparelho em
perecimento, o Estado tem necessidade, durante toda uma fase de
transição, de se reforçar em correspondência ao agravamento da luta
de classes que se verifica após a tomada do poder pelo proletariado.
A constituição do proletariado em classe dominante não é ainda «a
conquista da democracia», mas sim a conquista de uma democracia
«mais completa» que no capitalismo, a «democracia proletária», mas
ainda democracia truncada 391• Abre-se, então, uma fase - a ditadura
do proletariado - durante a qual o alargamento progressivo da demo-
cracia é sustentado num notável reforço do Estado até ao advento do
socialismo, só a partir do qual o Estado começará, fina lmente, a
extinguir-se392•

l fl<• Cfr.
sobreludo o texto «As eleições para a Assembleia Consti1uinte e a ditadura do
proletariado», in Oeuvres, t. 30, págs. 259 e segs..
M lbid., l. 27. Paris-Moscow,1974, pág. 278.
M Sendo «a democracia para os pobres, democracia para o povo e não para os ricos,
a ditadura do prolcta,üdo acarrcla uma série de restrições à liberdade para os opressores, os
exploradores, os capitalis1as», significando uma «exclusão da democracia para os explora-
dores, os opressores do povo,, ( Oeuvres, t. 25, Paris-Moscow. 1975, p,íg. 499).
.in O socialismo, de primeira fase da sociedade comunista imediata à tomada do poder
com a Revolução, passa a ser remetido para data longínqua, num adiamento que visa
notoriamente a legitimação teórica do protelamcn10 do início da extinção cio falado e do não
funciónamcnto de uma democracia («completa») a seguir à Revolução. Como cs1a ainda não
4

1
1
164 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

1
Porém, a realização do socialismo, proclamada por Estaline em
1, 1936 não significaria ainda o início daquele processo. Fundado na
393 ,

1 teoria leninista do «cncarniçamento sem precedentes da luta de clas-


ses após a Revolução», Estaline, não obstante ter procedido à «liqui-
1: dação jurídica da ditadura do proletariado»394, desenvolverá até ao
limite as potencialidades contidas na tese do «reforço do Estado»,
utilizando-a em favor do seu poder pessoal com uma violência sem
precedentes 395 , agora com a cobertura das necessidades impostas
pelo «cerco capitalista internacional».
Assim, nos últimos 60 anos, e não obstante ter oficialmente
passado de <<ditadura do proletariado» (art. 9.º da Constituição de
191 8) a «Estado socialista dos operários e camponeses» (art. 1.0 da
Constituição de 1936) e a «Estado socialista de todo o povo» (art. l.º
da Constituição de 1977, segundo a fórmula introduzida, em 1961, a
partir de KRUTCH EV), o Estado soviético não apresenta quaisquer sin-
tomas de próxima extinção, antes manifestando um reforço sem pre-
cedentes e uma extensão e presença na soc iedade cada vez mais
determinantes, justificadas, sucessivamente, pelo agravamento da
luta de classes, pelo cerco capitalista internacional ou pelas tarefas de
construção próxima do comunismo.
Seja considerado como instrumento da ditadura de classe orien-
tada para a repressão da burguesia ou instrumento de todo o povo na
criação das condições técnico-materiais do comunisrno396, o Estado
soviético, paradoxalmente, não só não extingue como reforça o seu
aparelho burocrático, militar e policial e as respectivas funções no

existe, o Estado não é ainda o representante de toda a sociedade, pelo que, mesmo após a
apropriação dos meios de produção, não pode ainda começar a extinguir-se. Pelas mesmas
razões, a «ditadura do proletariado» passa, insensível mas inovatoriamente, a ser concebida
como transição - não para o comunismo, como era em MARX - mas para essa etapa
intermédia, o socialismo.
393
Cfr., HANS K í:1-5EN, A teoria poUtica do bolchevismo, págs. 141 e segs
3
"' TROTSKY, La Révolwion Tra!tie, trad., Paris. 1969, pág. 262.
m Cfr., por todos, e dado o significado que reveste por ser proveniente do próprio
regime, o relatório secreto de K RtrrCHEV ao XX.º Congresso do P.C.U.S., i11 BRANKO
LAZJTCH, Le rapport Khrouc!ttcltev et so11 histoire, Paris, 1976.
396
É esta, oficialmente, a caracterização da fase actual (desde O XXIV.º Congresso do
P.C.U.S., com B RFJNEV, em 1971), não obstante o seu início ter sido declarodo com
KRUTCHEV, em 1959, e a sua realização prevista para a década de 1970-1 980, conforme
programa do P.C.U.S. aprovado no XXII.º Congresso, em 1961.
O Estado de Direito e as Experiências Anti-liberais 165

plano externo e interno - apesar do proclamado fim da função de


repressão na fase da construção do comunismo, agora caracterizada
como «defesa da ordem legal socialista» e «prevenção e Juta contra a
criminalidade» 397 - , nem perde o seu carácter de classe , com a
consequente subordinação/identificação com o Partido Comunista, não
obstante o proclamado desaparecimento das classes desde 193639s.
Apesar destas contradições - não só relativamente ao marxismo
clássico. como enquanto corpo teórico autónomo -, esta concepção
permite, por um lado, legitimar a omnipresença do Estado em todos
os níveis da sociedade soviética3<J<J, bem como consolidar o papel de
direcção exclusiva do Partido Comunista400; por outro lado, não
obstante a sucessão das diferentes etapas oficialmente reconhecidas,
com as consequentes alterações jurídico-formais, permite justificar a
invariável continuidade de uma «concepção classista» das relações
entre o Estado e os indivíduos.

397
Cfr.. N. A. ALEXANDROV. Teoria Geral Marxista-Leninista do Estado e do Direito,
II, tr.ld., Amadora, 1978, p,ígs. 37 e segs..
),r,; Na apresentação da Constituição de 1936. EsTALINE proclamara o desaparecimento

da burguesia e do proletariado e o fim das diferenças entre as classes (apesar da «permanên-


cia de uma certa diferença superficial entre as diversas camadas da sociedade socialista»),
abrindo o caminho teórico da futura consagração constitucional do <•Estado de todo o
povo». Não obstante, quer na altura, quer actualmente (cfr., N. A. ALEXANDROV, op. cit.,
págs. 27 e segs.), «o Estado é um órgão de expressão dos interesses e da vontade das
massas trabalhadoras sob o papel dirigente da classe operária, conservando a sua essência
de cla,se. assente na ditadura do proletariado».
iw Numa curiosa estatística, que, de alguma forma, rcílecte o acrescido papel do
Estado, Guv DESOLRE (Les Constitllfions Sovil!liques, Paris, 1977, pág. 8) assinala cerca de
1O menções a «Estado» na Constituição de 1918, 15 na Constituição de 1924, 50 na
Constituição de 1936 e mais de 150 na Constituição de 1977.
,m O Partido Comunista da Un ião Soviética (antigo Partido bolchevique), que sob
LENINE acabou por ser considerado o meio. por excelí:ncia, de exercício da ditadura do
proletariado (cfr., Oeuvres, t. 29, Paris-Moscow, 1973, pág. 450 e l. 32, png. 12 e seg.) e
foi, sob EsTAUNE, cons1itucionalmen1e consagrado como partido único e «núcleo dirigente
de todas as organizações de 1rabalhadores, 1:11110 sociais como do Ei-tado» (art.º 126.° da
Consti1uição de 1936). recebeu, com a ConslilUição de 1977. um reconhecimento que.
finalrnenie, ajus1ou o texto constiiucional à pr:ítica cfcctiva do exercício do poder polílico na
União Soviética; nos «fundamcnlos do regime s6cio-político e ccon6mico» (art.º 6.º) - e
não já, como em 1936, nos ,,direitos e deveres fundamen1ais dos cidadãos» - , o P.C.U.S. é
considerado «a força que dirige e orienta a sociedade sovié1ica, o ele111en10 central do
sistema político e de todas as organizações do Estado e sociais».
166 Contributo para 111110 Teoria do Estado de Direito

O Estado soviético surge sempre, com base no seu carácter


instrumental relativamente à construção do socialismo e do comunismo,
como uma instância primária e directa de organização e unificação
4
da sociedade, como uma, na terminologia de BAPTISTA M ACHAD0 º1,
«organização de primeiro grau» que, como tal, reconhece maior ou
menor participação aos indivíduos, pratica maior ou menor descon-
centração de funções pelas organizações sociais, mas nunca se consi-
dera limitado por uma autonomia individual a se.
A questão dos direitos individuais oponíveis ao Estado e, a par-
tida, teoricamente eliminada. Instrumento de opressão da burguesia
na fase de ditadura do proletariado, o Estado soviético exclui, por
definição, a titularidade de direitos por parte da burguesia 402 ; por
outro lado, no que se referia aos trabalhadores, a questão não poderia
ser a de invocarem direitos contra o «seu» Estado, mas a de, como
«povo», fazerem valer os seus direitos contra os capitalistas, o que,
antes do mais, implicava a sua participação nas tarefas libertadoras
conduzidas pelo Estado proletário e era inseparável do cumprimento
das obrigações de cidadão 403 •
Nestes termos, o primeiro documento constitucional após a Re-
volução Russa, não obstante se apresentar como uma «Declaração
dos direitos do povo trabalhador e explorado», não era um catálogo
de direitos individuais, mas uma enumeração das tarefas do Esta-
do40-l. Por sua vez, e no mesmo espírito, o exercício dos direitos
reconhecidos aos trabalhadores (apresentados como «verdadeiros>>
direitos, já que o poder soviético não se limitava a proclamá-los

"°' Cfr., 8AP11STA MACHADO, Pm1icipaç1ío e Desce111raliwçüo. p,ígs. 70 e segs. e 95 e segs..


..,i Como vimos, a ditadura do proletariado não é só. para LENINE. a constituição do
proletariado em classe dominante, «a conquista da democracia», mas t;1mbém a exclusão de
participação dos exploradores em qualquer órgão de poder do Estado, mesmo enquanto
minoria. Consequentemente, a democracia soviética não é só a sujeição da minoria burguesa
às decisões maioritárias da população, mas, sobretudo, a exclusão de uma minoria, previa-
mente dcr.nida e delimitada por critérios de classe, da participação nessas decisões, o que
impede, desde logo, a existência de uma Assembleia representativa de carácter nacional
eleita por sufrágio universal e exige, a par da supressão de todos os direitos à burguesia, a
remissão formal do poder a organismos de classe, os Sovietes.
..n Cfr., M1c11EL LES,\GE, «Pouvoir et Participation», in Pouvoirs, n.º 6, 1978, p:lgs.
18esegs..
4()1 Cfr., M1RK1Nr:-GuETZúvtTc11, «Lcs libertés individuelles et le droit soviétique>,, i11

RDP, 1927, págs. 104 e scgs..

..........
p

O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais 167

forma lmente à luz de uma mistificatória igualdade dos cidadãos


perante a lei - c~mo era ti":1b:e do Estado burguês - , mas se empe-
nhava em garantir as cond1çoes materiais para o seu exercício e,
assim. na medida que lho permitiam os limites de desenvolvimento
das forças produtivas, corrigir as naturais desigualdades do «igual
direito burguês») era condicionado, pela Constituição de 1918, a um
seu uso em conformidade aos interesses da revolução socialista4º5.
A Constituição de 1936 procede aos ajustamentos jurídico-formais
decorrentes da ultrapassagem da fase do Estado proletário406, mas
mantém, tal como o viria a fazer a Constituição de 1977, a continuidade
na concepção <las relações entre o Estado e os cidadãos e os direitos
individuais destes: as garantias individuais são reconhecidas aos ci-
dadãos, não na perspectiva de defesa contra o Estado, mas como
faculdades (f1111ções) atribuídas no sentido da participação individual
nas tarefas e na identificação com os fins do Estado.

.,m Nos arts. 13.º a 16.º a Constituição de 1918 reconhece e assegura aos rraballtado-

res a~ «verdadeiras» liberdades de expressão, imprensa, reunião e associação. Porém, logo


o art. 23. 0 estabelece uma reserva decisiva: «inspirando-se nos in1ercsses da classe operária
no seu conjunto, a R.S.F.S.R. priva os indivíduos e os grupos particulares dos direitos que
eles usem em prejuízo dos interesses da revolução socialista».
No quadro concreto da época. este condicionamento remetia indirectamcnte para o
Partido, que detinha exclusivamente o poder, a faculdade discricionária de retirar ou atribuir
direitos não só cm função de critérios económicos, mas também políticos. como se infere
das próprias declarações de LENINE: «Nós não prometemos as liberdades à direita e à
esquerda; pelo contrário, dissemos abertamente na Constituição [... ] que privaremos os
socialistas de liberdade se eles se servirem dela para mascarar a liberdade dos capitalistas
[... ] di1.emos antecipadamente que privaremos de direitos os cidadãos que entravam a revo-
lução socialista. E quem será o juiz? O proletariado» (Oeuvre.r, t. 29, p.íg. 301 e ~eg.).
..~ Em harmonia com o proclamado desaparecimento das classes. os direitos passa-
ram a ser reconhecidos não só aos «trabalhadores», mas a todos os cidadãos, o q11e se
traduziu. no plano da organização política, no estabelecimento do sufrágio universal e na
eleição directa do Soviete Supremo, reconduzindo, cm tem1os formais, as grandes linhas de
estruturação do poder soviético aos quadros do Estado representativo.
Porém, este ajustamento jurídico-formal - que genericamente faria da «Constituição
de EsTALINE», nas palavras deste, «a constituição mais democrática do mundo» - não se
traduziu, cm termos teóricos. cm qualquer allcração da concepção das relações
Estado-indivíduo e, cm termos prá1icc1s, teve, reconhecidamente, como contrap:inida o au-
men10 inusitado das arbitrariedades e da vioWncia policial. É que, diferentemente do que
escrevia MtRKINE-GuE12f.vrrc11 («Lcs Jibc11és incliviclucllcs...». cit .. pág. 105). a chave do
regime não era «a privação de ce11os grupos da população do exercício de direitos». mas,
~b~tudo, a concentração exclusiva do poder no Partido Comunista e a concepção gemi dos
dire11os individuais como inoponíveis ao Estado.
q

168 Co11trib11to para uma Teoria do Estado de Direito

Com base nestes pressupostos, a teoria soviética dos direitos


fundamentais coloca a tónica na dimensão comunitária, estadual •
quer no que se refere ao imprescindível empenhamento do Estado na
realização dos direitos sociais, quer na existência das condições estru-
turais e materiais que possibilitem o ex~rcício «real» das liberdades e
garantias. Assim se tenderia a reduzir a esta dimensão toda a proble-
i• mática dos direitos fundamentais, donde resultariam, segundo a sín-
>

i tese de GOMES CANOTtLHo 407 , as principais deficiências desta teoria:


!1
«funcionalização extrema dos direitos fundamen tais e minimização

i de uma irredutível dimensão subjectiva; tendencial redução dos direi-


tos à existência de condições materiais, económicas e sociais com
:1 aparente desprezo das garantias jurídicas».
Certamente, após o XX.° Congresso, foram introduzidas cor-
recções relativamente ao período estalinista. Enquanto neste último,
com base na identificação teórica entre fins do Estado socialista e
emancipação do homem, se escamoteara o valor do direito subjectivo
em favor da livre actividade do Estado, a partir do XX.º Congresso
procura-se proceder a uma inversão daquela lógica. Defendendo
igualmente a comunhão de interesses entre o Estado e indivíduo na
sociedade socialista, tratar-se-ia, agora, de reavaliar a dimensão
subjectiva, pois, na medida em que realizasse o seu direito subjectivo,
o cidadão estaria a realizar também os próprios fins do Estado
soviético408 .
Inalterada permaneceria, porém, a nota decisiva que confere à
teoria soviética dos direitos fundamentais - desde 1918 até ao pre-
:f sente - o seu carácter original e de ruptura com a concepção liberal,
ou seja, o condicionamento do exercício dos direitos, liberdades e
1 garantias individuais à sua conformidade aos interesses de consolida-
ção do regime e a impossibilidade da sua efectivação à margem ou
contra as finalidades e as orientações determinadas a cada momento
11 pelo poder instituido409• Concedia-se agora que, pontualmente, o direito
1 •

401 Direito Co11srir11cio11a/, pág. 443.


408
Cfr., para um tratamento desenvolvido da reavaliação da dimensão subjectiva dos
direitos após<> XX.º Congresso, UMOERTO C1;RR0N1, O Pensamento Jurídico Soviético. trad.,
Lisboa, 1976, págs. 125 e segs..
409
Assim, a Constituição de I 936 reconhece as liberdades individuais e os direitos
políticos desde que exercidos «em conformidade aos interc~ses dos tr.1balhadorcs e ao
1

i 1
1

-
.
1 •

O Estatlo tle Direito e as Experiências A111i-Uberais 169

do cidadão pudesse vir a ser violado por um funcionário ou pela


Adrninistrnção, e daí a reavaliação das garantias jurídicas e do respeito
da legalidade socialista operada a partir do XX.º Congresso, mas
continuava a proscrever-se a hipótese teórica de contradição entre o
cidadão e o «seu» Estado socialista, e consequentemente, a possibili-
dade de uma autonomia pessoal afirmada contra o poder político410 •
Afastando liminarmente qualquer ideia de limitação jurídica do
Estado em favor da protecção de esferas indisponíveis de autonomia
individual, o Estado soviético configura-se abertamente como modelo
teórico e prático alternativo ao Estado de Direito411 • Todavia, no
car(lcter essencialmente instmmental do Direito, enquanto vontade da
classe dominante mediada e garantida pelo Estado41 2, reside o co-
mum interesse do ciclacliio e do Estado - empenhados e identificados
na realização dos mesmos fins - na observância da legalidade. Assim,
é a instrumentalidade do Estado soviético e do seu Direito relativa-

objcctivo de consolidar o r.:gimc socialista» (art. 125.°). A Constituição de 1977 mantém


e~tc condicionamento no seu art. 50.0 e reforça o sentido ela específica concepção soviética
dos direitos individu:tis. na medida cm que faz ainda depender o seu exercício da conformi-
dade «aos interesses da sociedade e do Estado» (art. 39.°) e ao cumprimento dos deveres do
cidadão soviético (art. 59.°), os quais incluem, entre outros, «o dever de defender os interesses
do Estado soviético c dt! contribuir para o fortalecimento do seu poderio e prestígio» (art. 62.°).
"'º É com base nesta eliminação da «tensão indivíduo-poder pressuposta na ideia de
liberdade» e no que designa por «funcionalização total dos direitos» que VIEIRA 01:. ANDRADE
(Os Direitos Fundamenwis, cit., págs. 68 e segs.) se interroga se poderá ainda falar-se aqui
cm «direitos fundamentais».
"' Para a doutrina oficial, esta ideia de Estado de Direito não é mais que «a tradução
para a linguagem jurídica das reivindicações económicas e políticas do capitalista que não
desejava imromissão alguma do ap:irelho cstat:11 na sua actividade empreendedora» ou.
quando muito, constitui «de facto, a fundament:1çào ideológica do compromisso entre a
burguesia e a nobreza» (N. A. A1.EX1\NOROV, op. dr., pág. 217).
. «~ma vc1. l111e não existe u1111lircito objcctivo emanado da vontade geral, mas somente
um dircno de clas,c, o Estado, isto ~. a classe organi1.1da cm Estado. não pode ser limitado
pelo. seu, P~óprio direito, pela sua própria vontade" (RADOMtR Lur;1c, Théorie ele /'Érat et clu
Dro11, 1ans. 1974, p:ig. 214).
.,.• e01110 vimos.
. tal como o «Estado de todo o povo» não perde o carácter de classe,
tam~m o direito, «expressão da vontade de todo o povo liderado pela classe operária» e
«destmado
. · para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das re1aç õcs sociais
a cuntn·hu1r ··
;:a~istas», mantém, no período de construção do comunismo, um inequívoco carácter
s,sra (cfr., Au;xANDRov, op. cit., 1, págs. 107 e scgs. e li, págs. 357 e segs.).
Para uma visão global da.~ concepções soviéticas sobre o direito, cfr., por todos,
UMDl:RTO CERR 0 Pe11sa111e1110... , cit., págs. 41 e segs..
ONI,

..____
170 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

mente aos fins de realização do comunismo que, simultaneamente, o


exclui oficialmente como Estado de Direito e determina a sua confi-
guração como «Estado de Legalidade Socialista».

