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ORGANIZADORES

Rafael Campos Quevedo


Gabriela de Santana Oliveira

ANAIS DO
III SIMPÓSIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UFMA

SÃO LUÍS

2022
Copyright © 2022 by EDUFMA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


Reitor Prof. Dr. Natalino Salgado Filho
Vice-reitor Prof. Dr. Marcos Fábio Belo Matos

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


Diretor Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira

Conselho Editorial Prof. Dr. Luís Henrique Serra


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Profa. Dra. Gisélia Brito dos Santos
Prof. Dr. Marcus Túlio Borowiski Lavarda
Prof. Dr. Marcos Nicolau Santos da Silva
Prof. Dr. Márcio James Soares Guimarães
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Prof. Dr. João Batista Garcia
Prof. Dr. Flávio Luiz de Castro Freitas
Prof. Dr. José Ribamar Ferreira Junior
Bibliotecária Suênia Oliveira Mendes

Revisão Os autores

Projeto Gráfico Sansão Hortegal Neto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Simpósio de Estudos Literários da UFMA (SELUFMA) (3.: 2021: São Luís, MA).

Anais do III Simpósio de Estudos Literários da UFMA [recurso eletrônico] / organizadores, Rafael
Campos Quevedo, Gabriela Santana de Oliveira. — São Luís: EDUFMA, 2022.

200 p.
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-5363-027-7

1. Estudos literários. I. Quevedo, Rafael Campos. II. Oliveira, Gabriela Santana de.

CDD 809
CDU 82.09

Ficha catalográfica elaborada pela Diretoria Integrada de Bibliotecas – DIB/UFMA


Bibliotecária: Jousiane Leite Lima – CRB 13/700

E-book no Brasil [2022]


Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste e-book pode ser reproduzida, armazenada em um sistema de
recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, microimagem,
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Anais do III Simpósio de Estudos Literários da UFMA

Comissão Organizadora

Carolina Silva Almeida

Claudia Oliveira Silva Rocha

Fernanda Castro de Souza Abreu

Gabriela de Santana Oliveira

Juliana Carolina Campos de Jesus

Juliana Santos Pacheco

Pedro Henrique Viana de Moraes

Rafael Campos Quevedo

Comissão Científica

Profa. Ms. Ana Carusa Pires Araújo

Profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei

Profa. Dra. Émilie Geneviève Audigier

Profa. Ms. Gabriela Santana de Oliveira

Prof. Dr. José Costa Dino Cavalcante

Prof. Dr. José Ribamar Neres Costa

Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa

Prof. Dr. Rafael Campos Quevedo

Profa. Dra. Régia Agostinho da Silva

Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos

Prof. Dr. Wandeilson Silva de Miranda


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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 8
SIMPÓSIO 1 - CAMPO E CIDADE NA POESIA: EXPERIÊNCIAS E CENAS DA
MEMÓRIA ............................................................................................................................... 9
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO ......................................................................... 10
TANIRA RODRIGUES SOARES
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA .......................................... 16
JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO ............................. 24
FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS
RUAS LISBOETAS .............................................................................................................................................. 33
VALCI VIEIRA DOS SANTOS
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO
DISCURSO LITERÁRIO..................................................................................................................................... 40
MARIA DAÍSE DE OLIVEIRA CARDOSO
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM.... 48
RENATA FERREIRA DE OLIVEIRA
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES
BRITTO................................................................................................................................................................... 53
GUILHERME DE OLIVEIRA DELGADO FILHO
SIMPÓSIO 2 - POESIA, OUTRAS ARTES, OUTROS SABERES .................................. 59
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO
POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ......................................................... 60
SCHEILA CRISTINA ALVES COSTA LEITE
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM
“TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA................................................................................... 66
MARIANE PEREIRA ROCHA
SIMPÓSIO 3 - A LÍRICA MARANHENSE ONTEM E HOJE ........................................ 73
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS
OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS .................................................................................................... 74
JOSÉ GOMES PEREIRA; BÁRBARA INÊS RIBEIRO SIMÕES DAIBERT
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE
FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA ............................................................................................. 82
MAURO CEZAR BORGES VIEIRA
UMA LEITURA POLÍTICA DE MISSAS NEGRAS, DE INÁCIO XAVIER DE CARVALHO ........... 92
PATRICIA RAQUEL LOBATO DURANS CARDOSO
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA
ROSA E MARIANA LUZ ................................................................................................................................. 100
GABRIELA DE SANTANA OLIVEIRA
SIMPÓSIO 4 - (PÓS)MODERNOS ETERNOS ................................................................ 113
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE
ANTONIO MACHADO .................................................................................................................................... 114
WALTER PINTO DE OLIVEIRA NETO • ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS
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“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM


“BALADA DO IMPOSTOR”............................................................................................................................ 122
FERNANDA CASTRO DE SOUZA ABREU
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ
GIRARD................................................................................................................................................................ 130
EMILLY SILVA RODRIGUES; RAFAEL CAMPOS QUEVEDO
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO
GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO....................................................................................................... 139
TALLYSON TAMBERG CAVALCANTE OLIVEIRA DA SILVA
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA ...................................................... 148
PEDRO HENRIQUE VIANA DE MORAES
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE
VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ ............................................................................................. 154
ISABELA ALVES PEREIRA
SIMPÓSIO 5 - POESIA AFRO-BRASILEIRA: ANCESTRALIDADE, LUTA E
RESISTÊNCIA ..................................................................................................................... 159
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA ........................................................................................... 160
MARCO ANTONIO NOTAROBERTO DA SILVA
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE
JESUS ................................................................................................................................................................... 167
SUELEN GOM (SUELEN CRISTINA G. DA SILVA)
SIMPÓSIO 7 - A POESIA E SUAS MARGENS ............................................................... 174
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE!.............................................................. 175
MARCELO D’ÁVILA AMARAL
POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA .............................................................................. 184
EDUARDO JOSÉ DA COSTA NETO; RIZONILDA SALES NATIVIDADE
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A
CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER................................................................................ 190
DEYSE GABRIELY MACHADO BRITO; CRISTIANE NAVARRETE TOLOMEI
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Apresentação
Há quem afirme que a poesia nasceu junto Para uns, a poesia deve espelhar a alma de
com o advento da própria linguagem humana e quem a escreveu. Estes buscam no poema a
que a humanidade teria se expressado primeiro sinceridade do sentimento. Por outro lado, certa
poeticamente para só depois usar a linguagem vez um poeta (que não foi apenas um, mas
para se comunicar e trocar informações. Sabe- vários) disse que o poeta é, acima de tudo, um
se que a poesia (no início sempre acompanhada fingidor.
do canto) esteve presente nas formas de A poesia já se uniu e já se divorciou de
evocação do sagrado (nos ritos e nos cultos praticamente todas as artes numa fecundíssima
primitivos) e até mesmo nos trabalhos agrícolas, promiscuidade. Para alguns, certos letristas de
como forma de mitigar o cansaço proveniente canções são poetas, para outros letra de música
do labor físico. é uma coisa e poesia é outra. Até o caçula das
A poesia já foi registro da formação cultural de artes, o cinema, andou em íntima relação com a
um povo (lembremos, por exemplo, da reverência poesia. Lembremos de um cineasta que em sua
dos antigos gregos a Homero). Já foi elemento fase surrealista disse que o cinema deveria
agregador de valores nacionais e também repúdio tornar-se poesia.
à ordem social. O poema se faz com palavras e não com ideias,
Já foi crítica mordaz aos costumes e jogo de respondeu Mallarmé ao pintor Degas. E, por fim,
obscenidades; expressão de sentimentos nobres já não surpreende, hoje, a declaração do antigo
e das angústias mais insondáveis. Já foi objeto professor que disse que a matemática é, no fundo,
decorativo, artefato de ourivesaria e já desceu pura poesia.
do monte Parnaso para habitar o lodo e o limo. Não nos enganemos: tudo já foi dito. Mas há
Desceu mais aquém, às órbitas do Inferno, onde formas diferentes de dizer do mesmo e também
encenou uma Comédia a que um poeta italiano do tudo. “Já fiz de tudo com as palavras. Agora
chamou posteriormente de “Divina”. eu quero fazer de nada”, disse o velho poeta
Essa mesma arte a que chamamos poesia já concreto e “quais são as palavras que nunca são
serviu à catequese de fiéis e também já flertou ditas” lembra-nos o saudoso letrista (ou seria
com Lúcifer. Isso a que chamamos poesia já poeta?) do rock nacional.
serviu para acariciar os ouvidos burgueses com Nunca houve civilização sem poesia e toda
a retórica do belo nos salões, nos saraus, mas cidade tem seus poetas. Nossa época, contudo,
também já nos legou o cáustico discurso do vive sob o signo da dispersão e os apreciadores
hediondo, como no célebre verso “escarra nessa da arte poética (leitores e escritores), bem como
boca que te beija” do visceral poeta paraibano. a Universidade, devem propor espaços de
A poesia já foi marginal, engajada, pretendeu fomentação, novas ágoras que possibilitem
não ser mais poesia, aboliu a metrificação, deu encontros dessa natureza. Esse foi o intuito da
sentença de morte ao verso e já se propôs, até terceira edição do SELUFMA cujos textos
mesmo, a banir a própria palavra do poema. Já apresentados nos Simpósios temos a satisfação
rejeitou falar das coisas e dos sentimentos para de registrar nesses Anais.
falar de si mesma e às vezes descambou para o Evoé a todos!!
silêncio da página em branco. Os organizadores.
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SIMPÓSIO 1
Campo e cidade na poesia: experiências e cenas da memória
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Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO


Tanira Rodrigues Soares 1

RESUMO: A obra poética de Paulo Corrêa caracterizada pela relação estabelecida entre os
Lopes, ainda pouco explorada no universo elementos da natureza e as transformações
acadêmico, e sem o devido reconhecimento em humanas, em que tais alterações servem como
sua cidade natal (Itaqui-RS), será abordada metáforas para a vida e suas modificações, ao
nessa comunicação a partir de uma breve permitir que a esperança ressurja das cinzas e
biografia da vida e obra do poeta. Serão favoreça a construção de novos caminhos e
enfocados alguns poemas que caracterizam sua horizontes, com viabilidade e capacidade de
singularidade poética centrada no cotidiano e na concretização, ou seja, que se tornem uma
singeleza de coisas que integram o viver e realidade possível.
conviver humano. Os títulos de suas
publicações sugerem a temática predominante Palavras-chave: Poesia; Natureza; Lirismo;
do poeta, isto é, uma poesia que reproduz Memória.
vivências humanas em contato com a natureza e
a busca pela eternização dessa vida terrena. 1 Breve Introdução
Dentre os títulos publicados, destacam-se: Augusto Meyer o definiu como um “poeta e
Poemas de mim mesmo (1931), Caminhos visionário”, com grandes olhos negros como se
(1932), Poemas da vida e da morte (1938), Um fossem “janelas abertas para o lado noturno da
caso estranho (1942), Canto de libertação vida” (1962, p. 8); já Guilhermino Cesar
(1943), entre outros. Todas as publicações estão destacou que, em sua maturidade, conseguiu
reunidas em Obra Poética de Paulo Corrêa “[...] captar aquilo a que tanto se esforçara por
Lopes (1958); nela, o poeta insere os seres atingir – a poesia essencial” (1958, p.9).
humanos nos mais variados contextos, ao Para Elvo Clemente, a poesia de Paulo
permitir que se vislumbre a possibilidade de Corrêa Lopes “[...] canta os fatos comuns da
mudança da realidade vivenciada, assim como existência dando-lhes um significado
percepções e ações de cada pessoa que se fazem transcendental”, isto é, apresenta sua
presentes em seus versos. São poemas que experiência poética em dois polos, sendo eles o
enfocam as nuances de lugares e tempos que temporal e o eterno (CLEMENTE, 1991, p. 14).
integram a memória afetiva do poeta, Com estas apresentações, podemos
oportunizando com isso que ressignificações considerar que Paulo Corrêa Lopes ainda é um
sejam realizadas e novas abordagens poeta sul-rio-grandense pouco conhecido, no
interpretativas renasçam do que está escrito. A entanto teve sua produção referendada por
poesia de Paulo Corrêa Lopes é carregada de teóricos literários expressivos e pelo seu
uma sensibilidade e de lirismo apurados, público leitor.
resultando numa poética que tem como fonte de Também cabe mencionar sua participação
inspiração a vida em sua dimensão mais singela, ativa no movimento literário do Rio Grande do

1 Campus Santo Ângelo, RS), Graduação em História -


Doutorado em Memória Social e Bens Culturais pela
Universidade La Salle (Canoas/RS), Mestrado Profissional em Licenciatura Plena pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Memória Social e Bens Culturais pelo Centro Universitário La Grande do Sul - Campus II (Uruguaiana/RS). Com ênfase nos
Salle (Canoas/RS), Especialização em Literatura Brasileira pela estudos da Memória (Social, Cultural, Geracional, Familiar),
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Transmissão Inter e Transgeracional, Literatura (Narrativas
Especialização em História e Geografia na Área de Contemporâneas, Narrativas de Filiação e de Afiliação),
concentração Metodologia do Ensino pela Universidade Interdisciplinaridade e História (Escrita feminina e
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI Sensibilidades). Contato: tanira_soares@yahoo.com.br
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 11

Sul ao lado de outros escritores, a partir de seu tendo sido colaborador em diversas revistas e
envolvimento em discussões a respeito do jornais do eixo Rio-São Paulo, além de ter
modernismo gaúcho, com a publicação de exercido o magistério de 1926 até os primeiros
soneto no manifesto modernista gaúcho (1930), meses do ano de 1929, na propriedade dos
na Revista Globo, ao lado de poetas como Albuquerque Lins, em São Paulo, ministrando
Ernani Fornari, Rui Cirne Lima, Augusto aulas de primeiras letras. Em agosto de 1929,
Meyer, Sílvio Soares, Vargas Neto, Pedro resolveu mudar-se definitivamente para o Rio
Vergara e Manoelito de Ornellas, entre outros Grande do Sul, mais precisamente para Porto
(SANSEVERINO, 2011). Alegre, onde residiu até o dia 09 de setembro de
Convém mencionar que a obra poética de 1957, data de seu falecimento. Tendo, em 19 de
Paulo Corrêa Lopes é pouco explorada no julho de 1939, casado com Íris Potthoff,
universo escolar e acadêmico, além de não ser resultando desta união o nascimento de seus
reconhecida em sua cidade natal. Com estas dois filhos: José Paulo e Antônio Luís.
informações preliminares, pretende-se abordar Dentre as atividades exercidas pelo poeta,
uma breve biografia da vida e obra do poeta para, pode-se destacar: funcionário da Comissão
posteriormente, enfocar alguns poemas que Rockfeller (1920), redator de jornais, redator e
caracterizem sua singularidade poética centrada gerente da Agência Star no Rio de Janeiro,
no cotidiano e nas pequenas coisas que integram prático de farmácia na cidade paulista de Casa
o viver e conviver humano. Branca e oficial administrativo da Secretaria do
Interior do Rio Grande do Sul. Paulo Corrêa
2 O Poeta Paulo Corrêa Lopes
Lopes converteu-se ao catolicismo quando tinha
Paulo Corrêa Lopes nasceu em 19 de julho 35 anos de idade e a partir desse instante,
de 1898 em Itaqui (RS) 2 , era filho de José tornou-se um católico fervoroso, religiosidade
Corrêa Lopes, natural de Itaqui, e de Maria bastante presente ao longo de sua produção
Dolores Musa Lopes, nascida em Virgínia, literária, como, por exemplo, neste trecho de
Estado de Minas Gerais. Em 1910, por ocasião Súplica:
do falecimento de seu pai, Paulo Corrêa Lopes,
Senhor, ouve minha súplica,
juntamente com sua mãe e seus irmãos, foram que sofri e andei por estradas
residir em São Paulo, onde iniciou sua vida indignas de teus passos.
estudantil no grupo escolar Prudente de Morais, Como, depois de tanta miséria,
na capital do Estado. Cabe ressaltar uma Ainda tive forças para me levantar?
peculiaridade estudantil de Paulo, uma vez que Foi a Tua misericórdia, Senhor, que me
segundo informações constantes em seus dados levantou do abismo fundo em que eu vivia
biográficos, ele somente aprendeu a escrever (LOPES, 1958, p. 175).3
aos doze anos de idade. A presença da temática da religiosidade em
Após ter concluído o primário, equivalente ao sua produção está relacionada a partir de
Ensino Fundamental na atualidade, ingressou na aspectos reflexivos e sentimentais, tais como a
Escola Normal, sendo diplomado em 1918. Com conexão do homem com uma divindade. Esses
idade adequada para prestar o serviço militar, poemas carregam em sua constituição a
Paulo retornou a sua cidade natal e ingressou no sensibilidade apurada de alguém que acredita
quartel, período que compreende os anos de 1920 em uma força maior e superior e se utiliza de
e 1921. Após essa permanência em Itaqui, suas palavras para expressar esse entendimento.
resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro. Essa Em Canto de gratidão, poema que integra a
mudança deveu-se ao fato do poeta almejar Coletânea Canto de libertação é possível
participar de um ambiente cultural efervescente identificar a religiosidade aliada ao cotidiano
que o possibilitasse um contato mais amplo e simples dos seres humanos. O poema inicia
dinâmico com novidades e assuntos em voga na nominando:
sociedade brasileira. Em seguida, mudou-se para
São Paulo, mas manteve seu círculo de amizades, Senhor, [...]
No tempo em que me afligi,
ampliando-o com outras pessoas relacionadas ao
No tempo em que procurei com as próprias mãos
ambiente literário. Resolver o meu destino
Paulo Corrêa Lopes foi um intelectual ativo,

2 3
Os dados biográficos foram extraídos dos textos de Cesar Mantida a grafia original.
(1958) e Soares (2008).
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 12

Vi tudo rolar nas águas do desespero, apagar de sua trajetória, uma vez que seus
Vi tudo morrer. poemas e sonetos com características
Nada pude enquanto pensei em minhas parnasianas foram escritos quando ainda era
forças. jovem, sem o conhecimento da essência da
Nada consegui enquanto não me voltei para o
poesia (CESAR, 1958).
Teu amor (LOPES, 1958, p. 151).
3 A Poética do Cotidiano Humano
Nessas produções de temática religiosa
pode-se destacar o que Cesar (1958) enfatizou Com o propósito de demonstrar a
ao mencionar que o poeta era muito criterioso versatilidade e singularidade poética de Paulo
em suas produções, trabalhava incessantemente Corrêa Lopes foram escolhidos dois poemas4,
até atingir a quase perfeição de sua poética. tendo como requisitos os períodos de
Tinha uma preocupação com seus leitores, pois publicações e, posteriormente, a temática
queria que tivessem acesso a uma produção enfocada, isto é, as transformações ocorridas na
lapidada, pensada e amplamente refletida, de vida humana e suas relações com aspectos
modo a possibilitar, com isso, que sua leitura presentes na natureza e na sociedade, com
fosse prazerosa, fluída e, principalmente, ênfase na reflexão e no lirismo observados no
despertasse o interesse pela poesia. desenvolvimento da temática.
Dentre os intelectuais que escreveram a O primeiro poema pertence à coletânea
respeito da produção literária de Paulo Corrêa Penumbra, cujo título é Renascimento, em que
Lopes destacam-se: Augusto Meyer, Manuel se nota a sensibilidade do poeta na produção de
Bandeira, Manoelito de Ornellas, Guilhermino um soneto clássico composto sob a forma de
César e Ângelo Ricci. Sua produção literária dois quartetos e dois tercetos, com versos
enfoca os momentos mais simples e sublimes que heterométricos. O soneto é composto por rimas
a vida proporciona ao ser humano, pois por meio cruzadas nos quartetos, rimas paralelas nos dois
de suas poesias o leitor poderá viajar na primeiros versos do primeiro e segundo
imaginação, nos sentimentos de alegria, amor, tercetos, e rimas opostas no terceiro verso do
paixão, sinceridade, tristeza, angústias e primeiro terceto com o terceiro verso do
sofrimentos, bem como perceber a importância de segundo terceto.
viver, uma vez que o poeta transita pelos extremos Esses aspectos demonstram o cuidado do
momentos da existência humana: vida e morte. poeta na construção de um soneto que versa
Revelou-se grande modernista após a sobre uma das temáticas centrais dos
experiência parnasiana de Penumbra, em parnasianos, a natureza. Cabe salientar que a
1919. As obras seguiram-se em pequenos poética de Paulo Corrêa Lopes permite que o
volumes, em que se encontram as vivências leitor de seus poemas vá além da descrição
de uma alma em luta com os valores apresentada e se questione sobre a realidade em
transitórios em busca da união perene como o que está inserido, pois ao mencionar que a
amor absoluto (CLEMENTE, 2003, p. 63). geada destruiu a vida presente na natureza,
Os títulos das publicações sugerem a também demonstra que a primavera está
temática abordada pelo poeta, isto é, uma poesia chegando e, com ela, as mais variadas
que aborda as vivências humanas em contato manifestações de vida. Nessa descrição sucinta
com a natureza e a busca pela eternização desta de aspectos ambientais e transformações, o
vida terrena. Dentre os títulos publicados, poeta insere os seres humanos nesse contexto,
destacam-se: Poemas de mim mesmo (1931), oportuniza que se vislumbre a possibilidade de
Caminhos (1932), Poemas da vida e da morte mudança da realidade vivenciada, pois assim
(1938), Um caso estranho (1942), Canto de como se altera a estação do ano, também podem
libertação (1943), entre outros. Todas as ocorrer mudanças na vida de todos os seres.
publicações estão reunidas em Obra Poética [...]
Paulo Corrêa Lopes (1958). Espera, ó triste coração, espera!
É importante ressaltar que a publicação de Também há de surgir a primavera,
Penumbra, para o poeta, significou um A primavera de um amor profundo.
momento de produção poética que desejava E diz-me o coração com a voz dorida:

4 Poemas em anexo, sendo que o soneto Renascimento


integra a coletânea Penumbra (1919) e o poema em prosa
Rua pertence à publicação Um caso estranho (1942).
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 13

“Estou cansado de sofrer na vida, encerra com uma ‘chave de ouro’ – último
Estou cansado de esperar no mundo! verso, espécie de síntese do poema”
(LOPES, 1958, p. 254). (GONZAGA, 1991, p. 117).
O soneto Renascimento caracteriza-se pela Nos dois tercetos do soneto, percebe-se a
relação estabelecida entre elementos da natureza e intenção do poeta em oferecer ao leitor um
transformações humanas, assim como a geada alento, uma esperança para situações
congela e pode destruir, a primavera é o vivenciadas, pois assim como a primavera trará
renascimento dessa destruição, portanto essas “Uma aquarela esplêndida” (LOPES, 1958, p.
alterações servem como metáforas para a vida 254), também a vida poderá apresentar novos
humana e suas modificações, por permitir que a horizontes de felicidades e realizações, frente ao
esperança ressurja das cinzas e oportunize a cenário atual castigado pelos rigores da geada.
construção de novos caminhos e horizontes, com É a esperança de que um novo amanhã possa
viabilidade e capacidade de realização, ou seja, surgir e trazer consigo transformações
que se tornem uma realidade, do mesmo modo responsáveis pelo renascimento humano e
que as estações do ano. ressignificação de cada pessoa.
Ao descrever os efeitos da geada, e O segundo poema apresentado, cujo título é
consequentemente do inverno rigoroso que se Rua, integra a coletânea Um caso estranho e
estabeleceu, o poeta emprega no primeiro revela um poeta que fez uso da prosa para
quarteto caraterísticas marcantes do movimento expressar seus sentimentos e percepções do
parnasiano, isto é, a objetividade, mundo, embora, conforme destaca Cesar (1958, p.
imparcialidade e descrição (GONZAGA, 10), Paulo Corrêa Lopes “[...] considerava mais
1991). Ao iniciar o soneto com a afirmação poesia que prosa” a produção presente nessa
“Tudo murchou, tudo morreu” (LOPES, 1958, publicação. Rua foi escrito sob a forma de um
p. 254), o poeta descreve uma situação poema em prosa, pois a mensagem está expressa
independente de suas vontades ou desejos, é a em texto discursivo e não na estrutura clássica de
constatação de que a geada queimou toda a uma poesia, isto é, escrito em versos, com a
natureza ao seu alcance, ao oferecer a presença ou não de rimas e/ou de estrofes, entre
visualização de um cenário natural alterado outras características. No entanto, há uma carga de
pelos efeitos do frio. profundidade poética claramente marcada por
No segundo quarteto, que trata sobre a espaços de leitura e sinais de pontuação,
presença da objetividade e da imparcialidade, conferindo sensibilidade e leveza ao transmitir a
evidencia-se o momento em que a poesia mensagem, tão presentes em suas poesias.
demonstra o surgimento da primavera e, a partir Ao conceder destaque para as palavras “Rua
disso, renovará a natureza castigada pelo frio, Solitária” o poeta chama a atenção dos leitores
em que o ambiente se torna agradável e para a temática abordada, desenvolvendo a
prazeroso aos olhos dos seres humanos. O partir deste enfoque o caminhar de alguém neste
caráter descritivo do soneto também é lugar, o simples transitar, refletindo sobre sua
percebido no momento em que destaca a vida e os caminhos percorridos. O texto inicia
presença da primavera e, com ela, irá com a frase “Rua solitária, por onde cruzei
desabrochar “Uma aquarela esplêndida e tantas noites à procura de um mundo perdido!”
formosa” (LOPES, 1958, p. 254). (LOPES, 1958, p. 142) e com ela finaliza o
Portanto, verifica-se que os dois quartetos do poema, isto é, a reflexão humana se dará ao
soneto se apresentam com características longo deste espaço transitado, mas suas nuances
parnasianas, e permitem que se revele ao leitor e desdobramentos servirão para o desenrolar da
uma habilidade no manejo das palavras por vida inteira. É o poema indicando uma metáfora
parte do poeta Paulo Corrêa Lopes, pois ele da vida, pois assim como o transeunte passará
transformou em poesia as alterações visíveis do pela rua, também cruzará pela vida; cabe
tempo e da natureza presentes no cotidiano. salientar que a rua é imóvel, estática, não sofre
O soneto Renascimento apresenta-se com os alterações, não se modifica em sua essência de
aspectos formais oriundos do movimento lugar de circulação; já a vida é repleta de
parnasiano, uma vez que “[...] os parnasianos mudanças e transformações, num constante ir e
reivindicam a tradição clássica do soneto, vir, querer e perder, partir e chegar.
composição poética centrada obrigatoriamente É mister ressaltar que a construção de
em dois quartetos e dois tercetos e que se poemas em prosa integra a produção literária
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 14

modernista, confere um rompimento com através de tua luz humilde,


estruturas estéticas estáticas e, desse modo, uma luz mais bela.
amplia as possibilidades de criação poética. Rua solitária,
Dentre as características do modernismo pode- quando a noite te envolver,
Lembra-te que a marca de meus passos
se destacar a incorporação de temáticas do
ficou para sempre gravada
cotidiano, a utilização de linguagem coloquial e na mudez de tuas pedras.
inovações técnicas, tais como o verso livre, Rua solitária,
além de liberdade na construção do texto ouve meu canto de gratidão.
(GONZAGA, 1991). A ti devo a certeza
Esses aspectos podem ser percebidos no de que não há nada que seja de todo
poema Rua, uma vez que Paulo Corrêa Lopes desprezível no mundo.
utilizou-se de um tema cotidiano a qualquer ser Rua solitária,
humano, isto é, caminhar por uma rua e, a partir por onde cruzei tantas noites
desse trajeto percorrido, refletir sobre sua à procura de um mundo perdido! (LOPES,
1958, p. 142).
existência, angústias e aspirações. Quando o
poema enfatiza que o caminhante dessa rua 4 Considerações Reflexivas
solitária conversa com ela sobre os significados da
Paulo Corrêa Lopes soube explorar as
vida, encontra-se uma poética que faz uso da
possibilidades literárias surgidas com o
linguagem coloquial, com vistas a estabelecer
movimento modernista, tornando-se um poeta
uma identificação com o leitor e sua vivência
com capacidade criativa de adequar-se às
cotidiana, “Rua solitária, onde o eco dos meus
inovações poéticas e, com sensibilidade de
passos acordou velhos sonhos que dormiam!”
percepção, produziu lirismo a partir de coisas
(LOPES, 1958, p. 142).
simples e rotineiras presentes no dia a dia dos
Outra característica do movimento
seres humanos. O poema Rua, assim como os
modernista refere-se à inovação técnica, no caso
demais poemas que integram a coletânea Um
específico do poema Rua, verifica-se que Paulo
caso estranho, são escritos em prosa, mas
Corrêa Lopes fez uso da prosa, conferindo à sua
trazem consigo toda essa aura lírica e poética.
escrita uma produção em que o “verso já não
Com base nos dois poemas Renascimento e
está sujeito ao rigor métrico e às formas fixas de
Rua, entende-se que Paulo Corrêa Lopes
versificação, como o soneto, por exemplo.
caracteriza-se como um poeta que transitou do
Também a rima se torna desnecessária”
parnasianismo para o modernismo sem perder
(GONZAGA, 1991, p. 163).
sua qualidade poética e força de seu texto, ou
A sonoridade do poema Rua manifesta-se no
seja, escreveu com a mesma habilidade e
momento da leitura, ao permitir que o leitor se
competência sem ficar rigorosamente preso aos
envolva com a temática abordada e sinta-se
ditames de movimentos. Fez com que sua
integrante ao contexto apresentado pela prosa
poesia, embora singela e desconhecida,
poética. É possível verificar que embora o poema
trouxesse consigo a magia de dizer coisas belas
não esteja metrificado, a sonoridade se apresenta
sem maiores preocupações com formalismos.
de forma a conduzir a leitura como se assim
Tanto em Renascimento e Rua, o que se vê é
estivesse, pois o jogo de palavras e o
uma poesia carregada de sensibilidade e de
encadeamento concedido a elas confere
significação, com o cotidiano como ponto de
sonoridade marcante dos tempos e metrificação.
partida, isto é, o ser humano interfere e sofre
Se, por exemplo, o leitor desejasse realizar
interferências de seu contexto, venham elas da
uma análise de verso, poderia alterar a
natureza ou da sociedade. Ao passar por uma
composição do texto em prosa, para um poema,
“rua” alguém pode dela sair “renascido”; a rua,
sem modificar o significado e a sonoridade.
conforme já foi dito, tem o papel de servir como
Rua solitária, meio de circulação, e no ser humano está
por onde cruzei tantas noites presente a capacidade de renascer a cada dia,
à procura de um mundo perdido! sob novas expectativas.
Rua solitária,
onde o eco de meus passos Referências
acordou velhos sonhos que dormiam!
Quantos, antes de mim, não pisaram as tuas CESAR, Guilhermino. Nota sobre esta edição.
pedras! In: LOPES, Paulo Corrêa. Obra Poética Paulo
Quantos corações não vislumbraram
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 15

Corrêa Lopes. Porto Alegre: Instituto Estadual Espera, ó triste coração, espera!
do Livro – IEL, 1958. p. 7-10. Também há de surgir a primavera,
A primavera de um amor profundo.
CLEMENTE, Ir. Elvo. Folhas do caminho.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
E diz-me o coração com a voz dorida:
________. O temporal e o eterno. In: LOPES, “Estou cansado de sofrer na vida,
Paulo Corrêa. Obra Poética Paulo Corrêa Estou cansado de esperar no mundo!
Lopes. 2.ed. Porto Alegre: IEL, EDIPUCRS,
FAPERGS, 1991. p. 13-17. RUA6
GONZAGA, Sergius. Manual de Literatura Rua solitária, por onde cruzei tantas noites à
brasileira. 8.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, procura de um mundo perdido! Rua solitária,
1991. onde o eco de meus passos acordou velhos
sonhos que dormiam!
LOPES, Paulo Corrêa. Obra Poética Paulo
Corrêa Lopes. Porto Alegre: Instituto Estadual Quantos, antes de mim, não pisaram as tuas
do Livro – IEL, 1958. pedras! Quantos corações não vislumbraram
MEYER, Augusto. Lembrança do poeta. In: através de tua luz humilde, uma luz mais bela.
Correio da manhã – 1960 a 1969. A sombra da
estante. Edição 21327, 08 out./1962. p. 8. Rua solitária, quando a noite te envolver,
Disponível em: lembra-te que a marca de meus passos ficou
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/Ho para sempre gravada na mudez de tuas pedras.
tpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=33265
&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader# Rua solitária, ouve meu canto de gratidão. A ti
>. Acesso em: 15 dez. 2015. devo a certeza de que não há nada que seja de
SANSEVERINO, Antônio Marcos V.. Poesia todo desprezível no mundo.
itinerante do Trem da Serra. In: Revista
Brasileira de Literatura Comparada, n.18, Rua solitária, por onde cruzei tantas noites à
2011. p. 143-168. Disponível em: procura de um mundo perdido!
<http://www.abralic.org.br/downloads/revistas/1
415577258.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015. ********
SOARES, Tanira Rodrigues. Paulo Corrêa
Lopes: a literatura como essência de vida. In:
Jornal Folha de Itaqui, Projeto Itaqui 150
anos: Resgate cultural, 18 jul./2008, p. 7.
Anexos

RENASCIMENTO5
Tudo murchou, tudo morreu com a geada,
Tudo crestou a geada tenebrosa.
Também padece e chora desolada
A natureza, a eterna mãe piedosa!

Porém, em breve, a primavera airosa,


Esboçará com as tintas da alvorada,
Uma aquarela esplêndida e formosa,
Em tudo pondo uma canção alada.

5 6
LOPES, 1958, p. 254. LOPES, 1958, p. 142.
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA


Jucelino Viçosa de Viçosa 7

RESUMO: O presente artigo aborda a recorrentes em sua trajetória de vida, em que a


paisagem presente nos poemas Entrando no reinterpretação de fatos pertencentes ao passado
Bororé, de João Sampaio, e Rubens Colombo obedece a critérios de imaginação, emoção e
Lima, de Mano Lima, dois autores do município sentimento, característicos da memória cultural,
de Itaqui, localizado na Fronteira-Oeste do Rio fazendo com que os sujeitos poéticos
Grande do Sul, e que a partir de sua trajetória de reproduzidos se incorporem à paisagem
vida, repertório cultural e manifestação literária ressignificada; nela, fica evidenciada a atuação
têm a capacidade de recriarem, com beleza e do ambiente sobre suas ações. Nos poemas, a
eficácia, atividades e vivências do cenário sensibilidade está articulada com a memória,
fronteiriço, ao reproduzirem, em seus poemas, pois os fatos reproduzidos são resultantes de
pessoas que integraram a paisagem itaquiense, algo que foi vivido ou que surge da impressão
de modo que se observa a construção de pessoal dos autores, a partir de referenciais e
memórias sobre protagonistas que viveram num vestígios presentes na memória de cada um.
tempo passado e pertenciam a uma estrutura
social que já não mais se percebe atualmente. O Palavras-chave: Poesia; Paisagem;
referencial teórico relacionado às questões da Memória; Cultura.
memória dá ênfase a autores como Halbwachs
(1990), Candau (2009; 2014) Pollak (1989), 1 Apresentação
Bernd (2013); quanto aos elementos da O propósito desse artigo é estudar a
paisagem geográfica e subjetiva, busca-se produção poética de dois autores nascidos na
respaldo em autores como Collot (2010;2013), zona urbana, mas que trazem em seus poemas
Berwanger (2009-2010), Figueiredo (2010); Entrando no Bororé8 e Rubens Colombo Lima9
com relação à memória cultural serão a configuração de uma paisagem rural apoiada
trabalhados autores como Assmann (2011), na trajetória de vida, nos aspectos culturais e na
Soares (2019), entre outros. Cabe destacar que manifestação literária de cada um; bem como na
os poetas lançam mão de fragmentos memoriais capacidade de recriarem, com beleza e eficácia,
para a produção de seus poemas, uma vez que a as atividades e vivências do cenário fronteiriço.
memória integra sua trajetória de vida, suas Pretende-se enfatizar o pensamento cultural e
vivências, seus desdobramentos, e são artístico local (o de Itaqui), como também a
ressimbolizadas a partir da paisagem possibilidade de ampliação desse espaço a partir
evidenciada nos sujeitos configurados nos da ênfase nos seres humanos reproduzidos nos
poemas. Os autores ressaltam os referenciais de poemas estudados e sua significação dentro da
memória que lhe são mais próximos e mais paisagem itaquiense com a finalidade de

77 Memória (Social, Cultural), Identidade, Literatura (Poesia,


Doutorando em Memória Social e Bens Culturais pela
Universidade La Salle (Canoas/RS), Mestrado Regionalismo Sul-rio-grandense, Literatura Gauchesca,
Profissional em Memória Social e Bens Culturais pela Literatura Comparada) e Interdisciplinaridade. Contato:
Universidade La Salle (Canoas/RS), Especialização em jucelino.vicosa@yahoo.com.br.
8 Poema integrante da obra Para alguns iluminados de
Literatura Brasileira pela Universidade Regional da
Campanha (URCAMP), Graduação em Letras – Língua João Sampaio. Desantis: São Luiz Gonzaga, 1999. Música
Portuguesa e Literatura Brasileira, Licenciatura Plena pela integrante do cd Lá vem o Rio Grande a cavalo. Gravada
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - pelo Grupo Quero Quero. (Faixa 5).
9 Poema integrante do cd Batendo Estribo de Mano Lima.
Campus II (Uruguaiana/RS). Com ênfase nos estudos da
Gravada por Mano Lima (Faixa 5 – CD 2) - 2013.
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
17

destacar tópicos da memória individual e 2 Os peçuelos10 da memória


coletiva presentes nas produções poéticas, bem
Quando se reflete sobre a memória, torna-se
como da memória cultural cuja evidência
possível entender o cotidiano, já que lembrar e
também se faz presente.
esquecer são partes de igual processo, e os
Os poetas em estudo lançam mão de fragmentos
vestígios, os rastros se tornam capazes de
memoriais para a produção de seus poemas, uma
reproduzirem fatos de uma existência. A
vez que a memória integra sua trajetória de vida,
memória se configura como um momento em
suas vivências, seus desdobramentos, com o intuito
que há uma busca constante de se
de ressaltar peculiaridades do município de Itaqui
construir/desconstruir e sua conquista sempre se
para que possam ser ressimbolizadas a partir da
apresenta de forma fragmentária, inacabada
paisagem evidenciada nos sujeitos configurados
(BERND, 2013).
nos poemas selecionados, em que se ressaltam as
A lembrança tem um caráter de
marcas e os traços de paisagens geográficas e
retrospectividade e é acionada cada vez que a
subjetivas identificadas, com o intuito de se
experiência vivida estiver definitivamente
configurar ou reconfigurar uma paisagem
consolidada no passado (ASSMANN, 2011);
poetizada pela mediação das construções poéticas.
além disso, pode ser construída e reconstruída a
Oportuniza-se o contato com paisagens de
partir de uma semente de rememoração, capaz
Itaqui, concepções de memória e de literatura,
de se transformar em uma massa consistente de
com ênfase na configuração aproximada da
rememorações, e a primeira testemunha a quem
paisagem e linguagem características da região,
se pode recorrer é ao próprio sujeito.
ressaltando-se, principalmente, os tópicos
No caso dos autores estudados, cada um tem sua
relativos à memória de evocação e aos vestígios
própria semente de rememoração11 e, dentro de
memoriais e culturais. Bem como se possibilita
um contexto mais amplo, acabam por englobar
uma proximidade com a produção poético-
outras recordações que desembocam em uma
musical e, por extensão, com a cultura sul-rio-
produção poética diversificada e com os mais
grandense, por meio da inserção de Itaqui ao
variados elementos característicos da paisagem
contexto cultural do Rio Grande do Sul, a partir de
itaquiense. No entanto, a convivência com os
seu passado e das ressignificações desse passado
demais faz com que novas informações sejam
no presente.
agregadas às lembranças de cada sujeito, para
Com o emprego de vestígios memoriais,
configurar o que Pollak (1992) determina como a
evidencia-se a reprodução de um mural
“memória por tabela”, isto é, acontecimentos que o
representativo do município de Itaqui em que os
imaginário permite ao indivíduo sentir-se parte
versos serviram como uma testemunha da história
integrante de suas rememorações, sem levar em
e prova testemunhal de fatos ocorridos. A vida rural
consideração se viveu ou não o que está sendo
interiorana é apresentada com seus personagens
contado.
simples e humildes, de modo a possibilitar que se
Assim, pode-se estabelecer relações entre
verifiquem situações acontecidas num passado
vivências presentes e as anteriores, religando-as
remoto e que podem ter servido de origem à
por meio de rastros, vestígios, conforme
construção de um sujeito, a partir de observações e
assegura Bernd (2013, p. 53): “Entre memória e
impressões dos autores, que descrevem figuras e
esquecimento, o que sobram são os vestígios, os
sua interação no contexto da época, a partir de uma
fragmentos do vivido, o qual jamais pode ser
geografia simbólica e poética, em que a
recuperado na sua integralidade”. Com o
manifestação de sentimentos existenciais
emprego de uma sensibilidade poética, os
experimentados pelos sujeitos constitutivos desse
autores se utilizam de informações presentes na
cenário e experiências artísticas e culturais nele
sua memória individual, mais a experiência de
vivenciadas.
vida de cada um, para comporem os quadros
10 Conforme MICHAELLIS – Dicionário Brasileiro da e informações pertencentes à constituição dos sujeitos,
Língua Portuguesa (2021) Peçuelo significa: “REG (RS) mas que englobam na sua consolidação componentes da
Espécie de alforje de couro, que se transporta à garupa do esfera social, cultural e econômica, por exemplo. Para o
animal, usado para acondicionar roupas e objetos pessoais autor: “[...] dentro desse conjunto de depoimentos
do cavaleiro”. Também recebe o nome de “mala de exteriores a nós, é preciso trazer como que uma espécie de
garupa”. semente da rememoração a este conjunto de testemunhos
11 De acordo com Halbwachs, entende-se por semente de exteriores a nós para que ele vire uma consistente massa
rememoração aquelas lembranças que integram a esfera do de lembranças” (HALBWACHS, 1990, p. 18).
sensível, do particular e do subjetivo. São acontecimentos
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
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paisagísticos presentes em cada poema expressões que podem atravessar longos


(FIGUEIREDO, 2010). A memória se insere no períodos de tempo e carregar consigo valiosos
campo das relações como a representar o significados (SOARES, 2019, p. 102).
conflito entre lembrança e esquecimento. De acordo com Assmann (2011), no caso de
Cada sujeito guarda uma ideia de sua própria faltar autenticidade para alguns fatos recordados,
memória e torna-se capaz de discorrer sobre ela, haverá uma compensação em razão da
com o objetivo de destacar particularidades, construtividade adquirida, e as perdas verificadas
interesses pessoais, níveis de profundidade e são capazes de serem reagregadas pela literatura.
possíveis lacunas. É o que Candau define como Uma vez que, segundo a autora, os vestígios
metamemória, isto é, trata-se da representação que carregam consigo a marca da duplicidade, pelo
o sujeito é capaz de fazer com relação à sua própria fato de atrelarem, de modo indissociável, a
memória, do conhecimento já armazenado a recordação ao esquecimento, salienta-se que
respeito dela, de modo a englobar também as nesses vestígios estão incluídos os elementos não
dimensões capazes de remeter ao “[...] modo de verbais, os fragmentos, bem como os resquícios
afiliação do sujeito ao seu passado” (CANDAU, da tradição oral (ASSMANN, 2011).
2014, p. 23). Esse autor preconiza que tanto as A paisagem pode ser entendida como o lugar
memórias como as metamemórias são plurais e em que se permite a troca entre a figura integrante
compostas, além de apresentarem fragmentações, do cenário e o mundo que a cerca, resultando em
fato este que acaba por resultar em identidades uma espécie de aliança entre o interior (aspectos
também múltiplas. subjetivos) e o exterior (a realidade objetiva) em
Com a utilização da metamemória, faz-se uma que dada paisagem passa a ter sua definição a partir
representação das próprias lembranças, de forma do ponto de vista de um sujeito sobre o
a expor o conhecimento trazido a respeito das universo.Trata-se, como assegura Collot (2013, p.
mesmas e também possibilita o 8), de ver a paisagem como “[...] estrutura
compartilhamento, uma vez que se configura num significativa na composição da escrita literária e na
conjunto de representações da memória cultura contemporânea” e que “[...] a palavra
(CANDAU, 2014). De modo que tanto nos literária é inseparável do movimento de emoção
poemas de Silva como nos de Lima é possível que conduz o poeta ao reencontro com o mundo,
perceber a carga emotiva de suas rememorações e numa atenção relacional que questiona a
a reconfiguração da paisagem a partir da subjetividade a partir da alteridade” (COLLOT,
representação poética evidenciada. 2013, p. 8).
A respeito de memória cultural, Assmann A paisagem, em sua relação com o sujeito,
(2011) argumenta que a mesma supera épocas e pode ser vivida como uma experiência
depende de mídias e políticas, portanto, a memória equivalente, situada no espaço objetivo, ao
individual quando busca algo na memória cultural estado do sujeito e este, por sua vez, está
traz “[...] o risco da deformação, da redução e da localizado no contexto da transparência, como
instrumentalização da recordação” (p. 19), e, desse uma manifestação do “sentimento-paisagem”
modo, faz-se necessário o emprego da crítica, da que “[...] não pertence nem ao sujeito nem ao
reflexão e da discussão. A memória cultural, para a objeto, mas nasce de seu encontro e de sua
autora, precisa ser renegociada e mediada, em interação” (COLLOT, 2013, p. 29).
razão de que os indivíduos e as culturas O “pensamento-paisagem” tem a capacidade
propriamente ditas constroem, de modo interativo, de ampliar tudo o que é subjetivo, visto como
suas memórias com o emprego da língua, de produto de um olhar sobre um espaço geográfico,
imagens e de repetições ritualísticas constituintes faz-se capaz de provocar uma transformação
de suas práticas culturais, para fazer com que essa nesse espaço por meio da subjetividade. Assim
memória se torne capaz de transpor gerações e sendo a paisagem é vista como produto do olhar
épocas. do sujeito, em que o propósito é o de uma
Com base nisso, pode-se dizer que construção cultural que privilegia a
[...] a memória cultural extrapola o grupo de ressignificação pessoal como ponto de partida e
convivência, englobando em sua constituição o o emprego dos fatores subjetivos para moldar a
armazenamento de informações que perduram natureza e o espaço contemplados.
por séculos, sendo que, nesse caso, os A valorização da paisagem local oportuniza
portadores de memória cultural não são os seres que se verifiquem desdobramentos que
vivos, mas os objetos, monumentos, direcionam o olhar para o prazer da
documentos, símbolos, artes e demais
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
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reconfiguração, permite a multiplicidade do o indivíduo é o ponto principal de sua temática,


espaço e do sujeito que, entrelaçadas, em consonância com demais particularidades
oportunizam a “revivescência” da memória, características e os costumes da Fronteira Oeste.
enquanto arquivo de fatos e lembranças capazes Começou a escrever poemas aos 15 anos de
de possibilitarem a criação de novas paisagens idade, e expressa que havia descoberto um Rio
no imaginário do leitor (BERWANGER, 2009). Grande dentro de si; no ano de 1979, registra sua
Um quadro paisagístico traz em si a estrutura primeira composição gravada pelo cantor
fundamental da percepção humana, onde a missioneiro Noel Guarany, a milonga intitulada
paisagem é vista como um lugar de emergência Lavadeira do rio Uruguai. Daí em diante,
de uma forma de pensamento, isto é, a conquistou o cenário musical do Rio Grande do
percepção da paisagem provoca o surgimento Sul na voz de conhecidos artistas do
de alguma forma de pensamento em relação ao regionalismo/tradicionalismo; além da produção
que está sendo observado ou sentido (COLLOT, de trabalhos autorais onde veicula seus poemas e
2013). É a paisagem agindo como suporte para outras composições realizadas em parceria com
o próprio pensamento, como imagem do mundo vários autores, também é participante ativo em
vivido, numa experiência sensível que se torna diversos festivais nativistas do Rio Grande do
uma fonte de sentidos, além disso, exerce uma Sul e de Santa Catarina, tendo sido premiado por
espécie de sobreposição à visão fragmentária de diversas vezes, além de integrar o corpo de
um dado objeto, ou seja, a subjetividade da avaliação (SOARES, 2008).
paisagem é expressa por meio de um conjunto Já Mano Lima sempre teve o campo como algo
de elementos visíveis e perceptíveis, presente em sua vida e isso fez com que buscasse
representado pela imagem simbólica desse sua vertente artística no contato direto com a
objeto (COLLOT, 2013). natureza. Foi tropeiro e domador, e das lidas no
Assim, a paisagem pode ser entendida como o campo retirou a base de sua criação poético-
lugar em que se permite a troca entre a figura musical, tornando-se um artista consagrado dentro
integrante do cenário e o mundo que a cerca, do regionalismo/tradicionalismo sul-rio-
resultando em uma espécie de aliança entre o grandense; além de gaiteiro, fez com que sua
interior (aspectos subjetivos) e o exterior (a atuação como cantor já lhe rendesse diversos discos
realidade objetiva) em que dada paisagem passa a gravados e um artista muito procurado para shows.
ter sua definição a partir do ponto de vista de um Credita seu sucesso à simplicidade de seu trabalho
sujeito sobre o universo. O “pensamento- e na verdade que sustenta sua proposta poética,
paisagem” tem a capacidade de ampliar tudo o que além de se enxergar nos olhos de seu público e
é subjetivo, visto como produto de um olhar sobre sentir orgulho daquilo que faz e do que pensa.
um espaço geográfico, faz-se capaz de provocar Procura nos acontecimentos do passado a
uma transformação nesse espaço por meio da fonte de suas produções artísticas, sem, no
subjetividade, trata-se de “[...] um pensamento entanto, deixar de prestar atenção nos
partilhado, do qual participam o homem e as acontecimentos do presente. Em face disso,
coisas” (COLLOT, 2013, p. 29). manifesta sua preocupação em “Levar aquilo
Desse modo. trabalhar com a poesia de José que aprendi com meu pai e com tantos outros
João Sampaio da Silva, o João Sampaio, e gaúchos e passar para os nossos jovens”; já que,
Mário Rubens Battanoli de Lima, o Mano Lima, conforme Lima: “Quando a gente soterra a
significa apresentar a paisagem geográfica de verdade, a fantasia toma conta” (LIMA, 2017).
Itaqui em seu contexto rural, de campos e No poema Entrando no Bororé, João
estradas, assim como demonstrar a Sampaio enfoca a paisagem interiorana de um
sensibilidade dos autores no momento em que fim de tarde itaquiense, em que um indivíduo,
produzem versos tendo o seu local de atuação e montado em seu cavalo, encerra o dia de
vivências como tema. atividades. Inicia por descrever a figura humana
João Sampaio, desde a infância, manteve constante do poema, ressalta a companhia do
permanente contato com o ambiente rural, de cachorro, companheiro do peão em seus
modo a absorver ensinamentos e acumular afazeres, e fornece a localização do espaço
experiências a partir dessa vivência pampiana. geográfico em que transcorre a cena, ao
Trata-se de um estudioso do idioma espanhol e escrever: “Lá vem o Vitor ‘solito’, / entrando no
do guarani, e sua proposta poética busca a Bororé / E um cusco brasino, ao tranco / na
transposição das fronteiras geográficas, em que sombra do pangaré”. De poucas posses, o ente
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
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humano é representado como alguém de instante em que, ao montar, novamente se


“chapéu grande, lenço negro, jeitão calmo de revela a simbiose entre ser humano e animais no
quem chega”; para logo em seguida finalizar a contexto do pampa gaúcho, pois uma borboleta,
primeira estrofe com a paisagem característica com sua graça e beleza, pousa no freio do
de um entardecer na fronteira oeste do Rio cavalo, enquanto se pode ver uma garça
Grande do Sul, numa comparação a uma obra cortando o céu em seu voo de retorno: “Procura
de arte, e ressalta: “Na tarde em tons de a volta do pingo e alça o corpo sem receio /
aquarela, lembra um quadro do Berega” 12 ; Enquanto uma borboleta senta na perna do
Cabe ressaltar que Vitor, negro, viveu na freio / ‘Inté interte’ o cristão, que se cruza
condição de agregado com a família Lima até campo a fora / Mirar a garça matreira no seu
sua morte, em 1969, perto dos noventa anos. pala cor de aurora”. Entende-se que a paisagem
A linguagem poética busca revelar a magia se torna “[...] uma co-produção da natureza e da
que está contida na língua, edificando as paisagens cultura em todas as suas manifestações, desde
visualizadas pelo poeta, uma vez que este se torna as mais materiais (a começar pela agricultura)
capaz de vibrar diante de características até as mais espirituais (pintura e poesia
emergentes de uma paisagem em face de sua incluídas)” (COLLOT, 2013, p. 43).
subjetividade estreitamente ligada a esse cenário Desse modo, ao voltar para casa, após
(COLLOT, 2013). concluir sua jornada de trabalho, o gaúcho
Na estrofe seguinte, Silva insere no cenário encontra seu rancho vazio, convém salientar
a interação do peão rural, em sua faina diária e que esse foi uma construção pessoal com o
constante, e o cavalo com sua inquietação objetivo de abrigar sua companheira, mas que
natural: “O flete troteando, alerta, bufa e se essa possibilidade ficou restrita ao campo dos
nega pra os lados”; assim como as aves, mais sonhos, tendo em vista que ela já não se faz mais
especificamente a perdiz que, desalojada de seu presente. Então só resta seguir o caminho de
ninho pela indocilidade do cavalo, levanta voo casa, rumar com as aves para dar um fecho à
e se choca contra um dos arames da cerca “E tarde e esperar que a noite venha para, quem
uma perdiz se degola no último fio do sabe, acalentar novos sonhos: “Pois lá num
alambrado”. Neste momento, a paisagem se rancho de leiva, que ele ergueu com seu suor /
configura como o caminho a ser trilhado por Fica um sonho por metade de quem vive sem
quem busca realizar uma descrição poética de amor / Num suave bater de asas, cruza um
um momento vivenciado, ao se mesclarem bando, sem alarde, / E as garças e o Vitor
alguns elementos da natureza, aqui somem lá na lonjura da tarde”.
representados pelos animais e demais Presencia-se uma poesia que emociona e
componentes do cenário natural. sensibiliza o leitor, possibilita reflexões sobre a
Silva ora expressa a religiosidade e o campanha, suas paisagens e seus sujeitos, e faz com
sentimento de amizade presentes nas pessoas do que do mais simples acontecimento cotidiano se
campo, inclusive indica a emoção do momento, possa extrair um modo de ver e conviver no mundo,
ao escrever “Apeia na cruz da estrada e o seu por meio das emoções e percepções oportunizadas
olhar se enfumaça / Saca o sombrero em pelo poeta. Observam-se os recônditos de relações
silêncio, por respeito à sua raça”, ora sintetiza estabelecidas entre literatura e geografia, uma vez
a representação de um gaúcho mostrado como que há uma articulação entre lugares, memórias e
um trabalhador que está finalizando sua rotina e subjetividade, ou seja, valoriza-se a experiência
que, para o autor, reveste-se de uma beleza paisagística efetivada pela presença
significativa: “Lá vem o Rio Grande a cavalo, / (BERWANGER, 2016).
Entrando no Bororé, / Lá vem o Rio Grande a Nota-se a configuração de uma paisagem
cavalo, / Que bonito que ele é”. ressignificada por meio de recursos subjetivos do
Após o momento de reflexão e respeito por autor, corroborando com o que afirma Candau, ao
quem morreu, o peão retoma seu caminho, expressar que: “[...] o escritor local, aquele que

12 “Luiz Alberto Pont Beheregaray, Berega, nasceu em impressões de sua infância em meio ao pampa gaúcho: sua
1934, em Uruguaiana. Residiu em Porto Alegre de 1958 a gente, sua cultura e suas coisas e o inseparável cavalo.
2000, exercendo as atividades de bancário, empresário e Neste quesito, rompeu fronteiras e o retratou em inúmeras
artista plástico, quando voltou a sua cidade natal, para se raças, nos infinitos movimentos, usos, culturas e esportes”
dedicar à pecuária. [...]. Sua temática foi recorrente às (BEREGA, 2021).
impressões da cultura de sua terra, sua região, e suas
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
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tem o poder de registrar os traços do passado, Lima indica as marcas identitárias que compõem
oferece ao grupo a possibilidade de reapropriar-se sua figura a partir das recomendações paternas.
desse passado através dos traços transcritos” No momento em que rememora, o autor utiliza-se
(2014, p.109). de sua subjetividade para buscar construir sua
Em Rubens Colombo Lima, poema dedicado identidade (BERND, 2013).
a seu pai, Mano Lima expõe todo o sentimento Embora a peculiaridade do linguajar, Lima
de filho e demonstra que, embora a rusticidade oferta uma filosofia pessoal e verdadeira, ao
e rigores presentes na vida do campo, o dizer que: “Pois o mal só reponta os fracos / E
amanhecer, o silêncio do ambiente e a hora do esses, por si, já são derrotados [...] / O homem
chimarrão se fazem cenário para um momento é o que é / E não aquilo que qualquer um
de reflexão e de consagração da saudade: “Hoje pensa”. Expressa a humildade que o acompanha
levantei cedo demais / Senti saudade tua, meu e a justifica enquanto ensinamento paterno, pois
pai / Olhei pra cadeira onde mateava, ‘tava’ em seu poema está escrito: “E não tenha medo
vazia / E um silêncio tomou conta de mim / de pedir desculpa / Quando estiver errado / E
Quando, na cabeceira da mesa, / tu também não sempre que puder perdoar, / perdoe / Sem se
‘tava’”; ou seja, o autor, na condição de filho, sentir derrotado”.
busca a presença física de seu pai e faz um Valores como honestidade, justiça,
retorno à sua infância para destacar os valores consciência povoam o poema como marca de
paternos que habitam seu interior: “Então quem vive e pratica aquilo em que acredita:
lembrei de minha infância / Não só do grande “Não tenha vergonha de ter terra nas unhas, /
pai / Mas também do grande amigo, / Do Mas a alma limpa como a vertente / de um
carinho que tu me dava, / De teus ensinamentos lajeado / Tenha compromisso, seja honesto,
/ Que, no momento, nem tanto me importava”. trabalhador, / Justo e agradecido / E quanto
Nota-se uma articulação da sensibilidade mais longe for / Mais se lembre de onde tenha
poética do autor com a realidade representada no saído”.
poema, de modo que há uma reprodução da Para Candau (2014), memória e identidade se
experiência vivenciada com base na impressão nutrem e se apoiam enquanto potencializadores no
pessoal de quem rememora (POLLAK, 1992). E momento em que uma história de vida é construída
a paisagem que se verifica tem como efeito a a partir de uma narrativa, pois “[...] não é suficiente
reprodução de um sentimento de filho para pai, em apenas nomear para identificar, é preciso ainda
que saudade e ausência se complementam para conservar a memória dessa nominação” (p. 69).
compor o quadro paisagístico onde a emoção se Lima encerra sua viagem às memórias da
encarrega de conduzir o poeta ao “reencontro com infância com destaque para o cenário das
o mundo” (COLLOT, 2013). rememorações e da dor que o acompanha desde a
Começa, então, a elencar os ensinamentos que partida de seu pai: “Na fumaça do fogo de chão /
foram por ele incorporados e mantidos até o Do velho galpão onde nós ‘mateava’ [...] Pra
presente, repassando-os a seus filhos, pois agora curar esta ferida,”; e manifesta sua gratidão ao
lhe cabe essa missão de retransmitir o que foi externar: “Pois tenha certeza, meu velho, / Que
aprendido: “Mas era em ti que eu me espelhava / teus ensinamentos que me ajudaram / A
“Agarradito” em tuas bombachas / Foi que conquistar um espaço na vida”. Lima encerra o
aprendi a ser homem / Aprendi a ser humilde pra poema demonstrando que o momento do
não ser humilhado / Ser amigo dos amigos / chimarrão pode se transformar em uma conversa
Respeitar pra ser respeitado”. Dá ênfase às lições permanente com seu pai: “Hoje levantei cedo
absorvidas no que diz respeito às determinações demais / Pra, pelo menos, em pensamento /
pessoais, isto é, as reflexões e pensamentos que Matear contigo, meu pai”.
devem nortear qualquer atitude: “Me ensinou a ter Por meio da rememoração, Lima dá vida a
coragem / Para dominar meus próprios impulsos / uma identidade em que as heranças memoriais
E procurar estar sempre com a verdade do lado, se refletem na base de sua construção enquanto
[...] Não te preocupa com o que pensam de ti,/ Mas cidadão, já que: “Sem memória, o sujeito se
sim com tua consciência”. esvazia, vive unicamente no momento presente,
Considerando-se o que trata Pollak (1992) ao perde suas capacidades conceituais e
expressar que a identidade é produzida “em cognitivas. Sua identidade desaparece”
referência aos outros”, cujos critérios são a (CANDAU, 2014, p. 60). E a imagem do ‘filho
aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade, mateando com o pai’ invoca uma paisagem
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
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ressignificada, “desdobrada”, construída a suas produções um importante item cultural


partir da subjetividade do autor sustentado diante de uma temática local em que a
(BERWANGER, 2009). configuração da paisagem engloba, além de
Por meio das rememorações, há a construção detalhes meramente geográficos, aqueles que
de uma paisagem que não significa somente uma corporificam a subjetividade da paisagem.
representação ou uma presença, pelo contrário,
Referências
nota-se um entrecruzamento entre elas,
concretizando a ideia de um “pensamento-
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação:
paisagem” (COLLOT, 2013). A paisagem
formas e transformações da memória cultural.
ressignificada traz consigo os fragmentos de uma
Tradução: Paulo Sohete. Campinas, SP: Editora
memória que não deve se apagar e sim ser
da Unicamp, 2011.
entendida como um novo horizonte a ser
descoberto (COLLOT, 2013). BEREGA. Dados do artista. Disponível em:
<http://www.berega.com.br/pagina2.htm>.
3 Considerações Finais
Acesso em: 07 set. 2021.
O que se vê na paisagem geográfica dos
BERND, Zilá. Por uma estética dos vestígios
poemas é o campo e o galpão, como espaços de
memoriais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
uma identidade social, enquanto símbolo que
demonstra as transformações ocorridas ao longo BERWANGER, Maria Luiza. Paisagens do dom
do tempo. Vê-se um indivíduo humano e da troca. Porto Alegre: Literalis, 2009.
corajoso, mas não é sobre-humano; tem BERWANGER, Maria Luiza. Poesia brasileira
valentia, em igual medida em que expõe seus contemporânea, paisagem e memória. In:
sentimentos mais íntimos como amor, saudade Organon. Porto Alegre, v. 31, n. 61, jul/dez.
e dor, por vezes até comprovados por meio de 2016 (p. 65-80).
lágrimas.
As imagens poéticas construídas têm como CANDAU, Joel. Memória e identidade. São
propósito articular o real e o simbólico, ao partir Paulo: Contexto. 2014.
de fatores e situações reais, busca-se envolvê-las COLLOT, Michel. Poética e filosofia da
com entendimentos relacionados ao imaginário, à paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel,
fantasia, com ênfase nas questões subjetivas 2013.
representadas, por exemplo, pelos sentimentos de
amor, perda, sofrimento, dor e esperança. FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de.
Nos poemas estudados, enfocou-se a Paisagem em três lições. In: ALVES, Ida
construção de memórias sobre protagonistas Ferreira; FEITOSA, Marcia Maria Miguel
que viveram num tempo passado e pertenciam a (orgs.). Literatura e paisagem: perspectivas e
uma estrutura social que já não mais se percebe diálogos. Niterói: Editora da Universidade
atualmente. Há um farto estoque memorial que Federal Fluminense, 2010. (p. 205-217).
fornece aos autores condições para que possam HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.
construir novas paisagens a partir do acesso às São Paulo: Vértice, 1990.
suas lembranças, agir para que cada verso dos
poemas traga consigo, além da sensibilidade LIMA, Mano. Rubens Colombo Lima. In:
poética, informações relativas a um dado LIMA, Mano, Batendo Estribo, (Faixa 5 – CD
momento histórico do município e intercalá-las 2) - 2013.
com suas vivências pessoais. De modo que há LIMA, Mário Rubens Battanoli de. Entrevista.
uma ressignificação dos fatos vividos, a Realizada na Estância Santa Cecília, em 03 de
evidenciar a subjetividade como fator de março de 2017.
ressimbolização de paisagens.
A construção poética dos autores trabalhados MICHAELLIS – Dicionário Brasileiro da
traz consigo, além do ritmo (por serem poemas Língua Portuguesa. Peçuelos. Disponível
musicados), o vasto emprego de metáforas, em:.<https://michaelis.uol.com.br/busca?id=a
marcas de individualidade e as nuanças locais; Kqel>. Acesso em: 02 out. 2021.
possibilita, igualmente, que temas desenvolvidos POLLAK, Michael. Memória, e identidade
ultrapassem a mera conotação regional e passem social. Estudos Históricos: Rio de Janeiro, v. 5,
a indicar conotações de universalidade, e faz de n. 10, 1992.
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
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SAMPAIO, João. Entrando no Bororé. In:


SAMPAIO, João. Para alguns iluminados.
Desantis: São Luiz Gonzaga, 1999.
SOARES, Tanira Rodrigues. João Sampaio: um
poeta que transcende fronteiras. In: Jornal
Folha de Itaqui, Itaqui (RS), p. 7, 15 ago. 2008.
Projeto: Itaqui 150 Anos – Resgate Cultural.
SOARES, Tanira Rodrigues. Tessituras da
memória: lembrar, narrar, ressignificar. Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Bens Culturais da
Universidade La Salle, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutora em Memória
Social e Bens Culturais, Canoas, 2019.
Disponível em: <http://svr-
net20.unilasalle.edu.br/bitstream/11690/1253/1
/trsoares.pdf >. Acesso em: 10 set. 2021.

