Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Q
um comentário sobre o evangelho de Mateus precisa
apresentar boas razões para isso.
10-13776 C D D - 226.207
ISBN 978-85-8038-005-7
Prefácio .................................................................................................................... 7
Abreviações ............................................................................................................ 9
Introdução.............................................................................................................17
C om entário........................................................................................................... 83
Prefácio
O título desta obra define seu propósito. Escrita principalmente por um ex
positor para expositores, ela tem o objetivo de fornecer aos pregadores, professores
e alunos da Bíblia um novo e abrangente comentário sobre o livro de Mateus. A po
sição do livro é a do evangelicalismo acadêmico comprometido com a inspiração
divina, com a completa confiabilidade e total autoridade da Bíblia.
Nenhum livro foi estudado com mais atenção nem por um período de tempo
mais longo que a Bíblia. As Escrituras são explicadas desde os comentários midrash,
remontando ao período de Esdras, como observamos por intermédio de partes
dos pergaminhos do mar Morto e da literatura patrística e até chegar aos dias de
hoje. N a verdade, há momentos, como na Reforma e outras ocasiões desde essa
época, em que a exposição está na vanguarda do avanço cristão. Lutero era um
exegeta poderoso, e Calvino ainda é chamado de “o príncipe dos expositores”.
São muitos os sucessores deles. E, agora, com o surgimento de novas traduções
e com sua circulação sem paralelos, expandiu-se o público leitor da Bíblia, a
necessidade de exposição bíblica impõe nova urgência.
Não que a Palavra de Deus possa ficar cativa de seus expositores. A Bíblia, entre
todos os outros livros, destaca-se à frente em sua combinação de perspicuidade e
profundidade. Embora uma criança possa se tornar “sábia para salvação” ao acreditar
no testemunho da Bíblia de Jesus, as mentes mais excelentes não conseguem perscru
tar as profundezas da verdade dela (2Tm 3.15; Rm 11.33). Como Gregório, o
Grande, disse: “A sagrada Escritura é um rio de água viva no qual o elefante pode
nadar da mesma maneira que o cordeiro pode caminhar”. Portanto, em vista da ine
xaurível natureza da Escritura, a tarefa de esclarecer seu sentido ainda é uma obrigação
perene do estudo bíblico acadêmico.
Como essa tarefa é feita, inevitavelmente, reflete a perspectiva dos que estão en
volvidos nela. Cada estudioso bíblico adota pressuposições. Nesse aspecto, nem os
editores nem o colaborador deste volume são exceção. Eles compartilham um com
promisso em comum com o cristianismo sobrenatural exposto na Palavra inspirada.
O objetivo deles não é suplantar os muitos valiosos comentários que precederam
esta obra e com os quais os editores e colaboradores aprenderam. Esta obra, antes,
inspira-se nos recursos do estudo evangélico acadêmico contemporâneo para produzir
uma nova obra de referência para a compreensão da Escritura.
Um comentário que permanecerá útil ao longo dos anos deve lidar com as
tendências do estudo bíblico de maneira a não se tornar ultrapassado quando
ocorrem mudanças críticas de padrão. A crítica bíblica não é inadmissível em si
mesma como alguns acreditam erroneamente. Quando os estudiosos investigam
a autoria, data, características literárias e propósito de um documento bíblico,
eles estão praticando a crítica bíblica. Portanto, eles, a fim de determinar a forma
do texto o mais próximo possível da forma original, também lidam com leituras
variantes, erros de escrita, emendas e outros fenômenos dos manuscritos. Fazer isso
é essencial para a exegese e a exposição responsáveis. E sempre há a necessidade de
distinguir hipótese de fato, conjectura de verdade.
O principal princípio de interpretação seguido neste comentário é o gramático-
histórico — a saber, de que o objetivo primário do exegeta é deixar claro o sentido
do texto na época e na circunstância em que foi escrito. Esse esforço para, em
primeiro lugar, entender exatamente o que o escritor inspirado disse não deve ser
confundido com literalismo inflexível. A Escritura faz abundante uso de símbolos
e figuras de linguagem; grandes porções destas são poéticas. Contudo, a Bíblia,
nessas porções, não fala menos verdade que nas porções históricas e doutrinais.
Entender a mensagem dela exige atenção às questões de gramática e de sintaxe,
sentidos da palavra e das formas literárias — tudo em relação ao ambiente histórico
e cultural do texto.
O Comentário bíblico de Mateus é apresentado como uma obra acadêmica,
embora não seja principalmente uma obra de crítica técnica. Na exposição, em sua
porção principal, todas as palavras gregas e hebraicas são transliteradas e é fornecida
a tradução equivalente. Como nas Notas, aqui, os caracteres semíticos e gregos são
usados, mas sempre com a transliteraçao e o sentido em português, a fim de que essa
porção do comentário seja o mais acessível possível para os leitores não familiarizados
com as línguas originais.
E convicção que, ao escrever sobre a Bíblia, a lucidez não é incompatível com
a erudição. Por essa razão, o esforço é para tornar esta obra clara e compreensível.
A tradução bíblica usada é a Nova Versão Internacional. Agradecemos à Socie
dade Bíblica Internacional pela autorização para usarmos essa mais recente das prin
cipais traduções bíblicas. O editor escolheu essa versão por causa da clareza e beleza
de seu estilo e de sua fidelidade aos textos originais.
Independentemente do que a Bíblia seja — o maior e mais belo dos livros, a
origem primária da lei e da moralidade, fonte de sabedoria e guia de vida infalível
— ela é, acima de tudo, o testemunho inspirado de Jesus Cristo. Que esta obra
possa cumprir sua função de esclarecer a Escritura com graça e clareza, a fim de
que seus usuários descubram que, toda Escritura, de fato, leva a nosso Senhor
Jesus Cristo, o qual é o único que poderia dizer: “Eu vim para que tenham vida,
e a tenham plenamente” (Jo 10.10).
Frank E. Gaebelein
Abreviações
A. Abreviações gerais
APÓCRIFOS
1. A crítica de Mateus
2 . História e teologia
3. O problema sinótico
4. Unidade
5. Autoria
6. Data
7. Lugar de composição e destino
8. Motivação e Propósito
9. Canonicidade
10. Texto
11. Temas e problemas especiais
a. Cristologia
b. Profecia e cumprimento
c. Lei
d. Igreja
e. Escatologia
f. Os líderes judeus
g. Missão
h. Milagres
i. A compreensão e a fé dos discípulos
12. Gênero literário
a. Evangelho
b. Midrash
c. Vários gêneros
13. Bibliografia
a. Comentários selecionados sobre Mateus
b. Outras obras selecionadas
c. Artigos selecionados
d. Material não publicado
14. Estrutura e esboço
Mapas
1. A crítica de Mateus
Os primeiros pais da igreja, ao mencionar esse evangelho, concordam que o
autor foi o apóstolo Mateus. A famosa declaração de Papias (cf. seção 3) foi
Introdução 18
2 Para uma história conveniente da crítica de Mateus até esse ponto, veja, além de algumas
das principais introduções, W. G. Kümmel, The New Testament: The History of the
Investigation ofIts Problems (trad. S. McL. Gilmour e H. C. Kee [Nashville: Abingdon,
1972 e London: SCM, 1973]); Stephen Neill, The Interpretation of the New Testament
1861-1961 (London e New York: Oxford University Press, 1964).
Introdução 20
4 Veja, por exemplo, B. F. Meyer, R. Latourelle, FindingJesus Through the Gospels, trad. A.
Owen (New York: Alba, 1979); e escritos mais recentes de estudiosos como M. Hengel,
J. Roloff, H. Schürmann e P. Stuhlmacher.
5Os vários períodos descritos não estão totalmente desconectados uns dos outros, e alguns
correm contra a tendência da corrente acadêmica. De perspectivas um tanto distintas
distintas, Schlatter e Stonehouse (Witness of Matthew [Testemunho de Mateus]) antecipam
os elementos mais úteis e confiáveis da crítica da redação, apontando os temas distintivos
do evangelho de Mateus com cuidado e precisão deliberados. Por outro lado, quando
Hendriksen, já em 1973, produziu seu extenso comentário sobre Mateus, ele levou
relativamente em pouca consideração desenvolvimentos recentes, contudo sua obra,
sem dúvida, é uma ajuda considerável para pastores. Compare também as posições inde
pendentes de Maier, de Albright e de Mann.
6 Para essas questões e outras semelhantes, veja, em especial, E. E. Cairns, God and Man in
Time: A Christian Approach to Historiography (Grand Rapids: Baker, 1979); G. H. Clark,
Historiography: Secular and Religious (Nutley, N.J.: Craig, 1971); C. T. McIntyre, ed.,
God, History and Historians: An Anthology of Modern Christian Views of History (New
York: Oxford University Press, 1977); J. A. Passmore, “The Objectivity of History”,
PhilosophicalAnalysis and History, ed. W. H. Doty (New York: Harper and Row, 1966),
p. 75-94; W C. Smith, Beliefand History (Charlottesville: University Press of Virginia,
1977); e A. C. Thiselton, The Two Horizons (Grand Rapids: Eerdmans, 1980).
7 Contraste G. Vos, The SelfDisclosure ofJesus: The Modern Debate About the Messianic
Consciousness (Grand Rapids: Eerdmans, 1954) e G. Vermes, Jesus theJew: A Historians
Reading of the Gospels (London: Collins, 1973).
8 Cf. H. Palmer, The Logic of Gospel Criticism (London: Macmillan , 1968), p. lss; B. F.
Meyer, esp. p. 76-110; Gundry, UseofOT, p. 189ss.
Introdução 22
13 Cf. esp. R. T. France, “The Authenticity of the Sayings of Jesus”, History, Criticism and
Faith, ed. C. Brown (Downers Grove, 111.: IVP, 1976), p. 101-43; R. H. Stein, “The
‘Criteria’ for Authenticity”, France and Wenham, 1:225-63; Hengel, Acts and History,
esp. p. 3-34.
14 Em particular, cf. H. Riesenfeld, “The Gospel Tradition and its Beginnings”, Studia
Evangélica 1 (1959), p. 43-65; B. Gerhardsson, Memory and Manuscript: Oral Tradition
and Written Transmission in Rabbinic Judaism and Early Christianity (Lund: C. W. K.
Gleerup, 1961).
15A saber, Davies, Setting, p. 464ss; Peter H. Davids, “The Gospels and Jewish Tradition:
Twenty Years After Gerhardsson”, France and Wenham, 1: 75-99.
16E. Güttgemanns, Candid Questions Concerning Gospel Form Criticism, trad. W. H. Doty
(Pittsburgh: Pickwick, 1979).
17 Cf. esp. E. E. Ellis, “New Directions in Forma Criticism”, Strecker, Jesus Christus, p.
299-315; baseando-se em boa parte na análise sociológica que provoca o raciocínio de
H. Schiirmann, “Die vorösterlichen Anfänge der Logientradition”,
Traditionsgeschichtliche Untersuchungen zu den synoptischen Evangelien (Düsseldorf:
Patmos, 1968), p. 39-65.
25 Introdução
21 Ibid.
22 Para uma discussão geral dessa difícil questão, veja as introduções ao Novo Testamento
e também a literatura citada abaixo. Para argumentos contra a percepção de que o
Mateus canônico usa a tradução do grego, cf. também Nigel Turner, Style em J. H.
Moulton, A Grammar ofNew Testament Greek, vol. 4 (Edinburgh: T & T Clark, 1976),
p. 37-38.
Introdução 28
23 Para discussão, cf. Donald Guthrie, New Testament Introduction, 3a ed. (Downers Grove,
111.: IVP, 1970), p. 34-37.
*[N.T.] Citações descontextualizadas para estabelecer um pressuposto.
24 Cf. J. R. Harris, Testemonies, ed. rev., 2 vols. (Cambridge: University Press, 1920); F. C.
Grant, The Gospels: Their Origin and Their Growth (New York: Harper, 1957), p. 65,
144.
25 Entre outros, C. S. Petrie, “The Authorship o f‘The Gospel According to Matthew’: A
Reconsideration of the External Evidence”, NTS 14 (1967), p. 15-32.
26J. Kürzinger, “Das Papiaszeugnis und die Erstgestalt des Matthäusevangeliums”, Biblische
Zeitschrift 4 (I960), p. 19-38; id. “Irenaus und sein Zeugnis zur Sprache des
Matthäusevangeliums”, NTS 10, (1963), p. 108-15. O argumento acima diverge de
Kürzinger em um ou dois pontos de menor importância.
29 Introdução
seu evangelho na forma literária semítica (i.e., judaico-cristã) dominada por temas
e artifícios semíticos. Nessa percepção, a última oração da declaração de Papias
não pode se referir à tradução, uma vez que a linguagem não está mais em vista.
Kürzinger sugere que Papias, logo antes da sentença dele sobre Mateus, descreve
como Marcos compôs seu evangelho ao registrar o testemunho de Pedro; e, lá,
Marcos é chamado o hêrmêneutês de Pedro. Isso não pode querer dizer que Marcos
era tradutor de Pedro; mas que “interpretou” ou “transmitiu” (nenhuma dessas
palavras é ideal) o que Pedro disse. Se o mesmo sentido for aplicado ao verbo
cognato da declaração de Papias a respeito de Mateus, então pode querer dizer
que todos “transmitiram” ou “interpretaram” o evangelho de Mateus para o mundo,
como ele foi capaz de fazer.
E difícil decidir que interpretação está correta. Poucos ainda defendem que
todo o evangelho de Mateus foi primeiro escrito em aramaico.27 Essa percepção
explica melhor a linguagem de Papias, mas não é fácil reconciliá-la com o grego
de Mateus. Por que, por exemplo, ele, às vezes, usa uma fonte grega como a LXX?
Não se pode argumentar que o suposto tradutor decidiu usar todas as citações do
Antigo Testamento da LXX a fim de se poupar algum trabalho, pois só algumas
delas são da LXX. Se essa interpretação da declaração de Papias não se sustenta,
então Papias não oferece apoio para a precedência de Mateus.
As outras duas interpretações possíveis de Papias são problemáticas. A
percepção de que Papias se referia a Q ou a alguma parte dele oferece a tradução
mais fácil de hebraidi dialektô (“na língua hebraica [aramaica]”), mas fornece uma
tradução implausível para logia. A solução de Kürzinger fornece a tradução mais
crível de logia (a saber, Mateus canônico), mas uma interpretação menos provável
para hebraidi dialektô (“na forma literária semítica”). Apesar de essa tradução ser
possível (cf. LSJ, 1:401) e fazer sentido com o todo, mesmo assim a percepção de
Kürzinger não foi bem recebida. O ponto importante é que uma dessas duas
últimas percepções se ajustam facilmente com a teoria da precedência de Marcos,
o que também pode ser deduzido do fato de Papias, conforme Eusébio o preserva,
discutir extensamente Marcos antes de se voltar rapidamente a Mateus.
A evidência do próprio Novo Testamento, bastante à parte do testemunho de
Papias, exige algumas decisões, embora experimentais, em relação ao problema
sinótico. Seus limites são bem conhecidos. Cerca de 90% do texto de Marcos é
encontrado em Mateus, e com muita frequência Mateus concorda com a ordem
das perícopes de Marcos e com a linguagem deste (veja esp. M t 3— 4; 12— 28). As
perícopes de Mateus, com frequência, são mais condensadas que as de Marcos,
mas contêm um bom bocado de outro material, muito destes de discursos. Desse
material, cerca de duzentos e cinquenta versículos são comuns a Lucas e, mais
uma vez, a ordem é muitas vezes (mas, de maneira alguma, sempre) a mesma. Nos
dois casos, a linguagem, com frequência, é tão semelhante ao longo dessas passagens
longas que é impossível ver a fixação oral como uma explicação adequada. Algumas
dependências literárias são evidentes. Parece mais fácil sustentar a percepção de
que Mateus e Lucas dependem de Marcos, e não o contrário, em grande parte
porque Mateus e Marcos, muitas vezes, concordam em contraposição a Lucas, e
que Marcos e Lucas, muitas vezes, concordam em contraposição a Mateus, mas
Mateus e Lucas raramente concordam em contraposição a Marcos. Não é o
argumento da ordem em si mesmo que é convincente, pois tudo que ele prova é
que Marcos permanece no meio entre os outros dois. O que é mais impressionante
é que o estudo atento acha mais fácil explicar mudanças de Marcos para Mateus e
Lucas que o contrário.28 A hipótese das duas fontes, a despeito de sua fragilidade
— qual, por exemplo, é a melhor explicação para as consideradas concordâncias
menores de Mateus e Lucas em contraposição a Marcos se Mateus e Lucas
dependem de Marcos? — ainda é mais defensável que qualquer uma das outras.29
Antes de indicar algumas das implicações históricas e interpretativas dessa
percepção, deve-se comentar as principais alternativas.
1. A alternativa mais comum é alguma forma da hipótese de Griesbach.30
Essa hipótese argumenta pela precedência de Mateus, pela dependência de Lucas
de Mateus (de acordo com alguns), e Marcos como resumo de Mateus e de Lucas.
A despeito das defesas cada vez mais sofisticadas dessa posição, ela permanece
implausível. Parece altamente improvável que algum escritor, isso para não
mencionar um escritor do século I como Marcos, tomaria dois documentos (nesse
caso Mateus e Lucas) e os analisaria com tanto detalhe a ponto de escrever um
resumo de praticamente cada palavra das fontes — resumo esse vívido, vigoroso e
não artificial (conforme Hill, Matthew [Mateus], p. 28, citando a obra de E. A.
Abbott em EBr 1879). A impressionante lista de analogias literárias compilada
por Frye,31 que argumenta que Marcos deve ser secundário porque é muito mais
conciso que Mateus e Lucas e que os paralelos literários confirmam que os escritores
dependem muito das fontes escritas para resumir suas fontes, na verdade, confunde
sua conclusão, pois no ponto em que ele segue Marcos, o relato de Mateus é quase
28 Cf. Christopher M. Tuckett, “The Argument from Order and the Synoptic Problem”,
Theologische Zeitschrift 36 (1980), p. 338-54.
29Além das introduções padrão do Novo Testamento, cf. esp. Stonehouse, Origins, p. 48-
77, e o apêndice de G. M. Styler na edição revisada, ainda no prelo, de Moule, Birth of
NT.
30Dessa crescente bibliografia, deve-se fazer menção particular a W. R. Farmer, The Synoptic
Problem (Dillsboro, N.C.: Western North Carolina Press, 1976); David L. Dungan,
“Mark—The Abridgement of Matthew and Luke”, Jesus and Mans Hope (Pittsburgh:
Pittsburgh Theological Seminary, 1970), p. 51-97; H. H. Stoldt, Geschichte und Kritik
des Markushypothese (Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1977); e diversos ensaios
em J. J. Griesbach: Synoptic and Text-Critical Studies 1776-1976, eds. B. Orchard e
Thomas R. W. Longstaff (Cambridge: University, 1978).
31 Roland Mushat Frye, ‘The Synoptic Problems and Analogies in Other Literatures”, The
Relationships Among the Gospels: An Interdisciplinary Dialogue, ed. W. O. Walker Jr.
(San Antonio: Trinity University Press, 1978), p. 261-302.
31 Introdução
sempre mais curto. Sua maior extensão total — e até mesmo as ocasionais perícopes
mais longas de Mateus — sempre vêm de material novo acrescentado a ele da
fonte de Marcos. Assim, Frye, inadvertidamente, apoia a hipótese das duas fontes.
Além disso, a hipótese de Griesbach vai contra outra evidência de Papias, que
insiste que Marcos escreveu seu evangelho com base em material de Pedro, não
por meio da condensação de Mateus e de Lucas (Eusébio, Ecclesiastical History
[História eclesiástica\, 3.39.15).
2. Gaboury e Léon-Dufour32 argumenta que as perícopes que preservam a
mesma ordem na tradição tripla (i.e., em Mateus, Marcos e Lucas) constituem
uma fonte primária sobre a qual foram construídos todos os três evangelhos sinóticos.
Contudo, pode-se demonstrar que, às vezes, os evangelistas escolhem arranjos tópicos
bem distintos de seus paralelos (e.g., veja caps. 8— 9); então por que deve se presumir
que todos os três escritores sinóticos escolhem convenientemente assumir essa suposta
fonte sem fazer nenhuma mudança nos arranjos tópicos?
3. Diversos estudiosos britânicos adotam a precedência de Marcos, mas negam
a existência de Q .33 Os paralelos entre Mateus e Lucas são explicados dizendo que
Lucas leu Mateus antes de compor seu evangelho. Isso é possível, mas se for verdade,
ele escondeu o fato extraordinariamente bem. Compare, por exemplo, Mateus 1—
2 com Lucas 1— 2. Gundry (.Matthew [Mateus]) sustenta a existência de uma
fonte Q um tanto expandida, mas também defende que Lucas usou Mateus — e
isso explica as “concordâncias menores” entre Mateus e Lucas. Todavia, essa
percepção, embora possível, está ligada na mente de Gundry com sua teoria de
que fontes compartilhadas por Mateus e Lucas incluem até mesmo assuntos como
a história do nascimento de Jesus, e isso é muito duvidoso.34
4. Rist35 rejeita a hipótese das duas fontes e a hipótese de Griesbach e defende a
independência de Mateus e de Marcos. Rist, como muitos outros o fazem, foca a
atenção em 4.12— 13.58, seção em que há inúmeras divergências de ordem entre
Mateus e Marcos. Ele examina uma pequena lista de passagens na tradição tripla em
que não só há muita similaridade verbal, mas também ordem idêntica e argumenta
que, em cada caso, a ordem ou é lógica ou é o resultado da memória, não da
dependência literária. Não obstante, Rist não avalia adequadamente a impressionante
32A. Gaboury, La structure des évangiles synoptiques (SuppNovTest 22; Leiden; Brill, 1970);
X. Léon-Dufour, “Redaktionsgeschichte of Matthew and Literary Criticism”, Jesus and
Mans Hope (Pittsburgh: Pittsburgh Theological Seminary, 1970), p. 9-35.
33 Como Green A. M. Farrer, “On Dispensing With Q”, em Nineham, Studies, p. 55-58;
Goulder. Essa é bem diferente de B. C. Butler (The Originality ofSt Matthew [Cambridge:
University Press, 1951]), que argumenta que Mateus era anterior, Marcos é um resumo
de Mateus, e Lucas depende de Mateus, para o que chamamos material Que, e de
Marcos, para o que Mateus e Marcos têm em comum.
34 Veja os caps. 1— 2 e D. A. Carson, “Gundry on Matthew: A Critical Review”, Trinity
Journal (1982), p. 71-91.
35 J. M. Rist, On the Independence of Matthew and Mark (Cambridge: University Press,
1978).
Introdução 32
lista de ocasiões em que Mateus concorda com a ordem de Marcos sem proximidade
de similaridade verbal. Essa ordem argumenta firmemente em favor de algum
tipo de dependência literária, não obstante a forma com as dissimilaridades verbais
sejam explicadas.
5. Outros, na esperança de manter viva a precedência de Mateus, argumentam
que o evangelho de Mateus foi primeiro escrito em aramaico; e este tornou-se a
fonte de Marcos, o qual, por sua vez, influenciou a tradução grega de Mateus.36
Isso é possível, mas já observamos que o testemunho de Papias não sustenta de
forma alguma um Mateus semítico. E permanece a improbabilidade linguística
de que o todo de Mateus foi escrito originalmente em aramaico.
H á outras soluções propostas para o problema sinótico, em geral, de enorme
complexidade.37 Contudo, as teorias não só sofrem da improbabilidade de alguns
de seus detalhes, como também elas, como um todo, são tão complexas quanto
improváveis.
A hipótese das duas fontes permanece a solução geral mais atraente. Isso nao
quer dizer que ela pode ser provada com certeza matemática nem que todos os
argumentos desenvolvidos em seu favor sejam convincentes.38 Todavia, alguns
detalhes têm muito peso. Gundry (Use ofO T [U so do AT\) mostra que as citações e
alusões do Antigo Testamento que Mateus e Marcos têm em comum são consis-
tentemente da LXX, ao passo que aquelas encontradas apenas em Mateus são tiradas
de várias versões e tradições textuais. É especialmente improvável que Marcos
estivesse resumindo Mateus, pois parece muita coincidência que, em uma coletânea
tão consistente de citações do Antigo Testamento de Mateus, só as da LXX coin
36 E.g., J. W. Wenham, n. 29; P. Benoit, L’Evangile selon Saint Matthieu, 4a ed. (Paris: du
Cerf, 1972), p. 27ss; Pierson Parker, The Gospel Before Mark (Chicago: University of
Chicago, 1953); L. Vaganay, Leproblem synoptique—une hypothèse de travail (Tournai:
Desclée, 1954). Um tanto similar é a percepção de J. A. T. Robinson (Redating the New
Testament [Philadelphia: Westminster, 1976], p. 97-98). Outros acham que o suposto
original semítico foi escrito em hebraico, e não em aramaico (e.g., Gaechter, Matthaus;
CÁrmignac, p. 33ss). J. Munck (“DieTradition über das Mt bei Papias”, Neotestamentica
et Semitica [SuppNovTest 6; Leiden: Brill, 1962], p. 249ss.) descarta todo o problema
ao supor que Papias estava errado e que a pressuposição anterior de uma fonte semítica
para Mateus se desenvolveu em conexão com a formação do cânon como uma forma de
resolver o problema sinótico. A proposta de Munck confunde conteúdo e proposta.
Mesmo se Papias e outros estivessem interessados em explicar as diferenças sinóticas
(ponto duvidoso), isso não quer dizer que os “fatos” deles estivessem historicamente
incorretos. Seria necessário demonstrar que eles inventaram os “fatos” a fim de oferecer
uma explicação.
37 E.g., J. C. O’Neill, “The Synoptic Problem”, NTS 21 (1975) p. 273-85; P. Benoit, M.
E. Boisward e A. Lamouille, Synopse des Quatre Evangiles en Français, 3 vols. (Paris: du
Cerf, 1977).
38 D. Wenham, “Synoptic Problem” (p. 8-17), expõe alguns dos argumentos mais fracos
— embora nem toda sua crítica seja igualmente notável.
33 Introdução
cidissem, tornando difícil acreditar nessa hipótese. O padrão é bem fácil de ser
compreendido, se for para Mateus depender de Marcos.39
Contudo, a hipótese das duas fontes em si mesma é, quase com certeza, simples
demais. Questões da crítica da fonte são muitíssimo complexas,40 muitas facetas
da questão exigem controle estreito.41 Além disso, o estudo atento convenceu
alguns estudiosos cuidadosos que a evidência não garante o grau de certeza com
que muitos defendem a hipótese das duas fontes.42 Essa incerteza é impopular,
mas raramente é mais científico ir além da evidência do que admitir a incerteza
no ponto em que a evidência não fornece uma base adequada para algo mais.
Essas hesitações são especialmente anátemas para críticos da redação radicais, pois
todo estudo importante de crítica da redação de Mateus fundamenta-se na hipótese
das duas fontes. O objetivo deles é descobrir como Mateus mudou Marcos.
Em vista da fragilidade inerente ao uso radical da crítica da redação e das
incertezas em torno da hipótese das duas fontes, este comentário adota uma posição
cautelosa. A hipótese das duas fontes é suficientemente crível para que não
hesitemos em falar das mudanças, adições e omissões de Mateus em relação a Marcos.
Mas essas declarações dizem pouco a respeito da historicidade e da antiguidade
relativa de tradições rivais (cf. B. F. Meyer, p. 71-72). Em algumas ocasiões, está
aparente que Mateus não só usou Marcos, mas usou Q (independentemente da
forma como Q é concebido), provavelmente outras fontes e talvez também sua
escrito por Marcos, o qual não era apóstolo nem (para todos os efeitos) testemunha
ocular. Além disso, as reconstruções do cenário da vida do Mateus canônico,
promovida pela crítica da redação, convergem para algum tipo de conflito judaico-
cristao brutal ocorrido em 80-100 d.C. E provável que seja um pouco tarde para
assumir a autoria de Mateus (embora as tradições digam que o apóstolo João
compôs seu evangelho em c. 90 d.C.); e os detalhes dos cenários reconstruídos
desencorajam essa noção. Kümmel (Introduction [Introdução] p. 121) argumenta
ainda que “a forma sistemática, portanto, não biográfica, da estrutura de Mateus,
a posição teológica apostólica tardia e a língua grega de Mateus tornam essa
proposta totalmente impossível” . Ele conclui que a identidade do primeiro
evangelista é desconhecida, mas que ele devia ser um judeu cristão de fala grega
com algum conhecimento rabínico que dependia de uma “forma da tradição de
Jesus que acomodasse potencialmente os ditos de Jesus para os pontos de vista
judaicos” (ibid.).
Hoje, esses motivos para rejeitar a autoria de Mateus são amplamente aceitos.
Assim, propostas alternativas surgiram. Kilpatrick (p. 138-39) sugere que a tradição
patrística primitiva que ligou o primeiro evangelho a Mateus surgiu como um
pseudônimo consciente dado pela comunidade da igreja que escreveu o evangelho
a fim de conquistar aceitação e autoria para este. Abel43 sustenta que o material
extra de Mateus é tão confuso e contraditório que devemos presumir que ele
representa o esforço de dois indivíduos trabalhando independentemente um do
outro. Diversos estudos de crítica da redação negam que o autor seja judeu, sentindo
que a antipatia em relação a Jesus apresentada pelo evangelho e o desconhecimento
da vida judaica são tão profundos que o autor devia ser um gentio cristão.44 Os
que acham que Papias se referia a Q o u a alguma outra fonte usada por Mateus,
com frequência, estão preparados para declarar que o apóstolo compôs a fonte, se
não compôs o evangelho (e.g., Hill, Matthew). Há muitas outras teorias.
As objeçÕes não são tão convincentes quanto parecem à primeira vista. Embora
o que o mundo moderno chama de “plágio” (a encampação por atacado de outro
documento, sem o reconhecimento disso) fosse uma prática literária aceitável no
mundo da Antiguidade, é difícil entender por que um apóstolo não pudesse
considerar essa prática apropriada. Se Mateus achasse o relato de Marcos confiável
e, no geral, apropriado ao seu propósito (e ele também podia saber que Pedro
estava por trás do relato de Marcos) não pode haver objeção à percepção de que
um apóstolo dependia de um documento não apostólico. A rejeição de Kümmel
da autoria de Mateus (Introduction [Introdução\ p. 121) com base no fato de que
a forma desse evangelho é “sistemática, portanto, não biográfica” não é uma
conclusão lógica porque (1) um relato ordenado por tópicos pode permitir fatos
45 Não poucas biografias modernas tratam determinadas partes da vida de seu sujeito em
arranjos tópicos, e.g., A. Fraser, Cromwell: Our Chiefof Men (St. Albans: Panther, 1975),
esp. p. 455ss.
46 C. F. D. Moule, “St. Matthew’s Gospel: Some Neglected Features”, Studia Evangélica 2
(1964), p. 91-99.
47 Ibid., p. 98.
37 Introdução
Moule propõe um apóstolo que seja escriba secular e tomador de notas, alguém
que escreveu originalmente em língua semítica, deixando para trás o material que
foi arranjado por outro escriba, um escritor grego que não conhecemos. Alguém
pode se perguntar se é tão fácil designar um sentido secular para grammateus,
termo usado com tanta frequência no sentido judaico de “mestre da lei”. Mas o
argumento de Moule, sejam quais forem seus méritos e deméritos, sugere que a
ligação entre o primeiro evangelho e o apóstolo Mateus não pode ser descartada
com tanta facilidade quanto alguns pensam.
Nenhum dos argumentos pela autoria de Mateus é conclusivo. Assim, não
podemos ter certeza absoluta de quem é o autor do primeiro evangelho. Contudo,
há sólidos motivos de suporte na imputação unânime da igreja primitiva da autoria
desse livro ao apóstolo Mateus e em um exame atento as objeçÕes a essa autoria
não parecem substanciais. Embora a autoria de Mateus permaneça a posição mais
defensável,48 muito pouco neste comentário depende disso. Nos pontos em que
isso possa ser relevante para a discussão, é inserida uma nota de advertência.
6. Data
Durantes os três primeiros séculos da igreja, Mateus foi o evangelho canônico
mais reverenciado e citado.49 Os documentos mais antigos existentes referindo-se
a Mateus são as epístolas de Inácio (esp. To the Smyrneans 1.1 [Aos de Esmirna] [cf.
Mt 3.15], c. 110-15 d.C.). Portanto, o final do século I ou perto disso é a data
mais recente para o evangelho de Mateus ter sido escrito.
A data mais recente possível é muito mais difícil de comprovar porque depende
de muitos outros pontos discutíveis. Se Lucas depende de Mateus (o que parece
improvável), então a data de Lucas estabeleceria um novo terminus ad quem para
Mateus; e a data de Lucas está associada com a data de Atos dos Apóstolos.50 Se a
hipótese de Griesbach (cf. seção 1 e 3) estiver correta, então Mateus teria de ser
anterior a Marcos. Reciprocamente, se a hipótese de duas fontes for adotada,
Mateus é posterior a Marcos; e um terminus a quo está teoricamente estabelecido.
Mesmo assim há duas dificuldades. A primeira, não sabemos quando Marcos foi
escrito, mas muitas estimativas caem em 50 e 65 d.C. A segunda, com base nisso
muitos críticos acham que Mateus não poderia ter sido escrito até 75 ou 80 d.C.
Mas mesmo que Marcos seja tão tardio quanto 65, não há motivo baseado em
dependência literária de por que Mateus não poderia ser datado em 66 d.C. Tão
logo uma fonte escrita é posta em circulação, está disponível para cópia.
55Há muitas outras reconstruções. Por exemplo, K. W. Clark (“The Gentile Bias in Matthew”,
JBL 66 [1947], p. 165-72), seguido de Nepper-Christensen (.Matthãusevangelium) e de
Strecker {Weg, p. 15-35), argumenta que o evangelista, ou redator final, devia ser um
gentio se dirigindo a uma igreja cristã gentia. Schuyler Brown (“The Matthean Community
and the Gentile Mission”, NovTest 22 [1980], p. 193-221) localiza a igreja de Mateus
em uma região de fala grega da Síria, após 70 d.C., quando boa parte da cristandade
judaica foi forçada a se mudar para a Síria e, por isso, surgiram novas crises no evangelismo
e conflitos com os fariseus.
Introdução 42
Filho de Davi, o Filho de Deus, o Filho do homem, Emanuel; (2) que muitos
judeus, em especial os líderes, fracassaram pecaminosamente em perceber isso
durante o ministério dele; (3) que o reino messiânico já se manifestara, inaugurado
pela vida, ministério, morte, ressurreição e exaltação de Jesus; (4) que esse reino
messiânico, caracterizado pela obediência a Jesus e consumado pelo retorno dele,
é o cumprimento das esperanças proféticas do Antigo Testamento; (5) que a igreja,
a comunidade dos que se curvaram sem restrição, tanto judeus quanto gentios, à
autoridade de Jesus constitui o verdadeiro lócus do povo de Deus e o testemunho
para o mundo do “evangelho do reino”; (6) que ao longo dessa era os verdadeiros
discípulos de Jesus devem superar a tentação, suportar a perseguição de um mundo
hostil, testemunhar da verdade do evangelho e viver em submissão profundamente
enraizada nas exigências éticas de Jesus, mesmo quando desfrutam da nova aliança,
que é, ao mesmo tempo, o cumprimento da antecipação da antiga aliança e a
experiência do perdão concedido pelo Messias que veio para salvar seu povo do
pecado e para dar sua vida em resgate de muitos.
Essa complexa gama de temas, sem dúvida, era destinada a satisfazer muitas
necessidades: (1) instruir e talvez catequizar (algo facilitado pelo cuidadoso arranjo
de algumas seções tópicas; cf. Moule, Birth [Nascimento], p. 91); (2) fornecer
material apologético e evangelístico, em especial, para ganhar judeus; (3) encorajar
os cristãos em seu testemunho diante de um mundo hostil; e (4) inspirar fé mais
profunda em Jesus, o Messias, junto com a compreensão madura da pessoa, da
obra e do lugar único dele no desdobramento da história da redenção.
9. Canonicidade
Até onde nossas fontes alcançam, o evangelho de Mateus, assim que publicado,
foi recebido pronta e universalmente. Ele nunca sofreu os debates que dividiram
a igreja oriental e a igreja ocidental em relação, por exemplo, à epístola para os
Hebreus, mas foi considerado em todos os lugares como Escritura, pelo menos,
de Inácio (morto em 110) em diante.
10. Texto
O texto de Mateus, comparado com o de Atos dos Apóstolos, é bastante estável.
No entanto, ocorrem importantes variações e algumas delas são discutidas. As
questões textuais mais difíceis de Mateus surgem porque é um evangelho sinótico.
Isso fornece muita oportunidade para harmonização ou desarmonizaçáo na tradição
textual (e.g., veja comentários em 12.47; 16.2,3; 18.10,11). Embora a harmonização
seja uma característica secundária, isso não quer dizer necessariamente que todo
exemplo de possível harmonização deve ser entendido como secundário (e.g., veja
comentários em 12.4,47; 13.35). Com certeza, as harmonizações são mais comuns
nos ditos de Jesus que em outros trechos. Mas resta muito trabalho a ser feito nessa
área, em especial, no exame do fenômeno da harmonização em conjunção com o
problema sinótico (cf. seção 3).59
59 Cf. Fee, p. 154-69; mais abrangente, cf. C. M. Martini, “La problématique générale du
texte de Matthieu”, em Didier, p. 21-36.
45 Introdução
64 Cf. C. H. Dodd, History and the Gospel (London: Nisbet, 1938), p. 61-63.
Cf. E F. Bruce, Biblical Exegesis in the Qumran Texts (London: Tyndale; e Grand Rapids:
Eerdmans, 1960), p. 16-17.
Introdução 48
as passagens mais difíceis de Mateus, como 2.15, não indicam que o sentido origi
nal do Antigo Testamento é descartado — nesse caso, que, no êxodo, o povo de
Israel não foi chamado por Deus para sair do Egito.
4. Agora, devemos enfrentar uma questão muito difícil: mesmo que Mateus
não negue o cenário dos textos do Antigo Testamento, ele insiste que são cumpridos
em Jesus, com base em que ele detecta alguma relação entre profecia e cumprimento?
O verbo plêroô (“cumprir”) é discutido no comentário (veja comentário de 2.15 e,
esp., de 5.17), mas quando se refere a cumprimento de Escritura, o verbo não perde
toda força teológica a não ser em raras e bem definidas situações. Contudo, as
opiniões variam em relação a exatamente como essas Escrituras do Antigo Testa
mento apontam para o futuro. As vezes, as passagens do Antigo Testamento citadas
são claramente ou, pelo menos, de forma plausível messiânicas. A relação entre
profecia e cumprimento, com frequência, é tipológica: entende-se que Jesus deve de
algumas maneiras recapitular a experiência de Israel ou de Davi. Jesus deve vivenciar
o teste do deserto e chamar doze filhos de Israel como apóstolos. Até mesmo o tipo
de tipologia varia consideravelmente. Contudo, permanece a percepção constante
de que o Antigo Testamento estava preparando o caminho para Cristo, antecipando-
o, apontando para ele, levando a ele. Quando perguntamos quanto desse aspecto de
olhar o futuro — ou seja, o aspecto “profético” — os próprios escritores do Antigo
Testamento reconheceram no que escreveram, a resposta deve variar de acordo com
o texto específico. Mas é possível fazer julgamentos experimentais e variados até
mesmo nos casos mais difíceis (e.g., veja comentário em 1.23; 2.15,17,18,23;
4.15,16; 5.17; 8.16,17; 11.10,11; 12.18-21; 13.13-15; 21.4,5,16,42; 22.44; 26.31;
27.9). O cuidado nessas formulações nos ajuda a perceber os profundos laços que
unem o Antigo e o Novo Testamentos.
c. Lei
Poucos tópicos no estudo do evangelho de Mateus são mais difíceis que sua
atitude com a lei. Os principais estudos são discutidos em outro lugar (cf. esp.
Stanton, “Origin and Purpose” [“Origem e Propósito”], cap. 4.4 e neste comentário,
esp. em 5.17-48); mas podemos resumir alguns aspectos do problema aqui.
As dificuldades originam-se de vários fatores. O primeiro, diversas passagens
podem ser entendidas como firme defesa da lei (e.g., 5.18,19; 8.4; 19.17,18) e até
mesmo da autoridade dos fariseus e dos mestres da lei para interpretá-la (23.2,3).
Espera-se que os discípulos de Jesus jejuem, façam caridade (6.2-4) e paguem as
taxas do templo (17.24-27). O segundo, pode-se entender que algumas passagens
suavizam a rejeição de Marcos a determinadas partes da lei. O acréscimo da
preposição “exceto” em 19.9 e a omissão de Marcos 7.19b (“Ao dizer isso, Jesus
declarou ‘puros’ todos os alimentos”) na perícope correspondente de Mateus (15.1-
20) convenceu muitos de que Mateus não ab-roga nenhuma ordem do Antigo
Testamento. O terceiro, há algumas passagens nas quais, pelo menos formalmente,
a carta da lei do Antigo Testamento é suplantada (e.g., 5.33-37) ou uma instituição
venerada do Antigo Testamento parece ser depreciada e potencialmente suplantada
(e.g., 12.6). O quarto, há uma passagem, 5.17-20, amplamente reconhecida como
49 Introdução
66Vários mencionam o trocadilho entre fflâqôt (“coisas sem dificuldade”) e kflâkôt (“decisões
legais que afetam a conduta”), esse último é o objetivo dos fariseus.
51 Introdução
67 Para um resumo conveniente da literatura recente, cf. Stanton, “Origin and Purpose”,
cap. 4.2. Stanton omite a menção à obra extraordinariamente importante de B. F.
Meyer (veja comentário em 16.17-19).
Introdução 52
68 Alexander Guttmann, Rabbinic Judaism in the Making: A Chapter in the History of the
Hcdakah from Ezra to Judah I (Detroit: Wayne State University, 1970).
69 Jacob Neusner, The Rabbinic Traditions of the Pharisees, 3 vols. (Leiden: Brill, 1971).
Para um tratamento simplificado, cf. com sua obra From Politics to Piety: The Emergence
ofPharisaic Judaism (Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973).
53 Introdução
70Ellis Rivkin, A Hidden Revolution: The Pharisee’s Searchfor the Kingdom Within (Nashville:
Abingdon, 1978).
71 “Halakah”; id., The Emergence of ContemporaryJudaism, vols. 1.1; 1.2; The Foundations
o f Judaism from Biblical Origins to the Sixth Century A.D. (Pittsburgh: Pickwick, 1980).
Uma dicotomia um tanto semelhante é adotada por John Bowker, Jesus and the Pharisees
(Cambridge: University Press, 1973).
72 Cf. B. Lindars, “Jesus and the Pharisees”, Donum Gentilicium, eds. E. Bammel, C. K.
Barrett e W. D. Davies (Oxford: Clarendon, 1978), p. 51-63, esp. p. 62-63.
Introdução 54
leis à época e foram líderes eficazes. O problema é que a minuta das regulamentações
deles tornou as distinções rituais muito difíceis e a moralidade muito cômoda. A
santidade radical ordenada pelos profetas do Antigo Testamento foi domesticada,
preparando o caminho para a pregação de Jesus que ordenava maior retidão que a
dos fariseus (5.20). Embora Neusner (n. 69) detecte corretamente a preocupação
dos fariseus com a pureza cerimonial (cf. 15.1-12), seu ceticismo concernente à
firmeza das tradições orais e à possibilidade de saber mais sobre os fariseus não tem
motivo. A evidência de Josefo não pode ser descartada com tanta facilidade como
Neusner quer que pensemos. Mesmo admitindo a tendência do próprio Josefo em
direção aos fariseus, a evidência dele demonstra de forma tão consistente a ampla
influência que exerciam na nação, isso para não mencionar a centralidade deles
durante a Guerra Judaica, que é muito difícil pensar neles como um grupo separatista
secundário (Sigal) ou como exclusivamente preocupado com a pureza ritual.
A Mixná (c. 200 d.C.) não pode ser lida de volta a 30 d.C. como se o judaísmo
não tivesse enfrentado o crescimento do cristianismo e a total destruição do templo
e do culto oferecido ali. Não obstante, ela preserva mais material tradicional do
que se pensa às vezes. Pode-se suspeitar que os fariseus da época de Jesus incluem
os “protorrabis”, ancestrais teológicos da Mixná Tarmaim (lit., “repetidores”, i.e.,
os “rabis” de, aproximadamente, 70 a 200 d.C.). Nessa percepção, eles incluem
todos os homens tão instruídos e criativos quanto os rabis do século II. Mas eles
também incluem homens muito inferiores, da perspectiva moral e intelectual, que
foram amplamente expurgados pelos efeitos gêmeos do crescimento do cristianismo
e da destruição de 70 d.C. Esses eventos desencadearam uma “contrarreforma”,
cujo legado é a Mixná. Rivkin (n. 70), sem dúvida, está correto em ver os fariseus
como estudiosos instruídos cuja aplicação e desenvolvimento meticulosos da lei
do Antigo Testamento tenham exercido pesada influência no judaísmo, apesar de
sua identificação dos fariseus com os escribas e seu tratamento do desenvolvimento
da lei oral ser simplistas.
Sustentamos que os fariseus eram um grupo não sacerdotal de origem incerta,
em geral, instruído, comprometido com a lei oral e preocupado com o desenvol
vimento da Halaca (regras de conduta baseadas em deduções da lei). Muitos mestres
da lei eram fariseus; e o Sinédrio também incluía homens do grupo deles (veja
comentário em 21.23), embora a liderança do Sinédrio pertencesse aos saduceus
sacerdotais.
A segunda área que precisa de esclarecimento é a maneira como Mateus se
refere aos líderes judeus. E de aceitação unânime que Mateus é bastante firmemente
antifarisaico. Contudo, recentemente, cada vez mais estudiosos passaram a concordar
que o retrato dos fariseus apresentado por Mateus reflete os rabis do período de 80-
100 d.C., não a situação por volta de 30 d.C. A apreensão dele de outras facções
judaicas, que desaparecem amplamente depois de 70 d.C., é superficial e, às vezes,
errada. Gaston acha que a profundidade da ignorância de Mateus, especialmente
em relação aos saduceus, é “espantosa”.73
73 L. Gaston, “The Messiah of Israel as Teacher of the Gentiles”, Int 29 (1975), p. 34.
55 Introdução
76C. H. Talbert, What is a Gospel? The Genre ofthe Canonical Gospels (Philadelphia: Fortress,
1977).
77 D. E. Aune, “The Problem of the Genre of the Gospels”, France e Wenham, p. 9-60; cf.
R. H. Gundry, “Recent Investigation Into the Literary Genre ‘Gospel’”, Longenecker e
Tenney, p. 97-114.
Introdução 60
79 Klyne R. Snodgrass, “Streams of Tradition Emerging From Isaiah 40:1-5 and Their
Adaptation in the NewTestament”,/» « ^ « /for the Study ofthe New Testament 8 (1980),
p. 40.
80 Cf. D. A. Carson, Midrash and Matthew (no prelo).
81 Cf. Maurya P. Horgan, Pesharim: Qumran Interpretation ofBiblical Books (Washington:
Catholic Biblical Assoe., 1979).
Introdução 62
82 Cf. Daniel Patte, Early Jewish Hermeneutic in Palestine (Missoula: SBL, 1975), p. 49ss.
63 Bibliografia
Mateus 1— 2 e de Lucas 1— 2. Além disso, algumas das “tendências” que ele detecta
em Mateus — e.g., ele segue a linha popular hoje em dia sobre a compreensão dos
discípulos (veja seção 11 .i) — são mais bem interpretadas de outras maneiras.
Esses pontos dependem de detalhes da exegese e emergem neste comentário. (Veja
também a revisão de Gundry em Carson, “Gundry on Matthew” [“Gundry sobre
Mateus”].)
Um elemento importante do argumento de Gundry é que os relatos não
podem ser tomados como história porque, lidos desse modo, eles incluem alguns
erros demonstráveis. Para alguns desses assuntos, veja o comentário in loc. Aqui, é
suficiente dizer que quem quer que seja que use o “midrash” em alguma parte do
evangelho de Mateus deve dizer a seus leitores precisamente o que o termo quer
dizer.
c. Vários gêneros
Diversas outras formas importantes de literatura compõem as partes constituintes
de nossos evangelhos canônicos: ditos de sabedoria, genealogias, discursos, parábolas
e assim por diante. Os mais importantes são objeto de breve tratamento no comen
tário, o mais extenso é devotado às parábolas (veja em 13.3).
13. Bibliografia
Schweizer, Eduard. The Good News According to Matthew. Atlanta: John Knox, 1975.
Smith, B. T. D. The Gospel According to S. Matthew. Cambridge: University Press, 1927.
Spurgeon, C. H. The Gospel of the Kingdom: A Popular Exposition of Matthew. London:
Passmore and Alabaster, 1893.
Tasker, R. V. G. The Gospel According to St. Matthew: An Introduction and Commentary.
London: IVP, 1961.
Walvoord, John F. Matthew: Thy Kingdom Come. Chicago: Moody, 1974.
Weiss, Bernhard. Das Matthäus-Evangelium. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1898.
Wellhausen, J. Das Evangelium Matthaei. Berlin: Georg Reimer, 1904.
Zahn, Theodor. Das Evangelium des Matthäus. Leipzig: A. Deichert’sche Buchhandlung,
1903.
b. Outras obras selecionadas
Arens, Eduardo. The ^HAQov-sayings in the Synoptic Tradition:A Historico-CriticalInvestigation.
Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1976.
Bacon, Benjamin W. Studies in Matthew. London: Constable, 1930.
Bammel, E., ed. The Trial of Jesus. London: SCM, 1970.
Banks, Robert. Jesus and the Law in the Synoptic Tradition. Cambridge: University Press,
1975.
Beasley-Murray, G. R. Baptism in the New Testament. London: Macmillan, 1954.
Benoit, P. Jesus and the Gospel. New York: Herder and Herder, 1973.
Berger, K. Die GesetzesauslegungJesu. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1972.
Best, Ernest. The Temptation and the Passion: TheMarkan Soteriology. Cambridge: University
Press, 1965.
— , e Wilson, R. McL., edd. Text and Interpretation. Cambridge: University Press, 1979.
Beyer, Klaus. Semitische Syntax im Neuen Testament. Göttingen: Vandenhoeck und
Ruprecht, 1968.
Black, Matthew. An Aramaic Approach to the Gospels and Acts. 3rd. Oxford: Clarendon,
1967.
Blair, Edward P. Jesus in the Gospel ofMatthew. New York: Abingdon, I960.
Blinzler, Josef. The Trial ofJesus. Traduzido por F. McHugh. Cork: Mercier, 1959.
Bonhoeffer, Dietrich. The Cost of Discipleship. 6th ed. London: SCM, 1959.
Bornhäuser, Karl. Die Bergpredigt: Versuch einer Zeitgenössischen Auslegung. 2nd ed.
Gütersloh: C. Bertelsmann, 1927.
Bornkamm, Günther. Jesus ofNazareth. London: Hodder and Stoughton, 1960.
—. Geschichte und Glaube I. München: Chr. Kaiser, 1968.
—; Barth, G.; e Held, H. J. Tradition and Interpretation in Matthew. Traduzido por P.
Scott. London: SCM, 1963.
Boucher, Madeleine. TheMysterious Parable: A Literary Study. Washington: Catholic Biblical
Assoc., 1977.
Brown, Raymond E. The Birth of the Messiah: A Commentary on the Infancy Narratives in
Matthew and Luke. Garden City: Doubleday, 1977.
— ; Donfried, Karl P.; e Reumann, John, edd. Peter in the New Testament. Minneapolis:
Augsburg, 1973.
Bultmann, Rudolf. Theology ofthe New Testament. 2 vols. Traduzido por K. Grobel. London:
SCM, 1952-55.
Bibliografia 66
— . The History of the Synoptic Tradition. Traduzido por J. Marsh. Oxford: Blackwells,
1963.
Burger, Christoph. Jesus als Davidssohn: Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung.
Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1970.
Burton, E. de W Syntax of the Moods and Tenses in N T Greek. Edinburgh: T. & T. Clark,
1894.
Carmignac, Jean. Recherches sur le “Notre Père”. Paris: Letouzey et Aue, 1969.
Carson, D. A. The Sermon on the Mount. Grand Rapids: Baker, 1978.
—. The Farewell Discourse and Final Prayer of Jesus. Grand Rapids: Baker, 1980.
— . Divine Sovereignty and Human Responsibility. Atlanta: John Knox, 1981.
— , ed. From Sabbath to Lord’s Day. Grand Rapids: Zondervan, 1982.
— , e Woodbridge, J. D., edd. Scripture and Truth. Grand Rapids: Zondervan, 1983.
Casey, Maurice. Son of Man— The Interpretation andlnfluence of Daniel 7. London: SPCK,
1980.
Catchpole, David R. The Trial of Jesus: A Study in the Gospels and Jewish Historiography
From 1770 to the Present Day. Leiden: Brill, 1971.