2.1. O «Estado de legalidade socialista»

A doutrina soviética oficial tende a apresentar LENINE como pa-


trocinador do actual «Estado de legalidade socialista», para o que
constrói a mitologia de um LENINE cioso da aplicação estrita da legali-
dade como um dos pi lares do originário Estado Soviético413• Porém,
a realidade dos primeiros anos que se seguiram à Revolução está
.'
longe desta imagem .
Enquanto poder minoritário conduzindo uma profunda revolu-
ção social num enorme país atrasado economicamente e num contex-
to de guerra civil e ameaça externa, o poder soviético conferia à
legalidade um papel essencialmente instrumental e subordinado ao
interesse capital de consolidação e defesa do regime. Era este o perío-
do da crítica teórica ao Estado de Direito e à «visão jurídica do
mundo» 41 4 , durante o qual ora se apelava ao apego às leis ou se
legitimava a sua violação por parte dos funcionários ou dos tribunais,
consoante os interesses da Revolução, tal como o Partido Comunista
os interpretava, o exigiam415•
Nestes primeiros anos do pós-Revolução, fase designada de «le-
galidade revolucionária», colocavam-se, no plano jurídico, todos os
problemas resultantes da inadequação do velho ordenamento à nova
realidade, da ausência de previsão e regulamentação legislativa das
transformações operadas nas relações sociais, da proliferação dos

413
Cfr., assim, S. N. BRATOUS, As Idéias de Lenine àcerca do Direito Soviético e da
Legalidade Socialista, Coimbra, trad., s/d., maxime págs. 37 e segs.; ROMACliKINE, «Lc droit
soviéúque et l'Etat á l'étape actuelle» i11 Príncipes du Droit Soviétique, Moscow, 1964, pág.
21 e scg.; N. A. ALEXANDROV, op. cit., págs. 147 e scgs..
414
Cfr., E. PACIIUKANIS, Teoria Gemi do Direito e Marxismo, trad., Coimbra, 1972.
maxime, págs.141 e segs. e P. SrücKA, Direito e luw de Classes, trad., Coimbra, 1976.
págs. 2 IO e segs..
41
• ~ Seria assim pos~ível multiplicar citações dos juristas e dirigentes soviéticos, e

part1_c~larment_e_ d~ própno LENJ~E, orientadas ora contra O «juridismo» ora contr~ o


emp1~1s~o ant1-1ur'.d1co» (cfr., assun, MoNJQUE e ROLAND WEYL, Revolução e Perspec111·as
do Direito, trad., Lisboa, 1975, respectivamente, págs. 42 e segs. e 50 e segs.).

' 1 1
1

J
p

O Estado de Direito e as Experiências Anti-liberais 171

decretos revolucionários locais e das dificuldades em aplicar as


decisões centrais.
Nestas condições, o princípio da «legalidade revolucionária»
não se traduzia tanto na submissão dos órgãos do Estado ao lacunar
sistema legislativo revolucionário416, como, sobretudo, no recurso -
naturalmente eivado de subjectivismo e potencialmente arbitrário - à
«conformidade ao fim revolucionário» como condição geral da vali-
dação das decisões da Administração, dos Tribunais e do próprio
legislador, independentemente da respectiva conformidade ao direito
vioente. Neste sentido se deveria, como diz STOCKA, caracterizar mais
"'
propriamente este período como de «legitimidade revolucionária>>417•
O «novo curso», marcado pela recuperação das «relações de pro-
dução burguesas» no âmbito da Nova Política Económica, acentua as
necessidades de unificação e certeza do direito e, consequentemente;
de uma nova valoração da legalidade, mas não altera o sentido funda-
mental da «legalidade revolucionária». Quando muito, poderá dizer-
-se, com M1RKINE-GUETZÉVITCH418 , que a anterior reserva geral de «con-
form idade ao fim revolucionário» foi substituída por reservas parciais
em cada um dos domínios particulares do ordenamento jurídico.
De facto, não obstante os apelos ao respeito da legalidade entre-
tanto possibilitados pela codificação da legislação revolucionária, a
via para uma interferência «extra-legal», capaz de garantir o primado
das orientações políticas a cada momento definidas pelo Partido, fôra
legalmente institucionalizada através do previsto recurso à «concepção
socialista do direito» ou aos «princípios gerais da legislação soviética
e da política do governo operário-camponês» como critérios de inter-
pretação e fonte de integração das leis 419• Num contexto em que
Administração e Tribunais eram concebidos como órgãos da luta de

1
• ~ Note-se que. não obstanlc o grande número de decretos legislalivos emanados dos
sovietes, não se procedeu neste período a qualquer codificação, exccplo no que dizia res-
peito ao direito de família, cujo primeiro código. estabelecendo a igualdade entre os cônjuges,
data de 1918; só a pari ir de J922 - com o «novo curso» iniciado com a N.E.P. - se assiste a
um esforço geral de codificação (cfr. JACQUES BW .ON, O Direito Soviético, Coimbra, lrad.,
1975, págs. 37 e scgs.).
417
Cfr., UMBERTO CERRONI, O Pensamento Jurfdico Soviético, pág. 99.
41
~ «L'État soviétiquc ct l'Éiat de droil», i11 RDP. 1927, pág. 325.
419
Cfr., para as referências à consagração legal destes pri~cípios e sua iníluên,cia no
ord~namento jurídico deste período, MtRKJNE-GUETZf!VITCH, «L'Elat soviétique et l'Etat de
droit», págs. 31 Oe segs..
""
l 172 Contributo para 11111a Teoria do Estado de Direito

classes aos quais incumbia «a salvaguarda da revolução proletária e


do poder operário-camponês», o recurso obrigatório àqueles princípios
gerais conferia à «legalidade revolucionária» um carácter essencial-
mente í.nst rumental e subordinado aos interesses pontuais do poder
instituído 4 w.
Com EsT,\LINE, as novas necessidades decorrentes da estabiliza-
ção do regime e do incremento das relações internacionais realçam a
importfmcia de uma teoria do direito «socialista» como base do reforço
da autoridade do «Estado socialista» (o nihilismo jurídico de STOCKA
e PACIIUKANIS dá lugar ao 11ormativis1110 e voluntarismo de V1sc111NSKY)
e, sobretudo a partir de 1930, começa a fa lar-se cm «legalidade
socialista>) como período correspondente à realização do socialismo.
Mas, num processo paralelo ao que já assinalámos no plano da
institucionalização constitucional de um Estado formalmente repre-
sentativo (a Constituição de 1936 generaliza os direitos individuais e
consagra a eleição do Soviete Supremo por sufrágio universal e di-
recto), este novo período não só não significa o fim do arbítrio, como
antes o eleva a um nível sem precedentes desde 19 17. Como assinala
a generalidade dos Autores, ao mesmo tempo que se desenvolviam a
legalidade, o normativismo e os procedimentos jurídicos, desenvol-
viam-se simultaneamente, à sua margem ou no quadro de jurisdições
de excepção42 l, os processos políticos, as perseguições policiais, o
autoritarismo de governo e as arbitrariedades, que retiram qualquer
significado à substituição da «legalidade revolucionária» pela «lega-
lidade socialista».

420
Sintomáticas da «abertura» deste entendimento de «legalidade revolucionária» são
as seguintes palavras de STOCKA: «Quando [...] tive de definir[...] a nossa atitude perante a
lei na primeira fase da revolução, adoptci a expressão <<legalidade revolucionária». Com a
passagem para uma nova política passámos para a legalidade mas, evidentemente, para a
legalidade revol11ciu11áriu 1... ]. Devemos repudiar qualquer teoria revisionista e economista
que prejudique a importância da lei revolucionária face às relações de produção burguesas.
Porém, devemos igualmente precaver-nos em face uos legistas revolucionários que crêem
na ornnipott'.:ncia do decreto revolucionário» (Direito e lwa de classes., pág. 248 e seg.).
1
1 ' ' Como se dizia num manual de Teoria do Es1ado e do Direito de 1940, da autoria
li
1 de S. A. GoLUNSKII e M. S. Sm0Gov1rn (cfr., G1 usEPr1No TR!!VES, «Considerazioni sullo
Stato di Diritto», pág. 1607), a legalidade socialist:i «como método de cfcctivar a ditadura do
proletariado e a edificação do socialismo» é um modus operandi e não urna fonna fixa; cria
uma «atmosfera de Direito», mas não exclui a aplicação de medidas cxtr,10rdinárias aos
inimigos de classe ou aos inimigos do povo ( «as pessoas que atentam contra a propriedade
social, socialista, são os inimigos do povo» - art. 131.0 da Constituição de 1936).
O Estado de Direito e as Experiências Anti-Liberais 173

A partir do XX.º Congresso do · PCUS, a denúncia dos abusos e


arbitrariedades cometidas durante o consulado de Estaline deu lugar
a uma reavaliação global do princípio da legalidade socialista no
sentido da «observância e execução estrita e firme das leis soviéticas
por parte dos órgãos do Estado soviético, das organizações sociais e
dos funcionários» 422 • O princípio passa a ser oficialmente entendido
como compo11ando uma componente de garantia («um traço essencial
e importante da legalidade socialista reside na protecção inquebrantá-
vel e firme dos direitos dos cidadãos») e com esse sentido é recebido
pela Constituição de 1977423 •
Não obstante, este carácter de garantia não transforma o princí-
pio da legalidade socialista num fim em si, nem lhe confere o carácter
de limite (externo ou interno) ao poder soberano do Estado; pelo
contrário, a «legalidade socialista» só adquire sentido e inteligibilidade
quando perspectivada como método dinâmico de realização do poder
do Estado, de construção do socialismo424 • Desta forma, o entendi-
mento actual do princípio integra-se na linha de continuidade da
concepção soviética das relações entre o Direito e o Estado e, tal
como a originária «legalidade revolucionária», assegura o primado

•n Conforme dizia KRUTCHEV (cfr., Rapport..., cit., pág. 153), «o mal provocado
durante muito tempo por actos que não tinham cm qualquer consideração a legalidade
socialista revolucionária» deveria ser reparado, pelo que o XX.° Congresso do P.C.U.S.,
aprova «unanimemente as medidas tomadas pelo Comité Central do Partido com vista ao
desenvolvimento da legalidade socialista e ao estrito respeito dos direitos dos cidadãos
garantidos pela Constituição soviética».
O XX.º Congresso assinala, então, o início de um movimento de crítica generalizada
às concepções jurídicas de Y1c111NSKY, dando lugar à eliminação dos aspectos mais arbitnbios
em cada ramo do direito, tais como o recurso à analogia cm direito penal, a retroactividade
da lei penal ou a não publicação das leis. Cfr., HENRI CHAMBRE, L'É1·ol111io11 ,!t,Marxisme
Soviétique, Paris, 1974, págs. 227 e scgs. e U~mERTO CERRONI, O Pe11sa111e1110 Jurídico
Soviético, págs. 107 e segs.).
423
«O Estado soviético e o conjunto dos seus órgãos actuam com base na legalidade
s_ocialista, asseguram a tutela da ordem jurídica, dos interesses da sociedade e dos direitos e
1'.berdades dos cidadãos. As organizações do Estado, as organizações sociais e os funcioná-
nos públicos são obrigados a cumprir a Constituição da URSS e as leis sovié1icas» (art. 4.º).
424
Cfr., neste senlido, N. A. ALE.XANDROV, op. cit., li, pág. 148; JE,,N CARBONNIER,
«Le colloque surte concept de Ia légalité dans les Pays socialistes», i11 R/DC, 1959, pág. 80;
NORMAN MARSH, «Le príncipe de la légalité: réfléxions à propos d'un voyage», i11 RC/J, IV,
n.º 2, 1963, pág. 266 e segs..
q

174 Co11trib1110 para uma Teoria do Esrado de Direito

do «político» sobre o «direito»425 • A substancia] diferença introduzida


após o XX.º Congresso reside no facto de o respeito da legalidade e
a defesa dos d ireitos dos cidadãos serem, agora, considerados como
indispensáveis à racionalização do regime, pelo que surgem como
consubstanciais aos fins do Estado socialista426•
A partir destes pressupostos, a «legalidade socialista» apresenta-
-se actualmente como comportando três dimensões427 •
Em primeiro lugar, e la exige o respeito das leis por parte de
todos. funcionários ou cidadãos. É esta a componente que assegura a
vinculação do princípio da legalidade socialista aos fins históricos de
realização do comunismo, na medida em que aqueles são preferente-
mente acolhidos na lei e esta se impõe à observância dos particulares
e dos órgãos do Estado, sobre cujos restantes netos prevalece. A esta
11
1 dimensão do princípio da legalidade socialista vem, portanto, associa-
;1 da a ideia de uma hierarquização das fo ntes de direito4~8, na qual a lei
emanada do Sovie te Supremo assume relevância superior, o que,
1 desde logo, implica, não só a necessidade da respectiva publicação
1
1 - instituída só após o XX.º Congresso -, mas também a necessidade
de associar, na sua elaboração, o papel dirigente do Partido4 ~9 e a
participação popular430 •

• 25 O apelo à «consciência jurídica sociafüta» não desapareceu e, cmborn deixe de

! funcionar como fonte autónoma de direito, po<lc ser considerada como o equivalente aos
«princípios gerais de direito» ocidentnís (cfr., u~mrRTO CF.RRONI, O Pem111111•mv Jurídico
S01·ié1ico, pág. 109 e seg.). o que. de resto, era já a interpretação proposta por algunsjuri~tas
soviéticos. como D tABLO. cm 1926 (cfr., EoouARD ZELI.WEGHR, «Le Príncipe de la Légnlité
Socialiste», i11 RCIJ. V, n.º 2, 1964, p~g. 189).
·=~ «O respeito do direito. da lei, deve constituir a convicção de todos( ...). A violnção
dos direitos do indivíduo e os atcntados à dignidade dos cidadãos não podem mais ser
1oler:idos. Para nós. comunistas. panidários dos ideais mai~ hum.mos. é uma questão de
princípio» (BRfJNEV no XXIV." Congn:sso do PCUS. ªf""' HENRI CIIAMBRF, op. cit., p.1g. 420).
·~ Cfr., portodos, N. A. Au,xANDRov, op. cit., II. págs. 151 e segs..
'
28
Cfr.. REN~ D,wm, Os Grcmdt•s Sistemas do Direito Cm1te111por<1m·o. trad., Lisho:i.
págs. 246 e segs.; E. ZEI.LWCGER, np. dr.. págs. 219 e segs.; u~mERTO CERR()Nl, O Pe11sa·
111e1110 Jurídico S(ll'iético. págs. 137 e scgs..
·~ Cfr.• GtUSEPPll OE VERGOTrtNI, op. cit.. págs. 449 e segs ..
• JO Cfr.• A. M. NASC11rrz. ,,Orientations Actuelles dans le Ixveloppcmcnt du Régime de
la Légalité dans les Pays Socialistes», ;,, RIDC, 1970, págs. 719 e segs.; esta Aulorn :1Ssinala
aind:i, descnvolvid:imente, o que considera uma tendência generalizada nos «Estados ele h:g:1li·
dade socialisw» para reforçar a competência legislativa originária dos «Parlamc ntn~» rclativa·
mente aos «segundos órgãos centrais» ou aos «órgãos executivos» (ibitl., p:igs. 714 e st'gs.).

d
---
O Estado de Direito e as Experiências Ami-Uberais 175

Em segundo lugar, a legalidade socialista garante. com base na


execução incondicional das leis, o respeito dos direitos dos cidadãos
por parte dos funcionários públicos. Tal não significa, porém, a
adopção da ideia de direitos e liberdades individuais como limites do
Estado ou do poder normativo do órgão legislativo e, tão pouco, de
possibilidade do seu exercício contra as orientações do poder político.
Como vimos, a identificação entre a decisão política expressa superior-
mente através da lei e os direitos do cidadão decorre da natureza do
«Estado de todo o povo», pelo que o respeito legítimo das garantias
individuais se verifica sempre que, como escreve ALEXANDRov. «as
acções de poder dos órgãos de Estado em relação aos cidadãos se
baseiam rigorosamente na lei e que, portanto, não desrespeitem os
direitos dos cidadãos» 431 •
Daí que a última e decisiva dimensão da «legalidade socialista»
seja a do controlo da execução rigorosa da lei, na qual está priorita-
riamente interessado o Estado socialista, já que a violação da legali-
dade, independentemente dos efeitos que produza nos direitos dos
cidadãos, é primariamente um atentado contra os fins políticos por
ele prosseguidos. Daí que aquele controlo assuma, no quadro da
«legalidade socialista», uma natureza específica que se manifesta no
seu carácter primordialmente não jurisdicional. na relevância da ini-
ciativa estatal ou social relativamente à reacção individual e, por
último, no facto de não se dirigir directamente à anulação do acto,
mas sim a estimular a cadeia hierárquica da Administração no sentido
da sua reforma.
Assim, sendo reduzido o papel dos tribunais432 , o controlo da
legalidade é exercido, sobretudo, através de meios não jurisdicionais,

31
' N. A. ALÊXANDROV, op. cil., li, p:1g. 153 (sublinhado nosso).
432
• Embora sem grande rclevfinda, os 1rihunais pod.:111 comrolar :1 legalidade cm
Slluações de1em1inadas, como sejam a rci.olução ou análise de diferendos cn1re órgãos da
administração e o julga111e1110 de queix:t~ apn:scn1adas por particul.1res rclati\'amcnte a certos
actos administr:uivos lcgahncntc tipificados (cl'r., V. V1.Assor e S. STouoá-1K1NE, «Le droit
adminislratif de I' URSS» i11 Principl!.r du Droil S0vié1iq11e. cit., págs. 136 e scgs.). Alguns
Auiores (cfr.. A. M. NASCIIITZ, op. ci1.. págs. 723 e scgs.) detectam, todavia. uma tendência
global dos «Estados de legalidade socialista» para um rcfon;o da actividade dos tribunais
nesie domínio, manifestada inclusivamente - cmhora com cariíc1er excepcional - no plano
do comr~lo da constitucionalidade (vide u criação do Tribunal Cons1i1ucional na Jugoslávia e n
sua previsão na Checoslováquia), mas sobreiudo na atribuição genérica de um conlmlo de