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Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA


RIBEIRO
Fernanda Danielle Neves de Jesus13

RESUMO: O desenvolvimento deste trabalho direcionamentos do cunho teórico-metodológico


se firma no paralelo entre paisagens urbanas e a apontados por Antonio Candido no livro “Crítica e
sociedade na poesia de Marilza Ribeiro. As Sociologia” (2006), em que apresenta perspectivas
imagens da paisagem urbana em sua poética nos e procedimentos que tem sido base para estudos em
permitem elaborar compreensões acerca da cuja produção e análise de obras literárias podem
existência humana uma vez que ecoa em seus ser lidas em sua relação com a sociedade.
versos referência às relações que se configuram Se anteriormente o foco das análises literárias
no âmbito social, com tempo e espaço definidos estava voltado a entender, explicar ou, por vezes,
por meio da forma figurada. Consideramos o justificar o contexto social no qual a obra se
conceito de paisagens a partir do proposto por emergia, com o advento dos estudos
Michel Collot (2013) a fim de elucidar a contemporâneos em que o conhecimento gerado
construção das imagens que se projetam a partir por diversos campos se torna uma ferramenta a
do corpo e pela percepção do sujeito lírico mais para as análises. Não com preocupações
inserido no espaço urbano-citadino no qual meramente causais, mas como instrumento para
habita. Por ser este espaço construído em função compreender sua construção, enquanto obra
da vida em sociedade, o que nos permite artística que de fato é.
aproximá-los da perspectiva de Antonio O método de análise que tem sua base na
Candido (1996), uma vez que a representação crítica sociológica, aplicado aos estudos
do social é imagem constante na poética da literários direciona a interpretação das obras
autora. Orientamos as análises a partir dos para o campo dialógico considerando não
estudos estilísticos-discursivos e tendo em vista somente os aspectos relacionados à construção
a abordagem fenomenológica de Maria Luiza social, mas também os composicionais, que
Ramos (2011) no que tange a perspectiva dos fazem parte da construção do objeto literário,
estratos poéticos. A aproximação da tendo em vista a influência que o ambiente
experiência do sujeito lírico no seu espaço em possa determinar na obra, por ser parte dela.
sociedade torna singular a construção das Antonio Candido, já no prefácio do livro, expõe
paisagens, na medida em que a arte apreende o sua visão sobre as análises literária, para ele a
momento de existência e resiste por meio de “estrutura constitui aspecto privilegiado e ponto de
imagens que re-voltam. referência para o trabalho analítico” (2006, p. 9).
Sendo estrutura, portanto, um termo que faz
Palavras-chave: Marilza Ribeiro; Paisagem referência ao texto em si, formado por camadas
urbana; cidade; Literatura e Sociedade. interna, em detrimento de seu contexto, dito
externo. O autor reforça, ainda, que:
1 Introdução
Isto é dito para esclarecer o uso de um termo;
Trataremos de início do projeto sobre o qual se não para menoscabar uma tendência decisiva
fundamenta a abordagem das análises aqui no progresso dos estudos de teoria literária,
desenvolvidas. Organizadas a partir de pois me convenço cada vez mais de que só

13
Mestranda em Estudos Literários pelo PPGEL-UFMT • UFMT• E-mail: fernanda_dnj@hotmail.com •
Especialização em Linguagem e Ensino: Língua e Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Maria Domingues da Rocha
Literatura UFMT-CUA• Graduação em Letras/Francês Reis (UFMT).
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
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através do estudo formal é possível apreender num primeiro momento, por partir do que está
convenientemente os aspectos sociais posto, visível, que é o próprio texto, a
(CANDIDO, 2006, p. 9). linguagem, em detrimento da matéria (social),
Fez-se necessário que numa segunda reedição permite ao crítico interpretações sobre a obra
do livro Literatura e Sociedade fosse apresentada que não se limite ao resultado das relações entre
uma nota explicativa para a escolha feita pelo causa e significado.
termo ‘estrutura’, tendo em vista que na ocasião Sobre a ideia de jogo consideramos também o
de uso não haver marcada distinção entre os estudo de Hans-Georg Gadamer, em sua obra
campos de estudos estruturalistas e funcionalistas. Verdade e Método I ao afirmar que,
Justificando-se a escolha que se fez pelo uso do Quando, em correlação com a experiência da
termo ‘estrutura’ da seguinte forma: arte, falamos de jogo, jogo não significa aqui
[...] o que eu desejava naquele tempo era o comportamento ou muito menos o estado de
apenas acentuar o relevo especial que deve ânimo daquele que cria ou daquele que
ser dado à estrutura, como momento de uma usufrui e, sobretudo, não significa a
realidade mais complexa, cujo conhecimento liberdade de uma subjetividade que atua no
adequado não dispensa o estudo da jogo, mas o próprio modo de ser da obra de
circunstância onde mergulha a obra, nem da arte (1997, p.174).
sua função (CANDIDO, 2006, p.10). Portanto, o jogo, ou melhor, o ser da obra de
A escolha por partir da estrutura ‘interna’ arte deve ser compreendido a partir dele mesmo.
das obras literárias em relação ao contexto Como uma entidade que se impõe aos aspectos
social ‘externo’ não reduz a importância da transitórios como o ato de criação e de reprodução
segunda, contudo, acrescenta ao estudo, nesta da obra, sendo elementos que não podem ser
perspectiva de análise, valores distintos acerca resgatados para ser compreendida, bastando,
do objeto literário. Contrariando a prática da apenas, o trato por ela mesma para isso.
tradição, que partia do objeto para explicar, 2 A obra de arte literária enquanto objeto
revelar ou justificar práticas e fatos gerados por de análise
um contexto político social, desconsiderando,
por vezes, o valor agregado ao ato de criação Entendendo que a obra literária não é
presente no objeto artístico-literário. produto originário, estritamente, da ação
Desfazendo-se, portanto, uma prática limitante criativa e/ou artística de um sujeito em um
anteriormente habitual no processo analítico das determinado contexto social. Podendo ser
obras literárias. O autor considera sobre a produto de processos também autômatos. Deste
distinção no trato com a obra literária que, modo, nenhum dos fatores (subjetivo e social)
podem ser considerados como categorias únicas
antes procurava-se mostrar que o valor e o ofertadas como recurso para pensar e elaborar a
significado de uma obra dependiam de ela interpretação e a análise de uma obra literária,
exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que
como objeto artístico, a ponto de ser suficiente
este aspecto constituía o que ela tinha de
essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, para sua leitura.
procurando-se mostrar que a matéria de uma obra Existe para tais finalidades outras formas e
é secundária, e que a sua importância deriva das procedimentos de análise e interpretação do
operações formais postas em jogo, conferindo- objeto artístico que desconsidera a influência
lhe uma peculiaridade que a torna de fato ontológica e social exercida sobre ele. Não
independente de quaisquer condicionamentos, sendo essas as condições nem os parâmetros
sobretudo social, considerado inoperante como escolhidos para a condução deste trabalho, nem
elemento de compreensão (CANDIDO, 2006, para com o objeto, nem para as análises e
p.12). interpretação advindas dele.
O jogo mencionado por Candido, seria Partimos, no entanto, daquilo que Antonio
aquele possibilitado pelo trato com os recursos Candido considera como postura diante do
linguísticos que quando operados (forjados) objeto artístico literário, para ele:
pelo autor promovem efeitos de sentidos e a A criação literária traz como condição
interpretação do objeto artístico. Tais efeitos necessária uma carga de liberdade quea torna
permitem gestos de leitura e ideias que independente sob muitos aspectos, de tal
poderiam ou não estar relacionados ao aspecto maneira que a explicação dos seus produtos é
material, de âmbito histórico-social. Ao optar, concentrada, sobretudo neles mesmos. Como
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
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conjunto de obra de arte a literatura se como base as estruturas internas, os recursos


caracteriza por essa liberdade extraordinária linguísticos: estilísticos-formais, para, então,
que transcende as nossas servidões (1969, estabelecer possíveis ‘leituras’ com as estruturas
p.1). externas, contexto social.
Confere à crítica literária a função de revelar 3 Construção da paisagem
possíveis leituras e relações da obra literária que
se estabelecem no âmbito da sociedade, A partir da perspectiva temática construída
respeitando sua liberdade de criação e, portanto, pelo eu poético, em particular as paisagens
sua ‘integridade’, tendo em vista que urbanas, tomamos o corpo, imagem sempre
presente, como referência de partida para este
Hoje sabemos que a integridade da obra não
olhar em perspectiva, proposta em princípio
permite adotar nenhuma dessas visões
dissociadas; e que só a podemos entender pela construção das imagens que se dão num
fundindo texto e contexto numa interpretação primeiro plano pela referência à um espaço
dialeticamente íntegra, em que tanto o velho citadino; num segundo momento ocorre esse
ponto de vista que explicava pelos fatores movimento no espaço urbano, pelos sujeitos,
externos, quanto o outro, norteado pela focado nos corpos, que direcionam o olhar do
convicção de que a estrutura é virtualmente eu lírico para esse quadro de imagens.
independente, se combinam como momentos Compreende-se paisagem conforme a
necessários do processo interpretativo. definição apresentada por Michel Collot (2013)
Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o como imagens construídas a partir da relação e
social) importa, não como causa, nem como
perspectiva de um sujeito em seu espaço. A
significado, mas como elemento que
desempenha um certo papel na constituição da construção do significado de paisagem proposta
estrutura, tornando-se, portanto, interno. por Collot converge com o sentido já em uso por
(CANDIDO, 2006, p. 13). outras áreas de conhecimento como a geografia,
a arquitetura, a política etc. Contudo, tais usos
A partir das reflexões de Candido sobre estão desgastados em virtude de extensa
influências na obra pela autoria, contexto social e aplicação admitida pela sua pluralidade
composição estrutural, procuramos desenvolver semântica. Ademais, o termo aqui em questão
neste trabalho interpretações que aliem tais adquire aspecto distinto em relação aos demais
elementos: contexto sócio-histórico, espaços e tanto pela referencialidade como pela
sujeito lírico, materializados na obra mediante os perspectiva atribuída em sua construção, uma
estratos poéticos. Tendo em vista que para o vez que a aplicação e funcionalidade
crítico, a obra de arte literária deve ser percebida desenvolvem-se no campo da linguagem
na relação interna e externa da obra, como já literária. Para o autor,
mencionado.
Partindo do entendimento de Hans-Georg A paisagem aparece, assim, como uma
Gadamer no que diz respeito ao modo de serdo manifestação exemplar da
multidimensionalidade dos fenômenos
jogo, sendo este jogo a própria obra de arte,
humanos e sociais, da interdependência do
considerando-a, tão somente, a partir da tempo e do espaço e da interação da natureza e
experiência do ser arte, distanciando-a da da cultura, do econômico e do simbólico, do
“consciência estética” tal qual se avalia um indivíduo e da sociedade. A paisagem nos
objeto. Para o autor “a obra de arte tem, antes, o fornece um modelo para pensar a complexidade
seu verdadeiro ser em se tornar experiência que de uma realidade que convida a articular os
irá transformar aquele que a experimenta” aportes das diferentes ciências do homem e da
(GADAMER, 2015, p.175), ou que a sociedade (COLLOT, 2013, p. 15).
experiencia. A proposição pretendida pelo autor enfatiza
Selecionamos, para aplicar tais abordagens, a paisagem construída pela mente; em princípio,
textos da poeta Marilza Ribeiro, autora mato- abstratas para em seguida encontrar
grossense, como objeto para o desenvolvimento materialização no real, na arte, em específico na
das análises, tendo em vista as leituras de cunho linguagem, pelo processo de construção
social que podem ser desenvolvidos num primeiro figurativo, metafórico.
gesto de leitura, nos permitindo seguir para a Collot (2013) propõe a construção da ideia
análise crítica sociológica proposta por Antonio de um pensamento-paisagem a partir dessa
Candido. Uma vez que as obras literárias precisam relação que chama de ‘convivência’
ser ‘lidas’, num primeiro momento, tomando estabelecida entre ser humano, espaço e a
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
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linguagem, sendo a linguagem “um dos lugares um sujeito sobre o mundo” (2013, p. 103). Tal
cruciais para este encontro” (ibidem, p. 12). relação traduz-se em experiência ofertada pela
Compreende-se, dessa relação ser possível interação entre o sujeito e o espaço.
verificar nos textos literários para “depreender A partir do corpo se dá a percepção do
o que se diz de vivo nesta transferência da espaço, uma vez que ele está no mundo e
paisagem ao domínio da atividade e do percebe-o como parte de sua existência. Por
pensamento humanos” (COLLOT, 2013, p. 13). isso, Michel Collot (2013) compreende “a
Por ser a mente humana centro das paisagem (...) como um espaço disponível ao
operações sinápticas produzidas pelas olhar e também acessível a um corpo, sendo ao
terminações nervosas do corpo, inferimos que a mesmo tempo público e privado, suscetível de
paisagem se constrói pela interação de todos uma modelagem a partir do sujeito”. Acrescenta
esses sentidos corporais (fala, visão, audição, ainda que,
tato e paladar), quando em estímulo, Se o pensamento tem uma parte ligada ao
representados pela linguagem. Por isso, não ser espaço, é porque está situado em si mesmo:
possível desconsiderar as fontes corporais como ora é o corpo que constitui o ponto de fixação
produtoras de sentido/percepções, uma vez que da consciência com o mundo e o ponto de
se encontram interligadas para esse fim, na vista a partir do qual essa consciência se pode
mesma medida em que são partícipes com o compreendê-lo […] a percepção das coisas no
sujeito da experiência social. espaço, mobiliza não apenas a visão, mas a
Constitui-se, assim, a ideia de pensamento- sensação dos movimentos do corpo. […] O
paisagem, como uma construção (racional e corpo é o traço de união entre o espaço e o
espírito (COLLOT, 2013, p. 37).
sensorial) que para Collot,
Nasce de um encontro com o mundo, o qual A paisagem constrói no sujeito um universo de
deixa de inspecionar. No entanto, não se trata, sentidos gerados pela relação entre o sujeito e o
de modo algum, de um pensamento confuso ou espaço-lugar, para os quais Yi-Fu Tuan (1965)
intricado, mas, justamente, de uma nova define como sentidos de topofilia ou topofobia, o
racionalidade, cujo modelo encontrou tanto em primeiro remete a sentidos que agradam ao sujeito
Merleau-Ponty quanto em Valéry ou em e o segundo que o desagradam. Dessa comunhão
Francis Ponge, que buscava sobre o prado e de percepções é possível compreender e interpretar
sobre a página “uma verdade que seja verde”, as relações imagéticas construídas/elaboradas a
que produza “noções ao mesmo tempo físicas e partir da linguagem poética.
lógicas, que possamos, com evidência e clareza,
ao mesmo tempo, perceber e conceber”. A 4 Paisagens urbanas na obra literária
paisagem parece-me ser uma noção desse
gênero (2013, p.12). O ambiente urbano desenvolve-se, em geral,
a partir de pequenos vilarejos que se expandem,
Sendo assim, através da interação do sujeito seja em número de habitantes seja em serviços
com os espaços-lugares é possível pensar a e sistemas que estão diretamente relacionados
construção de paisagens que, posteriormente, com o modo de caracterização do espaço como
são reveladas ao mundo por meio da citadino.
materialidade linguística. Tais paisagens são Identificamos essa construção da cidade nas
construções cujo sentido advém tanto do olhar paisagens representadas na poética marilzeana.
(corpo) lançado pelo sujeito no horizonte num Logo que o olhar do eu lírico percorre esse lugar,
movimento de observação, como “recita um cântico” como que buscando libertar,
possibilitados, pela percepção do corpo, por meio de ecos, os seres dissonantes que
enquanto outras vias sensoriais, deste espaço. transitam e constroem rotineiramente esses
Para Collot, a perspectiva do horizonte pelo lugares marcados pela reiteração pelo ciclo em
sujeito modifica a ele mesmo, uma vez que se curvas elípticas que tem no tempo sua
percebe como parte deste ambiente que se torna continuidade cuja existência humana se
ponto de referência para seu estado de existência. fragmenta, não para todos que habitam o espaço
Tal experiência torna possível a elaboração de urbano, há, porém, distinção entre as classes da
reflexões que se constroem em detrimento da sociedade exposta na obra aqui em análise.
paisagem que é produto da relação do corpo A vida na cidade, polis, agrega sentidos ao ser
referencial, sendo “a paisagem [...] um caso como parte de sua existência e percepções, sendo
exemplar dessa aliança necessária entre interior e assim, a cidade não é um ‘mero’ olhar adiante, ou
exterior, já que é definida pelo ponto de vista de
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
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para fora, mas uma construção dessa existência, ser alma [...] (PESSOA, 1982, p. 17-18).
que é própria. Compreende-se aqui esta cidade No trecho, Fernando Pessoa busca revelar a
conforme Eric Dardel, alma ao assemelhá-la ao transitório e inumano
A cidade não é somente um panorama sistema urbano, do qual se vê parte. O eu poético
abarcado com um só golpe de vista: [...] A busca sentidos que só encontra no tempo presente
cidade como realidade geográfica, é a rua. A em que transita como corpo-matéria pela vida,
rua como centro e quadro de vida cotidiana, pelo cotidiano, mesmo que livre, sente-se
onde o homem é passante, habitante, artesão; aprisionado.
elemento constitutivo e permanente, às vezes
quase inconsciente, na visão demundo e no 5 Construção fenomenológica nas análises
desamparo do homem; realidade concreta,
imediata, que faz do citadino “um homem da As interpretações aqui construídas partiram de
rua”, um homem diante dos outros, sob o análises feitas a partir das estruturas do poema,
olhar de outrem, “público” no sentido entendendo-as como ‘estratos poéticos’ conforme
original da palavra. Para muitos homens, identificados por Maria Luiza Ramos em seu livro
sobretudo os do século passados, a rua é onde Fenomenologia da obra literária (2011)
se nasce, onde se vive e onde se morre sem construída tendo por base o pensamento do
que se possa sair (DARDEL, 2015, p. 28). filósofo polonês Roman Ingarden em seu livro A
As paisagens urbanas têm sido uma obra de arte literária (1965) que faz referência ao
perspectiva recorrente que se impõe sobre o método e às divisões por estratos. Contudo, o
olhar do eu lírico. Podemos citar como exemplo autor detém-se mais às questões da ontologia da
a obra poética de Fernando Pessoa (1888 - obra do que as análises propriamente. Sobre o
1935) Livro do Desassossego (1982) que método fenomenológico escolhido para o
compõe paisagens urbanas ao notá-las como desenvolvimento das análises, como estratégia
parte de si e como modo de refletir a existência para investigação, justifica-se, pois,
em meio às mudanças e transformações a que a fenomenologia é a ciência do ser dos entes
eram submetidos os seres humanos ao – é ontológico. [...] Da própria investigação
conviverem com a mutação constante dos resulta que o sentido metodológico da
espaços. Podendo assim comparar a existência descrição fenomenológica é interpretação.
e a cidade a um constante e interminável (...) Fenomenologia da presença é
“canteiro de obras” sobre o qual mereceu e hermenêutica no sentido originário da
palavra, em que se designa o ofício de
merece, ainda, particular atenção.
interpretar (HEIDEGGER, 2006, p.77 apud
Bernardo Soares, um dos heterônimos de RAMOS, 2011, p. 26).
Fernando Pessoa, constrói sua percepção da
cidade de Lisboa construída tanto pela Sendo o direcionamento interpretativo apenas
perspectiva da visualidade quanto ao focalizar uma das possíveis perspectivas para as análises
nos meandros e movimentos da cidade, por estudos fenomenológicos que tem na
transformado essa experiência em algo sobre si. ontologia sua perspectiva. O sentido da obra serve
Como no trecho seguinte: de motivação inicial para a percepção do valor
estético, mas não constitui um fim em si mesmo.
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o
Para o crítico a sensação constitui-se como partida
sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele
sossego que o contraste acentua na parte que o para compreensão dos demais elementos
dia mergulha em mais bulício. A Rua do (camadas do poema) que “carregam” os sentidos
Arsenal da Alfândega, o prolongamento das ao campo da compreensão e entendimento.
ruas tristes que se alastram para leste desde que
6 Interpretação na obra
a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos
cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, O poema selecionado para estabelecer a
se me insiro, por essas tardes, na solidão de seu aproximação entre a ideia de paisagens urbanas e
conjunto. [...] Por ali me arrasto, até haver sociedade é ‘Estranha Aldeia Poluída’ transcrito
noite, uma sensação de vida parecida com a abaixo, que faz parte do livro Corpo Desnudo
dessas ruas. De dia elas são cheias de um
(1981) segundo livro publicado pela autora Marilza
bulício que não quer dizer nada; e de noite são
cheias de uma falta de bulício que não quer
Ribeiro. A partir do qual, também, possibilitou que
dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou compreendêssemos os recursos e procedimentos
eu. Não há diferença entre mim e as ruas para mobilizados, dentre eles o da paisagem.
o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ESTRANHA ALDEIA POLUÍDA
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
29

Move-se a manhã lugar cuja referência nos transporta para o espaço


como um ritual sagrado onde ainda vive, em certas regiões, comunidades
onde os homens indígenas. Aproximados metonimicamente,
amargurados ‘cidade’ e ‘aldeia’ funcionam como sinônimos.
massacrados
A construção fonética é responsável por uma
vestem seus trajes e máscaras
do compromisso das construções rítmicas que se dá pela
omisso sequência vibrante dos sons da vogal [o], como
postiço... pela repetição dos sons das consonantais [s],
[d], [p] e [m]. A frequência desses fonemas
Esta cidade enormeestranha aldeia colabora para a produção do efeito eco, uma vez
da confusão que tais construções fonéticas se propagam por
onde os bairros outros versos e estrofes do poema.
são como tribos perdidasdecadentes A repetição desenvolve um sentido não
na ronda dos pesadelos pronto em si mesmo, nem toma para si a ideia
e das leis
de finitude. Ao contrário, a soma dos efeitos
da opressão...
rítmicos dado pelas imagens sonoras estão
Os donos-das-cerimônias aliadas às figuras construídas pela comparação
e da Ordem “Move-se a manhã/como um ritual sagrado” e
exigem o culto “onde os bairros são como tribos perdidas” e a
da força partir da metáfora: “onde o mais fraco/ é sempre
onde o mais fraco caçado” imagens que constituem efeito gerador
é sempre caçado que tem em sua base a ideia de re-volta 14
e perseguido... desenhada ao longo do poema. Essas
aproximações reforçam o eco que circula a obra
A aldeia progride
poética. Importa destacar que
e os cães estão soltos
para a festa o poema presenta-se como círculo ou uma
da desordem... esfera: algo que se fecha sobre si mesmo,
universo autossuficiente e no qual o fim é
Estranha aldeia também um princípio que volta, se repete e se
do luar vermelho recria. Esta constante repetição e recriação
dos olhares de medo não é senão o ritmo, maré que vai e vem, que
das bocas amordaçadas cai e se levanta (PAZ, 1976, p.13).
onde geme a fome
e o frio O processo de re-volta materializa-se no
dos gritos lançados poema tanto pelo recurso fônico quanto pelo
no espaço vazio... semântico. O primeiro deles causado pela
repetição da vogal arredondada [o] (v.g. move,
Onde um povo se prepara como, onde, sagrado, homens etc.) que “ajustado
para a hora que vem vindo... à ideia de redondez [...] em cuja emissão o ar escoa
(RIBEIRO, 1981, p. 15) pelos cantos da boca e que ajustam à ideia de
O poema estrutura-se em seis estrofes não fluidez” (MARTINS, 1997, p. 28). Seu canto gera
simétrico quanto ao número de versos que as o ritmo e retorno, de modo curto, mas que se
compõe. É construído a partir de versos curtos o prolonga pela esfera temporal do poema. Somado
que contribui para a proposta de fluidez. O sujeito à recorrência do fonema produzido pela alveolar
lírico apresenta-se na terceira pessoa. Como um [s] de sopro sibilante assemelhando-se ao sopro do
olhar que está visualizando de fora do lugar vento. Esse movimento possibilita a reprodução
focalizado. O título do poema grafado em caixa de ritmo acelerado dos versos.
alta, denota em sua plasticidade ruptura com o Associados aos fonemas de sons nasais [m],
silêncio, construído pela combinação do [n] e [nh], presentes na primeira estrofe nas
substantivo intercalado por termos qualificadores. palavras: move, manhã, como, onde, homens,
O termo ‘aldeia”, semanticamente, remete a um amargurados, massacrados, vestem, máscaras,
compromisso, omisso, promovem a ideia de

14 Emprego da palavra re-volta está empregado neste mesmo ponto/estado de partida/saída/início, mas volta
trabalho para expressar o movimento que se pretende modificado para um outro tempo, o tempo continuo da
enfatizar no poema para aquilo que volta, não para o existência.
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
30

mansidão, lentidão, murmúrio. Tal mansidão imagens. Representando, por esta via a ideia de re-
justifica-se tanto na concordância semântica como volta, por estabelecer a continuidade de uma ação
na fonética. Esta ideia de mansidão faz referência partindo de um ponto de referencialidade
ao sujeito poético identificado no poema, na temporal que é ‘a manhã’, não estática, mas
primeira estrofe, por ‘os homens’. A partir do eu contínua no ‘ritual sagrado’. Temos nessa
lírico a percepção desse sujeito é construída pela primeira estrofe a ideia geral que será re-tomada,
vivência nesse ambiente (lugar) social, espaço também, nas demais.
urbano apresentado em gradação como: ‘cidade’, Na segunda e terceira estrofes, a partir da
‘bairros’, ‘aldeias’, ‘tribos’ e, por fim, como percepção do sujeito lírico, depreende-se a
‘espaço vazio’. paisagem, imagem de uma cidade, lugar de
A alternância de sons gerados pelas representação, um espaço construído, “um
consoantes oclusivas [d] e [p] oferecem ao espaço que é obra do homem” (DARDEL,2015,
poema reforço para o efeito elíptico de re-volta, p. 27), em constante movimento e crescimento,
no “traço explosivo, momentâneo, prestam-se a opondo-se à imagem da aldeia, lugar de
reproduzir ruídos duros, secos, de batidas, pequeno povoado, sendo aproximadas, de modo
pancadas, passos pesados [...] Saliente-se que as a realizar esse jogo pela ideia de contrastes.
surdas ([p], [t], [k]) dão uma impressão mais Segundo o geógrafo Eric Dardel
forte, violenta do que as sonoras ([b], [d], [gu])” a forma mais importante do espaço construído
(MARTINS, 1997, p. 34) que percorre a leitura está ligada ao habitat do homem. A vila ou a
do poema. A escolha feita pelos níveis fônicos, aldeola ainda totalmente dominados por seu
bem como a opção por versos curtos com ritmos habitat rural; no seu extremo oposto, a grande
marcado associado ao campo semântico da cidade moderna onde o homem é moldado na sua
construção contribui para o efeito elíptico (ida e conduta, nos seus hábitos, nos seus costumes,
volta) contínuo no poema. suas ideias e seus sentimentos, por esse horizonte
A posição inicial ocupada pelo verbo artificial que viu nascer, crescer, escolher sua
‘mover’ engendra um movimento que se refaz profissão. Entre vila e a grande cidade, entre a
pequena cidade provincial adormecida e a vasta
ao longo de todo o poema, como uma volta que
cidade industrial atarefada, não há mais que uma
se repete e ressignifica a cada nascer do dia. O diferença de grau, de nome ou de extensão.
movimento de ida, assemelhado ao de partida, Trata-se de espaços que, para o homem, diferem
está representado pelo verbo que conjugado na em qualidade e significado. A vila encontra seu
terceira pessoa do singular acrescido da sentido no trabalho nos campos, que impõe ao
partícula ‘se’ indica ação reflexiva do sujeito: ‘a homem seu ritmo lento e seguro. A pequena
manhã’. Esse nascer do dia marca o início de um cidade compreende-se como um centro de
tempo contínuo, que não cessa de ocorrer. A relações para um grupo de vilas [...]. A grande
relação de semelhança estabelecida pela cidade é uma intervenção do homem sobre a
comparação entre ‘a manhã’ e ‘um ritual Terra, um desenvolvimento circundando um
ponto, [...]. Às vezes arejado e opulento, às vezes
sagrado’ nos permite pensar ser ‘a manhã’
miserável e repugnante, uma presença compacta,
correspondente à prática, ação formada por um de onde pode nascer tanto essa polidez particular
conjunto de regras, do verbo sagrar, ou seja, que chamamos de “urbanidade” quanto esses
uma ação natural da ordem do sagrado, sobressaltos de revolta, esses motins que a
dedicada à Deus. Nos dois primeiros versos: história registra como reações próprias às
Move-se a manhã / como um ritual sagrado, a populações urbanas (DARDEL, 2015, p. 27-28).
construção temporal refere-se ao tempo da
Dentro desse processo de construção das
natureza marcado pela rotina a qual estão todos
paisagens é possível notar para onde está sendo
os seres humanos15 reféns.
direcionada a percepção do eu lírico, ao
No terceiro verso, da primeira estrofe, ‘onde os
construir essa digressão de imagens em que a
homens’ o advérbio de lugar ‘onde’ faz a primeira
‘cidade’ está para ‘aldeia’, assim como ‘os
referência ao espaço sobre o qual o eu lírico
bairros’ estão para ‘tribos’. Sendo tais espaços
desenvolve sua percepção, sem mencionar de
condicionadores da existência de sujeitos
modo direto qual espaço se refere, deixando
assujeitados pela ‘Ordem’ advindos de ‘Os
entendido que já faz parte do saber comum. Esse
donos-das-cerimônias’ sobre o ‘culto’. Sendo o
recurso nos permite visualizar o movimento
culto um momento sagrado consagrado a deus,
estabelecido pelo eu lírico para a construção das
15 Identificado como ‘os homens’ no poema.
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
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onde ocorre a prática de rituais sagrados. perspectivas de estudo que a percebem com as
Percebemos nesta associação, polos cujos mesmas concepções.
valores sociais são antagônicos, sendo um A ideia de paisagem proposta por Michel
grupo de homens formado pelos ‘donos’, pela Collot (2013) construída a partir da percepção
‘ordem’, pelas ‘leis’, pelos ‘cães’ e outro pelos do sujeito poético inserido no ambiente
homens oriundos de ‘tribos decadentes’, ‘mais possibilita compreender as relações próprias de
fraco’, ‘caçados’, ‘perseguidos’, pela ‘fome’ de um espaço originário pela vida em sociedade.
‘um povo’ constituindo um sistema próprio da Relação construída de modo a indicar
urbanidade. Lembramos que correspondências nos níveis fônicos, gráficos e
A paisagem não é, em sua essência, feita para se semânticos.
olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar Assim como Antonio Candido (2006) não
de um combate pela vida, manifestação de seu prescinde da relação entre existência e
ser com os outros, base de seu ser social. [...]. sociedade para se pensar a obra literária, Michel
Uma verdade emerge da paisagem, contudo, não Collot também não, para a construção da
como teoria geográfica ou mesmo como valor paisagem ao considerar a necessidade de “levar
estético, mas como expressão fiel da existência em conta essa espacialização da atividade e do
[...]. A paisagem não é somente “paisagem da pensamento humano que devolve à paisagem
história”, campo de batalha ou cidade morta. [...] um lugar eminente, que se inscreve em longa
A paisagem pressupõe uma presença do homem,
mesmo lá onde toma forma de ausência. Ela fala
duração” (2013, p. 198), desse modo, expõe que
de um mundo onde o homem realiza sua Desde muito, as ciências do homem e da
existência como presença circunspecta e sociedade – das quais a própria História se
atarefada (DARDEL, 2015, p. 33). encontra em primeiro lugar, mas também, é
claro, a Geografia, a Etnologia, a Psicologia,
Atribui-se ao uso excessivo de adjetivos um entre outras – mostraram a importância da
recurso que reforça o valor social na obra poética gestão e da representação de seu meio ambiente
em questão, na medida em que sua aplicação para a evolução dos indivíduos como as
revela a posição do sujeito lírico sobre o sistema sociedades. Vivemos, sentimos, criamos,
sócio-existêncial representado. pensamos no espaço e com ele, como também
Na sexta estrofe, por dois versos, tem-se o no tempo (COLLOT, 2013, p. 198).
desfecho, sem fecho, para o sujeito ‘um povo’ O poema analisado possibilitou estabelecer
introduzido pelo artigo indefinido de modo a as correspondências e associações. Cabendo à
reforçar a ideia de impropriedade do ser, que tem escolha pela abordagem teórica, bem como, a
no tempo ‘a hora’ o prenúncio de sua permanência interpretação dos recursos linguísticos para
num tempo contínuo e esperado, uma vez que compreender e tornar evidente os sentidos
intui o processo de ‘preparo’ ao povo. Tem-se produzidos pela obra literária.
ainda ao final de cada estrofe o uso da pontuação
reticências (...) que expressa sentido de Referências
continuidade, hesitação, incerteza etc. Tal
repetição gráfica funciona como reforço para a CANDIDO, A. Literatura de dois gumes. In:
ideia construída no poema e que tem sido repetida, idem, p. 163-180. MG, IV, 196, 1969.
engendrando o movimento de re-volta, que em si CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 9 ed.
admite a revisitação pelo sujeito lírico na própria Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
existência e condição da qual é parte.
COLLOT, M. Poética e Filosofia da
7 Considerações Finais Paisagem. Trad. Ida Alves, 1ed. Rio de
A análise aqui desenvolvida buscou Janeiro:Ed.: Oficina Raquel, 2013.
considerar o estudo da obra de arte literária a DARDEL, E. O Homem e a Terra: natureza
partir da concepção proposta por Antonio da realidade geográfica. Trad. WertherHolzer.
Candido (2006) ao considerar no processo de São Paulo: Perspectiva. 2015.
análise e interpretação tanto a forma como a
substância. Da mesma maneira Hans-Georg GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método
Gadamer (1997) definiu a obra como jogo, I: Traços fundamentais de uma
sobre o qual se fez necessário compreendê-la a hermenêutica filosófica. Trad. Flavio Paulo
partir de sua existência. Considerar a obra de Meurer: Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
arte como parte ontológica nos permitiu abordar
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
32

MARTINS, N. Sant’anna. Introdução à


estilística. São Paulo: T.A. Queiroz: 1997.
PAZ, O. Signos em rotação. 2 ed. Editora
Perspectiva S.A.: São Paulo, 1976.
PESSOA, F. Livro do Desassossego.
Disponível em: http://www.agr-
tc.pt/bibliotecadigital/aetc/index.php?page=9&
query=desassossego&db=&scope=book.
Acesso em 10 de agosto de 2021.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a
perspectiva da experiência. Trad. Lívia
Oliveira. SãoPaulo: DIFEL, 1983.
RAMOS, M. L. Fenomenologia da obra
literária. 4 ed. rev. - Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2011.
RIBEIRO, M. Corpo desnudo. Editora
planimpress: São Paulo, 1981.

********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO


POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
Valci Vieira dos Santos16

RESUMO: Cesário Verde, um dos poetas mais Palavras-chave: Cesário Verde; Projeto
expoentes da literatura portuguesa, construiu Literário; Cidade; Lisboa.
um consistente projeto literário na segunda
metade do século XIX, o qual, dada a sua veia 1 Introdução
de esteta, acha-se atual e reverbera por entre os Quando pensamos em projetos literários que
fios entretecidos de tantos outros projetos tenham se debruçado sobre a cidade,
literários. A obra literária de Cesário Verde concebendo-a como matéria poética por
possui uma amplitude temática que viabiliza a excelência, o nome do poeta português Cesário
desenvoltura de um sujeito poético que transita Verde se impõe como um dos mais importantes
livremente por todos os espaços, mas, da literatura portuguesa. A cidade se torna, para
especialmente, pelo binômio campo e cidade. ele, um lugar em que principalmente as
Neste texto, nosso objetivo é acompanhar as sucessivas cenas do cotidiano lhe oferecem
deambulações do sujeito poético cesárico pelas temas e motivos para pintar os mais diferentes
ruas de Lisboa, buscando identificar, por quadros sociais.
intermédio de seus instantâneos, as impressões A cidade de Lisboa, ainda que não tenha
da capital lusa. A estrutura deambulatória experimentado o mesmo ritmo de
configura, na verdade, uma poesia itinerante, já desenvolvimento das principais capitais
que a exploração do espaço citatino se perfaz europeias da segunda metade do século XX, em
com base em sucessivas deambulações, numa termos de surto industrial, como Londres e
perspectiva de câmara de filmar, cujos vários Paris, por exemplo, mesmo assim viu sua
planos vão sendo delineados. Assim, através da geografia ser transformada paulatinamente. A
análise de três de seus poemas, quais sejam “O expansão urbana, sem dúvida, passou a dar uma
Sentimento dum Ocidental”, considerado por nova feição aos traçados de praças e ruas
Joel Serrão (1999) o ponto mais alto da poesia lisboetas. Os velhos casarios, aos poucos, foram
do poeta português. Aliás, é da Obra Completa perdendo espaço para edifícios de andares,
de Cesário Verde, estudada e organizada pelo chamados por Cesário Verde de verdadeiras
mesmo autor, que extrairemos estrofes de “O “gaiolas”. Ruas estreitas e sem vida
Sentimento dum Ocidental”, além de “Num transformaram-se em largas avenidas, com suas
Bairro Moderno” e “Desastre”. Assim, montras inspiradas nas parisienses, as quais
pretendemos traçar quadros deambulatórios de passaram a exercer fascínio sobre os transeuntes
um sujeito poético que soube captar como que se viam atraídos pelas suas novidades.
ninguém os instantâneos de uma cidade em O mundo urbano da civilização industrial,
desenvolvimento. ainda que tímido, aportou-se na capital
portuguesa, sem deixar de exibir suas paisagens
antagônicas: de um lado, verbi gratia, em 1886,
já haviam sido introduzidas na capital lusa

16
Doutor em Estudos Literários/Literatura Comparada/UFF -
Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia-UNEB –
valci@ffassis.edu.br.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
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algumas inovações que passaram a facilitar a porque,


vida urbana – o surgimento, em 1848, dos A multidão é seu universo, como o ar é o dos
primeiros candeeiros a gás, e instalados, no pássaros, como a água, o dos peixes. Sua
Chiado, seis candeeiros elétricos, no ano de paixão e profissão é desposar a multidão. Para
1878; de outro, os bairros mais antigos ainda o perfeito flâneur, para o observador
exibiam uma situação deplorável, com casas apaixonado, é um imenso júbilo fixar
infestadas de parasitas, sem as mínimas residência no numeroso, no ondulante, no
condições de higiene, agravada pelo número movimento, no fugidio e no infinito. Estar
crescente de famílias que se deslocavam da fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde
zona rural para o espaço citadino à procura de quer que se encontre; ver o mundo, estar no
centro do mundo e permanecer oculto ao
oportunidades e melhores condições de vida.
mundo, eis alguns dos pequenos prazeres
Entretanto, o que muitas dessas mesmas desses espíritos independentes apaixonados
famílias puderam constatar foi a existência de […]. (BAUDELAIRE, 1996, p. 21)
uma cidade que muito pouco tinha para lhes
oferecer, especialmente para aqueles que não 2 Os instantâneos captados pelo sujeito
estavam preparados tecnicamente para as poético na poesia de Cesário Verde
exigências desse novo projeto de expansão O sujeito poético, que transita pelas ruas de
citadina, agravando, ainda mais, o cenário Lisboa, é caracterizado sobretudo pela sua
marcado pelas contradições e profundas faculdade de fazer valer sua visão criativa. As
diferenças sociais. imagens da cidade não passam incólume à sua
Dessa forma, esse mesmo espaço urbano “luneta de uma lente só” 17 , isso porque esse
ensejou o aparecimento de diferentes recortes sujeito poético, conforme Massaud Moisés
físicos e variegados estímulos sensoriais. Este (2012, p. 116), “atende, por conseguinte, ao
estado de coisas tornou-se um manancial de comando da sua sensibilidade e da sua
possibilidades para a escrita de quadros inteligência”. Esse comando, uma vez
realistas. Os devaneios de outrora, de cunho acionado, fustiga-lhe a imaginação, a qual, por
individual, cederam lugar, a partir de então, aos seu turno, uma vez aflorada, dá voz àquele que
desejos coletivos, às questões humanitárias e fala no poema, “que fala para exprimir-se e
sociais, portanto. comunicar-se; que fala em seu próprio nome,
Diante desses desejos coletivos, a cidade e embora deseje ser universalmente ouvida e,
seus múltiplos quadros pintados com as cores quiçá, espelhar o sentimento vago e não raro
do grotesco e da miséria humana passam a ser desconfortável que transpassa o leitor de
alvo das sensações do poeta Cesário Verde. Este poesia.” (Ibidem, p. 119).
grande representante da poesia realista É desse sujeito poético, cujas sensibilidade e
portuguesa inicia a escrita de versos que inteligência se “autoexpressam para se conhecer
procuram fotografar múltiplos ângulos de sua e para se comunicar ao leitor” (Ibidem, p. 119),
cidade natal. As ruas de Lisboa se tornam o que vamos, a partir de agora, acompanhar os
lugar ideal de sua flânerie, até porque, conforme passos que são dados ao longo da tessitura de
Walter Benjamin (1994, p. 35), em sua obra três grandes poemas do poeta-pintor Cesário
Charles Baudelaire um lírico no auge do Verde: a sua obra-prima “O Sentimento dum
capitalismo, “a rua se torna moradia para o Ocidental”, além de “Num bairro moderno” e
flâneur que, entre as fachadas dos prédios, “Desastre”.
sente-se em casa tanto quanto o burguês entre O modo de apreensão do espaço citadino do
suas quatro paredes”. sujeito poético cesárico é de natureza dinâmica.
Assim, Cesário Verde se torna um cidadão À medida que ele transita por entre as vielas,
do mundo, um flâneur, a deambular pelas ruas ruas, praças e labirintos da cidade de Lisboa,
de Lisboa à caça de seus melhores instantâneos. sucessivas cenas vão se desnudando à sua
Estes instantâneos colocarão à sua disposição os frente. Essa multiplicidade de imagens
mais diferentes e antagônicos quadros sociais, observadas se sobrepõem a tantas outras
os quais deixam o sujeito poético sensibilizado imagens que acabam por operar na lente de sua
em face das necessidades e aflições de pessoas luneta a transposição de uma às outras.
que se colocam à sua frente no cotidiano, até

17Trata-se do primeiro verso da quadra de número onze da constante da Obra Completa de Cesário Verde estudada e
parte II do poema “O Sentimento dum Ocidental”, organizada por Joel Serrão.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
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Evidencia-se, assim, um olhar transfigurador falou, nem um noticiário, nem numa conversa
que se depara com um caleidoscópio de cenas comigo; ninguém disse bem, ninguém disse
da vida real, nada restando ao sujeito poético mal! (SERRÃO, 1999, p. 226)
senão acionar sua veia denunciadora. Neste poema de Cesário Verde, um dos
A visão do sujeito poético cesárico, de pontos altos de seu projeto literário,
acordo com Annabela Rita, em seu texto O contrariando, portanto, a indiferença daqueles
Sentimento dum Ocidental: Um programa que se mostraram insensíveis em face da arte de
estético, serve, também, de trampolim para sua escrita, a cidade de Lisboa se torna,
outras realidades, causando-lhe estímulos, definitivamente, o alvo preferido do poeta-
encorajando-o a meditar [n]um livro que pintor-fotógrafo e, conforme já dissemos em
exacerbe18. Vamos, pois, tomar de empréstimo livro de nossa autoria, “Campo e cidade na
a Annabela Rita duas dessas realidades que poesia de Cesário Verde”, essa mesma cidade
estimulam o salto do poeta para acompanhar as “se apresenta, aos seus olhos, com imagens
suas deambulações, quais sejam: “por múltiplas, em face aos diversos quadros e
transfiguração, para uma realidade imaginária, instantâneos constituídos com base em sua
irreal e metafórica da vivência do sujeito, dita vivência e em marchas deambulatórias”
por imagens fúnebres; por associação de ideias, (SANTOS, 2010, p. 77).
para uma realidade evocada” (RITA, 1992, p. Assim, na primeira estrofe que inaugura “O
45). Sentimento dum Ocidental”, o sujeito poético já
“O Sentimento dum Ocidental”, publicado anuncia o seu estado d’alma. Ao percorrer as
em 10 de junho de 1880, num número especial ruas lisboetas, no lusco-fusco dos dias, seus
do Jornal de Viagens, da cidade do Porto, foi sentimentos disparam um “eu” soturno,
dedicado, por Cesário Verde, ao centenário de melancólico, eivado de sombriedades, por isso
Camões. O poema está estruturado em quatro tudo aquilo que o cerca causa-lhe enjoo,
subtítulos: I – Ave-Marias; II – Noite Fechada; sofrimento, até mesmo, o poético Tejo, a
III – Ao Gás; e IV – Horas Mortas19. Possui cem agitação de pessoas que transitam, quem sabe,
versos decassílabos distribuídos em vinte e para cima e para baixo de suas margens, ou a
cinco estrofes-quadras, em que o primeiro verso maresia, esse cheiro forte, característico, que se
rima com o terceiro e o segundo com o quarto desprende do mar, do Tejo-Mar:
verso.
Trata-se de uma obra-prima verdeana, Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
construída a partir de uma complexa Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
ambiguidade de sentimentos, na feliz expressão Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
de Sílvio Castro (1990, p. 90). Obra-prima esta (SERRÃO, p. 149)
só reconhecida após a morte do Poeta. Em vida,
ele bebeu do fel da incompreensão e da falta de E, à medida que o sujeito poético empreende
reconhecimento, inclusive de seus pares. Em suas deambulações pelos cenários de Lisboa,
carta endereçada ao amigo António de Macedo mais seu estado nauseabundo parece aflorar-se.
Papança, o Conde de Monsaraz, de 29 de agosto A cidade se mostra para ele carregada de uma
de 1880, Cesário Verde se queixa da falta de atmosfera que o deixa irrequieto,
receptividade ao seu poema que foi publicado desassossegado, agitado; sua ambiência causa-
naquela que ele considerava uma “folha bem lhe perturbações. O bulício presente na quadra
impressa”. Ouçamos seus lamentos: anterior se estende e se apresenta em forma de
turba, deixando claro o quanto incomoda ao eu
Ah! Quanto eu ia indisposto contra tudo e poético o turbilhão de pessoas em seus
contra todos! Uma poesia minha, recente, movimentos de idas e vindas.
publicada numa folha bem impressa, limpa,
Dessa forma, os quadros pintados com as
comemorativa de Camões, não obteve um
olhar, um sorriso, um desdém, uma cores do progresso e suas consequências fazem
observação! Ninguém escreveu, ninguém ainda mais aumentar o seu enjoo. Do bojo desse
enjoo, há pensamentos que o remetem a outros
18 Esta expressão final fomos buscar no primeiro verso da mesma edição, há uma dedicatória no poema a Guerra
quinta quadra do Parte III do poema “O Sentimento dum Junqueiro. Ainda segundo o mesmo crítico, o poema foi
Ocidental”. publicado em duas versões: uma em vida de seu autor, no
19 De acordo com Joel Serrão, os subtítulos aparecem, pela ano de 1880; a outra, em 1887, em O Livro de Cesário
primeira vez, na edição de Silva Pinto. Inclusive, nesta Verde, na edição já mencionada de Silva Pinto.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
36

lugares, como numa transfiguração, e eis que denunciadores de vidas marcadas pela
surge o céu baixo, de neblina, de cromatismo tragicidade: “Mas se vivemos, os emparedados,
monótono, numa alusão direta ao famoso céu / Sem árvores, no vale das muralhas!... / Julgo
londrino, famoso pelos seus nevoeiros, avistar, na treva, as folhas das navalhas ; E os
impeditivos de cenários que podem despertar gritos de socorro ouvir estrangulados.” (p. 155)
um absurdo desejo de sofrer/viver: Destas imagens exemplificadoras do estado
O céu parece baixo e de neblina,
de emparedamento em que se encontra o sujeito
O gás extravasado enjoa-me, perturba; poético, percebe-se a presença, portanto, de seu
E os edifícios, com as chaminés, e a turba olhar transfigurador, o qual foca numa realidade
Toldam-se duma cor monótona e londrina. que se quer imaginária, metafórica, irreal,
(Ibidem, p. 149) conforme nos apontou alhures Annabela Rita.
Essa transfiguração é-nos revelada, ao longo do
Ora, à medida que o deambulante insone
poema, por intermédio de imagens que
circula por entre vias, ruas e praças, mais cenas
corroboram o sentimento de clausura do poeta
do cotidiano impulsionam a lente do sujeito
diante das contradições e rasuras de uma cidade
poético. Há um verdadeiro turbilhão de imagens
que se mostra impiedosa para os menos
que demonstram a força do seu poder de
favorecidos.
captação. A cidade que se torna símbolo da
Essas contradições aumentam à medida que
opressão, aumenta ainda mais a noção de
a cidade de Lisboa começa a assimilar o
clausura que perpassa as estrofes do poema. Na
progresso preconizado pelos ares da
verdade, o poeta sente-se deslocado, um
modernidade de fins do século XIX. Mas, com
desplaced, um verdadeiro gauche
esse progresso, também surge o lado obscuro da
drummondiano, em meio a uma cidade que o
“cidade maldita”, com seus quadros que causam
inspira, mas que também o incomoda, e que se
revolta ao sujeito poético. Suas deambulações
torna capaz de causar-lhe dor e sofrimento. Seu
fazem-no deparar-se com o aumento cada vez
sentimento ambíguo acirra-se à medida que ele
de diferentes tipos sociais, com suas
se sente emparedado, em face do antagonismo
diversificadas profissões, que surgem para dar
reinante na Lisboa da segunda metade do século
conta de atender às exigências do universo
XIX, ocasionado por projetos políticos que
urbano e sua avidez por desenvolvimento a
quase sempre ignoravam os menos
todo custo: são trabalhadores das mais
privilegiados.
diferentes origens que se debruçam sobre
Não são poucas as estrofes que trazem no
máquinas, construções, alterando a geografia da
seu bojo vocábulos associados a essa ideia de
cidade de Lisboa, para atender ao desejo
emparedamento, criando, assim, uma
desmedido da burguesia, ainda que estes
linguagem poética cara ao projeto literário de
mesmos operários nem sempre reunissem as
Cesário Verde: ao se referir às construções que
qualidades necessárias para o desempenho de
passam a surgir na Lisboa ávida pela
funções a eles destinadas, tornando-se, dessa
modernidade, construções estas substitutas dos
forma, quase sempre alvos fáceis de acidentes
velhos casarios, o sujeito poético as denomina
provocados pela omissão de patrões que os
de gaiolas, vocábulo que se faz presente em
enxergavam tão-somente como objetos.
alguns dos versos de seus poemas: “Semelham-
O poeta, ao fixar o seu olhar sobre essa nova
se a gaiolas, com viveiros, / As edificações
realidade urbana, tenta se adaptar a ela, num
somente emadeiradas:” (p. 149); ao fazer alusão
processo de adesão-repulsão, pois instaura em
às cadeias, cujos espaços agora são ocupados
seu ser um conflito básico, representativo de
em maior escola, em função da violência que
uma tentativa de adaptação psicológica a um
aumenta em Lisboa, em decorrência do inchaço
novo ambiente que foi tecnizado muito
desordenado dos bairros principalmente
rapidamente, tornando-se, portanto, um espaço
periféricos: “Toca-se às grades, nas cadeias.
citatino artificializado pela ação humana.
Som / Que mortifica e deixa loucuras mansas!”
Em face desse “eu” conflituoso, o sujeito
(p. 151); ao dar ênfase ao modus vivendi de
poético, de um lado, sente-se à vontade pelas
pessoas que, dadas as novas configurações
ruas lisboetas ao se deparar com uma espécie de
citadinas, fruto do paradoxo da modernidade
invasão simbólica da cidade pelo campo,
oitocentista, se sentem-se deslocadas,
quando, por exemplo, passa a dramatizar essa
emparedadas, desprovidas das mínimas
invasão através da narrativa de uma vendedeira
condições de sobrevivência, e cujos gritos são
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
37

de frutas e legumes, personagem do poema determinados padrões sociais impostos, mas


“Num bairro moderno”. Parece haver, nesse que não conseguem dobrá-lo.
encontro entre o sujeito poético e a vendedeira, Assim, tanto de “Num Bairro Moderno”,
uma saudável identificação no que diz respeito como de “O Sentimento dum Ocidental”, é
às coisas do campo. A vida simples da possível extrair vários quadros ilustrativos de
hortaliceira, portanto, o contagia, já que a imagens da vida burguesa citatina e de imagens
cidade se constitui num espaço que lhe causa das massas trabalhadoras, a exemplo dos que
tonturas duma apoplexia: seguem, extraídos do segundo poema:
Como é saudável ter o seu aconchego, Voltam os calafates, aos magotes,
E a sua vida fácil! Eu descia, De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Sem muita pressa, para o meu emprego, (p. 149)
Aonde agora quase sempre chego (...)
Com as tonturas duma apoplexia Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E rota, pequenina, azafamada, E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Notei de costas uma rapariga, Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Que no xadrez marmóreo duma escada, (p.150)
Pousara, ajoelhando, a sua giga. (p.116)
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
E esse encontro realmente se tornou Seus troncos varonis recordem-me pilastras;
responsável pela mudança de seu estado de E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
espírito. Ao transportar-se, na imaginação, do Os filhos que depois naufragam nas
campo para a cidade, por intermédio da figura tormentas.
da hortaliceira, personagem-símbolo da mulher
simples, rude, mas trabalhadora, o sujeito Descalças! Nas descargas de carvão,
poético sente-se gratificado. O campo Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
representa para ele o lugar de paz, de sossego, E apinham-se num bairro aonde minas gatas,
de plenitude, por isso segue o seu caminho mais E o peixe podre gera os focos de infecção!
(p.150)
disposto, sentindo suas forças renovadas :
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
Seguindo nesse mesmo diapasão, “Desastre”
E recebi, naquela despedida, é outro clássico verdeano. Publicado no Jornal
As forças, a alegria, a plenitude, “O Porto”, em 1875, o poema é revelador da
Que brotam dum excesso de virtude visão social de Cesário Verde. Nas dezessete
Ou duma digestão desconhecida. (p. 118) quadras que o compõem, o sujeito poético narra
a trágica condição humana de uma criança
Mas o estado de espírito do sujeito poético
escrava, operária da construção, que cai de um
vive a oscilar entre momentos de euforia e de
andaime e morre:
disforia, de ilusão e de desilusão, quase sempre
proporcionados pela fugacidade da vida. Não Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
demora muito para voltar a sua atenção para a Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
dura realidade do espaço urbano. Nesse sentido, Caíra dum andaime e dera com o peito,
sofre também com a miséria humana, quando se Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
(p. 100)
depara com cenas que descrevem trabalhadores
sendo oprimidos e esmagados pela exploração Esse mesmo sujeito poético, com o olhar
do homem pelo homem, e por isso mesmo ele sempre atento, faz ecoar e ressoar o seu protesto
sente repulsa. O sentimento do sujeito poético, social. As contradições que marcam a crise
portanto, revela-se possuído por um verdadeiro social e político-econômica são narradas ao
mal-estar diante de sucessivos quadros que longo do poema, através de sucessivos cenários
desfilam à sua frente à medida que deambula que desnudam os aspectos negativos de uma
pelas ruas lisboetas. As imagens construídas sociedade injusta, desigual, perversa para com
pelo sujeito da enunciação delineiam diferentes os desprivilegiados. Cada quadra do poema é
tipos sociais, cuja configuração é claramente pintada com as cores que dão feição às cenas
oriunda da sociedade burguesa que tanto o trágicas que desfilam por entre os seus versos.
Poeta denunciou ao longo de seu projeto A começar pelo desespero de um dos colegas de
literário. Essa mesma sociedade é percebida por trabalho da vítima, que se acha impotente diante
ele em face da exiguidade e estreiteza de de seu desfalecimento:
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
38

Um preto, que sustinha o peso dum varal, responsável pelo próprio destino trágico:
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não
desfaleça!” E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça imensa,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral. (p. 100) Na tumba, e sem o adeus dos rudes
camaradas:
Outra cena digna de nota alude-se à Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
indiferença das pessoas que se mostram O inverno estava à porta e as obras atrasadas.
insensíveis diante da miséria humana. Há
aqueles que não se incomodam com o que E antes, ao soletrar a narração do facto,
presenciam. Comportam-se como se nada havia Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
acontecido. O trágico é concebido por elas com
“Morreu! Pois não caísse! Alguma
normalidade, tamanha a superficialidade e o bebedeira!” (p. 102)
descaso de seu comportamento:
3 Considerações Finais
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria, E assim o sujeito poético da poesia de
Gritava para alguns: “Que cena tão faceta! Cesário Verde vai deambulando pelas ruas de
Reparem! Que episódio!” Ela já não gemia. (p. Lisboa à procura de quadros revoltados que
100) passam a exibir as veias abertas de uma “capital
Assim como aqueles que permaneciam maldita” que se apresenta com suas fortes
apáticos diante do ocorrido, acomodados em contradições, deixando claro a dimensão
suas cadeiras de bar, os transeuntes, por seu metafórica duma dramática tradução da dor
turno, também, corroboravam sua indiferença humana.
com a falta de sentimento humano e As imagens captadas a partir das
solidariedade. Era como se repetisse apenas deambulações do sujeito poético são
mais uma cena diante de tantas que se sucediam construídas através de uma linguagem
no cotidiano de trabalhadores desprovidos dos impressionista de cariz inovador. Ao fazer uso
mais básicos direitos. Parece institucionalizar- dessa linguagem, Cesário Verde, consoante
se, dessa forma, a perversa coisificação pensamento de Sílvio Castro (1990, p. 61-62),
humana. Instauram-se a humilhação e a se debruça sobre a realidade das coisas, numa
dominação de pessoas que se veem exploradas transcrição plástica que dá do mundo a sua
em face da corrupção e decadência da classe mais profunda objectividade. É uma
burguesa, a qual se torna capaz de fazer transcrição de invenções e participação, pela
qualquer coisa para manter os seus privilégios: qual a vida dos homens, principalmente
daqueles mais amaldiçoados pela injustiça e
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocotes, pela violência – os operários, os pobres, os
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros infelizes, os miseráveis – encontra a mais
E ouviam-se canções e estalos de chicotes, moderna denúncia.
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos
cocheiros. (p. 100) Em última análise, o sujeito poético do
(...) projeto literário verdeano é aquele que não ficou
Um fidalgote brada a duas prostitutas: alheio à realidade de seu tempo; ao contrário,
“Que espantos! Um rapaz servente de deu conta de perceber a existência de fortes
pedreiro!” marcas de uma época em que o abatimento
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas moral do povo português tornava-se cada vez
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro. (p.
mais flagrante, em face dos graves problemas de
101)
natureza político-econômica, os quais só faziam
E o desfecho da pobre vítima da apatia agravar, ainda mais, as diferenças sociais e o
humana e das injustiças sociais não poderia ter acirramento da miséria humana. Mas ele não
sido diferente. Foi apenas mais, dentre tantos apenas percebe! Sai deambulando pelas ruas e
outros, que perdeu a sua vida em consequência avenidas lisboetas à caça de instantâneos da
do domínio de seus exploradores. Como se não vida urbana. Tais instantâneos se transformam
bastasse, também tornou-se vítima da hipocrisia em versos poéticos que se revoltam à medida
e da ironia daqueles que poderiam tê-lo que se deparam com as injustiças de uma
compreendido; mas que, no entanto, passaram a sociedade que se mostra apática e
apontar o dedo em riste, acusando-lhe de ser profundamente injusta.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
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4 Referências
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida
Moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 1996.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um
lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas.
Volume III. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CASTRO, Sílvio. O Percurso Sentimental de
Cesário Verde. Lisboa: Biblioteca Breve –
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária:
poesia e prosa. São Paulo: Cultrix, 2012.
RITA, Annabela. O Sentimento dum Ocidental:
Um programa estético. In: Colóquio-Letras, nº
125/126, jul.dez./1992.
SANTOS, Valci Vieira dos. Campo e cidade
na poesia de Cesário Verde. Vila Velha, ES.:
Opção Editora, 2010.
VERDE, Cesário. Obra completa de Cesário
Verde. Org. pref. e notas de Joel Serrão. Lisboa:
Livros Horizonte, 1999.

********
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
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Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E


ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
Maria Daíse de Oliveira Cardoso20

RESUMO: A canção “Assentamento” abre 1 Introdução


campo para muitas problemáticas relativas ao
Em 1997, a convite do fotógrafo Sebastião
espaço como lugar e à paisagem como uma
Salgado, Chico Buarque regravou duas canções
necessidade do homem que a ocupa. Extraída da
(“Fantasia” e “Brejo da Cruz”) e compôs duas
livro terra – um projeto artístico entre o
inéditas (“Levantados do Chão” e
fotógrafo Sebastião Salgado, o escritor José
“Assentamento”) para o disco Terra, nome
Saramago e o compositor Chico Buarque - de
também do livro de fotografias. Esse projeto
modo peculiar, a canção entrelaça o urbano e a
artístico é composto pelas quatro composições
projeção que se tem para e por ele. Uma
musicais, a introdução do escritor português
composição que não traz em sua textualidade
José Saramago e 109 fotografias em preto e
imagens de ruas ou avenidas, mas seu discurso
branco, todas produzidas no intervalo dos anos
desenvolve-se, inicialmente, a partir da ideia de
de 1980 e 1996. As imagens registram o
urbanização, seja no meio da urbe ou rural.
cotidiano, por vezes desumano, dos
Nesse sentido, o presente artigo objetiva
trabalhadores sem-terra na lavoura, desde
evidenciar a respresentação das memórias do
criança até a vida adulta. De igual modo, o
espaço urbano através de um sujeito que
prefácio e as canções revelam sujeitos que se
expressa uma espécie de último desejo: retirar-
apropriam de um lugar, mas não o vivenciam
se do frenético meio urbano e ser enterrado à
como um espaço, trabalhadores sem direito à
“Beira do Chapadão” – distanciar-se do lugar
terra e que compartilham as misérias de uma
vivido e projetar-se para o espaço imaginado,
vida que oscila entre o domínio e o poder dos
recordado. Para isso, foram utilizadas as
grandes fazendeiros. Uma terra que incita vida
considerações teóricas de autores como Yi-Fu
e morte ao mesmo tempo, que é tanto fonte de
Tuan (2013), que amplia os conceitos de
sobrevivência, como leva o sujeito ao fim. É o
espaço, lugar e espaciosidade e Apoliana Groff
que se nota nas palavras irônicas de Saramago:
e Kátia Maheirie sobre a mediação da música na
construção da identidade coletiva do MST. De Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de
igual modo, também foram basilares a Deus a ideia de viajar um dia a estas paragens
compreensão das singularidades que envolvem para certificar-se de que as pessoas que por
o lado opaco e furta-cor de um espaço, a base aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a
cumprir de modo satisfatório o castigo que
dos pressupostos teóricos de Henri Lefebvre por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao
(2006). nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os
quais, pela simples e honesta curiosidade de
Palavras-chave: Cidade. Literatura. Memória. quererem saber a razão por que tinham sido
Assentamento. Chico Buarque feitos, foram sentenciados, ela a parir com
esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família

20
Doutoranda em Literatura • daiseoliveira@hotmail.com
• UnB • Orientadora: Sylvia Helena Cyntrão
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
41

com o suor do seu rosto, tendo como destino também rejeitado. Vejamos a letra:
final a mesma terra onde, por capricho divino,
haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó Assentamento
tornará a ser (SALGADO, 1997, p. 9). Quando eu morrer, que me enterrem
Na beira do chapadão
Segundo as palavras do escritor, a terra é o
Contente com minha terra
destino final de todos os homens, uma espécie Cansado de tanta guerra
de punição pelos pecados. No contexto artístico, Crescido de coração
essa temática tornou-se a base para incorporar a Zanza daqui, zanza pra acolá
anedota, as fotografias e as canções do projeto. Fim de feira, periferia afora
Cada artista, à sua maneira, revelou como a A cidade não mora mais em mim
disputa pela terra conduz à morte, seja ela Francisco, Serafim
simbólica, coletiva ou individual. A disputa Vamos embora
pelo espaço, para o homem, deve ser uma ânsia Embora
de prazer e satisfação, âncora de suas memórias Ver o capim
Ver o baobá
e recordações, limiar entre o vivido e imaginado
Vamos ver a campina quando flora
– como fonte de retorno ao real ou ao onírico, A piracema, rios contravim
mas que se efetue entre o tempo e o espaço Binho, Bel, Bia, Quim
como forma de ressignificação do presente e, Vamos embora
quiçá, do futuro. Quando eu morrer
A canção “Assentamento” foi escolhida para Cansado de guerra
este estudo por ser uma composição que abre Morro de bem
campo para muitas problemáticas relativas ao Com a minha terra:
espaço como lugar e à paisagem como uma Cana, caqui
necessidade do homem que a ocupa. Extraída da Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
produção mencionada, a letra da canção
Amplidão, nação, sertão sem fim
salienta, de modo peculiar, as questões que Oh, Manuel, Miguilim
entrelaçam o urbano e a projeção que se tem Vamos embora
para e por ele. A canção não traz em sua Zanza daqui, zanza pra acolá
textualidade imagens de ruas ou avenidas, mas Fim de feira, periferia afora
seu discurso desenvolve-se, inicialmente, a A cidade não mora mais em mim
partir da ideia de urbanização, seja no meio da Francisco, Serafim
urbe ou rural. Vamos embora
Embora
2 Desenvolvimento Ver o capim
A letra poética evidencia um sujeito que Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
expressa uma espécie de último desejo: retirar-
A piracema, rios contravim
se do frenético meio urbano e ser enterrado à Binho…
“Beira do Chapadão” – distanciar-se do lugar Fonte: (HOLLANDA, 2006, p. 408-409)
vivido e projetar-se para o espaço imaginado,
recordado. No entanto, o sujeito da canção Em concordância com um projeto marcado
reconhece que a cidade, mesmo com suas fortemente por questões políticas e ideológicas,
guerras e demais consequências do processo de o discurso da letra de Chico Buarque encontra-
globalização, também ensina ao homem, o se fincado no próprio significado do título da
engrandece, o torna sábio – aspecto este que canção – Assentamento. Entendido como um
deve ser valorizado. Inserido no mundo do espaço territorial de povoamento que é,
imediatismo e da objetividade, o sujeito social geralmente, constituído por trabalhores rurais
se vê definido pelas funções que necessita que ocupam terras “ilegalmente”. Do ponto de
desempenhar para se adequar aos contornos do vista jurídico, os assentamentos são marcas
espaço urbano. “Assentamento” ecoa as muitas concretas de ocorrências divergentes entre o
vozes que circundam entre o visível e o meio rural e o arquétipo do meio urbano, que
desejável, lugares escolhidos e intermediários, exige trabalho excessivo e organização dos
ambiente onde a mente aprende a habitar, mas o grupos sociais. O assentado vive no limite da
coração anseia abandonar – um espaço engranengem urbana, porém no meio rural.
conquistado pelo homem, mas que é por ele Além de plantar e colher para sua
sobrevivência, ele necessita romper com as
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
42

questões autoritárias que circundam os negros (ex-escravos que, por diferentes meios,
interditos nesses espaços. haviam sido libertados ou comprado sua
As questões que envolvem disputa por liberdade) e, posteriormente, os imigrantes
territórios sempre estiveram atreladas às discussões europeus. Assim, “com a formação do
sobre política e ideologia, trabalho e lucro, espaço trabalhador livre, conservou-se a separação
e poder. A princípio, após a revolução industrial e entre o trabalhador e os meios de produção”
a efervescência do capitalismo, surgiu a ideia de (FERNANDES, 2000, p. 27), intensificando as
que o trabalho organizado da cidade acabaria com disputas entre os latifundiários e os sem-terra –
as questões agrárias, ou seja: sujeitos que eram explorados pelos fazendeiros
[...] a agricultura e o trabalho agrícola deviam
e expulsos da terra, fazendo desses espaços uma
desaparecer rapidamente frente ao trabalho questão de poder versus resistência21.
industrial, tanto do ponto de vista quantitativo Durante o Golpe Militar, em 1964, as
(riqueza produzida) como do ponto de vista questões dos assentamentos, que se
qualitativo (necessidades satisfeitas pelos disseminaram em diversas partes do Brasil,
produtos da terra); a agricultura ela mesma foram fortemente abaladas pelas questões
podia e devia se industrializar. Além disso a políticas. O golpe significou um retrocesso nos
terra pertencia a uma classe (a aristocracia, os avanços conquistados pelos trabalhadores,
proprietários fundiários, os feudais). A aumentou a acumulação e a concentração da
burguesia devia, parece, exterminar essa
riqueza nas mãos dos latifundiários. Mesmo
classe ou a subordinar até retirar dela toda
importância. Enfim, último ponto, a cidade ia
com o fim do militarismo, as consequências se
dominar o campo, preparando o fim (o arrastam até os dias atuais. Com o incentivo e
ultrapassamento) da oposição (LEFEBVRE, insenções fiscais concedidas aos grandes
2006, p. 439). empresários, o crescimento econômico da
agricultura capitalista e da indústria
Na verdade, ao invés de o trabalho agrícola extimularam os despejos das famílias
ser suplantado, o que ocorreu foi uma camponesas. Conforme Lefebvre (2006, p.
reafirmação das novas modalidades de 436):
produção, como bem notou o filósofo francês.
A terra, com efeito, é dominada para fins O poder político não é, enquanto poder
lucrativos, buscando atender aos anseios de uma político produtor de espaço: mas ele o
classe espécifica. Ocupar a terra passou a ser reproduz, enquanto lugar e meio da
reprodução das relações sociais (que a ele são
uma exigência do novo modelo de organização
confinadas). No espaço do poder, o poder não
do social, e, consequetemente, uma questão de aparece como tal; ele se dissimula sob ‘a
poder. “Não somente o capitalismo se apoderou organização do espaço’. Ele elide, ele elude,
do espaço pré-existente, da Terra, mas ele tende ele evacua. O que? Tudo o que se opõe. Pela
a produzir o espaço. Como? Através e pela violência inerente e se esta violência latente
urbanização, sob a pressão do mercado não é suficiente, pela violência aberta.
mundial” (LEFEBVRE, 2006, p. 442).
No ano de 1984, como forma de enfrentar o
No Brasil, essas questões relacionadas com
poder que se impunha aos trabalhadores
o capitalismo e a ocupação territorial encontra-
explorados, ocorreu, em Cascavel, no Paraná, o
se eminentemente vinculada à luta pela terra.
1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Sem-
Bernardo Fernandes (2000), ao discurtir sobre a
Terra. Nessa ocasião é que se decidiu fundar o
consolidação do MST no Brasil, relembra que a
MST, com os seguintes objetivos: a) lutar pela
própria história da formação do país é marcada
terra; b) lutar pela reforma agrária; c) lutar por
pela invasão do território indígena, pela
mudanças sociais no país. Desde então, as lutas
escravidão e pela produção do território
entre o governo e os assentados foram se
capitalista. Uma disputa que envolvia os
intensificando. No entanto, é no ano de 1996
sitiantes (pequenos proprietários ou posseiros),
que ocorre o massacre de maior visibilidade
os agregados (moradores em terra alheias que
nacional22, registrado pelas lentes de Sebastião
viviam e trabalhavam nas grandes fazendas), os

21 22
A Guerra de Canudos, Guerra do Contestado e o O massacre de Eldorado dos Carajás. Nas palavras de
Cangaço são exemplos de marcos históricos que abordam Saramago, “como pode ser sarcástico o destino de certas
as relações de ocupação de terra e autoritarismo dos palavras...” (SALGADO, 1997, p.11) Ironicamente
coronéis. Eldorado significa: Local pródigo em riquezas e
oportunidades.
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
43

Salgado. Dentre as imagens do fotográfo, há atuando como um elemento construtor de


uma que coloca em destaque os caixões dos que identidades.
morreram no enfretamento de questões Apoliana Groff e Kátia Maheirie (2011), ao
territoriais – uma disputa que sempre ocasinou discutir sobre a mediação da música na
morte, representada tanto pelos corpos dentro construção da identidade coletiva do MST,
do caixão, como também pelos olhares destacam como a mística do movimento
estarrrecidos em direções aos mortos. Muitas encontra-se entremeada com as expressões do
pessoas aparecem com os braços cruzados, campo artístico, entre eles o teatro, a poesia e,
punhos cerrados, mão na altura da boca, principalmente, a música. Desse modo, as
enquanto outros aparecem de mãos dadas. canções acompanham fortemente a trajetória
Naquele ambiente não se encontravam apenas dos assentamentos, como indicador de
corpos, mas a morte da esperança de muitos – encontros e como elemento concientizador.
uma morte coletiva pela disputa de terra. Segundo as autoras:
[...] a música é uma forma de expressão dos
Figura 1 – O massacre de Eldorado sujeitos, ao mesmo tempo, singular e
coletiva, tendo de ser compreendida para
além de seu fenômeno sonoro, pois é uma
linguagem afetivo-reflexiva que envolve um
processo de reflexão que só é possível por
meio da afetividade, sendo que a afetividade
em relação à música se faz possível a
determinado processo reflexivo. A música é,
então, um campo aberto de possibilidades de
identificação que passa não somente pelo
reflexivo, mas pelo afetivo (GROFF;
MAHEIRIE, 2011, p. 361).
Dito isso, unir os anseios de uma
Legenda: Os corpos dos assassinados sendo velados pelos
familiares e pela comunidade dos camponeses sem-terra coletividade com os mecanismos de linguagem
em Curionópolis-PA, em 1996. afetivo-reflexiva da música é a base que
Fonte: (SALGADO, 1997, p. 120-121) sustenta e justifica a relação dos movimentos
sociais com a produção de canções. Seguindo
Esse e outros registros, relativos à mesma essa concepção artística do efeito singular e
circunstância, compõem o livro de fotografia coletivo da música, o MST investe
lançado no ano seguinte, 1997. O massacre significativamente em uma produção própria:
tornou-se um episódio pouco esclarecido pelas Arte e Movimento (1998); Plantando Cirandas
autoridades, negligenciado pela justiça e que (2000); Regar a Terra (2005); Cantares da
motivou o surgimento da Coleção Terra, uma Educação do Campo (2006); Lutando e
estratégia artística de não silenciar o episódio Cantando (2007); Regar a Dor (2015); Fonte de
com os “deserdados da terra”, pelo viés da Vida (2017), entre outros23.Com o objetivo de
fotografia, do literário e da música. provocar sensações e motivar intensões, essas
Especificamente sobre a música, a partir da produções surgem como resposta aquilo que
década de 1960, a elaboração das letras poéticas não se consegue mediar somente com palavras
ganhou forte visibilidade. Após o período de escrita ou falada, de modo convencial.
forte silenciamento, as canções ganharam força “Assentamento” é uma obra marcada por um
de vozes coletivas, uma forma de não silenciar lirismo que atua como resposta musical ao que
os anseios dos artistas. Seguindo essa mesma não podia/pode ser silenciado e,
linha, os movimentos sociais apropriaram-se consequentemente, esvair-se no tempo. Trata-se
dessa estrátegia e passaram a fazer da música de uma composição que se envolve com as
parte integrante do bojo de seus projetos. Para vozes silenciadas por um massacre. Ao mesmo
Menezes Bastos (1996), a música se fez tempo é afetividade e reflexão, o que se
presente no âmbito social, provocando diálogos relaciona com o sentido da proposta do MST.
entre política, cultura e movimentos sociais, Mais do que uma crítica ao processo forçado de

23 Consultar arquivo completo em:


http://www.mst.org.br/musicoteca/albuns/
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
44

urbanização, a letra de Chico Buarque mostra rio contravim.


um sujeito que concebe o regresso não como um O desejo insistente e inquietante de partir,
retrocesso, mas como uma conquista – agora para ver o campim e o baobá, pode ser
não mais de lugar, mas de espaço. entendido também como o desejo de deixar o
O desejo do eu póetico é regressar, mesmo registro, de fixar uma memória mesmo na
que seja no momento de sua morte, à sua terra, ausência. Importante mencionar a única
paisagem que vai sendo reconstituída com as imagem mnemônica cultural que se apresenta
imagens poéticas de um sertão mítico. Sertão na letra, que é o “baobá” 24 . Trata-se de uma
este que, em sua visão, é frutífero e repleto de planta que, da forma como foi inserida na
encantamento: / a campina quando flora/.../a canção, alude a questões ideológicas, entre elas
piracema, rios contravim/.../onde só vento se as questões de dominação e cultivo da terra. O
semeava outrora/. É nesse ambiente que o baobá, diferente do capim (também citado na
sujeito vivencia sua espaciosiosidade, é lá que letra), não é comum encontrá-lo no Brasil. Os
ele se sente partícipe, confunde-se com sua poucos que existem foram trazidos dos
nação – sertão sem fim. Retomando os africanos, como estratégia de permanecer e
conceitos de Yi-Fu Tuan (2013), vale lembrar perpetuar seus cultos e práticas religiosas. Uma
que os aspectos relativos à espaciosidade geram árvore em que tudo se aproveita, tanto em
implicações na forma que o homem se relaciona termos materiais, quanto representativos. Ela é
com os lugares que ocupa. Conceber e símbolo de resistência para as tradições
compreender esses espaços é o que gera os culturais e evidencia a força das ancestralidades
vínculos afetivos e consolidam suas memórias. que persistem, seja na memória dos mais novos
Como parte de um projeto artístico sobre ou dos mais velhos. Eternizada na literatura,
disputa de terra, memória, morte e poder, a também ganha notoriedade na canção e se torna
canção “Assentamento” abrange todos esses um elemento importante na construção da letra,
aspectos, mesmo que de modo lírico e, por indicando as questões de luta pela terra. Uma
vezes, sutil. No tocante à morte, a composição terra em que tudo que planta dá, mas que
já evidencia, desde o primeiro verso, que todas também gera disputas de ocupação.
as demais recordações que seguirão se Ainda sobre o cenário poético construído
direncionam para esse fim – o desejo de ser pelo eu lírico da canção, a sequência de imagens
enterrado em sua terra natal e a certeza de que da estrofe a seguir intenta fazer com que o
descansará contente com a sua terra. No interlocutor se identifique com o sujeito
entanto, percebemos as nuances sobre morte poético, que deseja ser enterrado à beira do
também no chamamento isistente de ir embora, Chapadão, em sua terra natal. Para chamar
sempre apelando aos seus, inclusive Serafim – ainda mais a atenção do interlocutor acerca do
anjo de maior poder, segundo a angeologia. valor atribuído ao seu local de origem, o sujeito
Relacionando com as causas sociais do intensifica sua fala e faz uso de uma interjeição
Movimento dos Sem-Terra, como registrado (oh), usada uma única vez em toda a canção. A
anteriormente, as disputas desse grupo, em sua intenção aqui é fazer com que o interlocutor, por
maioria, anseiam o direito à terra para plantar e alguns instantes, sinta-se um Manuel e um
para colher – ou seja, fazer da terra a sua fonte Miguilim e deixe a cidade para conhecer as
de alimentação. Desse modo, seja em sonho, paisagens do sertão:
seja em delírio de morte ou até mesmo em Amplidão, nação, sertão sem fim
recordação de um tempo passou, o sujeito Oh, Manuel, Miguilim
poético de “Assentamento” também evoca os Vamos embora
alimentos que o espaço lhe ofereceu e
rememora um tempo em que tudo floreceu e Aqui se nota uma referência explícita ao
tinha vida, tempo em que até os rios personagem Miguilim, de Guimarães Rosa. É
transguediam as leis naturais de sobrevivência – possível perceber no diálogo entre os irmãos

24 Árvore que pode chegar até vinte metros (Adansonia tempos imemoriais. Os mitos e o pensamento mágico-
digitata ). Faz parte da família das bombacáceas, com religioso yorubá têm na simbologia da árvore um de seus
tronco gigantesco, ereto, madeira branca, mole e porosa, temas recorrentes”. Disponível em
casca medicinal e de que se extrai fibra têxtil. O baobá “é https://www.geledes.org.br/baoba-arvore-simbolo-das-
um dos símbolos fundamentais das culturas africanas culturas-africanas/
tradicionais. Os velhos baobás africanos de troncos
enormes suscitam a impressão de serem testemunhas dos
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
45

Dito e Miguilim, em determinados momentos inclusive no que diz respeito à relação entre os
da trama, semelhanças com o sujeito lírico da indivíduos. As narrativas também passam a
canção. Na canção, a persona não abandona apresentar semelhanças em seus enredos. A
seus companheiros, insiste para regressem com dinâmica do cotidiano citadino assume uma
ele: Francisco, Serafim, Binho, Bel, Bia, Quim, linearidade já conhecida. Essas cidades tornam-
Manuel e Miguilim. Na novela, Miguilim se unidades de produção, dominadas pelos
demonstra o receio em morrer longe dos seus, e escritórios, exploração agrícola e instalação de
consequentemente, de sua terra. A cena é empresas – perspectiva de trabalho que tem
narrada durante o abraço de dois irmãos, em atraído bastante os trabalhadores rurais (alguns
uma noite de muita ventania e chuva, enquanto deles são os que desistem de esperar a
os mais velhos estavam sentados no alpendre da concretização da reforma agrária). Imbuídos
casa e as crianças em volta, tentando pelo anseio de conquistar um trabalho, mudam
acompanhar a conversa. para a cidade – ou melhor, para os espaços de
Miguilim, você tem medo de morrer?
trabalho – e passam a vivenciar a rotina e
― Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só estaticidade desses lugares. É o que demonstra
se fosse sozinho. Queria a gente todos Lefebvre no fragmento que se segue:
morresse juntos... O espaço do trabalho resulta, portanto: de
(ROSA, 2001, p. 28, grifos meus) gestos (repetitivos) e atos (seriais) do labor
O eu lírico da canção e o eu lírico da novela produtivo, mas também e cada vez mais da
não rejeitam a morte, apenas expressam seus divisão (técnica e social) do trabalho e, por
conseguinte, dos mercados (locais, nacionais,
desejos, cada um através de suas razões.
mundial) e, enfim, das relações de propriedade
Miguilim é uma criança que compartilha seu (a posse e a gestão dos meios de produção). O
cotidano com seus familiares mais próximos e que significa que o espaço do trabalho ganha
por eles tem grande apreço. Trata-se de uma contornos e fronteiras por e para um
experiência ainda limitada, até mesmo pela pensamento abstraídos; rede entre redes,
pouca idade, mas que já expressa grande espaço entre espaços que compenetram, ele
sentimento, não apenas pelos familiares, mas não tem nenhuma existência relativa
sobretudo pelo lugar onde vive 25 . Por outro (LEFEBVRE, 2000, p. 264).
lado, o sujeito da canção, de certo modo, já Neste sentido, o tempo, nesses espaços, tende
experiente pelas memórias que compartilha, a ser medido em esferas ambíguas, tanto pela
tenta justificar o porquê do seu último desejo. unidade de medida convencial, como pela
Encontra-se “cansado de tanta guerra”, mas qualidade que passa. Assim, quando o tempo, em
“crescido de coração”. Quem sabe por isso, já é termos qualitativos, não acontece de modo
capaz de reconhecer que a cidade o permite positivo gera-se a fadiga. Isto é, produz-se uma
viver em mais ambientes, zanzando por seus sensação de incômodo e insatisfação, o que faz da
diversos lugares (feira, periferia e os espaços memória uma das poucas alternativas que
para além desta). Nesse vai a vem, a cidade não proporcionam bem-estar ao sujeito, muito embora
deixa de ser um lugar frenético impulsionado não seja capaz de reestabelecer as distâncias entre
pelo capitalismo contemporâneo, que não espaço e tempo. Na perpectiva de Michel de
aprofunda as relações. E, quiçá, por essa razão, Certeau (1998), a memória se torna intermediária
o eu lírico enfatiza: a cidade não mora mais em entre as percepções distintas e os espaços
mim. Mais do que circular pela cidade e morar paralelos – o habitado e o recordado. Através do
nela, é necessário que a cidade também habite o tempo kairós, a ordem dos luagres se alteram,
homem contemporâneo, faça parte de seu “mas essa mudança tem como condição os
cotidiano e lhe transmita uma sensação de recursos invisíveis de um tempo que obedece a
liberdade e bem-estar. outras leis e que, por surpresa, furta alguma coisa
A superficialidade do homem com a cidade, à distribuição proprietária do espaço”
em certos casos, é resultado de uma sociedade (CERTEAU, 1998, p. 161).
capitalista na qual os espaços de trabalho
tornam-se os mais previsíveis possíveis,

25E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um
Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm
de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os era bonito! (ROSA, 2001, p. 82).
olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe,
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
46

3 Conclusão ao de uma romaria, que comunga com a ideia de


peregrinação. Esses elementos apontam para a
O que se percebe na letra de “Assentamento”
própria trajetória da vida dos sem-terra. A
é a fala de um sujeito cujas lembranças oscilam
mística do MST “deve ser compreendida como
entre as recordações do sertão que fora habitado
resultado de um processo histórico conflituoso,
e as reminiscências do frenético e caótico
onde a forma de compreender elementos como
mundo urbano, repleto de guerras e
a fé e a política são ressignificados” (GROFF;
distanciamentos. Entre essas alternâncias, ao se
MAHEIRIE, 2011, p. 360). O limiar entre o
referir à sua “nação”, o sujeito lírico evoca
querer, o acreditar e o poder, se não se efetivam
elementos que compõe um cenário bem
na prática social, concretizam-se na mística de
característico do sertão nordestino: alguns
um poema, de uma canção – nesse caso, em uma
legumes, frutas, turbérculos. Esses sintagmas
canção feita para aludir uma causa, ratificar uma
produzem o recurso da rima e contribuem para
luta. Uma luta em que todos estão de punhos
dar mais fluência ao ritmo poético da estrofe.
erguidos em busca de um bem maior – a terra.
Além disso, são aspectos que também
Figura 2– Marcha dos Camponeses
reconstituem um cenário de memórias
particulares:
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Oh, Manuel, Miguilim
Vamos embora
Concluir o ciclo, morrer de bem com sua
terra, retornar ao cenário prático, de certo modo, Legenda: Marcha dos camponeses na Fazenda Cuiabá
também alude a uma memória igualmente para ocupação final do conjunto que formam a sede da
prática, em que é desnecessário o uso de formas propriedade. Sergipe, 1996
intensas de representação, mas que insiste em Fonte: (SALGADO, 1997, p. 134-135).
convidar o outro ao retorno de suas lembranças.
Segundo Certeau (1988, p. 163): “Talvez a A fotografia de Sebastião Salgado reitera a
memória seja aliás apenas essa ‘rememoração’ insistência do eu lírico da canção: “Vamos
ou chamamento pelo outro, cuja impressão se embora”. Ao colocar os homens entre o céu e o
traçaria como em sobrecarga sobre um corpo há chão, a imagem reafirma a ideia de ocupação
muito tempo alterado já mais sem o saber”. como um bem que o sujeito busca a todo
As circunstâncias que motivam as instante. A terra, seja ela enquanto lugar ou
recordações se tornam uma nova forma de enquanto espaço, deve estar à disposição do
resistir, de lutar pelo espaço que deseja viver. homem. No entanto, nem sempre é possível
Diante dessa configuração, os sujeitos identificar tais circunstâncias nesses limites
permanecem assentados, convivem na urbe, territoriais. Especialmente no mundo
produzem, geram lucros, mas não se apropriam contemporâneo, a busca pelas questões
dela. Inclusive, a luta permance, por vezes individuais, cada dia mais, tem distanciado o
diariamente, mas agora com objetivos distintos sujeito do seu espaço. Desse modo, a canção, ou
das motivações agrárias. O esforço se empenha melhor, o espaço-canção ainda se efetiva como
não para permancer no local, mas sim para sair, o recurso de memória que melhor permite a
desocupá-lo. E é dessa sensação que o sujeito vivência do ser com o seu espaço. Um desejo
lírico deseja fugir. No entanto, como é que não cessa, é memória, é presente, é passado,
enfatizado ao final de cada estrofe, esse sujeito é futuro, e por que não dizer, é memória do
também deseja que os outros se retirem junto espaço representado na canção.
com ele: Oh, Manuel, Miguilim/ Vamos Referências
embora...
O espírito de coletividade expresso na letra é CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano:
também evidente na elaboração da melodia. A Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.
canção possui um desenho melódico próximo
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
47

FERNANDES, Ronaldo Costa. Narrador,


cidade, literatura. In: LIMA, Rogério;
FERNANDES, Ronaldo Costa (Orgs). O
imaginário da cidade. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2000, p 19-36.
GROFF, Apoliana Regina; MAHEIRIE, Kátia.
A mediação da música na construção da
identidade coletiva do MST. Revista Política
e Sociedade. Vol 10, nº 18, dez. de 2011.
HOLLANDA, Chico Buarque. Tantas
palavras. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço
urbano. Trad. de Geraldo Gerson de Souza. São
Paulo: USP, 1993.. RJ: Paz e Terra, 2006.
MENEZES BASTOS, Rafael José De. Esboço
de uma Teoria da Música: Para Além de uma
Antropologia Sem Música e de uma
Musicologia Sem Homem. Anuário
Antropológico, pp. 9-73, Brasília: UnB, 1996.
ROSA, Guimarães. Manuelzão e Miguilim.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SALGADO, Sebastião. Terra. Lisboa:
Caminho, 1997.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva
da experiência. Trad. Lívia de Oliveira.
Londrina: Eduel, 2013.