Chilton, Bruce D. Godin Strength:Jesus’Announcement of the Kingdom. Freistadt: F. Plöchl,
1977.
Cohn, Haim. The Trial and Death of Jesus. New York: Ktav, 1977.
Cope, O. Lamar. Matthew: A Scribe Trained for the Kingdom of Heaven. Washington:
Catholic Biblical Assoc., 1976.
Cranfield, C. E. B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge: University Press, 1972.
Cullmann, O. The Christology of the New Testament. Traduzido por Shirley C. Guthrie e
Charles A. M. Hall. 2nd ed. Philadelphia: Westminster, 1963.
Dahl, N. A. Jesus in the Memory of the Early Church. Minneapolis: Augsburg, 1976.
Dalman, A. Jesus-Jeshua: Studies in the Gospels. London: SPCK, 1929.
Daube, David. The New Testament and Rabbinic Judaism. London: Athlone, 1956.
Davies, W. D. The Setting of the Sermon on the Mount. Cambridge: University Press, 1963.
Derrett, J. D. M. Law in the New Testament. London: DLT, 1970.
— . Studies in the New Testament. 2 vols. Leiden: Brill, 1977-78.
Didier, M., ed. L’Evangile selon Matthieu: Rédaction et Théologie. Gembloux: Duculot,
1972.
Dodd, C. H. The Parables of the Kingdom. London: Nisbet, 1936.
Doeve, J. W. Jewish Hermeneutics in the Synoptic Gospels and Acts. Assen: Van Gorcum,
1954.
Douglas, J. D., ed. Illustrated Bible Dictionary. 3 vols. Revised edition. Editado por N.
Hillyer. Wheaton: Tyndale, 1980.
Dunn, J. D. G. Jesus and the Spirit: A Study of the Religious and Charismatic Experience of
Jesus and the First Christians as Reflected in the New Testament. London: SCM, 1975.
— . Christology in the Making: An Inquiry into the Origins of the Doctrine ofthe Incarnation.
London: SCM, 1980.
Dupont, Jacques. Manage et divorce dans l’évangile, Matthieu 19, 3-12 etparallèles. Burges:
Descleé de Brouwer, 1959.
Elliott, J. K. ed. Studies in New Testament Language and Text. SuppNovTest 44. Leiden:
Brill, 1976.
Ellis, E. Earle, e Wilcox, Max, edd. Neotestamentica et Semitica. Edinburgh-. T. &T. Clark,
1969.
67 Bibliografia
—, e Grässer, E., edd. Jesus und Paulus. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1975.
Fischer, David. Historians’Fallacies: Towarda Logic of Historical Thought. New York: Harper
and Row, 1970.
Fitzmyer, Joseph A. Essays on the Semitic Background ofthe New Testament. London: Goeffrey
Chapman, 1971.
—.A Wandering Aramaen: Collected Aramaic Essays. Missoula: Scholars, 1978.
Flender, Helmut. Die Botschaft Jesu von der Herrschaft Gottes. München: Chr. Kaiser,
1968.
France, R. T. Jesus and the Old Testament: His Application of Old Testament Passages to
Himselfand His Mission. London: Tyndale, 1971.
— , e Wenham, D., edd. Gospel Perspectives. 2 vols. Sheffield: JSOT, 1980-81.
Frankemölle, Hubert. Jahwebund und Kirche Christi: Studien zur Form- und Traditions
geschichte des “Evangeliums” nach Matthäus. Münster: AschendorfF, 1974.
Garland, David E. The Intention of Matthew 23. Leiden: Brill, 1979.
Gaston, Lloyd. No Stone on Another: Studies in the Significance of the Fall of Jerusalem in the
Synoptic Gospels. Leiden: Brill, 1970.
Gerhardsson, Birgir. The Mighty Acts ofJesus According to Matthew. Lund: C.W.K. Gleerup,
1979.
Gnilka, J., ed. Neues Testament und Kirche. Freiburg: Herder, 1974.
Goppelt, Leonhard. Theologie des Neuen Testaments. Editado por Jürgen RolofF. Göttingen:
Vandenhoeck und Ruprecht, 1976.
Goulder, M. D. Midrash and Lection in Matthew. London: SPCK, 1974.
Gundry, Robert H. The Use of the Old Testament in St. Matthew’s Gospel, with Special
Reference to the Messianic Hope. Leiden: Brill, 1975.
Guthrie, Donald. New Testament Theology. Downers Grove, 111.: IVP, 1981.
Hare, Douglas R. A. The Theme of Jewish Persecution of Christians in the GospelAccording
to St. Matthew. Cambridge University Press, 1967.
Haubeck, W., e Bachmann, M., edd. Wort in der Zeit. Leiden: Brill, 1980.
Hawthorne, G. F., ed. Current Issues in Biblical and Patristic Interpretation. Grand Rapids:
Eerdmans, 1975.
Hennecke, E. New Testament Apocrypha. 2 vols. London: Lutterworth, 1965.
Hengstenberg, E. W. Christology ofthe Old Testament. Reprint. 2 vols. Florida: MacDonald,
s. d.
Hill, David. Greek Words With Hebrew Meanings. Cambridge: University Press, 1967.
Hoehner, Harold W. Herod Antipas. Cambridge: University Press, 1972.
— . Chronological Aspects of the Life of Christ. Grand Rapids: Zondervan, 1977.
Hoekema, A. A. The Bible and Future. Grand Rapids: Eerdmans, 1979.
Hoffmann, Paul et al., edd. Orientierung an Jesus. Freiburg: Herder, 1973.
Hooker, Morna D. Jesus and the Servant. London: SPCK, 1959.
— . The Son of Man in Mark. London: SPCK, 1967.
Hull, John M. Hellenistic Magic and the Synoptic Tradition. London: SCM, 1974.
Hummel, Reinhardt. Die Auseinandersetzung zwischen Kirche und Judentum im
Matthäusevangelium. München: Chr. Kaiser, 1966.
Isaksson, A. Marriage and Ministry in the New Testament. Lund: C.W.K. Gleerup, 1965.
Jeremias, J. Jesus’ Promise to the Nations. Traduzido por John Bowden. London: SCM,
1958.
Bibliografia 68
—. Jerusalem in the Time of Jesus. Traduzido por F. H. and C. H. Cave. London: SCM,
1962.
— . The Parables ofJesus. Traduzido por S. H. Hooke. London: SCM, 1963.
— . The Eucharistic Words ofJesus. Traduzido por N. Perrin. 3nd ed. London: SCM, 1966.
—. The Prayers ofJesus. Traduzido por John Bowden e Christoph Burchard. London:
SCM, 1967.
— . New Testament Theology. Part I. The Proclamation of Jesus. Traduzido por John Bowden.
London: SCM, 1971.
—, and Zimmerli, W. The Servant o f the Lord. London: SCM, 1965.
Johson, Marshall D. The Purpose of the Biblical Geneologies. Cambridge: University Press,
1969.
Kilpatrick, G. D. The Origins of the GospelAccording to St. Matthew. Oxford: Clarendon,
1946.
Kingsbury Jack Dean. The Parables of Jesus in Matthew 13: A Study in Redaction-Criticism.
London: SPCK, 1969.
— . Matthew: Structure, Christology, Kingdom. Philadelphia: Fortress, 1975.
Kistemaker, Simon J. The Parables of Jesus. Grand Rapids: Baker, 1980.
Kümmel, W G. Jesus’Promise to theNations. Traduzido por S. H. Hooke. London: SCM, 1958.
— .Introduction to the New Testament. Traduzido por Howard Clark Kee. Nashville:
Abingdon, 1975.
Ladd, G. E. The Presence of the Future: The Eschatology of Biblical Realism. Grand Rapids:
Eerdmans, 1974.
— . A Theology of the New Testament. Grand Rapids; Eerdmans, 1974.
Lane, William L. The Gospel According to Mark. Grand Rapids: Eerdmans, 1974.
Lindars, Barnabas. New Testament Apologetic. London: SCM, 1961.
Livingstone, E. A., ed. Studia Bíblica 1978. 2 vols. Sheffield: JSOT, 1980.
Longenecker, Richard N. The Christology of Early Jeswish Christianity. London: SCM,
1970.
— . Biblical Exegesis in the Apostolic Period. Grand Rapids: Eerdmans, 1975.
—, e Tenney, Merrill C., edd. New Dimensions in New Testament Study. Grand Rapids:
Zondervan, 1974.
Machen, J. Gresham. The Virgin Birth of Christ. New York: Harper and Row, 1930.
Mason, T. W. The Sayings ofJesus. London: SCM, 1949.
Marshall, I. Howard. The Gospel of Luke: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids:
Eerdmans, 1978.
— . Last Supper and Lord’s Supper. Exeter: Paternoster, 1980.
—, ed. New Testament Interpretation. Exeter: Paternoster, 1977.
McConnell, Richard S. Law and Prophecy in Matthew’s Gospel. Basel: Friedrich Reinhardt,
1969.
McHugh, John. The Mother of Jesus in the New Testament. Garden City: Doubleday, 1975.
McKay, J. R., e Miller, J. F., edd. Biblical Studies. London: Collins, 1976.
Meier, John P. Law and History in Matthew’s Gospel: A Redactional Study ofMt. 5:17-48.
Rome: BIP, 1976.
— . The Vision of Matthew: Christ, Church, and Morality in the First Gospel. New York:
Paulist, 1979.
Metzger, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New Testament. London: UBS, 1971.
69 Bibliografia
— . New Testament Studies: Philological, Versional, and Patristic. Leiden: Brill, 1980.
Meyer, Ben F. The Aims of Jesus. London: SCM, 1979.
Moore, G. F. Judaism in the First Centuries of the Christian Era. 3 vols. Cambridge: Harvard
University Press, 1927-30.
Morris, Leon. The Apostolic Preaching of the Cross. Grand Rapids: Eerdmans, 1955.
—. The Gospel According to John. Grand Rapids: Eerdmans, 1971.
Moule, C. F. D. An Idiom Book of New Testament Greek. 2nd ed. London: Cambridge
University Press, 1959.
— . The Birth ofNew Testament. London: A. and C. Black, 1962.
—. The Origin of Christology. Cambridge: University Press, 1977.
Moulton, James Hope. A Grammar ofNew Testament Greek, vol. 1. Prolegomena. Edinburgh:
T. &T. Clark, 1908.
— . vol. 2. Accidence and Word Formation. Editado por W. F. Howard. Edinburgh: T. & T.
Clark, 1920.
Nineham, D. E., ed. Studies in the Gospels. Oxford: Blackwell, 1955.
Nolan, Brian M. The Royal Son of God: The Christology ofMatthew 1-2 in the Setting ofthe
Gospel. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1979.
Parrot, Andre. Golgotha and the Church of the Holy Sepulchre. Traduzido por E. Hudson.
London: SCM, 1957.
Piper, John. Love Your Enemies, Cambridge: University Press, 1979.
Przybylski, Benno. Righteousness in Matthew and His World of Thought. Cambridge:
University Press, 1980.
Ridderbos, Herman. The Coming of the Kingdom. Traduzido por R. Zorn. Philadelphia:
Presbyterian and Reformed, 1962.
Riesenfeld, H. The Gospel Tradition. Philadelphia: Fortress, 1970.
Robertson, A. T. WordPictures in the New Testament. 6 vols. New York: Harper & Brothers,
1930.
Robinson, John A. T. Twelve New Testament Studies. London: SCM, 1962.
Rothfuchs, Wilhelm. Die Erfüllungszitate des Matthäus-Evangeliums. Stuttgart: W.
Kohlhammer, 1969.
Sand, Alexander. Das Gesetz und die Propheten: Untersuchungen zur Theologie des Evageliums
nach Matthäus. Regensburg: Friedrich Pustet, 1976.
Schottroff, Luise et al. Essays on the Love Commandment. Philadelphia: Fortress, 1978.
Schweitzer, Albert. The Quest ofthe HistoricalJesus. 2nd ed. Traduzido por W. Montgomery.
London: A. and C. Black, 1911.
Senior, Donald. The Passion Narrative According to Matthew: A Redactional Study. Leuven:
Leuven University Press. 1975.
Sherwin-White, A. N. Roman Society and Roman Law in the New Testament. Oxford:
Clarendon, 1963.
Soares Prabhu, George M. The Formula Quotations in the Infancy Narrative of Matthew.
Rome: BIP, 1976.
Stanton, Graham N .Jesus of Nazareth in New Testament Preaching. Cambridge: University
Press, 1974.
Stendahl, Krister. The School of St. Matthew and Its Use of Old Testament. 2nd ed. Lund:
C.W.K. Gleerup, s. d.
Sticr, Rudolf. The Words ofthe LordJesus. Vol. 1. Traduzido por W. B. Pope. Edinburgh: T.
& T. Clark, 1874.
Bibliografia 70
Stonehouse, Ned B. The Witness ofMatthew and Mark to Christ. Grand Rapids: Eerdmans,
1944.
—. Origins of the Synoptic Gospels: Some Basic Questions. Grand Rapids: Eerdmans, 1963.
Stott, John R. W. Christian Counter-culture. Downers Grove: IVP, 1978.
Strecker, Georg. Der Wegder Gerechtigkeit. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1962.
— , ed. Jesus Christus in Historie und Theologie. Tubingen: J.C.B. Mohr, 1975-
Suggs, M. Jack. Wisdom, Christology, and Law in Matthew’s Gospel. Cambridge: Harvard
University Press, 1970.
Taylor, Vincent. The Gospel According to St. Mark. 2nd ed. London: Macmillan, 1966.
Thompson, William G. Matthew’s Advice to a Divided Community: Mt. 17.22— 18.35-
Rome: BIP, 1970.
Thrall, Margaret E. Greek Particles in the New Testament. Leiden: Brill, 1962.
Trench, R. C. Studies in the Gospels. London: Macmillan, 1878.
Trilling, Wolfgang. Das wahre Israel: Studien zur Theologie des Matthäus-Evangeliums.
München: Kösel, 1964.
Turner, Nigel. Syntax. Vol. 3 de J. H. Moulton. A Grammar of New Testament Greek.
Edinburgh: T. & T. Clark, 1963.
— Grammatical Insights Into the New Testament. Edinburgh: T. &T. Clark, 1965.
— . Christian Words. Edinburgh: T. &T. Clark, 1980.
Urbach, E. E. The Sages: Their Concepts and Beliefs. 2 vols. Traduzido por I. Abrahams.
Jerusalem: Magnes, 1975.
van der Loos, H. The Miracles ofJesus. Leiden: Brill, 1965.
van Tilborg, Sjef. TheJewish Leaders in Matthew. Leiden: Brill, 1972.
Walker, Rolf. Die Heilsgeschichte im ersten Evangelium. Göttingen: Vandenhoeck und
Ruprecht, 1967.
Warfield, Benjamin B. SelectedShorter Writings. 2 vols. Editado por John E. Meeter. Nutley,
N. J.: Presbyterian and Reformed, 1970.
Westerholm, Stephen. Jesus and Scribal Authority. Lund: C.W.K. Gleerup, 1978.
Winter, Paul. On the Trial of Jesus. 2nd ed. Berlin: de Gruyter, 1974.
Zerwick, M. Biblical Greek. Rome: Scripta Pontificii Instituti Biblici, 1963.
Zumstein, Jean. La condition du croyant dans l ’Evangile selon Matthieu. Göttingen:
Vandenhoeck und Ruprecht, 1977.
c. Artigos selecionados
Berger, Klaus. “Die königlichen Messiastraditionen des Neuen Testaments”. NTS 20
(1974): 1-44.
Blaising, Craig A. “Gethsemane: A Prayer of Faih”. JETS 22 (1979): 333-43.
Brower, Kent. “Mark 9:1 Seeing the Kingdom in Power”. Jounalfor the Study of the New
Testament 6 (1980): 17-41.
Carson, D. A. “Historical Tradition in the Fourth Gospel—After Dodd, What?” France e
Wenham, 2:83-145.
— . “Jesus and the Sabbath in the Four Gospels”. Id. Sabbath.
— . “Jewish Leaders in Matthews Gospel: A Reappraisal”. JETS 25 (1982): 161-74.
— . “Christological Ambiguities in the Gospel of Matthew”. Christ the Lord: Studies in
Christology Presented to Donald Guthrie. Editado por Harold Rowdon. Downers Grove,
111.: IVP, 1982, pp. 97-114.
71 Bibliografia
E stra d a s m odernas
Getsêmani
TUMBAS •
Pinácuio do templo ^
Ofel (?) P3
“T 3
TANQUE DE SILOÉ
Mas a ligação que Mateus faz de “filho de Davi” com “Cristo” não deixa dúvida
em relação ao que está afirmando sobre Jesus.
Nos evangelhos, a ocorrência do título “Cristo” é relativamente rara (quando
comparados com as epístolas de Paulo). Mais importante, o nome aparece quase
sempre como título, equivalente estritamente a “o Messias” (veja esp. 16.16). Mas
era natural, depois da ressurreição, os cristãos usarem “Cristo” como nome não
menos que como título; eles falavam cada vez mais de “Jesus Cristo”, ou “Cristo
Jesus”, ou apenas “Cristo”. Paulo normalmente trata “Cristo”, pelo menos em parte,
como nome; mas é duvidoso que a força de título tenha desaparecido totalmente
(cf. N. T. Wright, “The Messiah and the People of God: A Study in Pauline Theol-
ogy with Particular Reference to the Argument of the Episde to the Romanos” [“O
Messias e o povo de Deus: um estudo da teologia paulina com especial referência ao
argumento da epístola aos Romanos”] [dissert. Ph.D., Oxford University, 1980] p.
19). Das aproximadamente dezoito ocorrências do termo em Mateus, todas são
exclusivamente titulares, exceto essa (1.1), é provável em 1.16, com certeza em 1.18
e possivelmente na variante de 16.21. Os três usos de “Cristo” no prólogo refletem
a posição confessional da qual Mateus escreve; ele é um cristão comprometido
acostumado desde sempre com a forma comum de usar a palavra como título e
como nome. Ao mesmo tempo, isso é um sinal da preocupação de Mateus, por
exatidão histórica, de que Jesus não é designado assim por seus contemporâneos.
“Filho de Davi” é uma designação importante no evangelho de Mateus. Não
só Davi representa uma virada na genealogia (1.6,17), mas o título ocorre em
todo o evangelho (9.27; 12.23; 15.22; 20.30,31; 21.9,15; 22.42,45). Deus firmara
aliança de amor com Davi (SI 89.29) e prometera que um descendente imediato
dele estabeleceria o reino — e mais, que o reino e o trono de Davi durariam para
sempre (2Sm 7.12-16). Isaías previu que seria concedido um “filho”, um filho
com os títulos mais extravagantes: Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai
Eterno, Príncipe da Paz: “Ele estenderá o seu domínio, e haverá paz sem fim sobre
o trono de D avi e sobre o seu reino, estabelecido e mantido com justiça e retidão,
desde agora e para sempre. O zelo do Senhor dos Exércitos fará isso” (Is 9.6,7;
grifo do autor).
Na época de Jesus, pelo menos, alguns ramos do judaísmo popular entendiam
que “filho de Davi” era messiânico (cf. SI Sal 17.21; para um resumo da complexa
evidência interbíblica, cf. Berger, “Die königlichen Messiastraditionen” [“D a realeza
das tradições messiânicas”], esp. p. 3-9). O tema era importante no cristianismo
primitivo (cf. Lc 1.32,69; Jo 7.42; At 13.23; Rm 1.3; Ap 22.16). As promessas de
Deus, embora longamente adiadas, não foram esquecidas; Jesus e seu ministério
eram percebidos como cumprimento de Deus das promessas da aliança, agora,
com séculos de idade. D a árvore de Davi, arrancada até que restasse apenas parte
do tronco, brotava um ramo, um renovo (Is 11.1).
Jesus também é “filho de Abraão”. Não poderia ser de outra maneira uma vez
que ele é filho de Davi. Contudo, Abraão é mencionado por diversos motivos
importantes. “Filho de Abraão” podia ser um título messiânico reconhecido em
alguns ramos do judaísmo (cf. T Levi 8.15). A aliança com o povo judeu foi feita
Mateus 1.1-17 86
primeiro com Abraão (Gn 12.1-3; 17.7; 22.18), conexão que Paulo entende como
básica para o cristianismo (G1 3.16). Mais importante, Gênesis 22.18 prometia
que “todas as nações” (panta ta ethnê, LXX) seriam abençoadas por intermédio da
descendência de Abraão; assim, Mateus, com essa alusão a Abraão, prepara seus
leitores para as palavras finais sobre essa descendência de Abraão — a comissão
para fazer discípulos de “todas as nações” (28.19 ;panta ta ethnê). Jesus, o Messias,
veio em cumprimento das promessas do reino, feitas a Davi, e da promessa de
bênçãos para os gentios, feita a Abraão (cf. também M t 3.9; 8.11).
2 - 1 7 - 0 estudo mostra que as genealogias do Oriente Médio da Antiguidade
podiam servir amplamente para diversas funções: econômica, tribal, política,
doméstica (para mostrar relações familiares ou geográficas) e outras (veja Johnson;
também Robert R. Wilson, Genealogy and History in the Biblical World [ Genealogia
e história no mundo bíblico] [New Haven: Yale University Press, 1977]; R. E.
Brow, Birth ofMessiah [Nascimento do Messias], p. 64-66). O perigo nesse tipo de
estudo é exceder a intenção de Mateus por meio de históricos vívidos de relevância
duvidosa para o texto mesmo. Johnson entende a genealogia de Mateus como
uma resposta à difamação judaica. H. V. Wickings (“The Nativity Stories and
Docetism” [“As histórias do nascimento e o docetismo”], N T S 23 [1977], p. 457-
60) entende-a como resposta ao docetismo do final do século I que negava a
humanidade essencial de Jesus. Pode-se questionar se o nascimento virginal teria
sido a melhor maneira de pretender corrigir os docetistas.
D. E. Nineham (“The Genealogy in St. Matthews Gospel and Its Signifi-
cance for the Study o f the Gospels” [“A genealogia no evangelho de são Mateus e
sua relevância para o estudo dos evangelhos”], BJRL, 58 [1976], p. 421-44)
encontra nessa genealogia a garantia de que Deus está no controle soberano.
Contudo, não fica claro como ele concilia essa garantia com sua convicção de que
a genealogia é de pouco valor histórico. Se Mateus destacou-a e elaborou-a muito,
então podemos admirar sua fé de que Deus estava no controle. Mas desde que a
base de Mateus (de acordo com Nineham) é falha, essa declaração fornece pouco
incentivo para que o leitor compartilhe a mesma fé.
Na verdade, os principais objetivos de Mateus ao incluir a genealogia são
indicados no primeiro versículo — viz., mostra que Jesus Messias é verdadeiramente
da linha real de Davi, herdeiro das promessas messiânicas, aquele que traz bênção
divina sobre todas as nações. Por isso, de um lado, a genealogia foca o rei Davi
(1.6), contudo, de outro lado, inclui mulheres gentias (veja abaixo). Muitas entradas
poderiam tocar o coração e estimular a memória de leitores instruídos biblicamente,
embora a principal força propulsora da genealogia junte promessa e cumprimento.
“Cristo e a nova aliança estão seguramente ligados à era da antiga aliança. Marcião,
que queria separar todas as ligações unindo o cristianismo com o Antigo Testa
mento, sabia o que fazia quando cortou a genealogia de sua edição de Lucas” (F.
F. Bruce, N B D , p. 459).
Para muitos, o valor histórico da genealogia de Mateus, independentemente
de quais fossem os objetivos dela, é nulo. R. E. Brown (Birth ofMessiah [Nascimento
do Messias], p. 505-12) luta contra a corrente quando, cautelosamente, afirma que
87 Mateus 1.1-17
Jesus descendia da casa de Davi. Muitas genealogias antigas não são levadas em
conta por se considerar que tenham pouco valor histórico porque, evidentemente,
pretendem transmitir mais que informação histórica (cf. esp. Wilson, Genealogy
and History [Genealogia e história]). N o entanto, fazer isso é cair em uma falsa
disjunção histórica; pois muitas genealogias pretendem apresentar mais que pontos
históricos ao se referir a linhas históricas.
Parte da avaliação histórica de Mateus 1.2-17 repousa na confiabilidade das
fontes de Mateus: os nomes nos primeiros dois terços da genealogia foram tirados
d a L X X (lC r 1— 3; esp. 2.1-15; 3.5-24; Rt 4.12-22). Depois deZorobabel, Mateus
depende de fontes extrabíblicas das quais não sabemos nada. Mas há boa evidência
de que os registros foram mantidos, pelo menos, até o fim do século I. Josefo
(Life [Vida] 6 [1]) refere-se a “registros públicos” dos quais extraiu a informação
genealógica que utilizou (cf. também Jos., Contra Apion \Contra Apiãó\ I, 28-56
[6-10]). De acordo com Gênesis R 98.8, foi provado que o rabi Hillel é descendente
de Davi porque um pergaminho de genealogia foi encontrado em Jerusalém.
Eusébio [Ecclesiastical History [História eclesiástica], 3.19-20) cita Hegésipo para a
finalidade de que o imperador Domiciano (81-96 d. C.) ordenou a morte de todos
os descendentes de Davi. Não obstante, dois deles, quando convocados, embora
admitindo sua descendência davídica, mostraram a mão calejada a fim de provar
que eram apenas pobres lavradores. Então, eles foram poupados. Mas o relato
mostra que ainda havia informação genealógica disponível.
Embora nenhum judeu do século X X pudesse provar que era da tribo de
Judá, que dirá que era da casa de Davi, mas isso não parece ter sido um problema
no século I, quando a linhagem era importante para conseguir acesso à adoração
do templo. Dessa distância, não temos como saber se Mateus teve ele mesmo
acesso aos registros ou se colheu sua informação de fontes intermediárias; mas,
em qualquer caso, “não temos bom motivo para duvidar que essa genealogia foi
transmitida em boa fé” (Aibright e Mann).
Mais difícil é a questão da relação da genealogia de Mateus e da de Lucas, em
especial, a parte da genealogia de Davi em diante (cf. Lc 3.23-31). Há diferenças
básicas entre as duas: Mateus começa com Abraão e segue adiante a partir dele;
Lucas começa com Jesus e retrocede até Adão. Mateus traça a linhagem através de
Jeconias, Salatiel (Sealtiel), e Zorobabel; Lucas traça a linhagem através de Neri,
Salatiel (Sealtiel). e Zorobabel. Mais importante, Lucas (3.31) traça a lin h a g e m
através de Natã, filho de Davi (cf. 2Sm 5.14), e Mateus traça a linhagem através
da linha real de Salomão. Diz-se, com frequência, que não é possível reconciliação
entre as duas genealogias (e.g., E. L. Abel, “The Genealogies o f Jesus O C R ISTO S”
[As genealogias de Jesus O C R IST O S”], N T S 20 [1974], p. 203-10). Não obs
tante, há duas teorias dignas de exame.
1. Alguns argumentam que Lucas apresenta a genealogia de Maria, mas
substitui o nome pelo de José (Lc 3.23) para evitar mencionar uma mulher. E há
alguma evidência para sustentar a noção de que a própria Maria era descendente
de Davi (cf. Lc 1.32). O fato de que Maria tinha relação com Isabel, casada com
o levita Zacarias (Lc 1.5-36), nao representa um problema, uma vez que o casamento
Mateus 1.1-17 88
entre as tribos não era incomum. N a verdade, a esposa de Arão podia bem ser
descendente de Judá (cf. Ex 6.23; N m 2.3; também Beng. CH S, Lutero). H. A. W.
Meyer rearranja a pontuação de Lucas 3.23 para que se leia: “Sendo o filho (de José,
conforme suposto) de Eli [i.e., pai de Maria], de Matate”. Mas isso é extremamente
artificial e não pode ser facilmente deduzido por um leitor com um texto sem
marcas de pontuação nem de parênteses, como foram escritos pela primeira vez
nossos M SS do Novo Testamento grego. Poucos poderiam adivinhar, apenas pela
leitura de Lucas, de que ele está fornecendo a genealogia de Maria. A teoria não se
origina do texto de Lucas, mas da necessidade de harmonizar as duas genealogias.
Em vista disso, Mateus e Lucas objetivam apresentar a genealogia de José.
2. Outros argumentam, com mais plausibilidade, que Lucas fornece a verdadeira
genealogia de José, e Mateus, a sucessão do trono — a sucessão que, no fim, passa
repentinamente para a linhagem de José. Hill (Matthew \Mateus\) oferece evidência
judaica independente para a possível linha dupla (Targ. Zc 12.12). Essa hipótese
tem várias formas. A mais antiga remonta a Júlio Africano (c. 225 d.C.; cf. Eusébio,
Ecclesiastical History [História eclesiástica], 1.7), o qual argumentava que Mateus
fornece a genealogia natural, e Lucas, a real — o reverso da teoria moderna (também
Alf, Farrer, Hill, Taylor, Westcott, Zahn). A teoria, em sua forma moderna, parece
bastante razoável: no ponto em que o propósito é fornecer a verdadeira descendência
de José voltando até Davi, isso poderia ser mais bem feito traçando a tradição da
família através de seu pai real Eli até seu pai Matate e, assim, voltar a Natã e Davi
(como em Lucas); e no ponto em que o propósito é fornecer a sucessão ao trono, é
natural começar com Davi e seguir desse ponto.
Essa teoria, conforme mais frequentemente apresentada, tem um sério
problema (cf. R. E. Brown, Birth ofMessiah [.Nascimento do Messias], p. 503-4).
Normalmente, argumenta-se que, em Mateus 1.16, o pai de José, Jacó, era um
irmão por parte de pai e mãe do pai de José mencionado em Lucas 3.23, Eli; que
Jacó, o herdeiro real, morreu sem deixar descendentes; e que Eli casou com a
viúva de Jacó, conforme a lei do casamento levirato (Dt 25.5-10). (Embora o
casamento levirato talvez não fosse comum no século I, é improvável que ele fosse
totalmente desconhecido. Do contrário, a pergunta dos saduceus [22.24-28] teria
sido formulada em termos irrelevantes.) Mas se Jacó e Eli têm de ser reconhecidos
como irmãos por parte de pai e mãe, então Matã (Mt) e Matate (Lc) devem ser o
mesmo homem — embora seus pais, Eleazar (Mt) e Levi (Lc), respectivamente,
sejam diferentes. Parece artificial recorrer a um segundo casamento levirato. Por
essa razao, alguns argumentam que Jacó e Eli eram apenas meio-irmãos, o que
acarreta mais coincidência — viz., que a mãe deles casou com dois homens, Matã
e Matate, com notável semelhança nos nomes. Não sabemos se o casamento levirato
era praticado no caso de meio-irmãos. Além disso, uma vez que todo o propósito
do casamento levirato era criar um filho em nome do pai morto, por que Lucas
fornece o nome do pai atual?
R. E. Brown julga que os problemas são insuperáveis, mas falha em considerar
a elegante solução sugerida por Machen (p. 207-9) cinquenta anos atrás. Se
assumirmos que Matã e Matate não são a mesma pessoa, não há necessidade para
89 Mateus 1.1-17
mencionada seja a prostituta de Josué 2 e 5 (veja mais em 1.6). Boaz (lC r 2.11,12),
que figura de forma tão proeminente no livro de Rute, casou-se com a moabita
(veja em 1.6) e gerou Obede, que se tornou pai de Jessé (Rt 4.22; lC r 2.12).
6 A palavra “rei” ao lado do nome de “Davi” evocava profunda nostalgia e
levantava esperança escatológica nos judeus do século I. Por isso, Mateus explicita
o tema real: o Rei Messias apareceu. A autoridade real de Davi, perdida no exílio,
agora, é recuperada e superada pelo “maior filho do grande Davi” (conforme o
hino “Hail to the Lords Anointed” [“Saudação ao Ungido do Senhor”] de James
Montgomery; cf. Box; Hill, Matthew \Mateus]; também cf. 2Sm 7.12-16; SI 89.19-
29,35-37; 132.11). Davi tornou-se pai de Salomão, mas a mãe de Salomão “tinha
sido mulher de Urias” (cf. 2Sm 11.27; 12.4). Assim, Bate-Seba torna-se a quarta
mulher mencionada nessa genealogia.
A inclusão dessas quatro mulheres na genealogia do Messias, em vez de uma
lista toda de homens (como era o costume) — ou, pelo menos, o nome de grandes
matriarcas como Sara, Rebeca e Lia — mostra que Mateus está transmitindo mais
que meramente dados genealógicos. Tamar atraiu seu sogro para um relacionamento
incestuoso (Gn 38). A prostituta Raabe salvou os espiões e juntou-se aos israelitas
(Js 2, 5); Hebreus 11.31 e Tiago 2.25 encorajam-nos a pensar que ela abandonou
seu antigo estilo de vida. Ela, com certeza, é proeminente na tradição judaica, algumas
delas fantásticas (cf. A. T. Hanson, “Rahab the Harlot in Early Christian Tradition”
[“Raabe, a prostituta, na tradição cristã primitiva”], Journalfor the Study ofthe New
Testament 1 [1978], p. 53-60). Rute, Tamar e Raabe eram estrangeiras. Bate-Seba
foi pega em uma relação adúltera com Davi, que cometeu assassinato para encobrir
esse fato. A forma peculiar de Mateus referir-se a ela, “mulher de Urias”, pode ser
uma tentativa de focar o fato de que Urias não era israelita, mas heteu (2Sm 11.3;
23.39). Bate-Seba mesma, aparentemente, era filha de um israelita (lC r 3.5 [leitura
variante]), mas é provável que fosse vista como hitita por causa de seu casamento
com Urias.
Sugerem-se diversos motivos para a inclusão dessas mulheres. Alguns mencionam
que três delas eram gentias, e a quarta, provavelmente, era vista como tal (Lohmeyer,
Matthãus [Mateus]; Maier; Schweizer, Matthew [Mateus]). Isso casa bem com a
referência à Abraão (cf. sobre 1.1); o Messias judeu estende sua bênção para além de
Israel, até porque gentios estão inclusos em sua linhagem. Outros mencionam que
três das quatro mulheres se envolveram em graves pecados sexuais; mas é muitíssimo
duvidoso que essa acusação possa ser legitimamente estendida a Rute. Contudo,
ela, como moabita, tinha sua origem baseada em incesto (Gn 19.30-37); e Deute-
ronômio 23.3 baniu a descendência dos moabitas da assembleia do Senhor por dez
gerações. R. E. Brown (Birth ofMessiah [Nascimento do Messias], p. 71-72) desconsi
dera essa interpretação do papel das quatro mulheres, porque elas, na piedade judaica
do século I, eram muitíssimo respeitadas, e seus erros foram encobertos. Não obs
tante, não há total certeza de que Mateus seguia seus contemporâneos em tudo isso.
É importante o fato de que Mateus, nesse mesmo capítulo, apresenta Jesus como
aquele que “salvará o seu povo dos seus pecados” (1.21), e esse versículo pode sugerir
91 Mateus 1.1-17
16 A melhor variante textual, sustentada por tipos dispersos de textos gregos, de testemunhos
de versão e por todos eles, menos de escrita uncial, encontra-se por trás da NVI.
Diversos testemunhos da Cesareia e em latim antigo preferem “José, marido de Maria,
a virgem que gerou Jesus, que é chamado Cristo”. Isso, do ponto de vista da transcrição
é menos provável que a primeira alternativa, em que o “marido” de Maria pudesse,
muito bem, ter sido considerado um equívoco. Nenhum manuscrito grego apoia syr“
na seguinte leitura: “José, marido de Maria, a virgem que gerou Jesus, que é chamado
Cristo”. À primeira vista, isso parece negar o nascimento virginal, atribuindo a
paternidade a José; mas o “gerou” pode ter relevância apenas legal, uma vez que Maria
ainda é mencionada como “virgem”. Em todo caso, essa última leitura não é bem
atestada. Nesse versículo, os problemas muitíssimo complexos de crítica textual são
competentemente tratados por Metzger, N T Studies [Estudos do NT\, p. 105-13;
Machen, p. 176-87; R. E. Brown, Birth ofMessiah [Nascimento do Messias], p. 62-64,
139 e A. Globe, “Some Doctrinal Variants in Matthew 1 and Luke 2, and the Authority
of the Neutral Text” [“Algumas variantes doutrinas em Mateus 1 e Lucas 2 e a
autoridade do texto neutro”], CBQ 42 (1980), p. 55-72, esp. p. 63-65.
17 No mundo da Antiguidade, as letras não serviam apenas para construir blocos de
palavras, mas também como símbolos numéricos. Por isso, toda palavra tinha valor
numérico; e o uso dessa simbologia é conhecido como gematria. Em hebraico, “Davi”
é TH (dâwid); e d = 4, w = 6 (as vogais, adição posterior ao texto não contam).
Portanto, “Davi” = dwd = 4 + 6 + 4= 1 4 . (Isso não funcionaria nos PMM, nos quais,
com uma exceção [CD 7.16], a consoante de “Davi” é duryd = T H .)
contra outra evidência, com base nessa reconstrução. Pior, nas mãos de alguns, essa
reconstrução transforma a compreensão dos discípulos em realidade histórica; ou
seja, Jesus não é preexistente nem nasceu de uma virgem, essas coisas foram progres
sivamente atribuídas a ele por seus seguidores. Assim, a evidência do evangelho
em relação à percepção de si mesmo de Jesus como preexistente é facilmente
descartada como posterior e não autêntica. O método é de valor duvidoso.
Mateus, a despeito da forte insistência na concepção virginal de Jesus, inclui
diversas alusões veladas à preexistência de Jesus; e não há motivo para pensar que
ele achasse os dois conceitos incompatíveis. Além disso, R. H. Fuller (“The Con-
ception/Birth of Jesus as a Christological Moment” [“A concepção/nascimento
de Jesus como um momento cristológico”], Journalfor the Study ofthe New Testa-
ment 1 [1978], p. 37-52) mostra que, no Novo Testamento, o tema concepção-
nascimento virginal não é frequentemente ligado ao tema do “envio do Filho”,
que (contra Fuller) em muitos lugares já pressupõe a preexistência do Filho.
3. Estamos lidando nesses capítulos com o Rei Messias que veio a seu povo
em relacionamento de aliança. O ponto é bem estabelecido, embora às vezes
exagerado, por Nolan, que fala da “cristologia da aliança real”.
4. É notável que não encontremos em Mateus 1— 2 o título “Filho de Deus”
que, mais adiante, torna-se importante no evangelho de Mateus. Ele pode estar à
espreita em 2.15. Contudo, seria falso argumentar que Mateus não conecta o
nascimento virginal ao título “Filho de Deus”. Mateus 1— 2 serve como prólogo
primorosamente trabalhado de todo tema importante do evangelho. Por essa razão,
devemos entender que Mateus está nos dizendo que se Jesus é filho fisicamente de
Maria e legalmente de José, ele, em um grau ainda mais fundamental, é Filho de
Deus; e nisso, Mateus concorda com a declaração de Lucas (Lc 1.35). A dupla
paternidade, uma legal e uma divina, é inequívoca (cf. Cyrus H. Gordon, “Pater-
nity at Two Leveis” [“Paternidade em dois graus”], JB L 96 [1977], p. 101).
18 A palavra traduzida por “nascimento” é, nos melhores manuscritos (cf.
notas), a palavra traduzida por “genealogia” em 1.1. Maier prefere “história” de
Jesus Cristo, assumindo que a frase se refere ao resto do evangelho. Contudo, é
melhor assumir que a palavra quer dizer “nascimento”, ou “origem”, no sentido
do início do Jesus Messias. Nem mesmo uma cristologia bem desenvolvida gostaria
de pôr o homem “Jesus” e seu nome de volta à condição de preexistência (cf. em
1.1). O compromisso de casamento era uma ligação legal. Apenas o divórcio em
Juízo poderia desfazê-lo, e a infidelidade nesse estágio do compromisso era
considerada adultério (cf. D t 22.23,24; Moore, Judaism \Judaísmo\, 2:121-22). O
casamento mesmo acontecia quando o noivo (já denominado “marido”; 1.19) levava
cerimonialmente a noiva para casa (veja em 25.1-3). Aqui, Maria é apresentada
discretamente. Embora comparando os relatos do evangelho, eles forneçam-nos
um retrato dela, mas Maria não ocupa muito espaço no evangelho de Mateus.
“Antes que se unissem” {prin ê synelthein autous), às vezes, no grego clássico,
refere-se ao intercurso sexual (LSJ, p. 1712); contudo, nas outras trinta ocorrências
de synerchomai no Novo Testamento não há nuanças sexuais. Mas aqui a união
sexual está incluída, ocorrendo quando, no casamento formal, a “esposa” vai morar
Mateus 1.18-25 100
com seu “marido”. Apenas nesse momento, o intercurso sexual era apropriado. A
frase afirma que a gravidez de Maria foi descoberta enquanto ela ainda era noiva,
e o contexto pressupõe que Maria e José eram castos (cf. McHugh, p. 157-63; e
para os costumes da época, M Kiddushin [“Contrato de casamento, noivos”] e M
Ketuboth [“Casamento propriamente dito”]).
O fato de Maria “ach[ar]-se” grávida não sugere uma tentativa sub-reptícia
de encobrimento de alguma coisa (“achou-se”), mas apenas que a gravidez dela se
tornou evidente. Essa gravidez aconteceu por intermédio do Espírito Santo (fato
ainda mais proeminente na narrativa do nascimento de Lucas). Não há nenhum
indício de deidade humana pagã copulando em termos grosseiramente físico. Ao
contrário, o poder do Senhor, manifesto no Espírito Santo que se esperava fosse
ativo na era messiânica, realizou milagrosamente a concepção.
19 A peculiar expressão grega apresentada nesse versículo permite diversas
interpretações. Eis as três mais importantes.
1. José, por saber da concepção virginal, era um homem justo e não queria
tornar o assunto público (i.e., divulgar essa concepção milagrosa), sentiu-se indigno
de continuar com seu plano de casar com pessoa tão altamente favorecida e
planejava desistir do casamento (conforme Gundry, Mattheiv [.Mateus\ \ McHugh,
p. 164-72; Schlatter). Isso pressupõe que Maria contou a José a respeito da
concepção. Não obstante, a forma natural de ler os versículos 18 e 19 é que José
soube da condição de sua noiva quando ela se tornou evidente, e não quando ela
lhe contou. Além disso, o motivo apresentado pelo anjo para que José prosseguisse
com o plano de casamento (v. 20) pressupõe (contra Zerwick, par. 477) que José
não sabia da concepção virginal.
2. José, por ser era um homem justo e por não querer expor Maria à desgraça
pública, propôs um divórcio discreto. O problema com essa interpretação é que
“justo” (NVI; “reto”) não é definido de acordo com a lei do Antigo Testamento,
mas no sentido de “misericordioso”, “não dado a vingança passional” ou até mesmo
“bom” (cf. ISm 24.17; N T LH ). Mas esse não é o sentido normal da palavra.
Falando estritamente da justiça concebida nas prescrições mosaicas, ela exigia algum
tipo de ação.
3. José, por ser um homem justo, não podia, em sã consciência, casar com
Maria, agora sabidamente infiel a ele. E por esse casamento ser uma admissão tácita
de sua própria culpa e também por ele não querer expô-la à desgraça do divórcio
público, José escolheu uma solução mais discreta permitida pela lei. O pleno rigor
da lei poderia levar ao apedrejamento de Maria, embora este acontecesse raramente
no século I. Contudo, era possível um divórcio público, embora aparentemente
José não estivesse disposto a expor Maria a essa vergonha. A lei também permitia o
divórcio privado diante de duas testemunhas (Nm 5.11-31; interpretado como na
M Sotah 1.1-5; cf. David Hill, “A Note on Matthew i. 19” [“Um nota sobre
Mateus 1.19”], ExpT 76 [1964-65], p. 133-34; um tanto semelhante, A. Tosato,
“Joseph, Being a Just Man (Mtt 1.19)” [“José, um homem justo (Mt 1.19)”], C B Q
41 [1979], p. 547-51). Esse era o propósito de José. Essa solução deixaria sua justiça
(sua conformidade com a lei) e sua compaixão intatas.
101 Mateus 1.18-25
20 José tentou resolver esse dilema da forma que lhe parecia ser a melhor
possível. Apenas nesse momento, Deus interveio com um sonho. No Novo Testa
mento, os sonhos como forma de comunicação divina estão concentrados no
prólogo de Mateus (1.20; 2.2,13,19,22; em outras passagens, possivelmente, 27.19;
At 2.17). A expressão “Anjo do Senhor” (mencionada quatro vezes no prólogo;
1.20,24; 2.13,19) traz à lembrança os mensageiros divinos de eras passadas (e.g.,
Gn 16.7-14; 22.11-18; Ex 3.2— 4.16), nas quais nem sempre ficava claro se o
"mensageiro” celestial (o sentido de angelos) era uma manifestação de Iavé. A maioria
deles, em geral, aparecia como homens. Não devemos ler pinturas medievais na
palavra “anjo” nem os querubins estilizados de Apocalipse 4.6-8. O foco é a interven
ção graciosa de Deus, e a comunicação privada do mensageiro, não os detalhes da
angelologia e seu movimento panorâmico na história comum na literatura judaica
apocalíptica (Bonnard).
As palavras iniciais do anjo: “José, filho de Davi”, liga essa perícope à genealogia
precedente, mantém o interesse no tema do Messias davídico e, da perspectiva de
Tosé, alerta-o para a relevância do papel que ele tem a desempenhar. A admoestação:
“Não tema”, confirma o fato de que José já decidira o caminho a seguir quando
Deus interveio. Ele tinha de “receber” Maria como esposa — expressão que reflete
principalmente os costumes de casamento da época, mas não exclui o intercurso
sexual (cf. TD N T, 4:11-14, para outros usos do verbo) — porque a gravidez de
Maria era um ato direto do Espírito Santo (motivo pelo qual não faz sentido a
;entativa de James Lagrand [“How Was the Virgin Mary ‘like a man’...? A Note
on Mt i 18b and Related Syriac Christian Texts” (“Como a virgem era ‘semelhante
ao homem’ ...? Um nota sobre M t 1.18b e textos cristãos siríacos relacionados”),
XovTest 22 (1980) p. 97-107] para fazer referência ao Espírito Santo em 1.18, ek
fneumatos hagiou [“pelo Espírito Santo”], com o sentido de que Maria gerou,
“como um homem, pela vontade”) .
21 Sem dúvida, foi a graça divina que solicitou a cooperação de Maria antes
da concepção e a cooperação de José só depois disso. Aqui, José é apresentado ao
mistério da encarnação. Nos tempos patriarcais, a mãe (Gn 4.25) ou o pai (Gn
4.26; 5.3; cf. R. E. Brown, Birth ofMessiah [Nascimento doMessias\, p. 130) podia
dar nome ao filho. De acordo com Lucas 1.31, foi dito a Maria apenas o nome
Jesus, mas foi dito a José o nome e o motivo para dar esse nome. O sentido literal
no grego é: “Você chamará o nome dele de Jesus” , estranho em grego e em
português. Isso não é só um semitismo (BDF, par. 157 [2] — a expressão ocorre
de novo em 1.23,25; Lc 1.13,31), mas também usa o futuro do indicativo (kaleseis,
lit. “você chamará”) com força de imperativo — daí a NVI traduzir por: “Você
deverá dar-lhe o nome de Jesus”. Essa construção é muito rara no Novo Testa
mento, exceto quando a LXX está sendo citada; o efeito é dar ao versículo uma
forte nuança de Antigo Testamento.
“Jesus” [Iêsous) é a forma grega de “Josué” (cf. gr. de At 7.45; Hb 4.8) que, quer
na forma longa yfhôsua' (“Iavé é salvação”; Ex 24.14) quer nas formas abreviadas,
e.g., y êsü a' (“Iavé salva”; Ne 7.7), identifica o Filho de Maria como aquele que traz
a prometida salvação escatológica de Iavé. H á diversos Josués no Antigo Testa
Mateus 1.18-25 102
mento, pelo menos, dois deles de pouca relevância (ISm 6.14; 2Rs 23.8). No
entanto, outros dois são usados no Novo Testamento como tipos de Cristo; Josué,
sucessor de Moisés, que leva o povo para a terra prometida (é um tipo de Cristo
em Hb 3— 4), e Josué o sumo sacerdote contemporâneo de Zorobabel (Ed 2.2;
3.2-9; Ne 7.7), “o ramo” que construiu o templo do Senhor (Zc 6.11-13). Mas o
anjo, em vez de se referir a esses, explica o sentido do nome referindo-se a
Salmos 130.8; “Ele [Iavé] próprio redimirá Israel de todas as suas culpas” (cf.
Gundry, Use ofO T \U so do AT], p. 127-28).
Havia muita expectativa por parte dos judeus em um Messias que “redimiria”
Israel da tirania romana e até mesmo purificaria seu povo, quer por decreto quer
pela lei (e.g., SI Sal 17). Mas não havia expectativa de que o Messias davídico
daria sua própria vida em resgate (20.28) para salvar seu povo do pecado. O verbo
“salvar” pode se referir à libertação do perigo físico (8.25), da doença (9.21,22)
ou até mesmo da morte (24.22); no Novo Testamento, o verbo refere-se comumente
à salvação abrangente inaugurada por Jesus e que será consumada em seu retorno.
Aqui, o verbo foca o que é central, viz., a salvação do pecado; pois da perspectiva
bíblica, o pecado é a causa fundamental (se não sempre a imediata) de todas as
outras calamidades. Por isso, esse versículo orienta o leitor para o propósito fun
damental da vinda de Jesus e para a natureza essencial do reinado que ele inaugura
como Rei Messias, herdeiro do trono de Davi (cf. Ridderbos, p. 193ss.).
Embora para José “seu povo” fosse judeu, até mesmo José entendia, a partir do
Antigo Testamento, que alguns judeus caíram sob o julgamento de Deus, enquanto
outros se tornaram o remanescente piedoso. De todo jeito, Mateus, não muito
depois, diz que João Batista (3.9) e Jesus (8.11) retratam a união dos gentios com o
remanescente piedoso para se tornar discípulos do Messias e membros de “seu povo”
(veja em 16.18; cf. Gn 49.10; T t 2.13,14; Ap 14.4). Portanto, a expressão “seu
povo” é cheia de sentidos que são revelados progressivamente conforme o evangelho
se desenrola. Eles referem-se ao “povo do Messias”.
22 Embora a maioria das versões da Bíblia incluam as advertências do anjo
no final do versículo 21, há bom motivo para pensar que elas continuam até o
final do versículo 23 ou, pelo menos, até a palavra “Emanuel”. Há apenas três
ocorrências dessa fórmula específica de cumprimento em Mateus; aqui, em 21.4
e em 26.56. E natural tomar a última como parte da fala relatada de Jesus (cf.
26.55); e, em 21.4, isso também é possível, embora seja menos provável. Os
padrões de Mateus são bastante consistentes. Assim, não é artificial também
estender a citação até o fim de 1.23. (BJ reconhece a consistência de Mateus
terminando as palavras de Jesus em 26.55 e transformando 26.56 em comentário
de Mateus!) O argumento é mais convincente quando lembramos que só essas
três fórmulas de cumprimento usam o perfeito, gegonen (NVI, “aconteceu”), em
vez do esperado aoristo. Alguns consideram o verbo como um exemplo perfeito
para o aoristo (como BDF, par. 343, mas essa é uma classificação passível de
discussão). Outros acham que isso representa que o evento “permanece registrado”
na tradição cristã permanente (McNeile; Moule, Idiom Book [Livro de expressões
idiomáticaí], p. 15); ainda outros consideram que isso é um indicador estilístico
103 Mateus 1.18-25
24,25 Quando José desperta (de seu sono, não de seu sonho), ele “recebeu
Maria como sua esposa” (v. 24; a mesma expressão de 1.20). Do começo ao fim
de Mateus 1— 2 repete-se o padrão da intervenção soberana de Deus, seguida da
resposta de José ou dos magos. Embora a história seja contada de forma simples,
a obediência e submissão de José sob essas circunstâncias são dificilmente menos
notáveis que a de Maria (Lc 1.38).
Mateus quer deixar bem clara a concepção virginal de Jesus, pois acrescenta
que José não teve união sexual com Maria (lit., ele não a “conheceu” , eufemismo
do Antigo Testamento) enquanto ela não deu à luz a Jesus (v. 25). O condicional
“enquanto” quer dizer mais naturalmente que, após o nascimento de Jesus, Maria
e José desfrutaram de relações conjugais normais (cf. mais em 12.46; 13.55).
Contrário a McHugh (p. 204), o imperfeito eginôsken (“não [a] conheceu”) não
indica celibato continuado após o nascimento de Jesus, mas enfatiza a fidelidade
do celibato até o nascimento de Jesus.
Assim, o Emanuel virginalmente concebido nasceu. E oito dias depois, quando
chegou o momento de ele ser circuncidado (Lc 2.21), José chamou-o de “Jesus”.