L
aq

176 Co111rib11to para uma Teoria do Estado de Direito

onde sobressaem a fiscalização conduzida pela própria Administra-


ção (desencadeada ou não pelos recursos graciosos dos cidadãos), as
inspecçiies especializadas, o controlo institucionalizado do aparelho
do Partido junto dos departamentos de Estado e, particularmente, a
vigilância exercida pela Procuradoria~-13 •
Com base nestas três dimensões e na actual valoração dos meca-
nismos e garantias jurídicas que as actuam, concluem alguns Autores
pela tendencial recondução do «Estado de legalidade socialista» aos
quadros do Estado de Direito, só ainda não plenamente realizada
dada a persistência de alguns li mites na aplicação do princípio da
legalidade, como sejam o controlo institucionalizado do Partido Comu-
nista sobre a administração e a justiça, a sua influência na interpreta-
ção das leis e a competência jurisdicional dos chamados «tribunais
pupu Iares)) ' 34 •
Esta conclusão será tanto mais atractiva quanto se partir de uma
concepção formal de Estado de Direito e de Estado de legalidade
socialisw que coloque entre parêntesis os valores fundamentai s que
presidem a um e outro; nessa perspectiva, a convergência parece
realizar-se progressivamente na mesma identificação dos termos pri-

legalidade dos ac1os adminim:uivos - como foi o caso da Jugoshivia e da Roménia - e dos
ac1os nonnativos dos Exccu1ivos aos uibunais ordinários (Roménia). a uma jurisdição admi-
nistraúva especializada (Jugoslávia) ou ao próprio Tribunal Constilucional (Checoslováquia).
rn Sobre a Prornratloria, organismo criado originalmente na União Soviética cm
1922 e depois adoptado pelos restantes «Estados de legalidade socialista», que. para além de
funçôes semclhames às do nosso Ministério Público nos domínios penal e civil, desempe-
nha uma função principal de fiscalização geral da Administração e controlo da legalidade,
cfr., por todos, RENÊ DAv1n. op. cit., págs. 237 e segs ..
Sobre a~ rc~tanles modalidades de controlo, cfr., desenvolvidamente, V. VLASSOF e S.
Srnl!Dé!IKINE, /oc. cir., pági.. 123 e segs..
'" Cfr., ÉDOUJ\RD Zlll.L\VEGER, OJI. cit., págs. 191 e segs. e L UCAS VEROÚ, Ln luclw por
e/ Estado de Derecho, págs. 147 e scgs.. Mais radicalmente, GALVANO DELLA VoLPE
(Rousseau e Marx, págs. 50 e segs. e 1\9 e segs.) apresenla a «legalidade socialista so,•ié-
tica», símese de Ro11sxc•m1 e Knm, como resolução histórica dos problemas levantados pelo
fatado de Direi10; nela verificar-se-ia 11111a rern11stit11iç1io .mci11/i.wa das normas do Estado
de Direito, c1111.1·1•n•adas. mas «:10 111cs1110 tempo 1ransformadas, rrn11srnlorndns - e. cm
sum:i. renowulas - no peculiar regiMo progrcssi,t:i ccunómico-social-polltico ele um Estado
socialista enquanto ·fu1ado de todo u povo'»; só cst;1 r1•1101·111io socialis1a dos direitos
suhjec1ivos. consis1indo na supressão do direito de propriedade privada dos meios de pro-
dução (e só dele), pcm1i1iria, 11nalmcntc, a realizaçüo vcrdackiramente universal do princípio
élico Kantiano do homem como fim e 111111cn como meio.

-
O Estado de Direito e as Experiências Anti-liberais 177

mado da lei (princípio da legalidade)/garantia dos direitos fundamen-


tais, quando, sobretudo a partir do XX.° Congresso, aqueles limites
tendem a atenuar-se no conjunto dos .«Estados de legalidade socialis-
ta»435, quer no que se refere à extensão do reconhecimento do princípio
da legalidade, quer i:t própria consagração constitucional do princípio
~
da independenc1 ·a dos JUtzes 436 .
º '

Contudo, uma perspectiva material que se interrogue sobre os


valores que enformam cada um destes tipos de Estado, e nomeada-
mente sobre o sentido que atribuem aos direitos fundamentais dos
cidadãos, evidenciará a irredutível distinção substancial entre Estado
de Direito e Estado de legalidade socialista. Embora a observância
estrita do princípio da legalidade em toda a sua extensão dificilmente
se compatibil ize com os mecanismos de funcionamento de um Estado
autoritário - e aí se revela a importância daquele princípio - . é possí-
vel conceber uma evolução gradual que conduza os «Estados de
legalidade socialista» à observância integral do princípio da legalidade,
ao estabelecimento de uma justiça administrativa e constitucional e ao
reconhecimento efectivo da independência dos tribunais.
Ainda assim eles se situariam fora dos quadros do Estado de
Direito, pois este, como diz CASTANHEIRA NEvES437, «traduz ainda uma
caracterizada intenção político-jurídica que vê circunscrito o seu do-
mínio de aceitação e cumprimento aquém dos actuais Estados socia-
listas»438. É que esta intenção, que localizamos na ideia de limitação
jurídica do Estado em favor dos direitos fundamentais concebidos
como esferas indisponíveis de autonomia pessoal, é inaceitável para

35
' Cfr., A. M . NASCHITZ, op. cit ..
,x, Sobre a independência dos juízes, e apesar dos limites ainda existentes (cfr., E.
Za.LIVEGER, op. cit., pág. 227; CASTANHEIRA NEVES, o lnsti/lttO dos «Assemos» ...• cit., págs.
9 e 457; G1usEFPE DE VencornNt, op. cit., págs. 489 e scg.), é possível detectar uma
evolução significativa desde as declarações de Y1CHINSKY, segundo as quais não deveria o
juiz: soviético hesitar cm contrariar a lei para seguir as dircctivas do partido que para ele
seriam sempre a lei suprema (ap1ul ZELLWEGER, /oc. cit.. pág. 200), até à consagração
constitucional do princípio da independência no m1. 155.º da Constituição de 1977.
417
A Revo/uçüo e o Direito, pág. 203.
438
Cfr., com um sentido que consideramos convergente, as diferenças entre Estado
~ D!reito e Estado de teia/idade socialista recenseadas por JORGE MIRANDA, Mamw! de
p;~1~0 Constitucional, t. I, págs. J78 e segs.; MARCELO REue1.o DE SousA, Os Partidos
luicos..., cit., págs. 38 e segs..
-
178 Co111rib11to para uma Teoria do Eswclo de Direito

os «Estados de legalidade socialista». Um aperfeiçoamento extremo


das instituições de «legalidade socialista» e dos seus mecanismos de
controlo produziria, quando muito, um Estado de legalidade (com a
importância que tal revestiria para uma acrescida protecção das ga-
rantias individuais); porém, a sua identificação com um Estado de
Direito, tal como o concebemos, exigiria, independentemente do
quadro sócio-económico em que se realizasse, uma transformação
substancial na analisada concepção soviética da natureza das rela-
ções entre Estado e indivíduo e dos direitos fundamentais.

J
CAPÍTULO VI
o Estado de Direito Perante as Novas Exigências
de Socialidade e Democracia no Século XX
- O Estado Social e Democrático de Direito

As experiências políticas que se sucederam à I.3 Guerra Mundial


traduzem, na sua irredutível diversidade, uma comum intenção de
superar os pressupostos e as realizações do Estado liberal. Porém,
enquanto as tentativas fascista e nacional-socialista, de um lado, e a
revolução soviética, por outro, afectavam, na radicalidade do seu
projecto, a própria subsistência do Estado de Direito, desenvolve-se
igualmente uma terceira direcção que se legitima com a proclamada
intenção de conservar ou reatar aquele ideal.
Este novo modelo de Estado constitucional - configurado origi-
nariamente nas Constituições mexicana de 1917 e de Weimar, em
1919, e retomado posteriormente em várias Constituições do segundo
pós-guerra - constituirá o quadro histórico por excelência de recepção
e preservação do princípio do Estado de Direito nas condições do
século XX; daí a importância da sua análise como derradeira tentativa
para comprovar a adequação da nossa proposta ele aproximação do
conceito, bem como da respectiva operatividade perante as possibili-
dades de evolução que se abrem àquele modelo.

1. A estadualização da sociedade e a socialização do Estado - o


Estado social

Na medida em que constituía o pressuposto teórico global da


caracterização liberal do Estado de Direito, a ideia de separação Esta-
do-sociedade será objecto de obrigatória reavaliação por parte de
qualquer tentativa que vise a superação do modelo liberal. E exacta-
mente o carácter específico desta reavaliação, traduzida no que pode
..
180 Contribwo para uma Teoria do Estado de Direito

ser designado439 como uma intenção de estadualização da sociedade


e recíproca socialização do Estado, que confere sentido ao novo
«Estado social».
Tal não significa que o pensamento liberal postergasse, em
absoluto, qualquer forma de mútuo condicionamento entre Estado e
Sociedade, que alheasse rigorosamente o Estado de qualquer inter-
venção na esfera económica (cf. supra íll.1.1.) ou ignorasse comple-
tamente a «questão social>>.
Pelo contrário, os antecedentes da actividade assistencial do Estado
podem ser claramente localizados no século · XIX ou ainda antes. Assim,
desde o século XVII que se encontra na Grã-Bretanha, a partir das poor
laws, uma tentativa de organizar a assistência social de forma sistemáti-
ca440; mas, é sobretudo nos finais do século XIX que, sob o impulso
conjugado das lutas populares e de intenções políticas de reforma social,
se assiste, na generalidade dos países europeus e a partir das mútuas
privadas, ao progressivo estabelecimento, por parte do Estado, dos segu-
ros contra acidentes de trabalho ou doenças profissionais e ao apareci-
mento de uma legislação laboral tendente a refrear os excessos mais
chocantes do capitalismo selvagem, especialmente nos domínios dos
horários de trabalho e do trabalho infantil e ferrúnino441 .
Seria igualmente possível detectar um Sozialstaat na política
social (Sozialpolitik) da monarquia alemã sob a égide de B1sMARK
- que combinava, declaradamente, uma política de reformas inspirada
nas reivindicações do partido social-democrata com a dura repressão
do mesmo partido -, bem como localizar as primeiras propostas de
fundamentação de uma política de reforma social na teoria de pensa-
dores como LoRENZ voN STerN442, LASSALLE ou os chamados socialistas
439 Cfr., JõRG KAMMLER, «EI Estado Social», i11 /11troducciô11 a la Ciencia Politica,
trad., Barcelona, 1971, pág. 97; GARCIA-PE:LAYO, Las Tra11.~fon11acio11es dei Estado Con-
temporáneo. pág. 25.
.wi Cfr., por todos, MAURICE BRUCE, The Rise of the Welfure State, London, págs. 39 e

1 1
segs. e, desenvolvidamente, entre nós, ARMANDO MARQUES GUEDES, O Plano Beveridge,
Lisboa, s/d, págs. 87 e segs..
""' Cfr., por todos, A. MARQUES GumEs, ibid., págs. 47 e scgs. e 58 e scgs..
2
•• Sobre a importância de LoRENZ VON STEIN como teórico precursor do Estado social
administrativo (posteriom1cnte retomado por FoRSHIOFT' - cfr., GOMES CANOTlLHO, Co11stit11i-
ção Dirigente..., cit., pág. 85) no quadro de uma «monarquia social», cfr., GARCIA-PELAYO,
«La Teoria de la Sociedad cn LoRENZ VON SmIN», in REP. 1949, XXVII, págs. 78 e segs.:
HERBERT MARCUSE, Razão e Revoluçcio, págs. 341 e segs.; ERNST FoRSTHOFF, Swto di
Diritto...• cit., págs. 37 é seg. e Traité de Droit..., cit., págs. 97 e seg.; K URT LENK, Teorias
de la Revolución, trad., Barcelona, 1978, págs. 48 e segs..
O Estado de Direito perame as novas exigências de socialidade 18.1

'tedra443 ou na prática política dos movimentos socialistas ou


· · das n-a dou tnna
de ca ociações inspira · - soc1a
e na acçao · I da IgreJa
· 444.
das ,ass ,
Da mesma forma, lambem a consagração constitucional dos
hamados direitos sociais não é uma descoberta do século XX, na
e edida em que já as Declarações de Direitos da Revolução Francesa
rn tabeleciam obrigações positivas do Estado nos domínios do ensino
es . 1,1.1s •.
da assistência socta , o que vma a ser aprofundado nas Constitui-
e 446
ções do século XIX .
No entanto, só o impacto provocado pela I.ª Guerra Mundial
estimularia uma alteração radical na forma de conceber as relações
entre O Estado e a Sociedade, podendo dizer-se que ela marca o
termo da optimismo liberal fundado na ideia de uma justiça imanente
às relações sociais autónoma e livremente desenvolvidas a partir da
auto-regulação do mercado. De facto, não obstante as crises, o de-
semprego ou as guerras que até então se verificaram, a tendência
ooJobal ia no sentido do desenvolvimento económico, da expansão
dos mercados, do progresso técnico e da consequente elevação do
nível de vida da população, factores que, aliados à homogeneidade
da direcção política, reforçavam a fé nas virtudes da livre concorrên-
cia e confinavam genericamente a actividade do Estado à garantia da
segurança política, social e jurídica das relações de troca regidas pelo
direito privado, ti produção das infra-estn1turas requeridas pelo funcio-
namento do sistema e a uma intervenção dirigida à prevenção das
perturbações aos mecanismos do mercado ou ao seu eventual resta-
belecimento.

-1o1J Cfr .• as referências indicadas por PmRRG ROSANVALLON, ú1 Crise d,• l'État-
·Providence, págs. 149 e segs..
..,. Cfr., SALVATORE LENER, Ú> Staro Sociale Co111empom11eo, Roma, 1966, págs. 62 e
scgs.; ERNST FORSTIIOFf', Stato di Diriflo i11 Tra11.'ifomudo11e, dt.. pág. 135.
445
• Cfr., particularmente, os arts. 21.º e 22.º da Declaração de Direitos de 1793; note-
:se, ª1~da, que o projccto não adoptado de RooESPJERRE constituía uma verdadeira cana de
•nte_nçoes sociais, desde a limitação da propriedade ao estabelecimento de uma previdência
social !ªr~ada (cfr.• M1RKJNE-GuETzi'.:v1rcH, Les Nolll'elles Te11da11a.c .. cit., pág. 87).
. E O Ca5o, nomeadamente da Constituição francesa de 1848 (apresentada, neste
SCnlJdo
.. , : por JORGE MIRANDA, como ' «um texto precursor do século XX» - c rr.• -,. , exws
Ht.itoricos ri0 D. . C bé ,
as v· . rre110 011stit11cio11a/, Lisboa. 1980. págs. 243 e segs.); tam m, entre nos,
Conanas_ C~onstituições do liberalismo consagram este tipo de direitos, desde logo a partir da
Slltuiçao de 1822 (arts. 237. º, 238.º e 240.º).

!
1
L
182 Co11triburo para uma Teoria do Estado de Direito

Todavia, os mecanismos inerentes ao desenvolvimento da eco-


nomia capitalista geraram as condições estruturais e conjunturais da
desagregação deste quadro, através da passagem inelutável para a
concentração e centralização do capital e o controlo monopolístico
dos mercados; tais tendências, ao mesmo tempo que patenteavam o
anacronismo da concepção liberal de uma sociedade auto-regida de
produtores livres e iguais, eram acompanhadas do envolvimento dos
agentes económicos e dos próprios Estados nacionais numa concorrên-
cia desenfreada prenunciadora da recessão e da crise global que
afectaria todo o sistema.
A Guerra Mundial é, nessa altura, o produto natural de um
sistema dilacerado pelas próprias contradições, no qual deixaram de-
finit ivamente de se verificar as duas condições indispensáveis, no
dizer de LASK1447 , h viabilidade do Estado liberal: a possibilidade de
continuar a produzir lucros que garantissem um fundo permanente
de excedente soc ial de riqueza e um consenso das fo rças
intervenientes na vida política em tomo das questões fundamentais.
Por sua vez, as próprias necessidades da Guerra impeliam o
Estado a uma intervenção decisiva na vida económica (com as restri-
ções à liberdade contratual e ao direito de propriedade, a disciplina
pública de importantes sectores industriais e da comercialização da
generalidade dos bens, o fraccionamento político dos mercados inter-
nacionais), que, longe de cessar com o termo do conflito, seria per-
petuada pelas exigências de reconstrução e, posteriormente, pela
nova crise económica e nova Guerra Mundial 44s.
Estava definitivamente ultrapassada a fase da autarquia e inde-
pendência da esfera económica e social perante o Estado político,
tanto mais que à referida dinâmica dos mecanismos económicos
acresciam factores exógenos resultando fundamentalmente da nova
dimensão adquirida pela reivindicação igualitária dos que mais directa
e imediatamente sofriam as consequências da irracionalidade da razão
burguesa. Pois, se até aí essa reivindicação se exprimira fundamental-
'l
1
mente no terreno «ilegítimo» dos afrontamentos sociais, o progressivo

""' Cfr., HAROLD LASKI, O Li/Jera/ismo E11rope11, págs. 171 e scgs


""" Cfr., FRANZ Wn,ACKER, História do Direito..., cit., págs. 631 e segs.; ERNST
FORSTHOFF, E/ Estado ,te la Sociedad /11d11stria/, págs 21 e seg.; VITAi. MOREIRA, A Ordem
Jurídica .... cit., págs. 53 e segs ..
1
O Eswdo de Direito perante as novas exigê11cit1s de socitllidade 183

urecusável alargamento dos direitos políticos às massas trabalhadoras


e ·ectara-à para dentro das portas da cidade.
proJ o Estado, no seu conjunto - e não apenas os mais lúcidos
taoonistas -, reconhecia agora a necessidade de superar os pres-
pro ostos
"" do hbera
. 1· . b" .
sup . ismo e .assumia,_ no
d o Ject1vo da prossecução da
·ustiça social, a via para a mtegraçao as camadas até então margina-
~izadas. E este objectivo era tanto mais inadiável quanto, nas convul-
sões que atravessavam a Europa, era cada vez mais presente a refe-
rência à alternativa soviética de resolução da questüo socia/.t.i9 •
o Estado representativo liberal era incapaz de responder a estes
estímulos e corresponder às novas necessidades a partir da mera
correcção da postura de separação das instâncias política e social; o
que a nova época exigia era, não apenas um acréscimo das interven-
ções do Estado, mas uma alteração radical na forma de conceber as
suas relações com a sociedade. Constatado o perecimento da crença
na auto-suficiência da esfera social, tratava-se agora de proclamar
um novo «ethos político»450 : a concepção da sociedade não já como
um dado, mas como um objecto suscept ível e carente de uma estrutu-
ração a prosseguir pelo Estado com vista à realização da justiça social.
É na plena assunção deste novo princípio de socialidade e na
forma como ele vai impregnar todas as dimensões da sua actividade
- e não na mera consagração constitucional de medidas de assistên-
cia ou no acentuar da sua intervenção económica - que o Estado se
revela como «Estado social».
Assim, e desde logo, o Estado centra o essencial das suas preo-
cupações em torno da distribuição e redistribuição do produto social,
para o que se empenha decisivamente na direcção e controlo do
processo produtivo, convertendo-se no chamado «Estado econó-
mico»45'. Tal não significa apenas que ele se envolve directamente na

9
"' Como diz M1RKINll-ÜUE"rLtv1TCH (Les Nouvelles Tendances .... cit., pág. 89), nas
asscm~leias constituintes do pós-guerra «a questão social era colocada em primeiro lugar
pela cnse económica da gucn·a e, cm seguida, pela experiência ameaçadora da revolução
russa; no mesmo sentido, CARL SCIIMJTr (Teoria de /a Cm1stit11ci611, pág. 168) cita FR.
NAUMANN que, na Assembleia Constituinte tlc WEIMAR, proclamava abertamente: «A mais
~ecente c.onstituição da actualidade, a Constituição bolchevista russa de 5 de Julho de 19·18.
e, por ~;;;~11n dizer, a concorrente directa da Constituição que aqui estamos a elaborar».
CARL Sc1·1M1rr, ibid..
~' Cfr., VITAL MoREIRA, «O Estado capitalista e as suas fonnas», i11 Vénice, 1973. n.º
348 ' pags. 5 e scgs..