********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM


ANGELA MELIM
Renata Ferreira de Oliveira26

RESUMO: Partindo de três significantes-chave — palavras e mundo. Nessa formulação, a


tempo, espaço e memória—procuraremos pensar experiência do olhar, associada a processos de
de que forma sujeito e a paisagem citadina se subjetivação que supõem alteridade e
relacionam na poética de Angela Melim. Nosso deslocamento, é priorizada.
objetivo é analisar as encenações que trazem à tona A fim de demonstrar tal modo de construção,
a experiência visível de paisagens que remetem ao neste artigo, analisamos o poema “Pelas ruas do
entrecruzamento do Outrora e do Agora: imagens Méier”, publicado no livro Possibilidades (2006).
anacrônicas/errantes que põem em evidência a Partindo de três significantes-chave —tempo,
memória visuoespacial em sua dimensão dialética. espaço e memória—procuramos pensar de que
Quanto à abordagem teórica, ela se vale, forma sujeito e a paisagem citadina se relacionam
principalmente, dos estudos do filósofo e na poética meliniana. Nosso objetivo é analisar as
historiador francês Georges Didi-Huberman em encenações que trazem à tona a experiência visível
Diante do tempo: história da arte e anacronismo de espaços que remetem ao entrecruzamento do
das imagens (2015), onde ele convoca uma série de Outrora e do Agora: imagens anacrônicas/errantes
noções— tais como sobrevivência, imagem- que põem em evidência a memória visuoespacial
sintoma, categoria do transvisual — a fim de em sua dimensão dialética.
refletir sobre a potência das imagens. Quanto à abordagem teórica, ela se vale,
principalmente, dos estudos do filósofo e
Palavras-chave: Poesia contemporânea; historiador francês Georges Didi-Huberman em
Memória; Paisagem; Imagem. Diante do tempo: história da arte e
anacronismo das imagens (2015), onde ele
1 Introdução convoca uma série de noções, a partir de Walter
Um dos modos de construção da obra poética Benjamin, a fim de refletir sobre a potência
de Angela Melim é alegoria associada à dialética das imagens.
perspectiva temporal. Sob o signo do vestígio 2 A imagem dialética e outras noções
(vestigium), a poeta dá margem a uma leitura evocadas por Didi-Huberman
alegórica que expressa um procedimento que se
repete em toda produção: a dimensão aurática. Tal A imagem dialética pode ser definida como
dimensão resulta num duplo regime temporal de uma imagem intempestiva, relâmpago que
imagens, observados em figurações que evocam a aciona uma memória involuntária capaz de
relação entre paisagem e memória. entrecruzar o outrora e o agora, o instante e o
A paisagem, enquanto imagem do mundo latente num jogo que traz à tona a percepção
vivido, tem um papel significativo na obra dum tempo não cronológico. Logo, não é que “o
poética meliniana: não é apenas tema literário, passado lance sua luz sobre o presente ou que o
mas, sobretudo, meio para formulação de uma presente lance sua luz sobre o passado; mas a
linguagem lírica cuja matéria fundamental imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o
nasce da relação sensível-visível entre sujeito, agora num lampejo, formando uma

26
Doutoranda em Literatura Comparada •
renata_foli@hotmail.com • UFF • Orientadora Profa. Dra.
Celia Pedrosa
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 49

constelação” (BENJAMIN, 2006, p. 504). tempo e a memória.


Não há, assim, uma linha de progresso nesse
3 A experiência dialética do olhar: o que
tipo e imagem. Nas palavras de Didi-
vemos em “Pelas ruas do Méier”
Huberman, em Diante do tempo: história da
arte e anacronismo das imagens (2015), o que “Pelas ruas do Méier”, poema publicado no
temos são sequências “onidirecionais, rizomas livro Possibilidades (2006), é um bom exemplo
de bifurcações em que, para cada objeto do para começarmos a sistematizar a relação entre
passado, entram em colisão o que Benjamin sujeito e paisagem, associada a dimensão
chama de sua ‘história anterior’ e sua ‘história espaço-temporal e memorialística, na poética
ulterior’” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 115). meliniana. Leiamos:
Concomitante ao conceito de imagem Jovem de novo
dialética, Didi-Huberman faz uso do conceito quando o verão vem.
de sobrevivência (Nachleben), de Aby O voo nas mãos
Warburg— historiador que inspirou Walter na voz.
Benjamin em suas reflexões, e assim como ele Mesmo o verão assim desornado
colocou a imagem no centro nevrálgico da "vida fora de época
histórica". O conceito de sobrevivência pode ser exagerado pelo buraco de ozônio
definido como os efeitos anacrônicos de uma e outras alterações climáticas
época sobre a outra, e no que tange à imagem, produzidas pelo egoísmo dos homens e das
mulheres ricos
estaria atrelado à capacidade que a mesma tem
e ignorância de homens e mulheres pobres
de produzir uma temporalidade de dupla face. O calor incha
Desta forma, para Didi-Huberman, a noção enche
warburguiana toca de fato no "fundamento da emprenha.
história em geral" porque enuncia, ao mesmo Pelas ruas irregulares do Méier
tempo, um resultado e um processo: vou feliz
me sinto no passado
Ela diz os rastros e diz o trabalho do tempo na
tudo em escala de gente
história. De um lado, ela nos permite o acesso a
ao alcance de gente
uma materialidade do tempo. De outro, abre um
chinelo de borracha gasta
acesso à essencial espectralidade do tempo-, ela
distâncias
visa à "pré-história" (Urgeschichte) das coisas
a custo vencidas—vencidas? por lotações
sob o ângulo de uma arqueologia que não é
poeirentos.
apenas material, mas também psíquica (DIDI-
Cascateia o trem
HUBERMAN, 2015, p. 121).
(como em Riabina, Riabina:
Essa materialidade do tempo, na imagem, poiezdi catchaietsa).
pode ser lida como uma dimensão/fenômeno No Méier, os novos tempos
aurática(o) que sobrevive; já a espectralidade do apenas salpicaram lembranças
pela metade e já enferrujadas.
tempo toca o ângulo psíquico, e está relacionada
Com o rigor vegetal
à memória críptica (memória inconsciente e a pobreza,
espectral). Assim, Didi-Huberman (2015) rápida,
conclui que a imagem “não é imitação das domina.
coisas, mas o intervalo tornado visível, a linha Temos que dar importância as ruínas.
de fratura entre as coisas”; ela pode ser, ao A cada templo
mesmo tempo, “matéria e psíquica, externa e cada tijolo esfarinhado.
interna, espacial e linguageira, morfológica e Andaimes corroídos
informe, plástica e descontínua”. E por isso, a espetados no ar
sua temporalidade “não pode ser determinada, um dia sustentaram nossas sujas cidade!
Beleza tristealegre do incompleto e misturado
já que seu movimento visa uma

desterritorialização generalizada” (DIDI- outra vez jovem no calor do Méier
HUBERMAN, 2015, p.125-126). outra vez jovem no calor desolado do Méier
Acreditamos que as reflexões e os conceitos (Poema Pelas ruas do Méier in: MELIM,
supracitados ofereçam um caminho interessante 2006, p.34.)
de leitura para as construções de Angela Melim
que trazem à tona a relação entre sujeito e Neste poema, Angela nos apresenta uma
paisagem a partir do trabalho complexo com o construção marcada pelo deslocamento, que pode
ser observado tanto na versura, por intermédio do
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 50

uso de enjambements, quanto na encenação de um fecha-se em torno dele como quarto. Logo, não
sujeito urbano que caminha pelas ruas do Méier, se trata dum espaço completamente
bairro histórico do Rio de Janeiro. desconhecido ou dum sujeito em busca de
Os versos curtos e as pausas dialogam com lugares separados de sua vivência. O que
o deslocamento do sujeito poético, que observa Angela põe em cena é o regresso, e nele é
e caminha pela cidade fazendo uso de tempos possível experienciar tanto o processo de
heterogêneos, seja pelo olhar anacrônico, seja territorialização, quanto o de
pelo tempo lento e arrastado de seus desterritorialização: o primeiro processo, ocorre
movimentos, como se desejasse captar várias com o reconhecimento do lugar, que o sujeito
dimensões do espaço: “A cada templo/cada habita(ou). Já o segundo, acontece na
tijolo esfarinhado” (MELIM, 2006, p.34). transformação do lugar numa paisagem nova,
Nesse sentido, o ritmo encenado está vinculado que, tal como um quadro, exige um
à sucessão e ao movimento das imagens, distanciamento, exige o espaçamento do sujeito.
ocasionado uma oscilação rítmica que parece E aqui cabe resgatar a noção de território,
acompanhar o olhar do ser poético movente e que segundo Guattari e Rolnik, no livro
aberto à alteridade. Noutras palavras, temos Micropolítica: cartografias do desejo (2010),
uma corrente rítmica com a qual se deixa fluir pode ser relativo tanto a um espaço vivido,
um movimento, ora numa fluência contínua/ quanto a um sistema percebido no seio do qual
livre, ora numa fluência interrompida, seja um sujeito se sente em casa:
“pelas ruas irregulares do Méier”, seja pelas O território é sinônimo de apropriação, de
reminiscências. Por essa via, o corpo do sujeito subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
poético e o corpo-poema parecem ser um só. conjunto de projetos e representações nos
No que tange ao sujeito encenado — pela quais vai desembocar, pragmaticamente, toda
sua condição de exterioridade e abertura ao série de comportamentos, de investimentos,
mundo, associada ao movimento rítmico nos tempos e nos espaços sociais, culturais,
irregular, causando uma embriaguez não só no estéticos, cognitivos (GUATTARI;
movimento de leitura, como também no ROLNIK, 2010, p.388).
movimento do sujeito poético no horizonte das Ainda, segundo os autores, tal território pode
temporalidades—, lembrou-nos a figura do se desterritorializar, isto é, “abrir-se, engajar-se
flâneur, que , segundo Walter Benjamin (2006), em linhas de fuga e até sair do seu curso”, já que
é aquele que vagueia pela cidade por um longo a espécie humana “está mergulhada num
tempo, deixando a embriaguez apoderar-se de imenso movimento de desterritorialização, no
seu corpo: “essa embriaguez não se nutre sentido de que seus territórios ‘originais’ se
apenas naquilo que lhe passa sensorialmente desfazem ininterruptamente” (GUATTARI;
diante dos olhos, mas apodera-se ROLNIK, 2010, p.388).
frequentemente do simples saber, de dados E é por intermédio dessa desterritorialização,
inertes, como de algo experienciado ou vivido”. que o sujeito poético meliniano percebe o espaço
(BENJAMIN, 2006, p.462). como outro, como um território des(conhecido),
No entanto, no que tange ao vivido, o sujeito modificado pelo tempo, e “pelo egoísmo dos
meliniano difere do flâneur benjaminiano. Pois, homens e das mulheres ricos/e ignorância de
ao se deslocar sob o efeito do forte calor carioca, homens e mulheres pobres” (MELIM, 2006, p.34.),
um calor que “incha/enche/emprenha”, deixando causando, assim, um estranhamento e
as ruas e a embriaguez anamnéstica conduzi-lo em distanciamento que o erradica de sua percepção
direção a um tempo que desapareceu, ele evoca imediata e da paisagem/morada da memória.
um passado que é, ao mesmo tempo, alheio e Noutras palavras, temos a figuração dum sujeito
particular. Isto é, sua visão, direcionada à que percebe o bairro do Méier como um território
paisagem citadina, põe em jogo memória atravessado, “de um lado a outro, por linhas de fuga
visuoespacial, trazendo à tona a dimensão aurática que dão prova da presença, nele, de movimentos de
do Méier, ou melhor, dos elementos que desterritorialização e reterritorialização"
sobreviveram à passagem do tempo. (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p.71)
Parafraseando Benjamin, em Passagens Por esse ângulo, a paisagem citadina do
(2006:426), o bairro do Méier se apresenta aos Méier não é figurada de forma passiva, ao
olhos do sujeito poético em seus polos contrário, é “apresentada com uma cena móvel,
dialéticos, abre-se para ele como paisagem e animada por um jogo de sombras e luzes”
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 51

(COLLOT, 2013, p. 24). Um jogo possibilitado space) que a história da arte cansou de nos
pela imagem dialética, pelo olhar anacrônico do repetir, desde a perspectiva renascentista até
sujeito, que percebe o presente, os novos o espaço pretensamente "puro" de Mondrian.
tempos, mas sente as diferentes temporalidades (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 281).
que ele proporciona: “os novos tempos/ apenas No poema, “Pelas ruas do Méier”, observamos
salpicaram lembranças” (MELIM, 2006, p.34). a oscilação dessas experiências, expostas na
Neste sentido, a paisagem rompe com a citação de Didi-Huberman, a partir de dois modos
dicotomia sujeito e objeto. Nos termos do de construção: imagens que tocam a
geógrafo francês Augustin Berque (BERQUE, espectralidade do tempo no lugar e as que tocam a
2000, p. 160, apud COLLOT, 2013 p. 27), esse materialidade do tempo no espaço paisagístico: a
rompimento pode ser chamado de trajectivité, materialidade está vinculada aos aspectos visíveis,
isto é, a mediação entre o mundo das coisas (o rastros, vestígios que podem ser enxergados por
meio) e a subjetividade humana. Logo, o qualquer passante, como nos versos “Temos que
sujeito e a paisagem, encenados por Angela, dar importância as ruínas” ou “A cada templo/
podem ser lidos como parte de um conjunto, cada tijolo esfarinhado. / Andaimes corroídos/
já que se constituem mutuamente, numa espetados no ar/um dia sustentaram nossas sujas
confluência, dessa forma, como lemos no cidade” (MELIM, 2006, p.34).
Já a espectralidade está ligada ao ângulo
poema: não é só o verão, “assim
psíquico, isto é, à memória críptica
desornado”, que está fora de época” ou os (inconsciente e espectral) do sujeito poético.
elementos da paisagem que sobreviveram, Entre as figurações dessa, está o espectro da
remetendo, assim, ao outrora, sem cessar de juventude— como podemos ler no verso que
se reconfigurar; temos, também, encenada abre o poema, “Jovem de novo”, que é repetido
uma subjetividade poética que apresenta um no final da composição com algumas alterações,
ritmo semelhante ao do espaço observado. “outra vez jovem no calor do Méier” —; e o
Trata-se de um sujeito que demonstra, por espectro da felicidade associado ao de
intermédio da memória e das percepções, contemplação, sentimentos que pareciam ser
suas sobrevivências, seus movimentos de naturais ao sujeito, no pretérito, como em:
eternos retornos: “jovem de novo/ quando o “Pelas ruas irregulares do Méier/vou feliz/me
sinto no passado”, mas já não são possíveis, em
verão vem” (MELIM, 2006, p.34).
sua plenitude, no presente, devido ao olhar
Em relação a dimensão aurática do lugar, é
crítico/objetivo, como podemos constatar em:
importante ressaltar que o termo lugar, nesta
“Beleza tristealegre do incompleto e misturado
análise, está atrelado à ideia de significação, ou
(...)/ outra vez jovem no calor desolado do
seja, está relacionado não só a percepção do
Méier”. (MELIM, 2006, p.34). Assim, temos
sujeito, mas também ao afeto. Nessa perspectiva,
encenada, também, a passagem do olhar
cabe citar as reflexões de Didi-Huberman (2015),
contemplativo, ao o olhar crítico, retorcido por
em Suposição do lugar: aparição do longínquo,
problematizações de ordem afetiva e social.
nas quais apresenta uma distinção entre a
Logo, como pontuou Michel Collot, essa troca
experiência temporal do lugar e a do espaço,
entre interior e exterior “não diz respeito apenas
vinculadas ao espetáculo visível que a paisagem
à percepção individual, mas também à relação
pode proporcionar. Para o filósofo,
que a sociedade mantém com o ambiente”
a paisagem abre-se a uma experiência do (COLLOT, 2013, p.27).
visual e o espaço – as coordenadas Ainda no que tange à espectralidade,
objetiváveis, segundo as quais nós situamos queremos abordar, também, a memória crítica
um objeto ou nós mesmos - abre-se a uma de Angela, e com isso, não desejamos cotejar o
experiência do lugar. Quando Newman
eu lírico com o eu biográfico, e sim ampliar
descreve esse "sentimento que aqui é o
espaço" (the feeling that here is the space), é nossa reflexão sobre os modos de construção
preciso compreender que o aqui, o aqui do das imagens dialéticas neste poema, pois
lugar, trabalha somente para desconstruir as entendemos que a rememoração, quando
certezas usuais que temos do espaço ao instaurada no âmbito da poesia, pode ser um
procurarmos, espontaneamente, objetivá-lo. mecanismo interessante e produtivo.
Eis por que a afirmação desse aqui vem Então, observamos que ao figurar um sujeito
acompanhada de uma crítica exacerbada ao poético num espaço que reúne diversos
"alarido a propósito do espaço" (the clamor of
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 52

ativadores da memória, Angela evoca não só um fulgura", escreve Benjamin em 1939, em seus
bairro que frequenta, ou seja, uma paisagem que fragmentos sobre Baudelaire. E, em seus
viu, vivenciou, e nos convida a ver— e nesse paralipomenes às teses Sobre o conceito de
sentindo, “se vê vendo através da ficção história, em 1940: "A imagem dialética é uma
bola de fogo que atravessa todo o horizonte do
subjetiva do eu poético” (PEDROSA, 2011, p.
passado. Ao fazê-lo, ela desenha um espaço
87). —, mas também um lugar que remete a sua que lhe é próprio, um Bildraum que caracteriza
infância: a cidade de Moscou, na Rússia, onde sua dupla temporalidade de "atualidade
morou dos onze aos treze anos. integral" (integraler Aktualität) e de abertura
Quando aborda a estação de trem do Méier, as "para todos os lados" (allseitiger) do tempo.
lotações — “tudo em escala de gente/ ao alcance (BENJAMIN, 1982, p.240 apud DIDI-
de gente (..) Cascateia o trem” —, Angela insere HUBERMAN, 2015, p.127, grifo nosso)
um verso que desterritorializa e desorienta o leitor 4 Considerações Finais
— “como em Riabina, Riabina” (MELIM, 2006,
p.34). Nele, temos a alusão à figura da riabina, um A partir da análise do exercício poético em
fruto comum na Rússia. torno da tematização da experiência do olhar, da
Como é sabido, Moscou é o centro da ampla memória e do espaço paisagístico, concluímos
rede ferroviária russa, e a história das principais que a poética de Angela Melim traz à tona uma
estações de trem da cidade está intimamente trama singular de visão, espaço, tempo e
entrelaçada com a do desenvolvimento do país, memória, evocando a dimensão aurática da
bem como no Méier, onde uma parte do passado paisagem encenada, e a imagem dialética em
do bairro está ligada diretamente à história dos sua essencial função: a crítica. Parafraseando,
trens. Assim, não só o bairro do Méier, como Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos
também seus elementos anacrônicos, como a olha (1998), um dos caminhos para conhecer/
antiga estação de trem, atuam no poema como ler a poesia de Angela Melim é captar a seu
um gatilho mnemônico, que apesar de remeter modo de ser aurático, sua forma de ir e vir
ao outrora, não é exatamente o passado, e sim a incessante: “uma forma heurística na qual as
memória. Nas palavras de Didi-Huberman, a distâncias e as temporalidades contraditórias se
memória decanta o passado de sua exatidão: experimentam dialeticamente” (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p.147)
E ela que humaniza e configura o tempo,
entrelaça as fibras, assegura suas transmissões, Referências
devotando-o a uma impureza essencial (..)pois a
memória é psíquica em seu processo, anacrônica COLLOT, Michel. Poética e filosofia da
em seu efeito de montagem, reconstrução ou paisagem. Tradução Ida Alves et al.Rio de
decantação do tempo. (DIDI-HUBERMAN,
2015, p. 41, grifo nosso). Janeiro: Editora Oficina,2013
Decantação, essa, que não ocorre só nas DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil
temporalidades figuradas, mas também no platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
processo de construção do verso— “como em Paulo: Ed. 34, 2009. v.1.
Riabina, Riabina/ poiezdi catchaietsa” DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do
(MELIM, 2006, p.34)—, no qual a poeta tempo: história da arte e anacronismo das
“mistura” os idiomas (português e russo). No imagens. Trad. Vera Costa Nova e Márcia
caso das palavras em russo, ao invés de grafar o Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
vocábulo, Angela apresenta a pronúncia (Trem
– Поезд – póiesd ou poiezdi). DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos
Nesse sentindo, o lugar da imagem poética olha. 2 ed. Trad. Paulo Neves. Rio de Janeiro:
meliniana não é determinado, ao contrário, seu Editora 34, 1998.
“movimento visa uma desterritorialização GUATTARI Félix; ROLNIK, Suely.
generalizada” (DIDI-HUBERMAN, 2015, Micropolítica: cartografias do desejo. 10ed.
p.125-126). Em vista disso, em “Pelas ruas do Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
Méier”, temos evocada a dimensão aurática da
poesia, a imagem dialética, que Benjamin MELIM, Angela. Possibilidades. Rio de
entende sob o modo visual e temporal de uma Janeiro: Íbis Libris, 2006.
fulguração, isto é, lampejo, clarão: PEDROSA, Celia. Ensaios sobre poesia e
"A imagem dialética é uma imagem que contemporaneidade. Rio de Janeiro: Eduff, 2011.
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE


PAULO HENRIQUES BRITTO
Guilherme de Oliveira Delgado Filho27

RESUMO: “Vilegiatura” é uma sextina de Palavras-chave: Poesia; Sextina; Trovar claro;


Paulo Henriques Britto publicada em seu “Vilegiatura”; Paulo Henriques Britto.
terceiro livro de poemas, Trovar claro (1997).
Inventada pelo trovador provençal Arnaut 1 Novo refúgio na objetividade: uma forma
Daniel, a sextina é considerada uma forma de dissidência
poética extremamente desafiadora em razão da Em poesia, atribui-se ao estadunidense Walt
complexidade de seu esquema permutatório de Whitman (1819-1892), ainda no século XIX, a
rimas idênticas. No âmbito da poesia lusófona, introdução da forma do verso livre no repertório
praticaram-na autores do porte de um Sá de da poesia ocidental, muito embora tal forma só
Miranda e de um Luís de Camões, e, de modo viesse a ser difundida após ser adotada por
mais episódico, no contexto brasileiro do século Arthur Rimbaud (1854-1891) e pelos poetas
XX, Américo Facó e Jorge de Lima. Mais simbolistas franceses, dos quais é possível
recentemente, porém, essa forma vem ganhando destacar Jules Laforgue (1860-1887), também
espaço na produção de autores contemporâneos tradutor de Whitman. Esse panorama é
como Rodrigo Garcia Lopes e Emmanuel retomado pelo professor, poeta e tradutor Paulo
Santiago, além do próprio Paulo Henriques Henriques Britto (1951), que há alguns anos
Britto. No caso de “Vilegiatura”, interessa-nos vem se dedicando não apenas a traçar categorias
mais o que Britto diz a partir de uma forma tão de versos livres (assim mesmo, no plural, dada
restrita quanto essa – o que nos leva, a sua variedade de tipos (BRITTO, 2011))
naturalmente, a refletir sobre como ele o diz. como, também, a desmistificar a ideia, ainda
Para isso, tomamos como base uma análise recorrente, de que o verso livre seria
formal do poema em questão a fim de observar supostamente mais “natural”, ao passo que o
de que maneira as paisagens do campo e da verso metrificado, em contrapartida, seria por
cidade são apresentadas em meio à sua demais “artificial”, sendo considerado por
atmosfera fatigante, onde o prazer com muitos poetas e críticos contemporâneos como
frequência é perturbado pelo sono, e vice-versa. ultrapassado (BRITTO, 2014).
Assim, é possível concluir que, dentro da obra Embora tais discussões pertençam, num
de Paulo Henriques Britto, o uso de formas primeiro momento, a um plano teórico de
poéticas tradicionais tende sempre a perturbar discussão, interessa-nos pensar aqui os seus
aquela espécie de composição que, a princípio, desdobramentos dentro da obra poética de
nos parece exclusivamente arbitrária. No caso Britto, mais especificamente em “Vilegiatura”,
de “Vilegiatura”, a forma da sextina atende a uma sextina publicada em seu terceiro livro,
uma finalidade clara: enfatizar o conteúdo Trovar claro (1997), que, como o próprio título
semântico do poema de tal modo que passamos do poema indica, relata as experiências do eu
a admitir que uma outra forma tradicional não lírico durante uma temporada fora das grandes
alcançaria resultados igualmente satisfatórios. cidades, em meio a uma paisagem bucólica
impossível de ser determinada, tanto
espacialmente quanto temporalmente.

27
Doutorando em Letras • guilhermedelgaduh@gmail.com •
Universidade Federal do Paraná
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 54

Inclusive, essa espécie de indeterminação, de exemplo, uma ligação evidente entre a oitava-
limbo espaço-temporal é uma das marcas mais rima e a dicção heroica, que é flexibilizada,
fortes do poema, que discutiremos mais adiante. mas não desfeita, quando a estrofe passa a ser
Antes, retomemos o que diz Britto a respeito de usada em poemas herói-cômicos: afinal, se
essa forma não estivesse previamente
possíveis associações entre formas de verso
associada às narrativas épicas, como a de
livre e determinadas visões de mundo: Camões, não seria uma dessacralização usá-
O verso livre tradicional – longo, terminado la em narrativas satíricas, como fez Byron.
em pausa, marcado por enumerações e [...] O caso do soneto, então, nos proporciona
aliterações – lançado por Whitman e um exemplo ainda melhor. Nas mãos de
retomado em língua portuguesa por Fernando Shakespeare, ele ganha um sentido bem
Pessoa/Álvaro de Campos e Mário de diverso do que tinha em Petrarca e Camões,
Andrade, entrou em cena juntamente com a como fica patente no soneto 130, que zomba
tematização da nova realidade da urbe explicitamente do endeusamento da figura
moderna, vista como uma cornucópia de feminina na fórmula petrarquista [...] E
possibilidades, com sua pletora de quando pensamos no que fizeram com o
movimento, cor e sobretudo ruído. Não por soneto poetas tão diferentes quanto Fernando
acaso, à medida que o entusiasmo com a Pessoa/Álvaro de Campos, Jorge de Lima,
cidade moderna e a identificação com a Drummond e Glauco Mattoso, para
multidão expressos por Whitman, mencionar apenas quatro nomes e
Pessoa/Campos e o Mário da Pauliceia dão permanecer no âmbito da poesia lusófona,
lugar a sentimentos de alienação e busca de parece claro que nas mãos de cada um desses
refúgio na subjetividade, o verso livre poetas o soneto sofre um processo de
tradicional é substituído por um verso muito ressignificação, por vezes radical. (BRITTO,
diferente, que podemos chamar de 2014, p. 36).
williamsiano: curto, fracionado, muitas vezes
Ressignificação essa que nos remete
não terminado em pausa, um verso que com
frequência não corresponde a nenhuma novamente à obra poética de Britto, no mais das
unidade sonora e estabelece uma relação vezes radical. A título de evidência, lembremos
tensa e cambiante entre o plano da escrita e o que a sextina é uma forma poética inventada
da fala. (BRITTO, 2014, p. 36-37). pelo trovador provençal Arnaut Daniel (1150-
1210), sendo entendida, também, como uma
Como se vê, não tardou para que houvesse
forma extremamente desafiadora em razão da
uma clara dissidência, um claro complexidade de seu esquema permutatório de
descontentamento daqueles poetas do início do rimas idênticas. Dessa maneira, “Vilegiatura”
século XX com a visão de mundo que
apontaria para uma dupla dissidência: a
aproximava um sentimento de êxtase à profusão princípio, no plano subjetivo, ao ir de encontro
de estímulos suscitados pela urbe. Com o passar àquele entusiasmo whitmaniano com a urbe,
dos anos, verificamos que esse conforme há de atestar a volúpia repleta de
descontentamento apenas aumentou, tanto que, paisagens campesinas do poema em questão; e
hoje, a herança de Álvaro de Campos que nos por último, já no plano formal, por se
parece mais palpável está longe de ser aquela desenvolver a partir de uma sextina, indo de
das odes sensacionistas, em louvor de rodas e encontro a uma pretensa rebeldia associada ao
engrenagens; herdamos, sobretudo, o seu verso livre, que acabou por se tornar a forma
cansaço, “[u]m supremíssimo cansaço” “mais identificada com o poético em si”
(CAMPOS, 1993 [1944]), cada vez mais (BRITTO, 2014, p. 28), conforme o próprio
evidente em meio à atual realidade, tão virtual autor aponta:
quanto pandêmica. Somado a isso, há um
segundo aspecto não desprezado por Britto: No Brasil o verso livre tornou-se a forma
assim como o uso do verso livre não é, por si só, default da poesia contemporânea. Adotar a
pressuposto de modernidade ou métrica tradicional passou a ser uma forma de
dissidência, um desvio do mainstream da
contemporaneidade, o emprego de metros e
linguagem poética de nosso tempo: o que não
formas tradicionais não está fadado a ser deixa de ser irônico, quando se leva em conta
passadista: que o verso livre surgiu justamente como uma
Sem dúvida, as formas poéticas, ao surgirem, atitude de rebeldia, uma rejeição das
estão impregnadas de conotações impostas convenções da arte poética. (BRITTO, 2014,
pelas condições de uso originais; mas tais p. 28).
conotações não se eternizam. Há, por
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 55

Consequentemente, a poesia de Britto pode do poema em questão (Quadro 1). Na primeira


ser compreendida como um claro esforço de coluna, indicaremos os versos do poema; na
transgressão à transgressão insinuada por essa segunda, o poema; na terceira, o esquema de
parcela da poesia contemporânea que redundou rimas; na quarta, a escansão dos versos, e na
no que agora entendemos por mainstream; ou última, as sílabas acentuadas. Quanto às
seja, podemos compreendê-la como a busca por escansões, assinalaremos os versos da seguinte
um novo refúgio na objetividade de metros e maneira: sílaba com acento primário (/); sílaba
formas tradicionais a fim de fazer o novo de com acento secundário (\); sílaba átona (-);
novo, conforme ele mesmo adverte: pausa (||).
Assim, se uma dada forma poética – seja ela
o soneto ou o verso whitmaniano ou qualquer Quadro 1 – Análise formal de “Vilegiatura”
outra – guarda uma evidente associação com
as circunstâncias em que foi criada e

Esquema de rimas
praticada pela primeira vez, nada impede que
gerações posteriores dela se apropriem,

Versos
modificando-a e utilizando-a de modo Sílabas
Poema Escansão
totalmente diverso. É esse o sentido do acentuadas
famoso bordão de Pound: make it new.
(BRITTO, 2014, p. 37).
Com relação à sextina no âmbito da poesia VILEGIATURA
lusófona, praticaram-na autores do porte de um
Sá de Miranda (1481-1558) e de um Luís de 1 Munidos de A - / - - - / || / 2-6-7-10
2 maçãs, lápis e B - - / - - || 4-6-10
Camões (c. 1524-c. 1580), e, de modo mais 3 fósforos, C ---/-/-- 4-6-10
episódico, no contexto brasileiro do século XX, 4 conquistaremos D - / || 4-6-10
Américo Facó (1885-1953) e Jorge de Lima 5 Nínive amanhã, E ---/-/-- 2-6-10
6 se não der praia e F - / - || 2-4-8-10
(1893-1953) (MOISÉS, 2013 [1974]). Mais a noite for de ---/-/--
recentemente, porém, essa forma vem ganhando 7 sono. F -/- 2-4-6-8-10
8 Porque afinal os A -/---/-- 1-4-8-10
espaço na produção de autores contemporâneos 9 dias são E -/ (3)-6-10
como Rodrigo Garcia Lopes (1965) e 10 dourados B - / - /- - - / - 2-4-6-10
Emmanuel Santiago (1984), além do próprio 11 e tudo é matinal D / || 3-6-8-10
12 nessa estação C 2-(6)-8-10
Paulo Henriques Britto. Ainda assim, não é de de água fresca, - / - / - / - ||
se surpreender que, de modo geral, nas 13 madrigais e C / - / - - || 2-6-10
apreciações de “Vilegiatura”, seja comum se 14 cópulas. F /--/---/ (3)-6-8-10
15 D - / - - || 2-4-6-10
limitarem à proeza de Britto retomar uma forma 16 São tantas mãos A --\--/-- 2-6-10
poética tão restrita quanto a sextina sem jamais 17 e bocas, tantas B - / || 3-6-10
18 cópulas, E -/-/-/-- 3-7-10
se estenderem sobre as implicações que tantas razões de - / ||
acompanham a escolha dessa forma. Sob tais 19 se riscar um E --/--/-/ (4)-6-10
pontos de vista, esse poema tende a se 20 fósforo, C -/- 1-(4)-6-8-10
21 é tão horizontal B -/---\-/ 2-4-6-10
sobressair quase que exclusivamente como uma 22 essa estação, F - / - || 2-4-8-10
demonstração de virtuose por parte do seu autor, 23 que é puro A 1-4-8-10
aproximando-se, ainda, de um exercício de 24 engodo a idéia D -/---/-- 1-4-6-10
do amanhã. - / - ||
estilo. Ou seja, comumente se destaca tão 25 E por que não D --\--/-/ 3-7-10
somente a tradição medieval que cerca sua 26 beber o sol E - / - - || 2-6-10
27 dourado A - / - / - || / - 3-6-8-10
forma, bem como a já mencionada 28 enquanto não C --/- 3-6-8-10
complexidade de seu esquema de rimas. Porém, 29 nos sobrevém o F -/---/-- 2-6-8-10
tal apreciação, a nosso ver, diz pouco. Interessa- 30 sono? B -/-- 4-6-10
--/--/--
nos mais o que Britto diz a partir de uma forma 31 Idéias B - / || 4-8-10
tão restrita quanto essa – o que nos leva, 32 sussurradas pelo D --/---/- 2-4-7-10
naturalmente, a refletir sobre como ele o diz. 33 sono, F -/ 2-4-8-10
34 pela sofreguidão E 2-6-10
“tantas razões de se riscar um fósforo” 35 de muitas C ---\-/-- 2-6-8-10
36 cópulas. A - / || 4-8-10
A fim de observar de que maneira as Enquanto isso, / - - \ - / || -
37 Nínive dourada B / - / - || 2-6-10
paisagens do campo e da cidade são 38 aguarda a D - / - / || - / - 1-4-6-10
apresentadas em meio à atmosfera fatigante de 39 combustão de F - - / || 4-8-10
“Vilegiatura”, examinemos uma análise formal nossos fósforos
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 56

ao primeiro - / - / - || - - sílaba), excetuando-se o v. 6, um sáfico


suspiro da / - / - - ||
manhã. / - || - / - || - (caracterizado pela falta de acento primário na 6ª
Rechacemos o - / - / - - || sílaba em favor de acentos na 4ª e 8ª sílabas).
torpor da estação /--/-/-- Como resultado, o autor espelha no plano rítmico
- / - ||
(e como é do poema aquilo que nos é apresentado no plano
modorrenta essa --/---/- semântico, ou seja, a manutenção de um dado
estação, -/-
tempo de -/---/--
ritmo já no início de “Vilegiatura” produz um
bandolins, - / || princípio de expressão que tende a reforçar a
maçãs e sono!) --/--/-/ experiência sonolenta de uma paisagem tão
e vamos nus, na - / - - ||
bruma da --/--/-/ pastoril quanto hedonista, repleta “de água fresca,
manhã, - / - || madrigais e cópulas.” (v. 6). Nesse sentido, é
buscar a glória, -/---/-/ bastante expressivo o padrão que se repete no
traduzida em -/--
cópulas, ---/-/-- trecho referente aos vv. 2-4, iniciados sempre por
claustros, - / || um pé de ritmo quaternário, o chamado péon
tributos,
castiçais e - - - / - || - -
quarto (- - - /), seguido por um pé de ritmo binário,
fósforos, / - / || o iambo (- /), e por mais um péon quarto. Do
caixas de música -/-/--/- mesmo modo, a mudança do padrão heroico
e ídolos - / - ||
dourados. -/-/---/ inicial para a acentuação sáfica no v. 6 inaugura
- / - - || uma ligeira oscilação rítmica, o que tende a
Tomaremos a -/---/-- reforçar o caráter enumerativo desse verso. E já
cidade dourada - / ||
na hora - / || - - - / || que mencionamos o papel rítmico desempenhado
derradeira da - / - / - || pelos versos decassílabos, não há como não
estação, ---/---/
quando já não - / - - ||
pensar nas conotações sugeridas por esse metro
restar nem mais em “Vilegiatura”, sobretudo numa
um fósforo, -/---/-- heroicomicidade à Lord Byron (1788-1824),
uma gota de sol, -/
de céu, de sono. /--/-/-- conforme foi destacado antes, satirizando uma
A entrada - / - || dicção heroica extremamente cara a narrativas
triunfal será uma ---/---/ épicas como a de Camões, dos quais o v. 3 é
cópula - / - - ||
na imensidão da bastante emblemático (“se não der praia e a noite
última manhã. for de sono”). Inclusive, a figura controversa de
Quando
Byron atrelada ao apreço por uma dicção pouco
acordarmos, já “poética” é apontada pelo próprio autor:
será amanhã,
os olhos turvos O que mais me agrada na poesia é a forma, e
de sonhos também a concisão; mas sempre tive um pé
dourados, atrás com a chamada “linguagem poética”, as
as peles mornas
recendendo a
inversões sintáticas, os clichês herdados do
cópulas, romantismo. Por isso gosto de criar um
bagagens choque entre uma forma rigorosa e uma
esquecidas na dicção totalmente prosaica. Isso é uma coisa
estação,
jornais,
que eu aprendi principalmente com os poetas
explicações, de língua inglesa, não só os contemporâneos,
ressaca e sono, como Elizabeth Bishop e Philip Larkin, mas
um alvoroço de até com Byron, que já fazia isso há duzentos
café e fósforos.
anos. O romantismo inglês é assim; ao lado
Os fósforos das transcendências sublimes e inefáveis de
primeiros da Shelley você tem o prosaísmo escrachado e
manhã coloquial de Byron. (BRITTO, 2004, p. 8).
riscam o sono e o
sonho do Além disso, outro aspecto digno de nota diz
Eldorado.
Dessa estação só respeito ao léxico utilizado no poema,
vão restar as especialmente a identidade de palavras em
cópulas. posição de final de verso, que são
Fonte: Delgado Filho, 2021.
indispensáveis à forma fixa da sextina. Segundo
A partir do quadro 1, observa-se que, na o professor Massaud Moisés, “[o] movimento
primeira estrofe, Britto faz uso quase exclusivo do geral é o de uma espiral: a última palavra da
decassílabo heroico (com acento primário na 6ª sexta estância repete a palavra inicial da
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 57

primeira. Assim: abcdef, faebdc, cfdabe, um inesperado enjambement no mesmo v. 18,


ecbfad, deacfb, bdfeca e eca ou ace” (MOISÉS, ligando a terceira estrofe à quarta, parece
2013 [1974]), p. 431). Com isso, é de se esperar reforçar esse imperativo de mudança, embora, a
que essa identidade de palavras nos chame a princípio, o eu lírico insista em relembrar a
atenção, e em “Vilegiatura” repetem-se, salvo experiência sonolenta daquela paisagem: “(e
ligeiras alterações, fósforos, amanhã, sono, como é modorrenta essa estação, / tempo de
dourados, estação e cópulas: palavras que, por bandolins, maçãs e sono!)” (vv. 19-20).
si só, servem como uma paráfrase ao poema, A partir da quinta estrofe, o eu lírico instaura
afinal, funcionam como fragmentos de uma uma convicção: “Tomaremos a cidade dourada / na
tradução ao cenário hedonista que nos é hora derradeira da estação,” (vv. 25-26), mas com
apresentado, simbolizando tudo aquilo passível uma ressalva: apenas quando a busca incessante
de ser visto como inflamável, postergado, pelo prazer houver se extinguido ao final do
modorrento, suntuoso, fugaz e hedonista. veraneio naquele ambiente pastoril: “quando já não
Na sequência, a segunda estrofe se mostra restar nem mais um fósforo, / uma gota de sol, de
ainda mais eloquente em seus princípios de céu, de sono.” (vv. 27-28). Ainda assim, essa será a
expressão ao se iniciar com um verso despedida de um hedonista contumaz: “A entrada
perfeitamente iâmbico: “São tantas mãos e triunfal será uma cópula / na imensidão da última
bocas, tantas cópulas,” (v. 7). Sabe-se que um manhã.” (vv. 29-30).
tal acúmulo de acentos conota peso, lentidão e A sexta estrofe inaugura um novo cenário,
dificuldade, o que, nesse caso, faz todo o ao que parece, definitivo: o eu lírico
sentido, sobretudo quando consideramos as compreende que logo não poderá mais adiar a
pausas impostas por suas duas vírgulas. Como realidade – momento em que os excessos da
resultado, observa-se mais um oportuno vilegiatura terão, enfim, ficado para trás:
espelhamento entre forma e conteúdo, onde o “Quando acordarmos, já será amanhã, / os olhos
caráter hedonista do eu lírico se sobressai, turvos de sonhos dourados,” (vv. 31-32). Como
persistindo mais adiante: “é tão horizontal essa consequência, hão de restar apenas resquícios
estação” (v. 9). Nessa estrofe, pode-se dizer que (“as peles mornas recendendo a cópulas,” (v.
já não há um ritmo idêntico entre os versos; algo 33)) em meio ao cenário de alguma cidade
que também se verifica no plano das rimas: (“bagagens esquecidas na estação,” (v. 34)). E
“fósforo” (v.8) e “dourado” (v. 11) se esse último verso é particularmente importante
encontram no singular, ao passo que “fósforos” pois é o primeiro a confirmar, através da
e “dourados”, na estrofe anterior, estavam no polissemia da palavra estação, a mudança do eu
plural. A ligeira mudança na flexão desses lírico para um cenário tipicamente urbano. Por
substantivos e adjetivos seria o suficiente para fim, não deve demorar até que a velocidade da
que puristas classificassem tais rimas como vida urbana consuma quase todas as lembranças
imperfeitas, ou seja, para que argumentassem pastoris: “jornais, explicações, ressaca e sono,
que tal coincidência sonora não é total. Porém, / um alvoroço de café e fósforos.” (vv. 35-36).
acreditamos que é justamente essa não- Quase todas, porque, como indica o último
totalidade o que melhor representa a atmosfera verso do terceto que arremata a sextina, “Dessa
fatigante de “Vilegiatura”, onde o prazer com estação só vão restar as cópulas.” (v. 39).
frequência é perturbado pelo sono, e vice-versa.
2 A finalidade da sextina, afinal
Ali, nada muda de todo nem tudo permanece
exatamente igual. A partir dessa análise formal, é possível
Na terceira estrofe, destacam-se duas concluir que, dentro da obra de Paulo Henriques
novidades: em primeiro lugar, “Rechacemos o Britto, o uso de formas poéticas tradicionais tende
torpor da estação” (v. 18) é o primeiro sempre a perturbar aquela espécie de composição
decassílabo com acentuação tipicamente que, a princípio, nos parece exclusivamente
medieval (com acento primário na 7ª sílaba), o arbitrária. Nesse mesmo sentido, Britto já foi
que se prova oportuno não apenas pelo fato do questionado por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo a
eu lírico agora apontar para uma mudança respeito de um “‘programa’ para sua poesia”
genuína, espelhando forma e conteúdo (BRITTO, 2004, p. 8). Na ocasião, eles o
novamente, como por também acenar para o lembravam de que a constatação da existência de
contexto original da sextina, tão associada à “duas fronteiras definidas” para sua “sensibilidade
Idade Média. Em segundo lugar, a presença de poética” o levaram a excluir,
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 58

de um lado, toda poesia que parta de um


compromisso inequívoco com uma visão do
mundo, uma ideologia, uma convicção qualquer;
e, de outro, toda poesia que constitua uma
simples exploração das possibilidades formais do
idioma e da linguagem poética, uma utilização da
palavra como significante (quase) vazio, como
conotador livre de denotações”. Concluía você:
“Não consigo conceber o território da poesia
senão como a área fronteiriça entre a referência
clara e o ludismo verbal”. (BRITTO, 2004, p. 8)
Assim, Britto declaradamente foge às
tentações de “fazer da poesia um mero veículo
para uma ‘mensagem’ ou para a ‘auto-
expressão’ ou transformá-la num jogo de
significantes vazios.” (BRITTO, 2004, p. 9). No
caso de “Vilegiatura”, a forma da sextina atende
a uma finalidade clara: enfatizar o conteúdo
semântico do poema de tal modo que passamos
a admitir que uma outra forma tradicional não
alcançaria resultados igualmente satisfatórios.
Referências

BRITTO, Paulo Henriques. Entrevista. Cacto:


poesia & crítica, n. 4. Editada por Eduardo
Sterzi e Tarso de Melo. São Paulo: Unimarco
Editora, 2004, p. 7-17.
BRITTO, Paulo Henriques. O natural e o
artificial: algumas reflexões sobre o verso livre.
eLyra: Revista da Rede Internacional
Lyracompoetics, [S. l.], n. 3, 2014. Disponível
em:
<https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/
view/40>. Acesso em: 14 nov. 2021.
BRITTO, Paulo Henriques. Para uma tipologia
do verso livre em português e inglês. Revista
Brasileira de Literatura Comparada, Porto
Alegre-RS, v. 13, n. 19, 2011, p. 127-144.
BRITTO, Paulo Henriques Britto.
“Vilegiatura”. In: Trovar claro. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p. 67-68.
CAMPOS, Álvaro de. “O que há em mim é
sobretudo cansaço —“. In: Poesias de Álvaro
de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática,
1993 [1944], p. 64. Disponível em:
<http://arquivopessoa.net/textos/269>. Acesso
em: 14 nov. 2021.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
literários. São Paulo: Cultrix, 2013 [1974].

********
SIMPÓSIO 2
Poesia, outras artes, outros saberes
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE


MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
Scheila Cristina Alves Costa Leite28

RESUMO: Este trabalho analisa como a Palavras-chave: Família; Hegel; Os Simpsons;


família se faz presente no universo da série “Os Poema; Hipotipose.
Simpsons” de Matt Groenning e no poema
“Família” de Carlos Drummond de Andrade, a 1 Introdução
partir da sua constituição poética e dos recursos O poema “Família” e a série “Os Simpsons”
de animação por meio dos objetos, ruas, casas, são dois textos que apresentam, de formas
cidade, pessoas e seus problemas e soluções, diferentes, o modo como a família é
pesquisando-se nestes textos os princípios representada num determinado ambiente social
éticos e os ideais de referência de uma família e como a presença dela no universo da escrita é
em épocas distintas. Para tanto, este estudo a maneira do eu lírico estar no mundo. A
abordará a concepção hegeliana sobre a ideia de articulação entre os objetos, casas, ruas, pessoas
família, que destaca esta instituição como uma e seus problemas e soluções evocam os espaços
unidade de base para a formação do indivíduo e e movimentos da família drummoniana e da
assim um começo para a construção de sua família que Matt Groenning cria na série Os
eticidade. O poema “Família” de Drummond, Simpsons, e ambos exaltam a presença da mãe
através do recurso linguístico da hipotipose, como o elo maior no que tange a busca da
apresenta ao leitor uma concepção harmônica harmonia dentro do relacionamento familiar.
de família na qual tudo gira em torno da figura As representações pai/filho, mãe/filho,
da mulher (a mãe). Em contrapartida, a série irmão/irmãos se projetam diferentemente em
“Os Simpsons” mostra de maneira cômica, um cada texto em estudo, no poema a figura da mãe
exemplo de uma família disfuncional, em que se destaca ao longo de todo o texto como a que
os conflitos, a má conduta e muitas vezes o harmoniza as relações interpessoais que se
abuso por parte dos membros individuais manifestam no seio familiar, já na série a figura
ocorrem continuamente e regularmente, da mãe aparece sempre ligada aos demais
fazendo com que os outros membros se membros da família como a figura mais
acomodem com tais ações. Assim, nesse estudo, paciente, que se ocupa e se preocupa com os
é possível se verificar, concomitantemente, a comportamentos e ações dos demais, mas que
narração e a descrição no mesmo ato discursivo, também não abandona os seus próprios
tanto no poema quanto na série em análise, que interesses.
abordam o cotidiano de famílias diferentes, com Assim, pressupondo-se que a família é, na
conteúdo e qualidade, versando com um concepção hegeliana, a base para a formação do
destacado perfeccionismo de produção, a indivíduo e a primeira raiz ética do Estado, a
abordagem de suas diferenças, críticas sutis e os presença dela no espaço da escrita dos dois
mais singelos valores de família, às vezes ou textos em estudo reflete o modo desse sujeito
muitas vezes, também comum a todos nós. estar no mundo e como ele se instaura no
universo familiar de maneiras diferentes.

28
Especialista em Literatura Brasileira; surykatu@gmail.com;
UEMA
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 61

Desta forma, este estudo pretende destacar e suporte desta instituição, fazendo com que o
analisar o modo como a família, objeto da obra autor estabeleça mesmo uma relação de causa e
drummoniana e da série de Matt Groenning, efeito entre essa mulher e a própria felicidade
representa em vários momentos a figura como se observa na última estrofe do poema:
materna, bem como sua aproximação e [...]
distanciamento com os princípios éticos O agiota, o leiteiro, o turco,
hegelianos no que tange a ética e o outro O médico uma vez por mês,
fundamento da família “o amor”. O bilhete todas as semanas
Branco! Mas a esperança sempre verde.
2 Poema “Família” de Carlos Drummond
E a mulher que trata de tudo
de Andrade E a felicidade.
O poema “Família” de Carlos Drummond de (D’ONOFRIO, 2000, p.31)
Andrade é construído por este escritor com duas Dessa forma, verifica-se que o texto em
características peculiares: o ambiente familiar estudo retrata um tema recorrente nos poemas
com uma dimensão mais harmônica através da de Drummond, a família, que surge diversas
figura da mãe, bem como o recurso estilístico da vezes nos seus textos, mas a família aqui em
hipotipose, ao longo de todo o texto, para que o questão não é a que aparece com uma memória
leitor tenha a sensação de que percebe ou lembrança dolorosa de um passado que não
pessoalmente as descrições do cotidiano desta passou totalmente e pesa no presente, mas sim a
família como se realmente os fatos descritos por de uma família em que o amor é o seu maior
Drummond estivessem diante de seus olhos. A fundamento, a base para a harmonia entre os
plasticidade proporcionada pelo elemento seus membros. E de modo geral, esse poema é
estilístico da hipotipose revela ao leitor a construído pelo autor em torno de uma
descrição viva e animada da realidade de uma atmosfera intimista por meio da disposição de
família que vive o seu dia a dia simples, mas imagens em um efeito de simultaneidade de
cheio de amor e equilíbrio, de forma apresentá- objetos e ações que o recurso estilístico
la como se fosse visível. utilizado no texto nos permite sentir.
Cada estrofe do poema apresenta uma
enumeração e um verso que se repete em todas 3 Série Os Simpsons” de Matt Groennig
elas “A mulher que trata de tudo”, esse verso Os Simpsons é uma série de animação e
resume a concepção de harmonia dentro de uma sitcom norte-americana criada por Matt
família em que tudo gira em torno da mulher, a Groenning, um cartunista profissional dos
quem compete a organização da casa e o auxílio EUA, para a Fox Broadcasting Company. A
aos filhos e ao marido, como se verifica nos série é uma paródia satírica do estilo de vida da
versos a seguir: classe média dos Estados Unidos (incluindo aí a
Três meninos e duas meninas, cultura, a sociedade e até mesmo a televisão) e
sendo uma ainda de colo. aspectos da condição humana, através da
A cozinheira preta, a copeira mulata, família protagonista, que incluem o patriarca
o papagaio, o gato, o cachorro, Homer Jay Simpson (Homer), a matriarca
as galinhas gordas no palmo de horta Marjorie Bouvier Simpson (Marge), o filho
e a mulher que trata de tudo. Bartholomew Simpson (Bart), a filha Elisabeth
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, Marie Simpson (Lisa) e a caçula Margareth
O cigarro, o trabalho, a reza,
Simpson (Maggie), que vivem na fictícia cidade
A goiabada na sobremesa de domingo,
O palito nos dentes contentes, de Springfield.
O gramofone rouco toda noite Muito embora a primeira temporada da série
E a mulher que trata de tudo. […] tenha iniciado em 1989, Os Simpsons são, de
(D’ONOFRIO, 2000, p.31) acordo com alguns críticos, o evento televisivo
mais importante dos anos 90, exibindo ao
Nesse poema em estudo, a cena construída é
grande público personagens distintos e
a vida no campo de uma família composta por
indubitavelmente irreverentes e curiosos.
três meninos, duas meninas, uma cozinheira,
Homer, o chefe da família, aos 35 anos, é um
uma copeira e uma dona de casa mencionada no
elemento totalmente estranho e engraçadíssimo
texto repetidas vezes, intencionalmente pelo
que está constantemente acima do peso, é
autor, para evidenciar o destaque que
inspetor de segurança do setor 7G na usina
Drummond dá a figura da mãe/mulher como
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 62

nuclear da cidade e adora beber cerveja e assistir emoções que sente terem sido perdidas.
TV, nesse item, ele é o primeiro a sentar-se em Lisa Simpsson, uma menina de oito anos de
frente ao aparelho e ficar horas olhando para ela idade, representa o “filho” inteligente dos
junto com os filhos. Na verdade, Homer Simpsons, ela é, ao contrário de seu pai, a
representa a imagem do preguiçoso na série, imagem da virtude que a coloca constantemente
tanto no seu ofício na usina nuclear onde em situação de crise existencial numa sociedade
trabalha, quanto na sua casa, pois sua função no vazia, hipócrita e cínica. É o ser mais
setor 7G na usina limita-se a monitorar a equilibrado de toda a família Simpson,
máquina de salgadinhos, olhar o relógio, vegetariana convicta, defensora dos direitos das
estudar a pálpebra internamente e prevenir os minorias, feminista ardorosa e exemplarmente
problemas na pastelaria, já em sua casa, mesmo estudiosa, Lisa é a personificação da
sendo um pai dedicado e capaz de cometer consciência que reina sobre sua família e
qualquer disparate para defender a família que também sobre Springfield, pois é mais madura
ele ama, sua função é fazer patrulha deitada, do que a grande maioria dos habitantes da
distribuição de roupa de baixo e produção de cidade e tenta a cada novo episódio, ajudar tanto
migalhas de comida pelo chão. Homer tem sua família quanto aos demais habitantes ao seu
verdadeira adoração por sua esposa e filhos, redor a melhorar suas vidas.
tanto que frequentemente se questiona e Maggie, a caçula de um ano de idade da
pergunta, principalmente para sua filha Lisa, se família Simpson, um bebê que embora ainda
ele faz sua amada mulher feliz. não fale é um ser de muita expressão e
Marge Simpson, esposa de Homer, aos 34 inteligência e adorada por todos, sendo
anos, é uma mãe de família e dona-de-casa que considerada por muitos fãs a mais inteligente
não gosta de muitas mudanças. Mãe dedicada, dos Simpsons. Ela ama chupar sua chupeta e
seu principal divertimento é resmungar e adora animais. Há aproximadamente cinco anos
reclamar o tempo todo, representando muito essa personagem vem tentando pronunciar
mais do que uma simples mãe preocupada com algumas poucas palavras e dentre elas “papai” o
seus filhos, essa personagem é projetada na que deixa Homer completamente satisfeito.
série como a mulher dos anos 90 que começa a Essa série famosa conquistou um seleto
ajudar financeiramente seu marido, ela é aquela grupo de seguidores fiéis e embora tenha sido
que busca seu lugar no mundo frente a um recebida pelo público brasileiro com certa
cenário que era até então exclusivamente dos frieza, o seu roteiro tem um singular
homens, trabalhando inclusive ao lado de seu perfeccionismo de produção tanto na
marido Homer na usina nuclear. O único linearidade dos episódios e na ligação entre
excesso deste personagem é o seu enorme e alto pequenos detalhes quanto na riqueza das
cabelo azul que ela usa cotidianamente, mas até referências, críticas sutis e atuais e na
mesmo a escolha da cor azul do cabelo de originalidade de suas temáticas.
Marge reflete, pela simbologia que essa cor
4 Família na Filosofia do Direito de Hegel
carrega, o sentido de paz e segurança que essa
mãe representa naquela família, bem como a De acordo com o pensamento político
imagem da mulher exuberante porém discreta hegeliano, dentro do conjunto ética e Estado, o
que sai, finalmente, do anonimato. homem considerado como substancia ética da
Bart Simpson, filho mais velho do casal, um sociedade civil, somente desenvolve todo o seu
garoto rebelde de dez anos de idade, estudante dever em face da liberdade, mas uma liberdade
da Springfield Elementary School, está na 4 somente na medida em que prossegue dentro do
série, adora bagunça passando a maior parte do que é reconhecido de aceitado pela ética e pelo
seriado junto de seus amigos a fazer travessuras, Estado.
esse personagem seria um herói anti-herói e o Se a razão para Hegel é a certeza consciente
Simpson mais mal interpretado, porque ele não de ser toda a realidade. O Estado para Hegel é
entende o motivo dos moradores o um todo ético organizado, ou seja, o verdadeiro,
recriminarem. Mas mesmo sendo um arquétipo porque é a unidade da verdade universal e
do Bad Boy, capaz de roubar os livros dos subjetiva. Dessa forma, a vontade individual
professores e causar com isso o cancelamento (singular) e a vontade universal (O Estado)
das aulas, Bart é um menino esperto que encontram como identidade os direitos e
contraria as normas da sociedade em busca de deveres, assim no desenvolvimento da ideia de
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 63

Liberdade, há um vínculo entre o universal e o particularidade aponta para o resultado no


particular no que tange as leis, os hábitos e coletivo. Em Hegel (de acordo com a Filosofia
costumes na vida ética de um povo. do Direito), a família, enquanto
Sobre a vida ética, Hegel se lança numa substancialidade imediata do espírito, tem por
alentada discussão sobre família, sociedade sua determinação o amor e tem autoconsciência
civil e Estado. O sujeito para Hegel é o sujeito de sua individualidade enquanto sua essência,
ético, pertencente ao Estado que o reconhece porém não só para si, mas para o coletivo. O
como universal e sua personalidade e vontades ambiente familiar é colocado como a primeira
estão preservadas na sua individualidade e na forma de comunidade para o indivíduo, e, nesse
ética do Estado. ambiente, o indivíduo não é mais abstrato, ele é
A família, na concepção hegeliana, é a base um membro (Mitglied) junto com os outros, que
para a formação do indivíduo, ela é uma faz parte de um processo de sociabilidade, de
instituição de formação que constitui o início do convivência, de relação igualitária,
desenvolvimento da eticidade natural e compartilhando hábitos e costumes como
imediata, se estabelecendo assim como o preparação para suprimir tensões e conflitos, se
fundamento do Estado. Segundo Hegel, a desenvolvendo e aprendendo a conviver com as
formação (Bildung) dos filhos e contradições dessa pequena comunidade. Mas
consequentemente do próprio indivíduo se dá a dentro do ambiente familiar, o indivíduo ainda
partir de como este é preparado para receber não atinge a eticidade de fato, pois esta ainda é
uma carga de informações diferentes, bem um pequeno ensaio para a vida ética, porque
como sua educação conforme os princípios sendo o indivíduo um ser cheio de vontades,
éticos de sua família, mas sempre acolhidos tentará realizar seus desejos; contudo, segundo
pelo amor, pois o próprio Hegel considera a Hegel, ele não pode realizar sua vontade de
família uma unidade de amor. forma absoluta, visando apenas ao particular ou
Seguindo o pensamento de Hegel, dentro aos seus próprios sentimentos. Isso porque na
desta pequena comunidade (a família), a figura família, que é calcada no amor fraterno, suas
mais próxima que representa a referência para escolhas e assim é também a sua liberdade se
uma criança é a do pai, que é a autoridade encontra ainda limitada, necessitando de uma
máxima da família. E sobre isso, Hegel dimensão maior de comunidade, onde os
apresenta o homem dizendo na obra Princípios verdadeiros valores irão resultar no social, no
da Filosofia do Direito o seguinte: coletivo.
A família, como pessoa jurídica, será
De acordo com Hegel, a vontade, embora
representada perante os outros pelo homem, importante, precisa ser mediada para alcançar o
que é o seu chefe. Além disso, são seus equilíbrio necessário para o desenvolvimento
atributos e privilégios, o ganho exterior, a ético, mas é na família que o indivíduo começa
previsão das exigências, bem como dispor e a desenvolver seu senso de direito e dever,
administrar a fortuna da família. É coletiva entendendo, naturalmente, que está destinado a
esta propriedade e nenhum membro da liberdade, ao compartilhar sua existência com
família tem uma propriedade particular, outros membros de sua família e vivendo dentro
embora cada um tenha um direito sobre a dela as primeiras e pequenas diferenças. Para
propriedade coletiva. O direito e as
CHÀTELET […] O que é primeiramente é a
atribuições que pertencem ao chefe da família
podem ser discutidos, pois o que ainda há de
família. Nela, a vontade se encarna: a
imediato nas disposições morais da família, subjetividade se impõe, por sua plena vontade,
(§158) dá lugar à particularidade e à limites a seu desejo e se dá obrigações […]
contingência. (HEGEL, 1997, p.158) (1995, p.130)
Assim, a família é em Hegel (de acordo com
As outras pessoas, que também fazem parte a Filosofia do Direito) uma instituição
deste núcleo familiar, são também referências fundamental, porque é nela que a formação do
norteadoras ao desenvolvimento ético e moral indivíduo começa, se desenvolve e se constitui
de um indivíduo, no que tange seu exercício de pela vida conjunta de seus membros formando
cooperação, tolerância, partilha e aceitação para uma comunidade, que mesmo em pequeno
uma melhor convivência social. porte, nela está implícita a moralidade e a
Dentro deste processo progressivo de eticidade e está orientada pelo amor que
formação do indivíduo no âmbito familiar a que permeia a relação entre seus membros.
se refere Hegel, em cada momento contido na
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 64