Notas
18 Alguns manuscritos trazem yevvr|OLÇ (gennêsis, “nascimento”), em vez de y éfe o iç (genesis,
“nascimento”, “origem” ou “história”): as duas palavras são facilmente confundidas
tanto na ortografia quanto, no sistema de pronúncia antigo, na fonética. A primeira
palavra é comum nos pais da igreja para se referir à natividade e é cognata de 'yevváw
(gennaô, “gerei”); portanto, da perspectiva transcricional, é menos provável de ser
original.
O ôe (de, “mas”) começando o versículo é, sem dúvida, um adversativo brando. Todas
as gerações precedentes foram enumeradas, “mas” o nascimento de Jesus aparece em
classe totalmente sua.
0'utcoç (houtôs, “assim”) com o verbo fjv (ên, “foi”) é raro e aqui equivale a touxÚtt]
(toiàutê, “dessa maneira”; cf. BDF, par. 434 [2]).
“Espírito Santo” é usado sem artigo, o que não é incomum nos evangelhos; e nesse
caso, a ordem da palavra é sempre nveü|ia cqaov (pneuma hagiorí). Quando o artigo é
usado, há até mesmo, aproximadamente, uma distribuição entre xò ayi,ov tiveújia (to
hagion pneuma, “o Espírito Santo”) e zò Trvet)|ia to ír/iov (to pneuma to hagion-, o “o
Espírito o Santo”); cf. Moule, Idiom Book [Livro de expressões idiomáticas], p. 113.
19 Em ÕLKotioç ciov Kai (-xf| Gèlcov (dikaios ôn Kai mê thelôn, lit., “sendo justo e não
estando disposto”; NVT, “homem justo, e não querendo”) não parece possível considerar
o primeiro particípio concessivamente (i.e., “embora um homem justo”) por causa do
kai\ os dois particípios devem ser considerados como coordenados.
20 ’Iôou (idou, “olhe”) é a primeira das sessenta e duas ocorrências em Mateus. O verbo,
com frequência, introduz ação surpreendente (cf. Schlatter) ou serve para levantar
interesse (Hendriksen), mas é tão comum que, às vezes, não ter força alguma (cf.
Moulton, Prolegomena [Prolegômenos], p. 11; E. J. Pryke, “IDE and IDOU” [“IDE e
IDOU”], NTS 14 [1968], p. 418-24).
21 O substantivo 'qiapTÚx (hamartia, “pecado”) ocorre em 3.6; 9.2,5,6; 12.31; 26.38; 'oqoaprava)
(hamartanê, “peco”) é encontrado em 18.15,21; 27.4; e 'a|iapi:côXóç,{hamartôlos,
“pecador”) ocorre em 9.10,11,13; 11.19; 26.45.
109 Mateus 2.1-12
1 Belém, local próximo do qual Jacó enterrou sua Raquel (Gn 35.19) e do
qual Rute conheceu Boaz (Rt 1.22— 2.6), foi de modo destacado a cidade em que
Davi nasceu e foi criado. Para os cristãos, ela tornou-se o lugar em que multidões
de anjos romperam o silêncio e anunciaram o nascimento do Messias (Lc 2). Ela
é distinguida da Belém de Zebulom (Js 19.15) pelas palavras “da Judeia”. Os
estudiosos entendem essas duas palavras como preparação para o versículo 6:
“Belém, da terra de Judá” (embora lá a forma hebraica “Judá” seja usada, em vez
da grega “Judeia”), ou para o versículo 2: “Rei dos judeus”. Todavia, talvez “Belém
da Judeia” não fosse muito mais que uma frase estereotipada (cf. Jz 17.7,9; 19.1-
20; Rt 1.1,2; ISm 17.12; M t 2.5). Lucas 2.39 não faz menção de uma estadia
prolongada em Belém e uma viagem ao Egito antes do retorno a Nazaré; se Lucas
conhecia esses eventos, achou-os irrelevantes para seu propósito.
Mateus, ao contrário de Lucas, não oferece descrição do nascimento de Jesus
nem da visita dos pastores; ele especifica a época do nascimento como ocorrido
durante o reinado do rei Herodes (também Lc 1.5). Herodes, o Grande, como
agora é chamado, nasceu em 73 a.C. e foi nomeado rei da Judeia pelo Senado
romano em 40 a.C. Por volta de 37 a.C., ele acabou, com a ajuda das forças
romanas, com todos que se opunham ao seu governo. Filho do idumeu Antípatro,
ele era rico, dotado politicamente, muitíssimo leal, excelente administrador e astuto
o bastante para permanecer nas boas graças de sucessivos imperadores romanos.
Seu programa de auxílio contra a fome foi soberbo e seus projetos de construção
(incluindo o templo começado em 20 a.C.) eram admirados até mesmo por seus
inimigos. Mas ele amava o poder, impôs impostos incrivelmente pesados sobre o
povo e se ressentia com o fato de que muitos judeus o consideravam um usurpador.
Em seus últimos anos, Herodes, sofrendo de uma doença que aumentou sua para
nóia, tornou-se cruel e, tomado por acesso de raiva e de ciúme, matou associados
próximos, sua esposa Mariana (descendente judia dos macabeus) e, pelo menos,
dois de seus filhos (cf. Jos., Antiq. XIV-XVTII; S. Perowne, The Life and Times o f
Herod the Great [A vida e os tempos de Herodes, o Grande] [London: Hodder and
Stoughton, 1956]; e esp. Abraham Schalit, Konig Herodes: Der M ann und sein
Werk [Berlin: de Gruyter, 1969]).
Tradicionalmente, alguns sustentam que Herodes morreu em 4 a.C.; portanto,
Jesus deve ter nascido antes disso. Josefo (Antiq. XVII, 167 [vi.4]) menciona um
eclipse da lua ocorrido pouco antes da morte de Herodes, e esta é normalmente
identificada como tendo ocorrido em 12-13 de março de 4 a.C. Após a morte de
Herodes houve uma celebração de Páscoa (Jos. Wars II, 10 [i.3]; Antiq. XVII, 213
[íx.3]), presumivelmente em 11 de abril de 4 a.C.; portanto, à primeira vista a data
de sua morte parece segura. Contudo, recentemente, Ernest L. Martin {The Birth o f
Christ Recalculated! [O nascimento de Cristo recalculado!\ [Pasadena: FBR, 1978], p.
22-49) propôs sólidos motivos para achar que o eclipse ocorreu em 10 de janeiro do
século I a.C.; e Martin, integrando essa informação com sua interpretação de outras
datas relevantes, propôs a data do nascimento de Jesus em setembro do século II
a.C. (Sua localização exata da data em 1 de setembro baseou-se em sua interpretação
de Apocalipse 12.1-5, muito especulativa para ser considerada.) Diversas linhas
Mateus 2.1-12 112
sacerdotais (cf. Jos. Antiq. XX, 180 [viii.8]; War IV, 159-60 [iii.9]; a mesma palavra
grega é usada para “sumos sacerdotes” e “chefes dos sacerdotes”). Os “mestres da
lei”, ou “escribas”, como outras versões os denominam, eram peritos no Antigo
Testamento e em sua fecunda tradição oral. O trabalho deles não era tanto de
copiar os manuscritos do Antigo Testamento (como sugere a palavra “escribas”)
quanto de ensinar o Antigo Testamento. Como muitas leis civis eram baseadas no
Antigo Testamento e nas interpretações do Antigo Testamento estimuladas pelos
líderes, os “escribas” também eram “advogados” (cf. 22.35, “perito na lei”).
A grande maioria dos escribas era fariseu; os sacerdotes eram saduceus. Os
dois grupos mal se davam, por isso, Schweizer (Matthew [Mateus]) julga esse
versículo “quase inconcebível historicamente”. Todavia, Mateus não diz que os
dois grupos foram ao mesmo tempo. Herodes, não amado pelos dois grupos,
bem pode ter chamado os dois grupos para evitar ser enganado. Se os fariseus e os
saduceus mal se falavam havia menos probabilidade de conspiração. “Perguntou-
lhes” (epynthaneto, o tempo imperfeito, às vezes, conota pedidos hesitantes: Herodes
pode ter esperado o malogro do silêncio; cf. Turner, Insights [Percepções], p. 27)
onde o Cristo (aqui um título; veja em 1.1) nasceria, compreendendo que “o
Cristo” e “o rei dos judeus” (2.2) eram títulos da mesma pessoa esperada. (Veja
26.63; 27.37 para a mesma equivalência.)
5 Os líderes judeus responderam à pergunta referindo-se ao que foi escrito,
que é a força do verbo passivo perfeito gegraptai (NVI, “assim escreveu”), sugerindo
a força autoritativa e reguladora do documento mencionado Deiss BS, p. 112-14;
249-50). A NV I omite a preposição dia (lit., “o que permanece escrito por
intermédio do profeta”), o que sugere que o profeta não é a fonte última do que foi
escrito (cf. em 1.22). Em 1.22 e aqui, alguns testemunhos textuais inserem o
nome do profeta (e.g., Miqueias ou até mesmo Isaías). “Belém da Judeia” foi
introduzida na narrativa em 2.1.
6 Embora a expectativa de que o Messias venha de Belém ocorra em outras
passagens (e.g., Jo 7.42; cf. Targ., sobre M q 5.2: “De ti virá para mim aquele que
será o governante sobre Israel”), aqui ela repousa em Miqueias 5.2 (1 TM ), ao
qual são acrescentadas algumas palavras de 2Samuel 5.2 (lC r 11.2). Mateus não
segue o texto massorético nem a LXX, e as mudanças que realizou provocaram
bastante especulação.
1. “Belém-Efrata” (LXX, “casa de Efrata”) torna-se “Belém, da terra de Judá”.
Hill (.Matthew [Mateus]) diz que essa mudança foi feita para excluir “alguma outra
cidade de Judá como Jerusalém”. Mas isso é ler demais no que é uma forma
comum da LXX se referir a Belém (cf. Gundry, Use o fO T [Uso do AT], p. 91).
“Efrata” é arcaico e, até mesmo no texto massorético, está primariamente restrito
às seções poéticas, como Miqueias 5.2.
2. A forte negativa “de forma alguma” (oudamôs) é acrescentada em Mateus e
contradiz formalmente Miqueias 5.2. Argumenta-se, com frequência, que essa
mudança foi feita a fim de enfatizar Belém como o local de nascimento do Messias.
Na verdade, o comentário de Gundry usa essa mudança como exemplo do uso
midráshico que Mateus faz do Antigo Testamento, ele faz um uso tão livre que
Mateus 2.1-12 116
não teme cair em total contradição. H á melhores explicações. Até mesmo o texto
massorético de Miqueias sugere a grandeza de Belém: “Mas tu, Belém-Efrata,
embora pequena entre os clãs [ou governantes que personificam as cidades; na
ARA, ‘milhares’ está pedantemente correto, mas ‘milhares’ é uma forma de se
referir aos grandes clãs em que as tribos eram subdivididas; cf. Jz 6.15; ISm 10.19;
23.23; Is 60.22] de Judá”, estabelece o palco para a grandiosidade que se segue.
Da mesma forma, a formulação de Mateus assume que Belém, afora ser o local de
nascimento do Messias, na verdade, tem pouca importância (cf. Hengstenberg,
1:475-76, mencionado por Gundry, Use ofO T [U so do AT], p. 91-92). Para pôr
de outra maneira, embora a segunda linha de Miqueias 5.2 contradiga formalmente
a segunda linha de Mateus 2.6, uma leitura completa e capacitada dos versículos
mostra que a contradição é meramente formal. Talvez Mateus 2.6 enfatize
levemente mais um fator que torne Belém maior.
3. Mateus acrescenta a linguagem de pastor de 2Samuel 5.2, deixando claro
que o governante de Miqueias 5.2 não é outro senão aquele que cumpre as
promessas feitas a Davi.
E tentador achar que Mateus vê dois contrastes: (1) entre os falsos pastores de
Israel, que fornecem respostas corretas, mas não liderança (cf. 23.2-7), e Jesus que
é o verdadeiro Pastor de seu povo Israel e (2) entre um governante como Herodes
e o nascido para governar. As palavras “Israel, o meu povo” são incluídas não só
porque estão em 2Samuel 5.2, mas também porque Mateus, como Paulo, registra
fielmente o foco judaico essencial das promessas do Antigo Testamento e da
expectativa do Antigo Testamento de uma aplicação mais ampla aos gentios (cf.
sobre 1.1,5,21). Jesus não é apenas o rei davídico prometido, mas também a
prometida esperança de bênção para todas as nações, aquele que exige a reverência
delas (cf. SI 68.28-35; Is 18.1-3,7; 45.14; 60.6; S f 3.10). A mesma dualidade faz
o desejo dos magos gentios de adorar o Messias destacar-se contra a apatia dos
líderes, os quais, aparentemente, não se dão ao trabalho de ir a Belém. Claro que
talvez os líderes judeus tenham visto a chegada dos magos em Jerusalém como
mais um alarme falso.
Até o ponto em que podemos saber, os saduceus (e, portanto, os chefes dos
sacerdotes) não tinham interesse na questão de quando o Messias viria; os fariseus
(e, portanto, muitos dos mestres da lei) esperavam que ele viesse apenas um tanto
mais tarde. Apenas os essênios, que não foram consultados por Herodes, esperavam
a chegada iminente do Messias (cf. R. T. Beckwith, “The Significance of the Calen-
dar for Interpreting Essene Chronology and Eschatology” [“A relevância do
calendário para interpretar a cronologia e escatologia essênias”], Revue de Qumran
38 [1980], p. 167-202). Mas Mateus diz claramente que, embora Jesus fosse o
Messias, nascido na linhagem de Davi e fosse, com certeza, o Pastor e Governante
de Israel, foram os gentios que foram o adorar.
7-10 O motivo para Herodes querer saber, em seu encontro secreto com os
magos (v. 7), o momento exato do aparecimento da estrela era por ele já ter
planejado matar os bebês do sexo masculino de Belém (cf. v. 16). A história toda
é consistente (veja sobre v. 16). A hipócrita humildade de Herodes — “para que
117 Mateus 2.1-12
Notas
1,2 A palavra ávaxoXri (anatole) pode ter o sentido de “ascendente” ou “Oriente”. No v. 1,
a NVI traduz corretamente octtÒ àvaxoXíòv (apo anatolôn, “do Oriente”), uma vez que
o nome, em geral, indica o ponto da bússola quando ele é plural e usado sem artigo
(cf. BDF, 253 [5]). Por meio da mesma indicação, é menos provável queéf Tf| àvaxokr\
(en tê anatolê) nos versículos 2 e 9 seja “no Oriente” que “em sua ascensão” (o artigo
pode abrandar a força possessiva). Outras sugestões — e.g., que a expressão se refere a
uma terra específica do Oriente ou a Anatólia no Ocidente — parecem menos
convincentes; mas a questão é extraordinariamente complexa (cf. Turner, Insights
[Percepções], p. 25-26; R. E. Brown, Birth ofMessiah [Nascimento do Messias], p. 173).
2 O particípio na construção 'o PaatAeúç (ho techtheis basileus, lit., “recém-nascido
rei”) é adjetivo, não substantivo e é usado atributivamente. Além disso, não há sugestão
de “recém-nascido” (cf. C. Burchard, “Fussnoten zum neutestamendichen Griechisch
II”, ZNW 29 [1978], p. 143-57), o que já foi descartado pelas notas cronológicas (w.
7,16).
Há três ocorrências do verbo irpooKUvéco (proskyneô, “adorar”) nessa perícope (cf. w.
8,11) e dez outras no evangelho de Mateus. No Novo Testamento, o objeto dessa
“adoração” é quase sempre Deus ou Jesus, a não ser quando alguém está agindo de
forma ignorante e é repreendido (At 10.25,26; Ap 19.10; 22.8,9). Mas Apocalipse 3.9
é uma importante exceção (NVI, “prostrem aos seus pés”). O grego secular usava o
verbo para uma grande variedade de graus de reverência e é precário para a construção
de muita cristologia sobre o uso do termo nos evangelhos.
3 As palavras u&oa 'Iepoaolupa {pasa Hierosolyma, “toda Jerusalém”) trai uma ruptura de
harmonia uma vez que a palavra pasa é feminina, mas essa forma de “Jerusalém”, ao
contrário da forma alternativa 'IepouaaÀr||i (Ierousalêm), não é feminina, mas plural
neutro. Provavelmente pasa é um precursor do indeclinável pasa do grego moderno
(por isso, BDF, par. 56 [4]); mas marginalmente é mais provável que o substantivo
esteja sendo tratado como feminino singular, uma vez que há outras circunstâncias em
que é construído como feminino singular, embora pasa não esteja no presente.
5,6 Mateus usa o singular irpocj)r|Toi) (prophêtou, “profeta”), embora sejam citadas duas
passagens diferentes, a do primeiro e do último profeta , respectivamente. Contudo,
parece uma prática comum referir-se a um autor, talvez o principal, quando cita dois
ou três autores (cf. 27.9; Mc 1.2,3).
7 Tóie (tote, “então”) é muito comum em Mateus, havendo noventa ocorrências, quando
comparado com as seis ocorrências em Marcos e quatorze, em Lucas; mas o uso em
Mateus só, às vezes, tem força temporal (como aqui), servindo com mais frequência
como um conectivo indefinido.
10 As palavras “encheram-se de júbilo” traduz um acusativo cognato è/ápipav %apáv
(echarêsan charan, lit., “regozijaram com alegria”) provavelmente sob influência semítica
(cf. Moule, Idiom Book [Livro de expressões idiomáticas], p. 32; BDF, par. 153[1]).
Muitos comentaristas acham que esse relato foi criado a fim de dar conteúdo
à declaração de que o Antigo Testamento foi “cumpri[do]” (v. 15). A respeito de
questões críticas mais abrangentes veja os comentários introdutórios de 1.18-25 e
2.1-12. Considerando-se o que sabemos dos últimos anos de Herodes, não há
nada improvável, da perspectiva histórica, nesse relato; e exatamente porque o
texto de cumprimento é difícil, pode-se presumir que a história incita a reflexão a
respeito do texto do Antigo Testamento, em vez de vice-versa.
13,14 O verbo “ficar” (v. 13) é o mesmo para “retornar” do versículo
precedente, ligando os dois relatos. Esse é o terceiro sonho nesses dois capítulos,
e, pela segunda vez, um anjo do Senhor é mencionado (cf. 1.20; 2.12). O ponto
é que Deus agiu de forma soberana para preservar seu Messias, seu Filho — algo
bem entendido por Jesus mesmo, e esse é o tema principal do evangelho de João.
O Egito era o lugar natural para onde fugir. Era uma província romana próxima,
bem organizada e fora da jurisdição de Herodes; e, de acordo com Filo (escreveu
em c. 40 d.C.), a população do Egito incluía cerca de um milhão de judeus.
Gerações anteriores de israelitas fugiram de sua terra natal (lR s 11.40; Jr 26.21-
23; 43.7) e buscaram refugio no Egito. No entanto, se Mateus estava pensando
em algum paralelo particular do Antigo Testamento, provavelmente tinha em
mente Jacó e sua família (Gn 46) fugindo da fome que assolou Canaã, uma vez
que essa foi a viagem que estabeleceu o palco para o êxodo (cf. 2.15).
A ordem do anjo foi explícita. José, Maria e a criança deviam permanecer no E-
gito não só até Herodes morrer, mas também até ser dada ordem para que retornas
sem (cf. w. 19,20). A ordem também era urgente. José partiu imediatamente, saindo
à noite para iniciar a jornada de 120 quilômetros até a fronteira. E indiscutível o
foco na proteção de Deus para “o menino”. Herodes tentaria matá-lo (v. 13), e José
tomou “o menino e sua mãe” (v. 14 — não na ordem normal) e partiu para o Egito.
15 A morte de Herodes trouxe alívio para muitos. Apenas então, por exemplo,
os aliançados de Qumran retornaram ao seu centro, destruído em 31 a.C. e o
reconstruíram. No Egito, a morte de Herodes tornou possível a volta do menino,
de Maria e de José, que aguardavam a palavra do Senhor. Poder-se-ia traduzir o
grego por: “E assim se cumpriu” (NVI); ou: “ [Isso aconteceu] a fim de que a Palavra
do Senhor [...] fosse cumprida”. Dessas duas maneiras, a noção de cumprimento
preserva alguma força télica na sentença: a saída de Jesus do Egito cumpriu a
Escritura escrita havia muito tempo.
A citação do Antigo Testamento (v. 15) quase com certeza (cf. notas) vem de
Oseias 11.1 e foi traduzida exatamente do hebraico, não da LXX que traz “seus
filhos”, e não “meu filho”. (Nisso, Mateus concorda com Aq., Sim. e Teod., mas só
porque todos os quatro dependem do hebraico.) Alguns comentaristas (e.g:, Beng;
Gundry, Use o fO T [Uso do AT\, p. 93-94) argumentam que a preposição ek (“do”,
NVI) poderia ser tomada temporalmente, isto é, “desde o Egito”, ou melhor: “Da
época [em que ele morou] no Egito”. A preposição pode ter essa força; e há concor
dância que o versículo 15 quer dizer que Deus “cham[ou] ” Jesus do Egito, no sentido
de que ele o reconheceu especialmente e o preservou da época de sua jornada egípcia
em diante, protegendo-o contra Herodes. Afinal, o êxodo mesmo não é mencionado
até os versículos 21,22.
Mateus 2.13-15 120
[mento] ” deve ser entendido contra o pano de fundo desses temas interligados e as
conexões tipológicas deles.
3. Portanto, segue-se que os escritores do Novo Testamento não pensam que
estão lendo em retrospectiva coisas do Antigo Testamento que, na verdade, não
estão lá embrionariamente. Isso não quer dizer que Oseias tinha o Messias em
mente quando escreveu Oseias 11.1. Essa admissão incitou W L. LaSor (“Prophe-
cy, Inspiration, and Sensus Plenior’ [“Profecia, Inspiração e Sensus Plenior”], Tyndale
Bulletin 29 [1978], p. 49-60) a ver no uso de Oseias 11.1 por Mateus um exemplo
de sensus plenior, com o que ele pretende um “sentido mais pleno” do que estava
presente na mente de Oseias, mas algo que, entretanto, estava presente na mente
de Deus. Mas um apelo tão brusco ao que Deus ocultou de forma tão absoluta
parece um estranho pano de fundo para a insistência de Mateus de que, em algum
sentido, a partida de Jesus do Egito cumpre a passagem de Oseias. Essa observação
não é trivial; Mateus estava argumentando com judeus que poderiam dizer: “Você
não está sendo justo com o texto”! Portanto, é necessária uma posição mediadora.
Oseias 11 retrata o amor de Deus por Israel. Embora Deus ameace trazer
julgamento e desastre, todavia, ele por ser Deus e não homem (11.9), olha para
um tempo em que rugirá como leão, e seus filhos retornarão para ele (11.10,11).
Em suma, o próprio Oseias aguarda uma visita salvadora do Senhor. Por isso, sua
profecia ajusta-se ao padrão mais abrangente da revelação do Antigo Testamento
até esse ponto, a revelação que, explícita e implicitamente, aponta para a semente
da mulher, o Filho eleito de Abraão, o Profeta como Moisés, o Rei davídico, o
Messias. A linguagem de “filho” faz parte dessa matriz messiânica (cf. Willis J.
Beecher, The Prophets and the Promise [Osprofetas e a promessa] [New York: Tho-
mas Y. Crowell, 1905], p. 331-35); à medida que essa matriz aponta para Jesus, o
Messias, e à medida que a história de Israel aguarda aquele que a agrega; então,
por enquanto, Oseias 11.1 também olha para a frente. Perguntar se Oseias pensava
no Messias é fazer a pergunta errada, da mesma maneira que o é usar o serrote
quando o que se precisa é de bisturi. E melhor dizer que Oseias, fundamentado
na revelação existente, apreende as nuanças messiânicas da linguagem de “filho”
já aplicada a Israel e ao prometido herdeiro de Davi em revelação anterior de
forma que se ele pudesse ver o uso de 11.1 por Mateus, talvez não o tivesse
desaprovado, mesmo que não tivesse nuanças messiânicas em mente ao escrever
aquele versículo. Ele forneceu uma pequena parte da revelação exposta durante a
história da salvação, mas ele mesmo entendia que essa parte era uma representação
pictórica do amor divino e redentor.
Os escritores do Novo Testamento insistem que o Antigo Testamento só pode
ser interpretado de modo correto se toda a revelação for mantida em perspectiva
à medida que é estendida historicamente (e.g., G1 3.6-14). Do ponto de vista
hermenêutico, isso não é uma inovação. Os escritores do Antigo Testamento
extraem lições da história da salvação anterior, lições essas difíceis de ser percebidas
enquanto essa história estava sendo vivida, mas lições que o olhar em retrospectiva
pode esclarecer (e.g., Asafe em SI 78; cf. sobre M t 13.35). Mateus faz o mesmo no
contexto do cumprimento, em Jesus Cristo, das esperanças do Antigo Testamento.
Portanto, podemos legitimamente falar de um “sentido mais pleno” que nenhum
Mateus 2.16-18 122
texto fornece. Mas o apelo não pode ser feito a algum conhecimento divino velado,
mas ao padrão de revelação feita até aquela época — padrão ainda não discernido
de forma adequada. Assim, a nova revelação pode ser realmente nova, contudo,
pode, ao mesmo tempo, ser verificada contra a antiga.
4. Se essa interpretação de Mateus 2.15 estiver correta, infere-se que, para
Mateus, Jesus mesmo é o lócus da verdadeira Israel. Isso não quer necessariamente
dizer que Deus não tem mais propósito para a Israel racial; mas quer dizer que a
posição do povo de Deus na era messiânica é determinada pela referência a Jesus,
não à raça.
Notas
13 O presente histórico $aív€Tai [phainetai, lit., “aparecer”) acrescenta um toque vívido.
15 Em razão do fato de “do Egito” ocorrer em Números 23.22; 24.8, alguns sugerem haver
uma ligação entre Mateus 2.15 e Números 24.7,8 (e.g., Lindars, Hill, Schweizer). Esse
argumento, em sua forma mais forte, depende da LXX que diz: “Um homem emergirá
de sua semente”, em vez de: “Seus reservatórios de água transbordarão” (Nm 24.7), e
uma referência a ele [“Deus que o tirou do Egito”; TB], em vez de a eles [“Deus os está
trazendo do Egito”; NVI] (Nm 24.8). Isso transforma Números 24.8 em uma referência
a Deus tirando o Messias do Egito. Afora a questão textual, deve-se observar que (1)
Mateus 2.15 corresponde exatamente a TM Oseias 11.1, mas só aproximadamente a
Números 24.8 da LXX; (2) a tradução da LXX, antes, torna Números 24 incoerente.
Poucas seções de Mateus 1— 2 foram tão criticadas quanto essa. Muitos estudio
sos modernos acham que Mateus inventou a história (e.g., Goulder, p. 33; E. M.
Smallwood, The Jews Under Roman Rule [Os judeus sob governo romanó\ [Leiden:
Brill, 1976], p. 103-4), prolongando Jeremias 31-15, citado em Mateus 2.18
(também C. T. Davis, “Tradition and Redaction in Matthew 1:18— 2:23” [“Tradição
e redação de Mateus 1.18— 2.23”], JB L 90 [1971], p. 419). Nessa percepção, talvez
Mateus tenha inventado a narrativa a fim de extrair analogia entre Jesus e Moisés ou
entre Jesus e as tradições judaicas posteriores em relação a Abraão ou a Jacó; ou por
causa da necessidade de uma apologética para construir um sinal inicial do julgamento
iminente sobre Israel por rejeitar seu Messias (Kingsbury, Structure [Estrutura], p.
48). Contudo, o versículo 16 não pode ser extirpado do capítulo sem reescrevê-lo
todo.
A citação do Antigo Testamento no versículo 18, como outras citações assim
em Mateus 1— 2, não é em si mesma estritamente necessária à narrativa. Essas citações
iluminam a narrativa e mostram sua relação com a Escritura do Antigo Testamento,
mas não criam a narrativa (cf. sobre 1.18-25; 2.1-12). E difícil perceber um paralelo
123 Mateus 2.16-18
verdadeiro com Moisés, uma vez que o decreto do faraó era geral e anterior ao
nascimento de Moisés, ao passo que o decreto de Herodes é especificamente para
Belém e foi feito depois do nascimento de Jesus. N a melhor das hipóteses, o
paralelo é tênue. Além disso, os versículos 16-18 oferecem um sinal insatisfatório
da destruição prestes a ocorrer a Israel — até porque Jesus escapa, em vez de
sofrer, e as crianças não causaram dano a Jesus.
Na verdade, a história está em perfeita harmonia com o que sabemos do caráter
de Herodes em seus últimos anos de vida (Schalit, p. 648). Não é de surpreender
que não haja confirmação extracristã; pode-se dizer o mesmo da crucificação de
Jesus. Dificilmente, a morte de poucas crianças (talvez uma dezena ou por volta
disso, a população total de Belém não era grande) dificilmente seria registrada em
épocas violentas como aquela. (Veja o excelente tratamento de R. T. France, “Herod
and the Children of Bethlehem” [“Herodes e as crianças de Belém”], NovTest 21
[1979], p. 98-120; id., “The Massacre ofthe Innocents” [“O massacre dos inocentes”],
Livingstone, p. 83-94.) “Mateus não está simplesmente meditando a respeito de
textos do Antigo Testamento, mas está afirmando que eles encontram cumprimento
no que aconteceu. Se os eventos são lendários, o argumento é fútil” (France, “Herod”
[“Herodes”], p. 120).
16 Provavelmente não levou muito tempo para executar a ordem bárbara de
Herodes. Belém fica a apenas oito quilômetros de Jerusalém. Os magos partiram
na mesma noite (v. 9) e talvez tenham partido na mesma noite em que tiveram o
sonho (v. 12); o mesmo pode ser verdade para José com Maria e Jesus (w. 13-15).
Por volta da noite seguinte, a paciência de Herodes já teria acabado. O limite de
dois anos de idade visava impedir que Jesus escapasse com vida, pois, na época,
ele tinha entre seis e vinte meses. Herodes, objetivando eliminar um rei em
potencial, restringiu o massacre aos meninos. Furioso por ser “enganado” (essa
tradução é melhor que “iludido”; ARA), ele enfureceu-se contra o Senhor e seu
ungido (SI 2.2). Contudo, esse escape não foi do tipo quando consideramos que
alguém escapou por pouco. O entronado no céu ri e zomba dos Herodes deste
mundo (SI 2.4).
17,18 Jeremias é mencionado três vezes em Mateus (cf. 16.14; 27.9) e em
mais nenhuma outra passagem do Novo Testamento. Nesses versículos, a forma
do texto dessa citação do Antigo Testamento é complexa, mas é provável que seja
uma tradução de Mateus do hebraico (cf. Gundry, Use ofO T [U so do AT\, p. 94-
97; R. E. Brown, Birth ofMessiah [Nascimento do Messias], p. 221-23).
É incerto se Jeremias 31.15 refere-se à deportação das tribos do norte pela Assíria,
em 722-721 a.C., ou à deportação de Judá e Benjamim em 587-586 a.C. (cf. R. E.
Brown, Birth ofMessiah [Nascimento do Messias], p. 205-6). A segunda hipótese é a
mais provável. Nebuzaradã, comandante da guarda real de Nabucodonosor, reuniu
os cativos em Ramá antes de levá-los para o exílio na Babilônia (Jr 40.1,2). Ramá
fica ao norte de Jerusalém no caminho para Betei; o túmulo de Raquel ficava em
Zelza, na mesma vizinhança (ISm 10.2). Jeremias 31.15 descreve o pesar com a
perspectiva do exílio, Raquel é vista chorando em seu túmulo porque seus “filhos” ,
seus descendentes (Raquel é a mãe idealizada dos judeus, embora Lia tenha dado
Mateus 2.16-18 124
à luz a mais tribos que Raquel) “já não existem” — isto é, eles estão sendo removidos
da terra e não são mais uma nação. Mas, em outra passagem, é-nos dito que
Raquel foi sepultada no caminho paraEfrata, identificada como Belém (Gn 35-19;
48.7). Alguns veem confusão de tradições aqui e presumem que, depois, o clã
Efrata estabeleceu-se em Belém e deu seu nome à cidade, começando, assim, uma
falsa ligação à qual Mateus segue. Todavia, o problema é artificial. Gênesis 35-16
deixa claro que Jacó estava a alguma distância de Belém-Efrata quando Raquel
morreu — viz., algum lugar entre Betei e Belém (só ISm 10.2 diz com mais
exatidão onde ele estava). Ademais, Mateus não diz que Raquel foi enterrada em
Belém, a conexão entre a profecia e seu cumprimento é mais sutil que isso.
Por que Mateus menciona essa passagem do Antigo Testamento? Alguns acham
que a conexão resulta da associação de palavras: as crianças foram mortas em
Belém; Belém = Efrata; Efrata está ligada à morte de Raquel; e Raquel figura no
oráculo. Rothfuchs (p. 64) vê um paralelo entre a condenação ao exílio como
resultado do pecado (Jr) e o julgamento de Israel como resultado da rejeição do
Messias (interpretação que vê a matança em Belém como um sinal do último).
Mais crível é a observação (Gundry, Use ofO T[U so doAT\, p. 210; Tasker) de que
Jeremias 31.15 ocorre em um cenário de esperança. A despeito das lágrimas, diz
Deus, os exilados retornarão; e, agora, Mateus, referindo-se a Jeremias 31.15, também
diz que a despeito das lágrimas das mães de Belém há esperança porque o Messias
escapou de Herodes e, no final, reinará. E fantasiosa a sugestão adicional de que o
profundo pesar em Belém refletia a crença de que o Messias fora massacrado e de
que a notícia da fuga dele abrandaria o pesar (cf. Broadus).
Mas talvez haja mais algum motivo para Mateus citar essa passagem do Antigo
Testamento, motivo esse discernível uma vez que as diferenças entre Mateus e o
Antigo Testamento são expostas. Aqui, Jesus não recapitula, como no versículo 15,
um evento da história de Israel. O exílio enviou Israel para o cativeiro e, por isso,
provocou lágrimas. Contudo, as lágrimas, aqui, não são por ele ter ido para o
“exílio”, mas pelas crianças que ficaram para trás e foram mortas. Por que, então,
de qualquer modo, referir-se ao exílio? O auxílio para compreender vem da
observação do contexto mais abrangente de Jeremias e de Mateus. Jeremias 31-9,20
refere-se a Israel = Efraim como filho querido de Deus e também introduz a nova
aliança (31.31-34) que o Senhor fará com seu povo. Por isso, as lágrimas associadas
com o exílio (31.15) terminarão. Mateus já fez do exílio um ponto de guinada em
seu pensamento (1.11,12), pois, daquela vez, a linhagem davídica foi destronada.
As lágrimas do exílio, agora, estão sendo cumpridas — isto é, as lágrimas que
começaram nos dias de Jeremias atingem o ponto culminante e terminam com as
lágrimas das mães de Belém. O herdeiro do trono de Davi chegou, o exílio acabou,
o verdadeiro Filho de Deus chegou, e ele introduzirá a nova aliança (26.28)
prometida por Jeremias.
Notas
16 “Ordenou que matassem” é uma excelente tradução do “particípio vívido” de áirocrreiAaç
á v e ile v (aposteilas aneilen, lit., “tendo enviado, ele matou”; cf. Zerwick, par. 363).
125 Mateus 2.19-23
19-21 Esse quarto sonho e terceira menção ao anjo do Senhor (v. 19) dá conti
nuidade à iniciativa divina de preservar e guiar o menino, que mais uma vez é
tornado proeminente (“o menino e sua mãe”; v. 20). Sobre a data da morte de
Herodes veja 2.1. (Jos., Antiq. XVII, p. 168-69 [vi.5], apresenta um relato chocante
da doença final de Herodes.) O plural (“os que procuravam tirar a vida do menino”)
talvez deva alguma coisa a Êxodo 4.19 (também Hill, Matthew [Mateus], seguindo
Davies, Setting [Cenário]). Se for esse o caso, Jesus está sendo comparado com
Moisés. Mas esse motivo, na melhor das hipóteses, é fraco em Mateus 1— 2, e
talvez o plural possa ser explicado de outras formas. H. A. W Meyer sugere que o
pai de Herodes, Antípatro, que morreu poucos dias antes dele, pode ter sido associado
com Herodes no massacre. O mais provável é que o plural seja um plural generalizado
ou categórico (cf. Turner, Syntax [Sintaxe], p. 25-26; BDF, par. 141). “Terra de
Israel” ocorre apenas nos versículos 20,21 (cf. “cidades de Israel”; 10.23). Embora a
terra toda estivesse diante dele, e ele, aparentemente, esperasse se estabelecer na
Judeia (talvez em Belém, a cidade de Davi), José foi forçado a se retirar para a des
prezada Galileia.
22 Provavelmente, José esperava que Herodes Antipas reinasse sobre todo o
reino, mas Herodes, o Grande, fez uma mudança posterior em sua vontade, dividindo
o reino em três partes. Arquelau, conhecido por sua crueldade, recebeu a Judeia,
Samaria e Indumeia (veja mapa p. 81). Augusto César concordou e deu a ele o
título de “etnarca” (mais honrável que “tetrarca”) e prometeu-lhe o título de “rei”,
se o merecesse. Mas Arquelau provou ser um governante insatisfatório e, em 6
d.C., foi banido por seu mau governo. Roma governou o sul por intermédio de
um procurador. Todavia, nessa época, José estabeleceu a família na Galileia. Herodes
Antipas, que reaparece em Mateus 14.1-10, recebeu o título de “tetrarca” e governou
na Galileia e na Perea. Herodes Filipe (não confundir com o primeiro marido de
Herodias que não era rei) tornou-se tetrarca da Itureia, de Traconites e de alguns
outros territórios. Ele era o melhor dos filhos de Herodes, o Grande; Jesus retirava-
Mateus 2.19-23 126
4 As roupas de João eram feitas de pêlos de camelo, e ele usava um cinto de couro na cintura. O seu
alimento era gafanhotos e mel silvestre.5A ele vinha gente de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda
a região ao redor do Jordão. 6 Confessando os seus pecados, eram batizados por ele no rio Jordão.
7 Quando viu que muitos fariseus e saduceus vinham para onde ele estava batizando, disse-lhes:
“Raça de víboras! Quem lhes deu a ideia de fugir da ira que se aproxima? 8 Deem fruto que mostre o
arrependimento! 9 Não pensem que vocês podem dizer a si mesmos: ‘Abraão é nosso pai’. Pois eu
lhes digo que destas pedras Deus pode fazer surgir filhos a A braão.10 O machado já está posto à raiz
das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo.
II “Eu os batizo com água para arrependimento. Mas depois de mim vem alguém mais poderoso do
que eu, tanto que não sou digno nem de levar as suas sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo
Mateus 3.1-12 128
e com fogo. 12 Ele traz a pá em sua mão e limpará sua eira, juntando seu trigo no celeiro, mas
queimará a palha com fogo que nunca se apaga”.
Pela primeira vez Mateus faz paralelo com Marcos (1.1-11), com Lucas (3.1-
22) e, ainda de forma mais vaga, com João (1.19-34). Independentemente da diversi
dade que haja entre os prólogos, os quatro evangelhos unanimemente prefaciam
o ministério de Jesus com o ministério de João Batista. Mateus omite qualquer
menção à juventude de Jesus (Lc 2.41-52) ou ao nascimento e histórico de João
Batista (Lc 1.5-25,39-45,57-80). Talvez isso sugira que os leitores de Mateus já
estavam familiarizados com esse histórico (Tasker) ou que Mateus queria mergulhar
drasticamente em seu relato. Após quatrocentos anos de silêncio, Deus voltava a
falar por intermédio de um novo profeta que chamou o povo ao arrependimento
e prometeu a vinda de alguém maior.
Em acréscimo às implicações do esboço de Mateus deste comentário, o
evangelho tem muitas subestruturas apontando um escritor de grande habilidade
literária. Gooding (p. 234) aponta paralelos interessantes entre os capítulos 1— 2
e 3— 4, muito longos para ser detalhados aqui (cf. também 13.3-53).
1 A nota temporal de Mateus, “naqueles dias”, é vaga e reflete uma expressão
igualmente vaga do Antigo Testamento (e.g., Gn 38.1; Êx 2.11,23; Is 38.1). Talvez
a frase dele queira dizer: “Naqueles dias cruciais” (Hill, Matthew [Mateus]), ou até
mesmo: “Naqueles dias em que Jesus e sua família viveram em Nazaré” (Broadus,
cf. 4.13). Contudo, é mais provável que seja um termo genérico que revela pouco
do ponto de vista cronológico, mas insiste que o relato é histórico (Bonnard).
Lucas 3.1 oferece mais ajuda cronológica, mas sua relevância é discutida (cf. Hoehner,
ChronologicalAspects [Aspectos cronológicos], p. 29-44). O ano era 27, 28 ou 29 d.C.
(26 seria menos provável).
“João” ou “Joana” eram nomes populares entre os judeus desde a época de
João Hircano (morto em 106 a.C.). Quatro ou cinco “Joãos” são mencionados
no Novo Testamento. O João de Mateus 3.1 foi logo designado como João Batista
(cf. notas) porque o batismo foi muitíssimo proeminente em seu ministério. Ele
começou sua pregação no “deserto da Judeia”, área vagamente definida incluindo
a parte mais baixa do vale do Jordão ao norte do mar Morto e o país imediatamente
a oeste do mar Morto. É uma região muito quente e, à parte o próprio rio Jordão,
muitíssimo árida, embora não desabitada. A região era usada para pastagens (SI
65.12; J1 2.22; Lc 15.4) e tinha comunidades essênias. “Deserto” havia muito
tempo tinha nuanças proféticas (a lei foi entregue no “deserto”). Os zelotes usavam
o deserto como esconderijo (cf. M t 24.26; At 21.38; Jos., Antiq. XX, p. 97-98 [v.
1]). Por isso, alguns comentaristas veem mais força teológica que geográfica em
Mateus 3.1 (e.g., Bonnard, Maier). A expressão modificadora “da Judeia” faz a
antítese entre geografia e falsa teologia. O deserto era uma região específica (cf. R.
Funk, “The Wilderness” [“O deserto”], JB L 78 [1959] p. 205-14), mas também
podia ter implicações proféticas para os leitores do século I.
2 A pregação de João tinha dois elementos. O primeiro era o chamado ao arre
pendimento. Embora o verbo metanoeô, com frequência, seja explicado etimolo-
129 Mateus 3.1-12
gicamente como “mudar de ideia” ou, popularmente, como “pedir desculpa por
alguma coisa”, nenhuma dessas traduções é adequada. No grego clássico, o verbo
pode referir-se a uma mudança de ideia puramente intelectual. Mas o uso no Novo
Testamento foi influenciado pelos verbos hebraicos nãham (“desculpar-se pelos atos
de alguém”) e süb (“mudar de direção para abraçar novos atos”). O último é comum
nos chamados dos profetas para que o povo retorne para a aliança com Iavé (cf.
D NTT, 1:357-59; Turner, Christian Words [Palavras cristãs], p. 374-77). O que se
pretende dizer não é uma mera mudança intelectual de ideia nem mero pesar,
menos ainda fazer penitência (cf. notas), mas uma transformação radical de toda
a pessoa, uma guinada fundamental envolvendo mente e ação e incluindo nuanças
de pesar, o que resulta no “fruto de permanecer arrependido”. Claro que tudo isso
pressupõe que os atos do homem estão fundamentalmente fora de curso e precisam
de mudança radical. João aplica esse arrependimento, com especial veemência,
aos líderes religiosos de seu tempo (3.7,8). (A respeito das diferenças entre a ênfase
bíblica e a rabínica em relação ao arrependimento, cf. Lane, M ark [Marcos], p.
593-600.)
O segundo elemento da pregação de João era a proximidade do reino dos céus,
e esta é fornecida como fundamento para o arrependimento. Em todo o Antigo
Testamento havia crescente expectativa da visita divina que estabeleceria justiça,
esmagaria a oposição e renovaria o próprio universo. Essa esperança foi expressa em
muitas categorias: ela foi apresentada como cumprimento das promessas feitas para
o herdeiro de Davi, como o Dia do Senhor (que, com frequência, tem nuanças
sombrias de julgamento, embora tivesse brilhantes expectativas, e.g., S f 3.14-20),
como a nova terra e o novo céu, como o tempo da nova reunião de Israel, como a
inauguração de uma nova e transformadora aliança (2Sm 7.13,14; Is 1.24-28; 9.6,7;
11.1-10; 64— 66; Jr 23.5,6; 31.31-34; Ez 37.24; D n 2.44; 7.13,14; cf. esp.
Ridderbos, p. 3-17; Ladd, Presence [Presença], p. 45-75).
No Antigo Testamento, o sentido predominante da palavra “reino” (heb. malküt,
aram., malküta) é de reinado ou domínio: o termo tem força dinâmica. De forma
semelhante no Novo Testamento, embora basileia (“reino”) possa se referir a território
(4.8), a maioria esmagadora das ocorrências usa o termo com força dinâmica. Isso
prevalece contra a terminologia rabínica predominante na qual o termo “reino” foi
cada vez mais espiritualizado ou plantado no coração dos homens (e.g., b Berakoth
^Bênçãos] 4a). Em oposição às alegações em contrário (AlvaJ. McClain, The Great-
ness ofthe Kingdom [A grandeza do reino] [Grand Rapids: Zondevan, 1959], p.
274ss.), no século I havia pouca concordância entre os judeus em relação a como
seria um reino messiânico. Uma pressuposição muito popular era de que o jugo
romano seria derrubado e haveria paz política e muita prosperidade.
A não ser por 12.28; 19.24; 21.31,43 e alguns PMM de 6.33, Mateus sempre
usa “Reino dos céus”, em vez de “Reino de Deus” (essa avaliação exclui referências
a “meu Reino” e expressões semelhantes), ao passo que Marcos e Lucas preferem
"Reino de Deus”. Com certeza, a expressão preferida de Mateus não restringe o
Reino de Deus aos céus. O objetivo bíblico é o exercício manifesto da soberania
de Deus, de seu “Reino” na terra e entre os homens. Há paralelos suficientes entre
Mateus 3.1-12 130
os sinóticos para indicar que “Reino de Deus” e “Reino dos céus” indicam a
mesma coisa (e.g., M t 19.23,24 = Mc 10.23-25), a distinção conotativa é menos
certa.
Os dispensacionalistas (e.g., A. C. Gaebelein, Walvoord) sustentam que “Reino
de Deus” é um reino caracteristicamente espiritual, uma categoria mais estreita
envolvendo apenas os verdadeiros crentes, ao passo que “Reino dos céus” é o reino
de esplendor milenar, uma categoria mais abrangente que inclui (como na parábola,
13.47-50) peixes bons e maus. A distinção é infeliz; ela chega perigosamente perto
de confundir reino e igreja (veja mais a respeito no capítulo 13 e em 16.17-19),
ela falha em explicar passagens em que a categoria mateana não é menos restritiva
que o “Reino de Deus” nos outros evangelistas e, fundamentalmente, compreende
mal a natureza dinâmica do reino. Igualmente não convincente é a sugestão de
Pamment de que “Reino dos céus” sempre se refere ao reino futuro após a consumação
dos tempos, enquanto “Reino de Deus”, em Mateus, refere-se à manifestação atual
do reino. Pamment, para chegar a essa dicotomia absoluta, deve ter recorrido a
muitas interpretações improváveis de inúmeras passagens (e.g., 11.12; parábolas do
cap. 13). Muitas outras propostas (e.g., J. Julius Scott, EBC, 1:508) são firmemente
afirmadas, mas não resistem a um exame rigoroso.
A explicação mais comum é que Mateus evitou a expressão “Reino de Deus”
a fim de remover ofensa desnecessária contra os judeus, os quais, com frequência,
usavam de circunlocuções como “céu” para se referir a Deus (e.g., Dn 4.26; IMac
3.50,60; 4.55; Lc 15.18,21). Essa sugestão tem mérito. Contudo, Mateus é um
escritor sutil e alusivo, e dois outros fatores podem também estar envolvidos: (1)
“Reino dos céus” pode antecipar a extensão da autoridade de Cristo após a
ressurreição: a soberania de Deus no céu e na terra, agora, é mediada por intermédio
de Cristo (28.18); e (2) “Reino de Deus” faz de Deus o Rei e, embora isso não
impeça os outros sinóticos de atribuir a realeza a Jesus (cf. Lc 22.16,18,29,30),
deixa menos espaço para manobra. O “Reino dos céus” de Mateus presume que
este é o Reino de Deus e, ocasionalmente, designa-o de forma específica o Pai (26.29),
embora deixando espaço para atribuí-lo, com frequência, a Jesus (16.28; 25.31,34,40;
27.42; provavelmente 5.35), pois Jesus é o Rei Messias. Isso inevitavelmente tem
implicações cristológicas. O Reino dos céus é simultaneamente o reino do Pai e o
reino do Filho do homem.
Esse Reino, conforme pregava João Batista, “está próximo” (êngiken, lit.,
“aproxima-se”). Os judeus falavam do Messias como “aquele que haveria de vir”
(11.3) e da era messiânica como a “era que há de vir” (Hb 6.5); agora, João diz
que ela está próxima, a mesma mensagem pregada por Jesus (4.17) e seus discípulos
(10.7). Ê possível, mas não uma certeza, que o verbo tenha a mesma força de
ephthasen em 12.28. Passagem na qual Jesus afirma claramente que o Reino
“chegou” . Essa passagem deixa claro que é o exercício da soberania salvadora, ou
reino, de Deus que alvoreceu. A expressão ambígua “está próximo” (3.2; 4.17)
combinada com o sentido dinâmico de “Reino” prepara-nos para um tema
constante: o Reino veio com Jesus e sua pregação e milagres, veio com sua morte
e ressurreição e virá no fim das eras.
131 Mateus 3.1-12
Mateus já estabeleceu que Jesus nasceu Rei (2.2). Mais tarde, Jesus declarou
que sua obra testificava que o Reino chegara (12.28), embora ele fale frequentemente
do Reino como algo a ser herdado quando o Filho do homem vier em sua glória. E
falso dizer que o “Reino” é submetido a uma mudança radical com a menção de
“segredos” (N TLH ) (“mistérios”; NVI, veja sobre 13.11). Já n o sermão do monte,
entrar no Reino (5.3,10; 7.21) equivale a entrar na vida (7.13,14; cf. 19.14,16; e
veja Mc 9.45,47).
Esse tema e outros relacionados ficam mais claros à medida que o evangelho
avança (cf. esp. Ladd, N T Theology [ Teologia do N T ], p. 57-90). Todavia, há duas
observações que não podem ser adiadas. A primeira, a terminologia de Batista,
embora velada, despertava necessariamente enorme entusiasmo (3.5). Mas essa
terminologia classificada como expectativas apocalíptica e política teria produzido
uma interpretação muitíssimo errônea do Reino pregado. Por isso, Jesus mesmo
usava intencionalmente terminologia velada quando tratava de temas como esse.
Esse fato fica cada vez mais óbvio ao longo do evangelho. A segunda observação
relaciona-se com a primeira. D a mesma maneira que o anúncio do anjo para José
declarou que o principal propósito de Jesus era salvar seu povo do pecado (1.21),
também o primeiro anúncio do Reino está associado com arrependimento e
confissão do pecado (3.6). Esses temas estão constantemente entrelaçados em
Mateus (cf. Goppelt, Theologie [Teologia], p. 128-88).
3 Se o gar (“porque”) tem sua força total, então a NVI deveria dizer: “Porque
este é aquele” [cf. “Porque este é o referido” ARA]; e o versículo 3 torna-se o
fundamento para a pregação de João Batista do versículo 2. Essa é uma das onze
citações diretas do Antigo Testamento que Mateus faz sem ser introduzida pela
fórmula de cumprimento (cf. introdução, seção ll.b ). No entanto, seria exagero
contra Gundry) dizer que a omissão de linguagem de cumprimento representa
que João Batista, para Mateus, não cumpre a Escritura, mas serve apenas como
"protótipo do pregador cristão”. Se Mateus tivesse querido dizer tão pouco, ele faria
melhor eliminando a passagem do Antigo Testamento. Em vez disso, ele a introduz
com a fórmulapesher (e.g., At 2.16; cf. introdução, seção ll.b ) que só pode ser
entendida com a identificação de João Batista em uma estrutura escatológica e de
profecia e cumprimento como aquele a quem Isaías (40.3) se referia.
O papel de Batista é minimamente exemplar. De acordo com João 1.23,
João Batista, certa vez, aplicou essa passagem de Isaías a si mesmo. Aqui, Mateus
taz isso por ele. No T M , as palavras “no deserto” modificam “preparem”: “No
deserto preparem o caminho para o Senhor”. Mas, aqui, os três sinóticos seguem
a LXX. O efeito imediato é localizar no deserto aquele que está chamando. Alguns
acham que essa é uma tentativa deliberada de estender o cumprimento a detalhes
geográficos. Todavia, Marcos segue de forma consistente a LXX, e Mateus, com
frequência, segue Marcos. Portanto, não devemos ler demais nessa mudança. Talvez
haja um erro nos acentos hebraicos, o que associa “no deserto” com “preparem”
Gundry, Use o f O T [Uso do AT], p. 10). Em todo caso, se alguém grita uma
ordem no deserto, sua intenção é que ela se propague para todos os lados; assim,
há pouca diferença no sentido (Alexander).