-
:q

184 Comributo para uma Teoria do Estado de Direito

produção (como <<Estado empresário»), mas, sobretudo, que encara a


esfera económica como susceptível de ser moldada em função das
exigências sociais e dos objectivos políticos por ele definidos. O
Estado não só toma decisões destinadas a influenciar o processo
produtivo, como integra essas medidas numa planificação económica
global definida em função de uma prévia selecção e hierarquização
de prioridades de desenvolvimento, sendo possível detectar uma
evolução 452 através da qual, a partir de uma primeira fase de inter-
ve11cionis1110 localizado, se passa para uma acção estadual sistemática
sobre o processo económico - o dirigismo - e, por fim, para a plani-
ficaçiio453.
Porém, e independentemente do sentido e natureza da evolução
da intervenção económica do Estado454 , mais importante, para o nosso
tema, é que ela se inscreve num processo de alteração global das
relações entre sociedade e Estado.
Como vimos, tratava-se, agora, não de actuar sobre aspectos
parcelares da sociedade civil, mas de desenvolver uma actuação glo-
bal, da qual a política económica constituía um instrumento basilar,
tendente à conformação ou estruturação da sociedade pelo Estado e
não apenas à mera correcção das deficiências marginais de um siste-
ma auto-regulado. Este projecto, orientado para a prossecução de
uma justiça social generalizada, desenvolve-se, não apenas numa
política económica com o sentido referido, mas também na providên-
cia estadual das condições de existência vital dos cidadãos, na pres-
tação de bens, serviços e infra-estruturas materiais, sem os quais o

12
• Cfr., V1TAL MOREIRA, <<A Ordem jurídica ...», cit., págs. 203 e segs..
,ii Ncs1e semi do fala LUCAS VERDú ( «Constitución-Administración-Planilicación», in
Eswdios Juridico-Sociales, llomenaje ai Professor Luis Legaz y Lacambra, II, Santiago
de Compostela, 1960, págs, 859 e segs.) na passagem sucessiva dos princípios básicos
reguladores da convivência política ocidental da Co11stit11içiio (Estado liberal) para a Admi-
11istraçiio (Estado democrático intervencionista) e, por fim, para a Planiftcaçiio (técnica
superior de racionalização e ordenação social da convivência no Estado contemporâneo).
4
s.i Cfr. a fértil produção teórica da corrente marxista, sobretudo nos anos setenta,

sobre esta questão; assim, entre muito~. ERNEST MANDEL, Le Troisieme âge...• cit., III, págs.
167 e scgs.; N1cos PoutANTZAS, L 'Etat, /e Pom•oir... , cit., págs. 183, e seg.; JORGEN
HABERMAS, Raiso11 ~t Légitimité, trad., Paris, 1978, págs. 37 e segs. e 76 e segs.; JoACHIM
H1Rsc11 e outros, L'Etat co11te111porai11 et /e marxisme, Paris, 1975; CLAUS OFFE, Lo Sraro 11el
capitalismo maturo, trad., Milano, 1977, (reimp. de 1979), maxime págs. 17 e segs., 33 e
scgs. e 123 e segs..

:l
1.
1
..
o Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 185

exercício dos direitos fundamentais não passa de uma possibilidade


teórica e a liberdade de uma ficção; o Estado social é, fundamental-
mente, um Estado que gar~n!e. a integração existencial, que se res-
ponsabiliza pelo que a pubhc1sttca alemã - sob influência de FoRSTI1oFF
_ designa por Daseinsvorsorge455 .
Assim, e apesar das variações decorrentes de situações particula-
res, 0 Estado deve, na medida comportada pelas circunstâncias ob-
jectivas, procurar garantir456: os serviços e os sistemas essenctats ao
desenvolvimento das relações sociais na complexidade da sociedade
actual (desde os tradicionais serviços de transportes e fornecimento
de água e electricidade, à protecção do ambiente, aproveitamento
dos tempos livres e fruição dos bens culturais); a segurança e estabi-
lidade das relações de produção face às contingências da vida econó-

4s5 Caracterizando como espaço l'ital («Lebensraum») o conjunto de bens, serviços,


relações e situações materiais ou culturais em cujo âmbito o homem desenvolve a sua existên-
cia, FoRSTHOFF disúnguc, dentro dele. o espaço virai dominado («der beherschte Lebensrautn->)
do espaço 1·ital efecti1·0 («der effektive Lebensraum,, ). O primeiro é integrado por tudo que lhe
é atribuído - independentemente da condição de proprietário - de fonna tão íntima ou intensa
que o homem concreto pode permanentemente dispor e utilizar numa relação de senhorio ou
predomínio (é. asssim. o caso da sua propriedade, do seu poço. da sua casa. da sua oficina ou
do seu posto de trabalho na fábrica); o espaço vital efectil'D é constituído, por sua vez. por
todos os bens ou serviços que o homem não domina. que lhe são alheios. mas cm cujo âmbito
decorre efectivamente a sua existi:ncia concreta (o sistema de transportes e tclecomunicaçõc:s,
os serviços de ág;ua. clectricidade, gás. o ordenamento urhanístico).
Ora, analisando as alterações produzidas no espaço vi tal a partir do século passado,
FoRSTHoFF conclui pela constatação de duas tendência~ irreversíveis: por um lado, as grandes
concentrações uiJ'banas e as deslocações das populaçücs dos seus locais de origem provo-
cam uma redução decisiva <lo iirnbito do espaço viwf t!o111i11ado; paralc:lamentc, o progresso
tecnológico compensa aquela redução através do alargamento constante do espaço ,·irai
efectivo. Esta transformação nas condições de desenvolvimento da existência - cm que
tendencialmente o homem perde o domínio e controlo sobre um cada wz mais amplo
conjunto de hens e serviços que utiliza para viver - repercute-se decisivamente no plano das
funções do Estado, na medida em que a diminuição progressiva da auto-suficiência (relati-
vamente à qual não se pode fazer uma valoração negativa, pois este processo pode ir a par e
ser sentido como um aumento da liberdade perante o Estado e da felicidade individual) deve
necessariamente ser compensada por uma actividade do Estado di rigida a assegurar as
condições vilais de exislência de que o homem carece, ou seja. pelo Daseinsl'Orsorge.
Cfr., ERNST FoRSTHOrF, E/ Estado de /a Sociedad Industrial, págs. 120 e segs. e,
sobretudo, Stato di Diritto..., cit., maxime págs. 147 e segs.; sobre o conceito de
Dasei,uvorsorge na obra de FoRSTHOFF. cfr., por todos. LoRENZO M. BAQUER «La
Configuración Jurídica de la Administración Publica y el concepto de Daseinsl'(}rsorge», i,,
RAP, l962, n.º 38, págs. 35 e segs..
186 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

mica, às flutuações do crescimento e aos antagonismos sociais, sem


prejuízo da iniciativa e parcialidade no incremento de políticas eco-
nómicas e fiscais conducentes à redistribuição da riqueza; um con-
junto de prestações sociais tendentes a garantir uma vida digna e
protegida, independentemente da capacidade ou viabilidade da inte-
gração individual no processo produ tivo, dos imponderáveis das
condições naturais ou das desigualdades sectoriais ou regionais (desde
o salário mín imo e seguros sociais às prestações no domínio da
satíde, habitação e educação).
Isto não significa que anteriormente o Estado não se encarregasse
da prestação de condições de existência (a condução da água, a
limpeza das cidades, os serviços de correio e os caminhos de ferro);
a alteração reside nas consequências implicadas na «elevada posição
hierárquica que o Daseins1·orsorge ocupa na li sta de prioridades das
modernas funções estaduais e na sua extraordinária dimensão finan-
ceira. Pode-se falar, assim, da passagem da quantidade à qualidade»4s7•
A relevância actual do Daseinsvorsorge resulta numa alteração
substancial das relações entre o Estado e o cidadão. Desaparecida ou
drasticamente diminuída a auto-suficiência, o problema das condi-
ções de existência vital do homem e, consequentemente, do desen-
volvimento da sua personalidade, transforma-se em problema social
exigindo soluções supra-individuais; e não se trata apenas do homem
desfavorecido, já que, apesar de afectar especialmente as camadas
mais débeis economicamente, a redução do espaço vital dominado
atinge todos os grupos e classes sociais.
Assim, à medida que toma consciência desta realidade - e as
situações de guerra evidenciam-na sobremaneira -, o homem actual
interioriza psicologicamente o seu estatuto de dependência e sublima-o
numa reivindicação de actividade assistencial, numa posição essencial-
mente utilitarista face ao Estado, onde «a resistência às pretensões do
Estado se mescla, frequen lemenle de forma ingénua, com a expecta-
tiva de ajudas estatais de todo o tipo»; «o homem moderno, a quem
foi subtraído o controlo da sua existência, não vive apenas 110 Estado,
mas sobretudo do Estado» 4 sR .

456 Cfr.• a síntese de G ARCJA-PEI.AYO, las Tra11sfommcio11es dei Estado co11te111po·


ráneo, págs. 29 e seg. e R EJNJ JOLO Z1rr1:uus, Teoria... , cit., págs. 143 e scgs..
57
• fORSTHOr:F, E/ estado... , cit.• pág. 122.
58
' FoRSTIIOff, Stnto di Diritto... , cit., págs. 87 e 150.
' ..

O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 187

Estas mudanças su~stan~iais na posição relativa do cidadão face


ao Estado traduze?1-~e ~n~v1tavelmente numa nova configuração da
~ ra de autonomia 111d1v1dual onde, ao lado dos direitos e Jiberda-
es
d e clássicos - mo Jd ados e compnm1· ·dos, particularmente
· no que se
r:;ere ao direito de propriedade, à medida das novas exigências de
socialidade -, avultam, agora, os chamados direitos sociais indisso-
ciáveis das correspondentes prestações do Estado4s9•
No fundo, o novo ethos político que resultava da superação da
concepção liberal da separação da sociedade e Estado traduzia-se, a
partir da constatação da mútua perda de capacidade de auto-
-regulação, num projecto global de estruturação da sociedade, ou
seja, de uma regulação ela vida social a partir do impulso e da con-
formação provenientes do Estado; por sua vez, esta direcção tinha
como contrapartida a pressão, exercida individual e colectivamente,
da sociedade sobre o Estado, num esforço de apropriação ou
inflexão das decisões estaduais que se manifestava, não só nas referi-
das exigências ou nos direitos a prestações sociais, mas também na
acção permanente e estruturada dos partidos, grupos de interesses e
organiza~ões sociais sobre a esfera política.
Assim, pode dizer-se que é neste processo conjunto de
estadualização da sociedade e de socialização do Estado que se
corporiza o princípio de socialidade enformador do novo Estado
socia/4w e, por sua vez, é essa dupla dimensão que permite distinguir
o Estado social dos conceitos afins.

1.1. «Estado social» e conceitos afins

Para traduzir as novas preocupações e funções do Estado no


século XX tem sido proposta uma multiplicidade de designações,

m E' sobrctuuo
·' destas alterações que procuram dar conta as vanas
' . ConslltlllÇoes
. ' -
europeias que se seguem imediatamente à 1.• Guerra Mundial (e também, e mais
avançadamente, a Constituição mexicana de 1917), tais como a de Weimar, em 1919, da
Polónia de 1921 e da Roménia de 1923 (cfr., as respectivas referências em Mn{KINE-
-GumÉvn-cu, les No1111ef/es Temlw,ces ... , cit., págs. 90 e segs.).
. "'° Note-se, contudo, que s6 inco111plc1a111cntc estas dimensões do Estado social têm
vindoª obter recepção constitucional em toda a sua extensão. não obstante o desenvolvimento
gera~ dos princípios estabelecidos nas Constituições do primeiro pós-guerra e a própria consa-
façao da fórmula de <<Estado social» cm algumas Constituições como a de Bona de 1949, a
rancesa de 1958 e a espanhola de 1978 (e também a anterior Constituição franquista).

b
-
188 Co11trib11to para 11111a Teoria ,lo Estado de Direito

desde o «Estado assistencial» e «Estado-Providência» ao «Welfare


State» ou «Estado de bcm-estan> mas também «Estado de partidos»,
«Estado de associações>> e «Estado administrativo». Em qualquer
destas expressões é possível notar pontos comuns ou mesmo identi-
dades fundamentais com a ideia que explicitámos sob a fórmula de
Estado social. Porém, enquanto cada uma daquelas designações co-
loca a tónica, ou se justil1ca integralmente, cm aspectos parcelares ou
apenas numa das dimensões que atrás referimos, o Estado social
surge como o conceito mais apto para exprimir, com toda a extensão
salientada. a natureza específica do novo tipo de relações entre Es-
tado. cidadãos e socicdaclc~~ 1•
Utilizadas em geral ele forma indiscriminada. as expressões «Es-
tado assistencial» e «Estado-Providência» fundamentam-se na mesma
ideia~ 62 da relevância das prestações e.lo Estado como fom,a de mino-
rar as situações de miséria. assegurando por meio de subvenções e
subsídios um mínimo de subsistência vital aos que nelas se encon-
tram. ou de prevenir a eventualidade dessas situações através do
estabelecimento generalizado de um sistema de seguros, de serviços
de saúde e assistência social. Tratar-se-ia, assim, de o Estado se
responsabilizar por libertar a sociedade da miséria, das necessidades
e do risco (a «freedom from want» de que falava ROOSEVELT em 1941
na sua Mensagem sobre as quatro liberdades e que sería, no ano
seguinte, retomada no Beveridge Report), substituindo assim; como
diz RosANVALLON 463, à incerteza da Providência divina a certeza do
Estado-?rovidência 464 •

"'·' Cfr., neste sentido, G,,RCIA-PELwo, lt1s TransfomUtciones .... cit.. pág. 13 e scg. e
p:ig. 48 e seg.; também, embora de perspectiva diferente, JoAQU1~1GOMES CANOT1u10. «Es-
tado Social» in Sobre o capim/ismo {Jor111,:ués, Coimbra, 1971, págs. 214 e segs. e VITAL
MOREIRA, A Ordem Jurfdica ... , cit., págs. 115 e scgs..
1
"' Cfr.. porém. parn a distinção .:ntrc «assistênci:1», «previdência» e «segurança
social», SALVATORE LEN~R. Lo Stato Sociall' ..., cit., 111(/Xillle págs. 273 e seg. e 290 e seg..
"'' La Crise di' l'Etat-f'ml'itlr11c,,, pág. 25; Ros,,NVALLON localiza a origem da expres-
são «Estado-Providência,, nos círculos do pensamento liberal, na época do Segundo lmpé·
rio francês (op. cit. , pág 141 ).
""'No mesmo sentido c!'ª BuRDE.,11 (O Liberalismo, pág. 157) as reacções contra a
assunção pelo Estado do proJecto de supressão da miséria. que era visto, na época do
apogeu do liberalismo. corno uma «condenação da Providência».
• 1
1

0 Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 189

Comungando Jo mesmo tipo de preocupações, 0 «Welfare


465 releva sobretudo, Ja dimensão do Estado-Providência mais
State>> ' .
. tamente
d1rec , vocacionada
, para ,a .consecução do. bem-estar dos cida-
dãos e O seu acesso a ~m m1111mo, p~ogress,vamente elevado, de
bens materiais; neste sc~t,d~ é, co11;0 _d,z ÜARCIA-~ELAYo466, um con-
cito mensurável - cm lunçao dos tndtces do rendimento, dos núme-
c do orçamento afectaclos às prestações sociais, da intervenção do
~;ado na redistribuição da riqueza, da política fiscal467 -, enquanto 0
«Estado social» integra uma dimensão que não pode ser apreendida
em termos quantitativos.
Difcrente, e ainda mais redutora, é a perspectiva que, privilegiando
no Estado social as alterações na estrutura organizatória dos seus
poderes relativamente ao Estado liberal, o identifica como «Estado
administrativo», «Estado político-administrativo» ou «Estado buro-
crático-administrativo», fazendo aí residir o essencial da diferença
específica introduzida pelo Estado socia/468 • O «Estado administrativo»
(«Verwaltungsstaat») seria, na tipologia de CARL SCHMrrr469 , caracteri-
zado pela passagem do centro de gravidade da vontade decisiva

5
"' De matriz anglo-saxónica e de vulgarização recente, a expressão já era utilizada na
Alemanha do século XIX («Wohlfahrstaat»), quer nas propostas dos socialistas de cátedra,
quer rcíerida à política de prossecução do bem-estar pelo Estado de Polícia do século
XVIIJ. Mas, é sobretudo sob a égide teórica da «revolução>> económica keyncsiana e com
base no notável crescimento propiciado pela introdução das inovações científicas e
tecnológicas no processo produtivo que se configura modernamente o \Velfare State. As-
sim, é nomeadamente após o Beveridge Report («Social lnsurance and Allied Services») de
!942 (cfr., a citada tradução portuguesa de um seu resumo e a respectiva introdução de A.
MARQUE.~ Gu1::ocs) que a dimensão de bem-estar do Estado Social se afirma definitivamente
enquanto «política compreensiva de progresso social» assente numa política de pleno em-
prcg~ e numa «compensação nacional dos riscos sociais», através da instituição estadual de
um sistema de. segurança social centralizado, unificado, generalizado e uniforme (cfr., A.
MARQucs GuE01:~. op. dt., p~gs. 147 e scgs.; PmRRE Ro~ANVAU.ON, ap. cit., págs. 141 e segs.).
"'''
..,, GARCIA·Pl'~..AYO, /-,(1.v Tr1111sfor11111cio11es.... cit., p:\gs. 13 e segs... . .
1
dad .· Nest~ sentido, a importfmcia da política fiscal não só no financiamento da a~t1v1-
i1tst~ assist~ncial do fatado, mas, sobretudo, na redistribuição dos rendimentos com vista à
Di,/r/('.CWI. conligur.1 O \Ve(fare Stale como Eswdo fiscal, como S1e11erstaat (SCHUMPETER,
l.1/s cl<•s Ste11erstaat 191 º)
M
""e fr., entre nós, MIGUEL. º·GALVÃO TELES, nas 1101t1s aditadas a MARCELLO CAETANO,
ª""ª'
págs. elee e- s wn~,a· Política e Direito Co11stit11ci~11a(, 6.ª ed.•. L1s~o:i,
· · . - de 1983,
re1mprcssao
324
-1114 • egs., VITAL MOREIRA, «O Estado capllahst:i... ». crt., pag. 7 e seg..
CARL SCHM1rr, Legalidad y Legitimidad, págs. 3 e segs., mmime 7 e seg..
190 Co111rib1110 para uma Teoria do Estado de Direito

para a Administração, ou seja, para «a adopção de medidas atendendo


somente à natureza das coisas em função de uma situação concreta e
com pontos de vista puramente objectivos e práticos». Tal passagem
traduzir-se-ia, entüo, no incremento das «funções não jurídicas» e na
instrumentalização das jurídicas, na diluição das fronteiras entre Lei e
Administraçiio e na prevalência do Executivo sobre o Legislativo.
Por último, e recobrindo em grande medida a dimensão do Estado
social que designámos por processo de socialização do Estado, surge
a sua caractl!rização como «Estado de partidos» ou «Estado de asso-
ciações». Nela se recolhe, respectivamente, a relevância nuclear dos
partidos no Estado dos nossos dias, expressa nomeadamente na
«multiplicação e diversificação das funçõe s partidárias>, e no papel
decisivo que desempenham nos mecanismos da representação polí-
tica~70, ou a importância dos grupos de interesses e das associações
como meios de pressão sobre as decisões políticas centrais, mas
também enquanto canais de mediação na realização social dessas
decisões 471 •
Constata-se, assim, que cada um destes conceitos, destacando
funções, instituições ou mecanismos de funcionamento próprios do
Estado social, não permite isolar, em toda a sua extensão, as notas
fundamentais que distinguem o Estado social, não só do Estado
liberal, mas também das formas políticas coevas. De facto, em nosso
entender, haverá fundamentalmente que dar conta da assunção pelo
Estado de um princípio de socialidade, de uma concepção específica
das relações entre sociedade e Estado, que se traduz num processo
de estadualização da sociedade, mas que tem como contrapartida
uma não menos ineliminável dimensão de socialização do Estado.
Ora, é extraindo todas as consequências desta última dimensão
que o Estado social se apresenta com uma configuração global dis-
tinta dos Estados que, compartilhando das mesmas preocupações de
superar a separação Estado-sociedade, realizam essa intenção num
quadro autoritário ou totalitário, abolindo, a prazo, qualquer controlo
real da sociedade sobre o Estado. Com efeito, a exigência de sociali-