5 A família em Drummond e em Matt personagens, os animais de estimação, todos


Groenning reunidos, simbolizam o lugar/espaço do afeto e
do amor no convívio familiar. A casa aqui, no
Toda reflexão sobre família e o seu papel
poema em estudo de Drummond, não representa
preponderante como uma das principais fontes
a família patriarcal, mas sim a figura da mulher
formadoras do caráter de um indivíduo emerge
(a mãe) que representa o elo de afeto e união
dos mais variados tipos de texto que tratam
entre os membros da família, principalmente
deste tema, quer seja na forma impressa ou nas
porque ela é enaltecida entre os versos como
telas de TV ou cinema.
aquela que trata de tudo, a que é a própria
A série e o poema em estudo revelam ao
personificação da felicidade no ambiente
leitor o modo como dois modelos distintos de
familiar, tanto que Drummond não cita a figura
família são apresentados ao público e como a
do pai nos versos do poema, mesmo que
presença delas no espaço da escrita é a maneira
implicitamente.
do eu-lírico estar no mundo.
Na série “Os Simpsons”, a casa é
Os Simpsons é um desenho animado em que
representada pela figura paterna, de maneira a
cada personagem foi criado e desenvolvido, por
ainda exaltar o pai como o chefe da família,
Matt Groenning, com uma história de vida,
seguindo o pensamento de Hegel, a autoridade
dentro de uma cidade chamada Springfield,
máxima da família, muito embora na série a
retrato fiel da vida interiorana nos Estados
mulher já comece a ser apresentada com outros
Unidos, sendo destinado a um público mais
comportamentos que representam uma nova
maduro e adulto. A “família” Simpson é o
geração de mulheres no início dos anos 90. Na
núcleo da série, é em torno dela que giram os
série, Marge Simpson, a esposa, é uma dona de
outros personagens em cada episódio,
casa estereotipada, mas não uma simples
abordando temas desde os mais singelos valores
mulher preocupada com os seus filhos, pois ela
da família americana, situações também
representa a nova mulher dos anos 90 que
comuns a todos nós, até questões como:
começa a ajudar financeiramente seu marido.
utilização da energia nuclear, problemas
Os dois textos se assemelham quanto a
ambientais, fanatismo religioso, racismo, o
relação entre o presente e os laços familiares,
atraso mental das corporações, relações
pois a percepção dos temas abordados se dá de
humanas, adultério, educação, o ridículo de
forma imediata, uma vez que as informações
certas instituições, a questão dos homossexuais,
relatadas em ambos testemunham o mesmo
e isso tudo o autor faz sem ser partidário a nada,
tempo em relação ao tempo do eu enunciador.
e muito menos moralista, embora muitas vezes,
No plano físico, ambos Groenning e
sutis reflexões perdurem após muitos episódios.
Drummond aludem a aproximação constante
É típico dos autores dessa série criarem
dos membros da família, de modo a definir e
personagens que podem explorar os problemas
explicar o modo de ser individual e
enfrentados pela sociedade contemporânea.
consequentemente coletivo de cada um,
Exemplo disto são algumas atitudes praticadas
revelando como esse sujeito individual e
pelos personagens, como o fato de na maioria
coletivo se inscreve e se projeta no meio
dos episódios toda a família Simpson estar
familiar, evocando ao leitor/telespectador como
usando o cinto de segurança no veículo e apenas
é a presença dessas duas famílias distintas no
Homer, o chefe da família, esquivar-se desta
espaço da escrita na série e no poema em estudo.
norma de trânsito, ou ainda como outro
exemplo, através de Bart e Lisa, na escola 6 Considerações Finais
primária de Springfield, os autores ilustram
A série Os Simpsons de Matt Groenning e o
questões controversas no campo da educação,
poema Família de Carlos Drummond de
ou por Homer ter um trabalho em uma usina
Andrade dão voz e forma ao espaço da
nuclear, a série pode comentar sobre o meio
representação da família e da confissão do
ambiente.
sujeito poético.
A família também é o tema central da
Os textos em estudo representam o universo
expressão literária de Drummond que narra de
familiar de maneiras distintas, pois na escrita
maneira intimista e poética acontecimentos
poética de Drummond, a relação eu
cotidianos sempre utilizando outro elemento
lírico/família se apresenta sempre de maneira
que também aparece em toda a sua obra poética,
equilibrada, onde a “casa” não representa a
a “casa”. Dentro deste espaço, os objetos, as
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 65

figura paterna, mas sim a da mãe/mulher como Kant visitam Springfield. Disponível em:
uma forma de se reavivar a imagem da família http://acervo.plannetaeducacao.com.br/portal/a
no afeto e no amor, que o próprio Hegel, na rtigo.asp?artigo=267. Acesso em 08 de
Filosofia do Direito, considera como a unidade setembro de 2021.
da família. Na série Os Simpsons, a relação
MARTINS, Jorge Manuel Venâncio. A poesia
texto/família nem sempre aparece nos episódios
de Carlos Drummond de Andrade: Memória
de maneira equilibrada, porque por vezes
e família articulações poéticas. Disponível em:
percebe-se a questão da identificação, da
ite.cefetmg.br/wp-
consciência de alguns membros da família
content/uploads/sites/114/2019/10/107_Poesia
Simpson oscilar em alguns momentos, muito
_Martins.pdf. Acesso em: 09 de setembro de
embora a figura paterna que ainda representa a
2021.
casa dos Simpsons, ainda conserve a imagem da
família patriarcal na forma do afeto. ROCHA, Alessandra Almeida da; PIRES,
Portanto, a escolha do poema e da série em Flavia da Silva; CARDOSO, Kátia Regina
questão é em virtude de sua abrangência Costa; GOMES, Nataniel dos Santos. Os
cultural e social, bem como da importância de Simpsons uma crítica ao estilo de vida norte-
seus temas ao exaltar a família, dentro da americano. Disponível em:
concepção hegeliana, como a base para a http://www.filologia.org.br/pub_outras/sliit02/
formação do indivíduo, a instituição de sliit02_87-92.html. Acesso em: 07 de setembro
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ISBN: 978-65-5363-027-7

A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A


FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA
Mariane Pereira Rocha29

RESUMO: O presente artigo discute a primeiro livro, 20 poemas para seu walkman em
experiência poética na contemporaneidade, a 2007. Dez anos depois, publica seu quinto livro
partir da relação da lírica de Marília Garcia com de poemas, Câmera Lenta (2017). Nele
as imagens, no poema “tem país na paisagem?” encontramos poemas longos que apresentam
do livro Câmera lenta (2017). Dessa forma, marcas de uma linguagem narrativa, assim
busca-se compreender de que maneiras a como uma rede intertextual complexa, a partir
aproximação entre poesia e fotografia produz da qual a poeta elabora sua lírica. Além disso,
significados no texto poético de Marília e na são constantes os diálogos com outras artes,
tradição na qual ela está inserida. Para tanto, como o cinema e a fotografia, o que podemos
utiliza-se como aporte para a discussão perceber já no título da obra, que faz referência
principalmente as reflexões de Celia Pedrosa a um recurso bastante utilizado nas produções
(2010, 2015) sobre poesia contemporânea e cinematográficas. Assim, encontramos na obra
Susan Sontag (2003), Joan Fontcuberta (2010) de Garcia uma reflexão sobre as imagens que
e Walter Benjamin (2017) sobre fotografia. A perpassa sua composição lírica e amplia as
partir das análises, foi possível perceber que discussões sobre o fazer poético, sobre a
Marília Garcia constrói uma lírica que, ao memória bem como sobre as formas de
problematizar os usos da fotografia, propõe uma intepretação da realidade, presente não somente
reflexão acerca da capacidade de apreensão do em Câmera Lenta, mas também nas demais
presente, bem como das expectativas geradas obras da poeta.
em torno dos registros visuais realizados pela Celia Pedrosa (2010), em uma análise de 20
câmera. Ao evidenciar a relação da fotografia poemas para seu walkman, reflete que há uma
com o ordinário, Garcia vincula à experiência contradição na cultura contemporânea na qual
poética a uma tendência contemporânea na qual uma “intensificação dos processos de produção
o cotidiano substitui os acontecimentos e reprodução tecnológica” se radicalizam e se
homéricos de outrora. A lírica de Garcia em tensionam. Para Pedrosa, a poesia de Marília
"tem país na paisagem?", assim, demonstra que convive com essa intensificação, “inclusive
discutir o registro do cotidiano e do banal pode transformando a materialidade desses processos
ser uma forma de questionar e elaborar a própria em tema, questão e procedimento formal, como
existência, mobilizando algumas das grandes estamos vendo (PEDROSA, 2010, p. 36)”.
questões existenciais, entre elas, o Entre esses processos de produção e reprodução
pertencimento, o espaço, a realidade e a tecnológica, a fotografia e o cinema ganham
apreensão e passagem do tempo. destaque, especialmente em Câmera lenta.
No que diz respeito à fotografia, Natália
Palavras-chave: Marília Garcia; Poesia Brizuela explica que quando essa se torna
contemporânea; Fotografia. natural na vida privada e pública, recorrente no
cotidiano, ela passa a integrar os regimes
1 Considerações iniciais artísticos, “não como representação, nem como
Marília Garcia, poeta carioca, publicou seu ilustração, nem como arte, mas como conceito”

29
Doutoranda em Letras • marianep.rocha@gmail.com •
Universidade Federal de Pelotas
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 67

(2014, p. 80). Esses novos usos da fotografia assim como a menção de nomes próprios de
permitem, então, deslocamentos e intersecções pessoas e lugares, como incrustações não
entre as áreas, já que, conforme a autora, “as dissolvida no andar do poema (LEONE,
artes começaram a expandir-se, a deslocar-se, a 2015, p. 132).
transitar por zonas e materialidades que não A autora aponta, então, tais inserções como
eram as que, até aquele momento, haviam a manifestação tanto de um outro que se
definido cada uma” (BRIZUELA, 2014, p. 80). entrecruza com o próprio eu poético, quanto do
Quando a literatura toca a fotografia, então, “a próprio eu que se apresenta múltiplo e participa
literatura move-se para uma prática conceitual, de uma “singular-pluralidade”. Argumentamos,
abre-se para o mundo, para aquilo que não era porém, que esses entrecruzamentos vão além do
antes parte dos materiais, do meio literário” discurso do outro, são também outros tipos de
(2014, p. 31). discurso, ou seja, o discurso fotográfico e o
Aulus Martins (2016), circunscrevendo a discurso cinematográfico compõem essa rede
discussão ao campo da poesia, elucida que de referências na qual a poesia de Marília se
existem ao menos duas possibilidades de elabora. Sendo assim, o presente trabalho
diálogo entre poesia e fotografia. Na primeira discute a experiência poética na
delas, fotografia e poema dividem o mesmo contemporaneidade, a partir da relação da lírica
espaço, com a materialidade fotográfica de Marília Garcia com as imagens, tanto quanto
construindo sentindo juntamente ao texto procedimento como quanto temática. Dessa
poético. Na outra, a fotografia se manifesta no forma, investiga-se o diálogo que essa poesia
poema “seja pela sua mera descrição, seja pela estabelece com a fotografia e busca-se
apropriação de recursos e gestos inerentes ao compreender de que maneiras essa aproximação
ato fotográfico” (MARTINS, 2016, p. 107). produz significados no texto poético. Como
Nesta segunda tendência, vamos encontrar corpus de análise, para o desenvolvimento do
poemas em que a fotografia, “apesar de não presente texto, será utilizado o poema “tem país
estar presente, é percebida através de alterações na paisagem?” de Câmera lenta (2017).
na sintaxe” (BRIZUELA, 2014, p. 31), e, assim, Ao estudar a poesia contemporânea é
podemos visualizar determinados elementos do importante que novas abordagens sejam
dispositivo fotográfico dos quais a literatura se utilizadas, uma vez que, conforme reflete Celia
apropria, “como a indexicalidade, o corte, o Pedrosa, a lírica contemporânea "passa a se
ponto de vista, o pôr em cena, a dupla caracterizar também pela pluralidade de
temporalidade (passado-presente/o que foi-o discursos e tendências" (2015, p. 322) e, assim,
agora), o caráter documental, sua função há uma “dificuldade de enfrentamento do
mnemônica, o ser uma mensagem sem código” heterogêneo e de fazer disso oportunidade de
(BRIZUELA, 2014, p. 31). questionar generalizações e discutir a partir de
Ao discorrer sobre a poesia de Marília, Luciana tensões, incertezas" (PEDROSA, 2015, p. 323).
di Leone (2015) explica que há um método poético Dessa maneira, quando Beatriz Resende (2008)
na lírica de Garcia que organiza tudo aquilo que explica que para analisar as novas produções
está suspenso ao redor, “o método da perplexidade literárias é preciso “deslocar a atenção de
ante as partículas de outros poemas, de outros modelos, conceitos e espaços que nos eram
discursos, de outros tempos, em fim [sic], ante a familiares até pouco tempo atrás" (RESENDE,
imagens mínimas que revelam, de forma 2008, p. 15), entendemos que estudar a poesia a
intermitente, suas conexões com outros corpos, sua partir de sua posição de diálogo com a
condição de desprendimento” (LEONE, 2015, p. fotografia e o cinema é uma abordagem atual
131). A autora afirma ainda que esta poesia se que nos abre uma série de possibilidades de
caracteriza pelos “momentos de encontros análise.
discursivos”:
2 Como ver o tempo passar neste lugar?
Insisto nisso me baseando, entre outros
elementos, na visível utilização de citações O poema “tem país na paisagem? (versão
propriamente ditas (as “atracadoras”, de compacta)” está inserido na seção “pausa” de
Walter Benjamin, que nos fazem dizer outra Câmera lenta (2017). Seu título deixa
coisa, sempre outra coisa), mas também na subentendido que há uma versão “estendida” do
insistência com que aparecem verbos dicendi, poema, visto que é a compacta que compõe o
ou signos de intrusão (aspas, dois pontos, volume. De fato, este poema, com algumas
itálicos), que abrem o discurso ao seu outro,
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 68

alterações e muitos acréscimos havia sido lido A partir da primeira estrofe, reproduzida
pela poeta na Casa de Rui Barbosa em abril de acima, percebemos que há importantes
2017, com o mesmo título. Na ocasião, a poeta perguntas que norteiam as práticas do eu lírico,
fez a leitura dos versos do poema ao mesmo sejam elas explícitas, “como ver o tempo/
tempo em que reproduzia em um projetor uma passar neste lugar?” ou implícitas “e tiro uma
série de fotos. Essa leitura está agora disponível foto/ que possa me dizer/ alguma coisa/ sobre
no canal do youtube30 da poeta e conta com a estar aqui”. Essas perguntas, no entanto, não
seguinte descrição: “’Tem país na paisagem?’ são respondidas pelo gesto fotográfico do eu
passou a se chamar "Parque das ruínas" e lírico, já que é “o resto” (v. 4), além da
integra novo volume da autora publicado pela fotografia, que gira “em torno da pergunta:/
editora Luna Parque (2018)”. Em Parque das como ver o tempo/ passar neste lugar?”. Assim,
ruínas (2018), encontramos os versos lidos pela a fotografia é apenas um hábito, atividade que a
poeta, compostos agora também pelas poeta realiza de maneira quase mecânica, todos
fotografias projetadas na ocasião. Não há, no os dias, enquanto somente o “resto” é destinado
entanto, nem no canal do youtube, nem no às perguntas que precisam ser respondidas.
volume novo de 2018, menção à versão Além disso, o referente que o eu lírico fotógrafo
compacta de Câmera lenta. Aqui, temos acesso captura, a ponte, também é da ordem da rotina,
às fotografias através das impressões e gestos de já que ele a registra corriqueiramente, conforme
um eu lírico que, diariamente, às 10 horas, na terceira estrofe do poema:
fotografa uma ponte de uma cidade na qual ele chego na ponte às 10h para
chegou recentemente. Através desse processo a foto diária e tem
fotográfico diário, a poeta elabora diferentes um caminhão em cima
da faixa de pedestre.
reflexões sobre a possibilidade da captura da
espero alguns segundos
realidade e a passagem do tempo. O poema até ele andar
discute, ainda, questões como a repetição e a e aperto o clique. (GARCIA, 2017, v. 49-55)
rotina, o pertencimento e o não pertencimento:
O eu lírico espera o caminhão se mover para
1. tirar a foto, em um indício de que ele não deseja
aqui só tenho uma regra:
registrar nada que considere fora do comum
todos os dias às 10h
tiro uma foto da ponte. para a cena que pretende capturar. No oitavo
o resto é livre e gira verso, ao fazer referência a Georges Perec e
em torno da pergunta: mencionar o “infra-ordinário”, o poema já
como ver o tempo revela que o ato de ir até ponte significa, para
passar neste lugar? ele, o registro do ordinário. Segundo Andrea
Penso no infra- Silva (2018), a escolha pela referência ao
ordinário de georges perec escritor francês não se dá por acaso, já que o
e todos os dias termo "infra-ordinário", título de um de seus
vou até a ponte livros póstumos, foi utilizado por Perec para
e tiro uma foto
refletir sobre o apagamento do banal e do
que possa me dizer
alguma coisa cotidiano em detrimento do sensacionalismo do
sobre estar aqui. trágico:
a ponte tem três arcos. A provocação lançada pelo autor francês
a água do rio é verde. volta-se contra o sequestro da rotina pela
atravesso a ponte com 124 passos. sociedade do espetáculo e das manchetes
quando um barco passa, catastróficas, que parecem sempre desviar
uma onda se forma. nossa atenção da progressão ordinária da
escrevo a partir das fotos e vida. A indústria das notícias, por esse ponto
depois apago as fotos. de vista, deforma nossa percepção até que não
(você poderia imaginar uma foto sejamos mais capazes de reconhecer o que
do primeiro dia? está a nossa volta (SILVA, 2018, p. 317).
isso aqui é uma
expedição). (GARCIA, 2017, v. 1-26, grifos A fotografia, que teve sua dimensão
da autora) ampliada a partir dos seus usos jornalísticos,
contribuiu para a construção dessa sociedade do
30 https://www.youtube.com/watch?v=qEQfXg4b9Ko
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 69

espetáculo, assim como para a insensibilidade aspectos da natureza que se tornam evidentes
que surge perante ela. Susan Sontag comenta em uma fotografia não poderiam ser percebidos
que “a caçada de imagens mais dramáticas a olho nu, através da simples observação do
(como, muitas vezes, são definidas) orienta o referente. O autor explica, então, que “a
trabalho fotográfico e constitui uma parte da natureza que fala à câmera é diferente da que
normalidade de uma cultura em que o choque se fala aos olhos. Diferente sobretudo porque a um
tornou um estímulo primordial de consumo e espaço conscientemente explorado pelo homem
uma fonte de valor” (2003, p. 61). Sendo assim, se substitui um espaço em que ele penetrou
o que as fotografias dos “grandes inconscientemente” (BENJAMIN, 2017b, p.
acontecimentos”, especialmente do trágico, 55). Dessa maneira, é somente ao olhar as
causariam, seria uma insensibilização para a fotografias que o observador “sente o impulso
experiência cotidiana, já que vivemos em uma irresistível de procurar numa fotografia dessas a
sociedade, conforme comenta Walter ínfima centelha do acaso, o aqui e agora com
Benjamin, para a qual a “vivência do choque se que a realidade como que consumiu a imagem”
tornou norma” (BENJAMIN, 2017a, p. 113). (BENJAMIN, 2017b, p. 55). Em “tem país na
A poeta, então, ao fotografar as miudezas do paisagem?”, o eu lírico que observa as
cotidiano e ao insistir no registro do banal, vai na fotografias é o próprio fotógrafo que, apesar de
contramão do gesto que vincula a fotografia ao ter estado todas as manhãs presente na ponte,
espetáculo. Para Joan Fontcuberta (2010a) fazer ainda carrega a expectativa de que as fotos
do banal matéria fotográfica é uma característica revelem algo diferente daquilo que
bastante contemporânea, já que até a testemunhou, “algum indício do que
modernidade, fotografava-se apenas os momentos aconteceu”.
especiais, as “exceções da cotidianidade: ritos, As fotografias organizadas pelo eu
celebrações, viagens, férias etc” lírico/fotógrafo parecem construir, ainda, uma
(FONTCUBERTA, 2010b p. 40). Para o autor, narrativa: “tento ver alguma mudança /de um
Há alguns anos fazer uma foto ainda era um
dia para /o outro”. Essa espécie de timeline
ato solene reservado a ocasiões privilegiadas; construída a partir das fotos, ao mesmo tempo
hoje disparar a câmera é um gesto tão banal em que, para a poeta, capturam algo que seus
quanto coçar a orelha. A fotografia se tornou olhos sozinhos não teriam percebido, é também
onipresente, há câmeras por toda parte reorganizada de forma desconectada da
captando tudo. O que há meio século teria realidade, já que, conforme vimos na estrofe
parecido uma sofisticada câmera de espião é anterior, o eu lírico esperava a cena ficar de
hoje um padrão comum que carregamos no acordo com o que ele acreditava ser mais
bolso (FONTCUBERTA, 2010a, p. 39). adequado para representar sua cena (“espero
Se a fotografia do banal parece não ter alguns segundos/ até ele andar/ e aperto o
impacto no cotidiano do eu lírico, notamos que clique”). Visto que toda a teoria moderna da
a longo prazo, entretanto, a poeta espera que as fotografia debate sua desvinculação do real e
fotografias sejam capazes de revelar alguma que a manipulação é parte constituinte da
coisa sobre o passado, conforme verificamos na fotografia (FONTCUBERA, 2010b) não é o
quarta parte do poema: gesto da manipulação que surpreende no
poema, mas sim a expectativa de que ela seja
procuro a foto da ponte
capaz de revelar alguma coisa sobre o real,
feita um mês antes.
seria possível ver mesmo reconhecendo a manipulação em sua
algum indício do que aconteceu? prática. O que a fotografia revela, nesse
procuro a foto do dia seguinte: sentido, é uma possibilidade de leitura do real
um caminhão e quatro pessoas. que é construída pela subjetividade de quem o
tento ver alguma mudança capturou. Assim, o que o eu lírico espera
de um dia para encontrar nas fotografias da ponte talvez diga
o outro. (GARCIA, 2017, v. 72-80) mais a respeito dele mesmo do que da ponte ou
Essa capacidade da fotografia de captar da cidade que ele captura. Quando a poeta diz
algum indício da realidade e de revelar “e tiro uma foto/ que possa me dizer/ alguma
determinados aspectos do passado também foi coisa/ sobre estar aqui” o que ela deseja da
discutida na primeira metade do século XX por fotografia, muito mais do que a compreensão
Benjamin (2017b). Para ele, determinados sobre o lugar na qual ela se encontra, é a
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 70

compreensão sobre a presença dela nesse lugar. em um momento de caos, as pessoas não são
Aliado a isso, parece haver ainda uma busca capazes de identificar o que está acontecendo,
de compreensão de algum acontecimento os barulhos, os gritos e a desestruturação da
maior, que abalou o infraordinário da cidade. ordem poderiam indicar tanto um ato de
Na versão estendida de Parque das ruínas, a terrorismo quanto uma catástrofe natural.
poeta menciona o atentado ao jornal Charles De toda forma, o desencontro entre o eu
Hebdo, em 7 de janeiro de 2015. Na versão lírico e os lugares que habita, seja a ponte que
compacta, porém, há apenas uma sugestão ao fotografa, seja a casa que reside, vai perpassar o
acontecimento, na parte três, a partir das poema de forma significativa:
reflexões do eu lírico um tempo depois do antes de chegar,
ocorrido: “’um mês depois/ ainda pareço um ela me disse que o quarto era iluminado.
zumbi’,/ ela me diz e estamos no dia/ 7 de “é difícil olhar as coisas
fevereiro.” (GARCIA, 2017, v. 45-48). diretamente”, penso
(...) são muito luminosas ou muito
volto para casa com pressa escuras. (GARCIA, 2017, v-27-32)
e leio o aviso na porta Esse desencontro é, naturalmente,
de entrada. manifestado através da dificuldade do eu lírico
há um mês colocaram de “olhar as coisas diretamente”, já que “olhar”,
este aviso ali e o país
“ver” e “enxergar” são comumente metáforas
entrou em estado de alerta.
todos os dias agora para entendimento e apreensão da realidade.
um novo vocabulário se espalha. Assim, a descontinuidade entre o eu lírico e os
todos os dias tento entender lugares que frequenta é, em última instância, um
o que as pessoas dizem desencontro entre o eu e a realidade que ele não
seria [terrorismo] ou [terremoto]? consegue apreender. Dessa maneira, o eu lírico
todos os dias agora recorre às fotografias para tentar assimilar a
uma linha de sombra existência e o tempo presente:
por onde passo e aquela
poeira cinza e todos os dias
e colante. (GARCIA, 2015, v. 56-71) vou até a ponte
e tiro uma foto
O foco no infraodinário posto desde o início que possa me dizer
do poema não se perde, uma vez que a poeta alguma coisa
retorna às fotografias como uma tentativa de a sobre estar aqui. (GARCIA, 2017, v. 10-15)
partir do infraordinário ver o extraordinário: ela Notamos, dessa forma, que além do
busca na rotina de um mês antes do atentado desencontro da poeta com os locais geográficos,
algo fora da normalidade, ao mesmo tempo em há ainda uma dificuldade de pertencimento em
que percebe, na rotina atual, que o relação ao momento presente. Como vemos nos
extraordinário, a presença constante da ameaça versos a seguir, o eu lírico de “tem país na
e o medo também vão se constituindo como paisagem?” não parece conseguir apreender o
parte ordinária da vida na cidade. tempo presente em sua totalidade, ou ainda,
Além disso, percebemos, ao longo do utilizando a reflexão de Giorgio Agamben,
poema, que eu lírico registra um lugar com o (2007) de coincidir com esse tempo:
qual não está familiarizado, o que fica manifesto
através das referências de tempo e lugar que a e todos os dias às 10h
poeta utiliza, como “antes de chegar,” pergunto:
(GARCIA, 2017, v. 27), “como atravessar os como ver este instante
passando? sempre tinha tentado
meses neste lugar/ e ver o que acontece?”
pular as etapas da vida
(GARCIA, 2017, v. 40-41, grifos da autora). e apagar o entre.
Nesse mesmo sentido, nas estrofes citadas como atravessar os meses neste lugar?
acima, vemos que a dificuldade do eu lírico ao e ver o que acontece?
entender o idioma falado também o situa em um a fotografia divide futuro
lugar de estrangeiridade e não pertencimento, e passado – seria possível ver o que
“seria [terrorismo] ou [terremoto]?”. O fato do está no meio? (GARCIA, 2017, v. 34-44,
eu lírico não entender se o que está sendo dito é grifos da autora)
“terromoto” ou “terrorismo” sugere, ainda, que O “ver” (v. 38), portanto, tem um sentido
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 71

duplo. Está ao mesmo tempo evidenciando a vestígio do que aconteceu há tanto tempo.
incapacidade do dispositivo fotográfico de dar Porém, na ponte, assim como em suas
conta de uma realidade, já que apesar das fotografias, tudo segue igual: o poema se
constantes fotografias que o eu lírico captura, encaminha para o fim com a repetição dos
ele não consegue registrar o momento que mesmos versos da primeira estrofe “a ponte tem
passa, nem ver o presente, apenas o passado e o três arcos/ a água do rio é verde./ atravesso a
futuro; e agindo de metáfora para a ponte com 124 passos./ quando um barco
incapacidade da própria poeta de entender a passa,/ uma onda se forma”. Assim, a fotografia
realidade na qual se encontra inserida. aqui é evidenciada em um gesto duplo, ao
Vamos ter acesso à pergunta que dá título ao mesmo tempo em que falha, pois não consegue
poema, “tem país na paisagem?”, apenas nas dar conta de registrar nenhum dos
estrofes finais, após um momento narrativo, no acontecimentos extraordinários da cidade ou da
qual a poeta conta a história de uma mulher que ponte, ela também reassegura e auxilia a poeta
morreu na mesma ponte que ela fotografa. Mais na aproximação com o lugar, visto que a
uma vez, então, Marília reflete sobre a normalidade pode ser reconfortante e familiar.
possibilidade de um acontecimento Nesse sentido, a pergunta, ao fim do poema,
extraordinário se manifestar no infraordinário “tem país na paisagem?”, ratifica a necessidade
da rotina: de pertencimento que a poeta elabora durante
quando chego ao rio,
todo o poema, já que demonstra que o eu lírico
sinto um vento nas costas não consegue saber quais características
e lembro do fantasma que ronda a ponte. daquele país, sua cultura, idioma e
ela era casada com um homem idiossincrasias, o constituiriam
que estava na guerra significativamente, a ponto de se manifestarem
e teve um amante que lutava na paisagem que observa. A falta de conexão
pelo país inimigo. com o lugar atinge, dessa forma seu ápice
contam que, em uma noite de inverno, durante a finalização do poema e a poeta não
uma noite fria e escura, parece encontrar respostas para as perguntas
ela ficou na ponte esperando o amante
que são postas ao longo das estrofes.
durante muitas horas ele não veio.
ela morreu congelada 3 Reflexões finais
ou caiu no rio.
olho para a esquina Em “tem país na paisagem?” encontramos
em busca do espectro dela. um eu lírico que, ao mesmo tempo em que
olho ao redor e a ponte tem três arcos. registra o banal e o cotidiano, subvertendo os
a água do rio é verde. usos da fotografia de uma sociedade voltada
atravesso a ponte com 124 passos. para o extraordinário, também a utiliza na
quando um barco se passa, tentativa de pertencer a algum lugar e de
uma onda se forma. aprofundar seu entendimento da realidade e, por
ouço o barulho da onda conseguinte, de si mesmo. O dispositivo
e do barco.
fotográfico, contudo, revela apenas “indícios”,
agora me sento no parapeito da ponte
e olho para o outro lado do rio. o “passado e o futuro”, sem nunca conseguir
tem país na paisagem?, auxiliar a poeta na compreensão do presente,
pergunto, que fica perdido no “entre”, no “meio”. O
e, enquanto isso, ao longe, poema “tem país na paisagem?” deixa uma série
o fantasma vai indo embora de perguntas em aberto, convidando o leitor a
no meio dos carros, encontrar suas próprias respostas frente ao
ela caminha desconhecido e a um lugar que poderia
em plena luz do dia constituir qualquer espaço geográfico no
e some. (GARCIA, 2015, v- 94-126) mundo.
Para o eu lírico do poema, este fato tão fora Marília Garcia constrói, assim, uma lírica
da normalidade, o suicídio de uma mulher que que problematiza os usos da fotografia e,
tinha um amante de país inimigo, na mesma através deles, propõe uma reflexão acerca da
ponte que faz parte de seu cotidiano e que capacidade de apreensão do presente, bem
rotineiramente registra, merece destaque. Ela como das expectativas geradas em torno dos
busca, então, nas fotografias, alguma indicação, registros visuais realizados pela câmera. Ao
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 72

evidenciar a relação da fotografia com o duplo estado da poesia: modernidade e


ordinário, Garcia vincula à experiência poética contemporaneidade. São Paulo: Iluminuras, 2015.
a uma tendência contemporânea na qual o
MARTINS, Aulus. O verme e o jardim:
cotidiano substitui os acontecimentos
poesia e fotografia em Carlos Drummond de
homéricos de outrora. Marcos Siscar (2008)
Andrade e Adélia Prado. Terra roxa e outras
reflete que a temática do cotidiano presente na
terras, Londrina, v. 32, p.106-114, 2016.
poesia contemporânea a levou para um lugar de
desprestígio perante a crítica literária, uma vez PEDROSA, Celia. A poesia e a prosa do mundo.
que apenas as manifestações artísticas que Gragoatá, Niterói, RJ, n. 28, p. 27-40, 2010.
tratam das grandes questões existenciais seriam PEDROSA, Celia. Poesia e crítica de poesia
valorizadas, raciocínio que ele critica. A poesia hoje: heterogeneidade, crise,
de Marília Garcia, conforme analisada, ratifica expansão.Estudos avançados. São Paulo, n.
as críticas de Siscar, visto que a poeta 84, v. 29, p. 321-333, 2015.
demonstra em seus versos que o cotidiano e o
banal são, justamente, formas de questionar e RESENDE, Beatriz. Contemporâneos.
elaborar a própria existência, mobilizando Expressões da literatura brasileira no século
algumas das grandes questões existenciais, XXI. Rio de Janeiro: Casa da palavra/Biblioteca
entre elas, o pertencimento, o espaço, a Nacional, 2008.
realidade e a apreensão e passagem do tempo. SILVA, Andrea. Marília Garcia: para onde
Referências nos levam as hélices do poema? Estudos de
Literatura Brasileira. Brasília, n. 55, p. 309-
AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E 323, 2018.
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SIMPÓSIO 3
A lírica maranhense ontem e hoje
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA


SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS
José Gomes Pereira31 • Bárbara Inês Ribeiro Simões Daibert32

RESUMO: Este trabalho tem por objeto um Firmina dos Reis, foi dedicado à mãe da
estudo sobre o viés intersemiótico na música da escritora, apresentando uma linguagem
cantora paraibana Socorro Lira, que melancólica e um vasto repertório
musicalizou o poema Uns Olhos, da escritora melodramático, alinhado ao modelo do
maranhense do século XIX Maria Firmina dos Romantismo brasileiro, além de temas variados
Reis, também conhecida por ser a primeira como desesperança e a exaltação nacionalista da
escritora afrodescendente a publicar um terra. Convém lembrar que houve um
romance no Brasil, chamado Úrsula. A obra esquecimento histórico do qual Maria Firmina
poética Cantos à Beira-mar, publicada em 1871, fora vítima. Quando um exemplar de Úrsula foi
em São Luís do Maranhão, com cinquenta e seis encontrado em 1975 dentro de um sebo, e ainda
poemas inspirou a cantora Socorro Lira, sob a enigmática identificação de ter sido
convertendo alguns deles em música. Maria escrito por “uma maranhense”, os dados foram
Firmina honrou os ilustres escritores da época ligados e descobriu-se após investigação
com alguns poemas a eles dedicados, promoveu documental, que se tratava de uma obra
a exaltação do nacional, do mar e seus encantos firminiana. Da publicação de uma nova edição,
e os desencantos de amor na vida, dentro de uma surgiram novas edições posteriores e a partir do
temática melancólica e inclinada para o ano 2000 as pesquisas sobre ela foram
Romantismo brasileiro. As metáforas geradas a intensificadas.
partir da presença do mar, por exemplo, Se fôssemos procurar para comprar algum
fortaleceram o tom nostálgico, melódico e exemplar de Cantos à Beira-mar, há quatro ou
saudosista dos versos, projetando o eu-lírico a cinco anos, não o encontraríamos disponível,
um universo imaginário de alegrias e tristezas. sendo o mesmo uma raridade presente apenas na
Um detalhe curioso é a escassa quantidade de Biblioteca da Universidade Federal do
estudos sobre a musicalização de poemas do Maranhão, sendo-nos negada a possibilidade de
chamado período oitocentista brasileiro, empréstimo. Também deve-se destacar que a
situação essa que gerou a motivação necessária crítica literária recente tenha se dedicado mais ao
para pesquisa, análise e documentação desse romance Úrsula e ao conto A Escrava,
fenômeno. Propomos, através desse estudo, provavelmente pela temática do negro e pelo fato
analisar como se deu a transformação do poema de ter sido a escritora pioneira dos escritos
para a música, em alinhamento aos conceitos abolicionistas, sendo ela afrodescendente, e
intersemióticos de Julio Plaza, apresentados em tendo ela dado voz e destaque a personagens
seu livro Tradução Intersemiótica. negras em suas narrativas, na prosa. Estes dois
fatos fazem-na fundamental tanto para os estudos
Palavras-chave: Poética; Música; Oitocentismo; literários como para os estudos históricos.
Tradução Intersemiótica. Essa questão, ou seja, os holofotes projetados
sobre suas obras mais famosas na prosa, ajuda-nos
1 Introdução a entender o surgimento de uma edição disponível
O livro Cantos à Beira-mar, de Maria de Cantos à Beira-mar, para compra de livro

31 32Orientadora e professora titular do PPG LETRAS UFJF


Doutorando em Estudos Literários pela UFJF
(jgpjosegomespereira@outlook.com) (barbarasimoes2005@uol.com.br)
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 75

físico e também de livro eletrônico no atual temático, e também singular, pela exploração da
mercado brasileiro de literatura. Na verdade, a sentimentalidade. Para quem os lê há uma
comunidade acadêmica, não apenas do Curso determinada impressão de que sob a batuta de
Superior de Letras, passou a se interessar pela Maria Firmina, as palavras parecem chorar no
produção firminiana. Além de intelectual gerúndio, ante a um emaranhado efusivo de
maranhense, trata-se de uma personalidade paixão e tormenta, amor e ódio, loucura e
feminina que o povo brasileiro, de um modo geral, lucidez. Interessante é que esses opostos
desconhece. Isso tanto é fato comprovável que parecem se completar, dentro de uma interação
não se ouve falar dela nas escolas, e agora, de de cumplicidade.
forma ainda acanhada tem-se divulgado o seu A esse respeito, ou seja, da participação
trabalho em algumas universidades. Os livros firminiana na produção musical brasileira do
didáticos, até hoje, patrocinados pelo governo século XIX, é preciso fazer constar a seguinte
federal, não a apresentam aos alunos do Ensino observação: o brasileiro daquele século apreciava
Fundamental, muito menos os livros de literatura música, mesmo que influenciada pelos elementos
do Ensino Médio. clássicos, já sendo possível constatar elementos
Isso significa que um estudante universitário nacionais nessa música em formação. Esse fato
de Ciências Humanas, por exemplo, ao estrear em reforça ainda mais a ideia segundo a qual estudar
uma de nossas universidades, dependendo de que a produção musical desta escritora maranhense,
instituição este fizer parte, poderá cursar todos os ajuda a compreender os mecanismos pelos quais a
períodos, inclusive colar grau, sem, contudo, música oitocentista do Brasil fora produzida. Isso
nunca ter ouvido falar, muito menos ter lido algo ajuda-nos a compreender que do mesmo modo
sobre Maria Firmina dos Reis. Assevera-se o fato que havia tambores sendo tocados nas senzalas,
de que o mesmo poderá ser um futuro professor também haviam concertos sendo apresentados
de Língua Portuguesa ou de Literatura, que não para a nobreza. A passagem ou transição de um
terá na sua bagagem curricular universitária esse evento para outro já estava marcada de misturas,
conhecimento. E como nossos professores conforme apontou Enio Squeff:
universitários falarão de quem ainda não Em termos brasileiros, não houve
conhecem? De fato, o trabalho ainda está em sua simplesmente a transposição da música do
fase inicial, emanando de determinados escravo para a música de concerto. Embora o
programas de pós-graduação. Brasil tenha sido um dos últimos países do
Essa situação comprova também o predomínio mundo a conceder a libertação da
da literatura de prestígio, consolidando-se como escravatura, a sociedade escravagista da
cânone literário, e colocando à margem, toda época da abolição já tinha se diluído em parte,
produção não pertencente a esse seleto grupo. Tal enquanto forma predominante de produção,
postura pode ser compreendida mais como um principalmente em estados mais
desenvolvidos. Mas a semi-escravidão
fator de preconceito literário do que propriamente
persistiria. E com ela, naturalmente, as
desconhecimento, pois alguns poucos que formas do gesto sublimado (SQUEFF e
passaram a conhecer sua obra, podem ter feito WISNIK, 2004, p. 46).
uma espécie de vista grossa. O que uma mulher no
período oitocentista poderia produzir de Aproveitando as considerações supracitadas,
relevância literária crítica? Ou o que uma começamos a entender que a música brasileira do
afrodescendente, cuja mãe havia sido escravizada, século XIX houvera sido ambientada dentro de
teria para acrescentar a cultura letrada de nosso um contexto de relações culturais “diluídas”
país? O detalhe mais sutil de tudo isso é que tais (emprestando o referido conceito), não sendo
perguntas não apenas foram feitas pelos críticos muito difícil perceber que o popular e o erudito já
da época oitocentista, sobretudo, ainda faz parte estavam dinamicamente envolvidos. Entender tal
das discussões de nosso tempo. processo é fundamental para darmos início aos
Na poesia, Maria Firmina dos Reis, além estudos referentes a musicalização de
dessa obra, também escreveu poemas avulsos determinados poemas de Maria Firmina dos Reis,
publicados em jornais da época, em São Luís do na cabeça de quem, música e poesia desfrutavam
Maranhão, contudo o acabamento artístico de relações bem próximas.
projetado sobre os cinquenta e seis poemas de Além disso, um detalhe que pode colaborar na
Cantos à Beira-mar estabeleceu uma estética ao interação entre autora e obra é a questão geográfica,
mesmo tempo homogênea, pelo conteúdo isto é, o local que pode ter servido de inspiração
para a poeta. A cidade de Guimarães situa-se no
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 76

litoral do Estado do Maranhão e não foi por acaso mesma afirmou em seu CD:
que o mar e a praia tiveram presença marcante nos Embora, quando criança, eu desejasse ser
versos firminianos, contribuindo para a reflexão escritora, a música foi tomando espaço na
proposta em torno de temas como o amor, a solidão minha vida. Depois de minha mãe, que
e a saudade. Podemos sintetizar, sem nenhum cantava e nos contava histórias em casa,
exagero, que o mar era a sua genuína encontrei no meu caminho as cirandeiras e
territorialidade. Ela escreveu seus versos pensando coquistas de Caiana dos Crioulos, e aprendi
no mar e no povo de sua cidade, envolvendo as com seu canto-dança. Junto com elas, produzi
relações entre o homem e seus semelhantes, sob o dois álbuns de música e um documentário
olhar atento da natureza, a quem ela reverenciara sobre essa arte cultivada no quilombo de
Caiana. Mais adiante, vaguei pelas Cantigas
com adjetivos diversificados.
de Amigo medievais galego-portuguesas
Apenas a título de informação, convém frisar cantadas por mulheres há cerca de novecentos
que se hoje temos algum material sobre Maria anos onde hoje fica a Eurorregião Galiza-
Firmina é por causa de Nascimento Morais Filho, Norte de Portugal. Desse mergulho resultou o
quem organizou em 1976 a edição fac-similar de meu brasileiríssimo álbum Cores do
Cantos à Beira-mar de 1871, e graças às suas Atlântico, que reivindica a autoria das
contribuições documentais reunidas em um livro cantigas paralelísticas para as nossas
denominado Maria Firmina: Fragmentos de Uma ancestrais compositoras (LIRA, 2019,
Vida, é que a crítica moderna tomou prefácio do CD).
conhecimento da escritora e de sua obra, que se Desse modo podemos compreender que
encontrava esquecida dentro de um sebo. Foi muito provavelmente o ouvido musical da
nesse livro que Morais Filho tornou de cantora tenha sido preparado para, em
conhecimento público vários versos avulsos da consonância com sua voz, ter chegado ao
poeta e de outras produções musicais, como por estágio que hoje se encontra. Além disso, o
exemplo, o Hino da Liberdade dos Escravos, repertório de sua memória musical foi sendo
inclusive com partitura. ativado e reativado, ao passo que todas as vezes
Por fim, com relação a esse estudo, sua em que isso acontecera, surgiu uma
estrutura está organizada da seguinte forma. reinterpretação semiótica das performances
Primeiramente, teremos uma espécie de musicais as quais ela se dispôs a seguir, não pelo
documentário-entrevista, no qual a cantora interesse da fama ou da quantidade de CD’s
Socorro Lira conta sobre sua biografia e o que a vendidos, entretanto, pela sensibilidade que ela
levou a se interessar pelos versos de Maria teve em olhar para essa humanidade silenciada,
Firmina dos Reis. Em seguida, para um melhor conforme suas palavras:
entendimento sobre a metodologia adotada,
teremos uma síntese do que significa tradução Não pude mais parar de olhar para essa
metade silenciada da humanidade, que somos
intersemiótica, reforçando os conceitos que
nós, mulheres, e que mesmo nessa condição
serão desenvolvidos. Logo após, trataremos de contribui tanto para o desenvolvimento
um poema contido no livro que foi musicalizado humano em todas as esferas da vida. Em
pela cantora paraibana, seguindo-se das minhas buscas sempre me perguntei o porquê
considerações finais. de a outra metade, guiada pelo “Princípio
Masculino” ou patriarcado, há cinco mil anos,
2 Da mente de uma criança para o coração insiste em impedir nossa participação em
de uma mulher igualdade, como se pudesse prescindir de nós,
O que fica claro dentro da biografia da da nossa inteligência, da nossa energia e
cantora paraibana Socorro Lira é a influência criatividade. Como se fosse justo e possível
seguir controlando nossos movimentos
que ela sofre do canto folclórico, aguçado pela
(LIRA, 2019, prefácio do CD).
família e potencializado pela sua própria busca,
embora precoce e infante, no mundo musical. O Dentro desse contexto de militância
que chama a atenção nesta cantora é o começo ideológico-musical do gênero feminino,
pelos clássicos da Língua Portuguesa, nos encontramos duas Firminas, uma, do século XIX,
primórdios da nossa literatura, no ainda galego- afrodescendente, assumidamente mulher e que
português, passando ao português arcaico e buscou, com as armas de que dispunha, aparelhar-
chegando, por fim à “inculta e bela” língua de se de bons argumentos para colaborar com a
Luís Vaz de Camões, conforme o que ela erudição da época, outra, firmina, do século XXI,
afrodescendente, igualmente mulher e assumida,
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 77

que tem buscado olhar com carinho para as vozes A sequência das músicas no CD da cantora
de uma ancestralidade esquecida. Ambas Socorro Lira é a seguinte: 01. Uns olhos
nordestinas, uma maranhense e outra paraibana, (bolero); 02. Ela! (reggae); 03. Amor (loa de
talvez o elemento diferencial positivo seja que esta maracatu cearense); 04. Meus amores (canção
já não precise identificar seus trabalhos sob o choro); 05. Embora eu goste (fado); 06.
pseudônimo de “uma paraibana”. O talento vocal Itaculumim (canção); 07. Seu nome (valsa); 08.
de Socorro Lira, notadamente sem interesses de se Uma tarde em cumã (samba); 09. O meu desejo
tornar celebridade ou de enriquecer-se na carreira (poema); 10. O meu desejo (milonga); 11. O
musical, conduz sua própria obra, conforme suas volúvel (baião). Todos estes títulos foram
palavras a esse respeito, ao relatar como tudo retirados do livro Cantos à Beira-mar,
começou e o que a fez se interessar pela obra de percebendo-se que a cantora fizera um recorte
Maria Firmina dos Reis: de um total de cinquenta e seis poemas.
Foi num desses encontros que o Universo 3 A explicação da metodologia de tradução
ajeita que estive novamente com Maria intersemiótica
Valéria Rezende, em João Pessoa, na Paraíba.
Ela me ‘convocou’ para estar no primeiro Ao lidarmos com categorias textuais que
Mulherio das Letras que aconteceria por lá, foram convertidas em música, a partir de uma
em outubro de 2017, e me deu a tarefa de textualidade poética, como é o nosso caso,
musicar poemas de Firmina, que recebia a precisamos observar como se deu tal processo.
mulheragem (por assim dizer no feminino a Nossa preocupação, a partir de então, será de
palavra homenagem) daquele evento. Até o buscar a natureza ou essência da produção
ano da graça de 2017 eu não sabia que o poética original, no perfil semântico das
Maranhão nos tinha dado Maria Firmina dos
palavras, para que, em confronto com a
Reis. Apaixonei-me por ‘Ela’. Na ocasião,
publicado o EP Seu Nome, ficamos tão tradução a qual passaremos a chamar de
contentes que pensamos em seguir avivando intersemiótica, seja possível observar tal
vozes de poetas brasileiras apagadas da fenômeno.
história da literatura. Susana Ventura foi Elucidamos que o teórico que fundamenta
integrada a integrar a pesquisa. E assim foi. tal pesquisa é Julio Plaza, cujo livro intitulado
Durante quatorze meses, de setembro de 2017 Tradução Intersemiótica propõe um estudo
a dezembro de 2018, estive imersa, por vezes mais aprofundado de como a Semiótica
afogada, no profundo oceano que é a poesia enquanto ciência pode colaborar na
dessas mulheres; artistas que, por um custo interpretação de textos visuais, verbais, não-
altíssimo, fizeram de suas vidas os melhores
verbais, imagens, ícones, assim como no
exemplos para nós que estamos aqui, agora,
continuando a saga do feminino no planeta funcionamento de codificação e decodificação
Terra, a procura de lugar pacífico para linguísticas no âmbito da passagem de um texto
descansar da árdua travessia que têm sido traduzido para outra modalidade. Desse modo,
nossas existências. Tenho dito: mulheres, o autor, ao fazer uma releitura dos postulados
publiquem! Deixem o registro para a história! do pai da Semiótica, Charles Sanders Peirce,
Só assim daqui a cento e cinquenta anos, acaba também mostrando quais as
quiçá, vocês estarão no Spotify. (LIRA, 2019, fundamentações teóricas que sustentam esses
prefácio do CD). estudos.
Conforme se observa no depoimento acima, É interessante relembrar que o pai da
o trabalho de Socorro Lira tem uma vertente Linguística, Ferdinand de Saussure, disse sobre
ideológica de convite e encorajamento para que tal assunto:
mais mulheres venham a se interessar pela Propomo-nos a conservar o termo signo para
cultura, pela música, pela erudição, na designar o total, e a substituir conceito e
manifestação de um grito que tem sido imagem acústica respectivamente por
historicamente calado pela convenção social. O significado e significante; estes dois termos
que nos interessa, enquanto observadores do têm a vantagem de assinalar a oposição que
fenômeno de passagem da poesia para a música, os separa, quer entre si, quer do total de que
adotando o quadro teórico-metodológico da fazem parte. Quanto a signo, se nos
contentamos com ele, é porque não sabemos
tradução intersemiótica é compreender, mesmo
por que substituí-lo, visto não nos sugerir a
que com uma pequena amostra, como se deu língua usual nenhum outro (SAUSSURE,
esse processo. 1985, p. 81).
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 78

Conforme observamos acima, para grupo dos ícones (em), representado pelas
Saussure, a língua dispunha de signos imagens, diagramas e pelas metáforas; grupo
linguísticos, que poderiam ser denominados por dos índices (de), representado pelas fotografias;
significante e significado. Entretanto, Charles e o grupo dos símbolos (para), representando
Pierce, discordando do mestre de Genebra, uma contiguidade institutiva, ou seja, a
avançou para além das fronteiras estruturais, convenção ou o hábito social é que vai
chegando ao chamado conceito triádico dos determinar a representação dos símbolos. O uso
signos, classificados como ícones, índices e que Pierce fizera das preposições “em”, “de” e
símbolos. A explicação dada por Charles Pierce “para” foi para chamar a atenção à função a qual
sobre signo acabou explicando como cada grupo se refere.
funcionava a lógica do processo de semiose, isto Quando lidamos com tradução entre textos
é, “uma relação de momentos num processo de modalidades diferentes, como é o nosso caso,
sequencial-sucessivo ininterrupto” (PLAZA, passando da poesia para a música, deve-se levar
2003, p. 17). Desse modo, não existe o chamado em conta os valores e as especificidades
conhecimento imediato como que surgido por si estéticas, que são os recursos empregados por
só. Os pensamentos surgem de outros seus autores no ato da criação. Considerando
pensamentos, inseridos numa espiral que o conhecimento proposto pelo ícone
ininterrupta de sequência pensamental. permite uma possibilidade de compreensão dos
Dentro dessa linha de raciocínio, o que serve signos, o ponto de partida para o entendimento
para o pensamento, serve também para a da especificidade do signo estético tem a
linguagem. Pois, de acordo com Pierce, só é prevalência do ícone. O signo icônico apresenta
possível pensar através de signos. A linguagem, sua propriedade -EM, logo, o signo estético
por expressar o pensamento, está inserida também, conforme apontou Plaza:
dentro dessa ideia. Nesse sentido, podemos, em No caso do signo estético, por seu lado, o
conformidade com Plaza, concluir que fundamento não é mais do que a expressão da
“pensamento e linguagem são atividades ideia de possibilidade, indeterminação,
inseparáveis: o pensamento influencia a talidade, essência e auto-referência.
linguagem e esta incide sobre o pensamento” Lembrando aqui a classificação de signos,
(PLAZA, 2003, p. 19). vemos que o signo icônico, por ser apenas
Avançando nessa ótica, chegamos à natureza qualissigno e, como tal, mera possibilidade
da representação, pois colocando-se no mesmo lógica, só pode ter com seu objeto uma
nível de equivalência o pensamento e a relação de similaridade e semelhança o que
produz na mente sentimentos de analogia
linguagem, somos obrigados a concordar que
com algo (PLAZA, 2003, p. 24).
cada palavra pode representar uma ideia, um
conceito, sem, contudo, se materializar naquilo Chega-se, portanto, a questão da problemática de
a que está se referindo. Todo signo tem função tradução estética, que segundo Plaza, ao se reportar
representativa, por exemplo, a palavra em Otávio Paz, a tradução embora difícil, não é
“manga”, em alusão à fruta. O que nos vem à impossível, pois considerando que tradução e
criação são concebidas como atividades gêmeas, são
mente é a representação mental dela, e não a igualmente complexas, porém, ambas guiadas por
fruta em si. Esse conceito de representação é um fio condutor de lógica. Se o ato de criação teve a
muito importante para a tradução capacidade de se guiar por um fio de lógica, ao ato
intersemiótica. de interpretação deve-se esperar o mesmo. E é dentro
Recuperando a síntese da ideia, todo signo dessa lógica que se fundamenta nossa pesquisa.
desempenha seu respectivo valor
4 Análise Comparativa da letra Uns Olhos
representativo, ou seja, não existe signo neutro,
com a versão original
sem função representativa de significado, pois
sempre estará associado a uma representação. Uns Olhos (música)
Assim, no grupo dos signos que mais
interessam para a tradução, temos os ícones, os Vi uns olhos...que olhos tão belos!
índices e os símbolos, formando a chamada Esses olhos têm certo volver,
Que me obrigam a profundo cismar,
natureza triádica dos signos, proposta por
Que despertam-me um vago querer.
Pierce, conforme adiantamos no início desta Esses olhos me calam na alma
seção. Viva chama de ardente paixão:
Tal divisão foi feita da seguinte forma: Esses olhos me dão alegria,
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 79

Me desterram pungente aflição. Edição fac-similar organizada por


Esses olhos devera eu ter visto Nascimento Morais Filho (pp. 205-206)
Há mais tempo – talvez ao nascer: Rio de Janeiro: Granada, 1976.
Esses olhos me falam de amores;
Nesses olhos eu quero viver... Podemos perceber que a edição do CD, cujo
Nesses olhos, eu bebo a existência, lançamento foi feito em 2019, apresenta
Nesses olhos de doce langor; correções baseadas no Novo Acordo
Nesses olhos, que fazem solenes, Ortográfico da Língua Portuguesa. Convém
Meigas juras eternas de amor. também esclarecer que a versão fac-similar que
Esses olhos, que dizem n’um’hora, adotamos, mesmo sendo de 1976, conserva a
Num momento, num doce volver, forma original de 1871. Naquela época, a grafia
Tudo aquilo que os lábios nos dizem, das palavras em Língua Portuguesa tinha raízes
E que os lábios, não sabem dizer; etimológicas, ou seja, a raiz latina ou grega era
Esses olhos tem mago condão,
que determinava a escrita das palavras mais
Esses olhos me excitam a viver;
Só por eles eu amo a existência, utilizadas, sendo normal que a imprensa
Só por eles eu quero morrer. brasileira adotasse a mesma forma de escrita
lusitana. Diferentemente da realidade
portuguesa, o português brasileiro aproximava-
Socorro Lira: voz se cada vez mais de vocábulos e expressões
Jorge Ribbas: arranjo e violão típicas dos povos africanos e dos povos
Ana Eliza Colomar: flauta indígenas que aqui habitavam. Maria Firmina
Clara Bastos: contrabaixo acústico
apropriou-se dessas relações, um feito que, mais
Cássia Maria: bongô, clavas e ganzá
Bolero tarde, foi se tornando a tônica irreversível de
BR-MOO-19-00007 outros escritores mais famosos da nossa
DP/DIRETO literatura.
1ª FAIXA Observemos que a proposta de Socorro Lira
Duração da música: 03:51 ao musicalizar tal poema, apresentou um
bolero, com acompanhamento de violão, flauta,
Uns Olhos (poema)33 contrabaixo acústico, bongô, clavas e ganzá.
Não trataremos das diferenças ortográficas de
Vi uns olhos...que olhos tão bellos! um século para outro, contudo analisaremos
Esses olhos tem certo volver, uma única palavra que aparece no terceiro verso
Que me obrigam a profundo seismar, da segunda estrofe: “/Esses olhos me geram
Que despertam-me um vago querer.
alegria,/” e “/Esses olhos me dão alegria,/”. Na
Esses olhos me calam na alma
Viva chamma de ardente paixão; versão do poema, apareceu forma verbal
Esses olhos me geram alegria, “geram” e na versão da música, houve a
Me desterram pungente afflicção. tradução para a forma verbal “dão”. Esse é o
Esses olhos devera eu ter visto fenômeno a ser discutido. Acompanhe, a seguir,
A mais tempo – talvez ao nascer; os três estágios de análise de tradução
Esses olhos me fallam de amores; intersemiótica sobre tal palavra.
Nesses olhos eu quero viver... Primeiro devemos nos lembrar que dentro da
Nesses olhos, eu bebo a existencia, dimensão estética, tal poema foi produzido para
Nesses olhos de doce langor; ser declamado, conforme as tradições dos
Nesses olhos, que fazem solemnes,
antigos saraus do século XIX. Nesses saraus,
Meigas juras eternas de amor.
Esses olhos, que dizem n’um’hora, música e poesia estavam constantemente
N’um momento, n’um doce volver, associadas numa parceria praticamente
Tudo aquillo que os labios nos dizem, inseparável. A estrutura métrica, as rimas, os
E que os labios, não sabem dizer. ensaios sobre como pronunciar determinada
Esses olhos tem mago condão, palavra, os versos não muito longos e rimados
Esses olhos me excitam a viver; para facilitar a memorização, e os ensaios sobre
Só por elles eu amo a existencia, que música de fundo tocar como
Só por elles eu quero morrer. acompanhamento musical, tudo estava
interligado, sem os aparatos tecnológicos de
33Conforme já mencionado no início desta seção, modo também adotado pela versão fac-símile de 1976,
mantemos no poema a grafia original do século XIX, ao sobre a qual tal pesquisa se sustenta.
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 80

hoje, como captadores de áudio, microfones de bilabial, que em junção com o fonema /a/,
alta performance e caixas de som potentes. Tais articula uma falsa sílaba. Quanto mais isso
evidências apontam o caráter teatral da poesia acontecia, mais o poema ganhava ares musicais,
naquelas circunstâncias. naquele contexto.
Aplicando esse mesmo conceito ao trabalho Quando finalmente chegamos à natureza
de Socorro Lira, entendemos que a produção semântica, os motivos se divergem. Se por um
musical parece ter buscado um elo de lado, na forma poética proposta por Maria
comunicação músico-temporal, como que Firmina, o verbo “geram” esteve associado à
advinda do túnel do tempo, através dos ideia de tudo o que se pode nascer, ser criado,
instrumentos empregados, nesse sentido, a fazendo surgir o produto de uma gestação, o
opção pelo bolero não deve ter sido por acaso. engravidar-se de alegria, por outro lado, na
Cabe destacar que o bolero fortaleceu mais tradução intersemiótica proposta por Socorro
ainda os tons românticos da letra, o espaço Lira, o verbo “dão” vai por um caminho
longo dos prelúdios, antes do vocal, parece diferente. Adotando o princípio da lógica da
tentar reproduzir e talvez consiga em parte, os tradução intersemiótica, assim questionamos:
nostálgicos e solenes saraus do século XIX. Se “esses olhos me dão alegria”, eles só podem
Em segundo lugar, temos a questão me dar essa alegria, se eles a tem, logo, eles não
eufônica. Não há uma estrofe em que não fazem gerar, eles dão. É uma sutil diferença que
apareçam, e sempre no começo de cada verso, faz sugerir dois polos bem distintos. Uma coisa
os pronomes demonstrativos “esse” ou “nesse”. é dar, outra coisa é fazer gerar.
A tonalidade recai sobre a penúltima sílaba, e a Juntando esses três níveis de análise em
posição desses pronomes no início da sílaba, torno da tradução intersemiótica de uma só
permitiu, em termos tonais, que cada verso palavra, entendemos que não seria possível
apresentasse três tons, como uma espécie de fazê-la sem analisarmos os fatores
onda, o leve no começo, o mais forte no meio, e coadjuvantes, tais como, dimensão estética,
o retorno ao leve no final. Isso na escala, questão eufônica e a natureza fonético-
segundo a ordem da Arte Declamatória. Para semântica, para que, por último, chegássemos
não sermos repetitivos, na questão musical, a no cerne do assunto: a adoção na música, de um
análise é praticamente idêntica, acrescentando- verbo diferente da versão original, oriunda do
se o fato de que a flauta deu o efeito das poema. Também deve-se destacar que quando
reticências no final da terceira estrofe. Houve Maria Firmina dos Reis escreveu tais versos, era
um prolongamento no tempo de execução da de praxe entre poetas e escritores nacionais da
flauta para coincidir com a mensagem de mais época adotarem o português de Portugal, o qual
vida. Em outras palavras, a música permitiu chamamos de português lusitano, e a autora de
acessar um detalhe sentimental do poema: Cantos à Beira-Mar não fugiu a essa regra.
Poderia até o eu-lírico não ter mais nenhum
5 Considerações Finais
grande motivo para viver, porém, nesses olhos,
ele vai querer não apenas viver, bem como, um Esse estudo, colocando música e poesia em
viver prolongado. O prolongamento do tempo paralelismo comparativo, num primeiro
musical permitiu expressar essa ideia, esse momento, potencializou os estudos sobre signos
signo tonal. linguísticos, à luz da Semiótica, e, num segundo
Em terceiro lugar, deparamo-nos com a momento, contribuiu com o aprofundamento
natureza fonético-semântica dos verbos interpretativo-comparativo, sobretudo na área
“geram” e “dão”. Pelo fato de que este último musical como elemento de tradução da poesia.
tenha uma única sílaba métrica, no momento da Tais abordagens permitiram provar que há,
composição, seria mais interessante o seu uso, portanto, uma relação entre a essência da
por exigir apenas uma nota musical. Caso fosse significância da música e dos estudos de
mantida a forma original “geram”, isso causaria tradução intersemiótica, conforme as palavras
um efeito estranho dentro da escala musical. de José Luiz Martinez, ao elaborar um artigo
Observando este último verbo, segundo a ordem sobre música e semiótica musical, baseado em
fonológica, para a poesia, e naquelas Charles Peirce:
circunstâncias de formalidade, versos rimados e Em seu aspecto de primeiridade, a música se
métrica, é interessante notar que na formação justifica como uma arte, pois diz respeito
“/geram alegria/”, o fonema /m/ é plosivo e principalmente ao propósito estético, entre eles,
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 81

a admirabilidade em si mesma. A secundidade para a forma derivada. Conforme vimos, há uma


da música remete ao seu aspecto de ofício, isto diferença considerável entre “gerar” e “dar”.
é, à sua práxis, a música só de fato existe quando Contudo, o prejuízo se deu na música e,
é executada. Enquanto terceiridade, a música é logicamente, o formato original do poema
uma ciência tanto quanto envolve aprendizado,
manteve-se e ainda se mantém inalterado. Isso
conhecimento musical, desenvolvimento
contínuo e a existência de uma comunidade de é interessante destacar, pois, se a musicalização
músicos, ouvintes e musicólogos de um poema pode não ter sido perfeita, um
(MARTINEZ, 1999, p. 5). lugar de destaque começa a ser dado ao estudo
que nos obrigou a estudar o poema e estudar a
A essência do estudo relacionado ao música, um fator que jamais poderá ser
sintagma verbal “geram” traduzido pela cantora considerado como de perda.
Socorro Lira como “dão” acionou mecanismos
diversos de análise, apontando valores positivos Referências
e negativos dessa versão feita pela cantora. De
um modo geral, há mais positivos do que FILHO, Nascimento Morais. Maria Firmina:
negativos, contudo, é interessante observar Fragmentos de uma vida. São Luís: 1975.
ponto a ponto para que se chegue a uma palavra LIRA, Socorro. Cantos à Beira-mar. A poesia
final. Cabe lembrar que estamos nos de Maria Firmina dos Reis na música de
fundamentando à análise de uma música Socorro Lira. Livreto de CD. Compact Disc
derivada de um poema, e não da produção Digital Áudio. São Paulo: Produzido por
inteira. Novodisc Mídia Digital Ltda, 2019.
A modalidade bolero, adotada para
musicalizar o poema, teve a contribuição de MARTINEZ, José Luiz. Música, semiótica
bons arranjos. Além disso, os instrumentos musical e a classificação das ciências de
escolhidos constituíram-se como fatores de Charles Sanders Peirce. Revista Opus, n. 6.
relevância para acentuar o caráter oitocentista e Outubro, 1999.
bucólico da música derivada do poema. Tal https://www.anppom.com.br/revista/index.php/
qual o trabalho de um restaurador de telas opus/article/view/66/52
antigas ou do operário restaurador de conjuntos PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São
arquitetônicos pertencentes ao patrimônio Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
histórico, assim operaram aqueles que
musicalizaram o poema Uns Olhos. REIS, Maria Firmina dos. Cantos à Beira-mar.
Os detalhes de teatralização, evocação Edição fac-similar organizada por Nascimento
histórico-afetiva de elementos rituais como os Morais Filho. Rio de Janeiro: Granada, 1976.
saraus, arte declamatória, a conversão das SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de
reticências (que em determinados momentos Linguística Geral. São Paulo: Editora Cultrix,
denuncia a intraduzibilidade das palavras) em 2006.
música, deram substância e forma de
significação tanto para o ouvinte. O legado de SQUEFF, Enio & WISNIK, José Miguel. O
tal trabalho foi de propiciar agradáveis Nacional e o Popular na Cultura Brasileira:
momentos para quem gosta de uma música Música. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.
calma, curta e sentimental, ganhando ainda pelo
efeito da curiosidade, a leitura de um poema do
século XIX. Isso porque, pela música, o seu ********
ouvinte que nunca houvera lido um texto de
Maria Firmina dos Reis, será ele estimulado a
procurar o original.
O lado negativo que a tradução
intersemiótica permitiu enxergar foi o
empobrecimento semântico do verbo “gerar”
tornando-se “dar”. Por mais que a estrutura
musical exigisse mudança, para o bem da
própria música, a escolha de um verbo de uma
sílaba só poderia ser outra, que não prejudicasse
tanto o sentido da significação da forma original
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS


DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA34
Mauro Cezar Borges Vieira35

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo Palavras-chave: Ferreira Gullar; Poema Sujo;
analisar a criação do Poema Sujo (1976), de Rabo de Foguete; Autobiografia poética;
Ferreira Gullar, tomando como documentos de criação literária.
processo os livros Rabo de Foguete (2008),
publicado pela primeira vez em 1999, e 1 Introdução
Autobiografia poética e outros textos (2015). Em 1999, Ferreira Gullar publicou seu livro
Para tanto, lançaremos mão dos conceitos da Rabo de foguete: os anos de exílio onde o autor
chamada crítica de processo, teorizada pela relata a perseguição que sofreu durante a
pesquisadora Cecilia Almeida Salles (2006; Ditadura Militar que o fez fugir de casa,
2011), desdobrada da crítica genética, aparato primeiramente para morar com amigos, depois
teórico que também será esteio desta pesquisa tendo que rumar para a União Soviética,
através do trabalho de Pino e Zular (2007). passando por Peru, Chile e Argentina, até voltar
Compreende-se que a análise dessas duas obras, ao Brasil no final da década de 1970. Um dos
tratadas como documentos do processo de pontos mais interessantes da obra é o relato dos
escrita do Poema Sujo, apresentaram cenários bastidores da criação do Poema Sujo, escrito em
um tanto diversos, apesar de complementares 1975 em Buenos Aires, e publicado em 1976
em diversos aspectos. Dessa forma, o confronto aqui no Brasil, sem a presença de seu autor.
entre elas faz emergir as modulações da relação Em 2015, Gullar volta à escrita de si, agora
de Ferreira Gullar com o exílio, fato com sua “autobiografia poética” publicada na
preponderante para a escrita do Poema Sujo. obra Autobiografia poética e outros textos. O
Assim, abre-se espaço para pensarmos não só as volume contém, além desse primeiro texto em
relações da criação literária da obra em questão que o autor faz considerações sobre sua vida de
com a memória (RICOEUR, 2007) e com a escritor, desde a juventude em São Luís, outros
autobiografia (LEJEUNE, 2014), mas também textos como entrevistas, ensaios em que o autor
em como essas duas categorias influenciaram o faz considerações sobre a poesia, além do
autor no momento de contar a história dessa “Manifesto neoconcreto”. Ao compararmos o
criação tanto em Rabo de Foguete quanto na relato sobre a criação do Poema sujo feito na
Autobiografia poética. Dessa forma, Autobiografia poética com aquele narrado em
construiremos um quadro bastante amplo que Rabo de foguete percebe-se que o poeta elenca
ajude a compreender o processo de criação outros fatores, que não tinham sido levados em
poética desta que é a principal obra do autor consideração antes. Sabendo que ambos os
maranhense. relatos são antes complementares do que
divergentes, cumpre-nos analisar a criação
poética do Poema sujo através dessas duas
obras além de problematizar os motivos que

34 Trabalho orientado pelo Prof. Dr. José Dino Costa Literatura Maranhense (GELMA). Contato:
Cavalcante vieiramaurocezar@gmail.com
35
Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Maranhão
(PGLetras/UFMA). Membro do Grupo de Estudos em
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 83

levaram Ferreira Gullar a dar dois relatos incorporando os procedimentos metodológicos


diferentes, em dois textos autobiográficos, antigos aos novos e ressignificando-os dentro
sobre o mesmo período de sua vida. de seu novo escopo. É o que assevera Salles
Sendo assim, iremos proceder, (2011, p. 26):
primeiramente, a uma identificação dos [...] se o interesse do crítico genético é o
conceitos relacionados a criação literária movimento criador em sentido bastante
provenientes da crítica genética, mais amplo, ele tem que se desvencilhar da relação
especificamente da crítica de processo direta entre crítica genética e rasura verbal ou
defendida por Salles (2011; 2016) para entender entre crítica genética e rascunho literário.
como os textos autobiográficos ajudam a Relação esta estabelecida pela origem dos
compreender o processo de criação literária do estudos genéticos.
autor. Depois, iremos nos debruçar sobre os Saindo de uma recomposição da história da
relatos de Rabo de foguete e Autobiografia criação para a compreensão do processo, da
literária para compararmos as informações que noção de manuscrito para a de documento de
ambos contêm e montar o quebra-cabeça da processo e da análise da rasura para a inter-
criação do Poema sujo. relação de elementos encontrados nesses
2 O texto autobiográfico como documento documentos de processo, a crítica genética
do processo de criação literária adotou uma configuração que lhe permitiu
abranger seu escopo de estudo.
A crítica genética surgiu na França no final Se antes as características do estudo genético
da década de 1960 com o intuito de analisar o privilegiavam o fazer literário – principalmente
processo de criação literária de escritores a partir da noção de rasura e de manuscrito –
através de seus manuscritos. Ao se deparar com nesse novo cenário outras formas artísticas
um material privilegiado do bastidor, que é o puderam ter seus próprios processos de criação
manuscrito literário, o pesquisador analisados. A pintura, a escultura e até mesmo
empreenderia a tarefa de analisar as escolhas do manifestações coletivas como o teatro, a dança,
autor através das rasuras deixadas no o cinema e a música, em certos casos, passaram
manuscrito, ou ainda através da comparação a ter seus processos como objeto da crítica
entre as diferentes versões manuscritas de uma genética. É importante ressaltar que essa
mesma obra. abrangência já poderia ser percebida desde o
Contudo, a partir de meados da década de início dos estudos genéticos, tal qual afirma
1980, um questionamento começou a rondar a Salles (2017, p. 43):
crítica genética: como empreender uma
pesquisa genética em um manuscrito “digital”? Se o propósito direcionador dos estudos
Como analisar as escolhas feitas pelo escritor se genéticos foi, desde seu início, a
compreensão do processo de produção de
os softwares de edição de texto não deixam
uma obra literária e seu objeto de estudo eram
rastros como a rasura deixava? É nesse os registros deste percurso do escritor,
ambiente que as concepções teóricas desse encontrados nos manuscritos, deveria
campo ainda novo precisaram ser revistas. necessariamente romper a barreira da
O conceito, portanto, de documentos de literatura e ampliar seus limites para além da
processo substitui o manuscrito como objeto de palavra.
atenção do geneticista. Se antes era necessário o
É nesse cenário que Salles (2011) propõe
acesso ao manuscrito, em suas variadas versões,
que o termo “crítica genética” seja substituído
para que o crítico genético pudesse recompor o
pelo conceito de “crítica de processo”, pois,
processo de criação literária, hoje, não estando
segundo ela, este traduziria melhor as
preocupado em contar a história da obra e sim
especificidades deste campo. A despeito da
em entender sua composição, o pesquisador se
relevância da discussão, não nos deteremos nela
volta a outros tipos de documento, públicos ou
pois este não é nosso objetivo. Para fins
privados, publicados ou não, para alcançar o seu
meramente de reconhecimento, utilizaremos
objetivo. O manuscrito é, portanto, somente
crítica genética e crítica de processo como
mais um dos documentos de processo.
sinônimos, designando o mesmo espaço teórico
Percebe-se, portanto, a partir da noção de
preocupado com as questões acerca da criação
documentos de processo, a necessidade da
artística.
crítica genética de romper com o seu passado,
Como vimos, a noção de documentos de
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 84

processo como conceito mais abrangente do que A discussão sobre a noção de pacto, Lejeune
manuscrito e todo o deslocamento resultante (2014) inicia através de uma definição de
desse movimento proporcionou a entrada dos autobiografia: “narrativa retrospectiva em prosa
textos autobiográficos no rol de documentos que uma pessoa real faz de sua própria
acerca dos rastros do processo de criação existência, quando focaliza sua história, em
literária. É, assim, mais um componente a ser particular a história de sua personalidade”
considerado nas pesquisas em crítica genética. (LEJEUNE, 2014, p. 16). Seu propósito era, na
Contudo, textos autobiográficos em que se verdade, utilizar esse conceito como uma forma
pode apreender o processo de criação dos de definir um corpus para sua pesquisa.
autores não são exclusividade de nosso tempo. Entretanto, o autor abandona essa definição
Ainda no século XIX, são publicados textos em anos depois acreditando que tinha sido deveras
que o autor lega ao leitor algumas considerações ortodoxo, em favor de um pensamento mais
sobre o seu processo de composição. É o caso, livre em que “[...] ‘autobiografia’ pode designar
por exemplo, de A filosofia da composição, de também qualquer texto em que o autor parece
Edgar Allan Poe, publicado em 1846. No texto, expressar sua vida ou seus sentimentos,
o autor inglês, numa leitura que nos convida a quaisquer que sejam a forma do texto e o
embarcar nos bastidores, explicita o processo de contrato proposto por ele” (LEJEUNE, 2014, p.
criação de um de seus poemas mais conhecidos, 62, grifos do autor).
O corvo. Somos apresentados, durante a leitura, O importante para Lejeune não são as
não só às explicações de Poe sobre o poema em possibilidades de conceituação do gênero e,
questão e a forma como ele foi escrito, mas sim, a noção de pacto. O pacto autobiográfico é
também a considerações do escritor sobre o a identidade autor-narrador-personagem,
fazer poético, sobre a sua visão da narrativa estabelecida de forma expressa pelo texto ou de
ficcional36 e sobre a literatura em geral. forma tácita pelos elementos paratextuais. A
Quase cinquenta anos após a publicação de A noção de identidade de nome, evocada pelo
filosofia da composição, outro texto, esse brasileiro, pacto autobiográfico, dá um caráter de verdade
chega às mãos dos leitores interessados em entender às enunciações do texto:
os bastidores da criação. Trata-se de Como e por que
sou romancista, de José de Alencar. Escrito em 1873 A autobiografia (narrativa que conta a vida do
e publicado postumamente vinte anos depois, o texto autor) pressupõe que haja identidade de nome
de Alencar é uma autobiografia literária, onde o autor entre o autor (cujo nome está estampado na
faz um apanhado geral de sua carreira como homem capa), o narrador e a pessoa de quem se fala.
de letras. Sendo, portanto, mais geral do que A Esse é um critério muito simples, que define,
filosofia da composição, não deixa de oferecer além da autobiografia, todos os outros gêneros
subsídios para que o pesquisador adentre a intimidade da literatura íntima (diário, autorretrato,
alencariana e embarque nos bastidores de suas obras. autoensaio). (LEJEUNE, 2014, p. 28)
Já no século seguinte, Josué Montello segue Assim, a autobiografia se distancia do
os passos de José de Alencar ao publicar romance, que tem, ao invés de um pacto de
“Confissões de um romancista”, como prefácio verdade, um pacto de ficcionalidade. Por mais
aos seus Romances e novelas, no início da que o autor tenha feito diversas considerações
década de 1980. Montello faz um passeio desde relativizando esse pacto referencial da
as raízes de sua família até a publicação de seus autobiografia, notadamente no ensaio O pacto
últimos romances até então, numa espécie de autobiográfico (bis), publicado pela primeira
justificativa dos caminhos percorridos. vez em 1986, persiste o afastamento da
Em comum a esses três textos há o pacto autobiografia e o romance. Assim, mesmo que
autobiográfico. Em todos eles percebemos o o texto autobiográfico seja literariamente
autor-narrador-personagem37 em busca de legar trabalhado, dando ao leitor a ideia de que talvez
ao leitor um pouco de sua vida íntima de homem nem tudo o que é narrado tenha acontecido
e de escritor. A noção de pacto autobiográfico daquela maneira, isso não o aproxima do
foi formulada por Philippe Lejeune em seu romance. Há uma vontade de verdade na
ensaio O pacto autobiográfico. autobiografia que não há no romance.