Mateus 3.1-12 132
Em Isaías 40.3, o caminho de Iavé está sendo feito “reto” (uso de metáfora de
construção de estrada para se referir a arrependimento); em Mateus 3.3, o caminho
é de Jesus. Esse tipo de identificação de Jesus como Iavé é comum no Novo Testa
mento (e.g., Êx 13.21 e IC o 10.4; Is 6.1 e Jo 12.41; SI 68.18 e E f4.8; SI 102.25-
27 e Hb 1.10-12) e confirma o fato de o Reino ser igualmente o Reino de Deus e
o Reino de Jesus. Embora a divindade de Cristo esteja apenas implícita nesses
textos, a implicação, com certeza, vai além de Jesus ser um mero enviado real. Os
aliançados de Qumran mencionaram essa mesma passagem para favorecer o estudo
da lei em preparação para o fim dos tempos (1QS 8.12ss.; 9.19; cf. Fitzmyer,
Semitic Background [Histórico semítico], p. 34-36); mas Mateus identifica João
Batista como a voz e a era escatológica que já alvorece na vinda de Jesus.
4,5 Roupas de pêlo de camelo e cinto de couro (v. 4; o cinto para prender a
peça de roupa externa solta) não só eram roupas de pessoas pobres, mas também
estabelecia ligação com Elias (2Rs 1.8; cf. Ml 4.5). “Gafanhotos” (akrides) são
locustas, e ainda hoje são degustados no Oriente, não o fruto da “alfarrobeira”
(BAGD, s. v.). Mel silvestre é o que diz ser, e não resina de árvore (cf. Jz 14.8,9;
ISm 14.25-29; SI 81.16). Vestimenta e alimentação sugerem um homem pobre e
acostumado à vida no deserto, e isso sugere ligação com os profetas (cf. 3.1; 11.8,9)
— tanto que na época de Zacarias (13.4), alguns falsos profetas vestiam-se como
profetas a fim de enganar as pessoas. Elias e João Batista tiveram um ministério
duro em que a austeridade da vestimenta e da alimentação confirmava sua
mensagem e condenava a idolatria da comodidade física e espiritual. “Até mesmo
o alimento e a roupa de João pregavam” (Beng). O impacto causado por João
Batista foi imenso (v. 5), e suas multidões vinham de lugares distantes. No grego,
os lugares são personificados (como em 2.3).
6 A lei ordenava a confissão do pecado não só como parte das obrigações do
sacerdote (Lv 16.21), mas também como responsabilidade pessoal pelos erros
cometidos (Lv 5.5; 26.40; N m 5.6,7; Pv 28.13). Nos melhores tempos de Israel,
isso era realizado (Ne 9.2,3; SI 32.5). No Novo Testamento (cf. At 19.18; ljo
1.9), dificilmente a confissão é menos importante. Pelo fato de Mateus não incluir
“para o perdão dos pecados” (Mc 1.4), alguns deduzem que ele quer evitar a
sugestão de haver alguma possibilidade de perdão antes da morte de Jesus (Mt
26.28). Isso é engenhoso demais. Dificilmente, o leitor do século I sustentaria
que os pecados não eram perdoados depois de serem honestamente confessados.
E, uma vez que Mateus regularmente resume Marcos nas passagens em que o usa,
devemos ter cuidado ao tirar conclusões teológicas dessas omissões.
O grego não deixa claro se a confissão era individual ou corporativa, sendo o
batismo simultâneo a ela ou a antecedendo. Josefo (Antiq. XVIII, 116-17 [v.2]) diz
que João, “de sobrenome Batista”, exigia conduta reta como “preliminar necessária
se fosse para o batismo ser aceitável para Deus”. Uma vez que João Batista incitava
as pessoas a se prepararem para a vinda do Messias por meio do arrependimento e
do batismo, podemos supor que a renúncia pública ao pecado era uma pré-condição
para o batismo dele, o qual, portanto, era a confirmação de confissão e sinal escato-
lógico.
133 Mateus 3.1-12
Desde a descoberta dos PMM, muitos tentaram ligar o batismo de João com
o dos aliançados de Qumran. Mas a lavagem deles, embora relacionada com a
confissão, era provavelmente vista como purificação e era repetida (cf. 1QS 1.24ss.;
5.13-25) para remover a impureza ritual. E provável que o batismo de João fosse
um ritual que acontecia só uma vez (contra Albright e Mann) e não tinha relação
com impureza cerimonial. Os rabis usavam o batismo como ritual de iniciação
dos prosélitos, mas esse batismo nunca era usado com os judeus (SBK, 1:102-12).
Até o ponto em que sabemos, embora o batismo mesmo não fosse incomum, as
associações apontadas, mas limitadas, põem a origem do batismo de João em João
Batista mesmo — não diferente da circuncisão que é anterior ao tempo de Abraão,
mas carecia de relevância de aliança antes da época dele.
O rio Jordão tem correnteza que flui com rapidez. Sem dúvida, João postava-
se em um dos vaus e preparava o caminho para o Senhor.
7 Muitos levantam a questão da probabilidade de indivíduos de dois grupos
tão mutuamente hostis, como os fariseus e saduceus (cf. introdução, seção 1 l.f),
apresentarem-se juntos (um artigo governa os dois substantivos) para o batismo.
Mas o texto grego não precisa ser entendido como dizendo que eles foram para
ser batizados. O texto pode apenas querer dizer que eles estavam “vindo para o
-Ugar em que João estava batizando” (cf. notas). Se for esse o caso, pode sugerir
que representantes do Sinédrio (composto de ambos os grupos e dos anciões)
roram examinar o que João estava fazendo (cf. Jo 1.19,24; que menciona não só
sacerdotes e levitas [saduceus], mas também fariseus). Ou muitos fariseus e saduceus
podem ter ido para ser batizados com a ostentação que caracterizava suas outras
itividades religiosas (e.g., 6.2,5,16) — ou seja, eles estavam mostrando para o
mundo como estavam prontos para o Messias, embora não estivessem realmente
irrependidos dos pecados. Mateus junta-os porque eram líderes; em outra
passagem, ele distingue-os (22.34). A pergunta com que João Batista os confronta
uem este sentido: “Quem lhes sugeriu que escapariam da ira por vir?” Assim, a
pergunta retórica de João assume uma nuança sarcástica: “Quem os advertiu para
rugir da ira futura e vir para ser batizados — quando, na verdade, vocês não
mostram sinal de arrependimento?” Embora a pergunta seja a mesma em Lucas 3.7,
-á, Lucas relaciona-a com a multidão, ao passo que Mateus relaciona-a com os
líderes judeus.
João Batista permanece diretamente na tradição profética — tradição em
que o Dia do Senhor aponta muito mais para as trevas que para a luz para os que
acham que não cometeram pecado (Am 2.4-8; 6.1-7). A expressão: “Raça de
víboras” também pertence à tradição profética (cf. Is 14.29; 30.6; cf. C D 19.22);
em Mateus 12.34, Jesus usa esses termos para denunciar os fariseus.
8,9 A vinda do Reino de Deus exige arrependimento (v. 2) ou traz julgamento.
O arrependimento tem de ser genuíno; se quisermos escapar da ira futura (v. 7),
então, todo nosso estilo de vida tem de estar em harmonia com nosso arrependimento
oral (v. 8). Apenas descender de Abraão não é suficiente (v. 9). No Antigo Testa
mento, Deus cortou fora, repetidas vezes, muitos israelitas e salvou um remanescente.
Contudo, no período interbíblico o uso geral da descendência de Abraão, no contexto
Mateus 3.1-12 134
M t 16.24; Jo 13.16; 15.20). Mas pelo fato de o ministério especial de João ser o de
anunciar a figura escatológica, ele não pode fazer outra coisa a não ser precedê-la.
Embora João seja o pregador mais procurado de Israel em séculos, ele protesta
que não é digno de “levar” (Marcos e Lucas, “desamarrar”) as sandálias daquele
que vem. Muitos estudiosos argumentam que essa fala deve ter sido uma invenção
posterior de cristãos determinados a manter João Batista em seu lugar e a exaltar
Jesus. Na verdade, essa humildade de João, na ética cristã, é uma virtude, não
uma fraqueza. Além disso, se ele via seu papel como de precursor do Messias, João
não podia se situar em igualdade com aquele para quem ele apontava (cf. também
Jo 3.28-31). Sem dúvida, a igreja foi rápida em usar a depreciação de si mesmo de
João em conflitos posteriores com os seguidores dele. Mas não há evidência de
que os cristãos inventaram essa fala.
Segue-se que, da mesma maneira que o propósito de João era preparar o
caminho para o Senhor chamando às pessoas ao arrependimento, também seu
batismo aponta para aquele que traria o batismo escatológico em espírito e em
fogo. O batismo de João era “essencialmente preparatório” (cf. J. D. G. Dunn,
Baptism in the Holy Spirit \Batismo no Espírito Santo\ [London: SCM , 1970], p.
14-17; Bonnard F. Lang, “Erwágungen zur eschatologischen Verkündigung
Johannes des Tãufers” [“Considerações sobre a pregação escatológica de João
Batista”], em Strecker, Jesus Christus, p. 459-73); o batismo de Jesus inaugurou a
era messiânica.
“Bati[smo] com o Espírito Santo” não é uma expressão especializada do Novo
Testamento. Seu histórico do Antigo Testamento inclui Ezequiel 36.25-27; 39.29;
Joel 2.28. Não podemos pensar que João Batista não poderia ter mencionado o
Espírito Santo, no mínimo, por causa de referências um tanto similares na literatura
de Qumran (1QS 3.7-9; 4.21; 1QH 16.12; cf. Dunn, Baptism [Batismo\, p. 8-
10). Todavia, Mateus e Lucas acrescentam “e fogo” (N TLH ). Muitos veem isso
como um duplo batismo, um no Espírito Santo para o justo e outro no fogo para
o impenitente (cf. o trigo e a palha no v. 12). O fogo (Ml 4.1) destrói e consome.
Há bons motivos, contudo, para falar de “fogo”, junto com o Espírito Santo,
como agente purificador. As pessoas a quem João se dirige estão sendo batizadas
por ele; elas, provavelmente, arrependeram-se. Mais importante, a preposição en
(“com”) não é repetida antes de fogo: uma preposição governa o “Espírito Santo” e
o “fogo”, e isso normalmente sugere um conceito unificado, Espírito-fogo, ou algo
semelhante (cf. M. J. Harris, D NTT, 3:1178; Dunn Baptism [Batismo], p. 10-13).
No Antigo Testamento, fogo, com frequência, tem uma conotação purificadora,
não destrutiva (e.g., Is 1.25; Zc 13.9; Ml 3.2,3). O batismo de água de João relaciona-
se com arrependimento; mas aquele de quem ele prepara o caminho administrará
o batismo de Espírito-fogo que purifica e refina a pessoa. Em uma época na qual
muitos judeus sentiam que o Espírito Santo fora removido até a era messiânica,
esse anúncio só podia ser saudado com animada antecipação.
12 A vinda do Messias separará o trigo da palha. O forcado de separar balança
tanto o trigo quanto a palha no ar. O vento sopra a palha para longe, e o grão mais
pesado cai para ser recolhido no chão. A palha espalhada é amontoada e queimada,
Mateus 3.13-17 136
e a eira fica limpa (cf. SI 1.4; Is 5.24; Dn 2.35; Os 13.3). O “fogo que nunca se
apaga” representa o julgamento escatológico (cf. Is 34.10; 66.24; Jr 7.20), o in
ferno (cf. 5.29). O “fogo que nunca se apaga” não é só uma metáfora: a realidade
temível está subjacente à separação do trigo da palha feita pelo Messias. Portanto,
a proximidade do Reino pede arrependimento (v. 2).
Notas
1 Mateus apresenta 'o Paimornç (ho baptistês, “o batista”); Marcos (1.4) usa o particípio
[b] paT!TL(tòv {[ho\ baptizôn, lit., “o batizante”). E duvidoso se foi pretendida alguma
distinção uma vez que “Batista” não tem aroma sectário nem denominacional. E um
exagero fazer coro com Gundry (Matthew \Mateus]) e dizer que Mateus usa
consistentemente “Batista”, em vez de “o batizante” a fim de distrair a atenção da prática
de batismo de João para seu papel de pregador; pois o último não é enfatizado, e Mateus
inclui a declaração específica do versículo 6: “Eram batizados por” João.
“Pregação” (verbo KTpúaoco [kêryssô], substantivo Kf|puyn<x \kêrygmd[) tem sido, com
frequência nos últimos cinquenta anos, distinguida de “ensino” (õiôaxf| [didachê]) de
tal maneira que os ditos elementos querigmáticos, muitas vezes, foram tirados de seu
conteúdo; e praticamente tudo do Novo Testamento, com segurança, estava em uma
categoria ou na outra. Estudo mais recente demonstrou como essa antítese foi totalmente
super simplificada (J. I. H. McDonald, Kerygma and Didache [Querigma e didaqué\
[Cambridge: University Press, 1980]) e sugeriu outras categorias igualmente importantes
e, às vezes, sobrepostas (e.g., A. A. Trites, The New Testament Concept ofWitness [O
conceito de testemunho no Novo Testamento] [Cambridge: University Press, 1977]).
2 O verbo iietavoáw (metanoeô, “arrependam”) foi traduzido do latim poenitentiam agere
(“exercício de penitência”), a palavra “penitência” sugere pesar, angústia e dor, mas não
necessariamente mudança. De vez em quando a expressão poenitentiam agite (“fazer
penitência”) era preferida, e a contradição de “fazer penitência” completava o deslize de
um conceito pernicioso e bem estranho ao Novo Testamento.
7 A expressão èiu’ xò fSÓTiaiia odiçxoü (epi to baptisma autou) é peculiar (lit., vindo “para
seu batismo”); ela também poderia querer dizer “vir para ser batizado” ou “vir para o
lugar em que ele estava batizando” (conforme NVI).
10 Moule (Idiom Book [Livro de expressões idiomáticas], p. 53) vêirpóç (pros) mais o acusativo
aqui combinando movimento linear com descanso meticuloso na chegada: o machado,
por assim dizer, dá seu primeiro talho. Mas é possível que o verbo Keixat (keitai, lit.,
“repousa”; NVI, “está”) sugere que o machado está apenas repousando na raiz da árvore,
pronto para a ação.
Lucas não comenta que João batizou Jesus; mas em vista de Lucas 3.1-21, não há
dúvida em relação a esse fato. Conforme será demonstrado, algumas alegadas distin
ções entre os evangelistas são artificiais; outras salientam valiosas ênfases teológicas.
13 “Então” itotê) é vago em Mateus (veja sobre 2.7); cada uso precisa ser tratado
separadamente. Aqui, tote sugere que durante o tempo em que João Batista pregava
para as multidões e as batizava, “então” Jesus veio — isto é equivalente a Lucas:
“Quando todo o povo estava sendo batizado, também Jesus o foi” (3.21). Se esse for
o caso, é artificial dizer que, em Lucas, o batismo é um testemunho público para
Jesus, mas testemunho privado em Mateus. Essa conclusão é especialmente impor
tante para Kingsbury (>Structure \Estrutura\ , p. 13-15), porque ele quer evitar qualquer
reconhecimento público de Jesus até 4.17. Jeremias (N T Theology \Teobgia do N T\,
p. 51) acha que o relato de Lucas é mais próximo da realidade histórica e supõe que
Jesus mergulhou a si mesmo junto com os outros na presença de João. Os dois refi
namentos são muito inconsistentes. Qualquer interpretação que exija privacidade
ou multidão no batismo de Jesus, conforme relatado por Mateus ou por Lucas, é ler
demais nos textos e, provavelmente, perde os principais pontos dos evangelistas.
Jesus veio da Galileia (Marcos especifica de Nazaré) para ser batizado por João
(embora Mateus deixe esse objetivo explícito, Lucas e Marcos deixam-no implícito)
e, como resultado, o Pai testificou de seu Filho. Esse tanto é comum aos três relatos
e pouca importa se só João ouviu esse testemunho celestial ou se a multidão também
ouviu.
14 Mateus 3.14,15 é exclusivo desse evangelho. João tentou deter Jesus
(imperfeito de tentativa de ação) de ser batizado, insistindo (os pronomes são
enfáticos) que ele, João Batista, precisava ser batizado por Jesus. Antes, João tivera
dificuldade em batizar fariseus e saduceus por estes serem indignos de receber seu
batismo. Agora, ele tem problema para batizar Jesus por seu batismo não ser
digno de Jesus.
H á dois caminhos possíveis para entender a relutância de João.
1. João reconhece Jesus como o Messias e quer receber o batismo do Espírito e
de fogo de Jesus. A despeito da crescente popularidade dessa percepção, ela acarreta
sérias dificuldades. O tema do Espírito não é importante em Mateus; a justiça o é,
e ela é central para a resposta de Jesus (v. 15). Mateus não apresenta Jesus aplicando
seu batismo de Espírito e fogo sobre qualquer um; a cruz e a ressurreição são focais
para ele, e Mateus, tendo escrito depois do Pentecoste (At 2), sem dúvida, acreditava
que o batismo de Jesus foi aplicado sobre seu povo depois da época sobre a qual está
escrevendo. Em vista das declarações de João Batista em relação a seu relacionamento
com o Messias (v. 11), se ele tivesse reconhecido Jesus como o Messias seria duvidoso
se ele teria sido convencido pela refutação de Jesus (v. 15). Além disso, essa percepção
acarreta um desnecessário conflito de Mateus com o quarto evangelho (Jo 1.31-34),
que diz que o Batista não “conhecia” Jesus — isto é, reconhecia-o como Messias —
até depois do batismo deste.
2. Mas o batismo de João não tem apenas relevância escatológica. Ele também
representava arrependimento e confissão do pecado. Não sabemos se João Batista
conhecia bem Jesus. Contudo, é inconcebível que seus pais não tenham lhe contado
Mateus 3.13-17 138
a respeito da visita de Maria para Isabel que ocorrera cerca de três décadas antes
(Lc 1.39-45). No mínimo, João Batista deve ter reconhecido que Jesus, de quem
era parente, cujo nascimento foi mais extraordinário que o seu mesmo e cujo
conhecimento da Escritura era prodigioso até mesmo em criança (Lc 2.41-52),
excedia-o. João Batista era um homem humilde; consciente de seu próprio pecado,
ele não conseguia detectar pecado em Jesus que precisasse de arrependimento e de
confissão. Por isso, João achava que Jesus podia batizá-lo. Mateus não nos conta
quando João Batista também percebeu que Jesus era o Messias (embora os w.
16,17 possam indicar isso); Mateus foca a impecabilidade de Jesus e o testemunho
do Pai, não o testemunho de João Batista (ao contrário do quarto evangelho no
qual o testemunho de João a respeito de Jesus é muito importante).
15 0 consentimento de João foi conseguido porque Jesus lhe disse; “Convém
que assim façamos, para cumprir toda a justiça”. Esse versículo tem legiões de
interpretações. Estas podem ser resumidas como seguem:
1. Jesus, ao ser submetido ao batismo, antecipa seu próprio batismo de morte
por meio da qual ele assegura “justiça” para todos. Isso pode ser lido no servo
sofredor de Isaías 53.11 (“Pelo seu conhecimento meu servo justo justificará a
muitos, e levará a iniqüidade deles”). Essa percepção, abraçada por muitos, é bem
defendida por O. Cullmann (Baptism in the New Testament [Batismo no Novo
Testamento] [London: SCM , 1950], p. 15ss.). Isso pressupõe que a relevância do
batismo cristão deve ser lida em retrospectiva no batismo de João e não leva em
consideração sua localização salvífica-histórica. Pior, Cullmann vê o uso de “justiça”
feito por Paulo em Mateus, o qual, na verdade, nunca usa o termo dessa maneira,
mas sempre com o sentido de “conformidade à vontade de Deus” ou afins (cf.
discussão e notas de Bonnard e esp. Przybylski, p. 91-94). Além disso, a primeira
pessoa do plural não é um “nós” real; Jesus ejoão devem “cumprir toda a justiça”,
o que é duvidoso que traduza alguma teoria que ligue muito intimamente a justiça
à morte de Jesus. G. Barth (Bornkamm, Tradition [Tradição], p. I40ss.) rejeita a
percepção de Cullmann, mas cai no mesmo ponto fraco, sustentando que Jesus
cumpre toda justiça entrando humildemente na categoria dos pecadores e agindo
por eles. Aplicam-se as mesmas objeções.
2. Outros sugerem que Jesus deve obedecer (“cumprir”) toda ordem divina
(“toda a justiça”) e o batismo é uma dessas ordens. Mas essa percepção esquece
grosseiramente que o batismo diz respeito a arrependimento e confissão de pecados,
não à justiça mesma. Uma leve modificação no sentido do batismo diz que Jesus,
ao ser batizado, reconhece a validade da vida justa pregada por João e exigida dos
que aceitam o batismo de João, pois Jesus reconhece (21.32) que este veio para
mostrar o caminho de justiça. Mas essa percepção força o “cumprimento” a se
tornar “reconhecimento” e negligencia o fato de que o batismo de João não se
relaciona com o padrão de justiça pregado por João, mas ao arrependimento.
3. Pode-se integrar a força das percepções alternativas em uma síntese melhor.
Lembrar-se-á que o batismo de João tem dois focos: arrependimento e sua relevância
escatológica. De fato, Jesus afirma que é vontade de Deus (“toda a justiça”) que João
o batize; e ambos, Jesus e João, “cumprfem]” essa vontade, essa justiça, ao se
139 Mateus 3.13-17
submeterem à vontade de Deus realizando, até o fim, esse ritual (“convém que
sssimfaçamos” ', grifo do autor). O resultado, como Mateus logo observa (w. 16,17),
mostra que esse batismo realmente aponta para Jesus. Conseguimos reconhecer
outros temas nessa estrutura. Em particular, que Jesus, na verdade, é visto como o
servo sofredor (Is 42.1; cf. sobre 3.17). Mas a primeira marca do servo é a obediência
a Deus: ele “cumpr[e] toda a justiça” uma vez que sofre e morre para realizar
redenção em obediência à vontade de Deus. Jesus, por meio de seu batismo,
afirma sua determinação em fazer a obra designada a ele. Por isso, esse “por
enquanto” pode ser relevante: Jesus está dizendo que, em princípio, a objeção de
João (v. 14) é válida. Contudo, “por enquanto”, nesse ponto da história da salvação,
ele deve batizar Jesus; pois, nesse ponto, Jesus deve demonstrar sua disposição em
assumir o papel de servo, acarretando sua identificação com o povo. Ao contrário
do que diz Gundry, “por enquanto” não serve para contar aos cristãos convertidos
que eles não devem adiar “esse primeiro passo no caminho da justiça”.
Essa interpretação presume que Jesus conhecia seu papel de servo sofredor
desde o início de seu ministério; cf. mais no v. 17. Esse papel é sugerido em 2.23,
aqui ele faz sua primeira aparição velada nos atos de Jesus. A narrativa da tentação
logo a seguir confirma isso (4.1-11). Nela, Jesus recusa a tentação do demônio de
perseguir a glória e o poder messiânico, escolhendo, em vez disso, o papel de
servo obediente a toda palavra que vem da boca de Deus.
16 “Assim que” não só sugere que Jesus saiu da água imediatamente após seu
batismo, mas também que o testemunho do Espírito foi igualmente imediato. O
batismo de Jesus e sua atestação são uma só peça e devem ser interpretados juntos.
O mais natural é que “ele viu” se refere a Jesus (cf. Mc 1.10), não a João Batista,
não tanto porque Matéus exclui João, mas porque ele não é o foco de interesse. E
provável que a presença de João (e possivelmente de outros) esteja implícita no
tratamento na terceira pessoa: “Este é o meu Filho” (v. 17), substituindo o: “Tu és
o meu Filho” de Marcos (1.11).
“O céu se abriu” traz à mente as visões do Antigo Testamento (e.g., Is 64.1;
Ez 1.1; cf. At 7.56; Ap 4.1; 19.11). A comparação “o Espírito de Deus descendo
como pomba” pode representar que o Espírito desceu da mesma maneira que
uma pomba ou que o Espírito apareceu na forma de uma pomba. Quer o último
seja visionário quer não, Lucas 3.22 especifica essa forma. Por não haver uma
clara referência pré-cristã ligando pomba e Espírito Santo, alguns desenvolveram
teorias complexas, e.g., Marcos reuniu duas histórias — uma mencionando a
descida do Espírito Santo, e outra, a descida da pomba — e as fundiu (S. Gero,
“The Spirit as a Dove at the Baptism o f Jesus” [“O Espírito como pomba no
batismo de Jesus”], NovTest 18 [1976], p. 17-35). Todavia, excluir alguma nova
metáfora da revelação cristã, com certeza, é precipitado. A descida do Espírito
não pode ser avaliada de forma adequada separada do v. 17; por isso, a decisão a
respeito de seu sentido aguarda o comentário sobre o versículo 17.
17 Alguns veem o bat-kôl (lit. “filha de uma voz”) na expressão “voz dos
céus”, categoria usada pelos escritores rabínicos e outros para se referir à
comunicação divina ecoando o Espírito de Deus segundo o Espírito e os profetas
Mateus 3.13-17 140
por meio dos quais ele falava tinham sido removidos. O ponto, contudo, é mais
forte que isso. Essa voz é de Deus (“dos céus”) e testifica que Deus mesmo rompeu
o silêncio e está se revelando de novo para os homens — um claro sinal do alvorecer
da era messiânica (cf. 17.5 e Jo 12.28). O que os céus dizem em Marcos e Lucas é:
“Tu és o meu Filho”; aqui é: “Este é o meu Filho” . A mudança não apenas mostra
a preocupação de Mateus só com a ipsissima vox [voz exata] (não geralmente a
ipsissima verba [palavras exatas]; cf. notas), mas também assume que alguém além
de Jesus ouviu o testemunho do céu. Devia haver uma multidão lá, se foi esse o
caso, isso não interessa a Mateus. Mas João Batista precisava ouvir a voz confirmar
sua decisão (v. 15).
O pronunciamento, a despeito de argumentos em contrário (e.g., Hooker,
Jesus and the Servant [Jesus e o servo], p. 70ss.), reflete Isaías 42.1; “Eis o meu
servo, a quem sustento, o meu escolhido, em quem tenho prazer.Porei nele o meu
Espírito”; e isso é modificado por Salmos 2.7: “Tu és meu filho” (cf. Gundry, Use
o f O T[Uso do AT], p.29-32; e esp. Moo, “Use o f O T ” [“Uso do AT”], p. 112ss.).
Os resultados desses pronunciamentos são extraordinariamente importantes.
1. Essas palavras do céu ligam Jesus ao servo sofredor no início mesmo de seu
ministério e confirmam nossa interpretação do versículo 15.
2. Aqui, Deus refere-se a Jesus como “meu Filho”; o título “Filho de Deus” é
introduzido de forma implícita e usado imediatamente no capítulo seguinte (4.3,6).
O salmo 2 é davídico, embora no século I esse salmo não fosse considerado
messiânico, a ligação com Davi rememora outras passagens de “filho” em que Davi
ou seu herdeiro é visto como fdho de Deus (e.g., 2Sm 7.13,14; SI 89.26-29).
3. Jesus já é anunciado como a verdadeira Israel para a qual a Israel real
apontava e como Filho de Deus (veja sobre 2.15); agora, o testemunho celestial
confirma a ligação.
4. A concepção virginal sugere, ao mesmo tempo, mais que uma fdiação
titular ou funcional; nesse contexto há indício de fdiação ontológica, tornada
mais explícita no evangelho de João.
5. Jesus é o Filho “amado” (agapêtos): o termo pode representar não só afeição,
mas também eleição, reforçada pelo tempo aorístico que segue (lit. “agrado-me
bastante com ele”), sugerindo eleição pré-temporal do Messias (cf. Jo 1.34 [gr.
mg.]).
6. Essas coisas estão ligadas em uma única declaração: no início mesmo do
ministério público de Jesus, seu Pai apresentou-o, de maneira velada, como,
simultaneamente, o Messias davídico, o Filho de Deus, o representante do povo e
o servo sofredor. Mateus já introduziu todos esses temas e os desenvolverá mais.
Na verdade, ele, definitivamente, cita Isaías 42.1-4 em 12.18-21, que termina
com a afirmação (já deixada clara) de que as nações confiarão nesse servo.
A expressão “Filho de Deus” tem associações particularmente ricas. Por isso,
é difícil fixar sua força precisa em cada ocorrência. Da mesma maneira que é errado
ver filiação ontológica em todo uso, também é errado excluí-la prematuramente.
(Para discussão mais adequada, veja além dos dicionários padrões, Blair, p. 60ss.;
Cullman, Christology [Cristologia], p. 270-305; Kingsbury, Structure [Estrutura],
141 Mateus 4.1-11
p. 40-83 [embora ele exagere a importância do tema em Mateus: cf. Hill, “Son
and Servant” (“Filho e servo”), p. 2-16]; Ladd, N T Theology [Teologia do NT\ p.
159-72; e Moule, Christology [Cristologia\, p. 22ss.)
A descida do Espírito, no versículo 16, precisa ser entendida à luz do versículo 17.
O Espírito é derramado sobre o servo em Isaías 42.1-4, passagem à qual o versículo 17
alude. Esse derramamento não muda a condição de Jesus (ele era o Filho antes
disso) nem concede novos direitos a ele. Antes, o derramamento identifica-o como
o servo e o Filho prometidos e marca o início de seu ministério público e sua confron
tação direta com Satanás (4.1), o alvorecer da era messiânica (12.28).
Notas
14 O Koá (kai, “e”) tem força adversativa — “porém” (cf. Zerwick, par. 455; Turner, Syntax
[Sintaxe], p. 334). Isso pode refletir o início de uma apódose aramaica (Lagrange, p.
xci).
16 Se aúxcò (auto) é a leitura correta, o texto diz que os céus se abriram “para ele”, isto é,
para Jesus. Mas isso não precisa representar que ninguém mais vivenciou nada (veja
comentário sobre “este é” no v. 17), mas só que, além da voz mais pública, só Jesus
percebeu o céu abrindo. No período do Novo Testamento, a preposição dciró (apo, “a
partir de, para fora de”) não pode sempre ter o sentido distinguido de ék (ek), usado
em Marcos 1.10 (cf. Zerwick, par. 87; Turner, Syntax [Sintaxe], p. 259).
17 A palavra latina vox quer dizer simplesmente “voz” e verba, “palavras”. Ipsissima, da
palavra latina ipse (“eu”), quer dizer basicamente “todos por si mesmos” ou sentido
semelhante. No estudo do Novo Testamento, ipsissima vox e ipsissima verba, em geral,
referem-se à “própria voz [de Jesus]” e às “exatas palavras [de Jesus]”, respectivamente.
A primeira sugere que o ensinamento de Jesus está preservado de forma acurada, mas
nas palavras, estilo, etc. do evangelista, ao passo que a última se refere às passagens em
que as próprias palavras de Jesus são preservadas. Contudo, no sentido mais estreito,
ipsissima verba, uma vez que Jesus falava principalmente aramaico, estaria restrita às
palavras como abba, talitha, cum, etc. Outros entendem que o termo inclui palavras
de Jesus que são apresentadas com tradução precisa no grego; mas também seria uma
categoria destrutiva para usar como a única reflexão aceitável sobre o que Jesus ensinou.
É claro que nesse versículo, as palavras não são as de Jesus, mas as da voz do céu.
Mesmo assim, Mateus preserva só o sentido geral, a ipsissima vox. Para discussão
adicional, veja EBC, 1:13-20.
No passado, muitos estudiosos tomavam essa perícope e seu paralelo (Lc 4.1-
13) como embelezamentos imaginativos ao relato muito mais breve de Marcos.
Mas J. Dupont (“L’Arrière-fond Biblique du Récit des Tentations de Jésus” [“O
pano de fundo bíblico da narrativa das tentações de Jesus”], N T S 3 [ 1956-57], p.
287-304) argumenta persuasivamente que a brevidade de Marcos e a ambiguidade
de declarações, como: “estava com os animais selvagens” (Mc 1.13), indicam que
os leitores de Marcos estavam familiarizados com um relato mais abrangente ao
qual Marcos faz uma breve referência. O relato só poderia ter vindo de Jesus,
transmitido a seus discípulos depois de Cesareia de Filipe (Dupont). Por essa
razão, ele fornece um importante vislumbre da percepção de si mesmo de Jesus
como Filho de Deus (3.17; 4.3,6) e, a julgar pela Escritura que ele cita, a maneira
como ele percebe sua própria relação com Israel (cf. France, Jesus, p. 50-53).
Mateus e Marcos ligam as tentações de Jesus ao batismo (veja sobre 4.1).
Todavia, Lucas insere sua genealogia entre os dois relatos, sugerindo um contraste
entre Adão, que embora testado no êxtase do Éden, todavia, falhou, e Jesus, que
foi testado na privação do deserto, porém, triunfou. A resposta de Jesus para
Satanás (toda tirada de D t 6— 8; ou seja, 6.13,16; 8.3) levou alguns a argumentar
que esse relato é um midrash haggadic — ou seja, explanatório, mas narrativas
minimamente históricas — sobre o texto do Antigo Testamento (cf. esp. B.
Gerhardsson, The Testing o f God’s Son [O teste do Filho de Deus] [Lund: CW K
Gleerup, 1966]). Mas a linha da história permanece independente do pano de
fundo do Antigo Testamento; há mais temas alusivamente escondidos no relato
de Mateus que os encontrados à primeira vista (e.g., possíveis temas “novo Moisés”:
Davies, Setting [Cenário], p. 45-48; cf. Bonnard, Petr Pokorny, “The Temptation
Stories and Their Intention” [“As histórias da tentação e suas intenções”], N T S 20
[1974], p. 115-27); e a repetida referência a Deuteronômio 6— 8 é mais bem
explicada em termos da tipologia Israel-Cristo.
Lucas reverte a ordem das duas últimas tentações por motivos topográficos.
E quase certo que a ordem de Mateus é a original (Schweizer; Walvoord).
É difícil estar exatamente certo do que aconteceu ou de que forma Satanás
veio a Jesus. Ficar de pé em um monte muito alto (v. 8) não forneceria, por si só,
uma visão de “todos os reinos do mundo”; pressupõe-se alguma visão sobrenatural.
Além disso, dificilmente um jejum de quarenta dias seja o pano de fundo ideal
para uma caminhada longa para três lugares distintos e em terreno acidentado.
Quando lembramos que Paulo nem sempre tinha certeza se suas visões eram “no
corpo ou fora do corpo” (2Co 12.2), devemos ter cuidado em relação a dogmatizar
aqui. Mas não há motivo para pensar que a estrutura da história é puramente
simbólica em contraposição a ser visionária, representando as lutas interiores de
Jesus; se os demônios podiam se dirigir diretamente a ele (e.g., 8.29,31), é difícil
dizer se Satanás não poderia, ou não faria, isso.
1 As três tentações de Jesus estabelecem ligação com seu batismo não só pela
referência à filiação e ao Espírito, mas também pela palavra de abertura “então”
{tote). A atestação de Jesus como Filho (3.17) fornece “a oportunidade natural
para essas tentações especiais como descritas aqui” (Broadus). O mesmo Espírito
143 Mateus 4.1-11
que gerou Jesus (1.20) e atestou o reconhecimento de sua filiação pelo Pai (3.16,17),
agora, leva-o ao deserto para ser tentado pelo demônio. O “deserto” (cf. sobre
3.1) não só é o lugar associado à atividade demoníaca (Is 13.21; 34.14; M t 12.43;
Ap 18.2; Trench, p. 7-8), mas também é, em um contexto de referências abundantes
a Deuteronômio 6— 8, o local em que Israel vivenciou seus primeiros grandes
testes.
O demônio não deve ser reduzido a “forças” impessoais presentes por trás de
racismo e de massacres (Schweizer). O sentido estrito da palavra grega diabolos é
“caluniador”; mas o termo é a tradução habitual na LXX de “Satanás” (e.g., lC r
21.1; Jó 1.6-13; 2.1-7; Zc 3.1,2), o principal oponente de Deus, o arqui-inimigo
que lidera todas as hostes espirituais das trevas (cf. Gn 3; 2Sm 19.23; Jo 8.37-40;
lC o 11.10; 2Co 11.3; 12.7; Ap 12.3-9; 20.1-4,7-10; Maier). Em uma época de
aumento do ocultismo e de satanismo público é mais fácil acreditar no testemunho
claro da Bíblia sobre ele que afirmações feitas vinte anos atrás.
O fato de Jesus ser levado “pelo Espírito” para ser tentado “pelo Diabo” não é
mais estranho do que Jó 1.6— 2.7 ou que 2Samuel 24.1 (lC r 21.1). O reconheci
mento de que “tentar” (peirazô) também quer dizer “testar” em um sentido bom ou
ruim minimiza um pouco o problema. N a Escritura, “tentar”, ou “testar”, pode
revelar ou desenvolver o caráter (Gn 22.1; Êx 20.20; Jo 6.6; 2Co 13.5; Ap 2.2)
tanto quanto instiga o mal (lC o 7.5; lTs 3.5). Para nós, “tentar” ou “testar” Deus
é errado porque reflete descrença ou tentativa de suborno (Êx 17.2,7 [SI 95.9]; Dt
6.16 [Mt 4.7]; Is 7.12; At 5.9; 15.10). Além disso, Deus usa instrumentos e pode
reverter em benefício os motivos malignos de seus agentes — veja a experiência de
José (Gn 50.19,20). Em Jesus, as “tentações” de Deus têm claramente o propósito
de testá-lo da mesma forma como Israel foi testada, e as respostas de Jesus provam
que ele entendia isso.
2 Continuam os paralelos com a Israel histórica. O jejum de Jesus (sem dúvida,
abstinência total de alimento, mas não de líquido; cf. Lc 4.2) por quarenta dias e
noites reflete a errância de Israel por quarenta anos (Dt 8.2). A fome de Israel e de
Jesus forneceu uma lição (Dt 8.3); ambos passaram um tempo no deserto preparatório
para suas respectivas obrigações. Outros paralelos foram observados (cf. Dupont).
O principal ponto é que ambos os “filhos” foram testados pelo desígnio de Deus
(Dt 8.3,5; cf. Êx 4.22; Gerhardsson, Testing God’s Son [Testando o Filho de Deus\, p.
19-35), o primeiro depois de ser resgatado do Egito e o outro depois de seu batismo,
para provar sua obediência e lealdade na preparação para a obra designada para eles.
O primeiro “filho” falhou, mas apontava para o “Filho” que nunca falharia (cf.
sobre 2.15). Nesse sentido, as tentações legitimaram Jesus como verdadeiro Filho
de Deus (cf. Berger, “Die königlichen Messiastraditionen” [“As reais tradições de
Messias”], p. 15-18).
Ao mesmo tempo, a fome de Jesus apresenta-nos várias ironias às quais Mateus
alude mais ou menos explicitamente: Jesus está com fome (v. 2), mas alimenta
outros (14.13-21; 15.29-39); ele está fraco (8.24), mas oferece descanso para os
outros (11.28); ele é o Rei Messias, mas paga tributo (17.24-27); ele é chamado
de diabo, mas expulsa demônios (12.22-32); ele tem a morte de um pecador, mas
Mateus 4.1-11 144
veio para salvar seu povo de seus pecados (1.21); ele é vendido por trinta moedas
de prata, mas dá sua vida em resgate de muitos (20.28); ele não transforma pedra
em pao para si mesmo (4.3,4), mas oferece seu corpo como pão para as pessoas
(26.26).
3,4 O tentador vem a Jesus — não sabemos dizer em que forma — e refere-se
à filiação de Jesus (v. 3). A forma da conjunção “se” no grego {ei + indicativo) não
desafia tanto sua filiação como a assume para construir um duvidoso imperativo.
Satanás não estava convidando Jesus a duvidar da própria fdiação, mas a refletir
sobre o sentido dela. A filiação do Deus vivo, sugeriu ele, representa, sem dúvida,
que Jesus tem o poder e o direito de satisfazer suas próprias necessidades.
A resposta de Jesus baseia-se apenas na Escritura: “Está escrito” (v. 4). A Escritura
é Deuteronômio 8.3; seguindo a LXX, que traz “toda palavra”, em vez de uma
expressão hebraica mais ambígua (a menos que seja adotada a leitura não da LXX de
D; cf. Gundry, Use ofO T\U so doAT\, p. 67); e ela é inicialmente aplicada a Israel.
Mas a declaração mesma é um aforismo. Embora “homem” {ho anthrôpos) possa
especificar a antiga Israel (e.g., SI 80.17), contudo, sempre é verdade que todos
devem reconhecer a total dependência de Jesus da palavra de Deus. O alimento
de Jesus é fazer a vontade de seu Pai que o enviou (Jo 4.34).
O ponto de cada tentação deve ser determinado pelo exame atento da tentação
e da resposta de Jesus. Esta mostra claramente que essa primeira tentação não
representou um simples incitamento para usar meios impróprios de produzir pão
(Morison), ou uma tentativa de usar um milagre para provar a si mesmo que
realmente era o Filho de Deus (J. A. T. Robinson, p. 55-56), ou agir sozinho sem
pensar nos outros (Riesenfeld, p. 87-88); foi uma tentação para usar sua filiação
de forma inconsistente com sua missão ordenada por Deus. O mesmo escárnio:
“Se és o Filho de Deus” é lançado contra ele em 27.40, quando, se ele deixasse a
cruz, anularia o propósito de sua vinda. De forma semelhante, embora Jesus pudesse
ter conseguido a ajuda de legiões de anjos, como seriam cumpridas as Escrituras
que diziam que ele tinha de sofrer e morrer (26.53,54)? A fome de Israel tinha o
intuito de mostrar a eles que ouvir a palavra de Deus e obedecer a ela são as coisas
mais importantes da vida (Dt 8.2,3). D a mesma forma, Jesus aprendeu obediência
por meio do sofrimento, como um filho na casa de Deus (Hb 3.5,6; 5.7,8). Para
Jesus, a obediência à palavra de Deus era mais necessária que o pão.
A luz desses paralelos, devemos concluir que o objetivo de Satanás era incitar
Jesus a usar poderes seus por direito, mas que ele abandonara voluntariamente a
fim de realizar a missão do Pai. Reclamá-los para si mesmo negaria a humilhação
própria implícita em sua missão e na vontade do Pai. Israel exigiu seu pão, mas
morreu no deserto; Jesus negou o pão a si mesmo, conservou sua justiça e viveu
pela submissão fiel à palavra de Deus. (Pode haver uma alusão a H c 2.4; cf. J.
Andrew Kirk, “The Messianic Role of Jesus and the Temptation Narrative” [“O
papel messiânico de Jesus e a narrativa da tentação”], E Q 44 [1972], p. 11-29,
91-102.)
5-7 A segunda tentação (terceira em Lucas) é localizada na “cidade santa” (v.
5), Jerusalém (cf. Ne 11.1; Is 48.2; Dn 9.24; M t 21.10; 27.53), no ponto mais
145 Mateus 4.1-11
sofredor (cf. sobre 3.17); havia estímulo para desfrutar o primeiro sem passar pelo
segundo. Causa pouca admiração que, mais tarde, Jesus dirija-se de forma tão
contundente a Pedro, quando este fez uma sugestão semelhante (16.23).
Jesus reconhecia que a sugestão de Satanás acarretava privar Deus de sua
afirmação de adoração exclusiva: nem Israel “filha” de Deus nem Jesus “Filho” de
Deus podiam se desviar da submissão total a Deus (v. 10; cf. Êx 23.20-33; D t
6.13; cf. esp. McNeile, Bonnard). Por isso, Jesus respondeu com um terceiro “está
escrito” e expulsou Satanás da sua presença. Tempo viria em que Jesus, ao expandir
o reino, destruiria progressivamente o reino que Satanás tinha a oferecer (12.25-
28; cf. Lc 10.18). Ainda está no futuro o dia em que o último inimigo do Rei
Messias será destruído (IC o 15.25,26). Mas Jesus alcança tudo sem comprometer
sua submissão filial ao Pai.
Em outras palavras, desde o início de seu ministério terreno, Jesus tinha em
mente a combinação de realeza e serviço sofredor atestados em seu batismo e
essenciais para sua missão. Além disso, os temas gêmeos de autoridade real e
submissão filial, desenvolvidos tão claramente no quarto evangelho (cf. Carson,
Divine Sovereignty \Soberania divina], p. 146-62), já estão presentes como pólos
complementares da vida e autorrevelação de Emanuel: “Deus conosco”.
11 O diabo deixou Jesus “até ocasião oportuna” (Lc 4.13); e o tempo presente
usado por Mateus (aphiêsin) pode sugerir a mesma coisa (Hill, Matthew [Mateus]).
Embora o conflito mal tenha começado, o padrão de obediência e de confiança foi
estabelecido. Ele aprendeu a resistir ao diabo (cf. T g 4.7). A ajuda dos anjos não é
alguma bênção passageira, mas sustentada (provavelmente o tempo imperfeito é
relevante). Jesus tinha se recusado a saciar sua fome transformando milagrosamente
pedra em pão, agora, ele é alimentado de forma sobrenatural (diêkonoun, “atendido”,
com frequência, usado em conexão com alimento, e.g., 8.15; 25.44; 27.55; At 6.2;
cf. Elias em lR s 19.6,7). Ele recusara-se a se atirar dos píncaros do templo na
esperança de conseguir ajuda dos anjos; e, agora, estes o alimentam. Ele recusara-
se a tomar o caminho mais curto para herdar o reino do mundo; agora, ele cumpre
a Escritura iniciando seu ministério e anunciando o reino na Galileia dos gentios
(w. 12-17).
Notas
1-11 A questão da impecabilidade de Cristo é muito discutida na literatura mais antiga,
mas é duvidoso que, nessa perícope, ela seja uma preocupação de Mateus. O problema,
em parte, é de definição: dizer que Cristo não podia pecar não resolve a natureza da
impossibilidade, e muitos escritores dizem que ele não podia pecar porque não pecaria
(cf. Trench, p. 25-30). Mas, em um grau mais profundo, o problema diz respeito à
verdade da encarnação e de como explicá-la. Os documentos do Novo Testamento
afirmam tanto a divindade de Jesus quanto a humanidade dele, e não se pode permitir
que nenhuma dessas afirmações negue a verdade complementar. Pode-se argumentar
que a impecabilidade de Cristo é uma função de sua divindade, mas não deve ser
tomada para mitigar sua humanidade, e a capacidade de ser tentado é uma função de
sua humanidade, mas não deve ser tomada para mitigar sua divindade.
2 O particípio aorístico vrpTetiaaç (nêsteusas, “depois de jejuar”) não prova que a fome
começou só depois de terminados os quarenta dias, uma vez que, às vezes, o particípio
147 Mateus 4.12-17
aorístico indica ação coordenada com o verbo principal. A declaração mais explícita de
Lucas é ampliada de forma muito forçada por alguns estudiosos: Lucas está dizendo
que a fome de Jesus se deve a quarenta dias de jejum, não que a fome tenha começado
depois dos quarenta dias. Há pouco fundamento exegético para apelar para o sobrenatural
aqui.
a. O início (4.12-17)
12 Quando Jesus ouviu que João tinha sido preso, voltou para a Galileia. 13 Saindo de Nazaré, foi viver
em Cafarnaum, que ficava junto ao mar, na região de Zebulom e Naftali, 14 para cumprir o que fora
dito pelo profeta Isaías:
15 “Terra de Zebulom e terra de Naftali, caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios; 16 o
povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; sobre os que viviam na terra da sombra da morte raiou
uma luz”.
17 Daí em diante Jesus começou a pregar: “Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo” .
12 Parece que a prisão de João Batista impeliu Jesus a voltar (cf. notas) à Galileia.
Embora Marcos 1.14,15 também ligue os dois eventos, seria fazer o texto dizer
demais concluir que Mateus forçou a linguagem para fazer com que a prisão de João
seja o motivo do afastamento de Jesus (é mais provável que akousas queira dizer
"‘quando ele ouviu” do que “porque ele ouviu”). E igualmente importante o fato de
que a linguagem sugere que Jesus permaneceu por algum tempo na Judeia — a não
ser que suponhamos que a prisão de João Batista foi logo depois do batismo de
Jesus. Os sinóticos não fazem menção ao ministério inicial de Jesus na Judeia, mas
sugerem que o ministério dele começou na Galileia. Por contraste, o quarto evangelho
parece pressupor um ministério galileu anterior (Jo 1.19— 2.12), um ministério na
Judeia sobreposto ao ministério de Batista (Jo 2.13— 3.21) e, depois, um retorno ao
norte via Samaria (Jo 3.22— 4.42). A cronologia joanina, com frequência, é descar
tada como pouco confiável do ponto de vista histórico. Contudo, há indícios até
mesmo nos evangelhos sinóticos que pressupõem um ministério inicial na Judeia
(e.g., Lc 10.38), sendo esse indício a demora implícita nesse versículo.
Se essa abordagem for válida, devemos perguntar por que os sinóticos eliminaram
os primeiros meses do ministério de Jesus. H á muitos motivos possíveis.
1. Com a tirada de cena de Batista, o ministério de Jesus entrou em uma nova
fase. A função do precursor estava encerrada; aquele para o qual ele apontava chegara.
Essa transferência pode ser nitidamente indicada pelo começo do relato do ministério
de Jesus a partir da prisão de João Batista. (Compare os anos de intervalo entre os
reis do Antigo Testamento e o tratamento variado que receberam dos escritores do
Antigo Testamento.)
2. Por contraste, quando o quarto evangelho foi escrito, a ligação explícita
entre João Batista e Jesus podia ser de interesse mais urgente se o escritor estivesse
respondendo a grupos organizados de seguidores de Batista (cf. At 19.1-4). Os
escritores dos sinóticos não parecem estar sob essa pressão.
3. Em Mateus, a Galileia tem profunda relevância porque anuncia cumprimento
de profecia (w. 14-16) e aponta para a expansão do evangelho para “todas as nações”
(28.19).
Mateus 4.12-17 148
palavras, a julgar pelo uso que faz em outras passagens (e.g., 1.22; 2.15), Mateus não
está falando que Jesus mudou a fim de cumprir a Escritura, mas que sua mudança
cumpre a Escritura.
15 Na LXX, as palavras 'oõòv 0aA.áaor\ç (hodon thalassês, “o caminho do mar”) estão em
Isaías 8.23 e bem podem ser uma tradução literal do hebraico ^-n (Derekyâm), “direção
do mar”; ou seja, “perto do mar” (cf. “o caminho do mar”, NVI, Is 9.1), em vez de
“caminhopara o mar” (cf. Turner, Syntax [Sintaxe], p. 247). A tradução “além do Jordão”
para Trepai t o ü ’ Iopôávou iperan tou Iordanou) reflete o fato de que Zebulom e Naftali
não se estendem a leste até o Jordão. Mas, linguisticamente, a frase deve ter o sentido de
“além do Jordão”. Normalmente, “além do Jordão” refere-se à margem leste, mas devemos
ter em mente a perspectiva vantajosa do falante e, às vezes, ela pode se referir à margem
oeste (e.g., Nm 32.19; Dt 11.30; Js 5.1; 22.7). O hebraico é traduzido mais naturalmente
por “além do Jordão”. É mais provável que Isaías visse os assírios vindo do nordeste; à
medida que eles infligiam progressivamente julgamento sobre as nações, eles vieram de
“além do Jordão” para a margem oeste. Assim, talvez a tradução de Mateus simplesmente
preserve essa mesma circunstância — nesse caso, há mais uma referência ao “exílio”,
agora, findo com a vinda do Messias (veja sobre 2.17,18)? A LXX insere um Kaí (kai,
“e”) antes de “além do Jordão”, eliminando o problema formando duas regiões.
Contudo, se Mateus está refletindo sua própria circunstância, é possível que ele esteja
escrevendo da margem oeste (é o que acha Slingerland), talvez da Decápolis. É difícil
ter certeza a respeito disso por causa das incertezas na forma do texto da citação e do
sentido no hebraico. Veja mais no comentário de 19.1.
16 A ütoI ç (autois, “sobre os”) é redundante depois de tot Ka9r||iÊtmç (tois kathêmenois,
lit., “sobre os sentados [“que viviam”; NVI]”), mas essa forma, embora seja desconhecida
no grego clássico, é comum no hebraico (cf. BDF, par. 466 [4]).
17 A leitura omitindo laeiavoeiTe (metanoeite, “arrepender”) e yáp (gar, “porque, pois”)
não é bem atestada, mas fica seriamente ameaçada pela possibilidade de assimilação de
3.2. Não obstante, permanece o texto mais longo (cf. esp. Chilton, Chilton, God in
Strength [Deus emforça\, p. 302-10; Fee, p. I64s.).
Uma vez que nenhuma expressão temporal liga essa perícope com a última,
pode ter transcorrido algum lapso de tempo entre uma e outra. O ceticismo de
Bultmann (Synoptic Tradition [Tradição sinótica], p. 28) em relação ao valor histórico
desses versículos é injustificado (cf. Hill, Matthew [Mateus]).