10
• Cfr., entre nós, MARCELO R EBELO DE SousA, Os Partidos.... cit., págs. 46 e segs. e
129 e segs..
471
Cfr., por lodos, M. GARCIA·PEl.AYO, l(iç Tmmfom1acio11es..., cit., págs. 116 e segs..
m GOMES CANOT JLHO, «Estado Social», cit., pág. 211 .
T
l
\ O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 191 '
J

~ t
zação do Estado im~lica, não apenas o reconhecimento da interven-
ção dos grup~s de mtere.sse e organizações sociais na tomada das
l
1
decisões políticas centr.ai!· n:as, fundamentalmente, a recondução
institucional dessas dec1soes a vontade democraticamente expressa 1
pelo conjunto da soci~dade: . 1
Para que o quahficattvo «social» aposto ao Estado não seja 1

lllero «afü ret6rico» 472 não basta a imervenção organizada e sistemá-


tica do Estado na economia, a procura do bem-estar, a institucionali-
zação dos grupos de interesses ou mesmo o reconhecimento jurídico
e a consagração constitucional dos direitos sociais473; é ainda impres-
cindível a manutenção ou aprofundamento de um quadro político de
vida democrática que reconheça ao cidadão um estatuto de participan- 1
te e não apenas. como diz GARCIA-P ELAYO, de mero recipiente da l
intervenção «social» do Estado474 •
De facto, a possibilidade conferida ao Estado de transformar a
ordem económica e social em função de um objectivo de justiça só
não se confundirá com a actuação discricionária e potencialmente
arbitrária de um qualquer «Polizeistaat» adaptado ao século XX, caso
assente e dependa, em cada momento, da decisão ..:olectiva democra-
ticamente tomada.
Assim, o reconhecimento dos mecanismos da democracia políti-
ca, como único quadro capaz de permitir o desenvolvimento de um
processo de efectiva socialização do Estado, constitui um pressuposto
imprescindível do Estado social, cuja ignorância se traduz na possibili- \
m É. em grande parte, através de um processo de contestação parcclarizada da
pretensa novidade ou operatividade de cada uma desias notns que MASSIMO S. G1ANNIN1
(«Stato Socialc: una nozionc inutilc», cit.) pôde concluir pela inutilidade do conceito, mas
injustamente, na medida cm que é cxactarnentc a coníluência aniculada de todas elas que
l
confere especificidade ao Estado social.
"' Cfr., GARCIA-PELAYO, Las Tm11.eformacio11es.... cit .. págs. 48 e scgs.; no mesmo
sentido, SALVATORE LENER. Lo Sto/11 Sociale co11tem1wrm1eo, mnxime p:ígs. 236 e seg.;
SALVATORE ScocA, «Dai lo Stato di Diritto alio Stato So~ialc>> i11 Stmo Sociale, 1960, n.º 2,
pág. 107 e scg.; JôRG KAl,JMLER, «EI Estado Social», ci1., págs. 91 e segs.; ?º~IES
c.ANOT1u10, «Estado Social», págs. 209 e scgs.; MARCELO Rrnao or. SousA, Os Parrulos...,

l
cu., págs. 32 e scgs.. . . .
Já VITAL MOREIRA («O Estado capitalista...», cit., págs. 8 e sc~s.). d1s11nguindo embora
0 «Estado social» das doutrinas de reforma social do Estado prussiano do século XIX com
baseºª. c??Linuidadc, naquele, dos princípios de Estado d~ Direito. admite, contudo, ·~ sua
cornpaubihzação com uma involução autoritária, na medida cm que •<há estado social e
estado social».

l
1
t

1•
/ .

192 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

dade de utilização indiscriminada do conceito e na consequente per-


da da sua operatividade475 •

2. A compatibilização do Estado social com o Estado de Direito -


o Estado social de Direito

Quando a Lei Fundamental de Bona de 1949 consagrou, pela


primeira vez em textos jurídicos, a fórmu la sozialer Rechtsstaat416
colocou a doutrina constitucional germânica perante a necessidade
1
de esclarecer definitivamente a questão da compatibilidade do novo
1
princípio de socialidade assumido pelo Estado com o velho quadro

m Neste sentido é particulam1entc sintomática, entre nós, a caracterização do regime


de 1933 como «fatado Social».
Cfr., assim, os exce11os de discursos de MARCEi.LO CAETANO reunidos em Estado
Social, Lisboa, 1970:
«O Estado corporativo que a nossa Constituição consagra é necessariamente um
Estado Social, isto é, um poder político que insere nos seus fins essenciais progresso moral,
cultural e material da colectividade (Discurso do Palácio de S. Bento em 10.10.68 - op. cit.,
pág. 5); «Social na medida em que coloque o interesse de todos acima dos interesses dos
grupos, das classes ou dos indivíduos. Social por fazer prevalecer esse interesse mediante a
autoridade que a5senta na razão colectiva. Social enquanto procura promover o acesso das
camadas deprimidas da população aos benefícios da vida moderna e proteger aqueles que
nas relações de trabalho possam considerar-se em sítuação de fraqueza» (na Câmara Muni-
cipal do Porto em 21.5.1969 - op. cit., pág. 11 ).
No mesmo sentido cfr., BALTAZAR REBELLO 0 1; SousA em Estado Social (comunicação
1
apresentada ao Congresso da ANP em Tomar), 1973:
1

[O Esiado Sociall «pode aceitar ou não a institucionalização permanente de corren-


1
,I tes»; «diferentes formas e graus de pa11icipação podem assegurar nele uma autenticidade
1 representativa, sem o necessário recurso a uma organização partidária estereotipada ou
,1
artificial (...], mormente se nele a expressão de representação orgânica se mostra franca-
mente estabelecida e pujante» (op. cit., págs. 28 e 36).
Não menos reveladora, pelas conotações que sugere (cfr., supra, V.1.1.1.), é a quali-
ficação que AFONSO QuEmó (A Ciência do Direito Administrativo... , cit.. pág. 35) faz do
regime de 1933 como «Estado Social Ético», na medida cm que a Constituição «define toda
1
uma actividade económico-social que o Estado se impõe realizar».
476
HERMANN HELLER utilizou originariamente a fórmula no citado Rechtsstaat oder
i Diktatur? (págs. 9, 18 e 26) num sentido polémico dirigido prioritariamente contra o nichts
·1 Rechtsstam fascista, mas que, por outro lado, traduzia uma proposta de superação da carac-
terização formal do Estado de Direito em nome da «extensão do pensamento de Estado de
Direito material à ordem do trabalho e dos bens», ou seja, «da reivindicação pelo proleta-
riado de uma democracia social» ( op. cit., pág. 11 ).
p l
'
1
'

o Estado de Direito peranre as novas exigências de socialidade 193

conceptual do Estado de Direito. Tratava-se não apenas, como pre-


77
tende foRSTHOFF" , de averiguar se as novas fórmulas e disposições
sociais se devem considerar só como normas «programáticas ou antes
dotadas de um conteúdo específico e vinculante» - e essa era a
debatida problemática suscitada pela Constituição de WEIMAR, em
l919 -, mas, fundamentalmente, de extrair todas as consequências
da consagração do «Estado social de Direito» como princípio estru-
turante da nova ordem jurídico-constitucional. E esta questão era
agora tanto mais importante quanto a Constituição de Bona, ao con-
trário da de Weimar, não desenvolvia especificadamente a nova in-
tenção num corpo de disposições e direitos sociais, antes parecendo
remeter a doutrina e a jurisprudência para um labor de interpretação
dos princípios recebidos nos arts. 20.º e 28.047s.
Assim, e em geral, em oposição à doutrina que, fundamentada
na compatibilidade entre Estado de Direito e Estado Social, via no

A Lei Fundamental de Bona (sob proposta do deputado social-democrata CARLO


SCHMJD - cfr .. WoLFGAl'/G AnENDROTH. Sociedad Anragonica y Democracia Pnlitir.n. m1CI.,
Barcelona, 1973, pág. 268) recebeu a expressão nos seus arts. 20. 0 («A R.F.A. é um Estado
Federal, democrático e social») e 28. 0 ( «A ordem constitucional dos Uinder deve conformar-
-se aos princípios do Estado de direito republicano, democrático e social [... ]») e erigiu o
princípio em limite material de revisão constitucional (art. 79.0 , n. 0 3).
Note-se que já em 1946 e 1947 as Constituições dos Uinder da Baviera, Baden,
Rhcinhard-Pfalz e Würtembergcr-Badcn classificavam os respectivos Estados de democrtí-
ticos e sociais (cfr., LucAs VERDú, La lucha por el Esrado de Derecho, pág. 82).
.n ERNST FoRSTIIOFF, «La Repubblica Federale Tedesca come Stato di Diritto Sociale»,
in RTDP, 1956, pág. 547.
478
Esta renúncia da Grundgeserz em consagrar no seu a11iculado um conjunto de
direitos e programas sociais como desenvolvimento dos princípios dos arts. 20.º e 28.º tem
suscitado diferentes interpretações: assim, enquanto para AnENDROTll (Sociedad
Antagonica ..., cit., pág. 287 e seg.) a razão se encontra no carácter compromissório da
Constituição, o que terá induzido os seus autores a deixar a via aberta para posteriores
desenvolvimentos de acordo com o circunstancialismo e a relação de forças que viessem a
caracterizar a evolução política da R.F.A., já FoRSTIIOFF ('fraité de Droit Administratif
Al!emarul, pág. 121 e seg.) a interpreta como resultado da incapacidade do legislador consti-
tuint~ resolver a contradição entre uma Constituição de Estado de Direito e as necessidades
d.a vida moderna ou mesmo como opção deliberada de au·ibuir à Constituição o fim exclu-
sivo de garantir a segurança jurídica dos cidadãos. Por sua vez, N1c0Lô TROCKER ( «I
Rapporti tra Cittadini e Stato nella Costituzionc di Bonn: signilicado storico e político» in
~TDP, 1973, n.0 3, pág. l 150 e seg.), seguindo Osentido assinalado por AnENDROTH, realça
ainda o carácter tendencialmente provisório da Lei Fundamental, a experiência negativa da
Constituição de WEIMAR e a ausência de uma concepção precisa do conteúdo e funções do
Estado Social perante a rapidez das mudanças que se produziam na realidade.

...______
1

L
l •
1

194 Contribmo para uma Teoria do Estado de Direito

sozialer Rechtsstaat um conceito que reflectia a especificidade da


nova ordem constitucional enquanto expressão contemporânea do
ideal de Estado de Direito, desenvolve-se toda uma elaboração - cujo
expoente se encontra indiscutivelmente em FoRSTHOFF"79 - tendente a
demonstrar a irredutível tensão, ou mesmo antinomia, entre a Consti-
tuição de Estado de Direito e o novo princípio de socialidade, con-
cluindo pela inviabilidade conceptual de um «Estado social de Direito»
e esvaziando de sentido e consequências o princípio consagrado na
Lei Fundamental48º.
FoRSTHOFF parte de uma concepção garantista de Estado de Direito,
segundo a qual este acaba por se reconduzir a um conjunto de técni-
cas destinadas a garantir e proteger a permanência de um dado statu
quo económico e social. No fundo, os direitos e liberdades protegi-

479 Cfr. a generalidade das obras citadas. sobretudo a síntese contida no ensaio de
1953 «Begriff und Wesen des sozialen Rcchtsstaates», traduzido e incluído em Stato di
Diritto in Transformazione, cit., págs. 29-70.
Para uma introdução às teses de FoRSTHOFF e à «polémica alemã», cfr., por todos,
CARLO AMIRANTE, «Presentazione» a Stato di Dirino in Transfonnazione e, entre nós,
GoMES CANOTILBO, Direito Co11stitucio11al, págs. 284 e segs. e Constituiçcio Dirigente...,
cit., págs. 82 e segs..
4!!0 Esta posição doutrinária revela-se da máxima importância e justifica uma análise

mais demorada por duas ordens de razões: em primeiro lugar, e apesar de se integrar na
polémica especificamente desenvolvida em tomo da Constituição da R.F.A., fundamenta-se
em argumentos generalizáveis, o que, aliado à marcada intenção política que lhe está
subjacente, lhe renova a actualidadc em todas as latitudes em que o problema se coloca; por
outro lado, constrói-se essencialmente cm torno de uma particular concepção de Estado de
Direito que, a ser aceite, confinaria a vigência deste a um tipo de Estado historicamente
situado nos quadros do pensamento liberal e burguês, excluindo, à pai1ida, qualquer even-
tual utilização do conceito no contexto das transformações económicas e sociais comportadas
pelo século XX, a não ser enquanto instrumento politicamente dirigido a retirar legitimidade
a tais transformações (cfr., como exemplo característico desta utilização, entre nós, o citado
texto de HEINRICH E. I-lóRSTER, «O Imposto Complementar e o Estado de Direito»).
Porém, a vitalidade desta posição manifesta-se ainda, de forma parcelar, nos mais
diferentes contextos teóricos e políticos; cfr., assim, os seus reflexos nas reservas expressas
por Gumo FAssô e FRITZ Gvo1 à compatibilidade de Estado de Direito e Estado Social
(respectivamente, i11 «Stato di Diritto e Stato di Giustizia», cit. , e «L'État de Droit et
l'organisation contemporaine de l'économie et les rapports sociaux», in RCJJ 1962, n.º 1,
págs. 3 e seg.); também, entre nós, MIGUEL GALVÃO TELES (cfr., as notas aditadas a
M ARCELLO CACTANO, Manual de Ciência Poli1ica ... , cit., págs. 324 e segs.) acolhe, em ccrt:l
medida, a ideia de tensão entre os dois conceitos e a concepção de Estado social de Direito
como «forma mista entre o Estado de Direito e o Estado político-administrati vo», na qual
coexistiriam elementos de Estado de Direito e elementos que lhe são «estranhos».

d
o Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade J95

dos têm o car..ícter de meras.. delimitações técnico-normativas perante


as quais se de~ém a act1v1dade do. E~tado. E seria exactamente esta·
redução formahsta do Estado de Direito que lhe garantia a possibili-
dade de ser utilizado nas várias épocas históricas que se sucederam à
sua «idade do ouro», ou seja, ao «Estado de Direito monárquico» do
século XIX.
Assim, para FoRSTI 1orr-, a tecnicização era condição da necessá-
ria au1onomia das insti tuições do Estado de Di reito face às transfor-
mações ambienlais; o Eslado de Direito seria, numa definição lapidar,
«um sis1c111a de ar1ifícios de técnica jurídica para garantir a liberdade
assegurada pe las leis» 4K 1, refractário a qua isquer tentativas de lhe
conferir conteúdos materiais.
Desta natureza do Estado de Direito resultaria uma natural im-
possibilidade de a sua Constituição acolher, como princípio estrutu-
r.inte, as intenções de justiça e recomposição social que se procuram
exprimir na ideia de Esuulo social; não obstante constituírem uma
dimensão inelimin.ível do Estado, a via de acesso ao Direito e de
expansão destas intenções não é a Co11stit11içiio do Estado de Direito
- que, longe de constituir um espelho de toda a realidade essencial
do Estado, deve ser apenas um conjunto de técnicas justificadas pelo
fim de garantia do status -, mas sim a legislação (direito económico,
direito do trabalho) e, sobretudo, o direito administrativo (agora obri-
gado a reunir num corpo jurídico unitário as duas dimensões da activi-
dade administrativa - a Ei11griffsvenvaltu11g e o Dasei11svorsorge) 482•
Deste modo, apesar do reconhecimento jurídico do Legislador e
da Administração, o Estado Social «não tem um significado
institucional [... ] não toca a forma estrutural da República Federa1»483,
41
S1mo di Diritto i11 Tra11sfomwzione, pág. 322.
•~i Tal não signilica que es1as intenções de socialidade - e toda a actividade de
«Oaseinsvorsorgc» que implicam - possam ser elididas, na medida cm que correspondem a
~eccssidadc~ prementes no contexto elas actuais relações entre o Estado e os cidadãos. A
•alta de lutei·a con~111uc1onal
· · do Estudo Social é, assim, larg;uncnh: compens:HJa pc1a 1·orça
iuc lhe advém dos impulsos que recolhe nos dados e cxig~ncias da vida social. Como
ta~:;:tl'F ~e~onh:cc (dr., S1ato tli /Jiritto..., cit., 111mi111c pág. 66), o desempenho d~
..· soci:us cvna que o Estado de Din:ilo se transforme cm «fortaleza dos bea11
POssicJentef» . - . 1· . b ,.
• .
venc1a
·· • com os consequentes perigos ,1ue tal rcduçao 1mp 1cana para a sua so re\1- .
F'cdc ' pois «só como Estado social o Esta<lo de Direito 11:m futuro» («La Rcpubbhca
ra,~~ Tcdcsca ... , cit., pág. 562).
Siato di Diritto... , cit., pág. 60.