36 37
Edgar Allan Poe escreveu alguns dos grandes contos da Em que pese o fato de que Alencar e Montello serem
literatura inglesa como The Tell-Tale Heart, William personagens em seus respectivos textos do que Edgar
Wilson, The fall of the house of Usher e The Black Cat. Allan Poe, que adota um tom mais ensaístico em A
filosofia da composição.
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 85

Os casos de Rabo de foguete e Autobiografia sujo. O contexto dessa criação é expresso pelo
poética são representativos de textos que próprio autor a seguir:
firmam com o leitor um pacto autobiográfico. Esse estado crescente de insegurança me
Nos dois textos temos o Gullar autor, narrador e preocupava. Sentia-me encurralado: com o
personagem de suas próprias histórias. Em passaporte cancelado pelo Itamarati, estava
Rabo de foguete o pacto autobiográfico é impedido de ir para qualquer outro país senão
estabelecido de maneira expressa através do aqueles que faziam fronteira com o Brasil.
texto de abertura da obra, uma espécie de Mas exatamente esses eram dominados por
prefácio sem título, assinado com as iniciais do ditaduras ferozes, aliadas da ditadura
seu autor, FG: brasileira. Para aumentar a preocupação,
surgiram rumores de que exilados brasileiros
Nunca fez parte de meus planos escrever estavam sendo sequestrados em Buenos Aires
sobre os anos de exílio. Em 1975, quando e levados para o Brasil, com a ajuda da polícia
Paulo Freire me solicitou um texto sobre argentina. Achei que era chegada a hora de
minha experiência de exilado, para um livro tentar expressar num poema tudo o que eu
que reuniria depoimentos desse tipo, neguei- ainda necessitava expressar, antes que fosse
me a escrevê-lo. Temia, de um lado, praticas tarde demais – o poema final. (GULLAR,
inconfidências que comprometessem a 2008, p. 273)
segurança dos companheiros, e de outro,
sentia-me traumatizado demais para abordar Cumpre asseverar que, além do incômodo de
o tema. Foi só recentemente, por insistência estar há anos fora de seu país, longe de sua
de Cláudia Ahimsa, que mudei de atitude. família, num país onde militantes comunistas
(GULLAR, 2008, s.p.). eram perseguidos pela ditadura recém
No caso de Autobiografia poética, o pacto instaurada, sem ter para onde ir, o período da
autobiográfico é estabelecido pelo próprio título criação do Poema sujo coincide, também, com
da obra, que dá o tom ao leitor, antes mesmo as fugas de um dos seus filhos, que mais tarde
deste virar a primeira página, de que haverá teria confirmado o diagnóstico de
revelações sobre a carreira literária de seu autor. esquizofrenia. Assim, diante do caos instalado
Assim, em ambas as obras identificamos a em sua vida, Gullar busca dar forma a tudo
identidade autor-narrador-personagem, tal qual aquilo que vivia e sentia materializando um
formulou Lejeune (2014). Contudo, se em Rabo “poema final”, nas palavras do próprio autor.
de foguete esses três elementos se coadunam no Salles ao estudar os motivos pelos quais o artista
entrecho narrativo da obra, em Autobiografia sai da inércia para a criação, comenta que: “O
poética o Gullar personagem vai perdendo percurso de concretização da obra caminha para
espaço nas páginas finais do texto, em que uma satisfação mesmo que transitória, como já
predomina o Gullar narrador fazendo discutimos. Pois há uma profunda verdade que
conjecturas poéticas e estéticas sobre suas ele procura expressar em sua obra [...]”
obras, contrastando com o início (SALLES, 2011, p. 41). Seguindo o relato,
eminentemente narrativo do texto. Essa Gullar tenta dar forma ao seu “poema final”,
mudança de postura culminará em relatos como aponta a seguir:
diferentes sobre um mesmo tema: a criação do Quando essa ideia despontou na minha
Poema sujo. cabeça, esqueci tudo o mais e entreguei-me a
ela. Imaginei que o melhor caminho para
3 A criação do Poema sujo em Rabo de realizar o poema era vomitar de uma só vez,
foguete sem ordem lógica ou sintática, todo o meu
Em Rabo de foguete, Gullar narra a sua passado, tudo o que viveram, como homem e
como escritor. Posto para fora esse magma,
experiência de perseguido pela Ditadura Militar
extrairia dele, depois, os temas com que
por ser um dos dirigentes do Partido Comunista construiria o poema. Tão excitado fiquei, a
Brasileiro. Depois de vagar pelas casas de seus cabeça a mil, que só muito tarde logrei
amigos, escondendo-se por quase um ano, adormecer. (GULLAR, 2008, p. 237)
Gullar é mandado para a União Soviética para
fazer um curso junto ao comando do Partido Pode-se perceber, portanto, que se a ideia do
Comunista local. Após o fim desse curso, o poema era dizer aquilo que precisava ser dito antes
maranhense é posto de volta no avião rumo à que fosse tarde demais, ou seja, a materialização
América Latina, passando por Peru e Chile até poética busca uma ancoragem numa realidade,
se fixar na Argentina, onde escreve o seu Poema estando o poeta a vomitar “todo o seu passado”.
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 86

Mas não se trata da realidade tal qual ela silêncio, não há linguagem... Sim, mas eu
aconteceu, e sim, um real idealizado, um passado tenho que começar antes da linguagem, antes
mais simples, daí a profusão de imagens poéticas de mim, antes de tudo... E então escrevi:
evocando a paisagem da São Luís de sua turvo turvo
a turva
juventude que se encontra no Poema sujo.
a mão do sopro
Há, portanto, uma produção poética contra o muro
resultado de uma experiência do vivido em escuro
contraste com a experiência do passado, abrindo [...]. (GULLAR, 2008, p. 237-238)
espaço para a reconstrução da memória. Essa
relação travada entre a experiência e a criação Esse movimento de tentativa de encontro do
artística é tratada por Salles (2016, p. 68) da fio que desenrolará a criação será melhor
seguinte maneira: discutido a frente, com os subsídios que o autor
nos dá em sua Autobiografia poética. O que nos
A estreita relação nos leva a examinar seus interessa nesse excerto é a constatação de que
modos de ação nos processos criativos, sem Ferreira Gullar, mesmo tendo uma ideia de
separá-las, mantendo exatamente o que as
como queria desenvolver o seu poema –
conecta: interagem por meio de emoções ou
de sensações, como vimos. A percepção do vomitando a vida – ainda enfrentava a
mundo exterior se dá por sensações intensas, dificuldade proveniente da criação poética. A
nas fugidias. Para que um aspecto desta rigor, a dificuldade enfrentada por Gullar é
percepção fique na memória é necessário que teorizada por Salles (2011; 2016) que afirma
o estímulo tenha uma certa intensidade. que o controle do artista sobre sua obra é
relativo, daí que a obra, por vezes, construa-se a
Salles, ao comentar a participação da
si mesma, através da pena do escritor. É o que
memória na criação artística, expõe o seguinte:
nos diz o próprio Gullar a seguir:
[...] memória não é um lugar onde as
lembranças se fixam e se acumulam. Cada Senti que tinha encontrado o umbigo do
nova impressão impõe modificações ao poema (porque, como as pessoas e outros
sistema. Como memória é ação, ou seja, bichos, o poema também começa pelo
essencialmente plástica, as lembranças são umbigo) e, quase sem tomar fôlego, escrevi
reconstruções: redes de associações, cinco laudas. Ao terminá-las, sabia de tudo:
responsáveis pelas lembranças, sofrem que o poema ia ter por volta de cem páginas,
modificações ao longo da vida. Nós nos que teria vários movimentos como uma
modificamos e assim altera-se a percepção sinfonia e que se chamaria Poema sujo. Hoje,
que temos de nosso passado, mudando nossas ao refletir sobre aqueles momentos, estou
lembranças. (SALLES, 2016, p. 69-70) certo de que o poema me salvou: quando a
vida parecia não ter sentido e todas as
Assim, percebe-se que Gullar buscava a perspectivas estavam fechadas, inventei,
reconstrução de sua São Luís da juventude, através dele, um outro destino. (GULLAR,
percebendo no seu passado um lugar seguro, diferente 2008, p. 238).
daquele seu presente de tantas incertezas e tantos
desgostos. A criação, portanto, cumpre sua função de Assim, percebe-se que, após iniciar o poema
ato eminentemente solitário e egocêntrico (SALLES, – utilizando-se do artifício de começar antes da
2011; 2016), sendo, antes de qualquer outra coisa, linguagem – Gullar encontra as tendências pelas
uma forma de derramamento do autor por sobre a quais conseguirá materializar a sua obra.
folha em branco. Somente após o poema iniciado é que o autor
Contudo, essa relação da experiência do consegue concebê-lo, tal qual o artificio do seu
vivido e a reconstrução pela memória com a início antes da linguagem. Contudo, as
ideia do poeta de “vomitar a vida” na sua tendências de criação não garantem que o objeto
criação não resultou em um processo simples. artístico seja completado. Por vezes, o artista,
Pelo contrário, Gullar teve problemas para no nosso caso, o poeta, enfrenta a dificuldades
iniciar a sua produção, como nos conta no ao perceber que a tendência que ele próprio
excerto abaixo: estabeleceu não é mais suficiente para levá-lo
Enquanto tomava o café, refleti, o facho adiante na criação. Gullar passou por um
abaixou, busquei o caminho possível: já sei, momento semelhante, como relata a seguir:
vou começar antes da linguagem... é... mas Nada me fez interromper o poema. Estava
antes da linguagem, o que há é o silêncio e entregue a ele todas as horas do dia e da noite,
não se pode dizer o silêncio; quando há só me desligando para tomar alguma
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 87

providência indispensável e dormir. Esse Gullar operando a criação poética como uma
estado durou de março a setembro de 75, ação transformadora, tal qual teorizada por
quando o fluxo perdeu força e cessou. Sabia Salles a seguir:
que o poema não estava concluído embora
não soubesse como concluí-lo. Após algum As pessoas são receptivas a partir de algo que
tempo, repentinamente, escrevo as estrofes já existe nelas de forma potencial e que
finais, que começam assim: encontra nesse fato uma oportunidade
concreta de se manifestar. Há no ser de cada
O homem está na cidade pessoa certas áreas de sensibilidade a partir
como uma coisa está em outra das potencialidades latentes que serão
e a cidade está no homem ativadas pelos acontecimentos [...]. Pode-se
que está em outra cidade (GULLAR, 2008, falar, portanto, em esquemas perceptivos
p.239) peculiares a cada indivíduo, que revelariam
No excerto acima, percebe-se que a singularidades de tendências. Seria o poder
dificuldade imposta pela perda do fluxo, ou de reconhecer os fatos em certas direções.
(SALLES, 2011, p. 97)
seja, pela impossibilidade da tendência criativa
em proporcionar o encerramento do poema é, ao A percepção do mundo em que vivia e a
mesmo tempo, limitadora e potencializadora, reconstrução não-fidedigna de seu passado
obrigando o poeta a reconfigurar sua criação maranhense se unem para a resultar na
para atender as demandas do objeto inacabado. remodelação da realidade, transfigurada
Essa tensão entre limites e possibilidades é poeticamente, fazendo emergir o Poema sujo.
conceituada por Salles (2011, p. 69) da seguinte Em Rabo de foguete percebemos a criação do
maneira: “[...] essas limitações revelam-se, Poema sujo como resultado da ação
muitas vezes, como propulsoras da criação. O transformadora de Ferreira Gullar.
artista é incitado a vencer os limites
4 A criação do Poema sujo em
estabelecidos por ele mesmo ou por fatores
Autobiografia poética
externos [...]”.
Assim, olharmos a criação do Poema sujo O texto de Autobiografia poética começa
em Rabo de foguete é compreender de que dando-nos a ideia de que, a despeito de seu tom
forma o momento vivido por Gullar analítico, será narrativo, com o autor tentando
proporcionou o aparecimento desse objeto entender – ou tentando explicar ao leitor – o
artístico. Dessa maneira, o relato da criação porquê de ter tomado certas decisões na sua
artística está eivado da angústia de seu autor, trajetória poética. É o que vemos logo no
angústia essa relacionada não só à própria primeiro parágrafo da obra:
criação como também a sua situação pessoal e É difícil entender claramente o que nos leva a
familiar. Dito de outra maneira, olhar a criação tomar este ou aquele rumo na vida. Por
do Poema sujo através de Rabo de foguete é exemplo, quando tinha doze ou treze anos de
compreender que a angústia do artista é idade, roubava copos em botequins e
geradora de obra de arte, como afirma Salles lanchonetes no Centro de São Luís. Meus
(2011, p. 89): companheiros nessas travessuras tinham mais
ou menos essa mesma idade, e nenhum de nós
O artista diz enfrentar angústia de toda se tornou ladrão para o resto da vida. Eu me
ordem: morrer e não poder terminar a obra; tronei escritor; o outro, jogador de futebol; e
reação do público; busca de disciplina; o o terceiro extraviou-se, entregando-se à
desenvolvimento da obra; querer e não poder maconha e depois à cocaína. Se não sei o que
dedicar-se ao trabalho; precisar e não me levou a praticar aqueles pequenos delitos,
conseguir dedicar-se ao trabalho; a primeira tampouco sei por que, aos treze anos,
versão; enquanto dos ‘personagens’ não se abandonei a molecagem para dedicar-me à
põem em pé; angústia que leva à criação. literatura. (GULLAR, 2015, p. 16).
Dessa maneira, Ferreira Gullar, ao E assim, o autor vai narrando a sua trajetória
compartilhar com o leitor de Rabo de foguete de poeta, desde os primeiros versos em São
toda a sua angústia como homem, compartilha, Luís, explicando como e por que deu os passos
também, toda a sua potência criativa, resultado que deu. Em consonância com essa verve
dessa mesma angústia. O que poderia ser um narrativa, o texto convive com a análise de seu
momento de fraqueza para o homem, é um gesto próprio autor-narrador, como se este passasse a
de força para o poeta. Percebe-se, portanto, vida em revista, já enfrentando a velhice.
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 88

Contudo, esse jogo de “narração x análise” nessa mesma obra, com seus outros escritos.
vai, gradualmente, virando de ponta a cabeça Resta, no texto da Autobiografia poética, um
quando nos aproximamos temporalmente do relato puramente analítico em que o Gullar da
relato acerca da criação do Poema sujo. O tema segunda década do século XXI se volta para o
é introduzido logo depois da narração da Gullar de quase meio século antes e tenta
aventura comunista de Gullar: “[...] escrevi entendê-lo, compreender os seus caminhos,
outros poemas de cordel, como História de um identificar padrões.
valente, feito a pedido do Partido Comunista De semelhante com o relato de Rabo de
para uma campanha pela libertação de Gregório foguete temos dois excertos que valem a análise
Bezerra, preso pela ditadura militar que já se detida. O primeiro é sobre o teor da obra em
havia instalado no país a partir de abril de 1964” criação:
(GULLAR, 2015, p. 57). Ao pensar em escrever aquele poema – na noite
Já então, o olhar analítico do autor-narrador em que me veio o ímpeto de escrevê-lo –,
suplanta a narração e encontra, naqueles poemas imaginei começá-lo com uma espécie de
políticos com forte apelo social o nascedouro de vômito do vivido. Como sabia de antemão que
um tipo poético que desembocará no Poema sujo, o poema abrangeria minha vida inteira, desde o
quase uma década depois: começo em São Luís e seu desenrolar através
dos anos, imaginei vomitar tudo, criando uma
Minha atitude, então, em face da poesia, era espécie de magma, donde, em seguida, extrairia
essencialmente pragmática, isto é, menos o poema. (GULLAR, 2015, p. 58)
preocupada com a qualidade poética do que
com o objetivo político a alcançar. Mais tarde Esse movimento de vomitar a vida na folha
me dei conta de que fazer má poesia não de papel em branco e extrair dali o poema já foi
servia para nada. Ao escrever um poema, a visto no relato de Rabo de foguete. O que se
preocupação principal tem de ser com a percebe no excerto acima é uma compreensão
qualidade literária, poética. Isso me levou a de que o poema teria, se olharmos de
elaborar melhor os poemas dessa fase e
determinado ângulo, um teor autobiográfico.
mesmo a tentar criar uma linguagem poética
de qualidade a partir do vocabulário que o Essa tendência não fica tão clara em Rabo de
tema político-social inevitavelmente implica. foguete. Mais adiante, Gullar faz outra
Iniciei, então, uma nova trilha poética, que consideração que coincide com o que já foi visto
desembocou, em 1975, no Poema sujo. De no texto anterior:
algum modo, procurei realizar uma espécie
Naquele momento, ao conceber esse modo de
de alquimia vocabular entre as palavras
iniciá-lo, não sabia por que o fazia. Só mais
naturalmente poéticas e outras antipoéticas,
recentemente tomei consciência de que, na
ou não poéticas, como nomes de empresas
verdade, queria que o poema ‘não
internacionais, que simbolizavam o
começasse’. [...] No fundo, era para evitar o
capitalismo. (GULLAR, 2015, p. 57-58)
começo ‘lógico’. Aquilo que era de algum
Ainda no mesmo tom, para dar substância à modo vomitar o tema para, só depois, tratá-lo
sua afirmação anterior, o autor ainda coerentemente. (GULLAR, 2015, p. 58-59)
complementa com o seguinte: No excerto acima, Gullar retoma a
No Poema sujo, creio eu, deu-se uma dificuldade que foi iniciar o Poema sujo, dando
implosão de tudo que fora elaborado durante ao leitor a informação de que queria que o
os anos de 1962 e 1975. É certo que nada poema “não começasse”, ou que, na verdade,
disso foi planejado nem realizado com plena começasse a partir do encontro da pena com o
consciência do que fazia, mas, como sempre papel em branco, como afirma a seguir:
ocorre comigo, foi acontecendo à medida que
me dava conta das dificuldades e das turvo turvo
descobertas (GULLAR, 2015, p. 58). a turva
mão do sopro
Assim, percebe-se que Gullar encontra uma contra o muro
ligação entre a poesia política que fazia na
Como afirmar que esse não é o início do
década de 1960 e o Poema sujo. Não há menção poema, se é com esses versos que ele se
ao exílio, nem mesmo às dificuldades com o inicia? Pode-se dizer que esses versos não são
filho. Não há, pelo menos, um bastidor concreto ainda o assunto do poema, que, por isso, não
que evidencie como se deu a criação de sua começa ali. Não obstante, pode-se discordar
principal obra, como ele já havia feito antes, disso, observando que, se o poema ainda não
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 89

existia, era impossível fazer tal afirmação. A somente as libertar-se da realidade, a força
conclusão lógica creio ser a seguinte: criadora pode agir segundo suas próprias
precisamente por que o poema ainda não tendências. Como já discutimos, a obra está,
existia, aqueles primeiros versos são de fato o sempre, de algum modo, liga a essa realidade
começo dele. O que também é verdade é que, externa, e ganha feições singulares a partir de
por ainda estar sendo feito, aqueles versos uma representação ficcional da realidade
iniciais são um começar arbitrário [...].
(GULLAR, 2015, p. 60). Pode-se notar, portanto, que a abordagem da
criação do Poema sujo em Autobiografia poética
Se em Rabo de foguete o autor-narrador vai num caminho oposto aquela vislumbrada em
entrega ao leitor o relato de que os mesmos Rabo do foguete. Enquanto nesta, Gullar está
versos reproduzidos acima foram “achados” preocupado em construir um contexto para que o
enquanto Gullar tomava café, aqui o início do leitor entenda de que forma a vida vivida e a
Poema sujo serve de ensejo para que o autor memória reconstruída influenciaram na criação
reflita e analise sobre o início de sua obra. do poema, em Autobiografia poética a
Assim, se o autor de Rabo de foguete olha para preocupação parece recair sobre a forma da
trás e identifica que a criação do Poema sujo criação, a técnica propriamente dita, como sendo
pode ser abordada como uma ação um relato do sucesso de determinado movimento
transformadora (SALLES, 2011), com o poeta criativo, construindo uma verdade artística para
transmutando os elementos que tem ao seu a criação de poemas.
redor e utilizando-os na composição de sua obra
de arte, o autor de Autobiografia poética se 5 Duas explicações para o mesmo processo
atém exclusivamente à materialidade de sua A primeira hipótese que pode ser levantada
criação, identificando em seu percurso criativo para compreender as razões pelas quais Ferreira
uma tentativa de construção de verdades Gullar nos entrega duas explicações diferentes
poéticas, tal qual afirma Salles (2011, p. 136): sobre o mesmo processo reside na própria
“[...] estamos interessados na verdade artística natureza de cada documento de processo
da criação, ou, em outras palavras, no caráter da analisado, no caso Rabo de foguete e
verdade buscada pelo artista ao longo de seu Autobiografia poética.
trajeto em direção à obra. É a verdade guardada Sendo Rabo de foguete um livro que trata dos
pela obra, vista, aqui, sob o ponto de vida de sua anos de exílio do seu autor, parece natural que a
construção”. Convém esclarecer que quando ênfase narrativa recaia sobre a experiência do
tratamos de construção de verdade não nos exilado. Assim, Gullar parece nos convidar a
referimos à uma instancia referencial que liga a adentrar o seu íntimo para que compreendamos os
criação poética à vida do autor. Trata-se, na passos dados por ele. No caso da criação do Poema
verdade, de construir verdades artísticas, de sujo, o autor-narrador escolhe seguir essa mesma
testar movimentos criadores para que o poeta se linha narrativa e atrelar o seu processo criativo à
convença de que aquela técnica criativa resulta experiência traumática que estava vivendo. Aliás,
em um objeto. No caso específico da para dar unidade a Rabo de foguete, o autor-
Autobiografia poética, Gullar parece narrador não deixa o leitor esquecer que aquela é
interessado em defender a tese de que criou o uma experiência traumática, mesmo nos raros
Poema sujo antes de seu começo, como ele momentos de felicidade.
próprio evidencia no último excerto da obra A Autobiografia poética tendo o objetivo de
reproduzido acima. apresentar os caminhos percorridos na criação
Assim, o autor parece querer distanciar a poética de Gullar desde os seus primeiros escritos,
criação do Poema sujo da realidade dando a essa narrativa um olhar analítico que recai
extratextual, que, na verdade, não é alvo de suas sobre cada passo dado, não menciona o exílio ou
atenções em Autobiografia poética. A própria porque o autor não julgou necessário – por já ter
abordagem do movimento criador como um narrado essa experiência em Rabo de foguete ou
processo de construção de verdades artísticas se por receio de quebrar a verve analítica da obra – ou
propõe a uma compreensão que se dá no interior porque esse acontecimento está diretamente ligado
do processo, distanciando-se do contexto vivido a um trauma, e narrar o trauma não é uma tarefa
pelo autor. É o que Salles (2011, p. 137) afirma: simples. Sobre isso, Seligmann-Silva (2008, p. 67)
O artista, ao construir uma nova realidade, vai assevera que:
desatando-a daquela externa à obra. Pois Nestas situações, como nos genocídios ou nas
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 90

perseguições violentas em massa de elementos vividos e reconstruídos pela memória,


determinadas parcelas da população, a memória e em Autobiografia poética como um processo
do trauma é sempre uma busca de compromisso de construção de verdades artísticas no qual ele
entre o trabalho de memória individual e outro encontra uma saída para iniciar o poema antes de
construído pela sociedade. Aqui a já em si
começá-lo, e mesmo que, aparentemente, esses
extremamente complexa tarefa de narrar o
trauma adquire mais uma série de determinantes dois relatos não se coadunem para explicar o
que não podem ser desprezados [...]. movimento criador do poeta, isso não significa
que algum deles, ou mesmo ambos, são
Assim, narrar o trauma não é um inválidos. Na verdade, essa é uma demonstração
empreendimento que dependa unicamente da da complexidade da criação artística.
memória individual da testemunha. Há um
componente mais geral que pode ser vinculado 6 Considerações finais
à memória do próximo (RICOEUR, 2007) que Na busca por analisar a criação do Poema
definirá as condições de circulação e de sujo, de Ferreira Gullar, recorremos aos escritos
recepção daquela narrativa. Sendo a narração do autobiográficos do autor em Rabo de foguete e
trauma uma tarefa complexa, o autor pode não Autobiografia poética. Assim, antes de
querer retornar a um fato que já havia sido adentrarmos os domínios dessas duas obras,
narrado. Cumpre recordar que o próprio Gullar, percorremos um caminho teórico que
no texto introdutório de Rabo de foguete, em evidenciasse os processos metodológicos da
que assina com suas iniciais FG, e que foi crítica de processo e da sua relação com a
reproduzido no início deste trabalho, já afirmara literatura autobiográfica. Feito isso,
que mesmo tendo sido convidado por Paulo debruçamo-nos sobre cada um desses textos
Freire para compartilhar a sua experiência como para encontrar relatos diversos sobre a criação
exilado, havia se esquivado da tarefa. da obra-prima de Gullar. Em Rabo de foguete
Há, contudo, um outro aspecto a ser vemos um poeta que transforma sua experiência
considerado ao abordarmos a maneira diversa e seu passado em material poético. Em
pela qual Gullar trata a criação do Poema sujo Autobiografia poética somos apresentados a um
nesses dois documentos de processo. Estamos poeta que parece estar preocupado com a forma
tratando de dois documentos escritos após a pela qual desenvolverá sua criação, sem legar ao
criação e a publicação do Poema sujo, portanto, leitor qualquer menção aos anos de exílio. Essa
tanto Rabo de foguete quanto Autobiografia diferenciação, como vimos, pode partir de
poética guardam registros da memória diversos lugares. Pode ser explicada pela
ressignificadora própria dos textos proposta diferente desses dois textos
autobiográficos. Assim, a seleção do que se diz autobiográficos que servem de documentos de
revela o estado de espírito do autor não no processo. Pode ser vista como resultado natural
momento em que ele é personagem daquilo que da ressignificação do passado operada pela
relata, mas sim no momento em que ele relata. memória. E pode, ainda, ser encarada como
Dito de outra maneira, os relatos encontrados evidência da complexidade da criação artística.
nessas duas obras evidenciam o Gullar de cada Dessa maneira, esta pesquisa evidencia que
uma delas mais do que o Gullar criador do adentrar os meandros da criação de objetos
Poema sujo. Isso não significa que não haja artísticos é tarefa complexa que deve ser encarada
compromisso do autor com os fatos. No entanto, de forma a contemplar o conceito de criação em
mesmo havendo esse compromisso referencial, rede (SALLES, 2016), onde nenhum elemento
o autor é incapaz de deixar de avaliar o seu pode ser visto em isolamento. Cada relato conversa
passado e, com isso, revelar o seu estado de com outro que o ressignifica, abrindo novos
espírito atual no texto que escreve. horizontes na tarefa da análise do movimento
Por fim, há ainda o fato evidente de que a criador. No caso da poesia de Ferreira Gullar, cada
criação artística de qualquer objeto não pode ser um dos documentos nos apresenta uma faceta do
explicada de maneira única. Sendo um processo escritor que, antes de serem contrastantes, se
complexo em que diversos elementos se complementam, deixando clara a complexidade
relacionam em rede (SALLES, 2016), a criação desse grande poeta maranhense.
artística, nesse caso poética, pode abarcar
diversas abordagens. Assim, mesmo Gullar Referências
apresentando a criação do Poema sujo em Rabo
de foguete como uma ação transformadora de
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 91

GULLAR, Ferreira. Autobiografia poética e


outros textos. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2015
________________. Rabo de foguete: os anos
de exílio. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico:
de Rousseau à internet. 2. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014
PINO, Cláudia Amiga; ZULAR, Roberto.
Escrever sobre escrever: uma introdução
crítica à crítica genética. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2007.
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o
esquecimento. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2007.
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto inacabado:
processo de criação artística. 5. ed. São Paulo:
Intermeios, 2011.
_____________________. Redes de criação:
construção da obra de arte. 2. ed. Vinhedo:
Editora Horizonte, 2016.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o
trauma: a questão dos testemunhos de
catástrofes históricas.In: Psicologia Clínica.
2008, v. 20, n. 1. p. 65-82. Acesso em: 30 Set
2021. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0103-
56652008000100005>.

********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

UMA LEITURA POLÍTICA DE MISSAS NEGRAS, DE INÁCIO XAVIER DE


CARVALHO
Patricia Raquel Lobato Durans Cardoso38

RESUMO: A partir da relação entre Literatura sempre que se pensa na literatura dos autores
e Sociedade, propõe-se uma leitura política do maranhenses que escreveram durante a passagem
livro de poemas Missas Negras, de Inácio do século XIX para o XX, os chamados
Xavier de Carvalho, publicado em 1902, em neoatenienses. Tais literatos/intelectuais
Manaus. A obra é composta por trinta e quatro construíram por meio de seus escritos e atuação
poemas, sendo a maioria sonetos. Alguns artística e política uma ideia de que seriam
críticos da literatura maranhense concordam restauradores de uma atmosfera de renascença
que a obra do referido autor insere-se no intelectual, alicerçada em uma outra construção de
Simbolismo ou Decadentismo, enquanto outros que seriam herdeiros diretos da vocação artístico-
afirmam que é difícil enquadrá-la em uma literária maranhense. Essa convicção baseava-se
escola literária específica. No entanto, o autor no sucesso que vários literatos maranhenses
está inserido no terceiro ciclo da literatura alcançaram ao longo do século XIX.
maranhense, chamado pela historiografia Aliado a isso, o período de escrita dos
tradicional de ciclo decadentista, o qual não diz literatos que se dedicaram à lírica coincide com
respeito a uma estética literária, mas a uma a vigência do Simbolismo/Decadentismo no
situação política e social instável em Brasil, levando autores como Maranhão
comparação a outros momentos da história, Sobrinho e Inácio Xavier de Carvalho a serem
além de um juízo de valor em relação às considerados também “poetas malditos”, tendo
manifestações artísticas produzidas nesse em vista a recorrência de algumas temáticas,
período. Tem-se como objetivo compreender o como morte, pessimismo e transcendentalismo,
sentimento de decadência e o imaginário em suas obras. Por fim, historicamente, não só
decorrente dele presentes na literatura o Maranhão como o Brasil, na passagem dos
autodenominada de neoateniense, nos séculos, vivia um período de forte crise política,
primórdios do século XX. Para isso, discute-se social e econômica, sobretudo com o fim do
o modelo explicativo prosperidade/decadência sistema escravista, a desagregação das lavouras
como único aceito para explicar o período, e a vinda de um novo regime político. Tal
assim como o mito da neoateniensidade. Busca- regime instaurou um clima de incertezas, aliado
se evidenciar a produção literária do período a à própria passagem de século que, em si, já é um
partir da obra supracitada, desvelando seu período instável e, por vezes, caótico.
decadentismo (literário ou temático) e a sua Tudo isso ambienta a obra de Inácio Xavier
relação com o contexto socioeconômico por de Carvalho, intitulada Missas Negras,
meio das figurações presentes na obra. publicada em 1902, em Manaus. Conforme
Carvalho (1912), foi com essa obra que o autor
Palavras-chave: Literatura Maranhense; encontrou a maturidade literária. Em
Literatura Neoateniense; Missas negras; Inácio concordância, Ramos (1986) afirma que foi
Xavier de Carvalho; Decadentismo. com esse livro que Carvalho se tornou um dos
maiores poetas da escola simbolista.
Literatura decadente e/ou literatura Apesar de se tratar de poemas, a obra tem um
decadentista? Essa é uma discussão que se coloca

38
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Literatura • duranspat@gmail.com • UFSC
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 93

caráter autobiográfico, podendo-se ver, para além Frutos Selvagens (1894), poemas líricos
da temática simbolista, uma visão decadente e românticos; Missas negras (1902), poemas
pessimista diante do que era o presente do mundo. decadentistas; Parábolas e Parabolas (1919),
Conforme Cândido (1991, p. 111), citando Proust, poemas humorísticos no Pará.
toda vez “que um grande artista nasce, é como se Ao realizar um importante mapeamento do
o mundo fosse criado de novo, porque nós simbolismo no Brasil com a obra Panorama do
começamos a enxergá-lo conforme ele o mostra”. movimento simbolista brasileiro, Muricy
Assim, podemos perceber o mundo pela ótica de (1973) dedica um pequeno capítulo a Xavier de
Inácio Xavier de Carvalho, uma forma Carvalho, destacando três sonetos contidos em
extremamente pessimista, mas cheia de poesia. Missas Negras, inserindo o autor nessa escola
Em sua obra, não só a estética decadentista é literária. Já em artigo do suplemento literário do
influência, mas também a história dolorida da Guesa Errante, Carneiro (2003, p. 21) assevera
conjuntura que se estabelecia em torno de si e do que as obras de Inácio Xavier de Carvalho não
seu fazer literário. podem ser encaixadas num modelo literário
Diante do exposto, este presente artigo tem único, estando incluídas simultaneamente no
o objetivo de fazer uma leitura política da obra Simbolismo, no Decadentismo e no Pré-
Missas Negras, pensando a relação autor-obra- modernismo. Carvalho era considerado “um
leitor, ou, mais profundamente, a relação entre poeta maldito” e, ao mesmo tempo, “irônico,
literatura e sociedade, ou seja, a natureza satírico, satânico, contraditório, pessimista,
ambígua não apenas do texto (que é e não é fruto paradoxal e ambíguo”. É notório que as duas
de um contato com o mundo), mas do seu visões não são antagônicas, mas
artífice (que é e não é um criador de mundos complementares, pois se, de fato, Carvalho não
novos) (CÂNDIDO, 1991, p. 112). Proponho constitui uma obra toda simbolista, pelo menos
uma leitura política no sentido etimológico da Missas Negras tem algumas influências.
palavra, porque, conforme Jameson (1992), O título do livro já indica que o texto tem um
toda interpretação de um texto, mesmo que não tom ritual, religioso, confessional, profético,
seja histórico, deve acessar a História, a história assim como também de sacrifício e sofrimento.
escondida, seu inconsciente político. Esses elementos cristãos vão estar presentes em
Ademais, torna-se necessário um estudo toda a obra como se fossem a música que
mais aprofundado a fim de biografar com mais acompanha esse ritual religioso. Os poemas
detalhes quem foi Inácio Xavier de Carvalho, o falam de “frade infernal”, “sermões de dor”,
qual, inclusive, publicou algumas obras fora do logo, mesmo não escrevendo em forma de
Maranhão e as quais não temos acesso. sermões, os textos têm muito desse discurso
Carvalho nasceu em 1871, em São Luís, e moralizador da pregação cristã.
morreu em 1944, no Distrito Federal Associado ao substantivo missas está o
(MEIRELES et al., 1958). É perceptível que a adjetivo negras, que, nesse caso, apresenta um
literatura não constituía o seu principal modo de significado negativo, como triste, lúgubre,
ganhar a vida, tendo seguido na magistratura. melancólico, funesto, maldito, perverso,
Graduou-se em Direito pela Faculdade do lutuoso, apagado, decadente, morto. Esses
Recife, exerceu as funções de promotor público, adjetivos trazem os sentimentos do eu-lírico ao
juiz municipal e juiz federal no Maranhão, juiz longo do livro. Logo, o livro é um sermão
municipal de Abaeté em Minas Gerais, pessimista e dolorido acerca da vida. O poema
procurador geral do estado do Amazonas e juiz que abre o livro é intitulado Profissão de fé:
substituto em Belém. Além disso, foi professor Uma andorinha só não faz Verão!... Embora!
do Liceu Maranhense e jornalista. Participou - Asas desdobrarei ao sol das Crenças Minhas
ativamente do movimento cultural de sua época, E entrarei para o Além, pelas nuvens a fora
fundando agremiação literárias como a Oficina Longe de feras más e das aves daninhas...
dos Novos. Depois de um grupo dissidente Ó ave! e então verás que essas penas que
desta, fundou a Renascença Literária e foi tinhas
também um dos fundadores da Academia Negras... branquejarão ao contato com a
Maranhense de Letras, em 1909, ocupando a Aurora...
cadeira nº 9. Sua escrita jornalística era intensa, E... hás de nojo sentir das outras andorinhas.
Uma andorinha só não faz Verão!... Embora!
tendo participado de vários periódicos
Subirás pelo céu... alto, alto, tão alto
maranhenses. Suas obras literárias incluem: Que não vejas o chão, que não vejas as casas
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 94

Agrupadas aqui n’este humano planalto... poeta continua a ser exaltada, em especial
E descerás depois... já sem peias e algemas, quando comparada com reis e com a lira, grande
Águia imensa de Luz, desdobrando nas asas instrumento que acompanhava a poesia, feita de
Todo um poema ideal de Revoltas Supremas! ouro. Assim como no primeiro poema, mais
(CARVALHO, 1902, não paginado).
uma vez, o eu-lírico se declara um poeta
Assim como o poema de Olavo Bilac, de insubmisso, que escreve poemas cujo poder é
mesmo título, fala sobre o fazer do artista, aqui ferir e marcar.
também o eu-lírico está preocupado com o fazer A posição pessoal do fazer artístico do poeta
do poeta. No entanto, enquanto aquele compara figura como a posição do fazer artístico dos
o fazer do literato ao fazer do ourives, este escritores de sua época. Nos poemas fica nítido
compara o seu fazer a um voo, que, embora que o fazer literário, apesar de esmerado, forte,
solitário, não pode deixar de ser feito, pois representativo, não encontra ressonância na
produzirá um novo ser que não é mais humano, sociedade, sendo que a glória só é possível fora
mas uma águia “de luz”. Essa águia branqueia das terras maranhenses, ou em uma outra
ao contato com o sol e consegue ter suas dimensão, que é o Céu. Em poucos momentos
habilidades melhoradas com a acuidade visual da história do Maranhão se observou tanta
para produzir poemas que indiquem suas preocupação em fazer cultura, incluindo a
revoltas supremas. Assim, é o fazer do poeta, organização de diversos jornais e eventos, além
aquele que consegue enxergar aquilo que os da publicação de diversas obras. Contudo, o fato
outros não enxergam, que consegue produzir desses intelectuais dessa época não terem
um mundo ideal. conseguido projeção nacional, outorgou-lhes
Outros poemas do livro tratam sobre essa um estigma de literatura decadente,
mesma temática e, da mesma forma, exaltam o subliteratura ou mesmo literatura menor.
fazer artístico, como em Deixando a argila, do Dos grupos maranhense e fluminense que
qual destaco um trecho: vão fundar o cânone nacional naquele
Dominarás o Céu! Vamos, alma de artista!
momento, conforme Corrêa (1993), São Luís se
Que, em te vendo passar, todo o cortejo tornava a esclerose passadista, enquanto o Rio
irrompa de Janeiro adquiria o caráter da experiência de
De Astros a te seguir... e o Éter todo se vista renovação. Martins (2006, p. 123) descreve o
De amplas Ressurreições, de Aleluias e imaginário daquele grupo que queria produzir
Pompa!... frutos selvagens, mas só corporificava uma
Que a Lua, ao te avisar, sob os teus pés se babilônia de exílio:
rompa!
- vencendo todo o Além, só de um golpe de Rachaduras Solarescas. Desconforto. Saudades.
vista, Distância incômoda em relação a um passado
Toma um bloco de Céu... dele faze um prefigurado pelos Novos Atenienses como
trompa... singular, glorioso, polissêmico e semiofórico.
...Que da terra ninguém a teus Triunfos Reconhecimento melancólico de inferioridade
assista! […] (CARVALHO, 1902, não intelectual num confronto com os integrantes
paginado). das gerações antecedentes, seus referenciais
onipresentes. Imagens demarcadoras das
Sobre esse mesmo fazer literário, destaco responsabilidades desses epígonos neo-
trecho do poema Poeta: atenienses em vista da predisposição acalentada
de dar cabo a um movimento de renascimento
Sobre o largo portal do castelo onde mora
cultural do Maranhão e remontar à continuidade
Meu grande coração de escritor insubmisso
essencial inaugurada pelo Grupo Maranhense,
Inundada na luz de um resplendor da aurora que, como pensavam esses letrados, teria sido
Há uma lira de Rei feita em ouro maciço. […] atrofiada em sua trajetória pela emergência de
(CARVALHO, 1902, não paginado). vigoroso processo de decadência material,
O sucesso dos artistas em todos os poemas moral e intelectual, sintomático na vida
está no campo do imaginado, no Céu, nos maranhense, fragilizando tanto o exercício da
Astros, na Lua, no Além, no Sol, sendo que a hegemonia, conforme manejado historicamente
por essa elite dominante, quanto a visão de
terra, grafada em minúscula, não por acaso, é
mundo que lhe era correlata.
diminuída em relação aos outros elementos, não
conseguindo ver/entender seu sucesso. No O sonho ou a estratégia de consagração
último poema mostrado, a superioridade do traçada para se tornarem continuadores de um
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 95

epigonismo da Atenas Brasileira produziu um Na árida terra que o calor invade,


efeito inverso. A obra por eles produzida A única flor é o cactus da Saudade
endereçava-se ao cumprimento das exigências Que desabrocha lânguida e sem pompa!
que lhes eram contemporâneas, e não ao reviver (CARVALHO, 1902, não paginado).
de um passado impossível de ser reconstruído O eu-lírico se sente definhando, murchando,
(MARTINS, 2006). secando, caindo e, para isso, usa imagens da
Conforme Cardoso (2013), os intelectuais natureza: chuva, orvalho, ar, céu, água, terra,
maranhenses tinham um ressentimento que árvores, inverno, calor, flor e cactos. Essas
assumia o contorno de uma exclusão, ainda imagens simbolizam um deserto onde nada
mais em uma terra onde nada acontecia de brota e tudo morre. A única flor é um cactus,
expressivo, mas que tinha um passado de uma planta forte que vive com tão pouco e em
Atenas Brasileira. O ponto em comum entre ambientes inóspitos, porém esse cacto é de
esses intelectuais, os quais não representavam Saudade, único sentimento que resiste no
um grupo homogêneo, era o sentimento de tempo. Esse saudosismo também está presente
inferioridade, o ressentimento pelo não no poema De longe, do qual destaco um trecho:
reconhecimento e o desejo da consagração
Já o mesmo não sou o que dantes era!
nacional, o que se pode ver por meio do seu - Raios de Luz surgindo-me defronte,
desconhecimento acerca da história da Dobrei os joelhos e curvei a fronte
literatura, mesmo sendo ilustres no seu tempo. Abandonando o andrajo da Quimera. […]
Sobre isso, a pesquisadora conclui: E eis me de novo crocitar sem calma
Esse passado da Atenas Brasileira, Com as Saudades do Céu que tenho n’alma
ressignificado de diferentes formas e com E estas Mágoas nostálgicas de Exílio!
diferentes objetivos ao longo de anos, foi (CARVALHO, 1902, não paginado).
reivindicado por muitos literatos daquela O processo de mudança já é constatado no
época, que viviam de um passado inventado, primeiro verso, assim como uma sensação de
uma vez que a condição de produção impotência e desistência perante os obstáculos.
intelectual no Maranhão, de fato, nunca fora
Há ainda um trecho em que o eu-lírico diz que
favorável, mesmo nos tempos ditos áureos da
Atenas. Isso pode ser observado pela precisa de Auxílio, restando apenas Saudades e
migração em massa dos escritores Mágoas do que está longe. Outras produções
maranhenses que se destacaram no cenário trazem esse mesmo tópico, como Ante uma
nacional. Enfim, se o título de Atenas foi uma ossada em ruínas:
construção, o título de novo ateniense não
Aquela ossada que ali jaz, aquela
passava de uma utopia, ou melhor, uma
Montanha de ossos, frios, regelados,
estratégia de autoafirmação. (CARDOSO,
Foi, quem sabe? Talvez de alguma bela
2013, p. 168-169).
Ou de algum dos antigos potentados?
Aliás, uma tônica do livro como um todo é Quem sabe? ...e, no entretanto, abandonada,
mostrar sempre o hoje muito inferior ao ontem. Pernas, braços e mãos, pés e a amarela
O hoje é muito ruim, mas há certa esperança de Dentadura no chão restam poeirados,
que o futuro poderá sempre melhorar. Em suma, Restam caídos! Que medonha tela!
- Um pronunciado riso de ironia
quase todos os textos veem o presente de A esse valor efêmero e instantâneo
maneira pessimista, assim como há textos em Que a gente, em vida, empresta ao mundo e a
que esta é a própria temática, como o poema tudo
Hoje: Como que sai daquela ossada fria,
Do meu peito o pomar, antes risonho, Dos dentes da caverna, e de entre o crânio,
Hoje é sem chuva e até de orvalho enxuto, Daquele crânio eternamente mudo!
O ar vive seco e o céu vive tristonho, (CARVALHO, 1902, não paginado).
Sem água o espaço e a terra sem dar fruto. Muito parecido com Ante um castelo em
O horror da morte a perpassar escuto ruínas, este é um dos poucos textos não
Por sobre tudo num pavor medonho! construídos em forma de soneto, do qual
Té os galhos, sem cor, estão de luto
Das carcomidas árvores do Sonho!
destaco um excerto:
- Por toda aquela natureza em mágoa Ei-lo, o paço soberbo de outras eras,
Tudo sinto morrer à míngua d’água o sublime solar de pedrarias,
Sem que o inverno de céu jamais irrompa... de um antigo senhor [...]
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 96

Atenas Brasileira, como produto do sistema


Ali outrora a castelã, o encanto agroexportador, coincidia com a primeira geração
do antigo titular, arfando o peito literária ou idade de ouro da economia
ao coração fiel, maranhense, ao passo que a terceira geração fazia
de um pajem vagabundo ouvindo o canto,
correspondência com o período de decadência.
saía, à noite, do custoso leito
a ver o menestrel. [...] Logo, a periodização ortodoxa assentada no
E no entretanto agora, que inda resta econômico foi transferida para o campo cultural,
Desse edifício retumbante e belo, alternando ciclos de prosperidade versus
fidalgo e senhoril? decadência.
Poucos restos em meio da floresta A decadência não era apenas do externo,
e a figura somente de um castelo mas o eu-lírico, em vários momentos, também
entre destroços mil (CARVALHO, 1902, não deixava clara a sua decadência interna,
paginado). principalmente psicológica e espiritual, como
Os dois textos falam em ruína, destroços de fica esboçada no poema Dolor, dedicado a TH.
algo que já foi muito luxuoso e importante, mas Machado, do qual são apresentadas estas
desmoronou, ruiu. No primeiro poema, o tom de passagens:
pregação moralizante volta, pois a ruína, tanto Vai-se espalhando de boca em boca
de uma bela quanto de um potentado, é sempre Que sou feliz...
uma ossada, ou seja, a morte. No segundo E eu fecho ouvidos à frase louca
poema é um castelo retumbante, belo, fidalgo e Que a plebe diz!
senhoril, mas que se encontra em destroços. Julgam-me os homens num paraíso,
Como causa ausente está a própria história do N’um céu fugace,
Maranhão, ou o modelo de explicação que Só porque notam que existe o Riso
Na minha face!
tornou predominante: um presente decadente a
Porque te assentas nas bases frias
partir de um passado glorioso. Não foi à toa que, Em que te pões?
na criação da agremiação Oficina dos Novos, os Mundo inconstante, porque te guias
agremiados foram denominados de Operários Por impressões?[…]
da Saudade. A internalização desse modelo Dentro de um riso, quantas mil cruzes
explicativo que vem da economia encontra-se Guardam-se às vezes
no inconsciente político do texto de Carvalho. Quantas venturas, em vez de luzes
Conforme Almeida (1983), algumas Destilam fezes?
interpretações sobre a economia maranhense – […]
Gaioso, Abranches, Paula Ribeiro, Viveiros, Doe-me, deveras, com a vida morta
Sem coração,
Berredo, etc. – se tornaram sacralizadas na
Andar com a alma de porta em porta
historiografia, impedindo a crítica. Para essa Pedindo pão! [...] (CARVALHO, 1902, não
interpretação referendada por diversos autores, paginado).
a criação da Companhia Geral do Comércio do
Grão-Pará e Maranhão, em 1756, impulsionou Nesse poema, o eu-lírico mostra a sua dor,
as exportações de algodão e arroz, iniciando a mesmo que esboçando um sorriso externamente
fase de prosperidade da lavoura, assim como o (aparência), e aponta que o exterior nem sempre
seu fim, em 1778, levando a uma época de coincide com o interior. Acontece a morte
decadência no início do século XIX. Estudos a psicológica do eu-lírico. Para o eu-lírico, o
partir do final do século XX, porém, discutem futuro é a morte física, lugar que não acaba em
essa interpretação, colocando em debate esse si, mas que o leva para uma vida em que, enfim,
modelo explicativo. gozará de plenitude, glórias e fama, como
Corrêa (1993) afirma que o Maranhão nunca mostra o poema que tem um nome sugestivo –
se configurou como grande exportador para a A mim mesmo:
Europa, destacando-se apenas como mercado Quando morrer o derradeiro arrojo
fornecedor alternativo quando os fornecedores Do teu olhar, e a derradeira chama
efetivos estavam impossibilitados de fazê-lo. Do teu peito apagar-se... e tu, de rojo,
Faria (2001) constata que a vida econômica da Tornares-te um cadáver sobre a cama;
província do Maranhão não estava em involução Quando longe das glórias e da fama,
no início do século XX, constituindo-se numa Morreres sucumbido pelo Nojo;
Quando esse corpo vil de barro e lama
equação pronta em termos historiográficos. A
Cair, enfim, de tumulto no bojo;
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 97

Carvalho é um exemplo categórico de como


Tu’alma, então, voará, num doce arranco, vivia o literato no Maranhão. Os que
No éter sumida como cirros branco alcançavam reconhecimento nacional eram os
Sob os raios de um Sol mais amplo e digno, que migravam para o Rio de Janeiro; os que
E voltará ao céu, num Sonho Mago,
ficavam na terra tinham que procurar apoio
Para habitar a estrada de S. Thiago
Sob a forma simbólica de um Signo! político ou cargos públicos para se manterem,
(CARVALHO, 1902, não paginado). pois depender somente da pena era impossível;
os que não tinham padrinhos políticos
O tema da morte é recorrente. Ela é cultuada, precisavam procurar outros meios de sustento,
desejada e homenageada em vários outros como é o caso do nosso autor em apreço, que
poemas como A um coveiro, A um carrasco, tinha uma carreira na magistratura e teve que
Noivas mortas e Tísicas. Estes, só pelo nome, já procurar emprego em vários lugares em busca
indicam o conteúdo, mostrando que o eu-lírico de uma instabilidade financeira.
acredita na morte como passagem. Apesar dessa Essa questão do exílio e de ficar longe da sua
obra ser muito subjetiva e emotiva ao mostrar terra, das suas andanças, foi metaforizado em
os sentimentos do eu-lírico, os dois últimos vários poemas do livro, como em Exílio, que
poemas são simbólicos nesse sentido. compara essa situação a ovelhas desgarradas:
Os poemas Entre outros poetas… (EU) e Eu “Pobre da ovelha que abandona o aprisco/Para em
parecem um autorretrato. O primeiro poema meio viver de um clima estranho!” (CARVALHO,
compara a função do poeta à função do soldado que 1902, não paginado); ou na segunda parte de
vai à guerra, que tem a bandeira do Amor, mas que Chegando, em que ele começa dizendo que:
acaba cravejado de balas. Por seu turno, o último “D’onde venho não sei... Venho de faina em faina/
poema é dedicado Aos que me não compreendem, Misterioso a correr desolado e tristonho...”.
fazendo com que o eu-lírico trace uma explicação Essa tônica não estava presente somente no
sobre a sua existência e sua obra: período em que Carvalho vivia, mas aconteceu
Vamos, pobre infeliz! Muda em azas teus durante toda a história do Maranhão, tanto que
braços! a historiografia chama a segunda geração
Desfere o voo teu, num anseio profundo, maranhense de Grupo dos Emigrados. A
Para o local que houver mais alto nos espaços, verdade é que em nenhum período o Maranhão
Para o trecho do céu mais distante do mundo! deixou de produzir artistas geniais, assim como
E uma vez lá chegando, errante e vagabundo, em pouquíssimos momentos esses artistas
Desta vida cruel liberta-te dos laços foram incentivados ou patrocinados pelos
E atira-te, a cantar, do precipício ao fundo...
Quero ver-te cair dividido em pedaços!
poderes públicos. Alguns, porém, tinham redes
Morre como um herói! Deixa que o Meio de sociabilidades que lhes permitiam transitar
brama! melhor no campo e adquiriam consagração, o
Fecha o ouvido ao Elogio e os olhos fecha à que os levou a deixar seu nome escrito no
Fama cânone. Outros, por outro lado, ficaram
E despreza da Inveja as pérfidas alfombras... esquecidos e obscurecidos na “triste e
E morre, coração! Pois, ao morrer, enquanto caliginosa noite” de Antônio Lobo (2008, p.
Tens Injustiças de uns, tens bênçãos de outro 34), a qual se perpetua até os dias atuais.
tanto... O sofrimento do eu-lírico é tão latente que ele
- Morrerás como o Sol – entre Luzes e Sombras! se compara a Jesus e a todo o seu calvário na cruz,
(CARVALHO, 1902, não paginado).
ratificando o caráter religioso (cristão) da obra:
Conforme Cândido (2006, p. 21), a mimese Preferiram a mim que se soltasse
é sempre uma forma de poiesis, pois a produção Barrabaz o facínora maldito,
da literatura se processa por meio de figurações E, abrindo chagas em meu corpo aflito,
estilizadas e de uma certa visão inicialmente Prenderam-me e cuspiram-me na face.
coletiva das coisas. Essa visão traz em si um Sem Madalena haver que me chorasse,
elemento de espontaneidade, ou seja, o artista se Dei sete quedas sem soltar um grito!
coloca junto com as aspirações e valores de seu - Mandaram que, em colunas de granito,
tempo, como podemos perceber pela obra de Um verdugo meus ombros amarrasse...
Inácio Xavier de Carvalho, na qual o escritor Morri na cruz... sem que, contra os maus tratos,
fala de si, do seu fazer artístico e do contexto em Ninguém lavasse as mãos como Pilatos,
Sem ninguém recolher meus ais supremos...
que estava inserido. E eu vi apodrecer meu corpo inteiro
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 98

Sem que viesse arrancar-me do madeiro A ver de entre a rebuscada areia


A caridosa mão de um Nicodemos! Qualquer coisa de estranho aparecia…
(CARVALHO, 1902, não paginado). Eis senão quando, num pasmado assomo,
Um dos escavadores, não sei como,
Esse mesmo tom religioso se textualiza no Do chão um corpo luminosos arranca!
poema Chegando..., maior composição da obra, E ergue, entre as mãos, a palpitar de
dividida em quatro partes que correspondem a assombros,
quatro sonetos. Os sonetos descrevem que tipo O teu beijo de Mãe, entre os escombros,
de missa o eu-lírico vai rezar, e este se diz um Transfigurado numa estatua branca!
frade infernal que, com seu sermão, faz “a (CARVALHO, 1902, não paginado).
sociedade atual estremece[r] nas bases”. O eu-lírico compara as ruínas de Pompeia à
Destaco a primeira parte dessa composição: sua alma atribulada e fria. Pompeia foi uma
Venho mesmo não sei de que Degredo cidade romana, soterrada pela erupção do
Improvisando altares no caminho, vulcão Vesúvio em 79 d.C, transformando-se
A rezar, de olhos fitos no arvoredo, em um vasto sítio arqueológico. Mesmo
Missas Negras sem hóstias e sem vinho Pompeia sendo a cidade da morte e da
Lá nos conventos monacais de Medo transformação das vítimas do Vesúvio em
Tomei de frade este burel de linho...
pedra, uma cidade em cataclisma, o beijo da
E, da Vida no estúpido rochedo,
Eis me na encosta a caminhar sozinho.
mãe não consegue destruir, deixando
Poetas de todo o Mundo, vinde ouvir-me! petrificada, imortalizada essa figura da mãe que
- Que um Monge Bom, com os olhos rasos é uma estátua branca, ao contrário das cinzas e
d’água das missas negras de Carvalho. O poema esboça
Quase às portas da Morte, porém firme, uma contradição, um misto de destruição e
Vai produzir, numa oração sentida, preservação, assim como a temática da mãe em
Desse intangível púlpito da Mágoa, meio à temática do caos. São contradições e
Todo um sermão de Lágrimas à Vida! […] descontinuidades que aparecem na superfície do
(CARVALHO, 1902, não paginado). texto, resultado das estratégias de harmonização
O poema explica o título do livro logo no seu ou da contenção de um texto que não quer se
início – “Missas negras sem hóstias e sem mostrar de todo, mas como objeto simbólico,
vinho” - apenas com o grande sermão que o alcançando a história.
autor aumenta a cada poema do livro. O tom Sob a benção do simbolismo e com as
religioso, juntamente com o pessimismo, a penitências da decadência material e social, Inácio
morte, o medo, a dor e as críticas à sociedade, Xavier de Carvalho celebra Missas Negras, cujo
são facetas de um livro com múltiplos enfoques sermão está em forma de versos. A predileção por
e muitas interpretações. A eloquência de um sonetos, o gênero mais lírico por excelência,
sermão que queima, estremece e faz talvez fosse para mascarar o conteúdo, pois, como
desmoronar o mundo assume o seu papel de uma pregação, seus poemas exercem sua função
maldito a partir do seu pessimismo em relação didática: mostrar as problemáticas daquela
à humanidade e pelas críticas que dispara contra sociedade, denunciando, criticando, absolvendo,
a sociedade. As palavras Degredo, Medo, Vida, problematizando, fazendo refletir e conhecer. Um
Mundo, Morte, Mágoa, Lágrimas, Extermínio, sacerdote das letras…
Sonho, Dor e outras, com maiúsculas Referências
alegorizantes, característica dos poemas
simbolistas, estão em muitos poemas da obra, ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. A
aumentando o seu valor semântico. ideologia da decadência: leitura antropológica
No entanto, há entre todos os poemas do a uma história da agricultura do Maranhão. São
livro um que traz um tom diferente, não mais de Luís, MA: IPES, 1983.
pessimismo, mas de esperança e ternura,
intitulado Mãe, transcrito abaixo: CÂNDIDO, Antônio. De cortiço a cortiço.
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 30, p.
Por entre as ruinarias de Pompeia
111-129, jun. 1991.
Que eu trago n’alma atribulada e fria
Alguns velhos arqueólogos da Ideia, CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade.
Foram fazer escavações um dia… São Paulo, SP: Ouro Sobre Azul, 2006.
E puseram-se todos de alcateia
Cavando o chão da triste ruinaria,
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 99

CARDOSO, Patricia Raquel Lobato Durans.