A relação entre os vários chamados dos discípulos nos registros do evangelho é
obscura. Se considerarmos João 1.35-51 como histórico, Simão, André, Filipe e
Natanael primeiro seguiram a Jesus em uma data anterior. Ao retornar para a Galileia,
eles retomaram seu trabalho normal. Isso é inerentemente plausível. O compromisso
dos discípulos e o desenvolvimento da compreensão aconteceram de forma gradual,
em estágios; mesmo depois da ressurreição, eles voltaram mais uma vez para a pesca
151 Mateus 4.18-22
(Jo 21). Aqui (4.20), um compromisso anterior pode explicar a rapidez com que
seguiram a Jesus. Se o milagre de Lucas 5.1-11 ocorreu na noite anterior de Ma
teus 4.18-22 (Mc 1.16-20), esse poderia ser outro motivo para a resposta imediata
deles para Jesus. Nessa conexão, o sentido de katartizontas (“preparando”, v. 21; cf.
abaixo) é relevante. Veja mais em 9.9-13; 10.1-4.
18 A palavra “mar” em hebraico, como o see em alemão, pode se referir a
lago. O grego clássico prefere usar thalassa (ou thalatta — “mar”) para lago; e
Lucas segue o mesmo padrão usando limnê (“lago”), embora Mateus, Marcos e
João prefiram “mar”. O mar da Galileia (que recebe o nome da região), do contrário,
conhecido como “lago de Genesaré” (o nome Quinerete [Nm 34.11; Js 12.3]
vem de uma planície localizada em sua costa noroeste; cf. M t 14.34) ou o “mar de
Tiberíades” (cidade que Herodes construiu na costa sudoeste; Jo 6.1; 21.1) tem
20,5 quilômetros de comprimento por 13,2 quilômetros de largura. A superfície
dele está 207 metros abaixo do nível do mar. Ele é sujeito a violentas ventanias.
Na época de Jesus, ele sustentava prósperas indústrias de pesca; em sua costa oeste
havia nove cidades, e a tradução livre de Betsaida pode ser “Cidade do Peixe”.
Simão e seu irmão André foram para Betsaida (Jo 1.44), embora, agora, Cafarnaum
fosse o lar deles (Mc 1.21,29).
Simão, diz Mateus, era “chamado Pedro”, mas ele não nos conta como Pedro
recebeu esse nome (cf. 10.2; 16.18; Mc 3.16; Lc 6.14). Embora as incertezas
permaneçam, o que está bastante certo é que kêpâ (“rocha”, “pedra”), o equivalente
aramaico de “Pedro”, já era um nome aceito na época de Jesus (cf. Joseph A.
Fitzmyer, “Aramaic Kepha’ and Peter’s Name in the New Testament” [“O aramaico
Kepha’ e o nome de Pedro no Novo Testamento”], em Best e Wilson, p. 121-32)
— fato que tem importante sentido na interpretação de 16.17,18.
Simão e André estavam jogando uma “rede” (amphiblestron, um hapax lego-
menon do Novo Testamento [apenas uma ocorrência] com um cognato em Mc
1.16). Refere-se a uma “rede de pesca” circular e não deve ser confundido com o
termo mais genérico diktua de 4.20.
19,20 O grego tem diversas expressões para “siga-me” (v. 19; cf. em 10.38; Lc
9.23; 14.27), mas todas elas pressupõem um ato físico de “seguir” durante o ministério
de Jesus. Seus “seguidores” não eram apenas “ouvintes”; eles, na verdade, seguiam
seu Mestre nos lugares (como os alunos faziam na época) e tornavam-se, por assim
dizer, estagiários. A metáfora “pescadores de homens” olha em retrospectiva para o
trabalho dos dois homens sendo chamados. Ela também pode lembrar Jere
mias 16.16. Lá, Iavé envia “pescadores” a fim de reunir seu povo para o exílio; aqui,
Jesus envia “pescadores” para anunciar o fim do exílio (cf. sobre 1.11,12; 2.17,18) e
o início do reinado messiânico. Mas essa alusão é incerta; o perigo da “mania de
paralelo” (expressão cunhada por S. Sandmel, “Parallelomania” [“Mania de paralelo”],
JBL 81 [1962], p. 2-13) fica evidente quando E. C. B. MacLaurin (“The Divine
Fishermen” [“Os pescadores divinos”], St. Mark’s Review 94 [1978], p. 26-28) trabalha
muitos paralelos e, depois, opta pela mitologia ugarítica com um milênio e meio de
idade. Em todo caso, há uma linha reta dessa comissão para a Grande Comissão
(28.18-20). Os seguidores de Jesus, na verdade, têm de pegar homens.
Mateus 4.23-25 152
Resumos são comuns na literatura narrativa, mas esse diante de nós, com seu
paralelo em 9.35-38, tem aspectos característicos.
1. Não se resume apenas o que foi feito antes, mas mostra a extensão geográfica
e a variedade de atividades do ministério de Jesus.
2. Por isso, estabelece o palco para os discursos e histórias específicas que
seguem e sugere que o material apresentado é apenas uma amostra representativa
do que tinha disponível.
3. Não é uma simples crônica, pois transmite material teológico. Assim, é
fácil detectar diferentes ênfases entre esse resumo e 9.35-38 (veja comentário in
loc).
Comentadores mais antigos veem o primeiro circuito da Gaiileia nos
versículos 23-25 e o segundo em 9.35-38. Isso é possível, mas as duas perícopes
podem se referir ao ministério constante de Jesus, em vez de a circuitos definidos
com rigidez.
23 O ministério de Jesus incluía ensino, pregação e cura. A Gaiileia, a região
coberta, é pequena (tem aproximadamente 112 por 64 quilômetros), mas, de
acordo com Josefo (Life 235 [45]; War III, 41-43 [iii.2]), que escreveu uma geração
153 Mateus 4.23-25
depois, a Galileia tinha 204 cidades e vilarejos, cada uma com não menos que 15
mil pessoas. Mesmo que esse número se refira apenas às cidades muradas, e não
inclua os vilarejos (que não é o que Josefo diz), a estimativa mais conservadora
aponta uma população grande, mesmo que menor que os 3 milhões de Josefo.
Em uma média de visita de duas cidades ou vilarejos por dia, seriam necessários
três meses para visitar todas elas sem tempo de folga para o sábado. Jesus “andou
por toda parte fazendo o bem” (At 10.38; cf. Mc 1.39; 6.6). O esgotamento físico
devia ser enorme. Acima de tudo, temos de reconhecer que Jesus era um pregador
e professor itinerante que necessariamente repetia quase o mesmo material diversas
vezes e se deparava sempre com os mesmos problemas, doenças e necessidades.
A ligação entre “ensina[r]” e “sinagoga” repete em 9.35; 13.54. Pode-se bem
pedir que um visitante judeu ensine na sinagoga local (na qual cf. Moore, Judaism
\Judaísmo\, 1:281-307; Douglas, Illustrated Dictionary [Dicionário ilustrado]
3:1499-503) como parte da adoração regular (e.g., Lc 4.16). A palavra “deles”
pode indicar uma época em que a sinagoga e a igreja tinham se separado. Por sua
vez, pode simplesmente indicar que o autor e seus leitores viam esses eventos de
fora da Galileia (veja mais no comentário de 7.29; 9.35 et al.).
A mensagem pregada por Jesus é “as boas-novas [euangelion, “evangelho”] do
Reino”. O termo ocorre em 9.35; 24.14 e torna-se “este evangelho” em 26.13.
“Do Reino” é um genitivo objetivo: as “boas-novas” dizem respeito ao reino (cf.
notas), cuja proximidade já foi anunciada (3.2; 4.17) e que é o assunto central do
sermão do monte (5— 7). Marcos prefere “o evangelho”, “evangelho de Cristo”,
ou “evangelho de Deus” (Mc 1.1,14; 8.35; 10.29; 13.10); mas a diferença entre
essas expressões e o “evangelho do Reino” é puramente linguística, uma vez que as
“boas-novas” dizem respeito a Deus e a irrupção de seu reino salvador na pessoa
de seu Filho, o Messias.
As curas de várias doenças entre as pessoas atestam mais ainda a presença e o
avanço do reino (cf. 11.2-6; Is 35.5,6). Walvoord (p. 39) relega essas “bênçãos do
reino [...] cujo cumprimento é previsto no reino futuro” para a condição de meras
“credenciais do Reino”; mas se as bênçãos do reino estão presentes, então, o reino
também tem de ter irrompido, mesmo que ainda não tenha todo esplendor que
terá em sua consumação (cf. Ap 21.3-5).
24 A extensão geográfica da “Síria” é incerta. Da perspectiva de Jesus na Galileia,
a Síria estava ao norte. Do ponto de vista do império de Roma, a Síria era uma
província romana que abraçava toda a Palestina (cf. Lc 2.2; At 15.23,41; G1 1.21);
a Galileia não pertencia a esse território, uma vez que, nessa época, estava sob a
administração independente de Herodes Antipas. O termo “Síria” reflete a extensão
do entusiasmo gerado pelo ministério de Jesus; se aqui se presume o uso romano
do termo, mostra o efeito de Jesus sobre povos muito distantes das fronteiras de
Israel. Esses “padecendo vários males e tormentos” estão divididos em três categorias
sobrepostas: (1) os endemoninhados (cf. 8.28-34; 12.22-29); (2) os que tinham
acessos — viz., qualquer tipo de insanidade ou de comportamento irracional,
quer relacionado com o fato de a pessoa estar possuída por demônios quer não
(17.14-18; sobre selêniazomenous [“epilépticos”] que etimologicamente se refere a
Mateus 5.1-7.29 154
registros não editados dos ensinamentos de Jesus, antes, ele assume que eles são
notas condensadas largamente escritas no idioma de Mateus, selecionadas e
apresentadas de acordo com as próprias preocupações deste. Mas por trás delas
permanece a voz e a autoridade de Jesus.
2. Relação com o sermão da planície (Lc 6.20-49). Agostinho afirmou que
Mateus 5— 7 e a passagem de Lucas são dois discursos distintos, e quase todos os
escritores concordavam com ele até a Reforma. Até mesmo depois da Reforma,
alguns estudiosos seguiam Agostinho (e.g., Alexander, Plumptre) e, hoje, alguns
estão retornando à percepção de Agostinho.
Contudo, Orígenes, Crisóstomo, Calvino e a maioria dos estudiosos recentes
defendem a percepção (com frequência, com teorização apropriada sobre Q) que
os dois relatos representam o mesmo discurso. Essa percepção tem muita coisa
que a recomenda. Os dois sermões começam com bem-aventuranças e terminam
com o mesmo símile. Quase tudo do sermão da planície, de alguma forma, está
no sermão do monte e, com frequência, em ordem idêntica. Os dois sermões são
imediatamente seguidos pelos mesmos eventos — viz., entrada em Cafarnaum e
a cura do servo do centurião. (O ponto é válido mesmo se não indicar nada além
de uma ligação em comum na tradição.) O sermão de Lucas é muito mais curto e
tem sua própria ênfase temática (e.g., humildade); e muito do material extra de
Mateus está espalhado por outras passagens de Lucas, em especial, em sua “narrativa
de viagem” (Lc 9.51— 18.14; discutida em 19.1,2). Além disso, Mateus fala de
um monte, Lucas, de uma planície; e o discurso de Lucas segue a escolha dos
Doze, que só acontece em Mateus no capítulo 10.
Mas esses problemas podem ser rapidamente resolvidos.
a. Muito do que Lucas omite, material em sua maioria contido em Mateus 5.17-
37; 6.1-18, é exatamente o tipo de material que poderia interessar aos leitores judeus
de Mateus mais que aos leitores de Lucas. Este também omite algum material de
seu “sermão da planície” que pôs em outras passagens (Mt 6.25-34; Lc 12.22-31). É
possível que Jesus tenha feito o sermão mais de uma vez. Alternativamente, o contexto
de Lucas é tão vago que ele pode ter sido responsável pela reorganização tópica.
Em todo caso, insistir que um escritor deve incluir tudo que sabe ou tudo que há
em suas fontes é metodologia deficiente. Em outros discursos de Mateus, este
inclui muito material, e Lucas inclui menos; no sermão do monte, embora o
relato de Mateus seja muito mais longo que o de Lucas, este, em determinadas
passagens, preserva um pouco mais que Mateus (compare M t 5.12 com Lc 6.23-
26; M t 5.47 com Lc 6.33-35).
b. Das diversas soluções para o monte ou a planície, a mais convincente considera
que o “monte” de Mateus representa “nos montes” e o “plano” de Lucas representa
algum tipo de platô. A evidência linguística é convincente (veja sobre 5.1,2).
c. A ordem de Lucas, pondo o sermão depois da escolha dos Doze, é historica
mente crível. Todavia, Mateus é claramente tópico em sua ordem. Os conectivos
em 5.1; 8.1; 9.35; 11.2; 12.1; 14.1 e outros são vagos; sua palavra favorita “então”
tem sentido genérico (veja sobre 2.7). E improvável que Mateus pretenda que seus
leitores pensem que o sermão do monte sucedeu o circuito de Jesus (4.23-25). Mais
159 Mateus 5.1-7.29
propriamente, esse sermão foi feito durante esse circuito. Ademais, alguns dos motivos
de Mateus para colocá-lo aqui, em vez de depois de 10.1-4, são evidentes (veja
adiante no item 4). Assim, parece melhor considerar Mateus 5— 7 e Lucas 6.20-49
como registros separados da mesma ocasião, e cada um deles depende de alguma
tradição compartilhada (Q?), mas não exclusivamente dela. As limitações de espaço
impedem o rastreamento de todas as conexões possíveis, mas alguma atenção será
dedicada a problemas críticos selecionados em toda essa abordagem.
3- Estrutura teológica e afinidades. Independentemente de suas fontes e forma
de compilação, a inclusão do sermão do monte em Mateus deve ser relevante.
.Alguns notaram suas similaridades com o pensamento judeu. A obra clássica de
G. Friedlander, TheJewish Sources ofithe Sermon ofthe Mount [Asfontesjudaicas do
sermão do monte\ (New York: Ktav, 1911), mostra que praticamente todas as
declarações de Mateus 5— 7 têm paralelo no Talmude ou em outras fontes judaicas.
Claro que isso está certo, mas é um pouco como dizer que as partes de um carro
fino podem ser encontradas em um grande armazém. Leia cerca de cinquenta
páginas do Talmude babilônio e compare-as com Mateus 5— 7 e fica óbvio que
elas não estão dizendo a mesma coisa. Sigal (“Halakhah” [“Halaca”]) sustenta que
as formas de argumento em Mateus 5— 7 se ajustam a padrões bem aceitos dos
rabis primitivos (“protorrabi”); Gary A. Tuttle (“The Sermon on the Mount: Its
Wisdom Affmities and Their Relation to Its Structure” [“O sermão do monte:
suas afinidades com a literatura de sabedoria e a relação destas com sua estrutura”],
JETS 20 [1977], p. 213-30) chama a atenção para ligações com as formas de
argumentos da literatura de sabedoria. Ambas são muito restritivas: a argumentação
rabínica e a da literatura de sabedoria sobrepõem muito mais do que é comumente
reconhecido, e Jesus (e Mateus) ecoam ambas e outros materiais — contudo, elas
devem, antes de tudo, ser interpretadas em seu próprio direito.
A tentativa de fazer isso não tem produzido resultados consistentes. Schweizer
enumera sete abordagens interpretativas principais ao sermão do monte: Harvey
K. McArthur ( Understanding the Sermon on the Mount [Entendendo o sermão do
monte] [New York: Harper and Row, 1960], p. 105-48) enumera doze abordagens.
Algumas das mais importantes são as seguintes:
a. A ortodoxia luterana, com frequência, entende o sermão do monte como
uma exposição da lei destinada a orientar os homens a clamar por graça. Essa é
paulina (Rm 3— 4; G1 3), e certamente pressupõe-se a graça no sermão (e.g., veja
sobre 5.3). Todavia, embora um dos propósitos de Jesus possa ter sido rebater
abordagens dos que se consideravam retos diante de Deus, o sermão não pode ser
reduzido a isso. A retidão considerada (veja 5.20) não é a retidão imputada. Além
disso, Paulo mesmo insiste que a retidão pessoal deve caracterizar quem herda o
reino (G1 5.19-24). Acima de tudo, essa percepção falha em apreender o fluxo da
história da salvação (veja abaixo).
b. Alguns argumentam que a escatologia de Jesus foi “percebida” dessa forma
a ponto de a ética do sermão do monte representar um tipo de mapa moral para
o progresso social. O liberalismo clássico foi invalidado por duas guerras mundiais,
pela Grande Depressão e por repetidas recessÕes, a ameaça de holocausto nuclear
Mateus 5.1-7.29 160
e impõem uma estrutura teológica a esse evangelho que exige exegese improvável
de inúmeras passagens (identificada, algumas vezes, neste comentário). A disjunção
entre Mateus 5— 7 e o evangelho cristão é teológica e historicamente artificial.
Esse esboço omite muitas variações das principais interpretações do sermão
do monte. Recentemente, diversos estudiosos estreitaram o foco: C. Burchard (“The
Theme of the Sermon on the M ount” [“O tema do sermão do monte”], em
Schottroff, Command [Mandamento], p. 57-75) entende que os capítulos 5— 7
rornecem regras de conduta para a igreja mateana à luz da oposição a seu testemunho;
G. Bornkamm (“Der Aufbau der Bergpredigt” [“A estrutura do sermão do monte”],
X T S 24 [1977-78], p. 419-32) interpreta o sermão em torno do Pai Nosso (6.9-
13). Embora essas perspectivas destaquem temas negligenciados, elas omitem a
rorça propulsora do sermão como um todo e seu lugar em Mateus.
O tema unificador do sermão é o reino dos céus. Isso não é estabelecido pela
contagem de quantas ocorrências da expressão há, mas observando os pontos em
que ela ocorre. Ela envolve as bem-aventuranças (5.3,10) e aparece em 5.17-20,
passagem que detalha a relação entre o Antigo Testamento e o reino, assunto que
.eva a outro envolvimento literário em torno do corpo do sermão (5.17; 7.12).
Retorna ao cerne do Pai Nosso (6.10), culmina na seção sobre as perspectivas do
reino (6.33) e é apresentado como no que se deve finalmente entrar (7.21-23).
Mateus põe o sermão imediatamente após dois versículos que insistem que o
principal conteúdo da pregação de Jesus é o evangelho do reino (4.17,23). O
sermão fornece orientação ética para a vida no reino, mas faz isso com uma
explicação do lugar do cenário contemporâneo na história da redenção e da relação
de Jesus com o Antigo Testamento (5.17-20). A comunidade formada em torno
dele, seus “discípulos”, ainda não era um grupo tão coeso e comprometido a
ponto de a exortação: “Entrem” (7.13,14), ser irrelevante. Nesses capítulos, o
vislumbre da vida no reino (horizontal e verticalmente) antecipa não só o manda
mento para amar (22.34-40), mas também a graça (5.3; 6.12; 7.7-11; cf. 21.28-
46).
4. Localização do sermão em Mateus. Mateus, ao contrário de Lucas, não põe
o sermão após o chamado dos Doze (10.1-4); pois lá ele põe o segundo discurso,
referente à missão. Isso liga o chamado com a comissão, tema de grande importância
para Mateus (veja sobre 11.11,12; 28.16-20). Não é de menos importância a
-ocalização do sermão do monte tão no início do evangelho, antes de quaisquer
sinais de controvérsias entre Jesus e os líderes judeus quanto ao sentido da lei. Isso
quer dizer que, a despeito das antíteses em 5.17-48 (“Vocês ouviram o que foi
dito [...], mas eu lhes digo”), elas não devem ser lidas como indícios de confron
tação, mas à luz dos temas de cumprimento ricamente levantados nos capítulos 1—
4 e tornado evidente mais uma vez em 5-17-20: Jesus veio para “cumprir” a Lei e
os Profetas (isto é, as Escrituras do Antigo Testamento). Por essa razão, seus anúncios
concernentes ao reino devem ser lidos contra esse pano de fundo, e não com
referência aos debates a respeito de detalhes da halaca. Essa estrutura é de Mateus;
ele, por meio dela, conta-nos que independentemente das controvérsias terem
ocupado a atenção de Jesus, o fardo da proclamação de seu reino sempre fez do
Mateus 5.1-2 162
Notas
1 O “ao monte” da NVI é a tradução de eiç tò ôpoç (eis to oros). O artigo não sugere
algum monte conhecido (Hendriksen; Turner, Syntax \Síntaxe\, p. 173), menos ainda
o monte no qual Moisés recebeu a lei (Loisy). Até mesmo Davies (Setting [Cenário], p.
93), depois de explorar todas as possibilidades, reconhece que Mateus podia ter delineado
de forma mais explícita um tema a respeito do “novo Moisés”. Na verdade, to oros (lit.
“o monte”) e o correspondente hebraico e aramaico podem querer dizer nada mais que
“região montanhosa” ou “terra elevada”, ponto corretamente reconhecido pela NVI quando,
em outra passagem de Mateus, traduz eis to oros por “a um monte” (14.23; 15.29) ou, no
plural, “os montes” (24.16). Jesus retirou-se para a região elevada a oeste do lago da
Galileia; o texto não exige nada mais. Tentar discernir profunda relevância simbólica
(e.g., Cundry; J. B. Livio, “La signification théologique de la ‘montagne’ dans le premier
évangile” [“O sentido teológico do ‘monte’ no primeiro evangelho”], BullCentreProtd’Etud
30 [1978], p. 13-20) aqui é um equívoco. Além disso, ireôtvóç (pedinos, “plano” ou “lugar
nivelado”) em Lucas 6.17, um hapax legomenon do Novo Testamento, não evoca imagens
de pradarias estado-unidenses, mas um lugar relativamente plano em terreno acidentado,
rochoso ou montanhoso — talvez um “platô” (cf. uso em Jr 21.13; LXX [“rocha do
planalto” na NVI] ou em Is 13.2 LXX — êfr opouç ïïeôivouç \ep’ orous pedinous, lit.
“montanha nivelada (plana)”; NVI, “no topo de uma colina desnuda”]). Há pouca diferença
entre o “monte” de Mateus e o “lugar plano” de Lucas.
2. O Reino dos céus: suas normas e testemunho (5.3-16)
advertências que começam com “ai” — todas na segunda pessoa. Todavia, Mateus
não menciona “ais”, e suas oito bem-aventuranças (w. 3-10) estão na terceira
pessoa, seguidas de uma expansão da última na segunda pessoa (w. 11,12).
Raramente, as bem-aventuranças pré-Novo Testamento estão na segunda pessoa
(e.g., lEnoq 58.2) e ocorrem com advertências de “ai” apenas no texto grego de
Eclesiástico 10.16,17; portanto, com base em fundamentos formais não há motivo
para entender as bem-aventuranças de Mateus como adaptações posteriores.
Sem dúvida, Mateus e Lucas selecionaram e modelaram seu material. Mas
embora isso resulte em diferenças na força propulsora dos dois conjuntos de bem-
aventuranças, com frequência, exageram nas diferenças (e.g., C. H. Dodd, More
New Testament Studies [Mais estudos do Novo Testamento] [Manchester: University
Press, 1968], p. 7-8). Dupont {Les Béatitudes [As bem-aventuranças]) e Marshall
(Luke [Lucas]) argumentam que Lucas descreve o que realmente discípulos são, e
Mateus o que eles devem ser; Lucas descreve as implicações sociais dos ensinamentos
de Jesus e as reversões na consumação deles; e Mateus, o padrão de justiça cristã a
ser perseguido para entrar no reino. D e forma semelhante, G. Strecker (“Les
macarismes du discours sur la montagne” [“As bem-aventuranças do discurso do
monte”], em Didier, p. 185-208) insiste que a ética das bem-aventuranças de
Mateus desloca a escatologia: as bem-aventuranças tornam-se exigências éticas
para entrar no reino, em vez de bênçãos escatológicas associadas com a era
messiânica.
R. A. Guelisch (“The Matthean Beatitudes: ‘Entrance-Requirements’ or
Eschatological Blessings?” [“As bem-aventuranças mateanas: ‘exigências de entrada
ou bênçãos escatológicas?”], JB L 95 [1973] p. 415-34) apresenta uma interpretação
mais matizada. Ele comenta que Mateus 5.3-5 contém ecos planejados de Isaías 61.1-
3, o que certamente é uma orientação escatológica. Além disso, tanto Isaías 61.1-3
como as bem-aventuranças de Mateus são formalmente declarativas, mas implici
tamente exortativas: não se deve ignorar a função para focar a forma. As bem-
aventuranças “são apenas uma expressão do cumprimento de Isaías 61, a promessa
do Antigo Testamento de heilszeit [“tempo de salvação”] na pessoa e na proclamação
de Jesus. Esse tratamento das bem-aventuranças, com certeza, está em harmonia
com a ênfase de Mateus em todo o evangelho da vinda de Jesus à luz da promessa
do Antigo Testamento” (ibid., p. 433). Portanto, as exigências implícitas das bem-
aventuranças só são compreensíveis por causa da nova condição dos assuntos
iniciada pela proclamação do reino (4.17,23), a insistência de que Jesus veio para
cumprir a Lei e os Profetas (5.17).
3 N o Novo Testamento, duas palavras e seus cognatos permanecem por trás
de “bem-aventurados” e “benditos”. A palavra usada no versículo 3 é makarios,
que geralmente corresponde na LX X a ’asrê, termo hebraico usado quase como
interjeição: “Oh, os bem-aventurados [pl.] de”. Em geral, makarios descreve o
homem que é singularmente favorecido por Deus e, por isso, em algum sentido é
“feliz”; mas a palavra pode se aplicar a Deus (lTm 1.11; 6.15). A outra palavra é
eulogêtos, encontrada na LXX, principalmente como tradução para a hebraica
Ifrâkâh e usada, sobretudo, em conexão com Deus no Antigo e Novo Testamentos
165 Mateus 5.3-10
(e.g., Mc 14.61; Lc 1.68; Rm 1.25; 2Co 1.3). Eulogêtos não ocorre em Mateus,
mas há cinco ocorrências do verbo cognato (14.19; 21.9; 23.39; 25.34; 26.26),
em uma delas, o verbo é aplicado ao homem (25.34), não a Deus ou a Cristo. Por
essa razão, é inútil tentar fazer com que makarios tenha o sentido de “feliz”, e
eulogêtos, de “bem-aventurado” (Broadus); embora haja muitas ocorrências dos dois,
ambos os termos podem ser aplicados a Deus ou ao homem. E difícil não concluir
que o fator comum deles é aprovação: o homem “bendiz” a Deus, aprovando-o e
louvando-o; Deus “abençoa” o homem, aprovando-o em graciosa condescendência.
As palavras do Antigo Testamento aplicadas ao homem, com certeza, são sinônimas
;cf. Theologisches Handwörterbuch zum Alten Testament [Dicionário teológico do
Antigo Testamento de bolso], 1:356).
Quanto ao termo “feliz” (TEV), ele não serve para as bem-aventuranças,
tendo a palavra sido desvalorizada no uso moderno. No grego, ela “descreve uma
condição não de sentimento interior por parte daqueles aos quais é aplicada, mas
de bem-aventurança de um ponto de vista ideal no julgamento dos outros” (Allen).
No cenário escatológico de Mateus, “bem-aventurados” só pode prometer bênção
escatológica (cf. D N T T, 1:216-17; TD N T, 4:367-70); e cada bênção particular é
especificada pela segunda oração de cada bem-aventurança.
Os “pobres em espírito” são os “bem-aventurados”. Uma vez que Lucas fala
simplesmente os “pobres”, muitos concluem que ele preserva o verdadeiro
ensinamento do Jesus histórico — preocupado com o destituído economicamente
— enquanto Mateus “espiritualizou” a bem-aventurança com o acréscimo de “em
espírito”. A questão não é tão simples. Já no Antigo Testamento, “o pobre” tem
nuanças religiosas. A palavra ptôchos (“pobre” — no grego clássico, “mendigo,
pedinte”) tem uma força diferente na LXX e no Novo Testamento. Traduz diversas
palavras hebraicas, mais importante (no pl.) ‘“nâwim (“os pobres”), isto é, os que,
por causa da continuada privação econômica e infortúnio social, confiam apenas
êm Deus (e.g., SI 37.14; 40.17; 69.28,29,32,33; Pv 16.19 [NVI, “os oprimidos”;
ARA, “os humildes”]; 29.23; Is 61.1; cf. SI Sal 5.2,11; 10.7). Assim, junta-se a
passagens afirmando o favor de Deus para o humilde e contrito em espírito (e.g.,
Is 57.15; 66.2). Isso não quer dizer que não haja preocupação com o materialmente
pobre, mas que a pobreza em si mesma não é a principal coisa (cf. a pobreza
"causada por ele mesmo” do filho pródigo). A riqueza e o privilégio, longe de
conferir vantagem espiritual, impõem grande perigo espiritual (veja comentário
sobre 6.24; 19.23,24). Contudo, embora a pobreza não seja uma bênção nem
garantia de recompensas espirituais, ela pode se transformar em vantagem se
encorajar a humildade diante de Deus.
De que essa é a forma de interpretar o versículo 3 é confirmado pelas expressões
semelhantes nos PMM (esp. 1QM 11.9; 14.6,7; 1QS 4.3; 1QH 5.22). “Pobre” e
"justo” tornam-se quase equivalentes em Eclesiástico 13.17-21; C D 19.9; 4QpSl(37)
2.8-11 (cf. Schweizer; Bonnard; Dodd, “Translation Problems” [“Problemas de
tradução”], p. 307-10). Esses paralelos não provam dependência literária, mas
mostram que “os pobres em espírito” de Mateus interpretam corretamente “os pobres”
de Lucas (cf. Gundry, Use o fO T [Uso do AT], p. 69-71). Nos círculos rabínicos,
Mateus 5.3-10 166
mansidão e pobreza de espírito são altamente louvados (cf. Felix Bõhl, “Die Demut
ais hõchste der Tugenden” [“Humildade como a maior das virtudes”], Biblische
Zeitschriji 20 [1976], p. 217-23).
Contudo, o equilíbrio bíblico é fácil de ser aviltado. O imperador Juliano, o
Apóstata (332-63), supostamente, disse com maldosa ironia que queria confiscar
as propriedades dos cristãos para que todos eles se tornassem pobres e pudessem
entrar no reino dos céus. Aqui e em outras passagens, o rico, por sua vez, descarta
com muita facilidade o ensinamento de Jesus sobre a pobreza (veja comentário
sobre 6.24) como meramente atitudinais e confundem sua acumulação de bens
com boa administração dos recursos concedidos por Deus. O livro “God and
Mammon” [“Deus e Mamom”] (p. 3-21), de France, apresenta um excelente
equilíbrio em relação a esses assuntos.
Pobre em espírito não é falta de coragem, mas reconhecer a bancarrota
espiritual. O pobre em espírito confessa seu desmerecimento diante de Deus e sua
total dependência dele. Por essa razão, os que interpretam o sermão do monte
como lei, e não como evangelho — seja por meio da reconstrução histórica de H.
Windisch seja por meio do dispensacionalismo clássico (cf. Carson, Sermon on
theMount \Sermãodo monte], p. 155-57) que chama o sermão de “pura lei” (embora
reconheça que seus princípios têm uma “bela aplicação moral” para o cristão) —
tropeça na primeira sentença (cf. Stott, p. 36-38). O reino dos céus não é concedido
com base na raça (cf. 3.9), nos méritos conquistados, no zelo militar e bravura de
zelotes nem na riqueza de um Zaqueu. O reino é concedido aos pobres, aos
desprezados publicanos, às prostitutas, aos que são tão “pobres” que sabem que
não podem oferecer nada e não tentam fazer isso. Eles clamam por misericórdia e
só eles são ouvidos. Esses temas são recorrentes em Mateus e apresentam as
exigências éticas do sermão em um cenário que não trata a conduta resultante
delas como uma condição para entrar no reino que as pessoas têm de alcançar por
si mesmas. Tudo deve começar com a confissão de que elas, por si mesmas, não
alcançam nada. Revelações posteriores do evangelho nos anos após o ministério
terreno de Jesus não mudam isso; no último livro do cânon, a igreja estabelecida
também deve reconhecer sua posição precária quando afirma ser rica e falha em
ver a própria pobreza (Ap 3.14-22).
O reino dos céus (veja comentário sobre 3.2; 4.17) pertence aos pobres em
espírito; são eles que desfrutam do reinado do Messias e das bênçãos que ele traz.
Eles aceitam alegremente seu papel e participam da vida do reino (7.14). A
recompensa na última bem-aventurança é a mesma que na primeira; a estrutura
literária, uma “inclusio” ou envoltório, estabelece que tudo incluído nela diz
respeito ao reino; isto é, as bênçãos das bem-aventuranças intermediárias são
bênçãos do reino, e as próprias bem-aventuranças são normas do reino.
Embora as recompensas dos versículos 4-9 sejam futuras (“serão consolados”;
“receberão a terra por herança”; etc), a primeira e a última são presentes (“pois
deles é o Reino dos céus”). Todavia, não se deve levar em muita consideração esse
aspecto, pois o tempo presente pode funcionar como futuro; o tempo futuro
pode enfatizar certeza, não mera futuridade (Tasker). H á pouca dúvida de que
aqui o sentido do reino é principalmente futuro, pós-consumação, deixado explícito
167 Mateus 5.3-10
no versículo 12. Mas o “envoltório” do tempo presente (w. 3,10) não deve ser
descartado como irrelevante nem como mascarando um original aramaico que
não especificava presente e, tampouco, futuro; pois Mateus devia pretender algo
quando escolheu usar estin (“é”), em vez de estai (“será”). A conclusão natural é
que, embora as bênçãos plenas descritas nessas bem-aventuranças aguardem a
consumação do reino, elas já são compartilhadas nas bem-aventuranças do reino
desde que ele foi inaugurado (veja sobre 4.17; 8.29; 12.28; 19.29).
4 Black {Aramaic Approach \.Abordagem aramaica\, p. 157) observa como as
formas mateana e lucana (6.21b,25b) dessa bem-aventurança podem ser, cada
uma delas, parte de um paralelismo mais abrangente — observação que casa muito
bem com a hipótese de que o sermão do monte e o sermão da planície são relatos
de um mesmo discurso, contando um tanto com fontes em comum (cf. comentários
introdutórios).
Alguns comentaristas negam que esse pranto seja pelo pecado (e.g., Bonnard).
Outros (e.g., Schweizer) entendem que o pranto é por algum tipo de infortúnio.
A realidade é mais sutil. O remanescente piedoso da época de Jesus chora por
causa da humilhação de Israel, mas entendem que esta vem de pecados pessoais e
corporativos. O salmista testifica: “Rios de lágrimas correm dos meus olhos, porque
a tua lei não é obedecida” (SI 119.136; cf. Ez 9.4). Quando Jesus pregou: “O
Reino dos céus está próximo”, ele, como João Batista antes dele, não esperava
lágrimas jubilosas, mas contritas. Não basta reconhecer a bancarrota espiritual
pessoal (v. 3) com um coração indiferente. Chorar pelos pecados pode ser
profundamente comovente (Ed 10.6; SI 51.4; Dn 9.19,20) e pode cobrir uma
percepção global e também pessoal do pecado e de nossa participação nele. Paulo
entendia bem desses assuntos (cf. Rm 7.24; IC o 5.2; 2Co 12.21; Fp 3.18).
“Consolem, consolem o meu povo”, é a reposta de Deus (Is 40.1). Essas duas
primeiras bem-aventuranças aludem deliberadamente às bênçãos messiânicas de
Isaías 61.1-3 (cf. também Lc 4.16-19; France, Jesus, p. 134-35), confirmando-as
como escatológicas e messiânicas. O Messias vem para conceder “o óleo da alegria,
em vez de pranto, e um manto de louvor, em vez de espírito deprimido” (Is 61.3).
Mas essas bênçãos, já realizadas parcialmente, só serão plenas na consumação dos
tempos (Ap 7.17) e dependem do Messias que vem para salvar seu povo dos seus
pecados (1.21; cf. também 11.28-30). Os que afirmam vivenciar todas as alegrias
do reino sem lágrimas se enganam quanto à natureza do reino. Nas palavras de
Charles Wesley:
determinados a perseguir quatro das oito bem-aventuranças. Elas são uma unidade
e descrevem a norma para o povo do Messias.
A palavra “humildes” ipraus) é de difícil definição. Ela pode representar
ausência de pretensão (IPe 3.4,14,15), mas geralmente sugere bondade (cf. 11.29;
T g 3.13) e o autocontrole que esta requer. Os gregos exaltavam a humildade em
homens e governantes sábios, mas essa humildade tinha laivos de condescendência.
Em geral, os gregos consideravam a humildade uma tendência condenável porque
não conseguiam distingui-la do servilismo. Ser humilde em relação aos outros
envolve ausência de maldade e de espírito vingativo. Jesus é quem melhor
exemplifica isso (11.29; 21.5). Lloyd-Jones (Sermon on the Mount [Sermão do
monté\, 1:65-69) aplica corretamente a humildade a nossas atitudes em relação
aos outros. Podemos reconhecer nossa própria ruína (v. 3) e pranteá-la (v. 4). Mas
é muito mais difícil responder com humildade quando os outros nos falam sobre
nossa ruína (cf. também Stott, p. 43-44). Por isso, humildade requer uma verdadeira
percepção de nós mesmos enquanto se expressa até mesmo em nossa atitude em
relação ao outro.
E o humilde — não o forte, o agressivo, o rude, o tirano — herdará a terra.
O verbo “herdar”, com frequência, relaciona-se com a entrada na terra prometida
(e.g., D t 4.1; 16.20; cf. Is 57.13; 60.21). Mas aqui a alusão específica ao Antigo
Testamento é Salmos 37.9,11,29, salmo reconhecido como messiânico na época
de Jesus (4QpSl 37). Não há necessidade de interpretar a terra metaforicamente,
como se não tivesse relação com geografia ou espaço, tampouco há necessidade de
restringir o sentido para “terra de Israel” (cf. notas). Em última instância, a entrada
na terra prometida tornou-se um indicador de entrada no novo céu e na nova
terra (“terra” é a mesma palavra que “solo”; cf. Is 66.22; Ap 21.1), na consumação
do reino messiânico. Embora nos termos paulinos, agora, os cristãos possam, em
princípio, possuir todas as coisas (2Co 6.10), uma vez que eles pertencem a Cristo,
Mateus dirige nossa atenção ainda mais adiante para a “regeneração de todas as
coisas” (19.28).
6 “Fome e sede” expressam vividamente desejo. Os filhos de Corá clamaram:
“A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (SI 42.2; cf. 63.1), pois a fome
espiritual mais profunda é a fome pela palavra de Deus (Am 8.11-14).
H á discussão sobre a natureza precisa da justiça da bem-aventurada fome e
sede. Alguns argumentam que a justiça imputada de Deus — salvação escatológica
ou, no sentido mais estreito, justificação: o bem-aventurado tem fome de justiça
e a recebe (e.g., Grundmann; Lohmeyer; McNeile, Schniewind, Schrenk [TDNT,
2:198], Zahn; Bornkamm, Tradition [Tradição] [p. 123-24]; Bultmann [Theology
{Teologia), 1:273]). Sem dúvida, isso é plausível, uma vez que o contexto imediato
estimula a esperança para a ação escatológica de Deus, e a fome sugere que a
justiça que satisfaz será concedida como uma dádiva.
A principal objeção é que, em Mateus, dikaiosynê (“justiça”) não tem o mesmo
sentido de nenhuma outra passagem (Przybylski, p. 96-98). Por isso, é melhor
considerar essa justiça como simultaneamente justiça pessoal (cf. Hill, Greek Words
[Palavrasgregas], p. 127s.; Strecker, Weg [Distante], p. 156-58) e justiça no sentido
169 Mateus 5.3-10
mais amplo (cf. esp. Ridderbos, p. 190s.). Essas pessoas têm fome e sede não só de
que possam ser justas (ou seja, de que possam fazer totalmente, e do fundo do
coração, a vontade de Deus), mas de que haja justiça em todo lugar. Toda injustiça
aflige-as e as faz sentir nostalgia pelo novo céu e nova terra — a casa do justo (2Pe
3.13). Elas, não satisfeitas só com justiça pessoal e, tampouco, só com justiça
social, clamam por ambas: em suma, elas anseiam pelo advento do reino messiânico.
O que elas vivenciam agora estimula seu apetite por mais. Em última instância,
elas só serão satisfeitas (mesmo verbo de 14.20; Fp 4.12; Ap 19.21) sem restrição
quando o reino for consumado (cf. discussão em Gundry, Matthew [Mateus]).
7 Essa bem-aventurança é semelhante a Salmos 18.25 (trazendo “benigno”
[ARC] em vez de “fiel” [NVI]; seguindo T M [v. 26], não a LXX [17.26]; cf. Pv
14.21). Misericórdia abraça perdão pela culpa e compaixão pelo sofredor e pelo
necessitado. Não se especifica nenhum objeto em particular da misericórdia exigida
porque ela tem de ser uma função dos discípulos de Jesus, não da situação particular
que a traz à tona. O tema é comum em Mateus (6.12-15; 9.13; 12.7; 18.33,34). A
recompensa não é a misericórdia demonstrada pelos outros, mas por Deus (cf.
dito preservado em lClemente 13.2). Isso não quer dizer que nossa misericórdia é
o fundamento motivador da misericórdia de Deus, mas seu fundamento ocasional
(veja comentário sobre 6.14,15). Essa bem-aventurança também está ligada ao
contexto. “‘Os humildes’ também são ‘os misericordiosos’. Pois ser humilde é reco
nhecer para os outros que nós somos pecadores; ser misericordioso é ter compaixão
pelo outros, pois eles também são pecadores” (Stott, p. 48)
8 Os comentaristas dividem-se em relação aos “puros de coração”.
1. Alguns consideram que se refere à pureza moral interior como oposta à
piedade meramente exterior ou à pureza cerimonial. Esse é um tema importante
em Mateus e em outras passagens das Escrituras (e.g., D t 10.16; 30.6; ISm 15.22;
SI 24.3,4 [ao qual há alusão direta aqui]; 51.6,10; Is 1.10-17; Jr 4.4; 7.3-7; 9.25,26;
Rm 2.9; lTm 1.5; 2Tm 2.22; cf. M t 23.25-28).
2. Outros consideram que se refere à sinceridade, a um coração “livre da
tirania do ‘eu’ dividido” (Tasker; cf. Bonnard). Diversas das passagens recém-
citadas focam a ausência de engano (SI 24.4; 51.4-17; cf. também Gn 50.5,6; Pv
22.11). Essa interpretação também prepara o caminho para 6.22. Assim, os “puros
de coração” são “os totalmente sinceros” (Ph).
A dicotomia entre essas duas opções é falsa; é impossível uma existir sem a
outra. Aquele que é sincero em seu compromisso com o reino e sua justiça (6.33)
também é puro em seu interior. Falsidade e engano interiores e depravação moral
não podem coexistir com a devoção sincera a Cristo. De qualquer modo, essa
bem-aventurança condena a hipocrisia (cf. comentário sobre 6.1-18). Os puros
de coração verão a Deus — agora, com os olhos da fé e, no fim, no ofuscante
esplendor da visão beatífica em cuja luz não pode existir nenhum engano (cf. Fib
12.14; ljo 3.1-3; Ap 21.22-27).
9 A preocupação de Jesus nessa bem-aventurança não é com os pacíficos, mas
com os pacificadores. A paz é uma preocupação constante nos dois testamentos
(e.g., Pv 15.1; Is 52.7; Lc 24.36; Rm 10.15; 12.18; IC o 7.15; E f 2.11-22; Hb
Mateus 5.3-10 170
12.14; IPe 3.11). Contudo, como algumas dessas e de outras passagens mostram, o
fazer a paz pode ter em si mesmo nuanças messiânicas. O Filho prometido é chamado
“Príncipe da Paz” (Is 9.6,7); e Isaías 52.7 — “Como são belos nos montes os pés
daqueles que anunciam boas novas, que proclamam a paz, que trazem boas notícias,
que proclamam salvação, que dizem a Sião: ‘O seu Deus reina!’” — ligando, como
faz, paz, salvação e o reinado de Deus era interpretado messianicamente no judaísmo
do tempo de Jesus.
Jesus não limita os pacificadores a um só tipo, nem seus discípulos fariam
isso. A luz do evangelho, Jesus mesmo é o supremo pacificador, fazendo paz entre
Deus e o homem e entre o homem e o homem. Nossa pacificação incluirá a
promulgação desse evangelho. Ela também deve se estender a fim de buscar todo
tipo de reconciliação. Em vez de se deliciar na divisão, na amargura, na discórdia
ou em alguma mentalidade mesquinha do tipo “dividir e conquistar”, os discípulos
de Jesus deliciam-se em promover a paz sempre que possível. Fazer a paz não é
apaziguar: o verdadeiro modelo é a custosa pacificação de Deus (E f 2.15-17; Cl
1.20). Os que empreendem esse trabalho são conhecidos como “filhos” de Deus.
No Antigo Testamento, Israel recebe o título de “filhos” (Dt 14.1); Os 1.10; cf. SI
Sal 17.30; Sab 2.13-18). Agora, o título pertence aos herdeiros do reino que —
humildes e pobres em espírito e amantes da justiça, embora sejam misericordiosos
— são especialmente capacitados para promover a paz e, assim, refletir algo do
caráter de seu Pai celestial. “Não há trabalho mais semelhante ao de Deus a ser
feito neste mundo que promover a paz” (Broadus). Os zelotes devem ter ficado
chocados quando Jesus pregou essa bem-aventurança, quando as paixões políticas
estavam inflamadas (Morison).
10 Não foi por acidente que Jesus passou da pacificação para a perseguição,
pois o mundo gosta tanto de acalentar ódios e preconceitos que nem sempre os
pacificadores são bem-vindos. A oposição é uma marca normal do ser discípulo
de Jesus, tão normal quanto ter fome de justiça ou ser misericordioso (cf. também
Jo 15.18-25; At 14.22; 2Tm 3.12; IPe 4.13,14; cf. o “ai” em Lc 6.26). Lachs (p.
101-3) não consegue acreditar que os cristãos sempre foram perseguidos por causa
da justiça; por isso, ele recoloca um alegado texto hebraico subjacente dizendo
“por causa do Justo” — referência a Jesus. Mas ele subestima quão ofensiva
realmente é (cf. Is 51.7) a verdadeira justiça, “a conduta apropriada diante de
Deus” (Przybylski, p. 99). A recompensa dessas pessoas perseguidas é a mesma
recompensa dos pobres em espírito — a saber, o reino dos céus, que conclui a
inclusão (veja comentário sobre 5-3).
Notas
3 A maioria dos estudiosos interpreta xcô irveúiiím (to pneumati, “em espírito”) como um
dativo para demonstrar respeito (e.g., Zerwick, par. 53). Moule (Idiom Book [Livro de
expressões idiomáticas], p. 46) especula se não se pode limitar a um uso instrumental
que, com frequência, é mais bem traduzido por um advérbio: isto é, oi' utcoxol tu
Trveu|j.cm (hoi ptôchoi tô pneumati) = “o pobre usado em seu sentido espiritual [isto é,
religioso]” contra “o pobre literal [ou seja, materialmente]” de Tiago 2.5. Mas ele
reconhece que Salmos 34.18 aponta em outra direção.
171 Mateus 5.11-12
5 Há quaxenta e três ocorrências da palavra yf| (gê, “terra”) em Mateus; uma ocorrência em
relação à terra de Judá (2.6); duas para a terra de Israel (2.20,21); diversas ocorrências
para alguma região (e.g., 4.15; 9.26,31; 11.24 e possivelmente 27.45); diversas na expressão
“céus e terra” ou algo semelhante (5.18,35; 11.25; 24.35; 28.18); várias vezes para distinguir
terra de céu (6.10; 9.6; 16.19; 18.18 [bis], 19; 23.9); uma para se referir ao lugar em que
vivem pessoas pecaminosas (5.13); diversas vezes para se referir a “chão” (e.g., 10.29;
15.35; 25.18,25; 27.51), a “solo” (13.5,8,23) ou à “orla” (14.24); e diversas vezes para
se referir à terra toda sem nenhuma das conotações acima (12.40,42; 17.25; 23.35;
24.30). Portanto, em Mateus, gê é usado para se referir a uma região ou nação específica
(Israel, Judá, Zebulom, Naftali e outros) só se o nome da região for fornecido. A possível
exceção é 27.45. Assim, a forma mais natural de traduzir esse nome em 5.5 é “Terra”,
não a terra [de Israel]”.
9 Embora a expressão “filhos de” possa ter força ontológica, com frequência, ela quer dizer
“alguém que reflete o caráter de” ou algo semelhante. Por isso, “filho de Belial” (= “filho
da indignidade”) refere-se à pessoa indigna, alguém que tem conduta indigna. Da maneira
semelhante, “filho de Deus” pode ter força ontológica ou força puramente funcional,
dependendo do contexto.
10 O particípio perfeito passivo oi' õeÕLG)Y(ié|ioi (hoidediôgmenoi, “os que são perseguidos”)
é um tanto inadequado se a força perfeita for retida: “Os que têm sido perseguidos”.
Muitos veem isso como sinal de anacronismo: a perseguição irrompeu na época em que
o evangelho de Mateus foi escrito (e.g., Hill, Matthew [Mateus]). Alguns comentaristas
mais antigos tratam a expressão, mais ou menos, como tempo “profético” judaizante
perfeito; e Broadus acrescenta que o perfeito está de acordo “com o fato de que as
principais recompensas desses sofredores não chegam durante a perseguição, mas vem
depois dela”. Então, podemos perguntar por que não é usado o futuro perfeito ou por
que não é aplicada a mesma regra aos que choram (5.4)? Deve-se, pelo menos, levantar
a questão de se o tempo perfeito ocasionalmente começa a assumir força aorística no
Novo Testamento, e se o particípio perfeito, uma força meramente adjetiva (cf. discussão
em Burton, par. 88; Moule, (Idiom Book [Livro de expressões idiomáticas], p. 14).
2) E xpansão (5.11,12)
11 “Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e
levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. 12 Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a sua
recompensa nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês.”
1) S al (5.13)
13 “Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para
nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens.”
13 Sal e luz são substâncias tão comuns (cf. Pliny, N atural History [História
natural] ,31.102: “Nada é mais útil que o sal e a luz do sol”) que, sem dúvida, dão
origem a muitos ditos. Por isso, é impróprio tentar uma história de tradição das
referências de todo o evangelho como se uma história original estivesse por trás de
todas elas (cf. Mc 4.21; 9.50; Lc 8.16; 11.33; 14.34,35). O sal era usado no mundo
antigo para temperar alimentos e em pequenas doses até mesmo como fertilizante
(cf. Eugene P. Deatrick, “Salt, Soil, Savor” [“Sal, solo, sabor”], BA 25 [1962], p. 44-
45, que propõe que têsgês seja lido como “para o solo”, e não “da terra”; mas observe
o paralelo “do mundo” no v. 14). Acima de tudo, o sal era usado como conservante.
Esfregar um pouco de sal na carne faz com que ela demore mais para deteriorar.
Falando estritamente, o sal não perde sua salinidade, o cloreto de sódio é um composto
estável. Mas a maioria do sal usado no mundo antigo era derivado do sal de charcos
ou semelhantes, em vez de derivado da evaporação de água salgada, e, por isso,
continha muitas impurezas. O verdadeiro sal, sendo mais solúvel que as impurezas,
podia ser filtrado, deixando um resíduo tão diluído que era de pouca serventia.
Na nação moderna de Israel, afirma-se que o sal insosso ainda é espalhado no
chão de lajes planas que servem como telhado. Isso ajuda a endurecer o chão e a
prevenir fendas e goteiras; e uma vez que essas lajes são usadas como área de
recreação e lugar de reuniões públicas, o sal ainda é esmagado pelos pés (Deatrick,
Mateus 5.14-16 174
“Salt” [“Sal”], p. 47). Essa explicação anula a tentativa de alguns (e.g., Lenski,
Schniewind, Grosheide) de supor que justamente porque o sal puro não perde
seu sabor, Jesus está dizendo que os verdadeiros discípulos não perdem sua eficácia.
A pergunta: “Como restaurá-lo [o sal]?”, não pretende ter uma resposta, como diz
corretamente Schweizer. O comentário rabínico de que o que torna o sal salgado é
a “secundina de produto híbrido” (os produtos híbridos, como a mula, são estéreis),
antes, perde o ponto (cf. Schweizer, Matthew [Mateus]). O ponto é que se os discípulos
de Jesus têm de agir no mundo como conservantes por se conformarem às normas
do reino, se eles são “chamados a ser o desinfetante moral em um mundo cujos
padrões morais são baixos, inconstantes ou não existentes, [...] eles só podem
desempenhar essa função se retiverem eles mesmos sua virtude” (Tasker).