>
""'

196 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

já que entre Constituição do Esrado de Direito (formalística e intencio-


nalmente alheada da vida social) e Estado Social (empenhado cons-
cientemente na formação e reconstrução da sociedade) há um «con-
traste estruturat»·1s4 _ Daí a impossibilidade de uma fusão dos dois
conceitos no plano constitucional; a integração far-se-ia, mas apenas,
na conjunção de Constituição, legislação e administração.
Como interpretar, então, a consagração constitucional da fórmula
«Estado social de Direito»?
FoRSTMorr distingue dois sentidos no adjectivo «social» aposto
ao Estado: ou se entende num «sentido polémico dirigido contra a
actual repartição dos bens» ou «como quinta-essência dos elementos
sociais do ordenamento jurídico»4~5•
No primeiro sentido ele revela-se claramente antinómico ao Es-
tado de Direito - entendido enquanto garantia do statu quo - e,
sendo logicamente impossível chegar a um compromisso entre duas
intenções dicotómicas («um meio Estado de Direito e um meio Esta-
do social não fazem um Estado social de Direito»486), a necessária
opção da Lei Fundamental vai para a prevalência absoluta do Estado
de Direito, garunlimlo, porém, o uese11 volvimenlo do Estadu suc:ial
nos quadros e limites impostos por aquele; assim, remetendo para os
planos legislativo e, sobretudo, administrativo a integração dos dois
conceitos, a Constituição da RFA seria exclusivamente determinada
pelo princípio do Estado de Direito. Quanto ao seu segundo sentido,
ou seja, como «quinta-essência dos institutos sociais e das normas
sociais realizadas pelo direito» 487, o Estado social é afectado por uma
indeterminação e subjectivismo que lhe retiram qualquer conteúdo
jurídico vinculante.
Em qualquer dos casos, «a fórmula Estado social de Direito não
é um conceito jurídico, no sentido de um conceito determinado por
características institucionais próprias e um específico conteúdo mate-
rial. Desta fórmula não se podem extrair direitos ou deveres, nem
fazer derivar instituições» 488 • Assim, dada a insuperável tensão ou
oposição entre a Constituição de Estado de Direito e as obrigações

•8-1«La Rcpuhblica Fcdcr:1lc Tedcsca ..., cit., pág. 552 e seg..


485 Stato di Dirillo.... cit., ptlg. 54 e seg ..
486 lbid., pág.40.

481 lbid. , pág. 69.


,ss /bid., pág. 57.

·--
f
o Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 197

do Estado social, o único valor jurídico da expressão Estado social


de Direito só pode ser o de «cânone de interpretação da Constituição»
do qual deriva «um vínculo social da liberdade»489 , ou seja, e nas
palavras de FoRSTHOFF, o Estado social de Direito não passa de «fór-
mula vazia e completa banalidade»49º.
No entanto, toda esta construção assenta numa discutível con-
cepção de Estado de Direito. Como vimos, a pretensa neutralidade e
formalismo técnico das instituições do Estado de Direito - base da
tese da sua inconciliabilidade com o Estado Social no plano da Cons-
tituição - justificam-se exclusivamente pela necessidade de garantir o
stat11 q110 económico e social.
O único valor prosseguido pelo Estado de Direito de FoRSTHOFF é,
afinal, a garantia do regime de propriedade burguesa e o sistema de
distribuição de bens por ele gerado; o Estado de Direito e.xiste apenas
«enquanto reconhece e tutela o ordenamento tradicional da proprie-
dade»491 e é só dentro dos limites impostos por essa garantia absoluta
que se pode desenvolver um sistema destinado a oferecer condições
de vida adequadas - o Estado social.
A Constituição do Estado de Direito possibilitaria a existência
do Estado Social e fornecer-lhe-ia os meios jurídicos necessários à
prossecução da sua actividade como Estado fiscal, sob uma única
condição: a distinção rigorosa entre o poder de tributação fiscal e «a
tutela do sistema de repartição dos bens imposto pela g_arantia da
propriedade»492; diluída que fosse esta distinção, o Estado social per-
deria o seu fundamento constitucional, na medida em que a reparti-
ção do produto nacional por ele operada pressupõe a manutenção do
pré-existente sistema de repartição de bens garantido pda Constitui-
ção do Estado de Direito.
. No fundo, FoRSTHOFF hipostasiava uma dimensão parcelar e his-
toncamente situada da adjectivação liberal do Estado de Direito - a
garantia absoluta da propriedade burguesa - e, na redução do Estado
de Direito a essa dimensão, fundava a sua tese da inviabilidade do
~stado social de Direito como conceito e princípio jurídico-constitu-
cional. A caracterização técnico-fonnalista que propunha para o Estado

489 Ul
490
« Repubblica... », cit., pág. 553.
49 1
El Estado. de la Sociedad Industrial, pág. 108.
•n «La Repubblica...», cit., pág. 561.
Stato di Diritto..., cit., pág. 92.
198 Co11trib1110 para 11111a Teoria do Estado de Direito

de Direito - apresentada como recusa de considerar a Constituição


' 493
como «supem1ercado onde se possam satisfazer todos os deseJOS» · -
revela-se, assim, como prejuízo interessado na conservação de uma
determinada ordem económica, transformando a Constituição do Es-
tado de Direito, como diz H i,nERLE 4'14 , numa «loja de mercadorias
colonial do século XIX que apenas serve a burguesia».
Com efeito, tal tentativa é, não só teoricamente desajustada - em
face da nova dimensão de socialidade -, como historicamente infun-
dada, j(i que, como vimos, na sua génese o Estado de Direito surgiu
como ideal orientado para a sal vaguarda da autonomia e do livre
desenvolvimento da personalidade individuais.
Para o pensamento liberal a tutela da propriedade ocupava, é
certo, um lugar proeminente na esfera de autonomia individual, mas,
sob pena de uma inversiio ideologicamente comprometida, não pode
ser elevada a fim exclusivo ou identificador do ideal de Estado de
Direito. Valor essencial é, inversamente, a tutela da dignidade da
pessoa humana como centro invariável da esfera de autonomia indi-
vidual que se procura garantir através da limitação jurídica do Estado
e é em função desse valor - tal como é entendido pela «consciência
jurídica geral» da comunidade cm cada época histórica495 - que deve
ser aferida a legitimidade de um dado sistema de propriedade ou a
compatibilidade de uma particular intervenção do Estado com os
quadros do Estado de Direito.
O novo princípio de socialidade, forjado a partir da constatação
da perda de legitimidade de uma ordem fundada no «livre jogo» da
concorrência das autonomias individuais, induzia, no plano específico
do Estado de Direito, uma reavaliação do sentido da limitação jurídica
do Estado. Com efeito, para que o princípio do Estado de Direito
pudesse conservar a sua operatividade no contexto das novas rela-
ções entre o Estado e os cidadãos, a limitação do Estado não se podia
traduzir exclusivamente na ideia de delimitação externa de uma zona
de autonomia individual garantida contra as eventuais invasões do
poder público, mas exigia, também. uma vinculação jurídica do Esta-
do no sentido de uma intervenção positiva destinada a criar as condi-

m E/ Estado de la Socicdad..., cit., pág. 124 e s.:g..


' '" ,1pud Go~ms CANcnn.110, Co11.wit11içtio DiriJ:elllc... , cit., pág. 97 .
.os Cfr.• CASTANI WIRA Nr:vC:S, A Re1•0/11çüo e o /Jirdto, cit., págs. 198 e segs., maxime
207 e segs., e, sobretudo. A 1111idade do sistt'nw jurídico .... cit., págs. 106 e scgs..
o Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 199

ções de uma real vivência e desenvolvimento da liberdade e persona-


tidade .ind'1v1'd ums
' 496 .
Com este senlido, a nova dimensão de socialidade - entendida,
como pretende BACIIOFl'J7, nao -
como 1·1m1te
. externo da liberdade, mas
como elemento constitutivo desta - não só não se apresenta em
anlinomia ao princípio do Estado de Direito (cfr., assim, o sentido
originário do «Rcchtsstaat» assinalado supra, II.3.1.), como é mesmo
uma exigência deste.
De facto, para o sentimento jurídico emergente no século XX, a
garantia dos direitos fundamentais e a tutela da autonomia individual
- fulcro do conceito de Eslado de Direito - exigem tanto a ausência
de invasões ilegítimas das esferas individuais quanto a promoção
positiva da liberdade. Assim, a aclividade de «Daseinsvorsorge»
prosseguida pelo Estado Social - não já confinada infraconstitucio-
nalmente à zona administrativa, mas impregnando toda a actividade
do Estado498 - surge associada ao objectivo de emancipação indivi-
dual e livre desenvolvimento da personalidade e, na medida em que
encontra na dignidade da pessoa humana, e não já na conservação
da propriedade burguesa, o seu fundamento e limite, revela-se como
dimensão inelíminável da actual Constituição de Estado de Direito.
Consequentemente, o Estado social de Direito, expressão
conceptual do entendimento actual de vinculação jurídica do Estado
com vista à salvaguarda dos direitos fundamentais, não é uma forma
mista de Estado onde confluem elementos de Estado de Direito e ele-
mencos ·estranhos, mas é, como diz CASTANHEIRA NEVES499, o «Fstado de
Direito tout court» 500 e, com esse alcance, princípio jurídico-constitucio-
nal que detem1ina a natureza e o sentido de todas as funções estaduais.

«.16 É este o sentido que se recolhe lapidarmente no an. 3.º da Constituição italiana:
«Incumbe à República remover os obsláculos de ordem económica e social que. limitando
de facio a li herdade e igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa
humana
. e a e1·cct1va
· panicipaç·ão de todos os trabalhadores na orgamzaçao
· - po)"1t1ca, ccon6•
m1ca e ·
social do país».
•91 e
'°" fr., N1coLà TROCKER, «I Rapponi. ..», cit.. pág. 1154.
' ')<) EHRHARDT SoA1tr:S, Direi/o Público... , cit., pág. 90.
~~ O Instituto dos «as.1·entos» .... cit., pág. 143. .

rn~:~~s.:
a

E
~onvergentcrncnte, SALVATORE LENl:R (lo Stato Sacia/e.... cit .. pág. 149) classifica
10
alemã «M>Zialer Rechtsstaat» de pleonástica e duplamente tautológica t'i:ctºe é 0
• no plano conceptual 1mro» o fundamento do Eswc/a, do Estado tle Direito e do
St<ulo Snc · / · ' ' · 1· , " · 1
'ª • ou SCJa, a dignidade da pessoa humana como ser rac1onal, MC e soc,a ·

..___
---

200 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

3. A alteração dos elementos do Estado de Direito liberal

A compreensão do Estado social de Direito nos termos atrás


referidos pressupõe, por definição, a preservação dos valores que,
independentemente da circunstância histórica, individualizam o ideal
do Estado de Direito, bem como dos elementos em que tal ideal se
corporiza. Ela implica, não só a eleição da garantia dos direitos fun-
damentais como fim basilar do Estado, como a exigência da raciona-
lização de toda a sua actividade em função daquele objectivo. Ora,
nas condições actuais, tal como no século XIX, tal racionalização
traduz-se inevitavelmente na limitação jurídica do Estado e na juridi-
cização das suas relações com os cidadãos, o que pressupõe a manu-
tenção do núcleo essencial das técnicas jurídicas associadas ao apare-
cimento do Estado de Direito, desde a divisão de poderes ao princípio
da legalidade da Administração e à tutela jurisdicional dos direitos
individuais.
Contudo, os valores e elementos em que assentava a caracteriza-
ção liberal do Estado de Direito não deixarão de sofrer as reformula-
ções que decorrem das novas tarefas assumidas pelo Estado social de
Direito, na medida em que este, para além de se obrigar a omitir
todos os comportamentos violadores das esferas de autonomia dos
cidadãos, se vincula juridicamente à criação das condições que garan-
tam o livre e igual desenvolvimento da personalidade individual e a
realização da dignidade da pessoa humana.
No plano específico dos direitos e liberdades individuais, tais
exigências orientam-se em três direcções principais.
Em primeiro lugar, no referido processo de fundamentalização
dos direitos soc iai s em sentido !aro (incluindo os direitos
económicos, sociais e culturais), o que, independentemente da natu-
reza jurídica que lhes seja reconhecida501, se traduz na sua consagra-
ção constitucional (expressa ou implícita5º2) e na projecção de uma

"'' Sobre os direitos sociais e a sua discutida natureza e relevânci:1jurídica, cfr., por
todos, e entre nós. Gm!ES CANOTILHO, Co11sti1t1içlio dirigeme.... cit., págs. 365 e scgs. e
Direito Cons1i11.1rin11al. pdgs. 447 e segs. e 517 e .~egs.; VnõJRA DE ANoR,,oi;, Os direitns
ftmdamentais ...• cit., págs. 205 e segs., 300 e segs. e 343 e segs.; JORGE MIRANDA, Adita-
mentos de Direito C01wi111cio11al, cit., págs. 209 e segs..
"'2 Para além da consagração consti1ucional expressa dos direi1os sociais - cfr ..
assim, a Constituição Portuguesa de 1976 ou, num outro con1ex10 e à margem dos quadros
p

O Estado .de Direito perante as novas exigências de socialidade 201

relevância que os impõe ao reconhecimento de · todos os órgãos e


funções do Estado.
Em segundo lugar, numa reinterpretação global dos direitos,
liberdades e garan tias tradicionais à luz do novo princípio de
socialidade, que se retlecte numa dependência e vinculação social do
seu exercício ou mesmo numa compressão do seu conteúdo, deter-
_minadas pela necessidade de garantir as condições de liberdade de
todos os homens. Esta vinculação social afectará particularmente
aquela zona onde o «livre>) e incondicionado desenvolvimento do
Homem abstracto pode redundar na dependência, dominação e
desumanização dos homens concretos, ou seja, a zona das relações
de produção e, especialmente, do direito de propriedade. À luz das
novas exigências, este direito perde o carácter de medida suprema de
todos os outros direitos, para se integrar, subordinadamente, numa
concepção de autonomia individual que decorre, não dos interesses
económicos particulares da burguesia possidente, mas da ideia de
dignidade da pessoa humana tal como é entendida, em cada momento,
pela «consciência jurídica geral» da comunidade.
Por último, os direitos fundamentais são agora concebidos, não
só como técnicas de defesa contra os abusos e violações provenien-
tes da autoridade pública, mas também como valores que se impõem
genericamente a tod.a a sociedade e que, dirigidos igualmente contra
os poderes particulares, adquirem relevância nas relações jurídicas
privadas enquanto direitos contra terceiros (a «Drittwirkung»).
Também no que respeita aos elementos técnicos do Estado de
Direito as alterações se processam no mesmo sentido, ou seja, na
manutenção das características e fins essenciais que presidiram ao
seu aparecimento, com substituição dos contornos que lhe foram
imprimidos especificamente pela adjectivação liberal. 503
Assim, a «divisão de poderes» perde o seu anterior prctenso
carácter de repartição mecanicista entre «titularidades autónomas de
poder politico»so~ para se reconduzir definitivamente a ttm plano

do Estado social de Direito, a Constituição de 1933 -, é possível extrair uma idêntica


relevância jurídica a panir da mera consagração do princípio de :w~ia/idar~e _do E~tado
mesmo quando não acompanhada de um catálogo especificado de direitos socm1s (assim, a
Constituição de Bona de J949).
50J Cfr., supra, lll.2.2 ..
lOI Cfr., CASTANl-ltlRA N1;vc;s, Questão de Facto ..., cit., pág. 541.
li .

'l.l
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"
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:i
1
1 202 Co11tributo para uma Teoria do Estado de Direito

técnico-oroanizatório de divisão racionalizada e integrada de funções


visando e~itar a concentração, o excesso ou o exercício arbitrário do
Poder.
É deste plano que relevam as transformações operadas no enten-
dimento e prática do princípio e que podemos sintetizar nas seguintes
alterações: crescente diluição das fronteiras entre as tradicionais esfe-
ras do «leoislativo» e «executivo», traduzida na invasão dos domíni-
º
os da política e da administração por parte dos Parlamentos e no
desenvolvimento da iniciativa legislativa e actividade normativa, pró-
pria ou delegada, por parte dos Governos; importância acrescida de
novas formas de limitação do Poder, como o reconhecimento do
pluralismo, direito de oposição e alternância política, a limitação de
fun ções no tempo, o reforço da separação orgânico-funcional do
poder judicial, a divisão vertical ou territorial de poderes, a «repartição
social» e descentralização de funções ou a criação de uma pluralidade
de órgãos reciprocamente limitados e interdependentes505 .
Por sua vez, o <<i mpério da lei» e o princípio da legalidade
sofrem os ajustamentos que decorrem necessariamente da invasão de
todos os domínios da vida social por parte do Direito e do advento
da nova dimensão de uma actividade administrativa empenhada na
configuração da própria sociedade - a Ad111i11istração co11stit11tiva.
Assim, a instrumentalização e politização da lei, requeridas pelo
progressivo papel intervencionista do Estado social, implicam a desva-
lorização do sentido material de lei - cujos contornos, num contexto
de multiplicação de figuras como as leis-quadro, as leis-medida ou
as «leis só formais», são cada vez mais dificilmente determináveis -
em favor de um entendimento que privilegia a concordância, material
e formal, da lei às normas e princípios constitucionaisso6.
505
Cfr., desenvolvidamente, entre nós, loRGE MIRANDA, Ciéncia Política, cil., págs.
1~0 ~ segs.; E!1R11~RDT SOARES Direi10 Público ..., cit., págs. 152 e segs.; GOMES CANOTILIIO.
D1re110 Consfl111c1011al, págs. 530 e segs..
so,, D 1· ·
· esta orma, as antenores garantias que o cidadão encontrava no carácter geral e
ª?stracto da 1:i c'. nan?da da representação nacional localizam-se, agora, nos renovados meca·
msmos constuuc1ona1s de legitimação da produção legislativa no Estado social de Direito; é
~ste. o caso, não só da fiscalização <.la constitucionalidade das leis, como tamh~m dos
1n~~tlutos que associam os. ~ários_ órgã?s de poder à respectiva elaboração ou control,1 (dr..
ass~m, entre nós, .ºs _rcquts1tos _l~rm:us como a promulgação e a referenda ministl·rial, o
reg11ne do veto, o mstlluto da ra1tlicação dos decretos-leis) ou que garamem _ nomeadamente
através de uma reserva de competência acrescida - a superioridade legislativa dos P:trl:unentos.
>

O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 203

Paralelamente, o princípio da legalidade assume, no carácter


mais ambicioso de submissão da Administração ao Direito5º7, a mesma
intenção material de evitar o arbítrio que presidira à relevância do
princípio no Estado de Direito liberal e que agora se expande, indife-
rentemente, às duas dimensões da Administração - a Administraçcio
agressiva e a Administraçüo de prestações. É esta intenção que justi-
fica, no Estado social de Direito, as tendências convergentes para o
estabelecimento do princípio da reserva total de lei (cfr., supra,
IIl.2.2.2), a extensão da reserva de lei à área da Administração
constitutiva, a redução da discricionaridade da Administração aos
limites demarcados pela lei e a sindicabilidade judicial progressiva
do respeito da Administração não só por esses limites, mas também
pelos princípios gerais de direitosos.
Porém, e para além da crítica neo-liberal que, identificando limi-
narmente o Estado assistencial com a «forma através da qual se
efectua no mundo não-comunista a submissão do indivíduo ao Es-
tado»509, vê nele a destruição do Estado de Direito, há toda uma
outra elaboração doutrinal que tem interpretado a profundidade das
transformações operadas nos elementos do Estado de Direito liberal
como sintomas de crise irreversível do Estado de Direito. Na raiz desta
crise estariam duas ordens de razões: por um lado, a «motorização
do legislativo» (C. ScHMITI), que resultaria, a prazo, numa desvalori-
zação do Direito e numa restauração do arbítrio; por outro, e com
efeitos convergentes, o declínio dos Parlamentos em favor da cres-
cente autonomia e poder não controlado dos Executivos - e dos
aparelhos burocráticos.