Lobo X Nascimento na “Nova Atenas”:
literatura, história e polêmicas dos intelectuais
maranhenses na Primeira República. 2013.
177f. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Universidade Federal do Maranhão,
São Luís, 2013.
CARNEIRO, Alberico. Os novos atenienses: I.
Xavier de Carvalho e Maranhão Sobrinho.
Jornal Pequeno Guesa Errante, São Luís, ano
II, n. 56, 12 jul. 2003. Suplemento Cultural e
Literário, p. 19-23.
CARVALHO, Antônio dos Reis. A literatura
maranhense. In: Biblioteca Internacional de
Obras Célebres. Rio de Janeiro, RJ: Sociedade
Internacional, 1912. v. 20.
CARVALHO, Inácio Xavier de. Missas
negras. Manaus, AM: Livraria Universal, 1902.
CORRÊA, Rossini. Formação social do
Maranhão: o presente de uma arqueologia. São
Luís, MA: SIOGE, 1993.
FARIA, Regina Helena Martins de. A
transformação de trabalho nos trópicos:
propostas e realizações. 2001. 252f. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2001.
JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a
narrativa como ato socialmente simbólico. São
Paulo, SP: Ática, 1992.
LOBO, Antonio. Os novos atenienses. 3. ed.
São Luís, MA: AML/EDUEMA, 2008.
MARTINS, Manoel. Operários da saudade:
os novos atenienses e a invenção do Maranhão.
São Luís, MA: EDUFMA, 2006.
MEIRELES, Mário Martins; FERREIRA,
Arnaldo de Jesus; FILHO, Domingos Vieira.
Antologia da Academia Maranhense de
Letras: 1908-1958. São Luís, MA: Academia
Maranhense de Letras, 1958.
MURICY, Andrade. Panorama do movimento
simbolista brasileiro. Brasília, DF: Conselho
Federal de Cultura e Instituto Nacional do
Livro, 1973. v. 1.
RAMOS, Clóvis. Inácio Xavier de Carvalho
ou revoltas supremas: subsídios para o estudo
do simbolismo no Maranhão. São Luís, MA: [s.
n.], 1986.
********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA


FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ
Gabriela de Santana Oliveira39

RESUMO: Embora pareça tímida, quando se Ferreira Gullar, entre outros tantos. Não
pensa em uma proporção numérica frente aos podemos esquecer, porém, que em terras
homens, a literatura de autoria feminina desde o maranhenses as mulheres também escreveram,
século XIX se fez presente em terras e escreveram muito. Algumas pesquisas
maranhenses. Vencendo muitas barreiras, acadêmicas recentes têm colaborado no sentido
algumas mulheres encontraram lugar para suas de dar mais visibilidade a essa produção. Com
vozes através das letras e podem, portanto, ser esse trabalho, que tem como objeto de estudo a
tidas como pioneiras, pois abriram um espaço lírica de três maranhenses pioneiras em nossa
antes interdito à mulher. Perspectivando esse literatura, pretendemos também contribuir
cenário, três maranhenses merecem destaque: nesse sentido, uma vez que voltaremos nosso
Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Laura olhar para uma matéria ainda pouco
Rosa (1884-1976) e Mariana Luz (1871-1960). investigada, a saber: a poesia de Maria Firmina
Laura Rosa e Mariana Luz foram as duas dos Reis, de Laura Rosa e de Mariana Luz.
primeiras mulheres a entrar na Academia O surgimento da obra dessas autoras se dá no
Maranhense de Letras. Maria Firmina dos Reis século XIX, época em que São Luís era dominada
não tem assento na AML, mas já colocou culturalmente por “latinistas e helenistas de valor,
definitivamente seu nome na história com seu mas a situação do ensino era precária, como aliás
romance – Úrsula – considerado precursor na em todo o Império”, nesse contexto “as
luta contra a escravidão. Essas autoras têm muito oportunidades de estudo para as moças eram
em comum. Mulheres negras, pobres, mínimas”. (TELLES, 2004, p. 343). Nesse período,
professoras, solteiras, que vivendo no interior do o que se esperava de uma mulher é que vivesse
Estado, valeram-se da força do intelecto e do restrita ao espaço doméstico, a esfera pública não
espírito para conquistar seu espaço na sociedade. lhe cabia. Também não cabia à menina receber uma
O objetivo desse trabalho é investigar a produção educação formal. Dentre tantos interditos à
lírica dessas autoras, destacando suas liberdade, à autonomia, aos direitos civis, a
peculiaridades, semelhanças, diferenças e, em educação também era negada às mulheres, situação
especial, analisando como os elementos naturais comum mesmo entre as famílias burguesas como
são representados por cada uma. demonstra Miridan Falei (2004):

Palavras-chave: Poesia; Natureza; Maria Muitas filhas de famílias poderosas


nasceram, cresceram, casaram e, em geral,
Firmina; Laura Rosa; Mariana Luz. morreram nas fazendas de gado. Não
estudaram as primeiras letras nas escolas
1 Introdução
particulares dirigidas por padres e não foram
O Maranhão é reconhecido nacionalmente enviadas a São Luís para o curso médio, nem
como um celeiro de grandes nomes das Letras: a Recife ou Bahia, como ocorria com os
Gonçalves Dias, Odorico Mendes, rapazes de sua categoria social. Raramente
Sousândrade, os irmãos Artur de Azevedo e aprenderam a ler e, quando o fizeram, foi com
professores particulares, contratados pelos
Aluísio Azedo, Coelho Neto, Josué Montello,

39
Mestre em Estudos teóricos e críticos em Literatura pela
UFMA (gabrielasantana1611@gmail.com)
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 101

pais para ministrar aulas em casa. Muitas Maranhense de Letras, através de sua editora,
apenas conheceram as primeiras letras e publicou Poesias reunidas de Laura Rosa, obra
aprenderam a assinar o nome. Enquanto seus organizada por Diomar das Graças Motta.
irmãos e primos do sexo masculino liam Mariana Gonçalves da Luz, em 1949,
Cícero, em latim, ou Virgílio, recebiam
tornou-se a segunda mulher a adentrar na
noções de grego e do pensamento de Platão e
Aristóteles, aprendiam ciências naturais, Academia Maranhense de Letras, onde é
filosofia, geografia e francês, elas fundadora da Cadeira 32. A escritora de
aprendiam a arte de bordar em branco, o Itapecuru Mirim produziu textos dramáticos
crochê, o matiz, a costura e a música. (p. (perdidos), fundou um Teatro e uma companhia
210; destaques nossos). teatral em sua cidade natal, foi cronista e poeta.
É autora do livro de poemas Murmúrios. O
Contrariando as expectativas sociais,
pequeno volume Murmúrios foi publicado após
algumas mulheres adquiriram uma instrução
o falecimento da poeta, em 1960, em uma
mais consolidada, por vezes à custa do
pequena tiragem, a título de homenagem
autodidatismo, e se tornaram professoras e
póstuma. Murmúrios foi reeditado trinta anos
escritoras. Este é o caso das autoras aqui
depois, novamente em uma tiragem reduzida,
estudadas: Maria Firmina dos Reis (1822-
rapidamente esgotada. A partir de 2014, com a
1917), Laura Rosa (1884-1976) e Mariana Luz
publicação da pesquisa de Jucey Santana,
(1871-1960). Três maranhenses negras, pobres,
Marianna Luz: vida obra e coisas de Itapecuru-
mulheres solteiras que exerceram o magistério
Mirim, têm ganhado força os esforços de resgate
e se fizeram importantes educadoras de várias
de Mariana. Em 2021, com o apoio da
gerações de crianças nas cidades do interior do
Academia Maranhense de Letras, foi publicada
Estado onde moravam, respectivamente:
a terceira edição de Murmúrios41.
Guimarães, Caxias e Itapecuru Mirim.
Conforme mencionado anteriormente, nosso
Além da atuação docente, Maria Firmina dos
propósito com este estudo é colaborar com as
Reis, Laura Rosa e Mariana Luz dedicaram seu
pesquisas em torno da obra lírica dessas autoras.
tempo, e porque não dizer sua vida, à literatura.
Instiga-nos compreender as semelhanças e as
Elas participaram ativamente da vida intelectual
diferenças entre tais produções. Como o
maranhense colaborando na imprensa,
formato de um artigo acadêmico não comporta
publicando livros, participando de antologias,
um estudo aprofundado sobre todo esse
envolvendo-se com grupos de literatos,
material, optamos por fazer um recorte
proferindo conferências.
temático, ou seja, estabelecer um cotejo entre a
Na esfera literária, Maria Firmina dos Reis
forma como os elementos da natureza são
é, hoje, uma autora nacionalmente reconhecida
representados por cada uma delas.
por Úrsula, considerado o primeiro romance
Presente na poesia de todos os tempos, a
abolicionista de língua portuguesa. Os contos
natureza ora apresenta-se mero cenário, lugar
“A escrava” e “Gupeva” também já contam com
fictício ou real, nesses casos, sempre necessário
uma considerável fortuna crítica. O mesmo não
para situar os acontecimentos, ora eleva-se ao
podemos dizer de Cantos à beira-mar, livro que
status de imagem poética, ou seja, atravessada pela
reúne os poemas de Firmina40.
imaginação do poeta, ganha múltiplos significados.
Laura Rosa, por sua vez, é uma autora que
Bosques, florestas, fontes, flores, diferentes
ainda hoje habita no ostracismo. Muito pouco se
espécies de árvores, os mais variados animais, ao
sabe da escritora que morou em Caxias, adotou
povoarem a literatura, perdem a clareza da
o pseudônimo de Violeta do Campo e foi a
descrição e ganham intensidade expressiva.
primeira mulher a ocupar um lugar na
O professor, ensaísta e poeta francês Michel
Academia Maranhense de Letras, onde fundou
Collot tem se ocupado da investigação poética
a Cadeira 26. Sua posse foi em 1943. Laura
em torno da paisagem. Collot (2015, p. 18)
Rosa é reconhecida como professora, jornalista,
distingue lugar e paisagem, sendo o primeiro
contista, cronista, conferencista, mas também
definido por uma delimitação “topográfica e
escreveu poesia. Em 2016, a Academia

40 Em 1871, o volume Cantos à beira-mar chega ao editora da Academia Ludovicense de Letras lança a
público em São Luís, impresso pela Typographia do Paiz. terceira edição da obra.
41 Trata-se do livro Mariana Luz: Murmúrios e outros
Mais de um século depois, em 1976, José Nascimento
Morais Filho publica em fac-símile a segunda edição do poemas, publicado em 2021 e organizado por mim.
livro, no Rio de Janeiro pela editora Granada. Em 2017, a
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 102

cultural”, e o segundo mais ligado a “uma [...]


experiência individual, sensorial e suscetível de O Bacanga caudal, — o Anil ameno!
uma elaboração estética singular.” Para o O curso de ambos tu, Senhora — domas,
ensaísta francês: [...]
Campeia indolente no leito gentil,
A paisagem aparece, assim, como uma Cercada das vagas amenas, donosas;
manifestação exemplar da Das vagas macias, quebradas, cheirosas
multidimensionalidade dos fenômenos Do salso Bacanga, do fértil Anil.
humanos e sociais, da interdependência do [...]
tempo e do espaço e da interação da natureza e O grito lá da serra do Ipiranga,
da cultura, do econômico e do simbólico, do O grito todo amor, fraternidade,
indivíduo e da sociedade. A paisagem nos Ecoou no teu seio! a liberdade,
fornece um modelo para pensar a complexidade Pairou sobre o Anil, sobre o Bacanga!
de uma realidade que convida a articular os Eis-te bela, coroada, e sedutora,
aportes das diferentes ciências do homem e da Pomposa, e descuidada, sobranceira;
sociedade. (COLLOT, 2013, p.15). Em teu divã gentil, gentil, sultana,
Filha das vagas, e do mar senhora, (REIS,
Na esteira do pensamento de Collot,
2017, p. 30-1).
investigaremos os elementos naturais presentes
na lírica das três maranhenses como potências É interessante perceber como, nesse poema,
de subjetividades e significações. Do jogo o Maranhão é colocado no feminino, ou seja, as
engendrado pelo poeta entre o sentimento da denominações atribuídas ao estado retratam-no
natureza e as palavras, violência, hostilidade, ora como uma donzela, ora como uma senhora
aridez, delicadeza, pureza, sensualidade, e por fim como uma rainha e sultana. A beleza
patriotismo, aconchego, proteção, religiosidade, da mulher é transferida à paisagem, que se
tudo pode emergir no poema. revela ornada e perfumada tal qual uma
Desde o Romantismo, assevera Collot princesa. No texto, de tom patriótico, o eu
(2013, p. 15), aprendemos que por meio da poético declara seu amor a terra natal e celebra
paisagem “podem ser investidos significações e a independência do Brasil, não mais escravo de
valores tanto coletivos como individuais, todo Portugal.
um imaginário ao qual a ficção e a poesia Em outra quadra desse mesmo texto
podem dar sua plena expressão.” Comecemos, encontramos outro elemento natural bastante
pois, por Firmina e seus versos românticos. presente nos poemas da autora, a ponto de nomear
seu livro, a saber: a beira-mar. A sonoridade bem
2 Sob o encanto das praias nuas – os cantos marcada desses versos decassílabos, heroicos nos
de Firmina três primeiros versos com rima externa ABBA,
Ao chegar ao território brasileiro, a dança como as ondas do mar:
revolução romântica apregoava como principal És ninfa sobre as águas balouçada,
mandamento: abandonem o “velho manto Descuidosa brincando em salsa praia;
grego”, uma vez que ele só serve para carregar No pego mergulhada a nívea saia,
os “antigos e safados ornamentos, de que todos A nobre fronte de festões ornada. (REIS,
se servem, a ninguém honram!”. 2017, p. 31).
(MAGALHÃES, 1999, p. 43). Não mais Febo, A praia é um elemento importante da escrita
Musas do Hélicon ou virgens de Homero. Nada de Firmina, mas não se trata aqui de uma praia
mais de pastores da Arcádia. O que o poeta idealizada, de uma abstração, trata-se de uma
romântico deve perseguir é a “cor local”. A
praia em particular, estamos falando da orla de
natureza das Américas em seu esplendor. Não
Cumã, conforme veremos nos poemas
mais o Rio Tejo, não mais o rouxinol, é a vez do analisados a seguir. Cumã é uma localidade do
sabiá. Firmina aprendeu bem essa lição. município de Guimarães, onde a autora viveu
Entre os elementos naturais eleitos pela durante a maior parte da vida. Cumã é também
poeta, destacamos a terra natal com os verdores o nome dado à baía que banha a região. Nesse
de suas matas e as águas de seus rios como
ponto, vale ressaltar a oposição que o
observamos nos versos do poema “Minha terra” individualismo romântico faz aos neoclássicos.
dedicado a Sotero dos Reis: Estes tendem ao universal, ao absoluto, a lírica
Maranhão! Açucena entre verdores, romântica, por sua vez, constrói-se como
Gentil filha do mar — meiga donzela, expressão marcadamente pessoal. A esse
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 103

respeito, Antonio Candido (2000, p. 28) diz: Michel Collot (2015, p. 21) lembra que a
Enquanto a natureza refinada do
paisagem da praia remete a “três faixas
Neoclassicismo espelha na sua clara superpostas, segundo os três níveis da areia, do
ordenação a própria verdade [...] para o mar e do céu.” Essas três faixas estão
romântico ela é sobretudo uma fonte de representadas no poema pela “branca areia”,
mistério, uma realidade inacessível, contra a pela “onda enfraquecida” e pelo “vento
qual vem bater inutilmente a limitação apaixonado.” Firmina ainda insere um quarto
humana. Ele a procura, então, nos aspectos elemento que desequilibra a horizontalidade: a
mais desordenados, que, negando a ordem rocha. As formações rochosas existentes nessa
natural, permitem uma visão profunda. região, conhecidas como pedras de Itacolomi,
(grifos nossos).
figuram nesse texto e ressurgem em outros.
Acentuando também essa diferença, Alfredo Notemos que o mar é derrotado pela areia e
Bosi (2015, p. 79) afirma que “a natureza vencido pelas rochas. O que ganha relevo é a
romântica é expressiva. Ao contrário da natureza praia que se confunde à disposição anímica do
árcade, decorativa. Ela significa e revela.” Na sujeito (“aqui minha alma expande-se). A beira-
pena do romântico, o mundo natural passa por mar é o lugar onde o sujeito poético está situado.
um processo de individualização, através do qual A praia é um entrelugar, confinada entre o
a natureza funde-se ao estado emocional do continente e o mar, oferece-se como um espaço
indivíduo. “O mundo natural encarna as propício à meditação, onde “a mente vaga em
pressões anímicas” (BOSI, 2015, p. 79). solidões longínquas.”
Esses dois movimentos românticos estão A recorrência do dêitico “aqui” aponta para
presentes na poesia de Firmina, leia-se, sua as três configurações da praia: espaço carregado
tendência de retratar a natureza local e de de magia e encanto propício aos devaneios da
associá-la aos estados da alma. Ainda mais um alma (“o mago encanto destas praias nuas”);
terceiro movimento de ruptura vale ser espaço capaz de acalmar os sofrimentos
mencionado: se por um lado o Neoclassicismo (“menos ardente me goteja o pranto”) e por fim,
valoriza o equilíbrio, o Romantismo exalta os espaço privilegiado ao amor.
sentimentos extremados, o tumulto, o O poema apresenta oito quadras de versos
desespero. Também essa terceira característica decassílabos, estruturadas com dois versos
pode ser verificada na lírica de Firmina como brancos (1 e 3) e dois versos rimados (2 e 4). A
verificaremos nos poemas “Uma tarde em presença do verso branco não compromete a
Cumã” e “Nas praias do Cumã”. musicalidade que é garantida através de outros
recursos como o uso de rimas toantes. O texto
Uma tarde um Cumã
Aqui minha alma expande-se, e de amor apresenta a seguinte divisão: nas quatro
Eu sinto transportado o peito meu; primeiras estrofes encontramos um sujeito
Aqui murmura o vento apaixonado, poético em estado contemplativo tomado pelo
Ali sobre uma rocha o mar gemeu. sentimento amoroso. A afinidade entre o
E sobre a branca areia — mansamente indivíduo e a natureza que aí teve início ganha
A onda enfraquecida exausta morre. novos contornos, ao passo que a segunda
Além, na linha azul dos horizontes, metade do poema adquira um tom mais
Ligeirinho baixel nas águas corre. sensuais. No quinto as divagações do sujeito o
[...] transportam a um “delírio vago”, a paixão e o
A mente vaga em solidões longínquas,
desejo se intensificam. Nas últimas três
Pulsa meu peito, e de paixão se exalta;
Delírio vago, sedutor quebranto, estrofes, o eu poético dirige ao seu amado um
Qual belo íris, meu desejo esmalta. convite para que venha juntar-se a ele “ao som
[...] das vagas.” A concretização do convite
Sentirás ao ruído destas águas, amoroso deve se realizar na praia.
Ao doce suspirar da viração,
Nas praias de Cumã
Quanto é grato o amor aqui jurado,
Solidão
Nas ribas deste mar, — na solidão.
Aqui na solidão minha alma dorme;
Vem comigo gozar um só momento,
Que letargo profundo!... Se no leito,
Tanta beleza a me inspirar poesia!
As horas mortas me revolvo em dores,
Ah! vem provar-me teu singelo amor
Nem ela acorda, nem me alenta o peito.
Ao som das vagas, no cair do dia. (REIS,
No matutino albor a nívea garça
2017, p. 37-8).
Lá vai tão branca doudejando errante;
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 104

E o vento geme merencório — além falam do desequilíbrio dessa antiga harmonia e do


Como chorosa, abandonada amante. sofrimento que daí decorre. Vejamos como isso é
E lá se arqueia em ondulação fagueira tecido pela autora no poema “Itaculumim”,
O brando leque do gentil palmar; transcrito parcialmente:
E lá nas ribas pedregosas, ermas,
De noite — a onda vem de dor chorar. As praias descanto,
[...] (REIS, 2017, p. 127). Que tem tanto encanto –
— que ameiga meu pranto
Neste poema, que já traz como subtítulo a Do belo Cumã!
palavra “Solidão”, percebemos o que Antonio A lua prateia
Candido tão bem define como “vago d’alma”. Seus combros d’areia,
De larga repercussão no espírito romântico, o A vaga passeia
sentimento de uma “melancolia serena e Na riba louçã.
profunda” impregna “a poesia do estado d’alma, Fronteiras a elas
dos vagos movimentos interiores que convidam Se ostentam tão belas
ao devaneio.” (CANDIDO, 2000, p. 271). Se no Desertas singelas
As praias de além;
poema anterior a solidão se insinuava, aqui ela
Há nelas penedos,
se impõe. O isolamento e o enlanguescimento Enormes rochedos,
do sujeito ressoam também no mundo natural, Que escondem segredos...
como é possível perceber nas “horas mortas”, Eu canto-as também.
no “vento [que] geme merencório” e na “onda” Eu creio que irmã
que “chora”. A misteriosa fusão entre o sujeito Deus fez o Cumã
e a natureza aqui é radical. Da praia louçã
Outro dado é digno de nota a respeito dos Do Itaculumim.
poemas até aqui apresentados. Se nós A vaga anseia
procuramos demonstrar os aspectos da lírica Além — e vagueia
Que nestas ondeia,
firminiana que estão em sintonia com a estética
Eu creio por mim.
que vigorava naquele momento histórico, é Não vedes as praias fronteiras?
preciso dizer que algo a diferencia, a saber: sua [..]
poesia é solar. O mistério que cerca a escuridão O índio em igaras — vencia esse espaço,
noturna seduziu os românticos em sua escrita Juntava-se em turbas — amigos queridos;
que recusava a racionalidade neoclássica. O Após os folgares, as breves canções,
acento solar de Firmina é perceptível de formas, Valente p’ra guerra marchavam reunidos.
por exemplo, através das escolhas lexicais: Mas, foram esses tempos de paz, e sossego
nívea, albor, branca, garças, etc. A preferência E tempos vieram de guerra, e de morte..
pela praia com a brancura de sua areia é outra [...]
Os íncolas tristes, — a raça tupi
evidência. Interessante notar que mesmo nesse
Deixando suas tabas, fugindo lá vão,
último texto de tom mais melancólico, o cenário Que mais do que a morte no peito lhe custa,
não é noturno, quiçá crepuscular. A fronte curvar-se-lhes à vil servidão.
Dentro do projeto romântico no Brasil, O índio prefere no campo da lide
empreitada de afirmação da nacionalidade, o Briosos guerreiros a vida acabar:
indianismo foi uma tendência que se propôs a Ver mortos seus filhos, seus lares extintos
retratar a cor local e que teve em Gonçalves Do que a liberdade deixar de gozar.
Dias seu maior representante. O grande vate Sua alma que é livre não pode vergar-se,
maranhense tematizou com maestria a Por isso seus lares aí deixam sem dor;
reafirmação da figura emblemática do indígena, E vão-se prudentes — altivos — jurando
Que a fronte não curvam da pátria ao
em poemas que ressaltavam a piedade, a
invasor...
bravura e o gesto bélico do guerreiro e herói [...]
verdadeiramente nacional. É possível afirmar Depois, lá bem longe... nas noites de inverno,
que ecoam nos versos firminianos de temática Ouvindo nas matas gemer o trovão,
indianista, o indianismo gonçalvino. Assim, E os ecos saudosos, e os ecos sentidos
perceberemos a nota em defesa dos indígenas Quebrados, chorosos na erma soidão,
contra a invasão dos brancos. [...]
O povo nativo vivia em total e harmoniosa E ermo, e saudoso das ninfas, que amou,
comunhão com a natureza, os poemas indianistas, Das crenças, que teve descanta o pajé;
ao retratarem a usurpação executada pelo europeu, Os outros escutam seu canto choroso
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 105

Que fala das crenças, que vida lhes é. do povo tupi que ao ver-se expulso de suas
Ele começa com voz soluçada: “praias saudosas”, enche-se de valentia ao
“Nas praias do norte nascidos tupi; preferir lutar e morrer a desistir de sua
Existem palácios no mar encantados, liberdade. A narrativa é vertida pelos versos
No leito das águas de Itaculumim.
mais longos do endecassílabo, de acentuação
Ah! quanto é formoso seu vasto recinto,
Oh! quanto são belas as virgens d’ali! variada ao gosto da ação que se desenrola, bem
[...] aos moldes de “I-Juca Pirama”. O sofrimento
O colo das virgens é branco, e aéreo; dessa gente expatriada de seu lugar idílico se
As tranças de ouro rasteiam no chão; estende ao meio natural que também chora, o
O canto é sonoro — tem tal harmonia cenário que era composto a priori por singelas
[...] praias agora dá lugar a “noites de inverno”
Seu corpo mimoso semelha à palmeira, sacodidas por trovões que gemem nas matas.
Que troca co’a brisa seu ledo folgar: A certa altura, tem início o discurso do pajé
[...] que revela funda nostalgia pelo paraíso terrestre
Deixamos a vida nos lares queridos,
perdido: as praias do Norte. Esse lugar se
Vagamos incertos por ínvio sertão.”
Entre suspiros cessa o triste canto; afigura como a paisagem ideal (locus amoenus)
Mais não disse o pajé! ondes as virgens são mais belas e o canto mais
Um silêncio dorido sucedera harmonioso. À beleza e perfeição da natureza
Ao seu canto de dor... corresponde diretamente a felicidade do homem
Ele! tão feliz... ele, ditoso que nela habita, porém, quando tudo isso é
Eu seu doce folgar; perdido o que resta é solidão e um triste vagar
Em palácios dourados repousando, por “ínvio sertão”. A fertilidade e frescor das
Em instantes de amor... praias beijadas pelo mar e pela brisa são
Agora na soidão — agora longe substituídos pela aridez do sertão.
Dessas deusas do mar;
Nas quatro estrofes seguintes, compostas por
Agora errante, triste, e sem destino
Sentia a aguda dor... decassílabos e pentassílabos intercalados, o
Por isso era canto bem sentido narrador lastima o fado do pajé e de sua gente.
Lá por ínvios sertões! Vale notar como nesses quartetos os versos não
Perdera as salças praias, arenosas, rimam, como a demostrar a quebra da harmonia
Perdera o seu amor! e da beleza à qual os indígenas foram
Lastimava seu fado — e se carpia submetidos com a chegada dos europeus. No
Das praias do Cumã. entanto, nessas estrofes sobressai-se somente
E de Itaculumim se recordava uma única rima: o último verso de cada quadra
Com suspiros de dor... finda com o som “or”, rimando “amor” e “dor”,
[...] (REIS, 2017, p. 119-22).
“amor” e “dor.” Temos aí uma espécie de
Afeita a poemas mais longos, Firmina síntese de todo o poema, bem como do destino
constrói esse belo texto de métrica variada e da raça tupi, uma vida plena de amor que se
malabarismo rítmico, permeado de partes transforma em “aguda dor.”
líricas, trechos narrativos e pelo discurso do O poema indianista firminiano delineia a
pajé. Bosi (2015, p. 78) afirma que “o fulcro da comunhão entre o homem nativo e sua terra.
visão romântica do mundo é o sujeito”, porém Vimos nessa amostragem como ao retratar o
notamos aqui um movimento diferente, o centro espaço natural, Firmina não busca apenas
não é mais o sujeito e seus anseios, Firmina reproduzir um cenário, sua natureza é viva, age
empresta sua voz aos índios, a toda uma nação sobre os sentimentos do indivíduo e sofre com
tupi. ele. As praias, com sua beleza selvagem,
Nas três primeiras estrofes, os versos ligeiros ganham contornos psicológicos, e mais, o
da redondilha menor dão o tom de uma suave específico é exaltado em lugar do universal.
balada. O sujeito poético descreve a existência
3 As pérolas pequeninas de Laura Rosa
de duas praias fronteiriças – Cumã e Itaculumim
– e anuncia que elas são o objeto de seu canto. Extraída do poema “Aurora”, a expressão
A paisagem é recortada por elevações que “pérolas pequeninas” é uma boa forma de
escondem segredos. A seguir, tem início um começar a pensar a poética da primeira
longo trecho de caráter mais narrativo que parte maranhense a entrar na Academia Maranhense
de uma pergunta: “Não vedes?”. A narração fala de Letras. Nada de voos elevados, de sofrimento
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 106

desmedidos, de paixões desconcertantes, em (ROSA, 2016, p.14-5)


Laura Rosa tudo é suave, comedido, De uma ingenuidade quase infantil, o texto
harmonioso, mesmo em uma composição cujo narra a estranha relação do sujeito poético com
título é “Tempestade” o que prevalece não é a a D. Aranha. A princípio, o sujeito se encanta
violência da natureza. Dona de uma singela com a qualidade do trabalho do animal: ao
sensibilidade, Laura Rosa é, definitivamente, a mesmo tempo delicado e resistente. Outro valor
poeta das delicadezas. ainda é atribuído ao lavor da aranha: a
Elementos de diferentes mundos naturais, velocidade sem igual. Depois, sem maiores
tanto o animal, quanto o vegetal, são celebrados, explicações, o sujeito passa a perseguir a tecelã,
mas também surgem contaminados pela desfazendo seguidamente sua obra. Por fim,
intervenção criadora da poeta, que na aprende com o animal a lição da persistência. O
conferência “As crianças” revela sua crença no sujeito do poema parece carregar o olhar de uma
poder encantatório da natureza: criança que se encanta e faz novas e reveladoras
As crianças choram muito? Mandai-as passear descobertas.
[...] mostrai-lhes os pássaros alegres que A composição, construída com extrema
enchem o espaço com seus voos, com seus simplicidade, apresenta métrica variável e ritmo
trinados, mostrai-lhes as cores da natureza, da fácil. A polimetria das estrofes sugere o vai e
natureza que já é tão brilhante e tão variada; o vem da história que se desenrola em meio à
firmamento tão azul, o mar é tão verde, as
atividade do animal e as meditações do sujeito.
flores são tão matizadas! Há tanta luz no sol!
Vereis como se extasiarão seus olhos Como em uma fábula, D. Aranha possui
inteligentes e ávidos, como se lhe encherá a características símiles a uma qualidade humana
boquinha de risos [...] Uma borboleta que e ensina uma grande lição: a da constância, da
volite, um som que se faça ouvir, uma sombra perseverança.
que passe, tudo isto entretém um pequenino. Em seu Dicionário de símbolos, Chevalier e
(ROSA, 1909, p. 25). Gheerbrant (2018, p. 70-1) atestam que um dos
É perceptível a presença de animais na primeiros aspectos sublinhados da aranha é a
poesia de Laura Rosa, que preferiu cantar os fragilidade. Tal fragilidade, contudo, evoca uma
seres aparentemente insignificantes, como no aparência enganadora. É essa simbologia
texto “A Tecelã”, transcrito parcialmente: ambivalente que Laura Rosa destaca em sua
composição ao retratar a tecelã como um ser
Delicada e esguia, o corpinho franzino, frágil, sujeito a ser facilmente destruído com
Dia inteiro a tecer, desde pela manhã, uma vassourada, porém sua obra é valorosa: o
Era boa vizinha, a tecelã. fio fino, brilha como ouro; a beleza da renda é
Ela mesma tecia
A rede em que dormia.
sem igual, a resistência de sua teia é admirável.
E, em silêncio, fiava aquele fio Apesar do ambiente ser doméstico, cantos de
Tão fino e transparente, paredes vasculhados, há algo de elevado, o
Que brilhava ao sol, lugar da tecelã. Vale notar que esta “elevação”
Mas resistia à chuva, ao vento, ao frio, não se dá somente no plano físico, mas também
Tênue, delicado e resistente. no simbólico. O animal está sempre em um
[...] ponto acima e de lá “pontifica”. Pontificar
E eu gostava de vê-la, significa falar ou escrever em tom categórico42.
Estendendo a sua renda, A aranha comunica com sabedoria através de
A tecê-la... a tecê-la... sua renda, sua obra é criação e arte. A
[...]
Limpei tudo, outra vez;
aproximação entre os elementos da tessitura e a
Mas... veio a tecedeira e novas redes fez. escrita é um lugar-comum entre os poetas e nos
Enxotei-a. De novo ela voltou. permite perceber outra camada no poema de
E, armando os seus teares, Laura Rosa, a saber: a tecelã é uma alegoria do
Tramou rendas de seda pelos mesmos lugares (ou da própria) poeta, que apesar de ser
[...] considerada como frágil, feia e até asquerosa, e
Não sei se D. Aranha é asquerosa e feia, apesar do não reconhecimento, segue
Como, às vezes, parece; rendilhando seus fios e oferecendo uma
Mas, sei, que pontifica do alto da sua teia, promessa de esperança.
E não há quem rendilhe os fios que ela tece.

42 Conforme Houaiss (2001).


A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 107

A escrita da autora pode dar a impressão de canto revela-se capaz de transformar a


ser demasiadamente simplória, e, portanto, de realidade. Segundo Chevalier e Gheerbrant
pouco interesse literário, porém, através de seus (2018, p. 128), o cantar desse pássaro tem algo
versos ingênuos, oferece uma mensagem de de mágico, capaz de enfeitiçar, especialmente
encantamento e sutilezas. Na delicadeza poética os enamorados. Vemos novamente serem
de Laura Rosa, não circulam animais ferozes, valorados nos poemas da autora seres por ela
nem majestosos. Ela canta a pequenez da associados ao universo da poesia, seja por meio
formiga e a vulnerabilidade da lagartinha da do canto ou da tessitura.
seda. No soneto “O rouxinol e a rã”, uma As fontes da poética de Laura Rosa brotam
disputa toma lugar: quase sempre de algo da ordem do mínimo. Isso
À beira da lagoa coaxa a rã
é claramente perceptível no soneto que
Em uma noite de inverno regelada passaremos a analisar, que tematiza não só uma
Pede a Deus seja a noite prolongada folha, um dos menores elementos de uma
E não termine, nem desponte a manhã. planta, mas sim seus restos mortais, ou seja, o
Lastimando no galho a tal geada, mínimo do mínimo:
Da rã o rouxinol escuta a prece;
Esqueleto de folha
Solta um triste gemido estremece;
Vede, senhor, apodreceu na lama.
Temendo já a ausência da alvorada.
Eu a vi muito tempo entre a folhagem,
Também, faço, diz ele uma oração
Antes do vento lhe agitar a rama
Doe-me o frio, assusta-me o trovão
E, do regato, sacudi-la à margem.
Deus dos pássaros ouve o rouxinol:
De virente e de verde, tinha fama
Cessa a chuva, aplaca a ventania,
De folha mais formosa da ramagem,
A noite encurtece, manda o dia,
Desceu nas águas e resta da viagem,
Espargindo na terra a luz do sol 43. (ROSA,
O labirinto capilar da trama.
2016, p. 51).
Ninguém pode fazer igual rendado,
Aqui dois mundos são postos em oposição: Nem filigrana mais perfeito e lindo,
por um lado o universo da rã está situado em uma Nem presente melhor pode ser dado.
posição rebaixada, no chão, “à beira da lagoa”, e Guardai, senhor, guardai este esqueleto.
associado ao frio e à escuridão da noite; por outro Todo cuidado! É uma folha, ainda,
Onde escrevi, de leve, este soneto. (ROSA,
lado temos o domínio do rouxinol, no alto das
2016, p. 36)
árvores (“no galho”), como um espaço de
abertura ao calor e à claridade. Nesse ponto, Com esse poema, nos distanciamos da
cumpre destacar que entre o claro e o escuro, a apreciação da representação de animais, mas
preferência de Laura Rosa é solar. Nela, continuamos na esfera do mundo natural. Laura
sobressai-se a aurora em oposição crepúsculo. A Rosa explora a imagem folha, elemento
noite e o frio, elementos associados à rã, recorrente na poesia de todos os tempos. Na
comunicam a falta de esperança, transfigurada na obra Lírica e Lugar-Comum, Francisco Achcar
ausência “da manhã”. (2015) aponta o desenvolvimento do “símile
No poema, duas preces são feitas e ambas das folhas” como um dos primeiros momentos
são atendidas, porém, percebemos que o “Deus da genealogia do carpe diem – consagrado
dos pássaros” dá preferência à oração do topos 44 do discurso lírico sobre a
rouxinol, uma vez que após o pedido do pássaro, temporalidade. Em sua análise, o autor comenta
Deus “encurtece” a noite e espalha sobre a terra que é na épica onde se encontra uma das
o sol, demonstrando assim a atuação benfazeja primeiras expressões desse motivo e cita a
da ave, animal reconhecido pela perfeição de Ilíada (VI, v. 146-9), aqui na tradução de Carlos
seu canto. Notamos assim que ao canto do Alberto Nunes:
rouxinol é atribuído um aspecto sagrado, uma As gerações dos mortais assemelham-se às
vez que até o ser supremo cede às suas súplicas. folhas das árvores,
Como nos arcaicos mitos ligados a Orfeu, o que, umas, os ventos atiram no solo, sem

43 44
O texto aqui apresentado apresenta algumas variações Topos deve ser entendido como fórmulas, esquemas do
em relação à edição preparada por Diomar das Graças pensar, maneiras técnicas de expor e argumentar,
Motta e adotada neste trabalho. Servimo-nos na versão do provenientes da Antiguidade clássica, que se cristalizaram
poema publicada na Revista Elegante (Ano IX, N. 95, na tradição literária universal.
20/05/1900, p. 3), pois notamos alguns trechos que
levantavam dúvidas.
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 108

vida; outras, brotam engloba sentimentos nobres, e desdobra-se


na primavera, de novo, por toda a floresta como fonte de ensinamento e de moral. Seus
viçosa. versos são singelos, brandos, doces e ternos,
Desaparecem ou nascem os homens da delicados como os animais e plantas
mesma maneira. (Homero. In:
representados. A simplicidade dos poemas não
ACHCAR, 2015, p. 61).
significa superficialidade, ou pobreza de
Tal como a geração das folhas, impotentes e expressão. Nos três poemas é possível perceber
frágeis ao sabor dos ventos, é a geração dos tanto o uso criativo de elementos da tradição,
homens. Achcar (2015, p. 63) declara que na como a recorrência a imagens inusitadas. Vale
poesia grega e na latina, “a imagem das folhas destacar também as associações do mundo
tornou-se moeda corrente” em versos que natural com a poesia, desdobramentos que
aludem à precariedade da existência humana. apontam para uma crítica velada sobre o lugar
Alguns elementos desses topos são do poeta na sociedade. Como a D. Aranha é
verificáveis nos versos da poeta maranhense que rechaçado mas persiste em seu labor sublime.
alude ao vento que agita e atira a folha. O Como o canto do rouxinol, a poesia revela algo
movimento de decrepitude também está presente de sagrado e “ilumina” o mundo (afasta as
na imagem da outrora verdejante folha que se trevas). Por fim, por causa do verso o esqueleto
transforma em restos apodrecidos na lama. A da folha sobreviverá, clara referência ao célebre
autora não explora a comparação do destino da topos da perenidade da poesia.
planta ao do homem, porém embarca em um novo Como uma professora, que de fato foi, Laura
e interessante caminho, ao ater-se aos restos, ou Rosa dirige aos leitores seu canto tecido com
seja, ao “esqueleto” da folha, representado na bela palavras singelas carregadas de significados,
imagem do “labirinto capilar da trama”, por meio são preciosas “pérolas pequeninas” aguardando
da qual extrai a beleza de matéria deixada à para serem descobertas.
margem, para morrer.
Nas quadras a beleza da folha é reduzida à 4 As chispas agonizantes de Mariana Luz
lama, ganhando relevo, portanto, o jogo vida e Para pensarmos a representação da natureza
morte e a questão da temporalidade. Vale notar na escrita poética de Mariana Luz, precisamos
que o efeito de passagem de tempo é reforçado tomar como ponto de partida a compreensão de
pela recorrência das fricativas /f/ e /v/, alguns valores que nortearam o Simbolismo,
produzidas por meio de um fluxo turbulento de estética que mais marcou a expressão da autora.
ar que transmite a sensação da vida sendo A esse respeito, vale mencionar um comentário
carregada pelo vento. de Anna Balakian (2007, p. 41) sobre Charles
Nos tercetos a poeta promove uma reversão Baudelaire, considerado um dos precursores do
no que seria o fluxo natural, o fim. No primeiro movimento:
terceto sobressai-se o som nasal do /n/ em uma Nada é “exótico” [...] a condição humana é a
sequência de três negativas que paradoxalmente única dimensão poética para Baudelaire. Este
não negam e sim afirmam, dizendo de outra é o ponto de vista que entregará aos
forma, exaltam a perfeição sem igual do simbolistas [...] o mais desnacionalizado
rendado da folha. Interessante observar como a grupo de escritores que jamais trabalhou
autora recorre mais uma vez a expressões junto, não só porque se reuniram em Paris,
situadas no campo da tessitura, como: trama, mas também por causa de seu interesse em
renda, filigrana (tipo de bordado em fios de sentimentos universais e em paisagens não
metal). O desfecho do poema ressalta a localizadas.
fragilidade da folha, revelando, contudo, que ela O trecho é pertinente pois nos ajuda a
precisa ser guardada, pois o que parece ser compreender aspectos da lírica luziana que, de
somente um esqueleto é na verdade (“ainda”) fato, pende muito mais ao universal e a
uma folha, não mais a folha da planta e sim uma “paisagens não localizadas”. A título de
referência à folha de papel onde o eu lírico exemplo, vale mencionar que Mariana viveu em
escreveu seu verso. Dessa forma, o fado da Itapecuru Mirim, cidade localizada no
folha é transfigurado nas mãos da poeta. Em vez continente e cortada por um dos rios mais
de matéria morta, o esqueleto da folha sobrevive importantes do Estado do Maranhão, o
como receptáculo da poesia. Itapecuru. Porém, chama a atenção a presença
A manifestação da natureza em Laura Rosa do mar em detrimento do rio. Em Mariana, ecos
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 109

do Romantismo são detectáveis por meio de Aponta lá no céu, Saara imenso e infindo,
diálogos com outros poetas ou mesmo através A caravana enorme e errante das estrelas.
motivos 45 relidos pelos simbolistas, porém a (LUZ, 2021, p. 111).
exaltação da cor local como vimos em Firmina, Tecendo sugestões, a autora vale-se da hora
não parece ser uma preocupação para a poeta crepuscular não como um objeto com fim em si
itapecuruense46. mesmo, mas como um instrumento que revela
A poesia para Mariana, como bem observa um estado da alma. Assim, o crepúsculo torna-
Rafael Quevedo (2021, p. 18) no prefácio de se capaz de desencadear um movimento que
Mariana Luz: Murmúrios e outros poemas leva ao inefável aludido no último terceto em
(2021) é uma tentativa de sublimação da vida um “turbilhão de glória”.
comum, um convite para “alar-se”, “alçar-se a Vale destacar no alexandrino com acentuação
uma experiência que a eleva”, é o que nas sílabas 6 e 12, metro que a autora gosta de
encontramos nos trechos de “O Caminho”: explorar, a tensão semântica entre os dois
Quando contemplo o azul da imensidade, hemistíquios, como no primeiro verso que opõe a
Limpo de nuvens, todo azul somente, serenidade (“tarde morna e serena”) e o desespero
Sinto o punhal agudo da saudade (“sol, agonizante”). Por meio de um cromatismo
Atravessar-me o peito cruelmente. requintado, a tensão se repete no verso seguinte
[...] que une a situação em jogo a cores de sentidos
É tarde agora... Além, há outra esfera conflitantes. Explicamos: o sol se amortalha,
Onde, risonha e eterna, a primavera cumpre lembrar que tradicionalmente a cor das
De luz e aroma nutrirá meu ser... (LUZ, 2021,
mortalhas é branca, mas nesse caso o astro vai
p. 101).
morrer na “fulva cabeleira”, que nos transmite
No esforço de transfigurar a condição uma ideia de vida, pois fulva é a cor vibrante do
humana e dar-lhe horizontes transcendentais, os ocre, do dourado que está aqui associada a uma
versos da autora apontam para o alto, para “o cabeleira, o que nos remete a ideias de
azul da imensidade”, para essa “outra esfera” movimento. Ligado ao melancólico e nasalado
onde as aflições atinentes ao plano da “amortalhando” temos, portanto, paradoxalmente
experiência cotidiana são superadas em um uma explosão de vida e movimento.
plano espiritual. Mais que telúrica, a natureza A fusão de diferentes sensações, imagens,
em Mariana é etérea, com voos de pássaros, movimentos, cores, perfumes (“aroma sutil”)
brisas, luares, colinas, cimos de árvores indica o esforço em representar o instante em
(“virentes franças47”) e imagens crepusculares, sua totalidade, em incorporar o mundo
sobre as quais nos deteremos mais detidamente, espiritual ao mundo natural. A musicalidade do
a começar pelo soneto “Crepúsculo”: poema se beneficia das tradicionais rimas
Tarde morna e serena. O sol, agonizante, externas, além das aliterações e assonâncias.
Se amortalhando vai na fulva cabeleira Em uma escrita embebida da atmosfera
E lança sobre a terra a chispa derradeira decadentista 48 e pessimista do fin de siècle, a
Do seu olhar de rei, todo altivo e arrogante. autora personifica os sentimentos através das
Divaga pelo espaço incerto, nesse instante manifestações da natureza. Deste modo, o
Um aroma sutil. Nos leques da palmeira elemento crepuscular presentifica a um só
Perpassa docemente a aragem tão fagueira tempo encantamento e funda nostalgia como é
Fazendo farfalhar a fronde verdejante. possível observar na breve amostragem abaixo:
Desdobra a tarde o manto e, triste e
merencória, “Desengano”
Estende-o sobre a terra e, célere fugindo, Ia morrendo o dia. Um bando alvo de pombas
Se oculta lá no azul, entre cérulas telas. Ruflando docemente as asas tão nevadas
E eis aqui, afinal, luzindo em turbilhão de glória, Descia, a tatalar nas selvas perfumadas
Em procura do ninho oculto pelas sombras.

45 Apesar de não serem propriamente românticos, alguns fica no campo da suposição uma vez que esses textos estão
temas recorrentes desse período como a mágoa dos amores quase todos perdidos.
47 Verso de “Resposta” (LUZ, 2021, p. 99).
contrariados, a impossibilidade expressiva, a volúpia da
48 Nesse ponto, não é demais lembrar que no Brasil,
morte são relidos pelos simbolistas e decadentistas.
46 Cumpre mencionar que essa observação se aplica para a durante um tempo, o Simbolismo e o Decadentismo
lírica luziana. É possível que o teatro da autora tenha se existiram como estéticas paralelas, chegando a haver uma
detido a questões mais locais, essa observação, no entanto, espécie de imbricação entre ambas. Pensamos ser esse o
caso que marcou a trajetória artística de Mariana Luz.
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 110

[...] momento em que o sol impera majestoso,


Assim, minha alma, outrora, em louca representa o tempo da esperança, mas também
fantasia o tempo da ilusão em promessas de amor e
Aos páramos azuis, em busca de harmonia felicidade, o crepúsculo por sua vez traz a
[...]
realidade, ou seja, não existe vida sem
Mas tendo, como as pombas, baixado o voo
incerto sofrimentos, o amor não passa de “louca
Não encontrou o ninho... o lar era deserto... fantasia”.
Apenas encontrou - a solidão e a dor. (LUZ, Essa virada, euforia (felicidade) seguida de
2021, p. 123). disforia (melancolia e pessimismo), é a pedra de
toque da poesia de Mariana Luz. O fato denota
“Crepuscular” como dissemos há pouco uma visão de mundo da
A tarde descaía, fresca e amena, autora que se transveste no seguinte plano místico:
No sangrento horizonte o sol tombava as almas são redimidas pela dor. Passível de
[...] observação em várias composições luzianas, essa
Junto à janela, em sonhos cor da aurora,
ideia está bem delineada no soneto “Dor”:
Ela se engolfa, e a fronte cismadora
[...] Dor, tu serás sempre abençoada,
Medita... e de seu lábio purpurino Porque na consciência adormecida
Um cântico se evola, cristalino, Tu fazes renascer uma outra vida
A recordar alguém que vive ausente. (LUZ, Cheia de amor e de fé. Resignada!
2021, p. 124). Abençoada és, pois o que é grande
Nasce de ti, e ao teu impulso cresce.
“Pôr do sol” E como doura o sol a loura messe
Some-se o sol. As franças do arvoredo, Assim ao teu poder tudo se expande.
Tintas de rubro, oscilam docemente. [...]
[...] Alguns, deixas por terra, amargurados...
Ó majestoso dia que te ocultas Sem forças... sem coragem... aniquilados...
No sudário da noite, onde sepultas Outros, enfim, são salvos pela Dor! (LUZ,
As tuas galas de gentil brilhar, 2021, p. 107).
Tudo levaste: amores e esperanças,
[...] (LUZ, 2021, p. 125). Ao comentar a poesia de Cruz e Sousa,
maior representante do Simbolismo brasileiro,
Nos poemas, a contemplação da natureza é Alfredo Bosi (2015, p. 226) aponta para “o tom
revestida de encantamento simbolizado no doce de confiança absoluta na salvação pelo
ruflar dos pássaros e suscita divagações que se exercício da ‘vida obscura’ e pelo percurso da
realizam em função da necessidade de expressar os ‘via dolorosa’.” Esse comentário ilumina um
conflitos interiores que afligem o sujeito poético. caminho de compreensão da melancolia, do
Importa sublinhar que, nessa poética, o sofrimento e da tristeza contemplativa que
concreto abarca o abstrato, ou seja: a frequentam os versos luzianos, ela estava
materialidade natural se confunde com as inserida em um movimento estético que
próprias viradas da vida e os sentimentos que pregava tais valores.
delas decorrem. Ao discorrerem sobre o Porém, cumpre ressaltar que resumir o
crepúsculo, Chevalier e Gheerbrant (2018, p. projeto literário de Mariana a um alinhamento
300) destacam o sentido de “fim de um ciclo, e, estético significa incorrer em uma equivocada
em consequência, a preparação de outro”, do redução. Não há existência sem sofrimento, é
instante que simboliza uma morte que é isso que vai se delineando na obra luziana.
anunciadora de algo novo e, por fim, da “beleza Evidencia-se nessa escrita um certo conflito.
nostálgica de um declínio”, sendo assim uma Em alguns momentos, o sofrimento é bendito,
imagem por excelência da saudade e da devendo ser enfrentado com resignação, pois
melancolia. depura e expurga as impurezas da alma. A
Essas observações valem para nossa Bíblia oferece muitos exemplos de sofrimento
apreciação, uma vez que notamos todos esses seguidos de recompensa, glorificação, como em
‘usos” do crepúsculo, leia-se, como fim de um Jó, Lázaro, José do Egito, Tobias e outros. O
clico, anúncio de uma nova vida e símbolo da maior de todos os sofrimentos, porém, foi a
saudade. E de que ciclo se trata? Estamos diante entrega de Cristo na cruz, o cordeiro imolado
de uma visão de mundo onde à temporalidade é pela salvação da humanidade. Mariana Luz,
associada a dor, dizendo de outra forma, o dia, contudo, em outros momentos, se mostra muito
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 111

humana e então o sofrimento lhe causa profunda Por meio da configuração literária, a natureza
angústia que beira a revolta contra o mundo. física assume um valor de um sistema de signos.
Sua poesia revela de modo consistente um Em Firmina, a terra natal ganha contorno de
mal-estar com a sociedade, sua palavra é “paisagem ideal”, lugar idílico, propício ao
portadora de toda sorte de humilhações que a vida diálogo (interior ou com o outro) e ao encontro.
impõe ao homem comum, o que por vezes revela Como diz Collot no trecho acima, “a paisagem
uma tensão de ordem religiosa, a saber, a não saberia se reduzir a um puro espetáculo”, uma
esperança, virtude cristã, chega a ser questionada. vez que ela carrega consigo um valor de memória
Fervorosa católica, a autora flerta com o spleen, afetiva e de fonte de emoções. Assim, a beleza do
mas não se permite entregar-se ao desespero. local é associada à beleza feminina e a felicidade
Nessa dinâmica, o entardecer reveste-se no plena somente se realiza na harmoniosa
instante suspenso que representa o conflito que convivência do homem com seu lugar. Afastar-se
assola a alma, a morte de um sonho anelado e a da paisagem é tornar-se um expatriado, o que gera
vida renascida e salva “pela Dor”, como vimos no toda sorte de sofrimentos.
poema registrado logo acima. Sendo o crepúsculo O sentido da visão é acionado nos poemas de
este momento decisivo, de “duelo da treva com a Laura Rosa, mas como um catalizador de
luz49”, entende-se a importância que essa imagem reflexões que a partir daí se desdobram. É digno
ganha na lírica de Mariana. de nota um aspecto presente nessa poética, a
saber, a tendência de voltar o olhar para a
5 Considerações finais
própria poesia. Através de elementos pequenos,
Refletindo acerca da forma como o homem tidos até como insignificantes, a poeta lança sua
apreende o mundo sensível, Michel Collot crítica sobre o valor da poesia e sobre o lugar do
(2015, p. 20) defende que essa experiência poeta na sociedade, leia-se, o poeta, artesão da
extrapola a simples percepção visual e ganha palavra, é como uma aranha que projeta do alto
dimensões sensoriais: sua obra, bela e resistente, mas que sofre toda
Se confundem o interior e o exterior, o que é sorte de perseguições e maledicências. A
sentido e o que é experimentado; longe de resistência da poesia diz respeito a resistir ao
apreender o que se oferece a nossos olhos, tempo, a sobreviver, a estar acima das
nós é que somos apreendidos. Nós o vicissitudes da vida comum. De forma
experimentamos mais comumente por interessante, Laura Rosa vale-se de coisas
intermédio de outros canais do que pela vista, mínimas para falar de algo elevado, que flerta
que é o mais intelectualizado de nossos com a imortalidade.
sentidos; sabe-se a que ponto os odores, os Em Mariana, o horizonte sangrento surge
sabores ou as sensações tácteis podem carregando de ritmos e odores, revelando seu
solicitar a memória afetiva e (res)suscitar um
poder quase mágico de destronar o sol todo-
universo indissociavelmente interior e
exterior. Nossa tradição ocidental confere à poderoso. Encontra lugar nessa imagem a
vista um privilégio excessivo e quase propensão mística da autora que sinaliza nesse
exclusivo na abordagem da paisagem. Ora, a instante crepuscular seu anelo de converter a
paisagem não saberia se reduzir a um puro dor em salvação do homem.
espetáculo. Ela se oferece igualmente aos
outros sentidos, e diz respeito ao sujeito, por
Referências
inteiro, corpo e alma. Ela não se dá somente
a ver, mas a ser sentida e vivenciada. ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-
Comum: Alguns Temas de Horácio e sua
Arriscamos afirmar que o excerto traduz a Presença em Português. São Paulo: Editora da
representação do mundo natural construída pelas Universidade de São Paulo, 2015.
três poetas maranhenses. Cada uma, a seu modo,
transfigura os elementos da natureza em BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. Tradução de
instrumentos de expressão poética. A praia em José Bonifácio. São Paulo: Perspectiva, 2007.
Firmina, os pequenos animais de Laura Rosa e o BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
crepúsculo em Mariana transmitem sensações, brasileira. 50. ed. São Paulo: Cultrix, 2015.
desejos e angústias, revelando uma simbólica
simbiose entre o homem e aquilo que o cerca.
49Verso extraído do poema “Pôr do sol”. (LUZ, 2021, p.
183).
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 112

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brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo escrituras”. In: DEL PRIORE, Mary (org).
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Costa e Silva. 31 ª ed. Rio de Janeiro: José ********
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LUZ, Mariana. Mariana Luz: Murmúrios e
outros poemas. Estudo introdutório e
organização de Gabriela Santana. São Luís:
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LUZ, Mariana. Mariana Luz: Murmúrios e
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REIS, Maria Firmina dos. Cantos à beira-mar
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REVISTA ELEGANTE, São Luís, ano IX, n.
95, 20/05/1900, p. 3.
ROSA, Laura. As crianças. São Luís: Imprensa
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ROSA, Laura. Poesias reunidas de Laura
Rosa. MOTTA, Diomar das Graças (org). São
Luís: Edições AML, 2016.
SANTANA, Jucey Santos de. Mariana Luz:
vida e obra e coisas de Itapecuru-Mirim. São
Luís: Edição do autor, 2014.
SIMPÓSIO 4
(Pós)modernos eternos
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO


ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO
Walter Pinto de Oliveira Neto50 • Alexandre Silveira Campos51

RESUMO: A seguinte proposta de antimoderno de Compagnon, em junção a


comunicação apresenta a poiética e poética de outros pensadores antimodernos da
Antonio Machado (1875 – 1939), caracterizada modernidade, como Unamuno (2005, 2008)
pela rejeição aos preceitos modernos e críticos literários da literatura espanhola
modernistas. Anexado à Geração de 98, o moderna: Costa Lima (2012), Shaw (1982),
escritor se deixou impulsionar inicialmente Marçal (2020) e a própria poietica machadiana
pelos modernistas hispanoamericanos, para, em Los complementares (1957). Sendo assim,
logo a seguir, cansado dos cantos de cisne este trabalho pretende demonstrar que a obra de
destes arroupar seu verso de um direcionamento Antonio Machado está marcada pela rejeição
ao passado, mais concretamente à Idade Média, aos paradigmas ideológicos da modernidade,
único momento da história da Espanha em que, evidenciando-se tal idiossincrasia antimoderna
segundo ele, fez-se arte genuinamente em seu projeto literário, o qual tenciona trazer
espanhola. Assim, Machado resgata do fundo ao presente o volkgeist de Castilla.
da tradição que lhe é mais cara, além dos
místicos da escola ascética espanhola, também Palavras-chave: Literatura espanhola
os elementos geográficos, arquitetônicos e moderna; Antonio Machado; Antimodernidade;
metafísicos de Castilla, cujo espírito ainda vibra Modernidade.
na alma do povo castellano. Categorizamos tal
apologia à pré-modernidade como uma ode à 1 Considerações iniciais
antimodernidade, conceito e proposta A modernidade ocidental finissecular
hermenêutica de Antoine Compagnon, que, em ocasiona uma série de intelectuais jogados
a obra Os antimodernos (2014), define o numa espiral de pessimismo. Se a primeira
intelectual antimoderno como aquele situado metade do século XIX se caracteriza pelo
entre dois mundos: passado e presente, ou, encantamento com as Luzes (TODOROV,
ainda, aquele que pretende fugir da 2008), a segunda significa o cansaço de um ser
modernidade, utilizando para isso as desacreditado com as bem-aventuranças da
ferramentas da modernidade; em síntese, o técnica (HABERMAS, 2010). Isso gera um
antimoderno se encontra preso na retaguarda da problema ontológico de graves consequências
modernidade, em contraposição à vanguarda. A para o sujeito moderno.
fim de validar a tese central de que Antonio Nos inícios da modernidade ou, como diria
Machado é um poeta estética e metafisicamente Giddens (2002), na Baixa modernidade, o ser
antimoderno, valemo-nos do método humano se arraiga por primeira vez numa
bibliográfico e qualitativo, escolhendo como subjetividade retroalimentada; já nos alvores da
eixo teórico a proposta conceitual do Alta modernidade (GIDDENS, 2002), isto é, a

50Graduado em Letras português-espanhol e literaturas 51


Professor Assistente Doutor da UNESP, de Letras
pela UEMA (2016-2020). Mestrando do Programa de Pós- Modernas da Faculdade de Ciências e Letras do Campus
graduação em Letras – PGLETRAS da UFMA, na linha de de Araraquara. Doutor em Letras, Estudos Literários, com
perspectivas críticas e teóricas em literatura (2021 –). tese sobre Literatura Espanhola, UNESP - FCLAr (2012).
Membro dos grupos de pesquisa TECER (UEMA) e Membro do Grupo de Pesquisa em Semiótica da Unesp
Polifonia (UFMA). Bolsista CAPES. E-mail: (GPS-Unesp). E-mail:
walteroliveira16@outlook.com campos.alexandre.campos@unesp.br
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 115

partir da revolução industrial, da instauração da tornam moda, para ser, pouco depois,
técnica como medida de todas as coisas, o ente suplantadas por outras. A literatura, então,
moderno esgota sua filiação com o eu em torno torna-se um laboratório de experimentos
do eu, para descansar nos braços da máquina. formais (COMPAGNON, 2014b).
Não obstante, esta tampouco resolve sua Entretanto, Compagnon (2014) defende que
inquietude existencial, tornando-o, mais uma há um conjunto de artistas, certamente minoria,
vez, órfão de ídolos (NIETZSCHE, 2017). os antimodernos, que, mesmo modernos e
É assim que a humanidade chega ao modernistas, renegam enfaticamente de seu
desdobramento do século XIX para o XX, Zeitgeist. A maioria das suas produções se
momento em que surge uma série de destinam a romper aquilo que foi feito
intelectuais 52 em todo ocidente, reconhecidos justamente para romper com a tradição, ou para
pelo pessimismo para com seu tempo e para se contrapor à tradição da ruptura. Dito de outra
com o futuro (BERMAN, 1986). Esse volkgeist forma, se a modernidade nasce com o intuito de
traduz-se na proliferação de ideias que rejeitam superar a tradição – tornando-se depois uma
a razão secular proveniente do Iluminismo tradição que teria de ser superada, e assim
(TODOROV, 2008), a fim de instaurar uma sucessivamente (COMPAGNON, 2014b) –,
nova epistemologia à serviço da desconfiança então os antimodernos são os defensores
tanto do que já foi, a saber, a tradição, como da propositalmente módicos da tradição
moral presente. Tratou-se, enfim, de romper (COMPAGNON, 2014), uma vez que não
com os paradigmas da modernidade, utilizando, conseguem desassociar-se radicalmente do
para isso, uma revisitação ao passado. ethos de seu tempo. Eles se sabem
Tal desnorteio do apolíneo, como diz condicionados pela circunstância sóciohistórica
Habermas (2010), mescla as distintas categorias em que estão inseridos, e, por isso, não podem
do moderno, outrora considerada como a era da ser categorizados como simples reacionários ou
razão subjetiva – na Baixa modernidade – ou da conservadores ortodoxos. Nesse sentido, o
razão técnica – na Alta modernidade. Assim, o antimoderno continua sendo moderno, só que
que antes era evitado a qualquer custo: a um moderno às avessas, um moderno na
contradição, a junção de partes antagônicas e/ou retaguarda da modernidade (COMPAGNON,
o incerto, agora, vira método. Nesse cenário é 2014) – o que implica, também, contraposição
onde desfilam intelectuais de todas as áreas e às vanguardas nascentes desse período53.
estilos, procurando dar um sentido – se é que No seu livro Os antimodernos (2014),
ainda exista um paradigma do sentido – ao ser Compagnon reluz algumas teorias e orientações
do novo século. hermenêuticas, a fim de identificar os intelectuais
Esse direcionamento filosófico do modernos intitulados por ele de antimodernos.
contraditório recai numa arte que aceita Para tal missão, evidencia alguns rasgos de teor
abertamente tais leis, encontrando uma político, filosófico, histórico, ideológico, estético
renovação estética estagnada aridamente nos etc próprios à maioria deles54.
movimentos precedentes, os quais relegam a A partir desses preceitos, intencionamos
objetividade ao primeiro plano do fazer vislumbrar o poeta espanhol Antonio Machado
artístico. No campo da literatura, os como um antimoderno, usando, para isso,
modernismos permitem que o autor exiba ademais da pesquisa de Compagnon como base
novamente sua subjetividade, alicerçada a teórico-conceitual, estudiosos da literatura e
experimentações estéticas que rapidamente se história espanhola, como Marçal (2020) e Shaw

52 Sobre a identificação e problematização da categoria foi Góngora, carecia de qualquer compromisso social e
conceitual de intelectual moderno, recomendamos a leitura muito menos estético. Faltava-lhes, na concepção deles,
do artigo: OLIVEIRA NETO, Walter Pinto de; CAMPOS, alma, espírito, seriedade. Para mais informação,
Alexandre Silveira. As contendas políticas do intelectual recomendamos a leitura de Brown (2000) e Unamuno, em
orgânico Miguel de Unamuno. Revista Vernáculo, n.° 47, Cómo se hace una novela. Todavia, Compagnon, em Os
S1, 2021, p. 124 – 140. Disponível em: antimodernos, no último capítulo, antes do epílogo, alude
https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/74739. a Barthes como um antimoderno situado numa
53 No caso específico espanhol, a Geração de 98 foi subcategoria específica: a do antivanguardista.
contrária aos vanguardismos, principalmente ao Recomendamos, também, sua leitura
54 Referimo-nos aos seis paradigmas do antimoderno: a
vanguardismo literário proveniente da Geração de 27,
formada por Lorca, Miguel Hernández, Alberti, entre Contrarrevolução, o Anti-iluminismo, o Pessimismo, o
outros. A crítica principal de Unamuno e companhia Pecado original, o Sublime e o Vituperacional.
consistiu no seguinte: a revolução vanguardista, cujo ícone
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 116

(1982). Todavia, faremos uso da poética e olhos ao seu tempo e espaço, ou seja, não foge
poesia de Machado nas suas obras Los à modernidade circunstancial, assimilando-a
complementares (1957) e Campos de Castilla como parte inevitável de sua constituição
(1997). ontológica. Em síntese: “os verdadeiros
O trabalho se compõe de dois estágios: no antimodernos são, também, ao mesmo tempo,
primeiro, assinalaremos algumas ideias modernos, ainda e sempre modernos, ou
elementares da teoria da antimodernidade; no modernos contra sua vontade”
segundo, analisaremos alguns poemas do poeta (COMPAGNON, 2014, p. 12).
andaluz que nos permitirão, em consonância Suas ideias, maioritariamente contraditórias
com a proposta de Compagnon, classifica-lo e ambíguas, encontram na literatura o caudal
como um poeta-filósofo-intelectual estético propício para o desenvolvimento e
antimoderno. exposição delas:
2 Entre a modernidade e a tradição: O gênio antimoderno se refugiou na literatura,
antimodernidade e na mesma literatura que qualificamos como
moderna, na literatura com a qual a
Como já explicamos prévia e brevemente, a posterioridade fez seu cânone, literatura não
Alta modernidade ocidental tem como bandeira tradicional, mas propriamente moderna porque
a instauração da moda, que, por sua vez, torna- antimoderno, literatura cuja resistência
se uma tradição rapidamente a ser suplantada ideológica é inseparável de sua audácia
(COMPAGNON, 2014b). O novo como literária. (COMPAGNON, 2014, p. 15).
ideologia cria uma recepção ambígua desse No contexto espanhol finissecular, devido à
fenômeno histórico: encontram-se, por um lado, mistura caótica entre fé e razão, ciência e
os que fazem apologia aos preceitos mística, e tradição e inovação (BROWN, 2000),
fundamentais da modernidade, tornando-os, surge um agrupamento filosófico e estético cuja
portanto, como menciona Berman (1986), marca ideológica se pauta na tensão entre mudar
modernos radicais ou modernos incompletos; e, para alcançar a modernidade ou manter a
no outro lado do cenário, interpõem-se os que tradição, conservando a particularidade
negam a modernidade, propondo, em seu lugar, espanhola, em detrimento da estrangeira
voltar ao passado: os reacionários e (MARÇAL, 2020). Esses literatos,
tradicionalistas. denominados por parte da crítica de Geração de
No entrelugar de ambas as orientações estão 98, distanciam-se, ao menos nas duas primeiras
os verdadeiros modernos, os modernos décadas do século XX, de outros literatos
completos. Na tese de Berman (1986), o espanhóis contemporâneos, os modernistas, que
moderno só se vê completo quando se torna um desenvolvem um tipo de arte mais otimista,
antimoderno, isto é, quando avista uma parnasiana, simbolista, enfim, mais de acordo
circunstância e decide atravessá-la para ir além aos modernismos vigentes – principalmente o
dela, imbuído do desejo de superá-la. Assim, se latinoamericano 55 –. Assim, valendo-nos das
o moderno incompleto ou moderno radical se categorias previamente explicitadas,
sente confortável com o modus operandi da poderíamos afirmar que os modernistas
modernidade em que habita, o verdadeiro representam os modernos incompletos e a
moderno “percorre as ruas à procura de um Geração de 98 os antimodernistas.
caminho para fora delas, [sendo] forçado a se Dessa forma, mantida na inquietude entre o
desfazer do equilíbrio, das mesuras e do decoro novo e o velho, a Geração de 98 se transforma
e a aprender a graça dos movimentos bruscos na porta-voz preferida das almas em pena da
para sobreviver” (BERMAN, 1986, p. 210). Espanha de fim de século, especialmente
Por essa razão que o antimoderno, não sendo desanimada após perder suas últimas colônias
estritamente um moderno, tampouco é um do Caribe 56 numa desastrosa guerra contra os
reacionário ou tradicionalista, pois não fecha os

55Vale a pena ressaltar que, apesar de que a maior parte Unamuno, no seu artigo José Asunción Silva, como o
dos poetas latinoamericanos seguiram o caudal da poesia verdadeiro representante da poesia moderna, uma vez que
simbolista francesa do seu tempo – ou seja, a poesia dos sua fome de eternidade o permite expressar versos capazes
modernistas incompletos –, como Rubén Darío e Delmira de comunicar aquilo que o poeta-filósofo não pode e/ou
Agustini. Outros e menos incidentes casos trilharam pelo deve rechaçar jamais: o desespero pela finitude da alma
angst próprio do fim de século, como o colombiano José (UNAMUNO, 1950).
56 Cuba, Puerto Rico e Filipinas.
Asunción Silva. Este último, inclusive, foi designado por
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 117

EUA. Nesse campo de angústia política, social, razón, es decir a las dos formas de
filosófica e literária que esse grupo de literatos comunicación humana. El individualismo
desenvolve seus escritos (BROWN, 2000). romántico es idea lista y cordial, desmesura
Grosso modo, pode-se afirmar que no campo do la razón, pero cree en ella, exalta el
sentimiento hasta agotarlo [...].
ensaio se destaca Miguel de Unamuno; no do
(MACHADO, 1957, p. 114)57.
romance, Pío Baroja; no do teatro, Valle-Inclán;
e no da poesia, Antonio Machado. E continua:
3 Antonio Machado: o antimoderno Cuando el espíritu romántico desfallece [...] sólo
se salva el culto al yo, a la pura intimidad del
No capítulo dedicado a Antonio Machado, no sujeto individual. Y una nueva fe, un tanto
livro A ficção e o poema, Costa Lima traz à tona a perversa, se inserta [...] Se piensa que lo
o poeta que, na concepção dele, representa a crise individual humano, el yo propiamente dicho, el
poiética incipiente da modernidade finissecular, sí mismo es lo diferencial entre hombre y hombre
só que por meio de uma autenticidade estética e y que carece de formas de expresión genéricas.
filosófica direcionada por sendeiros senão Razón y sentimiento son cosas de todos,
antagônicos, ao menos divergentes aos trilhados instrumentos ómnibus que el poeta desdeña en su
afán de cantarse a sí mismo, no responden a la
por Baudelaire. Lima menciona o francês como
íntima realidad psíquica. Y el problema de la
paradigma poético que os grandes líricos de lírica, en su relación con el lenguaje, se complica.
ocidente de início do século XX seguiam, mas que (MACHADO, 1957, p. 114)58.
encontra na Espanha e mais concretamente em
Antonio Machado um curioso caso de escritor que Essa negação ao eu poético retroalimentado,
nessa época não pertencia “ao paradigma que na concepção de Machado faz-se presente
romântico, [e] tampouco se integrava na na literatura do seu tempo, o situa numa
modernidade formulada por Baudelaire” (LIMA, contradição da qual nunca se desvincularia
2012, p. 215). (LIMA, 2012). De acordo com Compagnon
Isso motivou o que Lima (2012) chama de (2014), o escritor antimoderno é contraditório,
Marasmo espanhol, ou seja, o contraste entre a uma vez que, ao mesmo tempo que recusa “a
percepção reinante sobre a Idade Média e a escritura branca e a manutenção da poesia como
Modernidade, que definiria o país tanto no aquiescência ao mundo e à linguagem”
aspecto político, como ideológico, e, como não, (COMPAGNON, 2014, p. 388), tornando-a
literário. É a partir desse marasmo que Antonio estéril de “ideais e princípios”
Machado rejeita Baudelaire, Rimbaud, (COMPAGNON, 2014, p. 373), e, portanto,
Mallarmé ou Verlaine, aderindo-se, num afastada do mundo; também o antimoderno se
primeiro momento, à lírica do nicaraguense afasta do mundo, procurando, em lugar disso,
Rubén Darío (BROWN, 2000), para, logo a criar uma literatura dedicada “à gestão do
seguir, desvincular-se deste e fundar uma poesia passado” (COMPAGNON, 2014, p. 405).
considerada por ele de profunda, em contraste Esse olhar constante do antimoderno ao
com a superficial, hermética e ébria dos passado ilustra uma espécie de fetichismo pela
modernistas. Nas palavras do próprio Machado: história, pelas ruínas e pela monarquia,
tornando melancólica sua literatura
Cuando seguimos con alguna curiosidad el (COMPAGNON, 2014). Esse viés saudosista,
movimiento literario moderno, pudiéramos
pessimista e antimodernista é vislumbrável ao
señalar la eclosión de múltiples escuelas
aparentemente arbitrarias y absurdas, pero longo da produção poética do autor, sendo nos
que todas ellas tuvieron un denominador poemas das duas primeiras décadas do século
común: guerra al sentimiento, guerra a la XX em que tal paradigma se evidencia com

57 Quando acompanhamos com alguma curiosidade o uma nova fé, um tanto perversa, se inserta. [...] Pensa-se
movimento literário moderno, pudéramos assinalar a eclosão que o individual, o eu propriamente dito, o si mesmo é o
de múltiplas escolas aparentemente arbitrárias e absurdas, mas diferencial entre homem e homem e que carece de formas
que todas elas tiveram um denominador comum: guerra ao de expressão genéricas. Razão e sentimento são coisas de
sentimento, guerra à razão, isto é, às duas formas de todos, instrumentos fulcrais que o homem desdenha no seu
comunicação humana. O individualismo romântico é ideia gosto de cantar-se a si mesmo, não respondem à intima
inteligente e cordial, rejeita a razão, mas acredita nela, exalta realidade psíquica. E o problema da lírica, em sua relação
o sentimento até esgotá-lo. (Tradução nossa). com a linguagem, se complica. (Tradução nossa).
58 Quando o espírito romântico falece [...] somente se salva

o culto ao eu, à pura intimidade do sujeito individual. E


PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 118

maior relevo. O sevilhano volta constantemente Por outro aspecto, denominada no milênio
aos poetas da Idade Média, como Garcilaso de prévio de Castilla, o escritor a procura nos
la Vega ou o místico Gonzalo de Berceo. tempos atuais, encontrando-a às vezes impoluta,
El primero es Gonzalo de Berceo llamado,
forte e dominadora; e, em outras situações, em
Gonzalo de Berceo, poeta y peregrino, ruína, contaminada pela modernidade. A
que yendo en romería acaeció en un prado, Castilla gloriosa a podemos presenciar no
y a quien los sabios pintan copiando un poema Desde mi rincón:
pergamino. Con este libro de melancolía,
Trovó a Santo Domingo, trovó a Santa María, toda Castilla a mi rincón me llega;
y a San Millán, y a San Lorenzo y Santa Oria Castilla la gentil y la bravía;
y dijo: Mi dictado non es de juglaría; la parda y la manchega.
escrito lo tenemos; es verdadera historia. ¡Castilla, España de los largos ríos
Su verso es dulce y grave: monótonas hileras que el mar no ha visto y corre hacía los mares;
de chopos invernales en donde nada brilla; Castilla de los páramos sombríos,
renglones como surcos en pardas sementeras, Castilla de los negros entinares!
y lejos, las montañas azules de Castilla. Labriegos transmarinos y pastores
Él nos cuenta el repaire del romero cansado; trashumantes —arados y merinos—;
leyendo en santorales y libros de oración, labriegos con talante de señores,
copiando historias viejas, nos dice su dictado, pastores del color de los caminos.
mientras le sale afuera la luz del corazón. (MACHADO, 1997, p. 127)60.
(MACHADO, 1997, p. 138-139)59.
Nota-se no poema um forte teor
No poema, Machado intitula Berceo como o
melancólico, evidenciado não só na afirmação
poeta e hermeneuta ao qual os escritores devem
do primeiro verso, em que opina que o livro, seu
seguir. Para este e aquele, o papel do escritor é
livro, é uma obra melancólica, mas, também, na
o de narrar as sensibilidades do presente. Assim,
força que o eu lírico pretende dar ao poema com
se o tempo atual é o da decadência, então não
a colocação de exclamações do quarto ao sétimo
será fechando os olhos à decadência que esta
verso. Antes desse momento de fulgor, o eu
desaparecerá para surgir, como substituta, uma
lírico anuncia que ele sente, vindo de todos os
era que convide ao otimismo. Não, o poeta há
cantos da nação, a influência dessa Castilla
de arraigar-se nas entranhas da história e dela
pretérita: gentil, corajosa e manchega. Não é
extrair, assim como Berceo, a verdade (íntima).
casualidade que escolha o gentílico manchego,
Contudo, como já manifestamos, há uma
dado que referencia àquele nascido em Castilla
contradição entre a ética poética dos versos de
La Mancha, região onde Espanha principia-se
Machado e o que desvela sua perene apologia à
como nação; e de onde é Dom Quixote.
antiguidade castellana, uma vez que critica o
Continuando com a análise do poema, os
pouco compromisso social dos modernistas,
quatro versos contidos entre exclamações
manifestando ele – e sua geração (SHAW, 1982)
aglomeram em si três vezes a palavra Castilla,
– a mesma fuga da realidade, mudando, somente,
a fim de realçar o nome da região, como se por
o automóvel estético de escape. E é que o andaluz
repeti-la reiteradamente esta voltasse da sua
menoscaba sua Espanha, seu tempo, obvia a
dimensão incorpórea e onírica, para tornar-se de
circunstância moderna específica, a fim de
novo imanente. Assim, o eu lírico continua
localizar a Espanha da Idade Média, que, devido
mencionando todos os elementos que fazem
ao seu ethos esplendoroso, necessita legar seu
parte dela, como a ausência de mar, os paramos
volkgeist esplendoroso à Espanha
sombrios, pastores, cores etc.
contemporânea de inícios do século XX.
Nesse sentido, há uma alternância entre

59 O primeiro é Gonzalo de Berceo chamado/ Gonzalo de nos diz seu ditado,/ enquanto sai-lhe afora a luz do coração.
Berceo, poeta e peregrino/ Que, indo de romería em (Tradução nossa).
romería aqueceu em um prado,/ E a quem os sábios pintam
60
copiando um pergaminho/Trovou a Santo Domingo, Com este livro de melancolia,/ toda Castillha ao meu
trovou a Santa María,/ e a San Millán, e a San Lorenzo e canto me chega;/ Castilha a gentil e corajosa;/ a parda e
Santa Oria/ e disse: Meu ditado non es de juglaría;/ escrito manchega./ Castilha, Espanha dos largos rios/ que o mar
o temos; é a verdadeira história/ Seu verso é doce e grave: não viu e corre até os mares;/ Castilla dos paramos
monótonas fileiras/ de choupos invernais onde nada sombrios,/ Castilla das negras botijas!/ Camponeses
brilha;/ traços como ranhuras azuis de Castilha./ Ele nos transmarinos e pastores/ transhumanos – arados e merinos
conta o repaire do romeiro cansado;/ lendo em –;/ camponeses com postura de senhores,/ pastores de cor
santificações e livros de oração,/ copiando histórias velhas, dos caminhos. (Tradução nossa)
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 119

signos que poderíamos considerar como involução histórica é visto no intelectual


favoráveis à relação topofílica do ser com o antimoderno, que rejeita a ideia utópica ou de
fenômeno, isto é, de amizade com o espaço criação ab initio do mundo como solução ao
(TUAN, 2013): color de los caminos, gentil, pecado original instaurado no mundo desde sua
bravía; mas, ao mesmo tempo, também o gênese. Como contraproposta, o antimoderno
contrário, ou seja, de topofobia: paramos propõe salvar o passado ou, como no caso de
sombrios e negros entinares. Com essa Antonio Machado, “salvar o que puder ser
dualidade, Machado pretende mostrar que salvo, de negar a mudança, de ‘manter’”
Castilla não é a Espanha rubendariana, a dos (COMPAGNON, 2014, p. 26).
cisnes, ouro e beleza ímpar, senão a forte, brava, Ao anelar o passado de volta, negando,
de guerreiros, a Castilla da Idade Média, época portanto, a Espanha moderna, Machado se
não-moderna. pergunta, então, qual o porvir de Castilla, onde
Não obstante, quando o sonho castellano de estará? Será que “¿espera, duerme o sueña?”
Machado finda, a Castilla que consegue ver é a (MACHADO, 1997, p. 9)63. Uma das respostas
corroída pela força decadente da modernidade. a tem Miguel de Unamuno, que no seu poema
Da seguinte forma a define no poema A orillas Logré morir con los ojos abiertos, elucida que a
del Duero VI: Espanha pretérita não pode ser encontrada
senão no mundo do sonho:
¡Oh tierra ingrata y fuerte, tierra mía!
¡Castilla, tus decrépitas ciudades! Entre conmigo en tu seno tranquilo
¡La agria melancolía bien acuñada tu imagen de gloria;
que puebla tus sombrías soledades! haga tu roca a mi carne un asilo;
¡Castilla varonil, adusta tierra; duerma por siglos en mí tu memoria,
Castilla del desdén contra la suerte, ¡mi España de ensueño!
Castilla del dolor y de la guerra, (UNAMUNO, 1966, p. 874)64.
tierra inmortal, Castilla de la muerte!
Portanto, sonhemos.
(MACHADO, 1997, p. 14).61
O poema supracitado retorna ao tema da 4 Considerações finais
melancolia, só que desta vez parece não haver O medo do homem moderno perante o
redenção possível à terra adusta, sem sorte, de progresso se evidencia em alguns literatos que
dor, de guerra, de morte. Se no poema Desde mi encontraram no veículo literário uma forma de
rincón conseguimos presenciar a apologia do eu revelar os fantasmas que assombraram a alma
lírico ao passado da nação, neste o que vemos desse tipo de sujeitos modernos, divididos entre
são impropérios gritados a esse tempo e espaço a moda e a tradição. Esse espírito ambivalente é
decrépito que chega até os dias atuais. Assim, é visto com nitidez nos escritores da Geração de
possível inferir que em Desde mi rincón, 98, os quais
quando o eu lírico explora as glórias de Castilla,
ensejam um movimento de ruptura com a
não se refere à Castilla do derramamento de ordem estabelecida, muitas vezes, derivado de
sangue, dos reis e nobres, mas à Castilla dos uma percepção crítica da realidade, justamente
pastores e artesãos, enfim, a Castilla do povo por situar-se em um processo de transformação
que Unamuno denomina de intrahistórico 62 histórica que incluía o aumento da
(UNAMUNO, 2008). racionalização, a maior eficiência na produção
Esse tipo de pessimismo focado na de bens e na administração política, envolvendo

61 Oh terra ingrata e forte, terra minha!/ Castilla, tuas 2008). Para mais informação, recomendamos a leitura do
decrépitas cidades!/ A azeda melancolia/ que povoa tuas artigo: OLIVEIRA NETO, W. P.; CAMPOS, A.S. O palpitante
sombrias solidões!/ Castilla varonil, adusta terra;/ Castilla silêncio de Castilla: intra-história na lírica da Geração de 98. In:
do desdém contra a sorte,/ Castilla da dor e da guerra,/ terra Congresso Internacional de Letras (CONIL), 2021, Bacabal.
imortal, Castilla da morte! (Tradução nossa). Congresso Internacional de Letras - Anais, 2021. p. 1136-1154.
62 O conceito de intrahistória foi acunhado por Unamuno em Disponível em: https://sites.google.com/ufma.br/anais-e-
En torno al casticismo (1895, originalmente). Este remete à resumos-do-conil/publica%C3%A7%C3%B5es/anais/anais-
história esquecida pelos jornais e livros de história, mas que diz iv-conil?authuser=0.
63 Espera, dorme ou sonha? (Tradução nossa)
muito mais sobre a essência do povo castellano que a dos
64 Entre comigo no teu seio tranquilo/ bem abrigada tua
supostos heróis que a representam. Unamuno é da opinião de
que o resgate da tradição eterna da nação há de se dar pelo imagem de glória;/ faça tua rocha à minha carne um asilo;/
resgate do ethos desse passado, cujas marcas se encontram durma por séculos em mim tua memória,/ minha Espanha
presentes na alma do povo das vilas, dos pueblos, enfim, das de sonho! (Tradução nossa).
zonas ainda não corroídas pela modernidade. (UNAMUNO,
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 120

a técnica e a tecnologia científicas para inferir que seu pessimismo também é o vitalista.
viabilizar uma dominação, exploração e Para o sevilhano, há salvação para a
destruição da natureza e do homem, que modernidade, encontrando-se tal redenção da
gerariam a desumanização, a violência e a cultura e alma espanhola na juventude
belicosidade (MARÇAL, 2020, p. 19).
(MACHADO, 1957). Já, ele, como intelectual
A nação espanhola, pendulada entre os mais perto da morte que da vida, entende que
cantos de sereia do industrialismo e as elegias seu papel é o de filtrar o que há de melhor na
místicas da Idade Média, vê-se mãe de uma sua memória e difundi-lo, a fim de que os jovens
série de escritores, que no desdobramento do possam, quem sabe, romper com o pecado
século XIX para o XX exploram essa dualidade original que ele, assim como os escritores da sua
que aqui definimos de antimodernidade. geração, não conseguiu erradicar:
Escolhemos definir o andaluz de Y es hoy aquel mañana de ayer… Y España toda,
antimoderno, pois se o antimoderno é “incapaz con sucios oropeles de Carnaval vestida
de concluir seu luto pelo passado”, é também aún la tenemos: pobre y escuálida y beoda;
possível afirmar que está incluído “no más hoy de un vino malo: la sangre de su herida.
movimento da história” (COMPAGNON, 2014, Tú, juventud más joven, si de más alta cumbre
p. 18). Dessa forma, não poderíamos categorizar la voluntad te llega, irás a tu aventura
a Antonio Machado como mero reacionário ou despierta y transparente a la divina lumbre:
tradicionalista, pois ele não se ancorou como el diamante clara, como el diamante pura.
rigidamente no passado, mas conheceu e até usou (MACHADO, 1997, p. 130)66.
de dispositivos da modernidade – principalmente Referências
de carácter estético – para atravessar o cenário
onde estava inserido contra sua vontade, sendo, BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido
por isso, um tipo de “moderno a contrapelo” desmancha no ar: a aventura da modernidade.
(COMPAGNON, 2014). Trad. C. F. Moisés, A. M, L. Ioratti, M. Macca.
Todavia, gostaríamos de mencionar que o 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
pessimismo inerente ao antimoderno, não é o
BROWN, Gerald G. Historia de la literatura
mesmo que o niilista contemplativo de
española: el siglo XX (Del 98 a la guerra civil).
Schopenhauer, mas o crítico, vitalista e
Trad. Carlos Pujol. Barcelona: Editorial Ariel,
enérgico, próprio ao de Unamuno (2005) ou
Nietzsche (2017). Dito com outras palavras, o 2000.
pessimismo antimoderno é aquele que obra bem COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos:
esperando o mal ou, como diria Barthes, aquele de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Trad.
que possui “um pessimismo – ou um Laura T. Brandini. Belo Horizonte:N Editora
Derrotismo, ou um Abstencionismo, mas de UFMG, 2014.
uma Forma intensa de Otimismo: um Otimismo
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos
sem Progressismo” (BARTHES, 1979 apud
da modernidade. Trad: Cleonice P. Mourão,
COMPAGNON, 2014, p. 427).
Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. 2ª ed.
Miguel de Unamuno, o autor da Geração de
Belo Horizonte: Editora UFGM, 2014b.
98 mais páreo à orientação filosófica e estética
de Machado (SHAW, 1982), alcunha a este tipo LIMA, Luiz Costa. Antonio Machado. In: A
de pessimismo como Pessimismo religioso: “el ficção e o poema. 1ª ed. São Paulo: Companhia
que desespera de la finalidad humana del das Letras, 2012.
Universo, de que el alma individual se salve
GIDDENS, Anthony. Modernidade e
para la eternidad”, pois “el pessimismo que
identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de
protesta y se defiende, no puede decirse que sea
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
tal pessimismo” (UNAMUNO, 2005, p. 271)65.
No caso de Antonio Machado, podemos

65 O que desespera da finalidade humana do Universo, de pobre e esquálida embriagada;/ mas hoje de um vinho
que a alma individual se salve para a eternidade, [pois] o ruim: o sangue de sua ferida./ Tu, juventude mais jovem,
pessimismo que [não] protesta e se defende, não pode se da mais alta cume/ a vontade te chega, irás à tua
dizer-se que seja pessimismo como tal. (Tradução nossa). aventura/ acordada e transparente à divina lume:/ como o
66 E é hoje aquela amanhã de ontem...E Espanha toda,/ diamante clara, como o diamante pura. (Tradução nossa)
com sujos disfarces de Carnaval vestida/ ainda a temos:
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 121

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da


modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo, José
Pereira, Manuel Loureiro, et al. 1ª ed. Lisboa:
Texto Editores, 2010.
MACHADO, Antonio. Campos de Castilla.
Madrid: Cátedra, 1997.
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otras prosas póstumas. Buenos Aires:
Editorial Losada, 1957.
MARÇAL, Márcia Romero. O pensamento de
Miguel de Unamuno sobre a Modernidade:
europeização, urbanização e progresso.
Polifonia, Cuiabá-MT, v.27, n.45, 2020, p.10-
32. Disponível em: encurtador.com.br/gvNPT.
Acesso em: 29 set. 2021.
NIETZSCHE, Friedrich W. A gaia ciência.
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TODOROV, Tzvetan. O espírito das luzes.
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TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da
percepção, atitudes e valores do meio ambiente.
Trad. Lívia de Oliveira. Londrina, PR: EDUEL,
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UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento
trágico de la vida en los hombres y en los
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UNAMUNO, Miguel de. En torno al
casticismo. Madrid: Alianza Editorial, 2008.
UNAMUNO, Miguel de. José Asunción Silva.
In: Contra esto y aquello. 3ª ed. Buenos Aires:
Espasa – Calpe Argentina, 1950.
UNAMUNO, Miguel de. Poesías. In: Obras
completas IV. Madrid: Escelicer, 1966.