Notas
13 Há quatro ocorrências do verbo [icopa^Ofi (môranthê, “perder sua salinidade”) no Novo
Testamento. Em Lucas 14.34, ele relaciona-se, mais uma vez, com o sal, mas em
Romanos 1.22 e em ICoríntios 1.20, ele tem um sentido mais comum, “fazer tolice
ou tornar-se tolo” (cf. cognato [icopé [môre, “tolo”] em 5.22). É difícil não concluir
que os discípulos que perdem seu sabor, na verdade, estão fazendo a si mesmos de
tolos. A forma grega pode não revelar o jogo de palavras em aramaico: bsn (tâpêl,
“tolo”) e San (tabel, “salgado”) (Black, Aramaic Approach [Abordagem aramaicã], p.
166-67).
2 ) Luz (5.14-16)
14 “Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. 15 E,
também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Ao contrário, coloca-a no
lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. 16 Assim brilhe a luz de vocês diante
dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus.”
14,15 Como no versículo 13, o termo “vocês” é enfático — viz., vocês, meus
seguidores e nenhum outro, são a luz do mundo (v. 14). Embora os judeus se
vissem como a luz do mundo (Rm 2.19), a verdadeira luz do mundo é o Servo
sofredor (Is 42.6; 49.6), cumprido em Jesus mesmo (Mt 4.16; cf. Jo 8.12; 9.5;
12.35; ljo 1.7). Por derivação, seus discípulos constituem-se a nova luz (cf. E f 5.8,9;
Fp 2.15). Luz é um símbolo religioso universal. No Antigo Testamento, como no
Novo Testamento, ela simboliza mais frequentemente a pureza como oposta à
depravação; a verdade ou conhecimento como oposto ao erro ou ignorância; e a
revelação e presença divinas como opostas a reprovação e abandono por Deus.
A referência à “cidade construída sobre um monte” está em um nível razoa
velmente óbvio. As cidades antigas, com frequência, construídas com pedra calcária
branca brilhavam à luz do sol e não eram fáceis de ser escondidas. A noite, as lâmpadas
de óleo dos habitantes derramavam alguma luz na área circunvizinha da cidade (cf.
Bonnard). D a mesma maneira que essas cidades não podiam ser escondidas,
também é inconcebível acender uma luz e escondê-la debaixo de uma tigela (v.
15; NVI; “vasilha”). A lâmpada é posta no lugar apropriado para iluminar todos
e tudo. Tentar identificar “a todos os que estão na casa” como uma referência a
todos os judeus, em contraste com Lucas 11.33, referindo-se aos gentios (como
175 Mateus 5.17-20
menor traço, até que tudo se cumpra. 19 Todo aquele que desobedecer a um desses mandamentos,
ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será chamado menor no Reino dos
céus; mas todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado grande no Reino
dos céus. 20 Pois eu lhes digo que se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e
mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus.”
que lida com a lei que julga uma adição posterior feita à tradição. Não poucos
escritores, em especial estudiosos judeus, consideram que o verbo reflete o verbo
aramaico qüm (“estabelecer”, “validar” ou “confirmar” a lei). Jesus não veio para
abolir a lei, mas para confirmá-la e estabelecê-la (e.g., Dalman, p. 56-58; Daube,
New Testament [Novo Testamento], p. 60s.; Schlatter, p. 153s., e esp. Sigal, “Halakah”
[“Halaca”], p. 23ss.).
Há várias objeções.
1. O foco de Mateus 5 é a relação entre o Antigo Testamento e o ensino de
Jesus, não seus atos. Portanto, nenhuma interpretação que diz que Jesus, ao fazer
isso, cumpre a lei realmente percebe o sentido exato do texto.
2 . Caso se argumente que Jesus confirma a lei, até mesmo “a menor letra ou
o menor traço” dela (v. 18) por meio de sua vida e seu ensinamento (e.g., Hill;
Ridderbos, p. 292ss.; Maier) — o último entendido como demonstrando sua
própria halaca (regras de conduta) na estrutura da lei (Sigal) — o indivíduo pode
se surpreender com o fato de que a igreja primitiva, conforme testificam os outros
documentos do Novo Testamento, tenha interpretado Jesus tão erroneamente
nesse ponto; e até mesmo o primeiro evangelho, conforme veremos, é traduzido
de forma inconsistente.
3. A LXX nunca usa plêroô (“cumprir”) para traduzir qüm nem os cognatos
(prefere histanai ou bebaioun [“estabelecer” ou “confirmar”]). O verbo plêroô traduz
mâlê e quer dizer “cumprir”. No Antigo Testamento, o uso do verbo refere-se
caracteristicamente a “encher” volume ou “preencher” tempo, sentidos que também
aparecem no Novo Testamento (e.g., At 24.27; Rm 15.19). Mas embora o Novo
Testamento use plêroô de muitas maneiras, estamos principalmente preocupados
com o que as Escrituras pretendem dizer com “cumprimento” . Incluído sob esse
tópico estão predições específicas, cumprimentos tipológicos e até mesmo toda a
esperança escatológica compendiada no Antigo Testamento pela aliança de Deus
com seu povo (cf. C. F. D. Moule, “Fulfilment Words in the New Testament: Use
and Abuse” [Palavras de cumprimento no Novo Testamento: uso e abuso”], N T S
14 [1967-68], p. 293-320; veja comentário sobre 2.15).
A falta de pano de fundo para plêroô (“cumprir”) até o ponto em que se aplica
à Escritura requer indução cautelosa a partir de evidência do Novo Testamento.
Em muitos poucos casos, notavelmente em Tiago 2.23, os escritores do Novo
Testamento não apontam a força profética demonstrável nas passagens do Antigo
Testamento apresentadas. Antes, o texto do Antigo Testamento (nesse caso Gn
15.6) permanece, em algum sentido, “vazio” até que o ato de Abraão o “cumpre”.
Mas Gênesis 15.6 não prediz o ato. No entanto, o uso de plêroô em conexão com
a Escritura na maior parte do Novo Testamento requer alguma força teológica
(veja nota sobre 1 .22); e mesmo o uso ambíguo pressupõe uma tipologia teológica
em suas dimensões mais abrangentes, mesmo que não em todos os detalhes (veja
discussão sobre 2.15). Em todo caso, o intercâmbio, no Targumim, entre m ãlê’
(“cumprir”) e qüm (“estabelecer”) não é importante o suficiente para derrubar a
evidência da LXX, não menos por causa de problemas de datação do Targumim
(cf. Meier, Law [Lei], p. 74; Banks, Jesus, p. 208s.).
179 Mateus 5.17-20
para Jesus. Até mesmo os eventos do Antigo Testamento têm essa relevância
profética (veja comentário sobre 2.15). Pouco depois, Jesus insiste que “todos os
Profetas e a Lei profetizaram” (11.13).
A maneira do presságio profético varia. O êxodo, argumenta Mateus (2.15),
prenuncia o chamado para a saída do “filho” de Deus do Egito. O escritor de Hebreus
sustenta que muitas regulamentações cultuais do Antigo Testamento apontam para
Jesus e, agora, estão obsoletas. A luz da antítese (w. 21-48), a passagem diante de
nós insiste que só Jesus cumpriu as profecias do Antigo Testamento por meio de sua
pessoa e seus atos, portanto, ele cumpriu a lei do Antigo Testamento por meio de
seu ensinamento. Em nenhum caso, isso “abole” o Antigo Testamento como cânon
mais do que a obsolescência do sistema levítico de sacrifício abole o ritual do
tabernáculo como cânon. Ao contrário, a verdadeira e permanente autoridade do
Antigo Testamento deve ser entendida por meio da pessoa e do ensinamento de
Jesus para quem o AT aponta e que o cumpre tão abundantemente.
Jesus, como em Lucas 16.16,17, não está anunciando o fim da relevância e da
autoridade do Antigo Testamento (do contrário, Lucas 16.17 seria incompreensível),
mas que “o período durante o qual os homens tiveram relação com Deus sob os
termos do Antigo Testamento terminara com João Batista” (Moo, “Jesus”, p. 1); e a
natureza de sua contínua validade é estabelecida só com referência a Jesus e ao
reino. A estrutura geral dessa interpretação é bem demonstrada por Banks {Jesus),
Meier (Law [Lei]), Moo (“Jesus”) e Carson (“Jesus”; na esfera popular, Sermon on
the Mount [Sermão do monte], p. 33ss.). Para uma abordagem um tanto similar,
veja Zumstein (p. 119s.) e McConnell (p. 96-97), os quais mencionam que a
autoridade implícita de Jesus também é encontrada nos versículos de encerramento
do sermão (7.21-23) em que ele, como Juiz escatológico, exerce autoridade que
só Deus tem.
A principal objeção a essa percepção é que o uso de “cumprir” nas citações de
cumprimento está na voz passiva, ao passo que aqui a voz é ativa. Mas é duvidoso
que se possa fazer muito com essa distinção (Meier, Law [Lei], p. 80s.).
Três conclusões teológicas são inevitáveis.
1. Se a antítese (w. 21-48) é entendida à luz dessa interpretação dos
versículos 17.20, então Jesus, nessa passagem, não está principalmente empenhado
em estender, anular nem intensificar a lei do Antigo Testamento, mas em mostrar a
direção em que ela aponta com base na própria autoridade dele (mais uma vez, para
a qual o Antigo Testamento aponta). Isso pode operar em qualquer caso particu
lar para ter o mesmo efeito prático como “intensificação” da lei ou “anulação” de
alguns elementos, mas os motivos para essa conclusão são bem distintos. A respeito
das implicações éticas dessa interpretação, veja o competente ensaio de Moo
(“Jesus”).
2. Se os versículos 17-20 são essencialmente autênticos (veja esp. W. D. Davies,
“Matthew 5:17,18” [“Mateus 5.17,18”], Christian Origins and Judaism [London:
DLT, 1962], p. 31-66; e Banks, “Matthews Understanding” [“Compreensão de
Mateus”]) e se a interpretação acima for sólida, as implicações cristológicas são
importantes. Aqui, Jesus apresenta-se como a meta escatológica do Antigo Testa
181 Mateus 5.17-20
mento e, por isso, seu único intérprete autoritativo, por meio só de quem o Antigo
Testamento encontra sua contínua validade e relevância.
3. Essa abordagem elimina a necessidade de opor Mateus contra Paulo ou os
judeus cristãos palestinos contra os crentes gentios paulinos, o primeiro grupo aderiu
às estipulações mosaicas, e o segundo grupo abandonou-as. Tampouco precisamos
da solução de Brice Martin, que argumenta que a abordagem de Mateus da lei e a de
Paulo não são complementares, mas não contraditórias: eles simplesmente empregam
categorias diferentes. Essa solução falha em contender com o posicionamento de
Jesus na história da redenção dado por Mateus e a boa compreensão de Paulo de
que a Lei e os Profetas apontavam para além deles mesmos (e.g., Rm 3.21; G1 3—
4; cf. Rm 8.4). O foco retorna para Jesus, que, em face disso, é onde Paulo e
Mateus pretendem que ele esteja. Os evangelhos estabelecem o fundamento para
a compreensão de Jesus como aquele que instituiu a abordagem essencialmente
cristológica e escatológica para o Antigo Testamento empregada por Paulo. Mas
isso fica mais evidente no versículo 18.
18 “Digo-lhes a verdade”, assinala que a declaração seguinte é da máxima
importância (cf. notas). No grego, essa frase está conectada ao versículo precedente
por um “para” (ARA) (gar) explicativo: o versículo 18 ainda explica e confirma a
verdade do versículo 17. E o “i” (ARA) transformou-se em “a menor letra” (NVT):
isso está quase certamente correto, pois se refere à letra ’ (yôd), a menor letra do
alfabeto hebraico. O “traço” (keraia) é interpretado de maneiras variadas: é a letra
hebraica 1 (wâw) (como em G. Schwarz, “ icora « ' rj fiía Kepccía [Matthaus 5lg]”,
ZN W 66 [1975] p. 268-69); ou o menor traço que distingue diversos pares de
letras hebraicas (s/a; ~\h\ f/n) (como Filson, Lenski, Allen, Zahn); ou um traço
puramente ornamental, uma “coroa” (Tasker, Schniewind, Schweizer; mas cf.
D N TT, 3:182); ou forma uma hendíadis com o “pingo” referindo-se à menor
parte da menor letra (Lachs, p. 106-8). Em todo caso, aqui, Jesus mantém
inteiramente a autoridade da Escritura do Antigo Testamento até o “menor traço”.
A percepção dele do Antigo Testamento é a mais alta possível.
Mas os versículos 17,18 não contendem abstratamente com a autoridade do
Antigo Testamento, mas com a natureza, a extensão e a duração de sua validade e
continuidade. A natureza deste foi anunciada no versículo 17. A referência a “letra”
e “traço” estabelece a extensão dele: não serviria se reduzíssemos a referência à lei
moral ou à lei como um todo, mas não necessariamente a suas partes tampouco à
vontade de Deus em algum sentido genérico. É quase certo que “Lei” se refira a
todas as Escrituras do Antigo Testamento, não apenas ao Pentateuco ou à lei
moral (observe o paralelo no v. 17).
Resta a duração da autoridade do Antigo Testamento. As duas orações com
“enquanto” e “até” respondem a esse ponto. A primeira — “Enquanto existirem
céus e terra” — quer simplesmente dizer: “Até o fim das eras”; ou seja, não exatamente
“nunca” (contra Meier, Law [Leí\, p. 61), mas “nunca enquanto a presente ordem
mundial persistir”. A segunda — “Até que tudo se cumpra” — é mais difícil.
Alguns a consideram equivalente à primeira frase (cf. Sand, p. 36-39). Mas o
sentido é mais sutil que isso. A palavra panta (“tudo” ou “todas as coisas” não tem
Mateus 5.17-20 182
1) R a i v a d if a m a n t e e r e c o n c il ia ç ã o (5.21-26)
21 “Vocês ouviram 0 que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito
a julgamento’, 22 Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento.
Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’, será levado ao tribunal. E qualquer que disser:
‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno.
23 “Portanto, se você estiver apresentando sua oferta diante do altar e ali se lembrar de que seu irmão
tem algo contra você, 24 deixe sua oferta ali, diante do altar, e vá primeiro reconciliar-se com seu
irmão; depois volte e apresente sua oferta.
25 “Entre em acordo depressa com seu adversário que pretende levá-lo ao tribunal. Faça isso enquanto
ainda estiver com ele a caminho, pois, caso contrário, ele poderá entregá-lo ao juiz, e o juiz ao
guarda, e você poderá ser jogado na prisão.26 Eu lhe garanto que você não sairá de lá enquanto não
pagar o último centavo.”
' todas essas distinções afetem colateralmente o texto. Mais propriamente, Jesus,
em todos os casos, contrasta a compreensão errônea da lei por parte das pessoas
com a verdadeira direção em que a lei aponta, de acordo com sua autoridade
como cumpridor da lei (no sentido estabelecido no v. 17). Ele não faz nenhuma
tentativa de cercar a lei (contra Przybylski, p. 80-87), mas declara sem ambiguidade
a verdadeira direção para a qual ela aponta. Assim, se determinadas antíteses
revogam a menor letra da lei (e elas o fazem; cf. Meier, Law [Lei], p. 125ss.), elas
fazem isso não porque, desse modo, estão afirmando o verdadeiro espírito da lei,
mas, sim, porque Jesus insiste que seu ensino sobre esses assuntos é a direção na
qual as leis verdadeiramente apontam.
Da mesma maneira, a fala de Jesus: “Vocês ouviram, [...] mas eu lhes digo” não
é exatamente análoga às formulas rabínicas; Jesus não é apenas um protorrabi (con
tra Daube, Sigal). O sermão do monte não está estabelecido em um contexto de
disputa erudita sobre detalhes de halaca, mas em um contexto de cumprimento
messiânico e escatológico. A autoridade de Jesus irrompe nos limites do relativamente
“estreito contexto de interpretação e inovação legais que os rabis circunscreveram
para eles mesmos” (Banks, Jesus, p. 85). Por isso, as multidões ficavam maravilhadas
com a autoridade dele (7.28,29).
21,22 Os contemporâneos de Jesus ouviram que a lei dada aos seus antepassados
(cf. notas) proíbe o assassinato (não o tirar toda vida, que poderia, por exemplo, ser
um mandato judicial; cf. Gn 9.6), e o assassino deve ser levado a “julgamento”
(krisis, que aqui se refere a procedimentos legais, talvez a corte instituída em toda
cidade [Dt 16.18; 2Cr 19.5; cf. Jos. Antiq. IV, p. 214 (vii.14); War II, p. 570-71
(xx.5)]; ou o conselho formado de 23 pessoas instituído para lidar com assuntos
criminais, SBK, 1:275). Mas Jesus insiste — o “eu” é enfático em cada uma das seis
antíteses — que a lei realmente aponta para o ensinamento dele mesmo: a origem
do homicídio é a raiva, e, em princípio, o assassino é a raiva (v. 22). A pessoa não se
conforma à justiça superior do reino simplesmente ao abster-se do homicídio. A
pessoa raivosa está sujeita ao krisis (“julgamento”), mas pressupõe-se que o julgamento
de Deus, “uma vez que a corte humana não é competente para julgar um caso de
raiva interior” (Stott). Ser inclinado a insultar os outros não só expõe o indivíduo
ao conselho (de Deus) (synedrion pode significar “tribunal” [NVI] ou simplesmente
“Sinédrio”), mas também ao “fogo do inferno”.
A expressão “fogo do inferno” {geena tou pyros, lit. “geena de fogo”) vem da
expressão hebraica gê-hinnôm (“vale de Hinom”, ravina ao sul de Jerusalém antes
associada ao deus pagão Moloque e seus repulsivos rituais [2Rs 23.10; 2Cr 28.3;
33.6; Jr 7.31; Ez 16.20; 23.37], proibidos por Deus [Lv 18.21; 20.2-5]).
Quando Josias aboliu essas práticas, ele maculou o vale ao transformá-lo em
terreno de despejo de lixo e de cadáveres de criminosos (2Rs 23.10). Tradições
tardias sugerem que, no século I, talvez o vale ainda fosse usado como sepultura
de refugo ou lixo, ato completado com fogo de combustão lenta. O vale passou a
simbolizar o lugar de punição escatológica (cf. lEnoq 54.12; 2Bar 85.13; cf. M t
10.28; 23.15,33 e 18.9 para a expressão mais longa “geena de fogo”). Geena e
Hades (11.23 [NVI n.]; 16.18), com frequência, são entendidos referindo-se,
Mateus 5.21-26 186
2 ) A d u l t é r io e p u r e z a ( 5 . 2 7 - 3 0 )
27 “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não adulterarás’. 28 Mas eu lhes digo: Qualquer que olhar para uma
mulher para desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. 29 Se o seu olho direito o fizer
pecar, arranque-o e lance-o fora. É melhor perder uma parte do seu corpo do que ser todo ele
lançado no inferno.30 E se a sua mão direita o fizer pecar, corte-a e lance-a fora. É melhor perder uma
parte do seu corpo do que ir todo ele para o inferno.”
27,28 A ordem do Antigo Testamento para não cometer adultério (Êx 20.14;
D t 5.18), com frequência, não é tratada nas fontes judaicas tanto como uma
função de pureza como de roubo: era roubar a esposa de outro (referências em
Bonnard). Jesus insistia que o sétimo mandamento aponta em outra direção —
aponta para a pureza que rejeita a cobiça (v. 28). O décimo mandamento já apre
sentara explicitamente o ponto; e aqui é mais provável quegynê queira dizer “mulher”
em vez de “esposa”. “Interpretar a lei pelo lado da severidade não é anular a lei, mas
mudá-la de acordo com a própria intenção dela” (Davies, Setting [Cenário], p.
102; cf. Jó 31.1; Pv 6.25; 2Pe 2.14).
Klaus Haacker (“Der Rechtsatz Jesu zum Thema Ehebruch” [“O registro
legislativo de Jesus sobre o adultério”], Biblische Zeitschrift 21 [1977], p. 113-16)
argumentou de maneira convincente que o segundo autên (“ [cometeu adultério]
com ela”) é contrário à interpretação comum desse versículo. No grego, ele é
desnecessário, em especial se o pecado é totalmente do homem. Mas é explicável
se pros to epithymêsai autên, comumente entendido como “com vista a desejá-la
ardentemente”, é traduzido por “olhar para uma mulher para desejá-la”. A evidência
para essa interpretação é convincente (cf. notas). Por isso, o homem está olhando
para a mulher com o intuito de instigá-la à cobiça. Assim, até o ponto em que a
intenção dele vai, ele está cometendo adultério com ela, ele torna-a uma adúltera.
Isso não abranda a força do ensino de Jesus; o cerne da questão ainda é cobiça e
intenção.
29,30 O tratamento radical para as partes do corpo que fazem o indivíduo
pecar (cf. notas) levou alguns (notoriamente Orígenes) a castrar-se. Mas isso não
é radical o bastante, uma vez que a luxúria não é removida dessa maneira. O
“olho” (v. 29) é o membro do corpo mais comumente culpado de nos fazer desviar,
especialmente em relação aos pecados sexuais (cf. N m 15.39; Pv 21.4; Ez 6.9;
18.12; 20.8; cf. Ec 11.9); o “olho direito” refere-se ao melhor olho de alguém.
Mas por que a “mão direita” (v. 30) em um contexto que lida com a luxúria? Pode
ser meramente ilustrativo ou uma forma de dizer que até mesmo a luxúria é um
tipo de roubo. E mais provável que seja um eufemismo para o órgão sexual
masculino (cf. yãd, “mão”, mais provavelmente usado desse modo em Is 57.8 [cf.
BDB, s.v., 4.g]; veja Lachs, p. 108s.).
Cortar ou arrancar a parte do corpo que cometeu ofensa é um modo de dizer
que os discípulos de Jesus têm de lidar de forma radical com o pecado. A imaginação
é um dom concedido por Deus, mas se ela é alimentada com sordidez pelo olho,
ela será suja. Todo pecado, não só o pecado sexual, começa com a imaginação. Por
isso, o que alimenta a imaginação é de suma importância na busca do reino da
justiça (compare Fp 4.8). Nem todos reagem da mesma forma a todos os objetos.
189 Mateus 5.31-32
Mas se (w. 28,29) seu olho o faz pecar, arranque-o ou, pelo menos, não olhe (cf.
a sensata exposição de Stott, p. 89-91)! A alternativa é pecado e inferno, a
recompensa do pecado. O ponto é tão fundamental que Jesus, sem dúvida, repetiu-
o inúmeras vezes (cf. 18.8,9).
Notas
28 O verbo éiri8i)|iécú (epithymeô, “cobiço”) pode ter força positiva (“eu desejo”), mas mais
comumente tem um sentido ruim. Ele é usado explicitamente em conexão com desejo
sexual em Romanos 1.24.
A expressão npoç tò èiu9u|iíicj(n amr\v (pros to epithymêsai autên) podia querer dizer
“assim como cobiçá-la”, quer com força télica, quer como mera consequência ou
resultado (cf. BDF, par. 402 [5]), aqui provavelmente com a primeira. Se for esse o
caso, essa é a única passagem em que o verbo usa o acusativo: espera-se autês (genitivo),
em vez de autên (cf. BDF, par. 171 [1]). Portanto, é mais provável que o acusativo
autên funcione como acusativo de referência (ou seja, o quase sujeito) do infinitivo
(como na construção equivalente de Lc 18.1) a fim de gerar a tradução “assim ela
deseja”.
29 O verbo OKayõaÀÍÇa) (skandalizô) pode querer dizer ( 1) “faço tropeçar”, “faço pecar”
(como aqui, 18.6-9; Lc 17.2; Rm 14.21; ICo 8.13; 2Co 11.29); (2) “obstruo o
caminho de outro” e, por isso, “faço [alguém] descrer, rejeitar, abandonar” (Mt 11.6;
13.21,57; 15.12; 24.10; 26.31,33; Jo 16.1); (3) “ofendo” (Mt 17.27; Jo 6.61). O
substantivo cognato OKávòaXov (skandalon) originalmente refere-se ao gatilho da
armadilha (cf. Rm 11.9) vem a representar, em uma análise semelhante, (1) “pedra de
tropeço”, ou seja, “fazer com que outro peque” (Mt 13.41; 18.7; Lc 17.1; Rm 14.13;
ljo 2.10; Ap 2.14); (2) “obstrução” e, por isso, “motivo de descrença” (Rm 9.32,33;
16.17; ICo 1.23; IPe 2.8); (3) objeto que alguém lança e que fere ou repele uma
pessoa, por isso, é “uma ofensa” (Mt 16.23; G1 5.11). Alguns textos podem apelar
para mais de um sentido (cf. Broadus, DNTT, 2:707-10).
3 ) D iv ó r c io e n o v o c a s a m e n t o ( 5 . 3 1 , 3 2 )
31 “Foi dito: ‘Aquele que se divorciar de sua mulher deverá dar-lhe certidão de divórcio’. 32 Mas eu lhes
digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por imoralidade sexual, faz que ela se
torne adúltera, e quem se casar com a mulher divorciada estará cometendo adultério.”
31,32 A fórmula introdutória: “Foi dito”, é mais curta que todas as outras
desse capítulo e está ligada à precedente pelo conectivo de (“e”). Por essa razão,
embora esses dois versículos sejam de natureza antitética, eles levam adiante o
argumento da perícope precedente. O Antigo Testamento não só aponta em direção
a insistir que a luxúria é o equivalente moral de adultério (w. 27-30), mas que
também o é o divórcio. Isso tem origem no fato de que as mulheres divorciadas,
na maioria das circunstâncias, casam-se de novo (esp. na Palestina do século I em
que provavelmente esse seria o meio de sustento dela). Esse novo casamento, quer
da perspectiva da divorciada quer da daquele que se casa com ela, é adultério.
A passagem do Antigo Testamento a que Jesus se refere (v. 31) é Deute-
ronômio 24.1-4, cuja força propulsora é que se o homem se divorcia de sua esposa
por “encontrar nela algo que ele reprova” (sem maiores definições do que seja), ele
deve dar-lhe certidão de divórcio, e se ela, depois, tornar-se esposa de outro homem
Mateus 5.33-37 190
e se divorciar de novo, o primeiro marido não pode casar de novo com ela. Essa
dupla restrição — o certificado e a proibição de se casar de novo — desencorajava
divórcios precipitados. Aqui, Jesus não entra na discussão do que é “encontrar
nela algo que ele reprova”. Em vez disso, ele insiste que a lei apontava para a
santidade do casamento.
A forma natural de entender a oração com “exceto” é que o divórcio é errado
porque gera adultério exceto no caso de ter havido fornicação. Nesse caso em que
o pecado sexual já foi cometido, nada é declarado, embora pareça que, nesse caso,
permite-se, implicitamente, o divórcio, apesar de não ser obrigatório (cf. a paráfrase
de Stonehouse, Witness ofMatthew [Testemunho de Mateus\, p. 203).
Os inúmeros pontos para discussão exegética (e.g., o sentido de porneia
[“fornicação” ou, na NVI, “imoralidade sexual”], a força da condição “exceto” e a
história da tradição por trás desses versículos e sua relação com 19.3-9; Mc
10.11,12; Lc 16.18) são tratados de forma mais plena em 19.3-12. A teoria que
deve ser rejeitada aqui (porque não tem contraparte em 19.3-12) é a que entende
que as palavras: “Faz que ela se torne adúltera”, querem dizer: “Estigmatiza-a
como adúltera” (embora ela não o seja)” (B. Ward Powers, “Divorce and the
Bible” [“Divórcio e a Bíblia”], Interchange 23 [1938], p. 159). O grego usa o
verbo, não o substantivo (cf. “faz que ela se torne adúltera” da NVI). A construção
verbal desaprova a paráfrase de Power.
4) J u r a m e n t o s e v e r a c id a d e (5.33-37)
33 “Vocês também ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não jure falsamente, mas cumpra
os juramentos que você fez diante do Senhor’. 34 Mas eu lhes digo: Não jurem de forma alguma: nem
pelos céus, porque é o trono de Deus; 35 nem pela terra, porque é o estrado de seus pés; nem por
Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei. 36 E não jure pela sua cabeça, pois você não pode
tornar branco ou preto nem um fio de cabelo. 37 Seja o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’; o que
passar disso vem do Maligno.”
Deve ser francamente admitido que aqui Jesus contradiz de modo formal a
lei do Antigo Testamento: o que ela permite ou ordena (Dt 6.13), ele proíbe. Mas
se a interpretação dele da direção na qual a lei aponta é autoritativa, então seu
ensinamento a cumpre.
Notas
34’ 0\xvvvai ev ou eíç (omnynaien ou eis, “jurar por” ou “em direção a” [gr. não é totalmente
não ambíguo]) é hebraico (cf. Moulton, Accidence [Flexão], p. 463-64); o Novo
Testamento só usa elç com “Jerusalém”. Turner (Insights [Percepções], p. 31) argumenta
que a proibição presente emTiago 5.12 quer dizer “pare de j urar”, ao passo que a proibição
aorística aqui pressupõe que os discípulos pararam de jurar e, agora, os proíbem de
começar a jurar. Essa distinção clássica baseada em tempos verbais de proibições, em
geral, sustenta-se, mas pode ser delicadamente distorcida (cf. Moule, Idiom Book [Livro
de expressões idiomáticas], p. 21). No sentido mais estrito, o aorístico é atemporal; e,
no versículo 34, ligado a |iT} [...] o à g o ç (mê [...] holôs, “não [ . . . ] de forma alguma”)
provavelmente gera apenas uma negativa incondicional: “Não jurem de forma alguma”
(NVI; cf. Schlatter).
5 ) I n j ú r ia p e s s o a l e a u t o s s a c r if íc io ( 5 . 3 8 - 4 2 )
38 “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. 39 Mas eu lhes digo: Não resistam
ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. 40 E se alguém quiser
processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a ca p a .41 Se alguém o forçar a caminhar com
ele uma milha, vá com ele duas. 42 Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja
pedir-lhe algo emprestado.”
A ordem das duas últimas antíteses (w. 38-48) é revertida em Lucas 6.27-36.
Embora os motivos para isso sejam discutíveis, se os dois evangelistas estão registrando
o mesmo sermão, o reverso mostra que o rearranjo da ordem dos materiais (preservado
em Q e/ou outras notas) era um pensamento aceitável. Bonnard critica, com acerto,
a história da tradição de Wrege. Não são desconhecidos paralelos repudiando
vingança e índole vingativa (T. Benjamin 4.1— 5.5; 1QS 10:18; C D 8:5-6). O
elemento distintivo no ensino de Jesus é a forma como ele contrapõe isso com a
lex talionis (o princípio de retribuição) e os motivos porque ele faz isso.
38 A prescrição do Antigo Testamento (Êx 21.24; Lv 24.19,20; D t 19.21)
não são fornecidas para encorajar vingança; a lei proíbe explicitamente isso (Lv
19.18). Antes, ela é fornecida, conforme demonstra o contexto do Antigo Testa
mento, para prover o sistema judicial da nação com uma fórmula de punição
pronta, não menos importante é o fato de que ela poderia acabar decisivamente
com vendetas. Em vez da vingança, é uma ocasião acertada de pagamento em
dinheiro ou algum outro bem (e.g., ÊX 21.26,27); e, na época de Jesus, as cortes
raramente impunham a lex talionis. A dificuldade é que a lei se destinava a limitar
a retaliação e se podia apelar para a punição justa como justificação para o espírito
vingativo. Mas não dará resultado argumentar que Jesus não faz nada mais que
combater o uso pessoal da lex talionis em favor do uso judicial, uma vez que nesse
caso os exemplos correriam necessariamente de forma diferente: e.g., se alguém
bater em você, não bata de volta, deixe que o judiciário administre o justo tapa de
volta. O argumento corre em vias mais profundas.
193 Mateus 5.38-42
39 Os discípulos de Jesus não devem resistir “ao perverso” (tô ponêrô não
poderia ser facilmente tido como se referindo aqui ao demônio ou ao mal abstrato).
No contexto da lex talionis, a forma mais natural de entender a resistência é: “Não
resista na corte de lei”. O segundo exemplo (v. 40) exige essa interpretação. Por
isso, o ensino de Jesus, como nos versículos 33-37, contradiz formalmente a lei
do Antigo Testamento. Mas, no contexto dos versículos 17-20, o que Jesus está
dizendo está razoavelmente claro: o Antigo Testamento, incluindo a lex talionis,
aponta para Jesus e seu ensino. Mas como as leis do Antigo Testamento permitem
o divórcio, legalizado por causa do endurecimento do coração dos homens (19.3-
12 ), a lex talionis foi instituída para refrear o mal por causa da dureza de coração
dos homens. “Deus fornece por concessão uma regulamentação legal que funciona
como um dique contra o rio de violência que flui do coração maligno do homem”
(Piper, p. 90).
Da mesma forma como esse princípio legal é ultrapassado por aquele em direção
ao qual aponta, também o é a dureza de coração. Os profetas do Antigo Testamento
predisseram um tempo em que haveria uma mudança de coração entre o povo de
Deus, vivendo sob a nova aliança (Jr 31.31-34; 32.37-41; Ez 36.26). Não só os
pecados do povo seriam perdoados (Jr 31.34; Ez 36.25), mas a obediência a Deus
brotaria do coração (Jr 31.33; Ex 36.27) no alvorecer da era escatológica. Portanto,
a instrução de Jesus sobre esses assuntos é fundamentada na escatologia. Em Jesus e
no reino, chega o cumprimento (mesmo se parcial) das promessas do Antigo Testa
mento, a era escatológica que a Lei e os Profetas tinham profetizado (11.13); e,
agora, as profecias que refreiam o mal ao mesmo tempo em que apontam para o fim
dos tempos são suplantadas pela nova era e pelo novo coração que esta traz (cf.
Piper, p. 89-91).
Quatro ilustrações esclarecem o ponto de Jesus e o enfatizam. Na primeira, um
homem fere outro na face — não só um tapa doloroso, mas também um grande
insulto (cf. 2Co 11.20). Se uma pessoa destra acerta a face direita de alguém, pre
sume-se que seja um tapa dado com as costas da mão, provavelmente considerado
mais insultante que um tapa dado com a palma da mão (cf. M Baba Kamma 8.6).
O verbo “ferir” (rhapizei) provavelmente refere-se a um tapa violento. Muitos
comentaristas contrastam com o typtô (“ferir”, Lc 6.29) de Lucas, argumentando
que o último refere-se ataques com uma vara— ou seja, Lucas não lida com insulto,
mas com dor e dano. O contraste é falso; a sobreposição semântica entre os dois
verbos é substancial, e typtô pode se referir a tapa (e.g., At 23.3). Mas em vez de
buscar recompensa na lei sob a lex talionis, os discípulos de Jesus suportam
alegremente o insulto mais uma vez. (Há nuanças de Isaías 50.6 aqui, aplicada
em Mateus 26.67 para Jesus; cf. Gundry, Use ofO T [U so do AT], p. 72-73.)
40 Embora sob a lei mosaica a capa exterior fosse uma posse inalienável (Ex
22.26; D t 24.13), os discípulos de Jesus, se processados por causa de sua túnica
(vestimenta interna como nosso terno, mas usada próxima da pele), em vez de
buscar satisfação, separam-se alegremente do que podem manter legalmente.
Lucas 6.29 não diz nada sobre ação legal, mas menciona as vestimentas na ordem
reversa. Isso levou alguns a achar que Lucas tinha em mente o roubo violento
Mateus 5.43-47 194
porque, nesse caso, a vestimenta externa seria roubada primeiro. Mas talvez a
ordem refira-se apenas ao fato de que a vestimenta seria normalmente tirada.
4 1 0 terceiro exemplo refere-se à prática romana de ordenar que civis carreguem
a bagagem do militar por uma determinada distância, uma “milha” romana. (A
respeito do verbo angareuô, “forçar”, cf. W Hatch, Essays in Biblical Greek [.Ensaios
em grego bíblico] [Oxford: Clarendon, 1889], p. 37-38). O recrutamento forçado,
como o processo judicial, evoca ultraje; mas a atitude dos discípulos de Jesus sob
essas circunstâncias não deve ser maliciosa nem vingativa, mas de ajuda — disposto
a caminhar o segundo quilômetro (exemplares do texto ocidental diz “duas mais
[milhas]”, perfazendo um total de três). Essa ilustração também é implicitamente
contra os zelotes.
42 A última ilustração exige não só empréstimo sem juros (Ex 22.25; Lv
25.37; D t 23.19), mas também um espírito generoso (cf. D t 25.7-11; SI 37.26;
112.5). A forma paralela desse versículo (Lc 6.30) não envolve dois pedidos, mas
apenas um; a repetição reforça o ponto. Essas duas últimas ilustrações confirmam
nossa interpretação dos versículos 38 e 39. A perícope inteira lida com a atitude
de coração, a melhor justiça. Pois não há realmente nenhum recurso legal para a
opressão na terceira ilustração, e na quarta não há ofensa que possa levar à retaliação.
Embora essas quatro vinhetas tenham muito poder de causar choque de
valores, a intenção na formulação delas não era para que fossem novas prescrições
legais. O versículo 42 não compromete os discípulos de Jesus a dar infindável
quantidade de dinheiro para todos que buscam um “toque gentil” (cf. Pv 11.15;
17.18; 22.26). O versículo 40 é claramente hiperbólico: nenhum judeu do século I
iria para casa vestindo apenas uma tanga. Essa perícope também não lida com a
validade de uma força policial estatal. Contudo, as ilustrações não devem ser
abrandadas pelos infindáveis equívocos; o único limite para a resposta do cristão
nessas situações é o que o amor e as Escrituras impõem. Paulo pôde “enfrent[ar]”
(mesma palavra grega) Pedro face a face (G1 2 ) porque o amor exigia isso à luz do
dano causado ao evangelho e aos irmãos cristãos. (A respeito do resultado prático
dessa antítese, cf. Neil, p. 160-63; Piper, p. 92-99; Stott, p. 104-14).
6) Ó d io e a m o r (5.43-47)
43 “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo’. 44 Mas eu lhes digo:
Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, 45 para que vocês venham a ser
filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama
chuva sobre justos e injustos.46 Se vocês amarem aqueles que os amam, que recompensa vocês
receberão? Até os publicanos fazem isso! 47 E se saudarem apenas os seus irmãos, o que estarão
fazendo de mais? Até os pagãos fazem isso!”
comunidade (cf. 1QS 1:4,10; 2:4-9; 1 QM 4:1-2; 15:6; 1QH 5:4) e, sem dúvida,
eles representavam outros grupos com posições similares. Essa antítese amor-ódio
pode ser mitigada pela convicção desses afiançados de Qumran de que só eles
eram o remanescente fiel; no mínimo, algo da linguagem antecipa a linguagem
escatológica divina. Mas nem tudo isso pode ser descartado com tanta facilidade
(cf. Davies, Setting [Cenário], p. 245ss.).
2. Independentemente dos problemas de datação da literatura rabínica,
devemos lembrar-nos que essa literatura representa debate acadêmico, não
pensamento comum. Por exemplo, Cari F. H. Henry escreve livros eruditos lidos
por poucos milhares de pessoas; H. Lindsey escreve material popular lido por
milhões de pessoas. Em centenas de anos, se o mundo durar tudo isso, algumas
das obras de Henry talvez ainda estejam sendo impressas, mas poucos se lembrarão
de Lindsey. Todavia, hoje, Lindsey é lido por muitíssimo mais pessoas da igreja
que Henry; e o pregador sábio não se esquecerá disso. D a mesma forma, a popu
lar deturpação de Levítico 19.18, pressuposta por Mateus 5.43, sem dúvida, foi
muitíssimo mais divulgada que a literatura rabínica sugere.
A citação também omite as palavras “como a si mesmo” incluídas em 19.19;
22.39; e a atitude refletida ignora o fato de que Levítico 19.33,34 também ordena
amor de mesma profundidade pelo viajante de passagem e pelo estrangeiro residente
na terra. Parece que o raciocínio popular é de que se Deus ordena amor pelo
“próximo”, então o ódio pelos “inimigos” é implicitamente admitido e talvez, até
mesmo, autorizado. Lucas 10.25-37 mostra como é longa a extensão da categoria
do “próximo”.
44-47 Jesus não permitiu casuísmo. A verdadeira direção indicada pela lei é
o amor abundante, custoso e estendido até mesmo aos inimigos. Muitos consideram
o verbo “amar” (agapaô) e o substantivo (agapê) tem sempre o sentido de entregar
a si mesmo independentemente da emoção. Por exemplo, Hill (Matthew [Mateus])
comenta a respeito dessa passagem: “O amor apontado não é questão de sentimento
e de emoção, mas, como sempre no A T e no N T, de ação concreta”. Se fosse assim,
ICoríntios 13.3 não poderia negar o “amor” que dá tudo ao pobre e sofre até
mesmo martírio; pois estes são “atos concretos”. O mesmo verbo é usado quando
Amnom amou incestuosamente sua meia-irmã Tamar (2Sm 13.1; LXX), quando
Demas, por amar este mundo (2Tm 4.10), abandona Paulo; e quando os publicanos
amam aqueles que os amam (Mt 5.46).
O surgimento da palavra grupo no grego também foi traçado por Roberto Joly,
Ayanâu et 0LÀeÎjy: Le vocabulaire chrétien de l ’amour, est-il original? [Ayatrâi/ e &LÀeî
v: o vocabulário do amor cristão, ele é original?] (Bruxelles: Presses Universitaires,
1968). Os cristãos, sem dúvida, assumem a palavra grupo e a preenchem grandemente
com seu próprio conteúdo; mas o conteúdo desse amor não se baseia em uma
definição pressuposta, mas no ensinamento e exemplo de Jesus. Amar os inimigos,
embora isso deva resultar em fazer o bem a eles (Lc 6.32,33) e em orar por eles (Mt
5.44), não pode justamente ficar limitado a atividades destituídas de qualquer
preocupação, sentimento ou emoção. Agapaô, como o verbo “amar” em português,
varia grandemente de atos aviltantes e egoístas a autossacrifício generoso, difícil e
Mateus 5.43-47 196
amoroso pelo bem do outro. Não há motivo para pensar que, aqui em Mateus, o
verbo não inclui emoção além da ação.
Estudo acadêmico muito recente identifica os “inimigos” com os perseguidores
da igreja de Mateus. Assim, os versículos 44-47 são vistos como a transformação
por Mateus da exortação mais genérica de Lucas (6.32-35) em encorajamento para
que os cristãos de sua época se submetessem graciosamente a seus perseguidores. Se
os primeiros leitores de Mateus estavam sendo perseguidos por causa de sua fé, essa,
sem dúvida, foi uma das aplicações que fizeram, embora fosse improvável que o
próprio Mateus pretendesse ser tão restritivo e anacrônico. As palavras “aqueles que
os perseguem” introduz um importante tipo de “inimigo”, mas não exclui os outros
tipos. Jesus mesmo, repetidas vezes, adverte seus discípulos a respeito da perseguição
iminente (e.g., w. 10- 12 ; 10.16-23; 24.9-13); por isso, há pouca necessidade de
duvidar da autenticidade da advertência aqui.
Uma manifestação de amor pelos inimigos seria a oração; orar por um inimigo
e amá-lo provariam reforço mútuo. Quanto mais ama, mais ora; quanto mais ora,
mais ama.
Jesus, na verdade, parece ter orado por seus torturadores enquanto o ferro
perfurava suas mãos e pés; de fato, o tempo imperfeito sugere que continuou
jorando, continuou repetindo sua súplica: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem
o que estão fazendo” (Lc 23.34). Se a cruel tortura da crucificação não pôde
silenciar a oração de nosso Senhor por seus inimigos, que dor, orgulho,
preconceito ou indolência poderiam justificar nosso silêncio? (Stott, p. 119).
Os discípulos de Jesus têm como exemplo Deus mesmo, que ama de forma
tão indiscriminada que envia sol e chuva (eles são dele, e ele os concede) sobre o
justo e o injusto (cf. Sêneca, DeBeneficiis 4.26; b Taanith 7b). Todavia, não devemos
concluir que o amor de Deus pelos homens sem distinção sob todos os aspectos e,
por isso, todos devem ser salvos no fim. O mesmo Jesus ensina outra coisa — e.g.,
em 25.31-46 — e o Novo Testamento mostra que alguns aspectos do amor de
Deus, na verdade, estão relacionados com seu caráter moral e exigências por obediên
cia (e.g. Jo 15-9-11; Jd 21). Desde Calvino, os teólogos relacionam o amor de Deus
nos versículos 44 e 45 com sua “graça comum” (isto é, o favor gracioso que Deus
concede “em comum”, sem distinção, a todos os homens). Ele podia justamente
condenar todos; em vez disso, ele demonstra favor, repetido e prolongado, por
todos. Esse é o ponto estabelecido aqui para que imitemos, e não que o amor de
Deus é amoral ou sem quaisquer distinções.
Também é irreal concluir que o Antigo Testamento exige termos duros para
o inimigo, mas que o Novo Testamento supera esse retrato obscuro com novas
exigências de amor incondicional. A contraevidência refuta essa noção: o Antigo
Testamento, com frequência, ordena amor pelos outros (e.g., Ex 23.4,5; Lv
19.18,33,34; ISm 24.5; Jó 31.29; SI 7.4; Pv 24.17,29; 25.21,22 [cf. Rm 12.20]),
e o Novo Testamento fala contra o réprobo (e.g., Lc 18.7; IC o 16.22; 2Ts 1.6-10;
2Tm 4.18; Ap 6.10). Os versículos 44 e 45, antes, insistem que a lei do Antigo
Testamento citada (v. 43) aponta para a riqueza do amor exercido pelos herdeiros
197 Mateus 5.43-47
nuanças mais que raciais). “O homem, ao amar seus amigos, pode, em determinado
sentido, estar amando só a si mesmo — um tipo de egoísmo expandido” (Broadus).
Jesus não perdoará isso. “A vida da antiga (caída) humanidade baseia-se em justiça
bruta, em vingar injúrias e em retornar favores. A vida da nova (redimida)
humanidade baseia-se no amor divino, em recusar se vingar e apenas em devolver
mal com bem” (Stott, p. 123).
Notas
43 Zerwick, par. 279, argumenta que, aqui, o futuro |iiaf|aeiç (misêseis) pode ser usado
modalmente: “Vocês devem amar o seu próximo, mas podem odiar seu inimigo”. Isso
é improvável porque: (1) o único paralelo, 7.4, apresenta uma questão; e (2) o
mandamento para amar na mesma sentença também está na forma futura (àyairfiaeiç
[agapêseis, “deve amar” — veja comentário sobre v. 21]). Por essa razão, é melhor
entender o segundo verbo como imperativo, como apresentado na NVI.
44 As palavras extras da KJV são assimilações de Lucas 6.27,28. Elas não só não estão em
alguns dos textos primitivos representantes dos textos alexandrinos, ocidentais e cesarianos,
mas “a divergência de leitura entre as condições acrescentadas também fala contra a
originalidade delas” (Metzger, Textual Commentary [Comentário textual\, p. 14).
46 William O. Walker Jr. (“Jesus and theTax Collectors” [“Jesus e os publicanos”], JBL 97
[1978], p. 221-38) argumentou recentemente que passagens como essa e outras pouco
lisonjeiras em que os publicanos sugerem que Jesus não tinha um relacionamento tão
caloroso com esses homens como, em geral, supõe-se e que, por isso, as passagens
apoiando essa última percepção (esp. 9.10-13; 11.19; e paralelas) não devem ser aceitas
muito rapidamente como originais. Mas Walker cria uma falsa disjunção histórica: ou
isso ou aquilo, quando toda evidência exige ambas-e. Jesus denuncia todo pecado,
mas faz amigos entre publicanos e fariseus (veja comentário sobre 9.9-13).
Notas
48 O futuro eoeoGe (esesthe, lit. “você será”) é imperativo como em Levítico 19.2 (cf.
comentário sobre 5.21 ).
Muitos comentaristas comparam esse versículo com Lucas 6.36 (“Sejam
misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso”) e debatem qual forma
do dito está mais próxima do original. Por exemplo, Hill (Matthew \Mateus]) observa:
(1)que “misericordioso” se ajusta notavelmente ao contexto de Lucas; (2) que o véÁeioi
(teleioi, “perfeito”) pode traduzir o aramaico n'bp (fltm), “perfeito”), o que poderia ser
parte de um jogo de palavras com vbúiflam, “saudações”) na saudação do versículo 47;
e (3) conclui que a versão de Mateus é provavelmente a mais original. Mas poderia ser
montado um bom caso para a posição de que havia dois ditos:
1. Não só Mateus apresenta “perfeito”, e Lucas, “misericordioso”, como também o
verbo é diferente nos dois casos: eaeoGe (esesthe, “ser”) e yLveaGe (ginesthe, “ser”),
respectivamente. Lucas também omite “celestial”. Em outras palavras, os dois ditos
têm pouco em comum, com exceção da comparação entre o cristão e o Pai.
2. O versículo de Lucas, na verdade, ajusta-se admiravelmente ao contexto, mas o de
Mateus também se ajusta.
3. Talvez Mateus tenha omitido qualquer referência a misericórdia em sua sexta bem-
aventurança porque já lidara com o tema no versículo 7 (ausente em Lucas; e em
Lucas a palavra para “misericórdia” é diferente).
4. O jogo de palavras aramaicas é possível (embora outro termo semítico esteja mais
comumente por trás de téÀeioç [teleios, “perfeito”]). Contudo, no sentido estrito,
essa evidência sustenta a autenticidade do versículo 48, mas não faz com que
Lucas 6.36 seja secundário, a menos que já se tenha assumido que os ditos vêm da
mesma fonte — que é exatamente o ponto em discussão.
4. Hipocrisia religiosa: sua descrição e subversão (6.1-18)
a. O princípio (6.1)
1 “Tenham o cuidado de não praticar suas ‘obras de justiça’ diante dos outros para serem vistos por
eles. Se fizerem isso, vocês não terão nenhuma recompensa do Pai celestial.”
1 Se o texto por trás da NVI estiver correto (cf. notas), Jesus, depois de falar
aos discípulos sobre a justiça superior que se espera deles, adverte-os, agora, a
respeito do perigo da hipocrisia religiosa. A “justiça de vocês”, ocorrida primeiro
em 5.20, torna a ocorrer aqui, embora o foco tenha mudado de “justiça” em um
sentido puramente positivo para “justiça” em um sentido formal e externo. As
traduções modernas tentam mostrar a distinção de várias maneiras: a NVI traduz
a palavra por “obras de justiça” (entre aspas por ser citação); a ARC oferece:
“Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens”; e a TB: “Tenham o
cuidado de não praticarem os seus deveres religiosos em público” . Infelizmente,
elas estão ultrapassando a evidência.
“Fazer justiça” é uma expressão encontrada em outras passagens (SI 106.3; Is
58.2; ljo 2.29; 3.7,10). Em ljoão 2.29, por exemplo, a expressão é traduzida
pela NVI por “aquele que pratica a justiça”, o que também seria suficiente em
Mateus 6.1. Jesus não está lidando com um tipo diferente de justiça nem com
201 Mateus 6.2-4
atos de justiça, mas com os motivos por trás do viver justo. Tentar viver de acordo
com a justiça explicada nos versículos precedentes, mas, por causa de ávida vontade
de ser aplaudido pelos homens, prostitui-se essa justiça. O Pai celestial não
recompensará isso (veja comentário sobre 5.12). Não há contradição com 5.14-
16, passagem em que é dito aos discípulos para que deixem sua luz brilhar diante
dos homens a fim de que estes possam ver as boas obras deles; isso é motivo para
os homens louvarem o Pai celestial. A justiça conduzida sob as normas do reino
deve ser visível para que Deus possa ser glorificado. Contudo, ela nunca deve ser
visível a fim de conquistar o aplauso do homem. E muito melhor esconder qualquer
obra de justiça que possa levar à ostentação. Trocar o objetivo de agradar ao Pai
pelo objetivo trivial e idólatra de agradar o homem nunca funcionará.
Esse versículo introduz os três principais atos da piedade judaica (cf. w. 2-18
— esmola, oração e jejum (C. G. Montefiore e H. Loewe, A Rabbinic Anthology
\Uma antologia rabínica] [London: Macmillan, 1938], p. 412-39; Moore, Juda-
ism \Judaísmo\, 2:162-79). Em cada caso a estrutura lógica é a mesma: (1) uma
advertência para não fazer o ato a fim de ser elogiado pelos homens; (2) a garantia
de que os que ignoram essa advertência conseguirão o que querem, mas nada
além disso; (3) a instrução sobre como realizar o ato de piedade em segredo; e (4)
a certeza de que o Pai, que vê em segredo, recompensará publicamente (para
detalhes da estrutura lógica, cf. H. D. Betz, “Eine judenchristliche Kult-Didache
in Matthäus 6:1-18” [“Um didachê judeu-cristao culto em Mateus 6.1-18”], em
Strecker, Jesus Christus, p. 445-57).