507 Note-se que neste novo alcance do princípio da legalidade não vem implicada
qualquer ideia de menor submissão da Administração aos limites impostos pela Lei - como
acontecia no analisado princípio da aderência ao Direito do nacional-socialismo -. mas
apenas o seu entendimento corno submissão da Admini5tração, não só à lei ordinária, mas a
todo o «bloc légal» (cfr., supra, nota 2 18), onde avultam necessariamente as nomias da
Constituição e os princípios gerais de direito nela acolhidos. . .
50K Sobre estas tendências, e o seu sentido polémico, clr., descnvolvtdarnente. entre

nós, Dtoco FREITAS oo AMARAL, Direito Ac/111i11is1m1ivo, 2.0 vol, págs. 207 e scgs. e 270 e
segs.; JosÉ CARLOS MOREIRA, «O princípio da legalidade na Adrninis'.raç,ã~», págs. 402 e
segs.; fatRH,\RDT SOARl;S, fnteresse Público ..., cit .. págs. 87 e segs. e «Pnnct.PJO_ d.e lcgahd?de
e administração constitutiva», págs. f 78 e scgs.; StRvu1.o CORREIA, «Os pnnc1p1os constitu-
cionais da Administração Pública», págs. 672 e scgs.. . .. .
509 Cfr.. WtLHELM RõPKE, «Lo Stato assistenziale sotto 11 fuoco dclla cnttca», 111 li

Politico, 1956, n.º J, pág. 18 epassim.


<

204 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito


,,.
'
' De facto, o ideal de Estado de Direito exigia que as novas
tarefas assumidas pelo Estado fossem juridicamene enquadradas, 0
que pressupunha um aumento considerável da produção legislativa;
além disso, e uma vez que não se podia alhear das transformações
económicas e sociais que ele próprio suscitara, o Estado obrigava-se
a uma permanente adaptação e actualização legislativa; simultanea-
mente, e porque a Administração de prestações implicava a atribui-
ção de poderes discricionários à Administração, o legislador desdo-
brava-se em novas normas e regulamentos visando diminuir os riscos
i 1 de arbitrário. Tudo isto concorria numa mobilidade e «inflação
1 legislativa» (CARNELurr1) que geravam inevitavelmente a insegurança
jurídica, a incerteza, o desconhecimento das leis, a dificuldade do
controlo da sua aplicação e, em geral, a consequente desvalorização
da norma jurídica.
Tudo se passava como se o arbítrio, outrora refugiado na activi-
dade administrativa, se houvesse agora transferido para o legislativo;
a incerteza, a alteração de critérios, as decisões com efeitos retroacti-
vos - que o cidadão nunca toleraria à Administração - eram agora
praticadas quotidianamente por um poder legislativo ao qual, incau-
tamente, se reconhecera uma legitimidade justificadora de todos os
abusos. A técnica normativa e o ideal de normativização integral da
vida em sociedade revelavam-se, afinal, como um «ópio da liberda-
de»510 que deixava os cidadãos inertes e mais desprotegidos que
nunca, arrastando paradoxalmente o Estado de Direito para um fim
tão mais próximo quanto mais o Estado se realizava como «reino das
leis».
Por outro lado, a desvalorização do Direito era acentuada pela
crescente impotência da lei influir efectivamente na vida política,
dada a tendência para a transferência sucessiva do verdadeiro centro
de gra;id~de do Parla_mento para o Executivo e deste para os apare-
lhos tecmco-burocrát1cos, num processo que afastava progressiva-
mente o corpo eleitoral da tomada de decisões, fazendo acrescer à
5
w Cfr.,WALTER LEISNER, «L'État de Droit - une contradiction?,,, it1 Recuei/ d'Érudes
. . a Charles Eise11man11, Paris, 1977, págs
e11 Hommage , . . 69 e pass,m.
·
. Clr. amda, no ,mesmo sentido, JEAN-PIERRE HENRY, «Vcrs la finde l'État de Droit»,
cu.; FRITZ G1Gv, «L'Etat de Droit...», cit. ; GEORGE<; R,rmn, Le Déclill du /)roi,. cit., m<tdme
Págs. 8 e segs. e 97 e sc00 s · Gu100 FAss" Stat d'
· ·• v, « o I o·mtto
· e stato 01· gmsuzrn»,
· · · <'li· .. l,,.,,
":.0 •
109 e segs.
O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 205

crise de racionalidade do capitalismo tardio um défice de legitimidade


destruidor das bases da legitimação jurídica do poder e prenunciador
da involução autoritária do Estado social de Direitos' 1.
Em todo o caso, e não obstante a razão da inquietude provocada
pelas significativas alterações das técnicas tradicionais e a pertinência
dos temores levantados quanto à sua provável evolução, não nos
parece que se assista à dissolução das garantias individuais ou, sequer,
que o advento do Estado social de Direito se traduza na introdução
de pontos de ruptura na continuidade da evolução do Estado de
Direito. '
Desde logo, porque todas as alterações se justificam pela procla-
mada intenção de reforçar a salvaguarda da autonomia e personalida-
de individuais, mas também porque, na prática, o Estado social de
Direito soube encontrar contrapartidas globalmente vantajosas para
as eventuais tendências para reintroduzir a ameaça do poder arbitrá-
rio. Referimo-nos, não só ao reforço da independência do poder judi-
cial e ao seu crescente papel de controlo dos governos, como, sobre-
tudo, à generalização e aprofundamento das regras da democracia
política como condição essencial do Estado social de Direito.
Assim, a superação da concepção oitocentista de «separação de
poderes» conduz a uma reavaliação global das relações entre política
e jurisdição que se traduz no reforço da independência do poder
judicial e na revalorização do seu papel, manifestado desde logo na
consagração generalizada da justiça constitucional.
Com efeito, esta surge como a solução encontrada pelo Estado
social de Direito, não só para colmatar as insuficiências da justiça
administrativa - e estas manifestavam-se claramente na sua natural
falta de vocação para sindicar as omissões do Estado face às imposi-
ções constitucionais prospectivas ou as violações que afectavam cate-
gorias de cidadãos globalmente consideradas -, mas, sobretudo,

)li Cfr., neste sentido, as diferentes críticas de matriz marxista; entre muitos, N1cos

PoulANTZAs, L'É1at, /e pouvoir el /e socia/isme, cit., maxime págs. 76 e segs.e 226 e segs.;
JORGEN HABERMAS, Raiso11 et légitimilé, cit., maxime págs. 70 e segs. e 85 e segs. e La
reconstrucción dei materialismo histórico, trad., Madrid, 1981, págs. 263 e 273 e segs.;
Lu1c1 FERRAJOLJ, Democracia autoritaria y capitalismo maduro, trad., Barcelona, s/d, págs.
23 e segs. e 40 e segs.; CAno MARTIN, «Estado y Estado de Derecho en el capitalismo
dominante: aspectos significativos dei planteamiento constitucional espaiiol», i11 REP. n.º 9,
1979, págs. I07 e segs ..

>
q

206 Co111ribwo para 11111a Teoria do Esrado de Direiro

como resposta institucional à contemporânea perda de confiança na


racionalidade e na justiça imanentes i1 função legislativa.
Isto significa que o Estado social de Direito reconhece a possibi-
lidade de violação dos direitos individuais por parte de um legislativo
cuja anterior omnipotência não encontra mais justificação numa
qualquer racionalidade inerente às suas deçisões, agora que a hetero-
geneidade do corpo eleitoral e a partidarização do Estado evidenciam
a natureza politicamente empenhada de um Parlamento transformado
em teatro da disputa de interesses sociais em conflito.
Destruída a crença liberal na pretensa consubstancialidade entre
lei e direitos fundamentais, havia que preservar estes das eventuais
violações actuadas pela função legislativa: «não mais direitos de li-
berdade à medida das leis, mas leis à medida dos direitos de liberda-
de»512; o que, no quadro das Constituições de Estado de Direito
elaboradas em função da garantia dos direitos, remetia para o pleno
reconhecimento do carácter formalmente superior das normas consti-
tucionais e, consequentemente, para a exigência da constitucionali-
dade das leis e da garantia do seu controlo.
A fiscalização judicial ou jurisdicional da constitucionalidade
afirma-se, então, progressivamente, como verdadeiro «coroamento
do Estado de Direito», enquanto mecanismo, por excelência, de
compensação das tentações de arbítrio induzidas pelas exigências do
novo princípio de socialidade; reconhecendo a soberania na comuni-
dade - e não já no poder legislativo - , o Estado social de Direito
assume o carácter de moderno «Estado de jurisdição» ou de forma
mista de «Estado legislativo jurisdicional»513 , no qual, em certa me-
dida, e como escreve CASTANHEIRA NEVES - e independentemente das
dúvidas que se possam erguer à legitimidade desta transformação do
juiz em «legislador apócrifo,> 514 -, só os tribunais e a função judicial

m N1coLC) TROCKER, «Rapporti tra ciltadini e stato...», cit .. pág. 1167.


m Cfr., CASTANIIEIRA NJlvEs, A Revoluçcio e o Direito, págs. 228 e scgs., e O i11sriwro
dos «asse111os» ... , cir., págs. 596 e segs..
4
si Como ~iz _E~1RHARDT SOARES (Direiro P,íb/ico .... cit., pág. 155), tudo se passaii:1
co~o se o poder JU<.hc1al recolhesse, à falta de melhor solução, a conliança perdida no poder
leg1sla11vo, tratando-se de, através do controlo judicial da constitucionalidade das leis, «con·
trabala1:çar mecanica,~ent~ o legislativo que perdeu a conliança da sociedade por um judicial
que~ ~ao ga~hou> ~Ir., a111da, do mesmo Autor, «Constituição», in Dicionârio Jurídico da
Adm1111strt1çao Pu/J/ica, li, Coimbra. 1972, págs. 670 e scgs.
1
O Estado de Direito pera111e as novas exigências de socialidade 207

verdadeiramente independentes se podem assumir como os represen-


tantes originários «da comunidade no seu todo e da sua última inten-
ção axiológica» 515 •

3.1. As regras da democracia política como dimensão


essencial do Estado social de Direito - o Estado demo-
crático de Direito

Se o desenvolvimento da função estruturante da Constituição


(com o progressivo estabelecimento da justiça constitucional) com-
pensa, de algum modo, a desvalorizaçcio do papel da lei ordinária e
os limites da j ustiça administrativa, é, sobretudo, na revitalizalização,
aprofundamento e general ização das regras da democracia política
que o Estado de Direito encontra as contrapartidas que lhe permitem
assumir o novo princípio social sem perda de legitimidade.
A democracia política, que já havíamos considerado como con-
dição do Estado social, afirma-se, por maioria de razão, como dimen-
são essencial do Estado social de Direito, a cujos valores e elementos
surge indissociavelmente ligada.
De facto, com a extensão exigida pela actual compreensão da
dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais só obtêm cabal
realização e protecção em regime democrático. Desde logo, porque
sem o reconhecimento geral dos direitos políticos - só concebível
numa situação democrática - a esfera de autonomia individual seria
decisivamente amputada; mas também - e sem que isso signifique
qualquer ideia de funcional ização ou despersonalização dos direitos516 -

Esta dialéctica do jâ 11éio (relativamente à confiança no legislativo) e ainda ,uio (no


que se refere ao judicial) é pa11iculam1ente nítida, entre nós, no regime do chamado veto por
inconsti tucionalidade (art. 279.º da CRP): pronunciando-se o Tribunal Constitucional, em
sede preventiva, pela inconstitucionalidade de uma norma, deve o Presideme da República
obrigatoriamente vetá-la (aqui se manifesta a perda de confiança na omnipotência do
legislativo); porém, a vontade conjug:1da de uma maioria qualificada da Assembleia da
República c do Presideme da República supera a decisão jmídica do Tribunal Constitucio-
nal. vi:ibilizando a cnlrada cm vigor da nonn:i cnnsid~rada inconstitucional (onde se mani-
festa que o poder judicial ainda mio absorveu toda a confiança pt!rdida pelo legislador).
sis CASTANI !EIRA N EVES, A Re1•0/11çiio e o Direito, p,íg. 231.
516 Cfr., neste sentido, as fundadas reservas de J. C. V1E1RA DE ANDRADI! (Os direitos

J11nda111e11tais...• cit., págs. 63 e segs.) e GoMe:s CANOTILHO, ( Direito Co11sti111cio11a/, p,íg.


44 J) à chamada «teoria democrática» dos direitos fundamentais.
l
1
'J
1
(
208 Co111rib1110 para uma Teoria do Estado de Direito
' 1
'i
porque são radicalmente distintos o alcance e as margens de actuação
1
dos restantes direitos fundamentais num quadro democrático ou num
contexto autoritário tendencialmente desvalorizador da personalidade
1
1 individual.
Uma tal caracterização do Estado social de Direito significa, não
apenas que o princípio de socialidade te1J1de para o progressivo esta-
belecimento de uma democracia económica e social, mas, sobretudo,
e antes de mais, que as esferas de autonomia individual e dos direitos
fundamentais - enquanto fins e valores essenciais do Estado de Di-
reito - pressupõem a existência efectiva das regras da democracia
política, desde a Iivre eleição de uma assembleia representativa de
todos os cidadãos e a legitimação democrática de todos os órgãos de
poder ao reconhecimento do pluralismo partidário, direito de oposi-
ção e princípio da alternância democrática, bem como dos direitos de
participação política (nomeadamente o sufrágio universal e o direito
de associação), sem quaisquer discriminações de sexo, raça, i<lade,
convicção ideológica ou religiosa e condição económica, social ou
cultural5 17•
Com este alcance, o princípio democrático confere uma nova
inteligibilidade aos elementos do Estado de Direito e, desde logo,
legitima a recomposição verificada na divisão de poderes tradicional.
Assim, quer a autonomia do executivo quer o reforço da indepen-
dência e posição relativa do poder judicial se justificam à luz da
submissão básica de todas as funções estaduais à vontade democrática
livremente expressa.
De pressuposto do poder legislativo, a legitimidade democráti-
ca converte-se em fundamento de todo o edifício estadual e traduz-
-se, não apenas na necessidade de eleição democrática dos órgãos
representativos, mas também no aperfeiçoamento, racionalização
ou introdução de garantias que impeçam que as crescentes inter-
venções do Estado - e a consequente des-subalternização da Admi-
nistração, não mais considerada como «parente pobre dos três
poderes», mas como função imbuída da mesma intenção de «realiza-
ção da ideia material de direito» que caracteriza as funções legislativa

m Cfr., ncste senil·ct o, os· d.,versos textos e resoluções da Comisstio lntemacio11a/ de


Juristas (por todos, N1ALL MAcDERMOT, O Estado de Direito e a protecção dos direitos do
homem, Lisboa, 1975, págs. 10 e segs,).
1

' 1
\. J
.._.--
O Estado de Direito perante as novas exigência.1· de socialidade 209

e judicial518 - se transformem em decisões unilaterais de poder e


extravasem os limites do Estado de Direitos 19.
Nestes termos, o Estado social de Direito é indissociável da
estruturação democrática do Estado, o que, se por um lado exclui,
como veremos, a ideia de uma sua eventual antinomia ao Estado
democrático de Direito, rejeita igualmente, e desde logo, qualquer
possibi Iidade de caracterização como Estados sociais de Direito de
regimes onde não se verifique a existência de uma verdadeira demo-
cracia polftica~ 20•
Assim, se o Estado de Direito tem sido no século XX, por exigên-
cia da verificada assunção do novo princípio de socialidade, Estado
social de Direito, o Estado social de Direito é, por inerência da
natureza dos valores que prossegue, Estado democrático de Direito.

s18 Cír.. EHRHARDT SOARES. «Princípio da legalidade...». cit .• págs.189 e segs..


S19 É desta intenção que relevam institutos como a participação social na função
legislativa e na administração da justiça. a descentralização política e administrativa, a parti-
cipação dos administrJdos na estruturação e gestão da Administração Pública, bem como a
importância vital que assumem actualmente fom1:is políticas outrora subalternizadas, como
sejam o sistema de governo e o sistema eleitoral. Assim, se o sistema eleitoral se converteu
historicamente em charneira do sistema político, condicionando decisivamente a efectiva
democraticidade da representação e, consequentemente, a própria natureza do regime, tam-
bém o sistema de governo se constituiu modernamente cm base fundamental da racionaliza-
ção do Estado, dele dependendo o equilíbrio e a interdependência dos vários centros de
poder, bem como a legitimação do exercício do poder político por pane de órg!los nilo
eleitos.
'lll Em sentido contrário, entre nós. atribuindo ao regime do «Estado Novo» de 1933
o qualificativo de E.rwdo de Direito (com base no reconhecimento do princípio da legali-
dade e de urn «sistema judicialista») ou de Estado de Direito Social. cfr., respectivamente,
Jos~ CARi.OS MoRf.lRA, «O prindpio da legalidade na Administração", p:lgs. 405 e scgs.•
maxime pág. 408, e AI ONSO QUE1Rôl8ARBOSA OI: M CLO, «A liberdade de empresa e a Consti-
tuição», ili Uevisw de Direito e /:'.wulm Sociais. Jul.-Dez.• 1967, 11uui111e pág. 241, nota, ou
BALTAZAR REnr:u.o or: SousA, Estado Social. cit., p.ig. 27; no mesmo sentido, CAnRAL ou
MoNCADA (Filosofia do Direito e do Estado, li, Coimbra, 1966, págs. 209 e segs., marime
P~g. 212 e seg., nota 2) identifica o Estado-de-direito Social com os regimes autoritários de
«democracia orgânica».

b
<

210 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

4. O Estado social e democrático de Direito como Es tado


de Direito material aberto a uma pluralidade de concretizações

Tal como o temos vindo a caracterizar, o Estado de Direito da


nossa época é, por definição, social e democrático, pelo que, em
rigor, seria desnecessária, por pleonástica, a referida adjectivação.
Todavia, a sua utilidade reside na transparência com que elucida as
dimensões essenciais de uma compreensão actualizada do velho ideal
de limitação jurídica <lo Estado com vista à garantia dos direitos
fundam entais dos cidadãos521 • De facto, ela sugere imediatamente a
confluência, no mesmo princípio estruturante da ordem constitucio-
nal , de três elementos que poderíamos sintet izar por: a segurança
jurídica que resulta da protecção dos direitos fundamentais, a obriga-
ção social de configuração da sociedade por parte do Estado e a
autodeterminação c.Jemocrática521 •
E, se é certo que da compenetração destes três elementos resulta
a impossibilidade de uma interpretação que, no isolamento de cada
um deles, acabasse por afectar o sentido global do conjunto, importa
igualmente preservar a especificidade do contributo de cada um, sem
o que o verdadeiro alcance do princípio unitário não seria apreendido.
Nesta perspectiva, rejeitamos a diluição no princípio do Estado
social e democrático de Direito do primado da ideia de protecção da
autonomia e realização da personalidade individual que, em nosso
entender, constitui o núcleo fundamental e imprescindível de qual-
quer realização histórica do ideal de Estado de Direito523 •

m É essa aptidão que explica o sucesso de uma fórmula que, originariamente


utilizada por H . H ELLER em 1930 (no citado texto Rechrsstaar oder Dikrawr? H ELLER
utilizava em sentido complementar as expressões «Estado social de Direito» e «Estado
democrático de Direito»), obteve consagração constitucional na Lei Fundamental de Bona
de 1949 (cfr., os referidos arts. 20.º e 28.º) e tamb~m na Constituição espanhola de 1978
(no seu art. 1." define-se expressamente a Espanha como «Estado social e democrático de
direito»).
m Cfr., W o1.FOANG A ttENl)Ron,, Sociednd n11tago11ica..., cit., págs. 266 e scgs ..
523
Diferentemente, recusando as tentativas para encontrar «momentos decisivos» ou
isolar o «cerne» do conceito de Estado de Direito, cfr., G OMES CANOTII.IIO, Direito Consrir11-
cio11a/, maximc págs. 280 e segs ..
Porém, será porventura nesta recusa que reside a tentação para dissolver a
especificidade do Estado de Direito no princípio do Estado democrtítico-consti111ciona/, a