********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O


FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR”
Fernanda Castro de Souza Abreu67

RESUMO: De encontro aos preceitos da como corpus, o poema “balada do impostor”, de


sinceridade romântica, estabelecidos pela Geraldo Carneiro.
estética de composição poética regida pela
expressão das emoções do poeta em Palavras-chave: Fingimento poético; Fernando
equivalência ao exposto no poema, o Pessoa; Geraldo Carneiro.
fingimento poético deixa a busca entre
Mesmo quando um poeta faz as suas
correspondências entre autor e obra, para tomar conficções, acaba em verdades metafóricas.
a capacidade organizadora da linguagem como (CARNEIRO e MARANHÃO)68
elemento central, utilizando as emoções apenas
como ponto de partida, ou seja, as sensações
passam a ser reformuladas, intelectualizadas. O fazer literário entrelaça-se, em diversos
No poema “autopsicografia”, Fernando Pessoa, momentos, com diferentes ideias a respeito do
ao colocar o poeta como um fingidor, o torna que seria a verdadeira forma de criação de
um agente que, por meio do uso criativo da criação artística e quais seriam os processos que
linguagem, finge, remodela, as emoções a inserem em condição de verdade. Em
sentidas em um primeiro momento, para só Homero, a poesia era verdadeira por possuir
então dar forma à composição poética. Na origem divina, entre os clássicos a verdadeira
contemporaneidade, pode-se perceber uma arte liga-se à imitação dos grandes modelos a
aproximação temática entre o poema de Pessoa fim de evitar os excessos e desvios provocados
e o “balada do impostor”, de Geraldo Carneiro, pela solta imaginação. Até o fim do século
sendo possível notar pontos de convergência XVIII, a concepção de verdade na obra de arte
entre o poema contemporâneo e o moderno. está majoritariamente ligada à imitação dos
Diante disso, pretende-se analisar neste artigo fatos/da natureza (Aristóteles) ou de outros
como o poema português sintetiza o tema e autores (Horácio) e com a chegada da
como Geraldo Carneiro parece dialogar com a modernidade, com o movimento romântico, a
obra de Fernando Pessoa ao colocar o eu lírico questão da volta-se para o problema da
do seu poema como um “impostor” e como um sinceridade.
manipulador sagaz da linguagem. Para isso, O rearranjo semântico da ideia de verdade
serão utilizados os seguintes referenciais se desloca do campo da obediência dos
teóricos como principais aportes: Lírica e moldes poéticos de mimese/imitatio e passa a
lugar-comum: alguns temas de Horácio e sua se alojar no grau de fidelidade entre a escrita
presença em português, de Francisco Achcar, e e a expressão de emoções, sem que as normas
Razão do poema: ensaios de crítica e de de uma composição engessada por normas
estatística, de José Guilherme Merquior, e restritivas e já gastas pela tradição possam
barrar o livre fluxo das emoções sinceras e,

67 <https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/os-
Mestranda em Letras pela Universidade Federal do
Maranhão • fernandabreu97@gmail.com • Orientador: desmandamentos-por-geraldo-carneiro-salgado-
Rafael Campos Quevedo maranhao-210136.html>
68 Manifesto irônico intitulado “Os desmandamentos”,

escrito pelos poetas Geraldo Carneiro e Salgado Maranhão


e publicado pelo jornal O Globo.
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 123

por isso, verdadeiras. Ao afastar-se dos pensamento clássico para elevar a estética a que
clichês, o artista romântico se aproximado do pertence. A tendência romântica em
que chamou de originalidade “pois o desvalorizar o artifício é sentida na
verdadeiro poeta não imita, mas inventa. Não contemporaneidade, o que pode provocar
precisa ser um erudito. É um “gênio”. [...] A desvios de interpretações e mais que isso, um
genialidade não se aprende, o gênio nasce” reducionismo na arte de criação poética.
(CARPEAUX, 1978, p.158). A concepção romântica de sinceridade como
O Romantismo surge atribuindo grande verdade poética – “a poesia é verdadeira
valor ao individualismo, abrindo espaço para a porque corresponde ao estado de espírito do
vazão do subjetivo e, consequentemente, para a poeta”- não foi abandonada por boa tarde da
novidade. A recorrência dos usos de artifícios crítica e da historiografia literária. Ainda hoje
da cultura greco-latina era vista como barreira as vidas e quase sempre as personalidades dos
para a fluidez das vivências e emoções do poeta. poetas antigo são reduzidas linearmente de
É referente a essa estética o conteúdo contido no seus poemas” (ACHCAR, 1994, p.43)
prefácio de Gonçalves de Magalhães, retirado Em Razão do poema, José Guilherme
do livro Suspiros Poéticos e Saudades, em que Merquior coloca a razão como ordenadora das
aponta como infrutífero o fazer poético visto até emoções e das fantasias pois, é através dela que
então, colocando como saída a inovação o poema se enriquece ao poder fazer uso de
advinda com preceitos Românticos. diversas formas lógicas. Em sua afirmação, as
Até aqui, como só se procurava fazer uma visões poéticas que se instauram por um ideal
obra segundo a Arte, imitar era o meio de pureza não são possíveis de serem aplicadas
indicado: fingida era a inspiração, e artificial em linguagem.
o entusiasmo. Desprezavam os poetas a
A razão existe na poesia, e regula tanto o
consideração se a Mitologia podia, ou não,
sentimento quanto a fantasia, que no
influir sobre nós. [...] como se pudesse
verdadeiro poema não lhe são de nenhum
parecer belo quem achasse algum velho
modo opostos. Mas a atuação da razão vai
manto grego, e com ele se cobrisse. Antigos
ainda mais longe: é capaz de trazer para o
e safados ornamentos, de que todos se
poema várias formas lógicas. Diga-se de
servem, a ninguém honram!
passagem que nos referimos aqui a estruturas
Quanto à forma, isto é, a construção, por
lógicas, a armações do raciocínio, e não a
assim dizer, material das estrofes, de cada
elementos intelectuais. [...] Não se poderia
cântico em particular, nenhuma ordem
eliminar melhor a veleidade de fazer da
seguimos; exprimindo as idéias como elas se
poesia uma pura interjeição, um puro
apresentaram, para não destruir o acento da
“sentimento”, ou uma pura notação do
inspiração; além de que, a igualdade dos
sensorial “puro”. Tais purezas podem
versos, a regularidade das rimas, e a simetria
consistir até mesmo em programas literários;
das estâncias produz uma tal monotonia, e dá
nunca serão praticáveis em linguagem
certa feição de concertado artificio que jamais
(MERQUIOR, 2013, p.184)
podem agradar. (MAGALHÃES, s/d, p.3)
Ao tratar dos clássicos, o poeta faz críticas Na modernidade, o topos é singularmente
aos modos de composição que frisam a tomado em “Autopsicografia”, poema
igualdade dos versos, a regularidade das rimas publicado pela primeira vez em 1932 na revista
e a simetria das estâncias em detrimento da Presença, expõe a um só tempo a arte do
expressão do que é individual. Destaca-se aqui fingimento poético e seus desdobramentos na
a primeira parte da citação que põe a visão da recepção do leitor.
tradição como renegadora do que não lhe parece AUTOPSICOGRAFIA
fruto do trabalho de composição, como a O poeta é um fingidor
inspiração, e para tratar do rebaixamento dela Finge tão completamente
pelos autores de antes, faz uso da palavra Que chega a fingir que é dor
“fingida”, no sentido de “insincera”, “falsa” ou A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
“mentirosa”, isto porque para a tradição a
Na dor lida sentem bem,
espontaneidade não é sinônimo originalidade, Não as duas que ele teve,
enquanto que para os românticos é condição Mas só a que eles não têm.
sine qua non. Tais adjetivos parecem ser E assim nas calhas de roda
utilizados como forma de desqualificar o Gira, a entreter a razão,
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 124

Esse comboio de corda estorvar a leitura em busca de provas das


Que se chama coração. (PESSOA, 2006, p. vivências pessoais do poeta, assim como os
164-65) críticos focam suas análises no manejo das
As três estrofes do poema são divididas por palavras empregadas no texto, os meios verbais
aspectos do fingimento poético, a primeira dos quais o poeta se vale para manter as
apresentando, por meio de um jogo de evidências do “parecer real”. Como aponta
repetições de variações do verbo “fingir”, de Carlos Felipe Moisés, “o poeta fingidor” deve
que se trata a escrita baseada na reelaboração ser entendido não como “o poeta é um fingido”,
mental das emoções; a segunda, a recepção do mas como “o poeta é um criador de ficções”
poema por parte do leitor que se vê contemplado (MOISÉS, 2005, p.33).
diante do poema e, por fim, a relação existente É nessa recepção que foca a segunda estrofe.
entre razão e emoção. Por meio da Ao se deparar com o poema, o leitor desenlaça
intelectualização, a emoção sentida é qualquer relação entre a dor sentida (talvez)
transformada em emoção artística pelo poeta, a dor expressada e a dor recebida
pelo leitor. Isso se dá devido à emoção do poeta
Para passar de mera emoção sem sentido à ser usada apenas como “ponto de partida”; a dor
emoção artística, ou susceptível de se tornar
artística, essa sensação tem de ser
expressa como fruto de um trabalho intelectual
intelectualizada. Uma sensação de expressão artística, por fim, a dor que toca o
intelectualizada segue dois processos leitor como uma dor empática, que ele, de fato,
sucessivos: é primeiro a consciência dessa pode não ter presenciado, mas que absorve
sensação, e esse facto de haver consciência de empaticamente da leitura.
uma sensação transforma-a já numa sensação A “emoção ponto-de-partida” também é
de ordem diferente; é, depois, uma descrita por Francisco Achcar, associando-a como
consciência dessa consciência, isto é: depois um elemento de mimese. “A “emoção ponto-de-
de uma sensação ser concebida como tal — o partida” é importante, não biograficamente, mas
que dá a emoção artística — essa sensação literariamente considerada, isto é, considerada
passa a ser concebida como intelectualizada,
o que dá o poder de ela ser expressa.
como elemento de mimese” (ACHCAR, 1994,
(PESSOA, 1966, p.192) p.52). Dessa forma, as emoções vivenciadas pelo
sujeito real não necessariamente se apresentam
A primeira estrofe traz o enraizamento da como um espelhamento entre autor e obra, mas
tarefa de fingir no poeta, pois finge de tal forma como uma emoção a ser reelaborada pela
que chega a fingir a dor que (quem sabe?) sente, linguagem. A emoção modelada que se apresenta
traduzindo dessa forma qualquer confissão do no poema torna-se então elemento de
sujeito real como algo ficcional exposto pelo contemplação para leitor, que se satisfaz defronte
sujeito lírico. Ao apontar a engrenagem mental de uma dor que não é necessariamente do poeta e
do poeta em transformar o sentido em emoção que também não é necessariamente a sua, mas que
intelectualizada, como um artifício de criação poderia ser.
poética, percebe-se que é desconsiderado
qualquer juízo de valor que reivindique a não Assim como o poeta fingiu dor, podendo até
ter partido de uma dor que sentia, os leitores
exposição das emoções verdadeiras como prova só podem estar também em situação de
de desqualificação da crítica, como destaca o fingimento quando sentem uma dor que não
estudo de Hernandi utilizado por Achcar têm. Leitores e poeta estão rodeados de ficção
A sinceridade do poeta, isto é, o tipo e o grau por todos os lados numa situação que os isola
de correspondência entre sua personalidade de qualquer verdade quanto ao que se sente e
real e sua imagem (implicada por suas que seja independente do trabalho de
“máscaras” favoritas), não tem qualquer fingimento. (RACHWAL, 2011, p. 14)
relevância estética. Para o leitor casual a “E assim” (v.9), prenúncio de conclusão do
convincente aparência de sinceridade é
poema, é colocada para análise a última estrofe.
suficiente, e os melhores críticos estruturais
sabem que seu trabalho se completa quando
Tem-se aqui a imagem de uma calha de rodas
dão contados meios verbais através dos quais formada por um comboio de cordas (que se
essa aparência foi suscitada com êxito” chama coração) para entreter a razão. Toma-se
(HERNADI apud ACHCAR, 1994, p.53) o coração aqui como o elemento representante
das emoções que é posto em uma maquinação,
Segundo a citação, o leitor casual se regozija um comboio de cordas, que trabalha para
com a aparência de sinceridade, não precisando
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 125

deleitar a razão. Desta forma, Pessoa expressa contemporâneo, lança em 2006 pela primeira
um resumo da estética do fingimento poético, vez o poema “balada do impostor” no livro que
em que é sugerido ao poeta que intelectualize o tomou o mesmo nome. O Balada do impostor,
vivido para transformá-lo em arte. Tal assim como considerável parte da obra de
intelectualização da emoção é vista pelo poeta Carneiro, é perpassado pelo reflexo de grandes
como fruto do seu sentimento, não provenientes obras, autores e mitos da cultura ocidental,
do coração, mas da imaginação, como aparece como Ilíada, Odisseia, Homero, Shakespeare,
na primeira estrofe do poema “Isto”, do Olavo Bilac; Eros, Musas, Orfeu e Prometeu,
ortônimo. referências que aparecem nos poemas de forma
ISTO explicitada ou não. O intertexto provocado pelo
Dizem que finjo ou minto poeta o mostra não como um autor soberbo, mas
Tudo o que escrevo. Não. como um leitor privilegiado que se utiliza de
Eu simplesmente sinto outras vozes além da sua para nutrir sua obra. É
Com a imaginação.
o que veremos no seguinte poema, no qual
Não uso o coração.
[...] (PESSOA, 2006, p. 133) podemos perceber vestígios de uma
aproximação entre o poema de Carneiro e o
Dessa forma, “autopsicografia” traz também tema do fingimento poético, além de traços
a colocação no poema do sentimento sentido metapoéticos.
não com o coração, mas com a imaginação, no
balada do impostor
campo do possível. A razão em remodelar a
sou um impostor, um dia saberão
emoção ponto de partida, travestida em “Isto” que simulei tudo o que sempre fui.
como “imaginação”, se atina em criar uma sou uma ficção, meu sangue é só linguagem
ficcionalidade recriando um sentimento natural. meu sopro é uma explosão que vem de dentro
É por meio da imaginação que o poeta finge, em forma de palavra.
no sentido originário do termo, daquele que quando já não for mais, serei eu mesmo.
modela com os dedos, que dá nova forma, enquanto tardo, trapaceio contra o tempo,
podendo assim remodelar suas vivências, suas a máquina vai me devorando
emoções e até a própria figura do poeta, como e vou passando como tudo passa
Pessoa faz com o seu ortônimo que pode ser em busca de uma graça que ultrapasse
o círculo da minha circunstância
também uma figura desenhada na obra poética.
o espelho que já não seja senão o outro
Uma das justificativas de Vasconcellos para esse que me habita e me espreita
tomar o autor como mito é justamente o fato que e, não sendo eu, me acata os meus espantos
“o autor se constituiu enquanto personagem de (CARNEIRO, 2010, p.82)
si mesmo, levando a autoria para o plano
ficcional” (VASCONCELLOS, 2013, p.37), é Tomando o título do poema como ponto de
justamente por esse grande jogo de partida para sua análise, destacam-se as duas
ficcionalidade traçado por Fernando Pessoa que palavras mais importantes: “balada” e
Achcar toma essa marca do poeta para sintetizar “impostor”. A primeira é uma forma lírica
o pensamento entre enunciação e eu lírico remetida aos primórdios da poesia, com
etimologia proveniente do baixo latim, ballare,
Pode-se dizer que a personagem segunda com que significa o mesmo que “dançar”. A origem
que identificamos o eu-lírico é um anônimo do nome se justifica pela forma poética balada
“heterônimo” do poeta, e está para ele como os
possuir melodia acentuada e ser associada às
heterônimos estão para Fernando Pessoa, - se
é justo entender que o que fez Pessoa foi mais primitivas manifestações poéticas, época
multiplicar, sistemática e explicitamente, a em que a poesia era acompanhada por uma
persona (ou as personae) que todo lírico cria. performance, realizada com o apoio de
[...] O sujeito real se traduz ficticiamente em instrumentos e danças (MOISÉS, 1988, p.53). A
sujeito lírico. Em outras palavras, o poeta lírico segunda palavra é descrita no dicionário da
será sempre um fingidor, ainda que o eu-lírico língua portuguesa organizado por Rodrigues e
finja a dor que ele, poeta (quem o saberá?), Nuno como o “que ou aquele que se faz passar
deveras sente. (ACHCAR, 1994, p.50) pelo que não é, que engana” (2005, p.425). O fato
5 O fingimento poético em Geraldo da palavra “impostor” ser associada no título do
Carneiro poema a uma forma poética tão antiga abre uma
chave interpretativa que pode adjetivar não
Geraldo Eduardo Carneiro, poeta brasileiro somente o eu lírico deste poema como impostor,
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 126

como também associar essa prática constitutiva paralelo com a última estrofe de Pessoa,
do poema como uma possibilidade integrada à levando em consideração a simbologia do
natureza da forma literária. sangue como sofrimento, emoções, sendo
Nos dois primeiros versos do poema há uma tratado como fruto da linguagem, no poema
confissão por parte do eu lírico a seu interlocutor: pessoano, para trazer a mesma carga semântica,
“sou um impostor”. E completa afirmando que o poeta português faz uso das imagens do
em um dia futuro saberão [a verdade], ele coração e do comboio de rodas. A construção
simulou o que sempre foi. Apesar de se colocar do poema por meio da reconstrução das
como um dissimulador, aquele que “faz parecer emoções/cenas vividas está inteiramente ligada
como real” (RODRIGUES E NUNO, 2005, ao uso criativo da linguagem pelo poeta, que
p.735), não toma juízo de valor dessa confissão trabalha a palavra a fim de atribuir-lhe novos
com algo negativo, mas como característica que usos e significações. Sendo assim, a linguagem
um dia será revelada e conhecida por todos, configura-se como o instrumento de trabalho do
tomando em consideração seus propósitos que poeta, como destaca Décio Pignatari, o poeta
serão apresentados mais adiante. faz a linguagem: “A palavra “poeta” vem do
No terceiro verso o eu lírico se caracteriza grego “poietes = aquele que faz” Faz o quê? Faz
como um ser de ficção, constituído linguagem. [...]. O poema é um ser de
intrinsecamente pela linguagem. Apesar do linguagem. O poeta faz linguagem. Vale dizer:
termo “ficção”, modernamente, ser está sempre criando o mundo” (PIGNATARI,
costumeiramente associado ao texto em prosa, é 2004, p.10-11).
possível estabelecer uma aproximação entre o Os próximos dois versos trazem a ideia do
termo e o uso poético relacionado ao fingimento ponto de partida do poema do impostor, que se
a partir da etimologia da palavra dá pelo sopro que vem como uma explosão de
Fictio é a palavra cognata do verbo
dentro para fora do poeta em forma de palavra.
fingo/fingere em latim como resultado da Esses versos, assim como a denominação do
ação desse verbo cujo primeiro significado é poema como balada, rememoram os tempos do
modelar com os dedos ou desenhar com os berço da poesia, em que sua manifestação do
dedos e a representação constituída a partir divino era firmada por meio do canto e da
dessa ação é a fictio, nossa ficção. Esse performance, manifestação essa que trazia o
mesmo verbo latino dá origem aos termos culto às Musas, divindades das tradições mito-
fingir, figura e fingimento em português. poéticas que proporcionavam aos mortais o
Quando, portanto, pensamos a literatura, contato com a poesia divina, que chega aos
como reconstrução de cenas, de objetos e de
homens por meio do “sopro”, ponto de partida
seres, tal modelagem não pode ser
considerada real ou verdadeira, pois que,
do poema inspirado69. Nessa ocasião o poeta se
apenas é a sua imagem, uma figura, um encontra em estado de ausência de razão, para
fingimento, uma ficção. (MARTINS, 2009, que assim a Musa possa tomá-lo como
p. 143) intérprete. Remodelando as heranças poéticas
da tradição, o poema de Geraldo Carneiro não
Ao rememorar as raízes latinas, Paulo mostra mais um sopro que vem de fora, como
Martins traz a fictio como resultado das ações no caso da inspiração pelas Musas, mas sim um
do verbo fingere (modelar), o mesmo verbo sopro que vem de dentro do poeta, que faz agora
latino que dá origem ao termo fingimento. As uso de sua racionalidade para arquitetar o
palavras “ficção” e “linguagem”, presentes no poema. Agora o poema surge da maquinação do
poema, são constituintes do fazer literário poeta que, longe se ser apoiado por algum
baseado na remodelação das emoções ainda insight, se torna o ser pensante e criativo que
“em estado bruto”, no qual a primeira, a ficção, utiliza do artificio do poeta, a linguagem, para
torna-se o resultado do trabalho de fingir as tornar sua obra única.
palavras por meio do uso criativo da linguagem. É por meio da modelagem das várias formas
Neste mesmo verso, quando o poema traz de se usar a palavra que o poema pode
“meu sangue é só linguagem” pode-se traçar um proporcionar ao poeta a “trapaça contra o

69“Inspiração foi o termo do latim tardio que traduziu a relacionados ao pneuma (sopro), isto é, como se uma voz
ideia de entusiasmo e que ressaltou um aspecto marcante “soprasse internamente” – daí a terminologia “ins–piro”,
contido na noção grega: era frequente que a intervenção vinculada ao próprio sopro da fala sobrenatural” (MUNIZ,
divina nas ações humanas fosse descrita em termos 2011, 13-14)
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 127

tempo”. A ideia do poema poder funcionar como textos dos dois poetas se aproximam quanto às
meio de imortalização do poeta e de quem esteja características metapoéticas e, principalmente,
nele representado volta-se para Horácio e sua pela temática que aponta o poeta (por ele
famosa Carmina 3.30 70 , ode que dá nome ao mesmo) como um fingidor, ou seja, aquele que
topos do Exegi monumentum ou perenidade da faz uso racional dos acontecimentos e de suas
poesia. Achcar afirma que o tema da poesia como emoções para poder exprimi-los em arte,
fonte de perenidade “parece ser tão velho como fazendo uso criativo da linguagem, abrindo
a lírica: um dos títulos mais valiosos que um vate assim a gama de possibilidades artísticas do
podia ostentar era justamente o de perenizador poeta para criar novas ficções.
daquilo que seu canto celebrava” (ACHCAR,
6 Considerações finais
1994, p.159). O tema horaciano revive na poesia
de Geraldo Carneiro também no poema A ideia de não haver a necessidade colocar
“autorretrato deprê”, ao mencionar que “todo nos poemas as experiências sentidas é a
poeta nasce um pouco póstumo / como volúpia principal temática que aproxima o poema de
de vencer a morte” (CARNEIRO, 2010, p. 64), Geraldo Carneiro ao poema “Autopsicografia”
sendo essa, segundo o topos, uma forma de de Fernando Pessoa e, consequentemente, ao
ultrapassar o círculo de sua circunstância. fingimento poético como uma forma de escrita
Os três últimos versos voltam à questão da literária.
ficcionalidade, do não ser “eu” para ser o outro. O poema de Fernando Pessoa inicia com a
O espelho em que o eu lírico se mira não o constatação “O poeta é um fingidor”, assim
reflete, mas reflete um outro que está sempre a como o poema de Geraldo Carneiro se inicia
sua espreita. Esse outro que surge como reflexo com “sou um impostor”. Os dois referem-se ao
do eu lírico pode significar a potencialidade poeta, o primeiro de forma explícita no primeiro
criativa que o poeta dispõe para tratar de um “eu” verso do poema e o segundo por meio dos
no poema, que não precisa, necessariamente, ser vestígios que aparecem adiante que estão
reflexo de quem o escreve. É justamente por não ligados ao universo da criação literária. Esses
precisar ser ele que são postas várias versos (versos 3, 4 e 5), falam a respeito da
possibilidades de criações do ficcional. ficcionalidade, da “essência” da constituição do
O “outro” a que o poema se refere, além da poema que é a linguagem, assim como o sangue
possibilidade ficcional de quem se fala no é para o homem, e, por fim da palavra.
poema, pode fazer referência aos poetas que, de Esses poetas são postos, primeiramente,
certa forma, influenciaram o poeta, os outros como impostores de forma direta (O poeta é um
que estão sempre à espreita por fazerem parte de fingidor / sou um impostor), colocados de tal
sua formação, dessa forma, o poeta pode se forma que à primeira vista parece ser um
apropriar do artifício de rasurar a seu modo o adjetivo pejorativo, mas que depois a ideia é
palimpsesto que lhe foi ofertado e deixar ecoar suavizada pela a explicação do porquê de eles
no seu poema o que foi lhe deixado como serem adjetivados de tal forma.
herança pelos poetas que o precederam. Eles são postos como fingidores/impostores,
O último verso “e, não sendo eu, me acata os que aqui podemos tomar tais adjetivos como
meus espantos” induz-nos a pensar o eu do sinônimos, pois arquitetam seus escritos
poema em um lugar confortável de liberdade poéticos por uma ótica que não se limita à visão
para dispor desses outros a quem pode recorrer, biografista do poema, muito pelo contrário,
sendo eles os seus espantos, suas inquietudes proporcionam uma visão do fazer literário que
que proporcionam a ideia criativa do poema. alarga as várias possibilidades de ficcionalidade
Segundo Octavio Paz, “a criação poética é do poema. Tratar o poema como possibilidade
exercício de nossa liberdade, de nossa decisão de ficção afasta a ideia de tomada do texto
de ser. Essa liberdade [...] é o ato pelo qual artístico como como um documento, mas sim
vamos mais além de nós mesmos, para sermos como um produto da imaginação do poeta, em
mais plenamente”. (PAZ, 1982, p.218) uma elaboração fictícia. Sendo assim, o
Diante do observado, percebe-se que os fingimento se opõe à escrita biográfica, mas

70Um monumento mais que o bronze eterno / E que reais mérito ganhada, / Eleva-te e de boa mente cinge/ com
pirâmides mais alto / Arrematei, que nem voraz dilúvio, / délfico laureal os meus cabelos. (Tradução de Elpino
Áquilo iroso ou série imensa de anos / Nem nos tempos a Duriense) (ACHCAR, 1994, p. 154-155)
fuga estragar possa/ [...] Melpómene, / com soberba por
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 128

acredita que a apuração da sinceridade dos originalidade ao pôr em temas rasurados seus
sentimentos narrados não interfere na novos traços. A metáfora da rasura do
experiência estética. palimpsesto é posta por Ivan Junqueira, que
Além de tais traços que favorecem uma aproxima a prática da escrita em papiros à
leitura do poema de Carneiro com vestígios da pratica intertextual no livro O encantador de
obra de Fernando Pessoa sobre ele, nota-se no serpentes (1987) ao tratar da prática intertextual
poema contemporâneo a presença de outras como algo tão antigo quanto a técnica do
vozes presentes na composição. Notam-se palimpsesto, que nada mais era que pergaminho
vestígios de temáticas caras à crítica da ou papiro, que
literatura que, grosso modo, pelo seu uso “era por diversas vezes raspado ou lavado
consagrado, cristalizam-se como lugares- pelos copistas e, a seguir, polido com marfim
comuns. É o caso das marcas que sinalizam a para que nele de novo pudesse escrever. O
referência ao mito da inspiração poética e o que ali estava escrito, porém, jamais era
exegi monumentum. inteiramente apagado. E assim, à revelia das
Os dois temas aparecem de forma sutil, o ambições e impulsos de originalidade de
primeiro tendo em vista a palavra-chave quem sobre ele escrevesse o seu texto e da
“sopro”, acompanhada da explicação que é um impossibilidade técnica de suprimir-se por
sopro que vem de dentro em forma de palavra, completo o que já estava escrito, o texto ali
grafado haveria de persistir pelos tempos
o oposto contrário da tradição do mito das
afora” (JUNQUEIRA, 1987, p. 86).
Musas inspiradoras. O enlace com o tema
também é reforçado pelo conjunto do livro Essa percepção de diálogos entre os textos
“Balada do impostor”, em que a temática do não buscou realizar uma busca entre fonte e
auxílio divino para a criação poético acontece influência, mas sim verificar o modo criativo
com frequência ao longo da obra, sendo com que o poeta dispôs das heranças deixadas
destaque, inclusive, no prefácio. A temática da por outros poetas. O que buscamos verificar
inspiração nesse poema surge para ser negada, aqui foi o processo de intertextualidade
pois o eu lírico busca abandonar as realizado por Geraldo Carneiro.
características irracionais do poeta inspirado A intertextualidade, como propriedade
para revelar-se como um agente ativo do seu descrita, passou a significar um procedimento
próprio poema, aquele que faz uso dos artifícios indispensável à investigação das relações
da linguagem para se tornar memorável para a entre os diversos textos. Tornou-se chave
posteridade. para a leitura e um modo de problematizá-la.
É justamente para tratar do objetivo do poeta Como sinônimo das relações que um texto
em se tornar presente no porvir que aparecem as mantém com um corpus textual pré ou
marcas do topos da perenidade da poesia, coexistente, a intertextualidade passou a
cristalizado pelo poema de Horácio, mas que orientar a interpretação, que não pode mais
desconhecer os desdobramentos de
possui vestígios da temática proveniente do
significados e vai entrelaça-los como a
período arcaico - quando a poesia era marcada própria origem etimológica da palavra
pela oralidade, tendo em vista que a escrita esclarece: texere, isto é, tecer, tramar
ainda não havia sido inventadas - a ideia da (CARVALHAL, 2006, p. 128).
poesia como forma de perenizar o poeta e o que
está disposto no poema. A partir das ideias de comunicabilidade
Dessa forma, ao analisar o poema de Geraldo entre textos traçada pela intertextualidade,
Carneiro, percebe-se que o poeta se mune de uma afasta-se deste artigo a busca entre “fontes” e
leitura atenta não apenas de Fernando Pessoa e “influências”, que pressupõe alguma
de suas ideias do fingimento poético, mas superioridade de um texto sobre outro,
também de outros poetas que constituem seu estabelecendo-se assim uma hierarquia, para, ao
arcabouço de espelhamento “o espelho que não invés disso, dar lugar às análises nos diálogos
seja senão o outro / esse que me habita e me temáticos entre os textos, percebendo como tais
espreita” (CARNEIRO, 2010, p. 82). poetas contemporâneos reutilizam esse
É dessa forma que Geraldo Carneiro se esquema de pensar deixado como herança,
apropria do palimpsesto, tomando temas já dessa forma “a intertextualidade como
famosamente vistos em outros autores, mas em propriedade textual elide o sentido negativo e dá
que seu trabalho com as palavras ganha ênfase à natureza criativa do processo de
produção textual.” (CARVALHAL, 2006,
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 129

p.129). Na mesma esteira, Donizeti Pires aponta MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
a intertextualidade como um certo combustível literários, São Paulo: Editora Cultrix LTDA,
para a máquina do poema, ao colocar o poeta, 1988
“leitor privilegiado”, como provocador de
MUNIZ, Fernando (org). As Artes do
novos olhares sobre as leituras que o
Entusiasmo: a inspiração da Grécia à
constituem, adicionando a elas seu arcabouço
contemporaneidade. Rio de Janeiro: 7Letras,
criativo “o poeta, leitor privilegiado, se vê assim
2011
compelido a rasurar71 o acervo recebido e a nele
escrever e inscrever sua obra e seu pensamento PAZ, Octávio. O Arco e a Lira. Tradução de
poético-estético, levando ao paroxismo uma Olga Savary, 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora
prática que, inevitavelmente, sempre Nova Fronteira, 1982
acompanhou a literatura” (PIRES, 2007, p.16). PESSOA, F. Páginas Íntimas e de Auto-
Referências Interpretação (Textos estabelecidos e
prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do
ACHCAR, F. Lírica e lugar-comum: alguns Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
temas de Horácio e sua presença em português.
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In___. Fernando Pessoa: almoxarifado de
mitos. São Paulo: Escrituras Editora, 2005.

71 O molde de escrita escolhido por Donizeti Pires faz que ali estava escrito, porém, jamais era inteiramente
referência à metáfora utilizada por Ivan Junqueira em O apagado. E assim, à revelia das ambições e impulsos de
encantador de serpentes (1987) ao tratar da pratica originalidade de quem sobre ele escrevesse o seu texto e
intertextual como algo tão antigo quanto a técnica do da impossibilidade técnica de suprimir-se por completo o
palimpsesto, pergaminho ou papiro, que “era por diversas que já estava escrito, o texto ali grafado haveria de persistir
vezes raspado ou lavado pelos copistas e, a seguir, polido pelos tempos afora” (JUNQUEIRA, p. 86)
com marfim para que nele de novo pudesse escrever. O
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA


MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD
Emilly Silva Rodrigues72 • Rafael Campos Quevedo73

RESUMO: Este trabalho parte das teorizações que a ideia de inovação absoluta, na época
de René Girard sobre o mimetismo, articulando- romântica e pós-romântica, é falsa. Com base
as à concepção de criação poética fundamentada nisso, é possível pensar em uma mediação
na tradição da imitação. Girard (2009) mostra, interna na qual modelo e imitador ocupam um
em Mentira romântica e verdade romanesca, mesmo plano temporal e físico, o que dá
através de personagens inseridas em romances, margem para a rivalidade e a emulação. Isso
como um modelo orienta ao sujeito desejante posto, a partir da perspectiva do autor e de uma
objetos que devem ser almejados. Tal discussão propriamente teórica, objetiva-se
mecanismo do desejo, delineado pelo teórico examinar os processos de composição que
francês, pode ocorrer de forma externa, quando envolvem a imitatio e a aemulatio, bem como a
o modelo está distante do sujeito, ou interna, no ideia da tradição de ruptura a datar do
qual essa distância, física ou psicológica, é Romantismo. Em um primeiro plano, dialoga-
reduzida. Como consequência dessa se com poéticas clássicas que versam sobre a
aproximação entre sujeito desejante e mediador, imitação e a importância dos modelos, tais quais
a possibilidade de rivalidade aumenta entre os a Arte poética, de Horácio (2005), o Tratado da
entes que aspiram à possessão do mesmo objeto. imitação, de Dionísio de Halicarnasso (1986), e
Sabe-se que desde a Antiguidade greco-romana Do sublime, de Longino (2005). Ademais, o
a concepção de mimesis esteve relacionada com segundo plano considera, com base na relação
a criação artística, tendo um forte abalo apenas entre imitação e inovação apresentada por
no final do século XVIII quando os românticos Girard (2002), uma abordagem mimética da
puseram em xeque a legitimidade da qualidade criação poética no Romantismo e nos
poética com base na imitação dos autores movimentos que o sucedem, considerando as
canônicos que pertenciam à tradição clássica. ponderações de Octávio Paz (1993) em A outra
Na obra A voz desconhecida do real: uma teoria voz e Haroldo de Campos (1996) em O arco-íris
dos mitos arcaicos e modernos, René Girard branco. Observa-se a estreita relação entre
(2002) observa como essas duas espécies de imitação e emulação desde os tratados da
mediação podem ser verificadas em períodos Antiguidade, como também a presença da
que aderem ou não, em grande parte de suas mimesis após a ruptura romântica.
produções culturais, à imitação dos modelos
clássicos. Na percepção girardiana, o período Palavras-chave: Criação poética; Teoria
entre o século XVI e XVII, é caracterizado pela mimética; René Girard; Emulação; “Tradição
mediação externa, tanto no campo intelectual de ruptura”.
quanto espiritual. É, sobretudo, nos séculos XIX
e XX que o gosto pela inovação cresce, 1 Introdução
eliminando a mediação externa de modelos Os apontamentos presentes nestas
canônicos. Embora este tipo de intermédio discussões partem das observações de René
mimético desmorone, Girard (2002) argumenta Girard (2002) sobre a relação entre imitação e

72
Graduanda do curso de Letras - Português e Inglês • 73Doutor em Literatura • rafael.quevedo@ufma.br •
emillysilvarodrigues2000@gmail.com • UFMA/PIBIC UFMA
FAPEMA
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 131

inovação, em A voz desconhecida do real: uma exemplo econômico para depois mostrar que as
teoria dos mitos arcaicos e modernos. Servem- atividades culturais denominadas inovadoras
se também de outras obras do autor que ajudam também imitam modelos. Assim, a imitação é
a compreender melhor sua concepção de um percurso comum para aqueles que desejam
mímeses. Assim, nota-se que dois tipos de inovar. De forma equivalente, René Girard
mediação do modelo são possíveis: uma externa (2002) mostra que também é possível criar
e outra interna. Enquanto a primeira pode ser quando se está imitando.
percebida na criação poética até o século XVII, O aparente paradoxo apresentado por Girard
a segunda começou a ser difundida a partir do (2002) é apontado a partir de sua teoria
final do século XVIII. mimética que concebe o desejo como resultado
Uma vez que Girard (2002) afirma que não da mímeses de um modelo. À vista disso, duas
há inovação sem utilizar algum procedimento formas de mediação são possíveis: uma externa
de imitação, este trabalho vale-se de e outra interna. Enquanto o modelo da externa
comentários importantes sobre a mímeses está distante do ente que o imita, a interna tem
presentes nas poéticas clássicas de Horácio esses dois espacialmente próximos, propiciado
(2005), Dionísio de Halicarnasso (1986) e a rivalidade, uma vez que ambos desejam o
Longino (2015), que foram retomados pelos mesmo objeto.
neoclássicos e questionados pelos românticos. Em Mentira romântica e verdade romanesca, o
O desejo de mudança e de ruptura com os autor mostra como o ser que deseja, na mediação
preceitos vigentes situa-se no contexto da externa, declara a todos quem é o seu modelo. Em
modernidade, que foi marcada pela crítica e pela contrapartida, na mediação interna, a admissão da
visão linear do tempo a qual almejava o existência de um mediador é suprimida pelo seu
progresso do futuro. Essa ideia entrou em imitador que passa a alimentar por ele os
declínio, no início do século XX, quando alguns sentimentos de ódio e de admiração. Com base
acontecimentos históricos, como a Primeira e a nisso, a lógica na relação entre modelo e sujeito é
Segunda Guerra Mundial, resultaram no ocaso explicada pela rivalidade estabelecida entre os
da perspectiva utópica dos modernos. dois quando a esfera de convivência de um está
Considerando a “tradição de ruptura” e a próxima da esfera do outro. No mundo
situação da poesia no contexto pós-moderno, tais econômico, esse mecanismo é evidente no caso de
quais abordam Octavio Paz (1993) e Haroldo de uma companhia imitar outra, a qual está em maior
Campos (1996), objetiva-se examinar de que destaque. Entretanto, aquela que imita consegue
forma a teoria mimética pode dialogar com a inovar à medida que o elemento de novidade do
concepção de inovação na poesia. rival é dominado, possibilitando uma imitação
mais audaciosa, podendo ocasionar uma melhoria.
2 A teoria mimética de René Girard
A princípio, esse aperfeiçoamento é ignorado
René Girard (2002, p. 229), em A voz porque difere, aparentemente, do modelo vigente,
desconhecida do real: uma teoria dos mitos mas logo nota-se o resultado inovador, tal como
arcaicos e modernos, afirma que o ato de imitar mostra Girard (2002, p. 230 – 231). Nesse sentido,
e o ato de inovar não são tão diferentes entre si é comum que os imitadores de uma geração sejam
quanto usualmente se pensa: os inovadores de outra.
A inovação é suposta excluir a imitação tão É importante observar, no conjunto de
radicalmente como a imitação excluía a ensaios sobre a obra shakespeariana, que Girard
inovação. Como exemplo do emprego (2010, p. 604) faz algumas considerações sobre
correcto da palavra, cita-se naturalmente a a criação artística. Segundo o teórico, ao
frase: “É mais fácil imitar do que inovar”. comentar a peça Conto do inverno, enquanto a
Na minha opinião, esta concepção é falsa, preocupação dos renascentistas era imitar com
mas é mais fácil demonstrar essa falsidade em pouca fidelidade, os modernos, todavia,
certos domínios do que noutros. receavam não inovar ou repetir o que outros
Para o autor, a inovação não exclui a artistas tinham feito. Na teoria, a rejeição da
imitação, de modo que, mesmo quando afirma- mímeses era clara, mas, na prática, ela
se estar realizando algo completamente novo, continuava presente através da busca coletiva
há processos imitativos envolvidos, os quais são pela originalidade, o que ocasionou a
mais evidentes em certas áreas do que em competição entre os próprios artistas que
outras. Por isso, o teórico francês utiliza o aderiam e depois rompiam com as modas
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 132

estéticas. Portanto, a mímeses estava implícita, mediação ficou mais evidente na sociedade a
mesmo com as mudanças, sendo transferida partir da Revolução Francesa, quando a imitação
para o subterrâneo. do rei foi substituída pela imitação entre as
Observa-se que René Girard, nas obras aqui pessoas, como vizinhos, colegas de trabalho etc.
referenciadas, não elimina a possibilidade de Mediação externa e mediação interna estão
inovação, na verdade, ele questiona o rigor desse ligadas, segundo a concepção girardiana, com a
processo quando é tido como isento de qualquer imagem, maléfica ou benéfica, de inovação.
espécie de imitação. O autor destaca que a Conforme o teórico, essa relação pode ser
metamorfose de um imitador em inovador é percebida a partir de diferentes momentos
comumente percebida com surpresa pelo público históricos e o tipo de tratamento que eles deram
em geral. Isso sugere que o papel da imitação na à imitação explícita de modelos. Dessa maneira,
inovação, à primeira vista, é obscuro, mas pode a última fase da mediação externa situa-se entre
tornar-se detectável, posteriormente, a partir de o século XVI e XVII quando a preocupação não
um raciocínio mais abstrato. era com a prática da mímeses, mas sim com
Em Coisas ocultas desde a fundação do aqueles considerados maus imitadores. Durante
mundo: a revelação destruidora do mecanismo esse período o modelo encontra-se longe,
vitimário, resultado de estudos desenvolvidos temporalmente e espacialmente, de seus
entre 1975 e 1977, o mimetismo é evidenciado imitadores. Portanto, ele é explicitamente
como um problema antigo fundamental para a apreciado, de modo que a possibilidade de uma
compreensão do processo de evolução do rivalidade mais direta, entre mediador e
homem. Esse tema é importante para o teórico discípulo, é impossível. Neste contexto, inovar
que ao constatar, em seu tempo, uma certa significa ir de encontro ao que normalmente é
obliteração de estudos sobre a mímeses, aponta apresentado como estável, consoante com o que
a “culminação de uma tendência que remonta ao René Girard (2002, p. 223) destaca:
início da época moderna e que se afirma, no As pessoas acusavam-se umas às outras de
século XIX com o romantismo e o serem maus imitadores, infiéis à verdadeira
individualismo” (GIRARD, 2008, p. 28). essência dos modelos. Não é preciso
Ligada à retomada das discussões sobre a esperar muito, com a Querela dos Antigos
importância da imitação, o caráter de e dos Modernos, para que a questão central
apropriação ou aquisição desse procedimento dos debates se torne a da escolha dos
também deve ser avaliado, dado que qualquer modelos: os tradicionais ou os seus rivais
aprendizagem, no comportamento humano, modernos. Mas a ideia que deve haver
remete à ação de imitar. Do mesmo modo, ao modelos permanece comum aos dois
campos. O princípio da imitação estável,
reconhecer a importância do papel aquisitivo da
sobre o qual se baseia o sistema, é a última
mímeses, os seus efeitos também devem ser coisa que se pensa pôr em causa.
considerados, tal como a rivalidade.
Os contornos conflitantes da imitação em Antes da inovação ser apreciada, ela era
uma mediação interna devem ser identificados concebida como apocalíptica, majoritariamente,
em razão de que a própria tentativa de ocultar a até o século XVIII. No entanto, foi a partir do
rivalidade pode acentuá-la ainda mais. Girard século XIX com a contestação dos modelos
(2008) observa que essa contradição pode ser antigos, os quais eram tidos como referência,
cômica em alguns casos, mas desastrosa em que a inovação passou a ter significado positivo.
outros. De forma análoga, Richard J. Golsan Consequentemente, a mediação externa dá
(2014) destaca, ao introduzir pontos lugar a um novo mundo em que os indivíduos
importantes da teoria mimética, além de são livres para adotar ou não modelos.
relacioná-lo com o mito, que os indivíduos Progressivamente, a imitação e a tradição
também tendem a negar a imitação de um foram excluídas sendo substituídas por uma
modelo e a suprimir a atuação de um mediador ruptura completa que passou a ser importante
em seus desejos. para os criadores. Todavia, o teórico francês
Já a mediação recíproca entre rivais ocorre destaca que a mímeses não esteve ausente, com
quando o modelo e o sujeito estão próximos. efeito, ela converteu-se em contraimitação, uma
Dessa forma, à medida que a rivalidade cresce, as vez que o desejo de imitar tende a aumentar
diferenças são apagadas tornando-os duplos uns conforme é rejeitado pelo indivíduo. Girard
dos outros. Para Girard (2009), esse tipo de (2002, p. 227) observa a ruptura como resultado
de ideias, permeadas na literatura, na filosofia e
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 133

na música sobre uma inovação pura, isto é, escritores consagrados pela tradição teriam se
desvinculada de qualquer tipo de imitação de aproximado da beleza absoluta, quanto de um
modelos, que estimulou transformações no que forte sentimento de oposição à rudeza da
chamados de arte moderna. Com base nisso, o linguagem e das formas empreendidas pela
autor dá exemplos de como a mediação interna, literatura medieval. Assim, esse processo
em forma de ruptura, mais com o passado do apresentou aspectos de idolatria, uma vez que a
que com os outros, pode ser concebida no novo “imitação não era apenas das formas e dos
contexto: o pintor mede seu talento pela temas, mas dos processos, dos tópicos, do
capacidade de inovação da mesma forma que o ingrediente mitológico, das imagens e até da
amante mede seu amor pela habilidade de língua”.
inovar no domínio dos enamorados. A Arte poética, de Horácio (2005, p. 63),
Destacam-se dois pontos importantes destaca-se, nesse contexto, ao mostrar alguns
depreendidos da discussão girardiana. O princípios importantes para a obra de arte – a
primeiro é o desmoronamento da mediação unidade, a adequação ao gênero e a ordenação –
externa que elimina a imitação explícita de além de enfatizar a necessidade da formação
modelos antigos, mas não a mímeses como um intelectual do artista. Para este romano, ao invés
todo. O segundo acentua que o enraizamento da de serem apenas copistas servis, os poetas
inovação supõe o conhecimento do passado, deviam sempre atentar para a cadência de seus
bem como do processo mimético. próprios poemas, estudando “os modelos
Ademais, o autor acrescenta que enquanto a gregos com mão noturna e diurna”. O autor
estética moderna tende a prezar pela inovação, observa que pode ser ainda mais difícil para o
o pós-modernismo, diferentemente, salienta artista criar, mantendo o primor artístico, sem
uma imitação sem descriminação de modelos, ter um referencial para os personagens e os
aparecendo em forma paródica e irônica. No temas, sendo mais aconselhável traduzir
entanto, essa última concepção apenas Homero.
silenciaria a questão de quem é inovador e quem É difícil dar tratamento original a argumentos
não é. No entanto, ela não reconhece a tendência cediços, mas, a ser o primeiro a encenar temas
de apropriação mimética, assim como a desconhecidos, ainda não explorados, é
passagem da mediação interna para a externa, o preferível transpor para a cena uma passagem
que apenas corresponderia a mais uma fase de da Ilíada. Matéria pública se tornará de
nossa ‘falsa consciência’ romântica. direito privado, se você não se demorar aí
pela arena vulgar, aberta a toda gente, nem,
3 Mímeses e criação poética: imitatio e tradutor escrupuloso, se empenhar numa
aemulatio reprodução literal, ou, imitador, não se meter
De acordo com Guinsburg e Rosenfeld numas aperturas de onde a timidez ou as
exigências da obra o impeçam de arredar o
(2008) o vocábulo classis, que originou o termo
pé. (HORÁCIO, 2005, p. 59)
Classicismo, designava, em latim, os ricos que
pagavam impostos pelas frotas. Dessa forma, É possível inferir, a partir do trecho
um escritor classicus seria aquele que escrevia evidenciado, que Horácio (2005) aconselha o
para uma classe abastada da sociedade. artista a buscar fontes conhecidas, como o caso
Posteriormente, a palavra passou por algumas da epopeia de Homero, para o argumento de sua
transformações ganhando, por exemplo, valor obra. O poeta romano ensina, após essa primeira
didático, quando se refere às composições advertência, de que forma o escritor deve fazer
literárias estudadas nas escolas, ou estilístico, uso da matéria obtida de seu modelo para não
que alude às obras baseadas em certos preceitos cair em uma imitação servil. Um cuidado
modelares da Antiguidade greco-romana a qual fundamental seria o de não se demorar em
passou a ser denominada clássica. Essa tomada aspectos próprios do gênero imitado, o épico, e
de princípios para a criação artística ocorreu, tentar transpô-los para a tragédia, visto que
sobretudo, com a revalorização da prática e da aquilo considerado bom em uma espécie não é
teoria dos antigos gregos e romanos durante o consoante em outra. Da mesma maneira,
Renascimento. traduzir fielmente, palavra por palavra, também
Spina (1967, p. 93) destaca que o ato de pode ser um problema para o poeta. Essas duas
imitar os modelos antigos, na Renascença, é precauções estão relacionadas com uma
resultado tanto da convicção de que os terceira: o poeta não deve sujeitar-se tanto ao
modelo, em virtude de que isso pode confundi-
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 134

lo ao tentar adequar-se às regras do próprio tudo que é virtuoso no modelo através de uma
poema. Para essa última interpretação, foram observação continuada.
importantes os comentários de Cândido É necessário rivalizar com o que há de
Lusitano na sua tradução da Arte poética. melhor nos antigos. Consequentemente, não se
Muitas das recomendações dadas por imita apenas um artista, mas tudo que há de belo
Horácio (2005) referem-se ao teatro, em vários outros reconhecidos pela excelência
especialmente no gênero da tragédia. de suas obras. Como exemplo, o estudioso
Entretanto, ressalta-se, nos escritos deste poeta grego cita a lenda Zeuxis que, ao pintar o corpo
lírico, a importância da imitatio para a criação nu de Helena, mandou chamar as moças da
artística, sem ser servil, o que remete ao cidade de Crotona, porque ao reunir as partes
conhecimento de escritores convencionados que fossem ‘dignas’ de pintura, produziria uma
pela tradição, possivelmente, desde quando os obra única, perfeita e bela. Por isso, o autor
filólogos alexandrinos estabeleceram um aconselha procurar “formas de antigos corpos,
cânone de autores gregos. de colher o melhor do seu espírito e, ao juntares
Para Dionísio de Halicarnasso (1986, p. 49), a tudo isto o dom da erudição, de modelar não
em seu Tratado da imitação, a importância da uma figura que se desgasta com o tempo, mas
leitura e da erudição também é fundamental na sim a beleza imortal da arte” (DIONISIO DE
mímeses de escritores-modelo. Neste processo, HALICARNASSO, 1986, p. 52).
ele menciona uma outra atividade “do espírito A importância da emulação e da imitação de
que o move no sentido da admiração daquilo modelos antigos também aparece em Do
que lhe parece ser belo”, denominada emulação, sublime, de Longino (2015), como vias para
ou aemulatio. Essa formulação expressa a chegar ao sublime. Embora a obra trate,
compreensão das virtudes de um modelo com o mormente, sobre questões de retórica, o autor
intuito de igualar-se a ele ou superá-lo. transfere ao âmbito da elocução preocupações
Ao observar o significado da palavra próprias da inventio, tal qual a mímeses. Ele
emulação, em outras línguas e em outros pontua, também, que enquanto a poesia se vale
contextos, é perceptível que ela apresenta um mais do que é fabuloso e exagerado,
aspecto semântico fértil, conforme pontua ultrapassando o crível, na retórica, contudo, é
Saltarelli (2009, p. 255): melhor aquilo que é verdadeiro e realizável.
Nesse ponto é interessante lembrar que o termo
O autor – cuja identidade real permanece
grego traduzido pelos latinos como aemulatio é obscura – considera que Platão (2006), tendo
zélozis, o qual está na origem da palavra como base uma passagem do livro IX da
portuguesa zelo, mas também na espanhola República, (586a), pode ser tomado como um
celo, da francesa jalouise e da italiana gelosia. exemplo de caminho para o sublime pela
Enquanto no português a palavra denota imitação e pela emulação. Mais adiante,
cuidado ou proteção, no espanhol, no francês e Longino (2015, p. 86) afirma que o filósofo
no italiano ela significa ciúme, inveja. Essa grego, ao comentar os malefícios da poesia de
polissemia gerada na evolução do sentido da Homero, na verdade, está emulando um modelo
palavra define bem a relação do escritor com o
antigo capaz de inspirar no imitador a
seu modelo: trata-se de uma relação dúbia, de
cuidado e ciúme, simultaneamente. Ao mesmo
criatividade, mesmo que para condenar
tempo em que o escritor admira seu modelo, determinada atividade.
guarda-lhe inveja, mas uma inveja positiva. Tal A emulação é um procedimento que deve ser
sentimento é esclarecido por Aristóteles, nos considerado por aqueles que almejam elaborar
capítulos X e XI da Retórica, onde estabelece qualquer obra de expressão elevada. Este
uma oposição entre phthónesis, traduzível como exercício, argumenta Longino (2015), não se
inveja, e a zélosis, traduzível como emulação. trata de plágio ou furto (klope), na verdade,
Dessa forma, não é apenas a matéria do consiste em uma forma de extrair de um molde
argumento que deve orientar a criação poética, tudo que é belo. Percebe-se que neste último
mas também o desejo de superar as ponto o autor se aproxima do que foi discutido
particularidades da obra imitada, como propõe sobre a imitação das boas partes no tratado de
Dionísio de Halicarnasso (1986, p. 52). Embora Dionísio de Halicarnasso (1986).
esse desejo possa estar próximo da inveja, tanto As observações de Raul Miguel Rosado, na
no teor etimológico quanto sentimental, ele tradução feita por ele da edição do Tratado da
também desperta no imitador a admiração de imitação, afirmam a leitura crítica que o
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 135

imitador deve fazer dos escritores-modelo. própria relação dos românticos com a
Consequentemente, é preciso pensar que o modernidade é envolvida pelo anseio de negar
próprio conceito de originalidade, nesse e, consequentemente, de mudar.
contexto clássico, existia fazendo par com a O ocaso das ideias modernas de tempo como
imitação para reproduzir, de modo artístico, o uma sucessão linear em progresso e de mudança
real ou para aproveitar-se dos modelos e incluir corresponde ao que é chamado, correntemente,
alguma coisa pessoal à obra final. Essa pós-modernismo. Este termo é questionado por
concepção de inovação, portanto, contrasta com Octavio Paz (1993) que, ao discutir a situação
a que herdamos dos românticos na qual toda da poesia na década de 80 e 90 do século XX,
noção de criatividade, a priori, é ligada apenas observa a sua época não apenas como algo que
ao artista que a criou. vem depois da Idade Moderna, mas diferente
Considerando os comentários de Rosado e os dela, seja metamorfoseada ou transfigurada.
escritos de Dionísio de Halicarnasso (1986), em Ainda assim, ele afirma que a criação poética
sua referida obra, nota-se que a imitação, para que foi, em grande parte do século XX, uma herança
não fosse servil, exigia do artista a sabedoria na dos movimentos românticos e das vanguardas.
hora de escolher os modelos e, posteriormente, a No conjunto de ensaios presentes em A outra
interferência, de maneira pessoal, naquilo que se voz, o poeta mexicano apresenta uma dificuldade
desejava fazer na obra, a fim de igualar ou superar visível, logo no início da discussão, em interpretar
o escritor que se imitava. a palavra “moderno”, posto que ela revela, ao
Francisco Achcar (1994, p. 38) também mesmo tampo, aquilo que é transitório e
examina como a originalidade na poesia da contemporâneo. Caso pensemos que o moderno é
Antiguidade clássica não resulta do “simples o hoje, precisamos considerar que os antigos
abandono da tradição, mas de um jogo astuto também viam a si mesmos como modernos.
com os elementos dela”. Segundo este autor, a Consequentemente, Paz (1993) aponta um
imitação e a emulação foram importantes para problema universal, que também é colocado para
uso dos tópoi na poesia, ainda que não tenha todos os homens, ao tentar nomear o tempo em que
chegado até nós uma poética da época dedicada vivem. Desse modo, sugere-se que aceitamos,
à relação entre lírica e mímeses. ainda que de forma provisória, o termo Idade
Moderna, que se formou ao longo do século XVIII
4 Inovação após ruptura romântica
e teve seu apogeu até pouco antes do final do XIX.
A grande representação de um anseio por É com a crise das concepções modernas que a
transformações, no âmbito da literatura e de Idade Contemporânea surgiu. Contudo, a duração
outras artes, foi o Romantismo, no final do – mais de um século – desse período também
século XVIII, que procurou romper tanto com implica uma reflexão sobre o emprego do termo
as regras sobre a criação artística quanto com o contemporâneo.
seguimento de modelos antigos. Se, antes, o Agamben (2009) afirma que é
neoclassicismo colocava a Antiguidade greco- contemporâneo aquele que não coincide
romana em evidência, depois, com os perfeitamente com o seu tempo. É esta espécie
românticos, as mudanças resultaram em um de anacronismo que faz com que o homem
novo olhar para o presente, como escreve perceba o momento em que vive, sem deixar de
Antonio Candido (2006, p.137): pertencer a ele. Assim, a contemporaneidade
O Romantismo foi, portanto, o começo de adere ao seu próprio tempo, ao passo que toma
uma literatura aberta às mudanças, ao aderir distância dele. Ao comentar como o poeta deve
ao presente, não ao passado, num momento observar o presente, outra definição de
de rápidas mudanças técnicas e sociais. Isso contemporaneidade é mencionada pelo filósofo
foi se acentuando até as vanguardas do século italiano: é aquilo que olha para o seu tempo a
XX, que privilegiaram a mudança incessante, fim de apreender não apenas as luzes, mas
orientada por um inconformismo permanente também tudo o que é obscuro. Nesse sentido,
que se manifestou pela negação de conceitos, voltar-se para as trevas de nossa época significa
valores e procedimentos. procurar compreendê-la e interpretá-la
A negação que marca o Romantismo é fruto continuamente.
do momento em que a crítica, a revolução e a Ser contemporâneo demanda uma
utopia permeavam grande parte do pensamento observação sobre aquilo que é recente ou
filosófico e literário do período. No entanto, a moderno para reconhecer nele o arcaico. Além
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 136

disto, o passado também nos ajuda a entender as no futuro, tal qual escreveu Horácio (2003,
sombras do presente, dividindo, como considera p.141) em sua ode III, 30.
Agamben (2009, p. 72), o tempo e o colocando Porém, o poeta da pós-modernidade encontra-
em relação a outros. se perdido no tempo porque enquanto ele se afasta
Certamente, essa noção de contemporâneo, do passado, o futuro lhe parece arruinado. Por isso,
que não deixa de voltar-se para o passado, é de modo análogo, Haroldo de Campos (1996)
diferente da concepção de criação poética que se também crítica a palavra pós-moderno e sugere que
situou na modernidade. A Querela dos Antigos e ela seja substituída por pós-utópico, uma vez que,
Modernos foi um exemplo de que já no final do em certo momento histórico, a poesia encarnou-se
século XVII muitos artistas questionavam a no social acompanhando os desdouros das ideias
hegemonia dos modelos antigos. Por conseguinte, revolucionárias.
a mudança e a ruptura apresentaram um caminho Já não se recorre a uma oposição dominante
comum para o futuro utópico. Entretanto, essas em relação a outras tradições do passado, mas,
ideias, conforme Paz (1993, p.54), perderam reflete-se sobre o agora, ou a agoridade. Neste
grande parte da força que tinham ao se momento, o passado não pode ser visto como
transformarem em “tradição de ruptura”. aprisionador, na verdade, seria preciso perceber,
No campo da literatura e das artes a estética
como sugere Campos (1996, p. 269), a nossa
da modernidade, desde o Romantismo até “história plural” e apropriar-se dela de forma
nossos dias, tem sido de mudança. A tradição crítica, sendo um dos meios a tradução de poesia.
moderna é a de ruptura, uma tradição que De igual modo, recorre-se à advertência de
nega a si própria e assim se perpetua.[...] Hoje Octávio Paz (1993, p. 110) sobre como deve-se
assistimos ao crepúsculo da estética da reagir ao desgaste das formas poéticas:
mudança. A arte e a literatura deste fim de
século perderam paulatinamente seus poderes Quando uma forma se desgasta ou se converte
de negação; há muito tempo suas negações em fórmula, o poeta deve inventar outra. Ou
são repetições rituais, fórmulas suas encontrar uma antiga e refazê-la: reinventá-la.
rebeldias, cerimônias suas transgressões. Não A invenção de uma forma é, com frequência,
é o fim da arte: é o fim da ideia da arte uma novidade de 200 ou 300 anos: nada mais
moderna. Ou seja: o fim da estética fundada novo que os poemas chineses recriados por
no culto à mudança e à ruptura. Pound, as canções em que Apollinaire
ressuscita metros medievais ou a música
A “tradição de ruptura” fica mais clara na indecisa que passa e não pesa, que Dário
obra Os filhos do barro em que Paz (1984) aprendeu em Verlaine e este em Villon. Mas a
discute como a ruptura, que se anuncia através indústria prefere, às novidades autênticas, as
da quebra de vínculos com o passado, pode ser digeríveis, as fórmulas às formas.
chamada de tradição. Na verdade, para o autor, Aponta-se que as “novidades autênticas”
a modernidade seria uma tradição que põe em consistem na criação de fórmulas que logo se
xeque a existência de outra vigente para, logo desgastam, enquanto as formas da poesia,
depois, dar lugar a mais uma tradição. Todo esse elaboradas para durar, são criadas a partir de
processo faz com que a modernidade seja outros escritores e de outras formas.
sempre um outro, já que nega qualquer À vista disso, a aspiração pela ruptura,
movimento corrente para aderir a um mais incentivada pelo Romantismo, representa o eco de
“atual”. Por isso, a principal característica que um momento histórico marcado pela crítica e pela
diferencia a tradição antiga da moderna é que visão do tempo em direção ao progresso. Ainda
enquanto aquela mantém-se, seguindo seus que estas ideias tenham declinado, ao longo do
preceitos com base no passado, esta última é século XX, herdamos delas, em grande parte,
constituída pela heterogeneidade na negação nossa visão sobre a criação de tudo que é novo no
das tradições anteriores, sendo, ou pretendendo campo das artes. Não obstante, perceber que a
ser, autossuficiente. ruptura também se transformou em tradição nos
Para Paz (1993, p. 109), a poesia que se faz repensar a relação que estabelecemos com o
manifesta, no final do século XX, parece ser passado, por vez, pouco distante, porquanto a
uma poesia de convergência que recomeça e tradição da ruptura finda certas formas literárias
regressa constantemente. Nela o poeta, como vigentes para fundar outras.
em outros tempos, escolhe os seus antepassados Se a visão de tempo no pós-modernismo -
– da mesma forma que Neruda fez com ultramodernismo ou pós-utópico - não é tão crédula
Whitman – na intenção, também, de serem lidos quanto antes em relação a um futuro utópico,
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 137

recorrer ao passado, sem estabelecer com ele uma futuro nos fez recorrer aos antigos, sem
intensa negação, é possível para criar formas estabelecer com eles uma negação absoluta e
poéticas. Essa atividade é viável porque, como sem declará-los modelos incontestáveis de
vimos, um poeta sempre tem a leitura de outros que nossa criação artística.
conseguiram aquilo que ele almeja: a perenidade no A poesia que sucede ao declínio das
tempo. Como afirma Paz (1993), não se trata de vanguardas, afirma Paz (1993), é também a
desejo por sucesso, mas de desejo por vida. poesia do presente e esta poesia, não tão
Destaca-se, todavia, que essa recorrência ao diferente de outras formas artísticas, é, como
passado não exime o poeta de seu próprio presente. quis René Girard (2002), mimética. Logo, se a
Assim mostra Agamben (2009): retornar ao antigo poesia desde os primórdios ajudou a contar a
nos ajuda a interpretar o que é obscuro no hodierno. história de um povo e o mimetismo está ligado
De modo equivalente, no caso do escritor, pode à história do homem, negar nossa tendência à
significar inovação. mímeses constitui mais uma instância da crença
Aqui, voltamos para Girard (2002) e suas romântica sobre o novo.
considerações sobre o pós-modernismo que já
Referências
não pergunta, frequentemente, quem é o
inovador de seu tempo. Na verdade, para o
ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar-comum:
teórico francês, as tendências culturais após o
alguns temas de Horácio e sua presença em
modernismo dão continuidade à mímeses dos
português. São Paulo: Editora da Universidade de
modelos, de modo que este mecanismo fica
São Paulo, 1994.
oculto sob as formas de paródia e de ironia.
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo?.
5 Considerações Finais
In:______. O que é contemporâneo? e outros
Depreende-se, com base em tudo que foi ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
discutido, que partes importantes do processo Chapecó: Argos, 2009. p. 55 – 73.
imitativo estão presentes na inovação. Girard
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo
(2002) estabelece duas delas: a mediação
Pinheiro. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
externa, que prevaleceu até os neoclássicos, e a
mediação interna, que teve seu clímax do CAMPOS, Haroldo. Poesia e modernidade: da
Romantismo às vanguardas. Enquanto uma morte da arte à constelação. O poema pós
exibe seus modelos, a outra os vela e, ao romper utópico. In:______. O arco-íris branco. Rio de
com uma tradição, passa a tentar provar o Janeiro: Imago, 1996. p. 243 – 268.
porquê de a forma atual ser diferente da CANDIDO, Antonio. Romantismo, negativida
anterior, como aquela que rivaliza. de, modernidade. Anuario del
Até a rivalidade faz parte de um Colegio de Estudios Latinoamericanos,
procedimento longevo e que, no nível México, v. 1, p. 137 - 141, 2006, Universidad
antropológico, pode ser violento. Na criação Nacional Autónoma de México.
poética, ela nos evoca a concepção de aemulatio
importante na imitação de modelos antigos, que DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da
aparece em tratados clássicos como uma imitação. Tradução de Raul Miguel Rosado
advertência para imitar sem ser servil. Aqui, o Fernandes. Lisboa: INIC/Centro de Estudos
novo atualiza-se em um conjunto de tradições, Clássicos da Universidade de Lisboa, 1986.
o qual para demonstrar sua excelência artística GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação
apresenta melhorias em relação ao modelo do mundo: a revelação destruidora do
imitado, distanciando-se de uma ideia de plágio mecanismo vitimário. Tradução de Martha
ou de submissão servil ao modelo. Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Mas, para o Romantismo é preciso mudar e
romper com tudo aquilo que alegadamente ______. Inovação e repetição. In:_______. A voz
aprisionaria os artistas, tais quais as regras e os desconhecida do real: uma teoria dos mitos
modelos. Longe disso, Girard (2002) nos diz arcaicos e modernos. Tradução de Filipe Duarte.
que a negação de se imitar um paradigma incita Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 221 – 239.
ainda mais a rivalidade. Não podemos saber até ______. Mentira romântica e verdade
que ponto a tradição de ruptura nos levaria, já romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São
que o declínio das concepções utópicas sobre o Paulo: É Realizações, 2009.
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 138