Notas
1 Duas variantes são de interesse.
’ EA,er)|ioaúvr|i' (eleêmosynên, “esmolas”) foi provavelmente um polimento marginal anterior
em õiK o a o aú v r|v (dikaiosynên, “justiça”), uma vez que na LXX o termo “justiça”, em
hebraico, foi traduzido com frequência por “esmolas”. Assim, o polimento foi inserido
no texto por um copista. Se o original era, de fato, “esmolas”, então o versículo 1 deveria
ser lido com os versículos 2-4, não como uma introdução aos versículos 2-18; e isso
quebraria a estrutura cuidadosamente construída (discussão acima). Além disso, a
evidência externa sustenta fortemente dikaiosynên.
A evidência a favor do conectivo 5é (de, “mas”) está uniformemente dividida (em
parênteses na UBS; não traduzida na NVI). Um adversativo de ajusta-se muito bem no
contexto, por isso, pode ter sido inserido.
A respeito de ei õé |iií y€ (ei de mêge, “de outra maneira” ou “se fizerem isso” [NVI]),
cf. Thrall, p. 9-10.
1 ) E sm o la ( 6 .2 - 4 )
2“Portanto, quando você der esmola, não anuncie isso com trombetas, como fazem os hipócritas nas
sinagogas e nas ruas, a fim de serem honrados pelos outros. Eu lhes garanto que eles já receberam
sua plena recompensa. 3 Mas quando você der esmola, que a sua mão esquerda não saiba o que
está fazendo a direita,4 de forma que você preste a sua ajuda em segredo. E seu Pai, que vê o que
é feito em segredo, o recompensará.”
Mateus 6.2-4 202
Embora 6.1-6 não tenha paralelo nos evangelhos sinóticos, sua autenticidade
é sustentada pelos inúmeros jogos de palavras em reconstruções aramaicas (cf.
Black, Aramaic Approach [Abordagem aramaica], p. 176-78).
2 O “você” é singular (veja comentário sobre 5.28). Embora algumas pessoas
da época de Jesus acreditassem que conseguiam mérito dando esmola (Tobit 12.8,9;
Eclo 3.30; 29.11,12; cf. SBK in loco), o ponto aqui é a ostentação, não a teologia
do mérito. Jesus assume que seus discípulos darão esmola: “ Quando você der
esmola”, diz ele, e não: “Sf? você der esmola” (cf. 10.42; 25.35-45; 2Co 9.6,7; Fp
4.18,19; lTm 6.18,19; T g 1.27). Os escritores rabínicos também advertem con
tra a ostentação no dar esmola (cf. SBK, 1:391 ss.): a frequência das advertências
atesta como a prática era comum.
A referência a anúncio com trombetas é difícil. Muitos comentaristas ainda
dizem que se refere à “prática de tocar trombetas na hora da coleta de esmola no
templo para auxílio de alguma necessidade comunicada” (Hill, Matthew [Mateus],
seguindo Bonnard); mas nenhuma fonte judaica confirma isso, e a ideia parece
originar-se só dos primeiros expositores cristãos que assumiram o acerto dela. Da
mesma maneira, não há evidência (contra Calvino) de que os próprios doadores de
esmolas soavam as trombetas em seu trajeto para o templo. Alfred Edersheim ( The
Temple: Its Ministry and Services [O templo: seu ministério e services] [London: Reli-
gious Tract Society], s.d.], p. 26), seguido por Jeremias (Jerusalem Jerusalém], p.
170, n. 73), sugere que essa é uma referência a uma coleção de caixas com forma de
chifre usada no templo a fim de desencorajar o furto. Lachs (Textual Observation
[Observação textuali], p. 103-5), sem mencionar Edersheim, deu seguimento à
ideia postulando tradução errônea de uma fonte semítica subjacente. Todavia, a
menos que a trombeta seja uma caricatura metafórica (como “tocar a própria
corneta”) — uma pobre sugestão atestada — a solução de A. Büchler (“St. Mat
thew vi 1-6 and Other Allied Passages” [“São Mateus 6.1-6 e outras passagens
ligadas a ela”], JT S 10 [1909], p. 266-70) ainda parece a melhor: os jejuns públicos
eram proclamados pelo soar de trombetas. Nesses momentos, eram feitas, nas
ruas, orações para que chovesse (cf. v. 5) e era amplamente difundido o pensamento
de que dar esmola garantia a eficácia dos jejuns e das orações (e.g., b Sanhedrin
35a; P. Tannith 2.6; Levítico R 34.14). Mas essas ocasiões eram uma oportunidade
de ouro para a ostentação.
Lachs objeta que essa interpretação transforma os doadores em pretensiosos,
mas não em hipócritas. No grego antigo, hypokritês (“hipócrita”) era ator, mas, no
século I, o termo passou a ser usado para as pessoas que desempenhavam papéis e
viam o mundo como seu palco. O que Lachs omite é que há diferentes tipos de
hipocrisia. Em um deles, o hipócrita finge ser bom, mas, na verdade, é mau e sabe
que está enganando (e.g., 22.15-18). Em outro, o hipócrita é arrebatado pelos
próprios atos e engana a si mesmo. Esses piedosos hipócritas (como em 7.1-5),
embora inconsciente do próprio engano, não enganam a maior parte dos especta
dores; e esse pode ser o sentido aqui. Um terceiro tipo de hipócrita engana-se pensando
que está agindo pelo melhor interesse de Deus e do homem e também engana os
espectadores. E improvável que os necessitados reclamem quando recebem grandes
203 Mateus 6.5-6
dádivas, e sua gratidão pode lisonjear e, assim, alimentar a autoilusão do doador (cf.
D. A. Spieler, “Hypocrisy: An Exploration of a Third Type” [“Hipocrisia: exame de
um terceiro tipo”], Andrews University Seminary Studies 13 [1975], p. 273-79).
Talvez seja melhor identificar a hipocrisia em 6.2 com esse terceiro tipo.
A grande fraqueza dos fariseus era que amavam o louvor dos homens mais
que o de Deus (cf. Jo 5.44; 12.43). Os que doam com essa atitude recebem sua
recompensa plena (essa é a força de apechousin; cf. Deiss LAE, p. 110-11). Eles
recebem o aplauso do homem, e isso é tudo que recebem (cf. SI 17.14).
3,4 A forma de evitar hipocrisia não é parar de doar, mas fazer isso tão em
segredo que mal sabemos o que doamos. Os discípulos de Jesus devem, eles mesmos,
entregar-se tanto a Deus (cf. 2Co 8.5) que a doação deles é estimulada pela
obediência a Deus e pela compaixão pelos homens. Então, o Pai deles, que vê o
que é feito em segredo (Hb 4.13), os recompensará. Aqui e nos versículos 6 e 18,
o verbo “recompensar” (apodidomai), tendo Deus como sujeito, é diferente do
usado no versículo 2 . Bonnard observa, com acerto, que o verbo tem um sentido
de “retribuição”, e isso é compatível com “recompensar” (veja comentário sobre
5.12). Aqui e nos versículos 6 e 18, “abertamente” (KJV) é um polimento poste
rior destinado a completar o paralelismo antitético com “secretamente”, ou “em
segredo”. Jesus não discute o local nem a natureza da recompensa, mas não nos
afastamos da evidência do Novo Testamento se entendermos que ela está “em
ambos no tempo e na eternidade, no caráter e na felicidade” (Broadus).
2) O ração (6.5-15)
5 Mais uma vez, Jesus assume que seus discípulos oram, mas ele proíbe a
oração de hipócritas (veja comentário sobre v. 2). A oração tinha lugar de destaque
na vida judaica e levou a incontáveis decisões rabínicas (cf. M. Berakoth). Na adoração
da sinagoga, podia ser solicitado a alguém da congregação que orasse publicamente,
permanecendo de pé na frente da arca. E, em determinadas ocasiões, as orações
podiam ser oferecidas nas ruas (M Taanith 2.1,2; veja comentário sobre v. 2). Mas o
local em que a oração era feita não era o fator crítico. Tampouco, a postura “de pé”,
em si mesma, é relevante. Na Bíblia, as pessoas oram prostradas (Nm 16.22; Js
5.14; Dn 8.17; M t 26.39; Ap 11.16), de joelhos (2Cr 6.13; Dn 6.10; Lc 22.41;
At 7.60; 9.40; 20.36; 21.5), sentadas (2Sm 7.18) e de pé (ISm 1.26; M c 11.25;
Lc 18.11,13). Mais uma vez, o motivo é que é crucial: “serem vistos pelos outros”.
E, de novo, a recompensa é a mesma (cf. v. 2 e v. 5).
6 Se Jesus estava proibindo toda oração pública, então a igreja primitiva
claramente não o entendeu (e.g., 18.19,20; At 1.24; 3.1; 4.24-30). A antítese
público versus privado é um bom teste do motivo de alguém para orar; o indivíduo
Mateus 6.7-8 204
que ora mais em público que em particular revela que está menos interessado na
aprovação de Deus que no louvor humano. A preocupação dele não é a piedade,
mas a reputação de piedoso. E muito melhor lidar de forma radical com essa
hipocrisia (cf. 5.29,30) e orar em um “quarto” particular; a palavra tameion pode
se referir a celeiro, armazém (Lc 12.24), alguns outros cômodos internos (Mt
12.26; 24.26; Lc 12.3,24) ou, até mesmo, um quarto (Is 26.20; LXX, passagem
com a qual esse versículo tem diversos elementos em comum; cf. também 2Rs
4.33). O Pai, que vê em segredo, recompensará o discípulo que ora em segredo
(veja comentário sobre v. 4).
Notas
5 UBS e Nestle seguem a leitura múltipla, Nestle-Kilpatrick, a singular. A primeira leitura é
marginalmente mais provável com base em fundamentos externos, e muitos argumentam
que a adulteração para o singular ocorreu por causa da assimilação do singular nos
versículos 4 e 6. Todavia, os copistas também podem ter notado o padrão recorrente de
mudança do plural para o singular nesses três versículos (v. 1—w. 2-4; v. 16—w. 17,18).
Veja comentário sobre 5.23.
O uso do futuro ouk ecseoGe (ouk esesthe, “não sejam”) com força de imperativo, em geral,
reflete linguagem legal do Antigo Testamento (BDF, par. 362). Mas aqui e em 20.26
encontramos palavras atribuídas a Jesus sem precedente claro do Antigo Testamento
(Zerwick, par. 443).
Sobre a expressão idiomática 4)1X00011» [...] Trpoaeúxea0ai (philousin [...]proseuchesthai
“eles gostam de [...] ora[r]”, cf. Turner, Syntax [Sintaxe], p. 226.
7,8 Mateus 6.7-15 desvia-se dos três principais atos da piedade judaica. Contudo,
o conteúdo desses versículos, que é a oração, com certeza, é relevante para o segundo
desses dois. A oração é central para a vida do cristão. Por isso, Jesus fornece mais
advertências e exemplo positivo.
Muitos argumentam que enquanto os versículos 5 e 6 advertem contra as práticas
de oração dos judeus, os versículos 7 e 8 alertam contra as práticas de oração dos
gentios (pagãos; veja comentário sobre 5.47), em parte, porque o paralelo em
Lucas 11.2 (MS D) traz “o resto dos homens”. Mas a distinção não é tão contundente
e enxuta. Todo grupo religioso acolhe alguns que fazem orações repetitivas. O
mesmo acontecia com os judeus da época de Jesus. Ele, Jesus, rotulou esse tipo de
oração — até mesmo a de seu próprio povo — como pagã! “Pagãos” (C f lRs
18.26) não é tanto o rótulo, mas funciona como o exemplo negativo de todos que
fazem orações repetitivas.
O verbo battalogeô (“repetir palavras sem sentido”) é muito raro à parte dos
escritos que dependem do Novo Testamento (BAGD, p. 137b). Ele pode se derivar
do aramaico battal (“indolente”, “inútil”), ou de alguma outra palavra semítica;
ou pode ser onomatopoético: se esse for o caso, “sempre repetindo a mesma coisa”
205 Mateus 6.9-13 ,
(NVI) ou “vãs repetições” (ARA) é um excelente equivalente. Jesus não está condenan
do a oração nem está condenando o dar esmola (v. 2) ou o jejum (v. 16). Tampouco
está proibindo toda oração longa ou toda repetição. Ele mesmo fazia orações longas
(Lc6.12), repetia-se na oração (Mt 26.44; diferente de Eclo 7.14!) e contava parábolas
para mostrar a seus discípulos que “eles deviam orar sempre e nunca desanimar” (Lc
18.1). O ponto de Jesus é que seus discípulos deviam evitar as orações sem sentido
e repetitivas oferecidas sob o conceito errôneo de que a mera extensão tornaria a
oração eficaz. Esse balbucio sem reflexão também pode ocorrer em orações litúrgicas
e extemporâneas. Em essência, isso é totalmente pagão, pois, supostamente, os deuses
pagãos prosperam nas fórmulas de encantamento e na repetição. Mas o Deus Pai
pessoal a quem os cristãos oram não requer informação sobre nossas necessidades (v.
8). “Da mesma maneira que o pai conhece as necessidades de sua família e, ainda
assim, ensina-os a pedir em segredo e em confiança, também Deus trata desse modo
seus filhos” (Hill, Matthew [Mateus\).
c) Modelo de oração (6.9-13)
9 “Vocês, orem assim:
O “Pai Nosso”, como essa oração é chamada comumente, não é tanto a oração
que Jesus mesmo fazia (Jo 17 é exatamente isso) como o modelo que forneceu para
seus discípulos. Boa parte da literatura foca a questão complexa da relação entre
6.9-13 e Lucas 11.2-4. As versões bíblicas mais recentes revelam as muitas diferenças.
A KJV não mostra as diferenças tão claramente porque preserva as muitas assimilações
de Mateus nos M SS tardios de Lucas (cf. Metzger, Textual Commentary [Comentário
textual], p. 154-56). Várias teorias tentam explicar as diferenças.
1. Anteriormente, alguns argumentavam que a forma de Mateus é a original, e
a de Lucas uma versão simplificada dela. Essa percepção já não é mais popular em
grande parte por causa da dificuldade de acreditar que Lucas, que estava muitíssimo
interessado na vida de oração de Jesus, omitiria palavras e orações de uma de suas
orações se estas já estivessem em uma fonte.
2. Outros argumentam firmemente que o relato de Lucas é original e que
Mateus acrescentou a esse relato de acordo com sua própria teologia e hábito
linguístico (como em Jeremias, Prayers [Orações], p. 85ss., e Hill). Eis diversos
motivos para essa teoria.
a) Todo conteúdo de Lucas é encontrado em Mateus 6.9-13. Contudo, esse
fato poderia sustentar condensação feita por Lucas tão facilmente quanto a expansão
feita por Mateus. Mais importante, as teorias de mera condensação-expansão não
Mateus 6.9-13 206
explicam as diferenças linguísticas (e.g., tempo verbal nas quatro petições, vocabulário
e tempo verbal na quinta petição); e a teoria fica mais enfraquecida quando se
argumenta (e.g., por Hill, Matthew [Mateus]) que, na quarta petição, as prioridades
estão revertidas e que provavelmente a forma de Mateus é mais original que a de
Lucas.
b) A formulação mais rítmica e litúrgica de Mateus pode refletir o desejo de
construir, para os cristãos judeus, um equivalente eclesiástico da principal oração
da sinagoga, as Dezoito Bênçãos (Davies, Setting [Cenário], p. 310ss.), à qual o Pai
Nosso corresponde estrutural e formalmente. Mas essas correspondências foram
muitíssimo exageradas. Elas não são mais próximas que as encontradas nas
excelentes orações extemporâneas feitas toda noite de quarta-feira nas igrejas
evangélicas (a respeito das diferenças, cf. Bornkamm, Jesus, p. 136 s.). Além disso,
Jesus estava muito distante da inovação por ela mesma. Por que ele não deveria se
expressar nas formas correntes de piedade?
c) Hill (Matthew [Mateus]) argumenta que a introdução mateana (v. 9) sugere
que a oração é uma forma litúrgica padronizada. Em vez disso, o texto diz: “Vocês,
orem assim [houtôs]”, não: “Isso é o que devem orar” . A ênfase está no paradigma,
ou modelo, não na forma litúrgica.
d) Hill (Matthew [Mateus]) também argumenta que o enfático “vocês” (v. 9)
“distingue a nova comunidade cristã da sinagoga (e do uso gentio), cuja piedade
está sendo contrastada com a adoração cristã no contexto circunvizinho”. Todavia,
isso não só é desnecessariamente anacrônico, mas também ignora a constante ênfase
em “vocês” designando os discípulos de Jesus como a comunidade messiânica
exclusiva da época de Jesus (veja comentário sobre 6.2).
3. Ernst Lohmeyer ( The Lord’s Prayer [O Pai Nosso] [London: Collins, 1965],
p. 293) argumenta que as duas orações não têm origem na mesma fonte (Q?), mas
de duas tradições separadas. Em Mateus, a oração reflete a tradição litúrgica da
comunidade cristã galileia e enfatiza um determinado resultado escatológico, ao
passo que em Lucas a oração reflete a tradição litúrgica da igreja de Jerusalém e foca
mais na vida diária. Ele recusa-se a ser afastado do que permanece por trás dessas
duas tradições. As especulações geográficas de Lohmeyer não são convincentes, mas
sua ênfase em duas tradições distintas do Pai Nosso merece exame cuidadoso. A
evidência do Didaquê e a tendência demonstrável das igrejas locais de se verem
como sinagogas cristãs (e.g., nas cartas de Inácio) e de adotar alguns padrões litúrgicos
combinados da sinagoga sugerem que o Pai Nosso era usado na adoração coletiva
desde bem do início da igreja. Se (e esse é um grande “se”) essas liturgias da igreja
remontam à época em que Mateus e Lucas foram escritos, parece improvável que os
evangelistas desconsiderariam os hábitos litúrgicos de sua própria comunidade, a
não ser por motivos históricos ou teológicos avassaladores (e.g., correção de heresia
na liturgia aceita). Mas nada disso está evidente. Isso reforça a teoria de duas tradições
litúrgicas distintas. Por sua vez, se os padrões litúrgicos fixados ainda não incluíam
nenhuma forma do Pai Nosso na época em que os evangelistas estavam escrevendo,
não é fácil de explicar as diferenças entre os dois com uma fonte em comum.
4. Essas complexidades geram diversas teorias intermediárias. Para mencionar
apenas uma, Marshall (Luke [Lucas], p. 455) sugere que Lucas extraiu sua forma
207 Mateus 6.9-13
Senhor ao mesmo tempo em que nos prepara para o versículo 10b. A fórmula
toda está menos preocupada com o protocolo apropriado para abordar uma
divindade que com a verdade sobre quem ele é, em estabelecer no cristão a correta
estrutura de mente (Stott, p. 146).
O “nome” de Deus é um reflexo de quem ele é (cf. D N TT, 2:648ss.). O
“nome” de Deus é Deus mesmo como ele é e como se revelou, assim, seu nome já
é santo. Pensa-se, muitas vezes, que a santidade como “separação” é menos um
atributo que o que ele é. A santidade tem que ver com a própria natureza divina
de Deus. Portanto, orar para que o “nome” de Deus seja “santificado” (a forma
verbal de “santidade” recorrente em Mateus apenas em 23.17,19 [NVI; “santifica”])
não é o mesmo que orar para que Deus se torne santo, mas para que ele seja
tratado como santo (cf. Êx 20.8; Lv 19.2,32; Ez 36.23; IPe 1.15), que o nome
dele não seja desprezado (Ml 1.6) por meio dos pensamentos e da conduta dos
que foram criados à imagem dele.
10 Da mesma forma que Deus é eternamente santo, também reina eternamente
em absoluta soberania. Contudo, é apropriado não só orar: “Santificado seja o teu
nome”, mas também: “Venha o teu Reino”. Conforme vimos (veja comentário
sobre 3.2; 4.17, 23), o “Reino”, ou “reinado”, pode referir-se ao aspecto da soberania
de Deus sob o qual há vida. Esse Reino está irrompendo com o ministério de Cristo,
mas não será consumado até o fim da era (28.20). Portanto, orar: “Venha o teu
Reino”, é orar simultaneamente para que o governo real e salvador seja estendido
agora às pessoas que se curvam a ele em submissão e já experimentam a bênção
escatológica da salvação, além de clamar pela consumação do reino (cf. IC o 16.22;
Ap 11.17; 22.20). Judeus piedosos esperavam pelo reino (Mc 15.43), “a consolação
de Israel” (Lc 2.25). Eles recitavam: “Qaddish” (“santificação”), uma antiga oração
aramaica, no final de cada culto da sinagoga. Essa oração em sua forma mais
antiga existente diz: “Exaltado e santificado seja vosso grande nome no mundo que
criou de acordo com sua vontade. Que ele deixe seu reino governar logo a vida de toda
a casa de Israel, durante a vida desta e nos dias dela. E a isso, dizemos: amém”
(Jeremias, Prayers [Orações], p. 98). Mas os judeus aguardam a consumação do reino,
ao passo que os leitores do evangelho de Mateus, enquanto aguardam a consumação
do reino, percebem que o reino já irrompeu e oram por sua extensibilidade e também
por sua manifestação irrestrita.
Orar para que a vontade de Deus, que é “boa, agradável e perfeita” (Rm
12 .2), seja feita sobre a terra como no céu é usar linguagem abrangente o bastante
para abraçar três pedidos.
1. O primeiro pedido é que a vontade de Deus seja feita agora na terra como
é agora realizada no céu. A palavra thelêma (“vontade”) inclui as justas exigências
de Deus (7 .2 1 ; 12.50; cf. SI 40.8) e sua determinação em realizar determinados
eventos na história da salvação (18.14; 26.42; cf. At 21.14). Assim, essa vontade
ser “feita” inclui obediência moral e fazer acontecer determinados eventos, como
a cruz. Essa oração corresponde a pedir a extensibilidade neste momento do reino
messiânico.
2. O segundo pedido é que, em última instância, a vontade de Deus seja
totalmente realizada na terra da mesma forma que, agora, é realizada no céu.
Wlateus 6.9-13 210
“Vontade” tem a mesma gama de sentidos que antes, e essa oração corresponde a
pedir pela consumação do reino messiânico.
3. O terceiro pedido é que, no fim, a vontade de Deus seja feita na terra da
mesma maneira que é agora realizada no céu. No reino consumado não será necessário
discutir justiça superior (5.20-48) como antitético para cobiça, ódio, tapa na face
de retaliação, divórcio e coisas semelhantes, pois, nessa época, a vontade de Deus,
construída agora como suas exigências por justiça, será feita como é feita agora no
céu: livre, aberta, espontaneamente e sem necessidade de contrapô-la contra o
mal (Carson, Sermon on the Mount [Sermão do monté\, p. 66s.).
Essas três primeiras petições — embora foquem o nome de Deus, o reino e a
vontade de Deus — são, todavia, orações para que ele possa agir de tal maneira que
seu povo santificará seu nome, submeter-se-á ao seu reino e a sua vontade. Por isso,
é impossível fazer essa oração com sinceridade sem comprometer-se humildemente
nesse curso de ação.
11 As últimas petições pedem explicitamente coisas para nós mesmo. A primeira
é “pão”, termo usado para todo alimento (cf. Pv 30.8; Mc 3.20; At 6 .1; 2Ts 3.12; Tg
2.15). Muitos pais primitivos achavam inapropriado falar sobre alimento físico aqui
e interpretavam “pão” como uma referência à ceia ou à Palavra do Senhor. Isso, em
parte, depende da tradução em latim feita por Jerônimo em que traduziu epiousios
(“cada dia”; NVI) por superstantialem: dê-nos hoje nosso pão “supersubstancial” —
tradução que, em parte, depende de influência de Mário Vitorino (cf. F. F. Bruce,
“The Gospel Text of Marius Victorinus” [“O texto do evangelho de Mário Vitorino”],
em Best e Wilson, p. 70). Não há justificação linguística para essa tradução. O pão
é alimento de verdade e ainda pode sugerir tudo que precisamos no reino físico
(Lutero).
Isso não quer dizer que epiousios (“cada dia”) seja um termo fácil de traduzir.
O termo aparece apenas aqui e na oração de Lucas (11.3); e, nas duas possíveis
referências extrabíblicas que poderiam sustentar a tradução por “cada dia”, foram
lançadas graves dúvidas por B. M. Metzger (“How Many Times èiTLOÚoLOç Occur
Outside the Lords Prayer?” [Quantas vezes éiTLoúaioç ocorre fora do Pai Nosso?”],
Exp 69 [1957-58] p. 52-54). P. Grelot tentou recentemente sustentar a mesma
tradução (“cada dia”) reconstruindo um original aramaico (“La quatrième demande
du ‘Pater’ et son arrièreplan sémitique” [“A quarta aplicação de ‘Pater’ e seu pano
de fundo semítico”], N T S 25 [1978-79], p. 299-314). Todavia, o artigo dele lida
de forma inadequada com o texto grego e são possíveis outras reconstruções
aramaicas (e.g., Black, Aramaic Approach [.Abordagem aram aica\,p. 203-7).
A oração é para nossas necessidades, não para nossa ganância. E para um dia de
cada vez (“hoje”), refletindo o estilo de vida precário de muitos trabalhadores do
século I que recebiam por dia e para os quais alguns dias de doença podiam representar
uma tragédia. Muitos sugerem uma derivação de epi tên ousan [viz., hêmeran\ (“para
hoje”) ou hê epiousa hêmera (“para o dia seguinte”) referindo-se ao mesmo dia e à
noite do dia seguinte. É quase certeza que esse sentido esteja correto; mas ele é
mais bem sustentado pela derivação da palavra do particípio feminino epiousa, já
bem estabelecida, com o sentido de “imediatamente seguinte” na época em que o
211 Mateus 6.9-13
em Romanos 4.4, quanto dizer que sempre tem o sentido de “dívida”, exceto em
Mateus 6.12.
Mais importante, a palavra aramaica hôbã (“débito”), com frequência, é usada
(e.g., nos Targums) com o sentido de “pecado” ou “transgressão”. Deiss BS (p.
225) comenta uma circunstância do verbo cognato hamartian opheilô (lit. “tenho
pecado”). E provável que Mateus tenha fornecido uma tradução literal do aramaico
mais comumente usado por Jesus na pregação; até mesmo Lucas (11.4) usa o
particípio cognato na segunda linha, panti opheilonti hêmin (“todos os que nos
ofendem”; N T LH ). Assim, não há motivo para entender “dívidas” com algum
outro sentido que não “pecados”, aqui concebido como algo devido a Deus (quer
pecados de comissão quer pecados de omissão).
Alguns consideram que o sentido da segunda oração é que nosso perdão é o
verdadeiro motivo do perdão de Deus, ou seja, que podemos merecer o perdão de
Deus por nós mesmos. O problema, com frequência, é julgado mais sério em
Mateus que em Lucas, porque o último traz o presente “perdoamos”, e o primeiro
traz o aorístico (não perfeito, como muitos comentaristas presumem) aphêkamen
(“perdoamos”). Muitos seguem a sugestão de Jeremias (Prayers [Orações], p. 92-
93) que diz que Mateus traduziu de forma deselegante um perfectum praesens
(“presente perfeito”) aramaico; ele traduz a oração: “Assim como perdoamos aos
nossos devedores”.
A verdadeira solução é mais bem exposta por C. F. D. Moule ('“ [...] As we
forgive [...]’: a Note on the Distinction between Deserts and Capacity in the
Understanding o f Forgiveness” Assim como perdoamos [...]’: uma nota
de distinção entre desertar e capacidade na compreensão do perdão”], Donum
Gentilicium, ed. E. Bammel e outros [Oxford: Clarendon, 1978], p. 68-77) que,
além de detalhar a relevância mais importante da literatura judaica, insiste com
acerto em distinguir “entre, de um lado, merecer, ou alcançar, perdão e, de outro
lado, adotar uma atitude que torna o perdão possível — ou seja, a distinção entre
desertar e ter capacidade. [...] O verdadeiro arrependimento, conforme contrastado
com o mero remorso em relação a si mesmo, com certeza, é uma sine qua non para
receber perdão — é uma condição indispensável” (p. 71-72). “Uma vez que nossos
olhos foram abertos para a enormidade de nossa ofensa contra Deus, em comparação
com isso, as ofensas que os outros nos fizeram são extremamente frívolas. Se, por
sua vez, tivermos uma percepção exagerada das ofensas cometidas pelos outros,
isso prova que minimizamos as ofensas que cometemos” (Stott, p. 149-50; veja
comentário sobre 5.5,7; 18.23-35).
13 A palavrapeirasmos (“tentações”) e seu substantivo cognato foram raramente
usados, se é que o foram alguma vez, no Novo Testamento com o significado de
“tentação” no sentido de “induzir ao pecado” (quer a partir de cobiça interior quer
de circunstâncias exteriores), mas, sim, ao contrário, como “teste” (cf. também
comentário sobre 4.1-12). Contudo, testar pode ter vários propósitos (e.g.,
refinamento, apuração da força de caráter, instigação ao pecado) e resultados
diversos (maior pureza, autoconfiança, crescimento em fé, pecado); a palavra,
como resultado disso, pode resvalar para um sentido totalmente negativo de
213 Mateus 6.9-13
16 0 jejum, sob a lei mosaica, era ordenado apenas no Dia da Expiação (Lv
16.29-31; 23.27-32; Nm 29.7), mas, durante o exílio, foi instituído o jejum regular
de rememoração (Zc 7.3-5; 8.19). Além desses jejuns nacionais, o Antigo Testa
mento e o Novo Testamento descrevem os jejuns pessoais ou grupais com vários
propósitos, em especial para indicar e incentivar a humilhação de si mesmo diante
de Deus, com frequência, ligada à confissão dos pecados (e.g., Ne 9.1,2; SI 35.13;
Is 58.3,5; Dn 9.2-20; 10.2,3; Jn 3.5; At 9.9) ou à apresentação de alguma petição
especial diante do Senhor, às vezes, oriunda da angústia, do perigo ou do desespero
(Êx 24.18; Jz 20.26; 2Sm 1.12; 2Cr 20.3; Ed 8.21-23; Et 4.16; M t 4.1,2; At
13.1-3; 14.23). O jejum pode pertencer ao reino da autodisciplina cristã normal
(IC o 9-24-27; cf. Fp 3.19; IPe 4.3), mas o jejum, já no Antigo Testamento, é
amargamente criticado quando é apenas formal e muitíssimo hipócrita (Is 58.3-
7; Jr 14.12; Zc 7.5,6) — quando, por exemplo, os homens jejuavam, mas não
compartilhavam seu alimento com o necessitado (Is 58.1-7).
Na época de Jesus, os fariseus jejuavam duas vezes por semana (Lc 18.12; cf.
SBK, 2:242ss.), provavelmente às segundas-feiras e às quintas-feiras (M Taanith
1.4-7). Algumas pessoas devotas, como Ana, jejuavam com frequência (Lc 2.37).
Mas esses jejuns voluntários forneciam oportunidades maravilhosas para a demonstra
ção de religiosidade e para a conquista da reputação de piedoso. O indivíduo podia
adotar um ar “triste” (ou “entristecido[...]”, Lc 24.7, a única outra passagem do
Novo Testamento em que a palavra skythrôpos é usada) e desfigurado, talvez por não
se lavar ou fazer a barba, jogando cinzas sobre a cabeça, que representa profunda
contrição ou autoabnegaçao, ou omitindo o uso normal de óleo a fim de demonstrar
profunda angústia (cf. 2Sm 14.2; Dn 10.3). O ponto é que não havia contrição
genuína, mas que esses hipócritas estavam chamando atenção para si mesmos de
propósito. Eles queriam o aplauso dos homens e o conseguiam. E isso é tudo que
conseguiam.
Mateus 6.16-18 216
17,18 Contudo, Jesus, longe de banir o jejum, assume que seus discípulos
jejuarão, da mesma maneira que assume que eles darão esmola e orarão (w. 3 ,6).
Seus discípulos não podem jejuar no momento, pois o noivo messiânico está com
eles, e o momento é para alegria (9.14-17). Mas tempo virá em que eles jejuarão
(9.15). (Observe de passagem, aqui, que Jesus assume a continuação da existência
de seus discípulos após sua partida.) O que ele condena é a ostentação no jejum.
Além disso, ele proíbe qualquer sinal de que se iniciou um jejum, porque o coração
humano é tão confuso em seus motivos que o desejo de buscar a Deus será enfraque
cido pelo desejo do aplauso do homem, corrompendo, assim, o jejum.
Lavar-se e ungir-se com óleo (v. 17) eram apenas partes normais da higiene
pessoal. Aqui, o óleo não simboliza uma alegria extravagante, mas o cuidado nor
mal com o corpo (cf. Rt 3.3; 2Sm 12.20; SI 23.5; 104.15; 133.2; Ec 9.8; Lc 7.46;
cf. D TT, 1:120). O ponto do versículo 18 não é chamar a atenção para si mesmo,
quer pela aparência triste quer pela alegria extravagante. Jesus deseja discrição,
não engano. E o Pai, que vê em segredo, recompensará (veja comentário sobre v.
4).
Os três principais atos de piedade judaica (w. 1-18) são apenas exemplos de
muitas práticas suscetíveis de hipocrisia religiosa. N o início do século II, o
documento cristão Didaquê, embora polemize contra os “jejuns” às segundas-
feiras e às quintas-feiras “dos hipócritas”, prescreve que os cristãos jejuem às quartas-
feiras e às sextas-feiras (8.1). Os copistas cristãos acrescentaram comentários sobre
jejuns em diversos pontos do Novo Testamento (Mt 17.21; Mc 9.29; At 10.30;
IC o 7.5). A hipocrisia não está reservada aos fariseus. A solução não é abolir o
jejum (cf. comentário de Alexander de que a mortificação da carne “pode ser mais
bem alcançada pela temperança habitual que pela abstinência ocasional”), mas
instituí-lo em uma estrutura bíblica (referências sobre v. 16) e que anseie sinceramente
pela bênção de Deus. Pois se a forma dos versículos 1-18 é negativa, o ponto é
positivo — viz., buscar primeiro o reino e a justiça de Deus (cf. v. 33).
5. Perspectivas do reino (6.19-34)
Muitos argumentam que esses versículos são compostos de quatro blocos de
material que originalmente tinham cenários independentes: (1) Mateus 6.19-21
= Lucas 12.33,34; (2) Mateus 6.22,23 = Lucas 11.34-36; (3) Mateus 6.24 =
Lucas 16.13; (4) Mateus 6.25-34 = Lucas 12.22-31. Mas o primeiro par é muito
diferente e deve ser tratado como tradições de ditos separados; o terceiro par é
muito próximo (apenas uma palavra de diferença), e tanto Mateus como Lucas o
designam para o mesmo sermão; o segundo e o quarto pares são bem próximos,
mas a exegese de Lucas sugere que seu cenário era tópico. O contexto que Mateus
estabelece deve ser aceito pelo valor que apresenta. Com certeza, o fluxo é coerente:
Jesus, depois de denunciar a piedade religiosa que é pouco mais que ostentação,
adverte contra os pecados opostos de ganância, materialismo e preocupação que
têm origem em prioridades mal dirigidas e mundanas. Em vez disso, ele exige
lealdade inabalável ao valores do reino (w. 19-24) e confiança firme (w. 25-34).
217 Mateus 6.19-21
1 ) T e so u r o ( 6 .1 9 - 2 1 )
19 "Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os
ladrões arrombam e furtam. 20 Mas acumulem para vocês tesouros nos céus, onde a traça e a
ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. 21 Pois onde estiver o seu
tesouro, aí também estará o seu coração.”
20,21 Por contraste, os tesouros do céu estão para sempre isentos da deterioração
e dos roubos (v. 20; cf. Lc 12.33). As palavras “tesouros nos céus” remontam à
literatura judaica (M Peah 1.1; T Levi 13.5; SI Sal 9.9). Aqui, o termo “tesouros”
refere-se a tudo que é bom e de relevância eterna que vem do que é feito na terra.
Fazer obras justas, sofrer por causa de Cristo, perdoar uns aos outros — tudo isso
tem promessa de “recompensa” (veja comentário sobre 5.12; cf. 5.30,46; 6.6,15;
2Co 4.17). Outras obras de bondade também acumulam tesouros nos céus (Mt
10.42; 25.40), incluindo disposição para compartilhar (lTm 6.13-19).
Nos melhores MSS, o aforismo final (v. 21) reverte para a segunda pessoa do
singular (cf. w. 2,6,17; veja comentário sobre 5.23). O ponto é que as coisas mais
altamente entesouradas ocupam o “coração”, o centro da personalidade, abraçando
mente, emoções e vontade (cf. D N T T 2:180-84); e, assim, o tesouro mais acalentado
de forma sutil, mas infalível, controla toda a direção e valores da pessoa. “Se a
honra é considerada o mais alto bem, então a ambição assume o controle total do
homem; se for o dinheiro, então, logo em seguida, a cobiça toma o comando do
reino; se for o prazer, então os homens, com certeza, degeneram em alegre satisfação
dos desejos” (Calvino). De modo oposto, os que estabelecem sua mente nas coisas
do alto (Cl 3.1,2), determinando levar a vida sob as normas do reino, descobrem,
por fim, que suas obras os seguem (Ap 14.13).
2) Luz (6.22,23)
22 “Os olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz.
23 Mas se os seus olhos forem maus, todo o seu corpo será cheio de trevas. Portanto, se a luz que
está dentro de você são trevas, que tremendas trevas são!”
22,23 “Os olhos são a candeia do corpo” (v. 22) no sentido de que através
dos olhos, o corpo encontra seu caminho. O olho deixa entrar a luz, e, assim, o
corpo todo é iluminado. Mas olhos maus não deixam entrar a luz, e o corpo fica
nas trevas (v. 23). A “luz que está dentro de você” parece ironia; os que têm olhos
maus e que caminham nas trevas pensam que têm luz, mas, na verdade, essa luz é
trevas. As trevas são ainda mais terríveis, pois não se reconhecem pelo que são (cf.
Jo 9.41).
Essa descrição totalmente honesta tem implicações metafóricas. O “olho”
pode equivaler ao “coração”. O coração voltado para Deus para guardar seus
mandamentos (SI 119.10) equivale ao olho fixo na lei de Deus (SI 119.18,149; cf.
119.36,37). De forma semelhante, Jesus move do “coração” (v. 21) para os “olhos”
(w. 22,23). Além disso, o texto move-se entre a descrição física e a metáfora por
meio das palavras escolhidas para “bons” e “maus”. Haplous (“bom”; v. 22) e seus
cognatos podem ter o sentido de “único” (vs. diplous, “duplo”; lTm 5.17) no
sentido de “lealdade única, indivisa” (cf. lC r 29.17) ou nas formas cognatas
“generoso”, “liberal” (cf. Rm 12.8; T g 1.5). D a mesma forma, ponêros (“mau”, v.
23) pode ter o sentido de “maligno” (e.g., Rm 12.9) ou na expressão idiomática
judaica “o olho mau” pode ter sentido de avareza e egoísmo (cf. Pv 28.22). Portanto,
Jesus está dizendo: (1) ou que o homem que “divide seu interesse e tenta focar
tanto Deus como as posses [...] não tem visão clara e viverá sem orientação nem
219 Mateus 6.24-25
24 “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e
desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.”
24 “Agora, Jesus explica que por trás da escolha entre dois tesouros (que acumu
lamos) e duas visões (em que fixamos nossos olhos) está a ainda mais básica escolha
entre dois mestres (a quem serviremos)” (Stott, p. 158). “Dinheiro” é a tradução da
palavra grega mamõna (“M amom”), ela mesma uma transliteração da palavra
aramaica mãmônã’ (em declaração enfática; “riqueza”, “propriedade”). A raiz (mn),
tanto no hebraico quanto no aramaico, indica aquilo em que a pessoa confia; e a
conexão com dinheiro e riqueza, bem atestada na literatura judaica (e.g., Peah 1.1;
b Berakoth6\b; yíAboth 2.7; nem sempre em um sentido negativo) é dolorosamente
óbvia. Aqui, ela está personificada. Deus e Dinheiro não são retratados como empre
gadores, mas como senhores de escravos. O homem pode trabalhar para dois empre
gadores, mas uma vez que “a posse única e o trabalho em tempo integral são a essên
cia da escravidão” (Tasker), ele não pode servir a dois senhores de escravos. Ou Deus
é servido com devoção total ou não é servido de maneira alguma. As tentativas de
dividir a lealdade denunciam profundo compromisso com a idolatria, e não compro
misso parcial com o discipulado.
b. Confiança inabalável (6.25-34)
1) O p r i n c íp i o (6.25)
25 “Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber;
nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Não é a vida mais importante que a comida, e o
corpo mais importante que a roupa?”
na linguagem moderna, pois Jesus mesmo exige que pensemos até mesmo sobre
aves e flores (w. 26-30). “Não se preocupem” pode ser falsamente absolutizado,
negligenciando as limitações impostas pelo contexto e as maldições lançadas sobre o
descuido, a apatia, a indiferença, a preguiça e a autoindulgência expressas em outras
passagens (cf. Carson, Sermon on theMount [Sermão do monte], p. 82-86; Stott, p.
165-68). O ponto aqui é não se preocupar com as necessidades físicas, muito menos
com os luxos implícitos nos versículos precedentes porque essa preocupação sugere
que toda nossa existência foca essas coisas e está limitada a elas. O argumento é a
fortiori (“quanto mais”), mas não (contra Hill, Matthew [Mateus]) a minori ad
maius (“do menor para o maior”) e, sim, o reverso: se Deus concedeu-nos a vida
e o corpo, ambos reconhecidamente mais importantes que alimento e vestimenta,
ele também não nos daria esses dois últimos? Por isso, preocupar-se com essas
coisas trai a perda de fé e a perversão de compromissos mais valiosos (cf. Lc 10.41,
42; Hb 13.5,6).
Notas
25 Pelo fato de os subjuntivos t l (J)áyr|T6 r\ i í TTir]T€ (tiphagête ê tipiête, “o que você
comerá ou beberá”) estarem em discurso indireto, eles podiam ser entendidos como
subjuntivos propositais conservados na m udança do discurso (cf. os subjuntivos do v.
31).
2 ) O S EXEMPLOS ( 6 . 2 6 - 3 0 )
26 Preocupar-se com o que comer e beber equivale a não ter aprendido nada
com a criação natural. Se a ordem criada testifica “ [o] eterno poder e [a] natureza
divina” de Deus (Rm 1.20), também testifica sua providência. O ponto não é que
os discípulos não precisam trabalhar — as aves não esperam apenas que Deus jogue
alimento em seu bico — mas que eles não precisam se preocupar. Os discípulos
podem fortalecer ainda mais sua fé quando lembram que Deus, em um sentido
especial, é Pai deles (não o Pai das aves) e que eles valem muito mais que as aves (o
termo “vocês” é enfático). Aqui, o argumento é do menor para o maior.
Esse argumento pressupõe uma cosmologia bíblica sem a qual a fé não faz
sentido. Deus tem tanta soberania sobre o universo que até mesmo a alimentação
de um rouxinol está no âmbito de sua preocupação. Como ele normalmente faz
coisas de forma regular, há “leis científicas” a serem descobertas, mas o cristão com
olhos para ver descobre simultaneamente coisas sobre Deus e sua atividade (cf.
Carson, Sermon on the Mount [Sermão do monte], p. 87-90).
27 A palavra hêlikia (“vida”) também pode ser traduzida por “estatura” (cf. Lc
19.3); e pêchys (“hora”) tem o sentido de “cúbito” (cerca de cinquenta centímetros)
ou “idade” (Hb 11.11). Nenhuma combinação se encaixa com facilidade; ninguém
221 Mateus 6.28-32
28-30 “Lírios do campo” (v. 28) podem ser qualquer uma das abundantes
flores silvestres da Galileia, e essas “flores do campo” correspondem às “aves do ar”.
O ponto é pouco distinto da primeira ilustração em que as aves trabalham, mas não
se preocupam. As flores não trabalham nem tecem (cf. notas). O ponto não é que os
discípulos de Jesus podem optar pelo ócio, mas que a providência e o cuidado de
Deus são tão ricos que veste os gramados com flores silvestres que não são produtivas
nem duráveis (v. 30). Nem mesmo Salomão, o mais rico e extravagante dos monarcas
de Israel, “em todo o seu esplendor” (v. 29), não se adornava como uma dessas flores
do campo. Não é de admirar que Jesus criticasse gentilmente seus discípulos como
oligopistoi (“homens de pequena fé”; cf. 8.26; 14.31; 16.8; e o substantivo abstrato
em 17.20). A origem da ansiedade é a descrença.
Notas
28 A respeito da série de variantes, cf. Metzger ( Textual Commentary [Comentário textual],
p. 18) e a literatura que ele cita, à qual se pode acrescentar K. Brunner, “Textkritisches
zu M t 6.28: ou xainousin statt auxainousin vorgeschlagen” [“Crítica textual de M t
6.28: ouxainousin proposta, em vez de auxainousin’}, Zeitschrijijur Katholische Theologie
100 (1978), p. 251-56.
30 O k X l [ 3 o : v o ç (klibanos, “forno”) era um forno de cozinhar argila que, com frequência,
era aceso queim ando m ato em seu interior, as cinzas caíam através de um buraco, e os
bolos achatados eram distribuídos dentro e em cim a do forno. J á em Oseias 7.4, na
L X X , o termo era usado metaforicamente para se referir ao D ia do Julgam ento.
3 ) V id a d is t in t a ( 6 . 3 1 , 3 2 )
31 “Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer?’ ou ‘Que vamos beber?’ ou ‘Que vamos
vestir?’ 32 Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês
precisam delas.”
Mateus 6.33-34 222
33 Em vista dos versículos 31 e 32, esse versículo deixa claro que os discípulos
de Jesus não têm simplesmente de se abster de buscar as coisas temporais como seu
primeiro objetivo a fim de se diferençarem dos pagãos. Ao contrário, eles têm de
substituir essa busca por objetivos muito mais relevantes. Buscar primeiro o reino
(“de Deus”, em alguns M SS) é desejar acima de tudo entrar nele, submeter-se a
ele e participar da tarefa de anunciar as boas-novas do reino salvador de Deus, o
reinado messiânico já inaugurado por Jesus e viver de forma a acumular tesouros
no céu com vistas na consumação do reino. E perseguir as coisas pelas quais já se
orou nas três primeiras petições do Pai Nosso (6.9,10).
Nesse contexto, buscar a justiça de Deus não é buscar justificação (contra
Filson, McNeile). “Justiça” deve ser interpretada como nos versículos 5.6,10,20;
6.1. É buscar a vida justa em total submissão à vontade de Deus, conforme prescrito
por Jesus em todo o sermão (cf. Przybylski, p. 89-91). Essa justiça leva à perseguição
por parte de alguns (5.10), mas outros se tornarão eles mesmos discípulos e louvarão
o Pai no céu (5.16). Só esses objetivos já são dignos da submissão sincera de alguém.
Pois alguma outra preocupação que domine a mente do indivíduo é a inclinação
para inquietação pagã. “N o fim, da mesma maneira que há apenas dois tipos de
piedade, a centrada em si mesmo e a centrada em Deus, também há apenas dois
tipos de ambição: para si mesmo ou para Deus. Não há uma terceira alternativa”
(Stott, p. 172). Nessa estrutura de compromisso, os discípulos de Jesus estão seguros
de que todas as coisas necessárias lhes serão concedidas pelo Pai celestial (veja
comentário sobre 5.45; 6.9), que demonstra sua fidelidade por meio de seu cuidado
até pelas aves e sua preocupação até mesmo com os gramados.
5) A b o l iç ã o d a p r e o c u p a ç ã o ( 6 .3 4 )
“ “Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações.
Basta a cada dia o seu próprio mal.’’
LXX: Ec 7-14; 12.1; Am 3.6) por si só. Não faz sentido preocupar-se com a desdita
de amanhã, porque o dia de hoje já tem bastante coisa para ocupar nossa atenção e
porque o temido infortúnio de amanhã pode jamais vir a acontecer (cf. b Sanhedrin
100b; b Berakoth 9a). E quase como se Jesus, ciente de que seus discípulos ainda
estão inseguros e imaturos, terminasse seu argumento deixando de lado os mais
altos ideais e motivos por um momento e, em uma investida extravagante, apelasse
para o senso comum. Ao mesmo tempo, ele está ensinando implicitamente que
mesmo para seus discípulos a graça de hoje é suficiente só para hoje e não deve ser
desperdiçada com o amanhã. Se o amanhã trouxer novo infortúnio, haverá nova
graça para supri-lo.
6 . E q u il íb r io e p e r f e iç ã o ( 7 . 1 - 1 2 )
Muitos argumentam que esses versículos: (1) não têm conexão com o que os
precede; (2) têm pouca coesão interna; e (3) provavelmente encontram seu contexto
original em Lucas 6.37,38,41,42. Apenas a terceira afirmação é crível.
1. A falta de conectivos gregos nos versículos 1 e 7 não é inerentemente
problemática; omissões semelhantes (e.g., 6.19,24) não perturbam o fluxo do
pensamento tanto quanto indicam novo “parágrafo” ou realçam um aforismo. A
conexão com o que precede é interna. A exigência pela justiça superior do reino, em
cumprimento ao Antigo Testamento (5.17-20), trouxe à tona advertências contra a
hipocrisia (6.1-18) e a formulação das perspectivas do reino (6.19-34). Mas há
outros perigos. As exigências por perfeição podem alimentar o espírito de julgamento
(w. 1-5), enquanto as exigências para amar podem causar falta crônica de discer
nimento (v. 6).
2. Assim, a conexão interna, em parte, é estabelecida ao lidar com maus opostos.
Mas essas grandes exigências feitas aos seguidores de Jesus devem forçá-los a
reconhecer sua inadequação pessoal e, assim, levá-los a orar (w. 7-11). A regra de
ouro (v. 12) resume o corpo do sermão (5.17— 7.12).
3. E difícil de determinar a relação entre 7.1-12 e Lucas 6.37,38,41,42 (parte
do sermão registrado em Lucas). Lucas, depois das bem-aventuranças e dos ais (Lc
6.20-26), acrescenta material (6.27-30) semelhante ao de Mateus 5.38-48. A seguir,
ele acrescenta a regra de ouro (Lc 6.31), algum material semelhante ao de Mateus 5
e, depois, o paralelo de Mateus 7.1-5. Assim, ele omite todo material de Mateus 6,
embora Mateus 7.1-5 omita parte do que Lucas mantém em 6.37-42. Um deles ou
os dois evangelistas rearranjaram a ordem do material. Os dois conseguiram tão
bom sentido em seu próprio contexto que parece impossível decidir em favor de um
deles. Um dito de natureza tão aforística quanto a regra de ouro bem pode ter sido
repetido durante o curso de diversos dias de ensinamento, não há uma forma
segura de demonstrar se esse foi ou não o caso.
a. O perigo de julgar (7.1-5)
1) O p r i n c íp i o (7.1)
1 “Não julguem, para que vocês não sejam julgados.”
Mateus 7.2 224
2 “Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será
usada para medir vocês.”
3) Um e x e m p lo (7.3-5)
3 “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão, e não se dá conta da viga que está em
seu próprio olho? 4 Como você pode dizer ao seu irmão: ‘Deixe-me tirar o cisco do seu olho’, quando
há uma viga no seu? 5 Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para
tirar o cisco do olho do seu irmão.”
3-5 O karphos (“cisco”) pode ser qualquer pedacinho de matéria estranha (v.
3). E óbvio que a dokos (“viga” ou “cepo”) é uma vívida hipérbole. Jesus não diz
que é errado ajudar seu irmão (para “irmão” veja comentário sobre 5.22; Jesus
está aparentemente referindo-se à comunidade de seus discípulos) a tirar um cisco
do olho, mas que é errado a pessoa com uma “viga” no olho oferecer ajuda. Essa
é uma hipocrisia absoluta do segundo tipo (veja comentário sobre 6.2). Segundo
Samuel 12.1-12 é um exemplo impactante do Antigo Testamento (cf. também Lc
18.9). Isso não quer dizer que nessa perícope as palavras de Jesus têm o “sentido
de excluir toda condenação dos outros” (Hill, Matthew [Mateus]), pois fazer isso
exigiria nao levar a sério o versículo 5 e excluir o que diz o versículo 6. Na irmandade
dos discípulos de Jesus, a censura crítica não tem serventia. Mas quando um
irmão, com espírito manso e de autojulgamento (cf. IC o 11.31; G1 6.1), tira a
viga de seu olho, ele ainda tem a responsabilidade de ajudar seu irmão a tirar o
cisco de seu olho (cf. 18-15-20).
Notas
4 O futuro ttgõ ç épeiç (pôs ereis, lit. “com o você dirá”) é um a circunstância em que esse
tem po verbal, sob influência semítica, às vezes, é usado de form a m odal para descrever
o que poderia ser (Zerwick, par. 279). V ejaLucas 6.42: ttwç õúvaaoa Xeytiv (pôs dynasai
legein, “com o você pode dizer”).