-

1

1 212 Contributo para 11111a Teoria do Estado de Direito


1 1
não eleva a vontade popular democraticamente expressa a fonte
'1
incondicionada de poder absoluto, na medida em que acolhe a auto-
nomia individual e a dignidade da pessoa humana como limite origi-
l
!
nário do seu poder e valor vital e indisponível da ordem comunitária.
O Estado social e democrático de Direito apresenta-se, assim,
impregnado de uma intenção material que se revela fundamental-
mente na natureza dos valores que prossegue e na dimensão social
da sua actividade, mas não menos no carácter metapositivo dos vín-
culos que o limitam.
Com efeito, e em primeiro lugar, é a protecção dos direitos
fundamentais que justifica o objectivo de limitação do Estado, pelo
que a certeza e a segurança jurídica e as técnicas formais que lhes
vêm associadas só cobram verdadeiro se ntido e são susceptíveis de
ser consideradas como valores a se desde que integradas, vinculádas
e subordinadas à realização da axiologia material implicada na digni-
dade da pessoa humana.
Em segundo lugar, a intenção material ocupa o cerne da dimen-
são social do Estado de Direito, na medida em que a promoção das
condições objectivas do desenvolvimento da liberdade e personalidade
individuais constitui, simultaneamente, e por si mesma, um momento
decisivo de realização de igualdade e justiça material na sociedade
dos nossos dias52~.
Por último, aquela axiologia impõe-se como limite originário e
transcendente ao poder do Estado no seu conjunto, com o que se
afastam liminarmente os pressupostos da redução formalista do Estado
de Direito, ou seja, a concepção dos direitos subjectivos públicos
como criação do Estado que, num processo de autolimitação, demar-
cava legislativamente as esferas individuais que a Administração se
obrigava a respeitar. Pelo contrário, o Estado social e democrático de
Direito reconhece na autonomia individual e nos direitos fundamen-
tais uma força vincul ante que, independentemente dos fundamentos
filosóficos, políticos ou ideológicos invocados, afecta não só a Admi-
nistração e o conjunto dos poderes constituídos, mas que se impõe
materialmente ao próprio poder constituinte originário. Assim, o poder

m Cfr., assim, JORGE DE F1GUl!IREOO D1AS, «Direito Penal e Estado-de-direito material»,


Revista de Direito Penal, n.0 31, 1981, págs. 39 e segs., e CASTANHEIRA NEvf.S, O /11sti111to
i11
dos «assentos» ... , cit., págs. 133 e seg. e 143 e scg..
1
O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 213

de autodeterminação democrática da sociedade no Estado de Direito


inscreve-se origin:hia e obrigatoriamente nos limites demarcados por
aquela vinculação material.
Nestes termos, o Estado de Direito actual - enquanto síntese das
três dimensiks que se recolhem na fórmula Estado social e democrá-
tico de DireilV - revela-se cm toda a sua extensão como Estado de
Din:ito material.
Note-se, porém, que uma tal caracterização não pode, em nosso
entender, justificar a pretensão de determinar unilateral, abstracta e
definitivamente a ordem de valores que exprima a intencionalidade
material do Estado de Direito para, a partir dela, hipostasiar uma
dada ordem jurídico-política c retirar legitimidade ris suas eventuais
transformações 515 •
Pelo contr,hio, reconhecida a dignidade da pessoa humana, o
livre desenvolvimento da personalidade e os direitos fundamentais
como princípios básicos da convivência social e objectivos da limita-
ção jurídica do Estado - e esse é o único ponto fechado na caracteri-
zação material do Estado de Direito -, ficam por determinar, não só
as modalidades de garantia institucional daqueles objectivos (variá-
veis em função de inúmeros factores, desde a complexidade da situa-
ção concreta à tradição histórica e cultural e à natureza do tipo de
sistema jurídico526) como, no que agora nos interessa, o sentido da
concretização política que se proponha realizar aqueles valores.
É exactamente neste plano que a dimensão democrática do Es-
tado de Direito adquire a maior relevância, já que, numa sociedade
politicamente heterogénea, pluralista, atravessada por profundos con-
flitos sociais e dissenções ideológicas, não se pode pretender - a não
ser recorrendo a soluções autoritárias, excluídas por definição - chegar
ª uma decisão unívoca e consensual sobre esta matéria. Um acordo
mínimo só é possível em torno da remissão deste problema (o da
determinação da forma política mais adequada a realizar a axiologia
da dignidade da pessoa humana) para a decisão popular d~mocratica-

321
. Cfr, neste sentido, as reservas formadas por GoMES CANOTILHO, Direito Constit11-
c,ona/, págs. 280 e segs..
~~ Con1udo, para uma recensão desenvolvida dos clemenlos e princípios componen-
tes do
287 >
Estad
: o d~ o·1rc110,
· cfr., entre nós, GOMES CANOTILHO, D'irelfo
· Const11uc,ona
. . 1. pags.
,
1: segs .• e. amda, JORGE MIRANDA. A Constituição de /976. pág. 476. e MARCELO R EBELO
DESous,' • o·1re1to
· Co11stit11cio11a/, maxime págs. 300 e segs..
<

214 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

mente expressa nos seus momentos constituinte (originário e derivado)


e constituído 527•
De fac to, superada a concepção que, na recondução global e
última do sistema de direitos fundamentais ao direito de propriedade,
identificava o Estado de Direito com o Estado burguês (cfr. supra,
VI.2.), o Estado social de Direito afirma-se corno quadro aberto a
uma pluralidade de concretizações, na medida em que, sem prejuízo
da comum intenção de realizar os valores da autonomia individual, a
exigência de socialidade é susceptível de, a seu modo, ser realizada
em cada uma das seguintes variantes: num Estado que, assumindo a
concepção da sociedade como um objecto carente de conformação,
reduz a intervenção económica e social a um mínimo compatível
com a manutenção do statu quo e a repartição de bens existente
(«neo-capitalismo liberal»); num Estado que se proponha influenciar
profundamente a distribuição de bens e o funcionamento dos meca-
nismos de mercado, sem transformar a natureza essencial das rela-
ções de produção e o regime jurídico da titularidade privada dos
meios de produção (<<capitalismo social»); num Estado que faça da
reconstrução sistemática dos fundamentos económicos e sociais da
comunidade, em ordem à socialização progressiva dos meios de pro-
dução, condição e pressuposto da realização integral da intenção de
socialidade e dos direitos fundamentais do homem («democracia social»
ou «socialismo democrático»).
Dúvidas legítimas se podem levantar quanto à oportunidade da
inclusão da primeira variante («neo-capitalismo liberal») nos quadros
do Estado social de Direito, na medida em que o «Leitmotiv» das
teorias neo-liberais que patrocinam esta via é exactamente a resistên-
cia ao novo leviathan que emergiria do Estado-Providência52s.

521
O que não significa, note-se, a recondução da legitimidade ao processo, na medida
em que o sentido da decisão se legítima externamente, como vimos, na intenção de realizar a
justiça material na vida da comunidade.
528 A nossa opção fundamenta-se, porém, nas seguintes razões: em primeiro lugar,

aquela resistência é feita em nome dos princípios da liberdade individual e do Estado de


Direito, pelo que a polémica se reduziria à posição relativa face ao princípio de socialidade.
Ora. não obstante a importância do seu posicionomcnto como critfoo de interpretação do
princípio do Estado de Direito neste tipo de Estados, não nos parece que a postura nco-
-liberal exclua absolutamente a assunção do princípio de socialidade. Desde logo, porque o
neo-líberalismo abandona o pressuposto liberal do Estado-gendarme garante de uma ordem

d
O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 215
r
1
Mas, é obviamente a última concretização («socialismo demo-
crático») que tem suscitado maior polémica, contra ela se renovando
os argumentos já esgrimidos relativamente à tentativa de compatibili-
zar Estado de Direito e Estado social. Tudo se reconduziria, em geral,
à alegada impossibilidade de conciliar a propriedade social dos meios
de produção com a garantia dos direitos fundamemais e, logo, o
socialismo com o Estado de Direito e, por definição, com o Estado
social de Direito.
Porém, tal como referimos (supra, VI.2.), na raiz desta concep-
ção - independentemente das diferenças políticas, por vezes radicais,
entre os seus defensores529 - está sempre o a priori ideológico que
identi fica direitos fu ndamentais do homem com inviolabilidade da
propriedade privada dos meios de produção. Pelo contrário, na con-

identificada com o resultado natural do livre jogo das forças concorrentes no mercado;
diferentemente, o neo-libcralismo, partindo embora da concorrfü1cia como princípio regula-
dor da convivência social, atribui ao Estado a incumbência de assegurar os pressupostos
(políticos, económicos, ideológicos, culturais) do livre jogo daquelas forças e daí o apelo
simultâneo à autoridade de um Estado forte, capaz de regular, organizar e proteger a concor-
rência. Por último, porque, e independentemente do discurso ideológico dos defensores do
neo-liberalismo, a intervenção social do Estado e a sua imbricação com a sociedade atingi-
ram um grau de desenvolvimento que impede, objectivamente, a rejeição absoluta do princí-
pio de socialidade, sob pena de rupturas que tomariam ingovemáveis as sociedades contem-
porâneas. Daí que estas con-entes sejam objectiva e subjectivamente impelidas a inscrever o
«seu» Estado mínimo numa íluidez de limites que impede o estabelecimento de uma nova
teoria de «Estado liberal» e permite a sua integração - com as reservas e dúvidas já admiti-
das - nos quadros do Estado social e democrático de Direito.
szy Curiosamente, na invocação desta pretensa incompatibilidade confluem, tanto as
correntes conservadoras que rejeitam o socialismo em nome do Estado de Direito (cfr., entre
nós, por todos, H. HóRSTER, /oc:. cit.), como as correntes radicais ele matriz marxista que, cm
"?me do socialismo, rejeitam o Estado de Direito ou, quando muito, o reduzem a uma
dimensão instrumental de combate «classista» (cfr., entre muitos, ULRICM K. PREuss, «Sul
contenuto di classe della teoria tcdesca dcllo Stato di diri110» e RuooLr W1ET11ôLTER, «Gli
intercssi dcllo St:ito di diritlo borghcse», ;11 L 'uso altematil'f> dei Diritto, 1, Roma-Bnri,
1973, respectivamente, págs. 15 e scgs. e 37 e segs.; J. R. CAPELw\, «Sobre cl Estado de
Dcrecho Yla democracia», in Mmeriales para la Critica de la Filosofia dei Est<1do, Barce-
~ona,!9~6. págs. 11 e segs.; coincidindo na atribuição de um caráctc~ «burguês>> ao Estado
e D1~etto, mas reconhecendo-lhe um papel positivo como instrumento da luta
emancipadora da classe operária, cfr., Lu1G1 F ERRAJOLI, Democracia autoritaria ... , cit., págs.
!
6 _e se~s.; CARLos PLASTINO, «État de Droit et droits de l'homme dans le capitalisme
P nphénque», i11 Proci:s, 1982, n.º 10, págs. 91 e segs.; CARLOS C,oo MARTIN, «Estado y
Estado de Derecho en el capitalismo dominante...», cit., págs. 117 e segs.).
t

1
i
1
q

216 Contributo para uma Teoria do Estado de Direito

cepção que propugnamos, o sentido «natural» do direito de proprie-


dade dos meios de produção não vai além da extensão e alcance que
lhe sejam conferidos pela decisão democrática da comunidade e dos
limites que esta lhe imponha, posto que uns e outros se determinem
sempre pelo interesse vital de proteger a dignidade da pessoa humana
e gamntir as condições do livre desenvolvimento da sua personalidade530•
Com este sentido, o Estado social e democrático de Direito é um
quad ro impregnado de uma intenção materia l aberta a uma
pluralidade de concretizações, entre as quais se desenvolve a tensão
conflitual inerente aos diferentes programas políticos e interesses so-
ciais que nelas se consubstanciam.
Tal como o Estado de Direito liberal se compatibili zava com
diferen tes. e por vezes opostas, formas de governo (desde a monar-
quia lim itada germân ica ao governo representativo francês, britânico
ou norte-americano), também o Estado social e democrático de Direi-
to comporta - por maioria de razão, dada a complexidade,
heterogeneidade e pluralismo da sociedade contemporânea -, e sem
prejuízo ela sun re levância como princípio estruturante da ordem
constitucional, a possibilidade de ser actuado em diferentes quadros
políticos5J 1•

s30 De resto. era já esta possibilidade de ,Jessacralizaçâo ou desfimdame11talização


do direito de propriedade dos meios de produção que vinha implicada na construção origi-
nária de Esrndo social de Direiro proposta por H ERMANN H ELLER em 1930, quando caracteri-
zava a «democracia social do proletariado» como «a extensão do pensamento de Estado de
Direito material à ordem do trabalho e dos bens» (Rechtsstaat oder Diktawr?, cit., pág. 11 ).
No mesmo sentido admitia L r:oAZ v LACAMURA, em 1933 («EI Estado de Derecho cn la
actualidad». cit., p,íg. 751 ). a extensão da ideia de Estado de Direito ao contexto de um
,<liberalismo proletário» onde fossem aÍlrmados «os direitos vitais da classe trabalhador:1>>,
pois, como dizia, «a ideia do , alor supremo da pessoa, com a sua liberdade e dignidade,
valer..í sempre como um ideal absolutamente válido».
m Daqui se conclui que rejeitamos tanto a teoria que confina o Estado de Direito ao
regime económico capitalista como a que pretende exprimir numa nova fórmula a
compatibilização do Estado de Direito com um regime que tenha estabelecido ou se propo-
nha realizar a predominância da propricuade social dos meios de produção. Discordamos,
assim. da teoria proposta por EuAs DtAZ (Estado dl' Derecho y Societlad Democratica. cit.,
passim, 111axi111e p,ígs. 127 e segs.) e adoptada por outros autores (cfr., L UCAS V ERDÚ, La
/11cha por e/ Esratlo tle Dereclto, págs. 134 e scgs. e 144 e segs.). segundo a qual aquela
compatibilização se traduziria na fórmula «Estado democrático de Direito».
Diríamos que. por um lado, E. DIAZ acaba por incorTcr num vício afim daquele que
justamente denuncia nos seus «críticos esquerdistas,, (cfr., «EI Estado democratico de

d
O Estado de Direito perante as novas exigências de socialidade 211

Importa, por último, salientar que, não se coadunando esta aber-


tura com a consideração das possíveis concretizações do Estado social
e democrático de Direito como modelos definitivos e estanques
_ tanto mais que à mobilidade e reversibilidade da decisão democrá-
tica vão associadas as possibilidades, ou mesmo exigências, da tran-
sição gradual e do compromisso -, tão pouco ela pode significar a
subvalorização das substanciais diferenças que se exprimem sob a
comum intenção de realizar a justiça material e a emancipação do
homem, pois, ainda que não se traduzam imediatamente em diferen-
tes institutos de garantia dos direitos fundamentais, sempre terão de
ser tidos em conta enquanto critérios decisivos de interpretação da
natureza, sentido e alcance desses direitos.
Nestes termos, a caracterização de um Estado como «social e
democrático de Direito» - independentemente da consagração cons-
titucional desta ou outra fórmula - não esgota nem consome o traba-
lho do intérprete, antes o remetendo, inevitavelmente, para a necessi-
dade de esclarecer o sentido que nesse Estado cobram a intenção de
socialidade e a dignidade da pessoa humana. Dir-se-ia, então, que no
termo do percurso o princípio se veria carecido de um sentido
unívoco operativo. Mas, ao contrário, são exactamente os atributos
de polissemia, sentido polémico e abertura - que acompanham o
Estado de Direito desde o seu nascimento - que têm estimulado a

Derecho y sus cri1icos izquierdistas», ;,, Legalidad-legirimidad e11 e/ Socialismo Democrá-


tico, Madrid, 1977, págs. 169 e segs.), ou seja: tal como aqueles identificavam «Es1ado de
Direito» com «Estado burguês», EuAS D1AZ identifica, infundadamen1e, «Estado social de
Direito» com «neo-capi1alismo» e daí a necessidade de uma nova íónnula para exprimir a
integração do Estado de Direito num contexto político e económico socialista.
Por outro lado, esta teoria acabaria por produzir efeitos políticos inversos aos que
propugna, na medida em que aquela redução, a ser aceite, inibiria uma interpretação da
fórmula «Estado social e democrático de Direito» (consagrada pela Lei Fundamental de
Bona e, curiosamente, pela Constituição espanhola de 1978) num sentido compatível com a
reestruturação socialisla dos fundamentos económicos da sociedade, já que «condenara»
previamente o Estado social de Direito aos limites do capitalismo. Por último, procurando
traduzir pela expressão «democrático>> o princípio da socialização dos meios de produção -
para o qual não está especial ou exclusivamente vocacionada - , esta teoria recusaria a
q_ualificação de «Estados democráticos de Direito» a Estados de Direito que acolhem, noto-
na~ente, as regras essenciais da democracia política (vd., a Espanha ou a R.F.A.), com
l1
preJuízo evidente da clareza e operatividade daqueles conceitos.
1
!
l
f
.•
l
-
218 Co11tri[Juf0 para uma Teoria do Estado de Direito

revitalização do conceito ao longo de um trajecto de mais de cem


anos e lhe garantem uma renovada actualidade.
Pode, assim, o Estado social e democrático de Direito - enquanto
conceito que exprime a li mitação e vinculação jurídica do Estado
com vista à garantia dos direitos fundamentais do homem e à promo-
ção das condições do livre e autónomo desenvolvimento da personali-
dade individual - acolher e integrar j uridicamente as transformações
económicas e sociais democraticamente decididas e, com tal alcance,
constituir-se em princípio estruturante da ordem constitucional das
sociedades democráticas contemporâneas.

-- 1
p

BIBUOGRAFIA

Incluem-se nesta bibliografia todas as obras efectivamente utilizadas e que, directa ou


indirectamcnte, encontraram de alguma fonna recepção no nosso texto. Não se trata, portan-
to, de uma bibliogralia sobre o «Estado de Direito>> - sobretudo porque dela não constam as
inúmeras e importantes obras que têm sido publicadas sobre o tema em língua alemã e que.
ii. excepção do texto de H EmtANN HEU.ER. Rcchtsstaat odu Diktatur?. apenas cunsultámos
quando dispusemos das respectivas traduções -, mas sim de uma referência completa de
todos os materiais que utilizámos e que, na sua totalidade, foram já citados abreviadamente
nas notas de rodapé.

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