6 Esse dito, embora tenha sido usado depois para excluir pessoas não batizadas
da eucaristia (Didaquê3.5), não é esse o objetivo dele. Ele também não está conectado
com os versículos precedentes ao lidar, agora, com pessoas que, embora devidamente
confrontadas a respeito do “cisco” em seu olho, recusam-se a lidar com o assunto,
como em 18.12-20 (como em Schlatter). O versículo, antes, adverte contra a conversa
perigosa. Os discípulos, exortados a amar seus inimigos (5.43-47) e a não julgar
(v. 1), podem falhar em considerar as sutilezas do argumento e se tornar pessoas
simplórias e sem discernimento. Esse versículo adverte contra essa possibilidade.
Os “porcos” não só são animais impuros, mas também são selvagens e maldosos,
capazes de atos selvagens contra a pessoa. Não se deve pensar nos “cães” como
animais caseiros, nas Escrituras, eles, em geral, são selvagens e associados com o que
é impuro e desprezado (e.g., ISm 17.43; 24.14; lRs 14.11; 21.19; 2Rs 8.13; Jó
30.1; Pv 26.11; Ec 9.4; Is 66.3; Mt 15.27; Fp 3.2; Ap 22.15). Os dois animais
juntos servem como um retrato do que é malévolo, impuro e abominável (cf. 2Pe
2.22). As quatro linhas do versículo 6 formam um quiasma do padrão A-B-B-A
Mateus 7.7-11 226
12 A regra de ouro não foi inventada por Jesus; ela é encontrada em muitas
formas em cenários muitíssimo distintos. Em cerca de 20 d.C., segundo se diz, o
rabi Hillel, desafiado por um gentio a resumir a lei no espaço de tempo em que este
conseguisse permanecer de pé sobre um só pé, respondeu: “Não faça aos outros o
que lhe é odioso. Essa é toda a lei; tudo o mais é comentário. Vá e aprenda isso” (b
Shabbath 31a). Aparentemente, só Jesus expressou a regra de forma positiva.
Declarada dessa maneira, com certeza, ela é mais eficaz que sua contraparte negativa,
pois fala contra pecados de omissão e também de pecados de comissão. Os bodes
da passagem 25.31-46 seriam inocentados na forma negativa da regra, mas não
sob a forma atribuída a Jesus.
O oun (“assim”) pode se referir aos versículos 7-11 (ou seja, porque Deus
concede boas dádivas, os discípulos de Jesus devem, portanto, viver de acordo
com essa regra como uma função de gratidão) ou aos versículos 1-6 (isto é, em vez
229 Mateus 7.13-14
é “apertado” — mas são usadas duas palavras distintas: stenê (“estreita”, v. 13) e
tethlimmenê (v. 14), sendo esse segundo termo cognato de thlipsis (“tribulação”), o
que quase sempre se refere à perseguição. Assim, esse texto diz que o caminho do
discipulado é “apertado”, restritivo porque é o caminho da perseguição e oposição
— importante tema de Mateus (veja comentário sobre 5.10-12,44; 10.16-39;
11.11,12; 24.4-13; cf. esp. A. J. Mattill Jr., “‘The Way o f Tribulation”’ [“‘O
caminho de tribulação’”], JB L 98 [1979], p. 531-46). Compare com Atos 14.22:
“E necessário que passemos por muitas tribulações \diapollôn thlipseôn, “por muita
perseguição”] para entrarmos no Reino de Deus”.
Todavia, os dois caminhos não são o fim em si mesmos. O caminho apertado
leva à vida, ou seja, ao reino consumado (cf. w. 21-23; evangelho de João); mas o
caminho amplo leva à apôleia (“perdição”) — “destruição definitiva não no mero
sentido da extinção da existência física, mas, antes, à imersão eterna no Hades e
ao irremediável destino da morte” (A. Opeke, T D N T , 1:396); cf. 25.34,46; Jo
17.12; Rm 9.22; Fp 1.28; 3.19; lTm 6.9; Hb 10.39; 2Pe 2.1,3; 3.16; Ap 17.8,11.
(A respeito dos números relativos [“muitos [...] poucos”], veja 22.14; Lc 13.22-
30; Ap 7.9). No reino, decisões democráticas não determinam verdade e justiça.
Haver só dois caminhos é o resultado inevitável do fato de que o que leva à vida o
faz exclusivamente por meio da revelação. Contudo, não se deve buscar a verdade
nesses assuntos apelando para a opinião da maioria (Ex 23.2) nem ela é encontrada
fazendo o que é certo aos próprios olhos (Pv 14.12; cf. Jz 21.25). Deus tem de ser
verdade, e todo homem é mentiroso (Rm 3.4).
Permanece uma importante dificuldade metafórica. Garantida a correção do
texto (cf. Metzger, TextualCommentary [Comentário textual], p. 19), temos de pensar
nos caminhos que levam à porta, de maneira que o viajante, uma vez que atravesse
a porta, chegará ao seu destino, quer da perdição quer do reino consumado? Ou a
porta é a entrada nesta vida, com os caminhos, amplo e apertado, estendendo-se
diante do peregrino? Tasker e Jeremias (TD N T, 6:922-23) adotam a primeira
alternativa, Jeremias apela para Lucas 13.23,24, passagem que menciona uma
porta, não um caminho. Ele argumenta que, originalmente, Jesus disse algo sobre
atravessar uma porta, ou portão, e que a forma de Mateus é um modo popular
hysteron-proteron (“mais tarde-mais cedo”) de dizer coisas com a verdadeira ordem
invertida (como “trovão e relâmpago”).
N ão só Lucas 13.23,24 está tão longe de ser afastada da linguagem de
Mateus 7.13,14, (até mesmo “porta”, e não “portão”) que alguém pode questionar
se as duas passagens têm origem no mesmo dito, mesmo que, em Lucas, a entrada
pela porta não seja apenas escatológica, uma vez que chegará um tempo em que a
porta será fechada e não se poderá mais entrar por ela. Isso sugere o fechamento de
uma porta que elimina outra oportunidade de entrar, embora a entrada mesmo
aconteça agora — uma forma de escatologia realizada. Esse paralelo conceituai com
Mateus mais a ordem porta-caminho não sugere que a porta marca a entrada no
reino consumado, tampouco que a porta e o caminho são umahendíadis (Ridderbos),
mas essa entrada, através da porta, no caminho apertado da perseguição começa
agora, mas termina no reino consumado na outra ponta do caminho (Grosheide,
231 Mateus 7.15-20
é uma evidência menor para inautenticidade (cf. Introdução, seção 2). A mesma
diversidade de identificações — os falsos profetas são zelotes, gnósticos, escribas,
antinomianos, antipaulinos (para uma pesquisa recente, cf. D. Hill, “False Prophets
and Charismatics: Structure and Interpretation in Matthew 7, 15-23” [“Falsos
profetas e carismáticos: estrutura e interpretação em Mateus 7.15-23”], Biblica
57 [1976], p. 327-48) — argumenta que as advertências de Jesus tinham limites
abrangentes e suscetíveis de diversas aplicações. O próprio Hill vê os fariseus do
período de 80 d.C. nos versículos 15-20 (os rabis de 80 d.C. eram chamados de
fariseus?) e carismáticos nos versículos 21-23. E. Cothenet (“Les prophètes chrétiens
dans 1’Evangile selon Saint Mathieu” [“Profetas cristãos no evangelho segundo São
Mateus”], Didier, p. 281-308) achaque, nos versículos 15-23, Jesus está condenando
os zelotes, mas que Mateus reaplica as palavras dele para condenar os antinomianos.
E Paul S. Minear, (“False Prophecy and Hypocrisy in the Gospel o f Matthew”
[“Falsa profecia e hipocrisia no evangelho de Mateus”] , Gnilka, Neues Testament,
p. 76-93) critica teorias que centram nos antinomianos e fariseus e entende que a
perícope adverte unicamente contra a hipocrisia e a falsa profecia existentes na
comunidade cristã.
Não há nada intrinsecamente improvável a respeito da noção de que Jesus
advertiu contra falsos profetas, desde que ele previu a continuação da existência
de sua recém-formada comunidade por um período sustentado. Sem dúvida, ele
tinha profundo conhecimento dos registros do Antigo Testamento de falsos profetas
anteriores (Jr 6.13-15; 8.8-12; Ez 13; 22.27; S f 3.4). Com certeza, os cristãos
primitivos enfrentaram falsos profetas (cf. v. 15) que Jesus predisse (At 20.29;
2Co 11.11-15; 2Pe 2.1-3,17-22; cf. ljo 2.18,22; 4.1-6). Em vista do cuidado de
Mateus em preservar distinções históricas (veja comentário sobre 7.13,14), há
pouco motivo para duvidar que aqui ele lide com o ensinamento do Jesus histórico.
E claro que isso pressupõe que Jesus via a si mesmo como profeta verdadeiro (cf.
21.11,46).
15 Advertências contra falsos profetas baseiam-se necessariamente na convicção
de que nem todos os profetas são genuínos, que a verdade pode ser violada, e que
os inimigos do evangelho, em geral, escondem sua hostilidade e tentam passar-se
pòr companheiros cristãos. A primeira vista, eles usam linguagem ortodoxa,
demonstram piedade bíblica e não são distinguíveis dos verdadeiros profetas (cf.
10.41). Por isso, é de vital importância saber como distinguir as ovelhas dos lobos
em pele de ovelha. Jesus não diz explicitamente quem terá discernimento para
proteger a comunidade, mas sugere que a própria comunidade, por meio de
qualquer ação, deve se proteger de alguma maneira dos lobos.
Não é declarado o dano causado por esses falsos profetas nem a espécie de falso
ensino, mas o fluxo do sermão do monte, bem como seu pano de fundo do Antigo
Testamento, sugerem que eles não conhecem o caminho apertado que leva à vida
sujeita à perseguição e, tampouco, ensinam sobre ele (w. 13,14; cf. Jr 8.11; Ez 13,
em que profetas clamam: “Paz”, quando não há paz). Os falsos profetas nunca
estiveram realmente sob a autoridade do reino (w. 21-23), e uma vez que a única
alternativa para a vida é a perdição (w. 13,14), eles põem em risco seus seguidores.
233 Mateus 7.21-23
rante seu ministério (cf. 10.1-4): ele não menciona dom posterior, como falar em
línguas.
O versículo 23 pressupõe cristologia implícita da mais alta ordem. Jesus mesmo
não só decide quem entrará no reino no último dia, mas também quem será banido
da sua presença. O fato de que ele nunca conheceu esses falsos pretendentes levanta
uma nota bíblica comum, viz., o quão próximo alguém pode chegar da realidade
espiritual enquanto não sabe nada a respeito de sua realidade fundamental (e.g,
Balaão; Judas Iscariotes; Mc 9.38,39; IC o 13.2; Hb 3.14; ljo 2.19). “Contudo,
nem todos que falam em espírito são profetas, a não ser que se comporte como o
Senhor” (Didaquê 11.8).
Pode-se fazer duas observações finais. A primeira, embora a declaração: “Nunca
os conheci” seja a mais branda das maldições rabínicas (SBK, 4:293), as palavras
usadas aqui são claramente finais e escatológicas em um contexto solene referente a
“naquele dia” e à entrada no reino. A segunda, a frase: “Afastem-se de mim vocês,
que praticam o mal”, é uma citação de Salmos 6.8 (cf. Lc 13.27). No salmo, o
sofredor, vindicado por Iavé, diz aos praticantes do mal para que se afastem. Mais
uma vez é difícil evitar a conclusão de que Jesus mesmo liga a autoridade do Rei
messiânico com a do Sofredor justo, por mais velada que seja a alusão (veja
comentário sobre 3.17).
d. Dois construtores (7.24-27)
24 “Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu
a sua casa sobre a rocha.25 Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra
aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. 26 Mas quem ouve estas minhas
palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. 27 Caiu a
chuva, transbordaram es rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi
grande a sua queda”.
24-27 O sermão de Lucas termina com a mesma nota (Lc 6.47-49). Provavel
mente, os evangelistas adaptaram a parábola para a situação de seus leitores. Os
versículos 21-23 contrastam “dizer” e “fazer”; esses versículos contrastam “ouvir” e
“fazer” (Stott, p. 208), o que não é distinto de Tiago 1.22-25;2.14-20 (cf. Ez
33.31,32). Além disso, a vontade do Pai (v. 21) torna-se definitiva no que Jesus
chama de “estas minhas palavras” (v. 24): seu ensinamento é definitivo (veja
comentário sobre 5.17-20; 28.18-20).
A luz da escolha radical dos versículos 21-23, “portanto” (v. 24), as duas posições
podem estar ligadas aos dois construtores e suas casas. No tempo bom, cada casa
parece segura. Mas a Palestina é conhecida pelas chuvas torrenciais que transformam
uádis secos em correntes caudalosas. Apenas a tempestade revela a qualidade da
obra dos dois construtores. O pensamento lembra-nos a parábola do semeador na
qual a semente plantada em solo rochoso dura apenas um curto período de tempo,
até que “surge alguma tribulação ou perseguição por causa da palavra” (13.21). A
maior tempestade é escatológica (cf. Is 28.16,17; Ez 13.10-13; cf. Pv 12.7). Mas as
palavras de Jesus sobre as duas casas não precisam ser restritas dessa forma. O ponto
é que o homem sábio (termo repetido em Mt; cf. 10.16; 24.45; 25.2,4,8,9) constrói
uma casa para resistir a tudo.
Mateus 7.28-29 236
Está claro do que consiste a sabedoria (phronimos', o termo não ocorre em Marcos
e há duas ocorrências dele em Lucas [12.42; 16.8]). A pessoa sábia representa aqueles
que praticam as palavras de Jesus; eles também constroem para que sua construção
resista a tudo. Os que fingem ter fé, que têm apenas um compromisso intelectual ou
que desfrutam de Jesus em pequenas doses são construtores insensatos. Quando as
tempestades da vida chegam, as estruturas deles não enganam ninguém, muito
menos a Deus (cf. Ez 13.10-16).
O sermão termina com o que esteve implícito do início ao fim dele — a
exigência de submissão radical ao senhorio exclusivo de Jesus, que cumpre a Lei e
os Profetas e adverte o desobediente de que a alternativa à obediência total, à
verdadeira justiça e à vida no reino é a rebelião, egocentrismo e condenação eterna.
Notas
24 O futuro passivo 'oiioiGaSipeTCU (homoiôthêsetai, lit., “se tornará como”) é mais provável
que o ativo 'o|íolqoco am óv (homoiôsô auton , lit., “de natureza similar”) não só com
fundamentos textuais, mas também por causa da possibilidade de assimilação para o
ativo em Lucas 6.47,48; 'uTTOÕeí^a) 'ujily [...] ojioloç (hypodeixô hymin [...] homoios,
“lhe mostrarei como ele é”). O tempo futuro é relevante: aquele que pratica as palavras
de Jesus será como o homem que, etc.: ou seja, no Dia do Julgamento, quando vier a
grande tempestade, ele permanecerá firme por causa de sua boa fundação. Veja
comentário sobre 13.24.
24-26 As palavras (XKoúe i (ioi) touç háyovç toÚtouç (akouei mou tous Logous toutous, “ouve
estas minhas palavras”) podem ser traduzidas por “ouve-me em relação a esses ditos”;
e Davies (Setting [Cenário], p. 94) argumenta que, “nesse sentido, o ensino ético
não está separado da vida dele que pronunciou essas palavras e com quem elas são
coerentes”. Mas o verbo (XKOÚw (akouô, “ouço”) apenas uma vez ocorre no genitivo
em Mateus e, assim, não é pronome. O enfático termo |j,ov (mou, “minhas”) é mais
bem entendido como uma forma vigorosa de identificar o ensino de Jesus com a
vontade de seu Pai (v. 21), ponto importante à luz da exegese de 5.17-20.
28,29 Essa é a primeira das cinco conclusões em tipo de fórmula que terminam
os discursos desse evangelho. Todas as cinco começam com kai egeneto (lit., “e
aconteceu”, “quando”) mais um verbo finito (7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1),
construção comum na LXX (o grego clássico preferia egeneto mais o infinitivo; cf,
Zerwick, par. 388; Beyer, p. 41-60). A única outra ocorrência em Mateus é da um
tanto distinta construção “hebraica” kai egeneto [...] kai (lit., “e aconteceu [...] e”)
mais o verbo finito que aparece uma vez (9.10). Portanto, a fórmula de Mateus é
um artifício estilístico consciente que estabelece uma guinada estrutural. (Não é
necessário adotar a teoria de paralelismo de Bacon para os cinco livros de Moisés; cf.
Introdução, seção 14.) Além disso, em cada caso, a conclusão é transicional e
prepara para a seção seguinte. Aqui (como veremos adiante) a menção à autoridade
de Jesus leva à autoridade dele em outras esferas (8.1-17). Em 11.1, a atividade de
237 Mateus 7.28-29
Jesus estabelece o cenário para a pergunta de João Batista (11.2,3). E 13.53 antecipa
a rejeição que Jesus sofrerá em sua terra natal, enquanto 19.1,2 aponta para seu
ministério na Judeia com novas multidões e controvérsias renovadas. Por fim,
26.1-5 olha para a cruz, agora, muito próxima.
As multidões — provavelmente um grupo maior que o de seus discípulos —
mais uma vez pressionando-o (veja comentário sobre 5.1,2) — estão maravilhadas
(v. 28). Por essa ser a única conclusão de um discurso que menciona o maravilhamento
das multidões, Hill (Matthew [Mateus]) sugere que Mateus está retornando a
Marcos 1.22 (Lc 4.32) como sua fonte. Isso é muito sutil: (1) um paralelo mateano
mais próximo é 13.54; (2) a perícope seguinte de Mateus (8.1-4) encontra paralelo
em Marcos em 1.40-45, muito distante para acreditarmos que Mateus “retornou
a sua fonte” em 1.22.
A palavra didaquê (“ensino”, v. 29) pode se referir ao conteúdo e ao modo
(veja também comentário sobre 3.1); e, sem dúvida, as multidões ficaram atônitas
com os dois. O maravilhamento delas não diz nada a respeito do compromisso do
coração delas. A causa do maravilhamento era a exousia (“autoridade”) de Jesus. O
termo açambarca poder e também autoridade, e o tema torna-se central (cf. 8.9;
9.6,8; 10.1; 21.23,24,27; 28.18). Jesus, em sua autoridade, difere dos “mestres da
lei” (veja comentário sobre 2.4). Muitos destes limitavam seu ensino às autoridades
que mencionavam, e grande parte do treinamento deles era centrada na memorização
das tradições recebidas. Eles falavam por meio da autoridade de outros; Jesus
falava com sua própria autoridade. Todavia, muitos mestres da lei, na verdade,
ofereciam novas regras e interpretações; assim, alguns tentaram interpretar os
versículos 28 e 29 lado a lado com outras linhas.
Daube (p. 205-16), ao argumentar que a falta de autoridade rabínica oficial de
Jesus foi um ponto de controvérsia logo no início do ministério dele, diz que parte
da resposta das multidões na Galileia se deveu ao fato de que não ouviam, muitas
vezes, rabis ordenados falarem em região tão distante do norte. Sigal (“Halakah”
[“Halaca”], datando as fontes de forma um pouco distinta, insiste (provavelmente
com acerto) em que não houve uma ordenação oficial de rabis até depois da morte
de Jesus. Ele argumenta que Jesus mesmo não tinha autoridade essencialmente distinta
da dos outros protorrabis. Essas duas reconstruções não entendem exatamente o
ponto central que transcende as aplicações de halaca da lei, as fórmulas usadas e a
latitude de interpretação permitida.
O ponto central é este: toda a abordagem de Jesus no sermão do monte não
é só ética, mas também messiânica — ou seja, cristológica e escatológica. Jesus
não é um profeta comum que diz: “Assim diz o Senhor”! Antes, ele fala na primeira
pessoa e afirma que seu ensinamento cumpre o Antigo Testamento; que ele
determina quem entra no reino messiânico; que ele, como Juiz divino, decreta o
banimento; que os verdadeiros herdeiros do reino seriam perseguidos por causa
da submissão a ele; e que só ele conhece plenamente a vontade do Pai. E indefensável
da perspectiva metodológica a afirmação de Sigal de que todos esses temas são adições
cristãs posteriores e, por isso, focam exclusivamente pontos de interpretação halaca.
A autoridade de Jesus é única (veja comentário sobre 5.21-48), e as multidões reconhe-
Mateus 8.1-4 238
ceram essa autoridade mesmo que nem sempre a entendessem. Essa mesma auto
ridade tem, agora, de ser revelada em milagres e sinais poderosos e libertadores do
avanço do reino (caps. 8— 9; cf. 11.2-5).
Notas
29 O pronome “as” pode indicar uma distinção entre os mestres “cristãos” e os da sinagoga.
Hummel (p. 28ss.) e outros, seguindo Kilpatrick (Origins [Origens], p. 40), faz com
que muitos dos termos “deles, as” de Mateus (4.23; 9.35; 10.17; 12.9; 13.54; 23.34)
sustentem a teoria de que o cenário de vida de Mateus é logo antes da separação entre
a igreja e a sinagoga (desde que 6.2,5; 23.6 não fazem alusão a sinagogas cristãs). Mas
o pronome “as” pode ser bem inócuo. Pode refletir uma circunstância geográfica de
um escritor que não esteja na Galileia (veja comentário sobre 4.23). Melhor ainda, no
ponto em que a autoridade de Jesus é enfatizada, os “seus” (BJ; “e não como os seus
escribas”) pode lembrar sutilmente o leitor que Jesus, embora judeu da linhagem de
Davi (1.1), tem sua origem derradeira além da raça judaica (1.18-25) e, por isso, não
pode ser classificado como “seus” (BJ) mestres da lei. Além disso, em duas passagens,
Mateus está apenas seguindo Marcos (Mc 1.23,29) e parece usar “deles” (BJ) em
outra passagem ainda muito mais incomum (e.g., 11.1), o que alerta o leitor contra
ler demais na palavra. E algo do debate precedente (e.g., como a relevância de 6.2,5;
23.6) só é relevante se já se assumiu o anacronismo, uma vez que essas referências
fazem total sentido sob a pressuposição óbvia de que o evangelho realmente é sobre
Jesus. Todavia, pode bem haver relevância em algumas das passagens com “deles” (veja
comentário sobre 10.17), que são transferidas pela associação com outras ocorrências
do pronome.
A. Narrativa (8.1—10.4)
a. Um leproso (8.1-4)
1 Quando ele desceu do monte, grandes multidões o seguiram.2 Um leproso, aproximando-se, adorou-
o de joelhos e disse: “Senhor, se quiseres, podes purificar-me!”
3 Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: “Quero. Seja purificado!" Imediatamente ele foi purificado
da lepra. 4 Em seguida Jesus lhe disse: “Olhe, não conte isso a ninguém. Mas vá mostrar-se ao
sacerdote e apresente a oferta que Moisés ordenou, para que sirva de testemunho” .
Isso não quer dizer que a organização de Mateus seja totalmente casual, mas
que é regida pelos temas. A ligação de uma perícope com a outra é fornecida pelas
ideias, pelos lemas, pelos temas predominantes (cf. K. Gatzweiler, “Les récits de
miracles dans l’Evangile selon saint Matthieu” [“As histórias de milagres no evangelho
segundo São Mateus”], em Didier, p. 209-20). No entanto, a isso não se segue que
todos os esboços sugeridos pelos vários estudiosos para explicar esse desenho tópico
sejam igualmente convincentes. Klostermann, por exemplo, menciona o lugar
central das dez pragas no pensamento judaico (e.g., Pirke Aboth 5:5,8) e sugere
que, nos capítulos 8 e 9, os dez milagres são planejados para retratar Jesus como o
novo Moisés ou a igreja como um novo êxodo (cf. Grundmann; Davies, Setting
[Cenário], p. 86-93). Mas essa tese não é convincente: Mateus não enfatiza o
número dez, os milagres registrados por ele não fazem individualmente paralelo
com as pragas, e seus temas principais correm em outras direções.
J. D. Kingsbury (“Observations on the ‘Miracle Chapters’ of Matthew 8-9”
[“Observações sobre os ‘capítulos de milagres’ de Mateus 8— 9”], C B Q 4 0 [1978],
p. 559-73) discute e rejeita habilmente os esboços propostos por Bruger, Schniewind,
Thompson e outros e prefere optar por uma modificação do foco quádruplo de
Burger: (1) 8.1-17 trata de cristologia; (2) 8.18-34 diz respeito a discipulado; (3)
9.1-17 foca questões referentes à separação de Jesus e de seus seguidores de Israel;
(4) 9.18-34 centra na fé; e, acima de tudo, predomina a cristologia do “Filho de
Deus”. Mas é difícil evitar o sentimento de que esse esboço, como os outros, é
muito simplista. A cristologia estende-se além de 8.1-17; um novo título aparece
em 8.20 e reaparece em 9.6; e a autoridade divina de Jesus para perdoar pecados
não aparece até o capítulo 9. Não fica claro por que o discipulado estaria restrito
a 8.18-34, quando Mateus foi chamado em 9.9-13 e os hábitos característicos dos
discípulos de Jesus são discutidos em 9.14-17. A luz de 8.10,28-34, mal se pode
dizer que as distinções entre os seguidores de Jesus e a Israel racial podem esperar
até 9.1-17. A fé, longe de esperar a quarta divisão, já é central em 8.5-13. E já ob
servamos que Kingsbury tende a enfatizar o tema do Filho de Deus ao mesmo
tempo em que minimiza outras ênfases cristológicas igualmente fortes (veja comen
tário sobre 3.17).
Esses capítulos não podem legitimamente ser desmembrados de forma tão
simplista. Embora as perícopes de Mateus combinem muitíssimo bem, ele entrelaça
seus temas, mantendo, como um malabarista literário, vários deles em andamento
de uma só vez. Por isso, esses capítulos são mais bem abordados de forma indutiva;
e pode-se traçar ênfase na fé, no discipulado, na missão gentia, em um padrão
cristológico variado e em outros mais temas. Esses capítulos, ao mesmo tempo,
provam que Jesus, cuja missão em parte era pregar, ensinar, curar (4.23; 9.35)
cumpriu totalmente sua missão. Mateus mostrou Jesus pregando o evangelho do
reino (4.17,23) e ensinando (caps. 5— 7). Agora, ele registra alguns exemplos do
seu ministério de cura.
O registro do primeiro milagre, a cura de um leproso, é muito mais breve em
Mateus (w. 1-4) que em Marcos (1.40-45). A omissão de Marcos 1.40a,45 ediversos
outros bocados fez com que alguns pensassem que, aqui, Mateus não depende de
Mateus 8.1-4 240
Marcos (Lohmeyer, Schlatter), outros acham que a tradição oral ainda está exercendo
influência (Bonnard, Hill), ainda outros oferecem alguma explicação teológica, e.g.,
de que Mateus suprimiu qualquer referência à compaixão de Jesus porque esta não
se ajustava à imagem que os membros da igreja mateana tinham de Cristo (e.g.,
Leopold Sabourin, L’Evangile selon Saint Matthieu et ses principaux parallèles [O
evangelho segundo São Mateus e seus principais paralelos] [Rome: BIP, 1978], in
loco-, cf. Hull, p. 133s.). Mas quando Mateus segue Marcos, ele resume histórias
controversas em cerca de 20%; histórias que provam que Jesus é o Cristo, em
cerca de 10%; os ditos verdadeiros de Jesus raramente, e as histórias de milagres
em cerca de 50% (cf. Schweizer).
Mateus, embora seja alusivo, é um escritor muitíssimo disciplinado, eliminando
rigorosamente tudo que não tem relação com suas preocupações imediatas. Assim,
devemos adotar como um princípio útil que a teologia de Mateus não pode ser
descoberta de forma acurada pelo estudo do que ele omite — as omissões não
podem mostrar mais do que o que não é sua preocupação imediata, e mesmo assim,
algumas de suas omissões são apenas de caráter estilístico — mas principalmente
pelo estudo do que ele inclui. Isso é especialmente relevante nos milagres nos
quais Mateus não inclui muito desse material. Na cura do leproso, a sugestão de
Sabourin é especialmente implausível, uma vez que, em outras passagens, Mateus
enfatiza a compaixão de Jesus e extrai sentido teológico dela (9.35-38).
1 Jesus desceu do monte (veja comentário sobre 5.1) em que o sermão do
monte foi feito; e grandes multidões ainda o seguem (4.23-25; 7.28,29).
2,3 O introdutório kay idou (lit., “e eis” [ARA.]; também em Lucas, ausente em
Marcos, não traduzido na NVI) não obriga que essa cura tenha acontecido imediata
mente após o sermão. Em Mateus, kay idou tem uma vasta gama de sentidos, às
vezes, servindo como vaga conexão, outras, introduzindo um pensamento ou evento
impressionante e, algumas vezes como aqui, marcando o início de uma nova perícope.
E incerto se a lepra falada no Novo Testamento era a verdadeira lepra (“hanseníase”;
Cf. D N T T, 2:463-66) ou uma categoria mais abrangente de doenças de pele,
incluindo a lepra. Mas os judeus tinham aversão à doença não só por causa da
doença em si mesma, mas porque ela representava o sofredor, e todos com quem ele
tinha contato direto ficavam cerimonialmente impuros. Ser leproso era interpretado
como ser amaldiçoado por Deus (cf. N m 12.10,12; Jó 18.13). As curas eram raras
(cf. N m 12.10-15; 2Rs 5.9-14) e consideradas tão difíceis quanto ressuscitar os
mortos (2Rs 5.7,14; cf. SBK, 4:745ss.). N a era messiânica não haveria lepra (cf.
n .5 ) .
O homemprosekynei (“ajoelhou-se”; N TLH ) diante de Jesus, mas o verbo tam
bém pode ter o sentido de “adorar”. Claramente, o primeiro sentido é o pretendido
nesse cenário histórico. Contudo, como acontecia com o título “Senhor” (veja
comentário sobre 7.22,23), os leitores cristãos de Mateus não podiam deixar de
concluir que esse leproso falava e agia melhor do que ele mesmo sabia. As palavras:
“Se quiseres”, refletem a grande fé do leproso, estimulada pela atividade de cura de
Jesus por todo o distrito (4.24): ele não tinha dúvida em relação ao poder de cura de
Jesus, só temia ser ignorado. Jesus, ao afirmar sua disposição de curar, provou que
241 Mateus 8.1-4
sua vontade é decisiva. Ele já tinha a autoridade e o poder, só precisava decidir e agir.
J. D. Kingsbury (“Retelling the ‘Old, Old Story” [“Recontando a ‘história muito
antiga’”], Currents in Theology an d Missions 4 [1976], p. 346) sugere que “estendeu
a mão” simboliza o exercício da autoridade (cf. Ex 7.5; 14.21; 15.6; lR s 8.42); mas
o uso, por Mateus, da mesma expressão grega em outras passagens (12.13 [bis\,A9;
14.31; 26.51) mostra que a interpretação de Kingsbury é fantasiosa. O mais provável
é que Jesus tivesse que estender a mão para tocar o leproso, porque este não ousou se
aproximar dele.
Jesus, ao tocar um leproso impuro, ficaria ele mesmo maculado ceromonialmente
(cf. Lv 13— 14). Mas ao toque de Jesus nada permanece impuro. Jesus, longe de se
tornar impuro, torna puro o impuro. A palavra e o toque de Jesus (8.15; 9.20,21,29;
14.36) são eficazes, possivelmente sugerindo que sua mensagem e também sua
pessoa estão investidas de autoridade.
4 A despeito da percepção de Held (Bornkamm, Tradition [Tradição], p. 256),
esse versículo não é “todo o objetivo da história”. Essa percepção é reducionista e
ignora os temas entrelaçados (cf. comentários sobre 8.1-4; Heil, “Healing Miracles”
[“Milagres de cura”], p. 280, n. 25). Embora as proibições de contar as curas e
expulsões de demônios sejam mais comuns em Marcos que em Mateus, elas não
estão ausentes do último (8.4; 9.30; 12.16; cf. 16.20; 17.9). Elas não têm nada que
ver com o chamado segredo messiânico proposto por Wrede e defendido por
Bultmann (conforme sustenta Hill com acerto). Tampouco, essa proibição específica
impõe silêncio só até o leproso curado ir a Jerusalém e ser reabilitado pelo sacerdote
(Lenski, Barnes). Os paralelos sinóticos (Mc 1.45; Lc 5.15) e também outras ocorrên
cias similares em Mateus demonstram que essas ordens para manter silêncio sobre
as curas têm outras funções — mostrar que Jesus não está se apresentando como um
mero operador de maravilhas (Stonehouse, Witness o f Matthew [Testemunho de
Mateus], p. 62; Maier) que pode ser pressionado ao messiado pelas multidões, cujas
percepções messiânicas são materialistas e políticas. A autoridade de Jesus deriva-
se só de Deus, não da aclamação dos homens (Bonnard); ele veio para morrer,
não para derrotar os romanos. As pessoas que desobedeciam à proibição de Jesus
de não falar da cura só tornaram sua missão mais difícil.
Jesus ordenou que o homem curado seguisse as prescrições mosaicas para os
leprosos que declaravam estar curados (cf. Lv 14). Isso, disse ele, era eis martyrion
autois (“para que sirva de testemunho”). Muito debate envolve autois. O testemunho
é positivo “para eles” (Trilling, p. 128s.), como prova da cura ou negativo, “contra
eles” (Hummel, p. 81 s.), como um tipo de denúncia de sua descrença? Essas categorias
conflitantes não são úteis. Nas outras passagens em que os sinóticos usam eis martyrion
(“para testemunho”; 10.18; 24.14; Mc 1.44; 6.11; 13.9; Lc 5.14; 9.5; 21.13), apenas
duas exigem “testemunho contra” (contra Frankmõlle, p. 120, n. 193, que insiste
que 10.18 e 24.14 também são negativos). A maior parte do resto das passagens é
“neutra” e implica divisão em torno do “testemunho” apresentado.
Avança-se mais perguntando por que Jesus, nesse cenário, ordena obediência.
Não pode ser simplesmente para provar que Jesus permanece fiel à lei (Calvino) e,
assim, encorajar os judeus cristãos de Mateus a também permanecerem fiéis (Hill,
Mateus 8.5-13 242
Se essa história (cf. Lc 7.1-10) vem de Q, então Q, pelo menos nessa circuns
tância, contém mais que apenas breves ditos de Jesus ou, melhor, isso é evidência
contra um Q_ unitário. Não é certeza se esse relato é o mesmo de João 4.46-53. As
muitas diferenças entre eles argumentam contra ser o mesmo, embora reconheci
damente algumas dessas diferenças sejam enfatizadas demais. Em João, Jesus
repreende o centurião e os espectadores por seu amor por sinais; mas embora não
haja menção aqui a isso, Mateus trata desse tema em outras passagens (12.38,39;
16.1-4). A maioria dos estudiosos modernos, ao contrário dos das gerações
anteriores, assume que há apenas um incidente. No entanto, o assunto é habilmente
discutido por Edward F. Siegman, “St. Johns Use o f Synoptic Material” [“Uso do
material sinótico por São João”], C B Q 30 (1968), p. 182-98. (A respeito da
distintiva ênfase teológica de Mateus e de Lucas, cf. R. P. Martin, “The Pericope
o f the Healing of the ‘Centurions’ Servant/Son [Matt 8:5-13 par. Luke 7:1-10]:
Some Exegetical Notes” [A pericope da cura do servo do centurião’ [Mt 8.5-13
243 Mateus 8.5-13
par. Lc 7.1-10]: alguns comentários exegéticos”], Unity and Diversity in the New
Testament, ed. R. A. Guelich [Grand Rapids: Eerdmans, 1978], p. 14-22).
Críticos da forma encontram o propósito da história no diálogo decorrente do
milagre e o chamam de “história de pronunciamento” ou “máxima”, em vez de
“história de milagre”. Indaga-se por que ela não pode ser as duas coisas (cf. Stephen
H. Travis, “Form Criticism” [“Crítica da forma”], Marshall, N T Interpretation, esp.
p. 157-60). A principal diferença, com exceção da ênfase teológica, entre os
versículos 5-13 e Lucas 7.1-10 é o uso de intermediários em Lucas. E provável que
Mateus, seguindo sua tendência a resumir, não faça menção aos servos a fim de pôr
a ênfase maior na fé de acordo com o princípio quifacitper alium facitper se (“quem
pratica um ato por intermédio de outrem, é como se o praticasse pessoalmente”)
— princípio que o argumento do centurião sugere (w. 8,9).
5 Essa é a segunda menção de Mateus a Cafarnaum (cf. 4.13). N a época de
Jesus, Cafarnaum era uma importante cidade-forte. Nenhuma legião romana estava
postada na Palestina, mas havia auxiliares sob o comando de Herodes Antipas que
tinham o direito de recrutar tropas. Esses soldados eram não judeus provavelmente
de fora da Galileia, talvez do Líbano e da Síria. Os centuriões eram a espinha dorsal
militar de todo o império, mantendo a disciplina e executando ordens. Lucas enfatiza
a solidariedade desse centurião pelos judeus e sua humildade. Mateus ressalta sua fé
e raça (w. 10,11). N a verdade, talvez um dos motivos por que Mateus não fala nada
dos intermediários seja porque eles eram judeus, e ele não queria obscurecer a
distinção racial.
6,7 A respeito de “Senhor”, veja comentário sobre 7.21-23. A palavra pais (v.
6) pode ter o sentido de “servo” ou “filho”. A palavra usada por Lucas (doulos) tem
o sentido de “servo”, e muitos (e.g., Bultmann, Synoptic Tradition [ Tradição sinótica],
p. 38, n. 4) insistem que o termo pais em Mateus tem o sentido de “filho”. Mas o
exame honesto do uso no Novo Testamento (cf. France, “Exegesis” [“Exegese”], p.
256) revela que só uma das vinte e quatro ocorrências no Novo Testamento exige
a tradução por “filho”, viz., João 4.51. Isso também sustenta a percepção de que
João 4 registra uma cura diferente em outra ocasião. De maneira concebível, foi a
cura anterior do filho de um oficial (Jo 4) que fortaleceu a fé do centurião nessa
ocasião. Embora em outra passagem seja atestada a paralisia acompanhada de
severa dor (e.g., IM ac 9.55,56), a natureza da doença do servo é desconhecida. As
especulações psicossomáticas de Derrett (N T Studies [Estudos do N T \, 1:156-57,
166-68) são fantasiosas.
Os rabis judeus, como os ministros atuais, com frequência, eram convidados
a orar pelo doente (cf. SBK, 1:475), mas os paralelos não são próximos, pois o
centurião está implicitamente pedindo por cura, não por oração. Muitos (Zahn;
Klostermann; Turner [Insights [Percepções], p. 50s.]; Held [Bornkamm, Tradition
(Tradição), p. 194]) interpretam a resposta de Jesus (v. 7) como uma pergunta: “Eu
[ego, enfático; ou seja, eu, um judeu] devo ir e curá-lo?” Provavelmente, essa
interpretação está certa. O paralelo com a mulher cananeia (15.21 -28) é convincente;
caso contrário, fica difícil explicar o enfático “eu”. A resposta de Jesus não se baseia
em temor de profanação ritual — os versículos 1-4 estabelecem isso para o resto
Mateus 8.5-13 244
— nem a sua restrição geral de seu ministério para Israel (veja comentário sobre
10.5,6; 15.24; mas até mesmo em Mateus há relevantes exceções, e.g., 8.28-34).
Ela baseia-se no desejo de descobrir exatamente o que o centurião buscava e qual
o grau de fé por trás de seu ambíguo pedido (v. 6).
8,9 Aqui e na história da mulher cananeia (15.21-28), a fé triunfa sobre os
obstáculos erguidos por Jesus. Lucas não registra a pergunta de Jesus (veja comentário
sobre v. 7) nem a história da mulher cananeia; o tratamento que ele dá para a fé não
é tão incisivo. A resposta do centurião começa com “Senhor” (v. 8), sugerindo
tenacidade e deferência (cf. v. 6; 7.21-23). Da mesma maneira que João Batista se
sentia indigno de batizar a Jesus, também o centurião sentia-se indigno de recebê-
lo em sua casa. O sentimento de não ser digno não surgiu da consciência do
centurião de que podia contaminar cerimonialmente a Jesus (contra Bonnard); a
raça não tinha nada que ver com isso. Hikanos (“suficiente”, “digno”), aqui e em
outras passagens (3.11; IC o 15.9; 2Co 2.16), revela que o senso de indignidade
do homem (NVI, “não mereço”) em face da autoridade de Jesus (cf. T D N T,
3:294; France, “Exegesis” [“Exegese”], p. 258). “Eis alguém que está no estado
descrito na primeira sentença das ‘bem-aventuranças’ e para quem veio a promessa
da segunda sentença porque Cristo é a conexão entre as duas” (LTJM 1:549).
O centurião acreditava que a palavra de Jesus era suficiente para curar seu
servo. E relevante o fato de que não temos nenhuma evidência registrada de que a
essa altura Jesus já realizara um milagre de cura à distância, e isso apenas por meio
da palavra (a menos que Jo 4.46-53 seja uma exceção). O pensamento do centurião
(v. 9) é profundo. Não há necessidade de considerar que a primeira oração sugere
que apenas o paralelo entre a autoridade do centurião e a de Jesus está na habilidade
deles de ordenar que as coisas fossem feitas: “Eu, embora seja um homem sob
ordens, posso realizar coisas por meio da minha palavra” (Hill, Matthew [Mateus]).
Essa é apenas uma tradução possível da expressão de abertura kaigar egô; a tradução
mais natural é a da NVI (“Pois eu”), que aplica as palavras a todo o versículo. Isso
quer dizer que as palavras do centurião pressupõem a compreensão do sistema
militar romano. Toda “autoridade” (exousia, como em 7.29) pertencia ao imperador
e foi delegada. Portanto, por estar sob a autoridade do imperador, o centurião, ao
falar, falava com a autoridade do imperador, por isso, suas ordens eram obedecidas.
O soldado que desobedecesse a suas ordens não estaria desobedecendo apenas a
um centurião, mas ao imperador, à própria Roma, com toda sua majestade e
poder imperiais (cf. Derrett (N T Studies [Estudos do N T \, 1; 159s.). O centurião
aplicou esse entendimento de si mesmo a Jesus. Exatamente por Jesus estar sob a
autoridade de Deus, ele estava investido da autoridade de Deus de forma que
quando Jesus falava, Deus falava. Desafiar a Jesus, era desafiar a Deus; por isso, a
palavra de Jesus deve estar investida da autoridade de Deus para poder curar o
doente. Essa analogia, embora não seja perfeita, revela uma fé impressionante que
reconhece que Jesus não precisava de ritual, de mágica nem de nenhuma outra
ajuda; sua autoridade era a autoridade de Deus, e sua palavra era eficaz porque era
a palavra de Deus.
245 Mateus 8.5-13
“súditos do Reino” são os judeus, que se veem como filhos de Abraão (cf. 3.9,10),
pertencentes ao reino por direito. Alguns judeus (e.g., os de Qumran) restringiam
os eleitos a grupos menores de piedosos de Israel. Mas Jesus inverte os papéis (cf.
21.43); e os filhos do reino são deixados de lado, são deixados de fora do futuro
banquete messiânico, destinados às trevas em que há lágrimas e ranger de dentes
— elementos comuns nas descrições do geena, do inferno (cf. 4Ed 7.93; lEnoq
63.10; SI Sal 14.9; 15.10; Sab 17.21; cf. M t 22.13; comentários sobre 5.29).
Os artigos definidos com “choro” e “ranger” (cf. gr.) enfatizam o horror da
cena: o choro e o ranger (Turner, Syntax [Sintaxe], p. 173). Choro sugere sofrimento
e o ranger de dentes, desespero (McNeile). O reverso não é absoluto. Os próprios
patriarcas eram judeus como também o eram os primeiros discípulos (Rm 11.1-
5). Mas esses versículos afirmam, de uma maneira que só podia chocar os ouvintes
de Jesus, que o lócus do povo de Deus nem sempre seria a raça judaica. Se esses
versículos não autorizam realmente a missão gentia, eles abrem a porta para ela e
preparam para a Grande Comissão (28.18-20) e para Efésios 3.
Pode haver uma implicação ainda mais profunda nessas palavras de Jesus.
Podem-se dividir em três grupos as passagens do Antigo Testamento que podem
estar refletidas nos versículos 11 e 12: (1) as que descrevem a reunião de Israel
vinda de todos os cantos da terra (SI 107.3; Is 43.5,6; 49.12); (2) as que predizem
a adoração de Deus pelos gentios de todas as partes da terra (Is 45.6; 59.19; Ml
1.11); (3) as que predizem a vinda dos gentios para Jerusalém (Is 2.2,3; 60.3,4;
M q 4.1,2; Zc 8.20-23). Os paralelos literários mais próximos estão entre os
versículos 11 e 12 e o primeiro grupo de passagens do Antigo Testamento (cf.
Gundry, Use ofO T [U so do AT], p. 76s.); e, com base nisso, France {Jesus, p. 63;
id., “Exegesis” [“Exegese”], p. 261-63) propõe que é assumida uma tipologia — a
verdadeira “Israel”, agora, está sendo reunida dos quatro cantos da terra; ou seja,
dos gentios. Isso é possível, pois já observamos de diversas maneiras que Mateus
trata a história do Antigo Testamento como profética. Todavia, como ele não está
usando linguagem de cumprimento aqui, talvez Jesus esteja usando a linguagem
do Antigo Testamento sem afirmar que, nessa altura, a relação entre o Antigo
Testamento e o Novo Testamento é tipológica.
13 O hôs (“como”, NVI) deve ser entendido da forma correta: Jesus realizou
um milagre não proporcionais fé do centurião, tampouco, por causa da fé do centurião,
mas no teor do que era esperado pela fé do centurião (cf. 15.28, em que a ênfase
também está na fé).
Notas
9 As três ordens são aoristo, presente e aoristo, respectivamente. As vezes, “o tempo verbal
parece ser determinado mais pelo sentido do verbo ou por algum hábito obscuro que
pelas ‘regras’ AsAktionsarf (Moule, Idiom Book [Livro de expressões idiomáticas], p. 135).
11 O verbo àvaKA.i9r|aovTaL (anaklithêsonatai,Yit., “reclinar-se”) descreve a postura normal
adotada para comer; as pessoas se reclinavam em sofás, ou catres (cf. Jo 13.23; 21.20).
No Novo Testamento, reclinar-se não está restrito a banquetes (e.g., Mc 6.39; Lc
7.36), e o ato em si mesmo não tem relevância teológica nem simbólica (contra
Schlatter; Lohmeyer, Matthãus [Mateus]). Daí o “se sentarão” parafrástico da NVI.
247 Mateus 8.14-17
12 Stonehouse (Witness ofMatthew [Testemunho de Mateus], p. 231 s.), para evitar dizer que
os “súditos do Reino” o são apenas na aparência e na avaliação deles mesmos, entende
que “Reino” se refere ao “reino teocrático” em contraposição ao “Reino dos céus”. Mas
falando estritamente, o reino teocrático não mais existia; e é difícil ver como “Reino”, na
expressão “súditos do Reino”, pode ser considerado de forma apropriada como outra
coisa que não o reino recém-mencionado (v. 11).
3,8) nem atípico (v. 15) dos registros de cura de Mateus. A mudança de “muitos”
(Marcos) para “todos” (Mateus) é menos relevante do que, com frequência, é
declarado, pois Marcos diz que Jesus curou muitos doentes, mas não todos eles;
antes, quando “toda a cidade se reuniu à porta da casa”, ele curou “muitos” dos
indivíduos (Mc 1.33,34). Mateus não menciona que Jesus proibiu que os demônios
dissessem quem ele era; Mateus prefere focar a atenção no poder de Jesus e no
testemunho da Escritura de sua pessoa e ministério. Outras diferenças são até mesmo
menores. (A omissão de Lucas 4.41 pode falar contra a percepção de Kingsbury
da centralidade do tema do “Filho de Deus”.)
Jesus expulsa ta pneumata (“os espíritos” [“demônios” em Marcos e Lucas]),
com frequência, reconhecidos na literatura intertestamentária como agentes de
doença. No Novo Testamento, eles são normalmente qualificados pelo adjetivo
“maligno”. A respeito da expressão idiomática para “os doentes” veja comentário
sobre 4.24.
17 (Sobre as fórmulas de cumprimento veja comentário sobre 1.23; 2.5,15,23;
4.14; Introdução, seção 1 l.b). Essa citação é de Isaías 53.4. A tradução de Mateus
não segue a LX X nem o targum, ambos espiritualizam o hebraico. O mais provável
é que o versículo 17 seja uma tradução do hebraico do próprio Mateus (Stendahl,
School[Escola\, p. 106s.). Porque Isaías 52.13— 53.12, o quarto “cântico do servo”,
retrata o Servo sofrendo vicariamente por outros, ao passo que Mateus, em face
disso, traduz o hebraico de tal forma a ponto de falar sobre “pegar” e “carregar” as
debilidades físicas e as doenças físicas, mas não em termos de sofrimento vicário
pelo pecado; muitos detectam nessa passagem forte evidência de que Mateus cita o
Antigo Testamento de modo indefensável e idiossincrático. McConnell (p. 120)
entende isso como outro exemplo do uso fora de contexto de passagens do Antigo
Testamento por Mateus para seus próprios fins (cf. também Rothfuchs, p. 70-72).
McNeile sugere que Isaías 53.4 já tinha sido destacada de seu contexto quando
Mateus a usou.
Contudo, há formas melhores de interpretar essa passagem:
1. Desde a obra de C. H. Dodd (According to the Scriptures [De acordo com as
Escrituras] [London: Nisbet, 1952]), entende-se, em geral, que quando o Novo
Testamento cita uma breve passagem do Antigo Testamento, esta, com frequência,
refere-se implicitamente a todo o contexto da citação. E muito provável que isso
ocorra aqui, pois Mateus tem profunda compreensão do Antigo Testamento. Além
disso, é provável que Mateus 27.12 aluda a Isaías 53.7; Mateus 27.57, a Isaías 53.9;
Mateus 20.28, a Isaías 53.10-12, o último em um contexto afirmando a teologia
da expiação vicária. Portanto, qualquer interpretação do versículo 17 que não
leve em consideração a força propulsora de todo o cântico do Servo é questionável.
2. A Escritura e a tradição judaica entendem que toda doença é causada, direta
ou indiretamente, pelo pecado (veja comentário sobre 4.24; cf. Gundry, Use o f O T
[Uso do AT\, p. 230s.). Isso encoraja-nos a procurar uma conexão mais profunda
entre o versículo 17 e Isaías 53.4.
3. Isaías está pensando no Servo “pôr as doenças de outros sobre si mesmo por
meio de seu sofrimento e morte pelo pecado deles” (Gundry, Use o f OT [Uso do
249 Mateus 8.14-17
AT], p. 230). Os dois verbos que ele usa são nãsã ’ (“assume [nossas enfermidades]”)
e fbâlâm (“leva sobre si [nossas doenças]”; cf. “tomou sobre si as nossas enfermidades
e as nossas dores levou sobre si”; ABA), que não têm eles mesmos necessariamente
a força de substituição, embora possam ser interpretados dessa maneira. A LXX
espiritualiza “enfermidades” por “pecados”; e, nesse sentido, o versículo é mencionado
em IPedro 2.24 em defesa da expiação vicária. Essa interpretação do versículo é
legítima porque o fluxo do cântico do Servo a sustenta. Mas falando estritamente,
Isaías 53.4 fala apenas do Servo tomar sobre si as enfermidades e doenças; e esse é
o único contexto, além da conexão entre doença e pecado, que mostra que a
forma como ele carrega a doença dos outros é por meio de seu sofrimento e morte.
4. Conforme observamos, Isaías 53 é importante entre os escritores do Novo
Testamento para a compreensão da relevância da morte de Jesus (e.g., At 8.32,33;
IPe 2.24); mas quando Mateus cita aqui Isaías 53.4, ele, à primeira vista, aplica a
passagem só ao ministério de cura de Jesus, não a sua morte. Contudo, à luz dos três
pontos precedentes, a discrepância é resolvida se Mateus sustenta que o ministério de
cura de Jesus é em si mesmo uma função de sua morte vicária, por meio do que ele
estabelece a fundação para destruir a doença. Os dois verbos usados por Mateus, ao
contrário da opinião de alguns, traduzem exatamente o hebraico: o Servo “tomou”
(elaben) sobre si nossas enfermidades e sobre si “levou” (ebastasen) nossas doenças
(Gundry, Use ofO T [U so do AT], p. 109, 111). Mateus poderia não ter usado a
LXX e ainda se referir a doença física. Todavia, sua própria tradução do hebraico,
longe de tirar Isaías 53.4 do contexto, indica sua profunda apreensão da conexão
teológica entre o ministério de cura de Jesus e a cruz.
5. Essa conexão é sustentada pelos vários argumentos colaterais. O prólogo
insiste que Jesus veio para salvar seu povo de seu pecado, e isso no contexto da vinda
do reino. Quando Jesus começou seu ministério, ele não só proclamou o reino, mas
também curou o doente (veja comentário sobre 4.24). Cura e perdão estão unidos
não só em perícope como 9.1-8, mas também pelo fato de que o reino consumado,
no qual não há doença, é viabilizado pela morte de Jesus e pela nova aliança que
sua morte decreta (26.27-29). Assim, as curas realizadas durante o ministério de
Jesus pode