______. Shakespeare: teatro da inveja.


Tradução de Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É
Realizações, 2010.
GOLSAN, Richard. Mito e teoria mimética:
introdução ao pensamento girardiano. Tradução
de Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2014.
HORÁCIO. Arte poética. In:______;
ARISTÓTELES; LONGINO. A poética clássica.
Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix,
2005. p. 55 – 68.
______. Arte poética. Tradução de Cândido
Lusitano. Porto Alegre: Concreta, 2017.
______. Odes e epodos. Tradução de Bento
Prado de Almeida Ferraz. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
LONGINO, Dionísio. Do Sublime. Tradução de
Marta Isabel de Oliveira Várzeas. São Paulo:
Annablume, 2015.
PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução de Wladir
Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.
______. A tradição da ruptura. In:______. Os
filhos do barro: do Romantismo à vanguarda.
Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984. p. 15 – 35.
PLATÃO. República. Tradução de Anna Lia
Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins
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ROSENFELD, Anatol; GUINSBURG, Jacó.
Romantismo e classicismo. In: GUINSBURG,
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2002. p. 261 – 274.
SALTARELLI, Thiago César Viana Lopes.
Imitação, emulação, modelos e glosas: o
paradigma da mímesis na literatura dos séculos
XVI, XVII e XVIII. Aletria: Revista de Estudos de
Literatura, [S. l.], p. 251–264, 2009. DOI:
10.17851/2317-2096.251-264. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article
/view/18372. Acesso em: 18 out. 2021.
SHAKESPEARE, William. Conto do inverno.
Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo:
Peixoto Neto, 2017.
SPINA, Segismundo. Introdução à poética
clássica. São Paulo: F.T.D., 1967.
********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO


TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO
Tallyson Tamberg Cavalcante Oliveira da Silva74

RESUMO: O presente trabalho tem como investigação tópica ao estudo da lírica


principal objetivo a apresentação e discussão, contemporânea foi apresentada por Rafael
no estudo do gênero lírico, do método analítico Campos Quevedo (2014, 2017, 2018) ao propor
de investigação tópica (Toposforschung) em um reajuste do referido método quando
produções literárias contemporâneas. A aplicado às produções da contemporaneidade
mencionada metodologia investigativa tem seus em seu diálogo com as tradições poéticas do
fundamentos alicerçados na vertente da passado. Assim, é justamente voltado para essas
Literatura Comparada conhecida como reflexões da moderna crítica literária em relação
Tematologia (Stoffgeschichte). Essa proposta aos diálogos da poesia contemporânea com a
investigativa notabilizou-se modernamente nos tradição que se propõe o presente trabalho.
estudos literários a partir das contribuições do
crítico alemão Ernst Robert Curtius, que a Palavras-chave: Literatura Comparada,
selecionou como corolário investigativo de sua Investigação Tópica, Poesia Contemporânea,
Literatura Europeia e Idade Média Latina Crítica Literária Moderna.
(1948), obra dedicada a atestar os liames entre a
tradição literária clássica e a cultura europeia 1 Introdução
medieval e renascentista a partir da recorrência Pode-se dizer que a topologia literária foi
aos vários tópoi da tradição lírica, cujo modernamente notabilizada nos estudos
fundamento seria asseverar a suposta unidade comparatistas a partir da publicação, em 1948,
cultural entre as nascedouras literaturas do monumento ensaístico Literatura Europeia e
europeias e a Antiguidade greco-romana. Assim Idade Média Latina, do eminente crítico e
sendo, o trabalho aqui proposto busca filólogo Ernst Robert Curtius. Nessa obra, o
apresentar o modo pelo qual a aplicação erudito alemão selecionou a análise topológica
investigativa acerca dos tópoi poéticos pode se como corolário investigativo de sua pesquisa
efetuar no estudo da lírica contemporânea, já literária, imprimindo a essa metodologia uma
que esta – diferentemente do escopo orientação de cunho histórico-filológico que
selecionado e analisado por Curtius na marcaria definitivamente os estudos acerca dos
supracitada obra – se encontra em oposição tópoi nos estudos literários. É importante
diametral ao princípio da imitatio e aemulatio enfatizar que essa metodologia investigativa
que norteou as produções poéticas das épocas não é algo novo no campo do comparatismo
tradicionais (antiga, medieval e renascentista) e literário, como nos lembra Donizeti Antônio
que teve a sua derrocada a partir do movimento Pires, em seu ensaio “Lugares-comuns da lírica
romântico. Por isso mesmo, as produções líricas ontem e hoje” (2007), ao afirmar que a
contemporâneas são aparentemente investigação tópica sempre foi “um dos
inadequadas ao método de investigação dos aspectos mais fascinantes da teoria e prática da
tópoi. A solução para a aparente inadequação da Literatura Comparada” (p. 01) e que essa

74 em Linguagem, Cultura e Discurso, atuando na linha de


Graduado em Letras com habilitação em
Português/Literatura pela Universidade Federal do Ceará pesquisa em Literatura, Cultura e Fronteiras do Saber, cuja
(UFC) e Mestre em Letras pela Universidade Federal do pesquisa desenvolveu-se no âmbito da Literatura
Maranhão (UFMA), campus III, na área de concentração Comparada de Língua Portuguesa, notadamente no campo
do gênero lírico.
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 140

vertente dos estudos comparatistas é herdeira da de um trabalho voltado à literatura europeia cuja
chamada Stoffgeschichte, “[...] contribuição metodologia alicerça-se na investigação dos
mais genuinamente alemã à teoria e à prática da tópoi. Na supracitada obra, o referido estudioso,
Literatura Comparada que começa a se firmar baseando-se no método da Toposforschung,
no século XIX, e cujos estudiosos a ela se apresenta um impressionante quadro das
dedicaram na tradição legada por Goethe e sua origens e da unidade cultural da literatura
concepção de Weltliteratur” (p. 01). Francisco europeia. Para a realização desse intento,
Achcar (2015), por sua vez, afirma que tal desloca a topologia de seu enquadramento
método investigativo foi paulatinamente caindo retórico e transfere-a a um contexto literário,
no esquecimento no âmbito dos estudos mostrando como os diversos tópoi da
literários, pois que Antiguidade puderam se inscrever na literatura
A crítica idealista, o hegelianismo crociano
europeia medieval, e como esta passou por uma
ou marxista consideraram essa prática espécie de roupagem retórica na medida em que
irrelevante ou a impugnaram como vários procedimentos e temáticas adentraram,
superficialmente formalista, um descaminho, também, o campo das produções literárias. Para
um estorvo à compreensão verdadeira da obra Curtius (2013), os tópoi poéticos têm uma dupla
literária. Mesmo críticos positivistas gênese: uns provém da retórica clássica,
interessados na chamada “crítica de fontes”, enquanto outros surgem na própria literatura,
Quellenforschung, não viam ou veem na caça incorporando-se, posteriormente, à retórica
de semelhanças mais que comparatismo também. Assim, para esse autor,
rudimentar, trabalho ancilar, mero fornecedor
de subsídios para a análise crítica (p. 13). Nem todos os topoi se derivam dos gêneros
retóricos. Muitos procedem originariamente da
Porém, ainda de acordo com Achcar poesia e passaram, depois, à retórica. [...] em
(2015), o estudo acerca dos tópoi, no âmbito todos os topoi poéticos, o estilo da exposição está
da investigação literária, foi “reproposto em condicionado historicamente. Há, porém, topoi
nossa época pela obra clássica de Ernst que estão ausentes no decorrer de toda a
Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Antiguidade. Só aparecem na época de Augusto,
Média Latina” (p. 19). O crítico alemão, na em seu último quartel, e subitamente os vemos
obra supracitada, ao selecionar a circular por toda parte. [...] Oferecem um duplo
investigação tópica como fulcro interesse. Em primeiro lugar, de biologia
literária: neles podemos observar a formação de
metodológico de seu trabalho crítico-
novos topoi, ampliando assim nosso
literário, tomou como ponto de partida a conhecimento sobre a gênese dos elementos
observação de algumas constantes formais literários. Em segundo lugar, aqueles
semânticas no campo da poesia europeia e topoi são sintomas de uma nova atividade
sua presença e difusão nos textos ao longo da espiritual, sintomas que não se manifestam senão
história da literatura. Assim, o topos, nessa daquele modo. Assim, aprofunda-se nosso
obra, caracterizar-se-ia como sendo um conhecimento da história da alma do Ocidente e
conjunto de elementos comuns dotados de tocamos num domínio recentemente estudado
unidade estrutural e que se organiza de pela psicologia de C. G. Jung [...] Atemo-nos ao
acordo com determinados princípios que se antigo conceito de tópica que se conservou, para
nós, como ponto de partida e princípio heurístico.
vão fixando em certos textos, gêneros e
Mas, enquanto a tópica antiga é parte integrante
épocas literárias. Nesse sentido, Curtius se de um sistema pedagógico e, portanto,
baseia na esquematização de determinados sistemática e normativa, tentamos estabelecer os
elementos dos tópoi, que cataloga em fundamentos de uma tópica histórica, a qual é
inventário, procurando investigar a suscetível de muitas aplicações (p. 123).
transformação da tópica de natureza
Interessante notar, na transcrita passagem, as
argumentativa – porque oriunda da retórica –
conexões estabelecidos por Curtius entre os tópoi
numa tópica de conteúdos, num repositório
poéticos e retóricos, bem como a anunciação de
de temas, motivos e clichês semânticos que
um afastamento em relação ao caráter normativo
se reiteram continuamente ao longo da
da topologia para concentrar-se na topologia
história literária europeia, notadamente no
histórica, isto é, aquela que nasce em decorrência
campo da poesia.
de circunstâncias históricas específicas, pois são
Afirmamos, portanto, que é com Curtius que
materializações da psicologia coletiva (nos termos
modernamente se notabiliza o desenvolvimento
de C. G. Jung), assim a frequência e regularidade
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 141

dos tópoi não é tão somente uma questão de definição de Aguiar e Silva (2006), os tópoi
eficiência retórica, mas da própria atemporalidade seriam os
“dos arquétipos, das imagens inconscientes [...] motivos, temas e esquemas formais que se
coletivas” (CURTIUS, 2013, p. 145). repetem ao longo dos tempos, permanecendo
De modo que, para Curtius, o substancialmente invariáveis – que têm a sua
reaparecimento, sobrevivência e atualização origem imediata em textos gregos, helenísticos
dos tópoi devem-se, sobretudo, às existentes e latinos e que se disseminaram nas literaturas
correspondências entre estes e os arquétipos do europeias em língua vulgar durante a Idade
inconsciente coletivo. Por esse motivo, os tópoi Média e em épocas posteriores ou que se
são recursos que vão além da mera ancoragem formaram já nas literaturas europeias modernas,
nos elementos retóricos. O objetivo precípuo do no âmbito do código de determinados estilos de
época (p. 262).
estudioso alemão, com a sua Literatura
Europeia e Idade Média Latina (1948), seria, na Os tópoi seriam, portanto, essas unidades
opinião de Rafael Quevedo (2018), o de “atestar semânticas e essas vitrificações expressivas nas
a continuidade cultural entre a tradição clássica quais cada poeta constrói a seu modo a forma mais
e a Idade Média a partir da recorrência de condizente de expressão verbal. No sentido
lugares-comuns literários (os tópoi) e metáforas apresentado, o topos se apresenta como elemento
consagradas” (p. 19). Assim, para alcançar o seu retórico que, em sua diacronia, sofre inevitáveis
intento, Curtius procurou demonstrar nesse variações e atualizações, em conformidade com o
monumental trabalho que a literatura europeia, contexto proveniente das épocas literárias, com as
da Antiguidade clássica até o Renascimento, características de mentalidade decorrentes das
seria tributária de certa unidade ligada à variadas situações históricas.
memória do sistema semiótico literário.
2 O lugar da investigação tópica na poesia
A frequência com que aparecem os tópoi nas
tradicional até o Romantismo
produções poéticas de diversos quadrantes
temporais acaba resultando na constituição de uma Essa apresentada metodologia investigativa, a
tradição literária, resgatando os elementos retóricos Toposforschung, notabilizou-se particularmente no
dessa memória do sistema semiótico literário. É estudo da poesia das épocas tradicionais, visto que
nesse sentido, portanto, que os tópoi servem como nas poéticas produzidas na Antiguidade clássica,
modelos de referência tanto para os emissores, bem como nos períodos medieval e renascentista,
quanto para os receptores, sendo utilizados de evidenciava-se com bastante recorrência a prática
modo polivante nos diversos textos e contextos, produtiva da imitatio (imitação, seguimento de
numa linha de continuidade histórica, formando modelos), em que era não apenas comum, mas até
justamente essa tradição de que fala Aguiar e Silva mesmo recomendável que um poeta empregasse,
(2006) ao caracterizar essa memória do sistema em suas composições líricas, referências criativas a
literário. Assim, pois, se refere o teórico português obras de outros poetas, numa demonstração de sua
quanto a essa caracterização: erudição no diálogo com a tradição75. Desse modo,
A memória representa, em termos semióticos, a investigação tópica no estudo do gênero lírico
a chamada tradição literária, que não deve ser antigo, medieval e renascentista mostrava-se uma
identificada com uma inerte ou interessante via de análise da poesia em sua relação
indiferenciada acumulação diacrónica de com o mosaico de clichês e lugares-comuns
elementos, já que a memória, em cada estágio fornecidos pelo patrimônio poético. Assim, no
sincrônico do sistema, se encontra organizada campo da crítica literária, “a procura por loci
e valorada sistemicamente (p. 258-259). símiles sempre foi uma atividade predileta, e em
Desse modo, a configuração dos tópoi alguns casos quase exclusiva dos comentadores de
(lugares-comuns) na memória do sistema textos clássicos” (ACHCAR, 2015, p. 13). A
semiótico da literatura seria algo mesmo explicação para essa preferência do comparatismo
inerente e constitutivo do jogo referente à literário em se buscar, apontar e explicar as diversas
produção criativa no campo da poesia – o reconstruções dos tópoi poéticos da tradição
gênero mais codificado da arte literária. Na clássica deve-se justamente ao fato de que nessas

75Utilizando-se de Francis Cairns sobre a poética clássica, de arte alusiva: um poema toma do repertório tradicional
Francisco Achcar denomina esse tipo de produção como uma série de lugares-comuns e, juntamente, a maneira de
“composição genérica”, a qual corresponderia “a uma organizá-los, derivando daí sua pertinência genérica”
codificação da prática intertextual, uma forma particular (ACHCAR, 2015, p. 18).
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 142

épocas tradicionais (que vai da Antiguidade sobretudo a poesia lírica, voz do individual, do
clássica ao Renascimento): subjetivo, daquilo que não faz parte do
[...] a produção de poesia era marcada pela mais
repertório comum nem se submete a esquemas
ou menos disciplinada obediência a convenções estabelecidos” (ACHCAR, 2015, p. 18).
e fórmulas consagradas, razão pela qual a Essa iconoclastia 76 referente aos lugares-
repetição de conteúdos ou formas de expressão comuns de teor clássico nas produções líricas se
de um poema para o outro não constituía, em si acentua em fins do século XVIII, com o
mesmo, um demérito do autor, mas, às vezes, era Romantismo, e se consolida definitivamente no
a própria exibição de sua qualidade como poeta alvorecer do século XX, com as vanguardas
(QUEVEDO, 2014, p. 02). modernistas que, nesse sentido, imprimiram ao
Esse cenário relativo às produções poéticas gênero lírico, por exemplo, a derrocada de
pautadas pelo processo da imitatio e da modelos fixos, a instituição do verso branco, a
aemulatio passou, todavia, por estrondoso abalo proclamação à métrica irregular e disforme,
com o advento do movimento romântico. O bem como a exaltação da concepção romântica
Romantismo, em seu projeto artístico, passou a de que a poesia nasce a partir da inspiração e do
cultuar, agora, não mais a imitação e o gênio artístico, além do estabelecimento de um
seguimento de modelos, mas justamente a maior prosaísmo e liberdade de linguagem na
novidade, a originalidade, a inspiração nascida constituição do poema. Nesse sentido, o
do gênio, da emoção e, com isso, estabelecia-se Modernismo reiterava e consolidava justamente
a ruptura com as tradições de índole classicista. aquele “[...] ato romântico que se inscrevia na
Assim, ainda segundo Quevedo (2014): tradição inaugurada pelo Romantismo: a
tradição que nega a si mesma para continuar-se,
Com a campanha movida pelo Romantismo
a tradição da ruptura” (PAZ, 1984, p. 109).
em nome da deposição do princípio clássico da
imitação artística e pelo coroamento de uma Portanto, foi com o movimento romântico que
poesia como expressão da individualidade do se instituiu a noção de que “a poesia se justifica
poeta, a circulação dos tópoi sofre, como expressão de uma alma superior, que não
inevitavelmente, forte abalo, uma vez que tem modelos a seguir, nem outras regras senão
certas convenções deixam de ter o status que as que demandam de sua inspiração” (LIMA,
possuíam na lírica tradicional e passam a ser 2002, p. 262). O apontado aspecto marcou essa
vistas como artifícios e entraves à plena fluidez tentativa de obliterar o processo criativo
da vazão sentimental, cujo desaguadouro baseado na imitação e emulação de certas
deveria ser o próprio poema (p. 02). convenções poéticas como critério de
Nesse sentido, pode-se afirmar que a escola legitimidade literária. Com isso, houve, no
romântica foi a responsável por introduzir a âmbito da crítica literária, um paulatino
noção de poesia como diretamente ligada ao abandono da investigação de tópoi poéticos,
subjetivismo do autor, aos seus estados partindo-se do princípio do solapamento do
anímicos e emocionais e, por isso, decorrente de processo dialógico na criação literária.
sua genialidade e inspiração, sendo um gênero Todavia, é preciso enfatizar que a expansão
literário diretamente relacionado à sinceridade das correntes teóricas no âmbito dos estudos
do poeta. Esses motivos levariam à derrocada literários, mormente aquelas voltadas ao campo
do culto aos lugares-comuns da tradição lírica, da Literatura Comparada, no meado do século
vez que a ourivesaria em torno das XX, propiciaram a superação desse idealismo
reapropriações de tópoi poéticos seria romântico em torno das noções de genialidade e
responsável, na visão romântica, pelo originalidade do fazer poético. Passou-se a
engessamento da livre expressão individual. Por compreender, cada vez mais, que o dialogismo
isso, as formações de novos esquemas de é traço inerente às produções literárias, de modo
expressão “são tidas, desde o Romantismo, que a moderna crítica literária tem se tornado
como o essencial do que deve exprimir a poesia, cada vez mais consensual quanto à

76Lembremos, nesse sentido, a metáfora do “martelo” com notas de Célia Berrettine. 2º ed. São Paulo: Perspectiva,
que Victor Hugo ameaçava as poéticas clássicas, bem 2002. Cf. PAZ, Octávio. “A Tradição da Ruptura”. In:
como o oximoro da “tradição da ruptura”, expressão ______. Os Filhos do Barro: Do Romantismo à
cunhada por Octávio Paz para caracterizar a tradição da Vanguarda. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São
poesia moderna. Cf. HUGO, Victor. Do grotesco e do Paulo: Cosac Naify, 1984, p. 17-35.
sublime: Tradução do prefácio de Cromwell. Tradução e
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 143

impossibilidade de produções poéticas à crítica literária e desenvolvida a partir das


completamente isenta de seus lugares-comuns, noções de dialogismo e polifonia, formuladas
fruto tão somente da genialidade do artista e por Bakhtin em Problemas da Obra de
nascidas de uma originalidade ex nihilo. Dostoiévski (1928). Desse modo, a preocupação
Por esse motivo, Rafael Quevedo (2018) de Kristeva era discutir o texto literário.
expressa a opinião de que o fenômeno da Segundo a autora (2005), o discurso literário
intertextualidade não pode ser desconsiderado “não é um ponto (um sentido fixo), mas um
na moderna crítica em torno da poesia cruzamento de superfícies textuais, um diálogo
contemporânea, tendo em vista justamente esse de várias escrituras” (p. 66). Todo texto
inerente diálogo da poesia moderna para com o constrói-se, assim, “como um mosaico de
acervo já estocado pela tradição. citações, todo texto é absorção e transformação
É nesse sentido que, do ponto de vista dos
de um outro texto” (p. 68). Nesse sentido,
estudos sobre lírica contemporânea, o recurso Kristeva identifica que, “no lugar da noção de
da intertextualidade não pode ser intersubjetividade, instala-se a de
desconsiderado, noção que, de fato, não tem intertextualidade” (p. 68).
sido negligenciada pela crítica, cada vez mais No sentido apresentado, os tópoi passam a
consensual a respeito do fato de ser a leitura ser vislumbrados, também, segundo as
crítica um perfazimento de releituras (p. 19). considerações de Rafael Quevedo (2014), como
Assim sendo, devemos considerar a atualidade casos particulares do processo fundamental da
e pertinência da investigação tópica aplicada literatura, entendida agora como prática
também ao estudo e análise da poesia intertextual 77 . Assim sendo, os tópoi seriam
contemporânea, com a ressalva de se levar em apenas mais um caso desse fenômeno retórico
conta alguns ajustes metodológicos, tendo em geral, perceptível no fato de que a própria
vista justamente a natureza dessa moderna poesia “literariedade” de uma obra, a sua adequação a
que, como visto, passou a ter outro viés genético a um gênero, e até mesmo os seus traços
partir das proclamações instituídas pela estética inovadores são necessariamente produto de suas
romântica, notadamente aquelas referentes à relações com o arsenal das obras que compõe a
noção de gênio e de inspiração nascida da tradição literária. A apresentada proposta
natureza e da emoção subjetiva do poeta. elaborada pelo referido estudioso leva em
consideração, principalmente, o fato de que a
3 O lugar da investigação tópica na poesia
contemporânea A Toposforschung (investigação do topos), tal
como fixada por Ernst Robert Curtius em seu
O apontado esquecimento referente ao método Literatura Europeia e Idade Média Latina, não
da investigação tópica aplicado ao estudo da apenas admite como está condicionada ao
poesia moderna e contemporânea começou a problema da tradição literária, a partir do qual o
mudar, nas últimas décadas, com o surgimento estabelecimento da genealogia de um topos
das ideias referentes ao dialogismo literário, a (surgimento, recepção, formas de apropriação e
variações) confunde-se com a identificação dos
partir das contribuições teóricas do pensador russo
elos de uma cadeia cultural presente e ativa
Mikhail Bakhtin, posteriormente reformuladas dentro da literatura de uma determinada época.
por Julia Kristeva na constituição do conceito de Do pressuposto de que a presença de certos
intertextualidade, que seria “o fenômeno de um tópoi poéticos indicia uma transmissão de
texto retomar outro, por meio de citações, alusões, tradição literária entre um e outro contexto,
inversões, paródicas ou não, [e que] passou a ser decorre uma segunda noção, tão importante
visto como elemento essencial do discurso quanto à primeira, que é a de unidade cultural,
literário, traço tipificador da literatura no universo corolário da investigação tópica consagrada por
dos discursos” (ACHCAR, 2015, p. 13-14). Curtius [...]. Fora desses dois postulados – o da
O termo intertextualidade foi utilizado pela tradição e o da unidade literária –, o método da
investigação tópica seria, em tese, impraticável,
primeira vez por Kristeva, em Introdução à
sobretudo se se toma como material de trabalho
Semanálise (1969), quando a mencionada um corpus lírico produzido no contexto da
autora apresentou uma proposta teórica voltada contemporaneidade. O problema não estaria,

77Tomamos, neste trabalho, essa designação para todos os moderna crítica literária, cf. SAMOYAULT, Tiphaine. A
processos de retomada, deliberada ou não, de um texto por Intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo:
outro. Para uma visão, todavia, mais exata sobre as Aderaldo & Rothschild, 2008.
nuances da noção de intertextualidade no interior da
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 144

propriamente, no estudo da atualização de um seja vista como um indício nem de


topos [...] em um poema do século XXI, mas, continuidade da tradição, tampouco de
sim, na impossibilidade de acatá-lo como um unidade literária, mas sim como uma espécie
indício de uma unidade literária com a cultura à de intertexto por meio do qual presente e
qual o poema faz referência (QUEVEDO, 2016, passado se interceptam proporcionando
p. 289, passim). deslocamentos de sentido decorrentes dos
diferentes contextos de produção em que são
Por isso mesmo, o referido pesquisador praticados os lugares-comuns em questão
(2014) um reajuste metodológico na aplicação (QUEVEDO, 2017, p. 110-111).
desse método investigativo n análise e estudo da
poesia moderna e contemporânea, de modo que Nas palavras de Francisco Achcar (2015),
esse fenômeno ocorre porque as diversas
Voltar o olhar sobre a lírica contemporânea se modalidades do jogo intertextual “[...]
valendo da análise tópica requer um ajuste
constituem formas privilegiadas através das
dessa metodologia no seguinte aspecto:
estaria fora do escopo do pesquisador a tarefa
quais o texto literário se sobrecarrega de
de rastrear as fontes e as influências de onde sentido, ao superpor ao contexto das palavras
determinado poeta pudesse ter haurido efetivamente utilizadas um outro contexto,
determinado topos. Já não se trata mais, como provindo de um outro discurso, um discurso da
na obra máxima de referência desse método, tradição literária” (p. 16, grifos nossos).
o Literatura Europeia e Idade Média Latina, No sentido apresentado, a investigação
de Ernst Robert Curtius, de identificar uma tópica, segundo a proposta oferecida por
unidade, qualquer que seja, entre a poesia de Quevedo (2014), não seria tão somente
hoje e a do passado, já que se parte, agora, da exclusiva no estudo da poesia guiada pela
consideração aceita da descontinuidade da
prática da imitatio e da aemulatio, mas também
tradição (p. 04).
interessada na análise crítica da poesia moderna
Assim, Quevedo passa a vislumbrar a e contemporânea, porém que atenta a um novo
Toposforschung como uma metodologia de enquadramento da questão, inserida no
escrutínio analítico interessada justamente nas fenômeno da intertextualidade. Assim,
relações intertextuais da poesia contemporânea
Tal reajuste metodológico proposto para a
para com as tradições líricas do passado, cujo investigação tópica representa outro
objetivo precípuo estaria em descortinar o modo enquadramento da questão na medida em que
como os lugares-comuns do tesouro lírico a primazia das relações de influência e
fornecidos pela tradição são reapropriados e transmissão cultural cede lugar à noção de
atualizados nas produções poéticas da diálogo intertextual. Em termos teóricos, a
modernidade, produzindo novos sentidos a categoria de “diálogo” não exige, como
esses clichês temáticos, pois inseridos em nova condição operatória, o pertencimento das
conjuntura. Por esse motivo, para o mencionado obras que compõem o corpus analisado a uma
pesquisador, é que mesma tradição, regido pelos mesmos
valores formadores (p. 04).
No âmbito do comparatismo literário, a
aplicação da investigação tópica em um 4 Considerações finais
corpus lírico contemporâneo levanta Em seu célebre ensaio “Tradição e Talento
importantes problemas relativos aos elos da Individual”, T. S. Eliot (1989) advoga que
poesia atual com a tradição, entre os quais o
“nenhum poeta, nenhum artista, tem sua
que se refere à possibilidade da permanência
residual da tradição na contemporaneidade significação completa sozinho. Seu significado
ou, ainda, à hipótese de que novos lugares- e a apreciação que dele fazemos constituem a
comuns tenham sido forjados a partir da apreciação de sua relação com os poetas e
reelaboração dos antigos. Se o que está em artistas mortos” (p. 39). Por esse motivo, a
exame passa a ser a produção poética de uma busca em torno das relações entre textos, das
época cujos elos com a tradição não são mais mútuas influências e do fenômeno da
de continuidade, mas de revisitação; em que intertextualidade tem se tornado, na moderna
o poeta não se vê mais ligado à necessidade crítica literária, um tema de importância fulcral,
de legitimação da sua arte por meio da calcada a partir de diferentes perspectivas
imitação das convenções consagradas; tendo
teórico-metodológicas, a exemplo da
em vista essa conjuntura em tudo diversa,
forçoso é, portanto, que a presença de tópoi mencionada investigação sobre os tópoi
tradicionais num poema contemporâneo não literários. Assim, é preciso reconhecer que a
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 145

literatura alimenta-se, também, da própria vazio da erudição de gabinete. Pois tais


literatura, levando-se em conta o seu sentido empréstimos e migrações, fontes e
histórico, visto que esse influências – para usarmos a terminologia
hoje condenada da Literatura Comparada
[...] sentido histórico implica a percepção, tradicional –, ao se configurarem, repita-se,
não apenas da caducidade do passado, mas de em temporalidades e espaços descontínuos,
sua presença; o sentido histórico leva um propiciam uma produtiva reflexão sobre os
homem a escrever não somente com a própria problemas sociais, políticos e culturais que
geração a que pertence em seus ossos, mas vincam dado país em dado momento
com um sentimento de que toda a literatura histórico, bem como a maneira como esses
europeia desde Homero e, nela incluída, toda problemas são apresentados e representados
a literatura de seu próprio país têm uma pela especificidade da poesia lírica (p. 21).
existência simultânea e constituem uma
ordem simultânea. Esse sentimento histórico No caso específico da literatura brasileira, a
é que torna um escritor tradicional. E é isso investigação tópica, ainda segundo a opinião de
que, ao mesmo tempo, faz com que um Pires (2007), pode auxiliar na compreensão
escritor se torne mais agudamente consciente mais judiciosa das relações desta para com as
de seu lugar no tempo, de sua própria literaturas tradicionais que a auxiliaram em sua
contemporaneidade (ELIOT, 1989, p. 39). configuração. Portanto,
Esse recorrente diálogo com a tradição, [...] os estudos sobre a tópica (sua
implicados nesse sentido histórico da literatura, é historicidade, transformação e apropriação
um processo inevitável na constituição do fazer pelos poetas brasileiros), sobre as migrações
literário, e não se trata tão somente de uma (já que estas também se dão em
repetição servil do já feito, da “caducidade do temporalidades e espaços descontínuos),
passado”, mas antes implica uma renovação e sobre a intertextualidade crítica e sobre a
atualização do elemento tradicional, adequando às metalinguagem, podem ajudar, aplicados a
este ou àquele momento, a este ou àquele
novas realidades contextuais, reclamando
autor, a compreender as tensas relações da
criatividade e perícia do artífice da palavra na literatura brasileira com as várias tradições
feitura da arte a qual está vinculado. Nesse sentido, que lhe ajudaram a se configurar (p. 27).
a recorrência aos tópoi da tradição lírica exige
acentuada perícia poética por parte do artista, caso Quanto a essa aparente e intrínseca
contrário se corre justamente o risco de exprimir inevitabilidade das relações da poesia
monotonamente as mesmas formas e sentidos das contemporânea para com os clichês temáticos
convenções já consagradas. Afinal, é “na tarefa de estocados pela tradição lírica, Quevedo (2014)
reinvenção de legados [que] se situa o grande propõe a explicação de que se trataria
desafio do trabalho artístico, na medida em que é [...] da concepção segunda a qual, em última
na singularidade do arranjo, e não na novidade instância, a lírica lidaria com um vasto,
temática, que se encontra o êxito do autor” porém finito, repertório de motivos, os quais
(QUEVEDO, 2018, p. 33). Assim, quando um possuem ligações muito profundas com o
poeta utiliza-se dos lugares-comuns consagrados âmbito da experiência humana (o tempo, a
pela tradição poética, o faz na intenção de renovar morte, o amor etc.). Toda a história da poesia
o clichê temático, dando-lhe novas nuances e seria, por fim, um grande mostruário de
inúmeras variações desses motivos (p. 08).
sentidos, provenientes do deslocamento temporal,
do intrínseco anacronismo de quem se vale de um Assim, as variações em torno dos tópoi
topos da tradição. seriam traços essenciais não de um tipo
É nesse sentido, portanto, que a específico de atividade poética (aquele pautada
investigação tópica aplicada à lírica pelo voluntário processo da imitatio), mas, em
contemporânea torna-se de suma importância maior ou menor grau, de toda a produção lírica
na medida em que busca a compreensão em em geral, sendo, assim, um aspecto mesmo
torno da constituição da própria noção da constitutivo do fazer poético, afinal, no campo
contemporaneidade e de suas relações para com da lírica, “cada obra nova é uma continuação,
o passado. Por esse motivo Donizeti Pires por consentimento ou contestação, das obras
(2007), ressalva que anteriores, dos gêneros e temas já existentes.
[...] o estudo e o mapeamento das migrações,
Escrever é, pois, dialogar com a literatura
por mais fascinantes que sejam em si anterior e com a contemporânea” (PERRONE-
mesmos, não podem e não devem ficar no MOISÉS, 1990, p. 94). Essas variações em
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 146

torno dos lugares-comuns da tradição são, similitude com o passado – e esse processo será
portanto, o ser da literatura. De modo que no substantivado também no tempo futuro. Essa
sentido esposado por Quevedo (2018), o gênero imbricação temporal e o permanente diálogo
lírico, por ser mais longevo (em comparação aos com os dados fornecidos pelo passado fez-se
gêneros em prosa), bem como por ser uma arte ainda mais evidente com o advento da
mais codificada, torna-se mesmo inevitável que modernidade, tendo em vista justamente essa
o seu mostruário se faça de temas já “tradição da ruptura” que caracteriza a
consagrados pela tradição poética construída ao mentalidade contemporânea. Por esse motivo,
longo dos séculos, visto que, conforme o no Modernismo e Pós-Modernismo,
pesquisador, “possuem ligações muito A oposição entre o passado e o presente
profundas com o âmbito da experiência literalmente se evapora, pois o tempo
humana” e, como se sabe, o gênero lírico é transcorre com tal celeridade, que as
aquele considerado como sendo subjetivo por distinções entre os diversos tempos –
excelência, aquele “espaço íntimo da passado, presente, futuro – apagam-se ou pelo
comunicação” (ACHCAR, 2015, p. 47). menos se tornam instantâneas, imperceptíveis
Nesse sentido, concordamos com e insignificantes. Podemos falar de tradição
Quevedo (2014), quando este considera a moderna sem que nos pareça incorrer em
aparente e lógica “[...] impossibilidade [...] de contradição porque a era moderna poliu, até
apagar quase por completo, o antagonismo
haver uma produção poética totalmente isenta
entre o antigo e o atual, o novo e o tradicional
de seus lugares comuns, ainda que dentro de (PAZ, 1984, p. 18-19).
uma conjuntura radicalmente oposta à da
tradição clássica” (p. 03). Essa apontada É por esse motivo, portanto, que a literatura
impossibilidade de produções poéticas livres de contemporânea apresenta-se como um espaço
seus lugares-comuns é o que tem estimulado, onde se confluem e convivem as mais diversas
nas produções contemporâneas, a utilização tradições, justamente por causa dessa
imprevista e inovadora dos tópoi já consagrados evaporação entre o passado e o presente de que
pela tradição, procurando-se chegar, através fala Paz (1984). Nesse sentido, a
dessas utilizações criativas, a caminhos contemporaneidade estabelece-se, então, como
variados – e até mesmo inéditos – no que tange o locus privilegiado para o qual o poeta poderá
às reapropriações dos tópoi das diversas direcionar a sua produção lírica por caminhos
tradições líricas, afinal “na poesia culta, nunca vários, tendo em vista o apontado derrocamento
se abandona o jogo – joga-se com as regras dos preceitos a programas estéticos e cartilhas
dele” (ACHCAR, 2015, p. 19). O diálogo programáticas. Assim,
inevitável da poesia com os esquemas de Herdeiros [...] da destituição das escolas
expressão fornecidos pela tradição é, portanto, literárias e também da morte das vanguardas
regra inerente ao processo de constituição do históricas, o autor contemporâneo tem, ao seu
gênero lírico e, assim, de fato se apresenta dispor, todo um legado literário para um tipo
impossível uma produção poética que seja de uso guiado, unicamente, por propósitos
totalmente isenta de seus lugares-comuns, como que somente sua própria inclinação artística
bem asseverou Quevedo (2014). poderá instituir. No campo da lírica, não
De modo que as criações artísticas atuais são somente pela sua maior longevidade (se
comparado aos gêneros em prosa, por
permeadas por um legado cultural da história
exemplo), como também por ter sido durante
humana através dos tempos. As diversas formas séculos uma arte bastante codificada, o
culturais – entre as quais, a literatura – mostruário de tradições se faz muito mais
transcendem o espaço temporal: das primeiras perceptível: do uso das formas fixas a
manifestações artísticas às novidades recriações de temas da lírica latina ou grega,
contemporâneas, a humanidade vive um diversos são os caminhos pelos quais o poeta
contínuo diálogo entre passado, presente e o contemporâneo pode transitar em direção ao
legado futuro. O passado frutificou o presente; passado (QUEVEDO, 2018, p. 19).
o hoje é o gérmen do futuro; e o futuro é a A perícia e a destreza de determinado poeta
incógnita consubstanciada no tempo presente. evidencia-se, muitas vezes, justamente no modo
O ser humano se constitui, em sua formação como trabalha na reconstrução e atualização de
cultural e existencial, através desse dialogismo algum dos topos poéticos provenientes da
atemporal: o que se é hoje só é possível por ter tradição, visto que, conforme Achcar (2015):
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 147

[...] ao contrário do que à primeira vista pode ELIOT, T. S. “Tradição e Talento Individual”.
parecer, é, sobretudo, na utilização dos tópoi In: _________. Ensaios. Tradução, introdução
que se revela a originalidade do poeta: a e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art
seleção, a expressão e a combinação deles Editora, 1989.
oferecem possibilidades inesgotáveis de
soluções imprevistas dentro do uso KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise.
tradicional, chegando até às transgressões Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed.
desse uso (p. 29). São Paulo: Perspectiva, 2005.
Nesse sentido, as relações intertextuais LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em
exercidas pela poesia contemporânea em Suas Fontes. Vol. 1. Rio de Janeiro:
diálogo com as tradições líricas do passado se Civilização Brasileira, 2002.
efetuam tanto pelo consciente colóquio do poeta
com os lugares-comuns da tradição – por meio PAZ, Octávio. Os Filhos do Barro: Do
de paródia, citações, pastiche, alusões, etc. – Romantismo à Vanguarda. Trad. Olga Savary.
quanto também de forma inconsciente, sem que Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
o escritor tenha a intenção de manter, com os PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da
tópoi do patrimônio lírico, um voluntário Escrivaninha. São Paulo: Companhia das
diálogo. Desse modo, o poeta, pensando Letras, 1990.
expressar algo proveniente de sua própria
elaboração pessoal, acabaria esbarrando num PIRES, Donizeti Antônio. “Lugares-Comuns da
lugar-comum já consagrado pela tradição Lírica Ontem e Hoje”. In: Linguagem –
literária, por estar, esse lugar-comum, já Estudos e Pesquisas, Catalão, vols. 10-11 –
sedimentado e cristalizado na mentalidade 2007.
cultural a qual pertence o artista QUEVEDO, Rafael. “Isto Não Passa, Isto Não
contemporâneo. Esse fenômeno se explicaria Basta: A Tópica da Sintomatologia Amorosa
pelo fato de que os tópoi seriam “formulações em Cantos para Soraya de Neide Archanjo”. In:
para um motivo que mantém com a experiência Revista Araticum, v. 18, nº 2, 2018.
humana uma íntima e universal relação”
(QUEVEDO, 2014, p. 07). É, pois, no sentido _________. “Lírica Contemporânea e Tradição
apresentado, que consideramos a Poética: Topoi Clássicos em Poemas de Érico
Toposforschung como um interessante método Nogueira, Fabrício Marques e Paulo Henriques
de investigação analítico no estudo da poesia Britto”. In: Caligrama. Belo Horizonte, v.22,
contemporânea e sua relação com os lugares- n.1, p.109-124, 2017.
comuns cristalizados pelo patrimônio do _________. “O Lugar da Investigação dos
tesouro lírico, auxiliando, desse modo, na Topoi na Lírica Contemporânea de Língua
compreensão mais judiciosa em torno dos Portuguesa: Considerações Metodológicas.” In:
liames da contemporaneidade para com a Anais do III Colóquio Internacional de
tradição. Estudos Linguísticos e Literários, 2014,
Referências Maringá.
SODRÉ, Paulo Roberto; QUEVEDO, Rafael
ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar- Campos. “Vestígios do Topos do Panegírico na
Comum: Alguns Temas de Horário e Sua Poesia de Geraldo Carneiro”. In: Estudos de
Presença em Português. 1ª ed. São Paulo: Literatura Brasileira Contemporânea. UnB,
Editora da Universidade de São Paulo, 2015. p. 289-304, 2016.
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria
da Literatura. Vol. I. 8ª ed. Coimbra:
********
Almedina, 2006.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europeia
e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro
Cabral (com colaboração de Paulo Rónai). 3ª
ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2013.
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA


Pedro Henrique Viana de Moraes78

RESUMO: Este artigo pretende investigar aspectos depoimento, Orides reflete sobre isso ao dizer
da obra da poeta paulista Orides Fontela em se que: “Esta posição existencial básica de meus
tratando das relações que seus poemas estabelecem poemas já é filosófica, isto é, seria possível
com a ideia do inefável e do silêncio. Investiga-se desenvolvê-la em filosofia, e daí veio meu
aqui a poesia da autora como um lugar de lucidez e interesse pela filosofia propriamente dita.”
de uma tentativa de equilíbrio muitas vezes instável (FONTELA, 2019, p.36).
e incerto entre o estar aqui e o intento de descortinar “Posição existencial” pode ter significados
o que existe para além do humano, região árida e múltiplos, sendo o sentido original concernente
sumariamente impiedosa. Como uma tentativa de apenas à própria poeta, porém dentro dos limites
solução para tal impasse Orides estabelece um deste texto pensamos esta posição como uma
sistema de símbolos fechados e reiterativos, os intensa busca por devassar os limites do(s)
quais trabalha com extrema atenção. Com relação mundo(s): o que habitamos e o que nos transcende.
a isso Alcides Villaça expõe que “o silêncio de E é na poesia que Orides encontra um meio
Orides requalifica alguns símbolos essenciais numa propício para a tentativa de apreensão da
economia estoica, quase desumana” (1996, p.1). A realidade, no mesmo ensaio supracitado ela
partir de tal perspectiva escolhemos para esta relaciona a arte poética ao mito e ao logos.
análise, dentre todos os símbolos orideanos, a Sabemos que desde o nascimento da filosofia
imagem do branco, signo que tal como o silêncio houve uma progressiva preponderância do
permeia, na obra da poeta, o mundo dito originário logos sobre a interpretação mitológica, além da
e com ele se confunde. Finalmente, além de ideia de que o mundo todo poderia ser explicado
contarmos com os próprios textos e depoimentos através da linguagem. Não obstante,
da autora, tal qual o seu conhecido “Sobre poesia e A poesia, como o mito, também pensa e
filosofia- um depoimento”, nos basearemos nos interpreta o ser, só que não é pensamento
aportes teóricos de diversos pensadores a exemplo puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho,
de George Steiner (1988), Santiago Kovadloff inventa e inaugura os campos do real, canta.
(2003), Susan Sontag (2015), Jean Chevalier Pode ser lúcida, se pode pensar – é um logos
(2000), Alcides Villaça (1996) e outros. – mas não se restringe a isso. Não importa:
poesia não é loucura nem ficção, mas sim um
Palavras-chave: Inefável; Silêncio; Orides instrumento altamente válido para apreender
Fontela; Lírica Brasileira o real – ou pelo menos meu ideal de poesia é
isso. (FONTELA, 2019, p.35)
1 Introdução
Esse lugar do poema faz ressoar de certa
Orides Fontela (1940-1998) costumava maneira a crise geral da linguagem que a partir
pensar que havia muito de poesia na filosofia, de meados século XIX se abatera com mais
para a poeta por exemplo a obra do filósofo força sobre a mentalidade ocidental, mas que
alemão Martin Heidegger poderia ser lida como havia iniciado séculos antes. George Steiner,
poesia, por outro lado também acreditava que a em seu livro Linguagem e silêncio: ensaios
sua produção poética continha muito de sobre a crise da palavra (1988), reflete acerca
formulação filosófica, como ela própria afirma de uma espécie de encolhimento do campo
no texto Sobre poesia e filosofia- um verbal que se dá a partir do século XVII com a

78
Mestrando em Letras pelas UFMA, sob orientação do
Prof. Dr. Rafael Campos Quevedo.
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 149

concorrência crescente de outras linguagens como visión y revelación, como un símbolo tras
universalizantes a exemplo da matemática e da el cual late la verdad. Al poeta se le reserva una
música, tal processo faz com que o alcance e a vez más el importante papel de intermediario
configuração da linguagem verbal sejam entre el hombre y la divinidad a través de una
palabra que oculta el misterio sagrado y se
repensados: “é no curso do século XVII que
convierte en exponente de la infinitud divina79.
significativas áreas da verdade, da realidade e (DOMÍNGUEZ, 2013, p.322)
da ação afastam-se da esfera da manifestação
verbal”.(STEINER, 1998,p.32) e ainda: Ao mesmo tempo que a noção do poeta
como vate sobrevive, ela passa pelo crivo do
até o século XVII, a esfera da linguagem
uma série de processos que o tensionam o lugar
abarcava quase a totalidade da experiência e
da realidade; hoje compreende um domínio do poeta. Como exemplo temos o esvaziamento
mais estreito. Não mais articula - ou lhe são da transcendência, como nos diria Hugo
pertinentes - todas as principais modalidades Friedrich com a ideia de “idealidade vazia” ao
de ação, raciocínio e sensibilidade. falar de Baudelaire: “A meta da ascensão não só
(STEINER, 1988, p.43) está distante, como vazia, uma idealidade sem
conteúdo. Esta é um simples polo de tensão,
Esta crise foi sentida pelo mundo artístico,
hiperbolicamente ambicionado, mas jamais
Steiner expõe o caso das tentativas modernas de
atingido” (FRIEDRICH,1978, p.48)
inaugurar uma nova sensibilidade e de se
Também é pertinente falar neste ponto
libertar de antigas formas e retóricas que não
constantes crises pelas quais passa a arte
compraziam a consciência da linguagem que
literária, que, como nos diz Marcos Siscar, é um
despontava. Para exemplificar esse processo, o
sintoma da estética moderna: “A meu ver, o
teórico traz à tona personagens capitais para a
sentimento de crise deve ser reconhecido como
literatura do início do século XX como os
um traço característico, da natureza ética, da
poetas Rimbaud, Rilke, Mallarmé. Ademais
constituição do discurso literário moderno.”
surrealistas, que tentaram devassar os avessos
(SISCAR, 2010, p.32)
da expressão, encontrar-lhe os ecos e
Para Octavio Paz, por sua vez, toda a crise é
principalmente trazendo também questões
afinal uma crise, e crítica, da linguagem. A poesia,
como o hermetismo e o inconsciente. Para
portanto, que tem a linguagem como cerne e
Richard Sheppard:
material se alimenta desses tensionamentos na
Muitos escritores passam por um período em época moderna. Tal tendência ecoa, de certa
que parece ter se afastado do plano da forma, na produção contemporânea, na qual se
consciência uma dimensão essencial, uma insere Orides Fontela.
energia vital, em que a superfície da Veremos mais adiante que Orides Fontela
linguagem deixou de ser luminosa e se tornou
opaca. E essa experiência se torna mais
pode ser um exemplo disso, ainda que em sua
familiar à medida que nos aproximamos da poesia não sejam corriqueiros questionamentos
época moderna. (SHEPPARD, 1989, p.263) diretos e explícitos sobre a insuficiência da
linguagem para compreender a vastidão que a
Ainda sobre o tema fala Antonio Garrido ultrapassa. Aventamos, portanto, a hipótese de
Domínguez no artigo “Lo inefable o la que ela guarda tais questões atrás de um sistema
experiencia del límite” (2013). O pesquisador de símbolos, os quais trabalha num processo de
espanhol analisa de forma sucinta as ideias que tensionamento extremamente lúcido.
se coadunam acerca do tema do inefável e expõe
que muito se discutiu o papel da poesia para 2 Orides Fontela: O branco e o
tentar abarcar conceitos que a linguagem inefável
comum deixaria escapar. Fala por exemplo da Aquele que se debruçar sobre a obra poética
ideia romântica do poeta como visionário e de da paulista Orides Fontela depreenderá, entre
como, guardadas as devidas diferenças, tal outras nuances, a presença um impulso ao mais
noção ressoa no século XX: alto permeado de uma intensa consciência sobre
En él la palabra poética continuó interpretándose a dificuldade de tal processo.

79Nele a palavra poética continuou se interpretando como divindade através de uma palavra que oculta o mistério
visão e revelação, como símbolo depois do qual pulsa a sagrado e se converte em expoente da infinitude divina.
verdade. Ao poeta se lhe reserva uma vez mais o (DOMÍNGUEZ, 2013, p.322, tradução nossa)
importante papel de intermediário entre o homem e a
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 150

Acusada muitas vezes de aristocrática, ou no sentido de um sempre retrocedente


abstrata em demasia, Orides possuía de fato horizonte de silêncio – movimentos que, por
uma concepção da poesia como arte maior, com definição, jamais podem ser plenamente
teor transcendente: “Poesia é arte – talvez a consumados (SONTAG, 2015, p.17)
mais antiga da humanidade- e arte implica um Como vimos anteriormente a noção de
impulso essencial para o mais alto, talvez para poema para Orides Fontela também compartilha
o ultra-humano”. (ORIDES, 2019, p.32, grifo dessa ideia do poema como abertura ao
nosso). A isso se coaduna outra fala da poeta, ao transcendental e como veremos a seguir, esta
defender que o poema: “É uma palavra tentativa torna-se gradualmente mais árdua em
primeira, não só arcaica, mas futura e sua obra. Para analisar como se dá a questão da
intemporal.” (FONTELA, 2019, p.30). De relação de Orides com o inefável e o seu
acordo com essa visão, o poema nasce e nos silêncio escolhemos para análise um dos
conduz a um espaço essencial. símbolos recorrentes na poética da autora: o
E é a partir da análise sobre este espaço branco. De antemão é pertinente dizer que
essencial que podemos iniciar uma reflexão Orides possui um sistema bastante reiterativo de
mais detalhada sobre o silêncio. Principalmente imagens, frequentemente voltando aos mesmos
pensando a conexão deste lugar primevo com o símbolos. Atitude que seria adjetivada de
“Silêncio primordial” do qual fala o teórico “caleidoscópica” por Antonio Candido.
argentino Santiago Kovadloff. Vejamos o primeiro poema escolhido:
Para ele existem dois tipos de silêncio, o “Múmia” do livro Transposição (1969), sua
“silêncio da oclusão”: aquele da fala cotidiana e primeira obra:
das trocas diárias que tende a escamotear toda
MÚMIA
forma de estranhamento, e o silêncio da epifania Liana
que “é manifestado quando minha entrega à liame
proposta do poema – seja como autor, seja como linho.
leitor- alcança seu zênite” (KOVADLOFF, Voltas e mais voltas
2003, p. 26). Este estágio é obtido diante de uma apertadas voltas
“totalidade indivisível” nas palavras de concêntricas.
Kovadloff. Ponto importante da teorização do Brancas espirais
pensador argentino é a ideia de que tal tela branca
totalidade “é inviável para a fala como objeto de unguento incenso contundentes
apreensão direta.” (KOVADLOFF, 2003, p.26) aromas.
Lianas
Em tais palavras fica assente uma noção liames da espera
comum aos autores que tratam do silêncio como incubando o sono.
fenômeno, a ideia de que o poema faz ressoar o Linho indizível
silêncio, deixa entrevê-lo, mas sua apreensão branco:
total é poderosa demais para a racionalidade branco arcaico em torno
humana: de nada. (FONTELA, 2015, p.58)
Se não posso enunciar literalmente o verdadeiro Nesse poema somos apresentados a este
silêncio, o silêncio intransplantavel à expressão, invólucro do silêncio: o branco, que, tal como a
posso, em compensação, fazê-lo ouvir por via pedra e o metal na poética da autora, acolhe a
alusiva: conseguir que o eco de seu latejar força essencial. Há aqui um vazio asséptico que
essencial ressoe em minha palavra não deixa de ser rigoroso. Simbólicamente:
(KOVADLOFF, 2003, p.10)
Como su color contrario, el negro, el blanco
Opinião semelhante está presente em reflexões puede situarse en los dos extremos de la gama
da autora americana Susan Sontag, ao falar mais cromática. Absoluto y no teniendo otras
propriamente do silêncio como signo literário: variaciones que las que van de la matidez al
Enquanto propriedade da obra de arte em si, brillo, significa ora la ausencia ora la suma de los
o silêncio pode existir apenas num sentido colores. Se coloca así ora al principio ora al final
arquitetado ou não literal. (Colocando-se de de la vida diurna y del mundo manifestado, lo
outro modo: se uma obra de arte existe de
alguma forma, seu silêncio é apenas um
elemento nela.) Em lugar do silêncio puro ou
alcançado encontram-se vários movimentos
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 151

que le confiere un valor ideal, asintótico 80 . sabor da exploração, pelo contrário, “introverte-
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 231) se”. Asséptico, o branco não apresenta destino.
O branco, como nos deixa entrever a citação Resta-nos no fim do poema uma imagem que se
acima, pode relacionar-se tanto à ausência como desdobra sobre si mesma, como a espiral do
à totalidade e detém um caráter de absoluto que poema anterior.
não passa insuspeito a Orides Fontela. No Porém, dentro da obra da poeta há um
poema, a primeira estrofe é composta de três momento de guinada, a partir dele o ponto de
versos constituídos de um único substantivo vista poético tende a voltar-se mais para o real,
cada. São três pontos chaves para modificando a tensa busca pelo transcendente.
compreendermos a construção metafórica do Esse senso de realismo aflora com mais força
branco no poema. Liana é um tipo de cipó, em seus últimos livros, Rosácea (1986) e Teia
trepadeira; um liame, por sua vez, é qualquer (1996). A própria poeta, almeja a sua obra nesta
objeto que sirva para atar e por fim, a mais última fase menos abstrata, mais estendida à
reconhecível das imagens: a do linho, concretude do mundo:
entrelaçamento minucioso dos fios. Olhe, eu sinto que fechei um ciclo não no
Estas três imagens, em certo sentido, Trevo, e sim no fim de Alba. Até Alba, os
representam a contenção. Servem para cobrir, meus versos viviam pairando lá em cima,
prender, delimitar. Porém, relacionadas com o sublimes demais. Poesia sobre poesia...
branco atingem um maior nível de abstração, o Chegou um ponto em que eu mesma fiquei
que nos leva a indagar: o que conteria esse “pê da vida”. Cansei. Minha poesia estava
meio velha, e eu assumi isso. Estava me
espaço neutro, original e silencioso a não ser ele
repetindo. Agora faço uma poesia mais
próprio? Surge no poema a imagem da espiral, vivida, mais encarnada. Chega de coisas lá
o branco como um símbolo que se desdobra em cima. (FONTELA, 2019, p.48)
sobre si mesmo.
Os símbolos são retrabalhados nessa lógica,
ANTÁRTIDA como por exemplo a imagem do branco no
O campo branco (nenhum mapa) intenso.
poema “Toalha” do livro Teia:
Os passos consomem-se
o espaço introverte-se TOALHA
branco branco Pano branco.
Asséptico/ absoluto. Integralmente branco.
Norte nenhum (Material mas
noite nenhuma suspenso
-branco sobre na brancura).
o branco. (FONTELA, 2015, p.198) Branco
Que as formas nascem …. ah,
O poema acima pertencente ao livro Alba tão branco
(1983) e é outro que desenvolve a imagem do véu
branco. O título já nos dá a ideia desse território para receber o sangue
inóspito e inclemente, local onde o humano ainda de todas
tenta algum controle. Logo no primeiro verso as coisas. (FONTELA, 2015, p.378)
deixa-se assente a falta de caminhos, essa
O símbolo do branco, cuja extrema relação
indeterminação de rumos, “(nenhum mapa)”, que
com o silêncio primordial pudemos testemunhar
também significa a impossibilidade de dominar
nos outros poemas ganha os contornos do
esse espaço “intenso”. O fato de que apenas esse
concreto e cotidiano na imagem da toalha. Na
verso constitui a estrofe parece querer demonstrar
segunda estrofe faz-se a ressalva sobre a forma
o caráter de amplidão daquele espaço.
que apesar de “material” está suspensa na
A segunda estrofe reforça a ideia de que
brancura. O branco aqui estaria finalmente
estamos à mercê do absoluto desamparo desse
rendido a uma possibilidade de definição (“que
mundo de silêncio que o branco indica. O
as formas nascem”), por isso talvez finalmente
avanço destrói-se pela imobilidade (“os passos
aberto ao humano. Como um sudário recebendo
consomem-se”) e o espaço não se expande ao

80 Como sua cor contrária, o preto, o branco pode situar-se assim ora ao princípio ora ao final da vida diurna e do
em dois extremos da gama cromática. Absoluto e não mundo manifestado, o que lhe confere um valor ideal,
tendo outras variações que as que vão da matidez ao brilho, assintótico. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p.
significa ora a ausência ora a soma das cores. Se coloca 231, tradução nossa)
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 152

o sofrimento (sangue) de todas as coisas, vê-se Só que este “estar aqui” é, também, estar “a
uma mudança na imagem do branco através do um passo” – de meu espírito, do pássaro, de
símbolo nada ascético da toalha. Esta recebe o Deus – e este um passo é o “impossível” com
sangue, que assume a forma do percalço, do que que luto. (FONTELA, 2019, p. 36)
se perde na lida difícil com o ser. É este impossível, que não economiza o
Ainda que digamos que em sua última fase a sangue do eu-lírico dos poemas da autora, que faz
poesia de Orides Fontela está mais aberta ao com que no fim de sua produção sua poética volte
concreto, devemos ter em mente, porém, que o os olhos à concretude das coisas. Orides Fontela
real nunca esteve ausente. Pelo contrário o lado habita um lugar de trânsito entre dois pesos: o real
humano, vertedouro de sangue, alvo da imperiosa e aquilo que o ultrapassa, o inefável.
falta de mercê do essencial, sempre se desvelou. Uma alargada e lúcida consciência não
O que acontece para o fim é tão somente uma permite que a crueza e a violência de ambos os
espécie de abertura maior para o concreto. espaços se diluam ou se escondam atrás das
3 Considerações finais imagens poéticas. Pelo contrário, o hermético
sistema de símbolos orideanos longe de
Poeta severa em seu projeto lucidez, Orides escamotear a tensão, evidencia-a. O branco é
Fontela parece apresentar ao leitor um jogo de apenas um dos símbolos cultivados com uma
forças que tentam se equilibrar, de um lado depuração aparentemente controlada, mas que
estão o transcendente e o inefável, do outro a ainda assim deixa entrever as feridas e o sangue
força perscrutadora da linguagem. Ao mesmo de tão árduo comprometimento.
tempo insuficiente para os intentos de expressão
e carregada de acúmulo histórico, a linguagem, Referências
como nos diz Susan Sontag, produz um “duplo
descontentamento”: “Faltam-nos palavras e CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain.
dispomos de palavras em demasia” (SONTAG, Diccionario de los símbolos. Traducción:
2015, p.31) Manuel Silvar, Arturo Rodríguez. Barcelona:
Orides, ciente dos tensionamentos da Heder, 2000.
linguagem poética e possuindo-a como única DOMÍNGUEZ, Antonio Garrido. (2013). Lo
arma, portanto, encontra um caminho para tal inefable o la experiencia del límite. Revista
dilema: propõe-se a trabalhar no espaço contido Signa, 22, p. 317-331.
de um sistema de símbolos que são muitas vezes
reiterativos, aparecendo e reaparecendo durante
FONTELA, Orides. Entrevista do mês.
toda a sua obra. Sobre tal aspecto, diz o crítico
[Entrevista concedida a] Augusto Massi, José
Alcides Villaça:
Maria Cançado e Flávio Quintiliano. In:
Lição prevenida da morte, o silêncio de FONTELA, Orides. Toda palavra é
Orides requalifica alguns símbolos essenciais crueldade. Organizado por Nathan Matos. Belo
numa economia estoica, quase desumana, de Horizonte, MG: Moinhos, 2019
quem se determinou um tão lacônico quanto
fundo testemunho. Suas meditadas sínteses _____. Nas trilhas do trevo In: FONTELA,
poéticas surgem como provocações, nestes Orides. Toda palavra é crueldade. Organizado
dias em que a reflexão ou se aparta da por Nathan Matos. Belo Horizonte, MG:
sensibilidade ou sucumbe alegremente ao Moinhos, 2019
conforto das reações automatizadas.
(VILLAÇA, 1996, p.1) _____. Poesia Completa. Organização de Luis
Dolhnikoff. São Paulo: Hedra, 2015.
Entretanto, desde o primeiro livro a ampla
consciência do fazer poético conectada à _____. Uma conversa com Orides Fontela.
lucidez e à contenção do seu símbolo esbarra na [Entrevista concedida a] Michel Riaudel In:
percepção também muito clara de que o real é FONTELA, Orides. Toda palavra é
inescapável e que, portanto, não consegue crueldade. Organizado por Nathan Matos. Belo
suportar de forma permanente a força inumana Horizonte, MG: Moinhos, 2019
do essencial: KOVADLOFF, Santiago. O silêncio
Ora, uma intuição básica de minha poesia é o primordial. Trad. Eric Nepomuceno e Luís
“estar aqui” - autodescoberta e descoberta de Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio,
tudo, problematizando tudo ao mesmo tempo. 2003
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 153

SHEPPARD, Richard. A crise da linguagem.


In: Modernismo: guia geral 1890-1930/
organização Malcolm Bradbury e James
McFarlane; tradução Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SISCAR, Marcos. Poesia e crise: ensaios sobre
a “crise da poesia” como topos da modernidade.
Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos.
Trad. João Roberto Martins Filho. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
STEINER, George. Linguagem e silêncio:
ensaios sobre a crise da palavra. Trad. Gilda
Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, 368p
VILLAÇA, Alcides. O silêncio de Orides.
Folha de São Paulo. 12 jul. 1996.

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Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO


COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ
Isabela Alves Pereira81

RESUMO: O presente trabalho trata da 1 Introdução


temática da poesia de autoria feminina na
Dentre todos os gêneros literários criados, o
Península Arábica durante o período da
que fala mais intimamente à cultura árabe é a
Jahiliya, com foco nas poetas Al-Khansa’ e Al-
poesia. Esta, se apresenta não apenas pelo
Kharniq como estudos de caso. A chamada
vocabulário e sintaxe da língua corretamente
Jahiliya compreende à época pré-islâmica na
produzido, mas especialmente pela estética
Península Arábica, ou seja, o período anterior
melodiosa que soa aos ouvidos; estética essa
ao século VII e aos ensinamentos do profeta
construída pela disposição das palavras
Muhammad. Ao árabe beduíno – pré-islâmico –
artisticamente coesas e cujos significados são
, a poesia era utilizada não apenas como um
explorados ao máximo.
meio de expressão artística, mas como o lugar
O presente trabalho tratará da temática da
onde os árabes significavam os fatos históricos,
poesia de autoria feminina na Península Arábica
sua cultura e organização sociopolítica. A
durante o período pré-islâmico, chamado pela
cultura beduína tinha por valor fundamental a
historiografia árabe de Jahiliya. Não há, porém,
sabedoria, materializada especialmente numa
a pretensão de tratar exaustivamente do assunto,
poesia cuja beleza de seus versos sinalizava a
visto que a escassez de fontes é um obstáculo
erudição de seu autor. Especificamente à
factual. Contudo, já é sabido que existiram
mulher beduína, exigia-se a mesma virilidade
poetisas no período da Jahiliya, como Al-
que era exigida ao homem, ou seja, deveriam ser
Kharniq (século VI) e Al-Khansa’ (século VII).
leais e destemidas. Assim como os homens,
À mulher beduína, exigia-se a mesma
eram devotas à honra tribal e seu especial papel
virilidade e lealdade que era exigida ao homem,
era o do luto pelo ente - homem – assassinado
ou seja, deveriam ser corajosas e devotas à honra
nos conflitos tribais, bem como encorajar os
tribal. Seu papel era especialmente o do luto pelo
outros homens da tribo à vingança pelo morto.
ente - homem - assassinado e o de encorajar os
A poesia dessas mulheres eram, pois, elegias,
outros homens da tribo à vingança pelo morto. A
cujo pranto cessava-se apenas após a vingança
poesia dessas mulheres eram, pois, elegias, cujo
ao morto tão eloquentemente elogiado. Nosso
pranto cessava-se apenas após a vingança ao
objetivo no presente artigo é de traduzir e
morto tão eloquentemente elogiado.
analisar alguns versos de Al-Khansa’ e Al-
Kharniq, como meio de verificar esse papel das 2 Península Arábica no período da Jahiliya
mulheres enquanto poetas, ao mesmo tempo em A palavra árabe Al-Jahiliya deriva de uma raiz
que comprovamos que essas mulheres eram árabe que carrega o significado de “ignorar”. O
conhecedoras da métrica e eloquência artística nome refere-se, pois, ao período em que os árabes
exigidas na forma de expressão árabe beduína ignoravam - no sentido de “desconheciam” - o Islã
por excelência. e os ensinamentos do profeta Muhammad; ou
Palavras-chave: Poesia árabe: Jahiliya: Al-
Khansa’: Al-Khirniq.

81 Português-Árabe pela Universidade Federal do Rio de


Mestranda no programa Letras Estrangeiras e Tradução,
da Universidade de São Paulo. Bacharel em Letras Janeiro • isabela.ap@usp.br • Universidade de São Paulo
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 155

seja, compreende à época pré-islâmica82 na organização tribal (GIORDANI, 1992).


história da Península Arábica.
3 A poesia na Jahiliya
A Península Arábica se estende do Mar de
Omã - sul - à Jordânia e Iraque - norte -, e do A poesia beduína pré-islâmica era
Mar Vermelho - oeste - ao Golfo Pérsico - leste especialmente ligada à tradição oral, ainda que
-, sendo considerada a maior península em já houvesse um sistema de escrita em uso. Os/as
extensão territorial do mundo. Contudo, por fins poetas criavam os versos, recitavam-nos de
didáticos, ao tratarem dessa região no contexto cabeça e difundiam-nos com a ajuda dos
pré-islâmico, dividem-na em Arábia Meridional recitadores.
e Arábias Central e Setentrional. A poesia na cultura da Península Arábica era
A Arábia Meridional 83 corresponde ao mais do que uma manifestação artística. Era o
território sul/sudoeste da península, na modo como os árabes significavam os fatos
intersecção entre o Índico e o Mediterrâneo. Por históricos, bem como sua cultura e organização
sua favorável localização geográfica, foi de sociopolítica. A cultura beduína tinha por valor
grande relevância econômica na Antiguidade, fundamental a sabedoria, materializada
sendo importante ponto comercial de venda de especialmente numa poesia cuja beleza de seus
diversos produtos de grande valor. A população versos sinalizava a erudição de seu autor ou,
estabeleceu-se num modelo sedentário e ainda, de seu recitador.
urbano, de grande arte arquitetônica, e a religião Havia nesse período um concurso de poesia
era predominantemente a de culto a vários na movimentada feira de ‘Ukaz, no período
deuses. Os grupos de maior relevância na região anual de peregrinação a Meca, em que as mais
foram: Ma’in, Qataban, Hadramaut e Sabá aclamadas eram premiadas. Sete ou dez desses
(GIORDANI, 1992). poemas tiveram a mais superior das honrarias
Já a Arábia Central e a Arábia Setentrional de “serem bordados em fios de ouro sobre um
correspondem, respectivamente, às regiões manto de púrpura e exibidos sobre a Ka’aba”
central e norte. Seus principais reinos eram: (MUSSA, 2003, p.10). Esses poemas foram
primeiramente Nabateus e Palmira84 - ao norte, chamados de Al-Mu’alaqat, ou seja, “as odes
cujos centros eram Petra e Damasco, suspensas”.
respectivamente -; e, após uma onda migratória A poesia da Jahiliya é chamada na ciência
da Arábia Meridional, os reinos dos Gassânidas, literária árabe de qassida87 e trata-se de poemas
Lacmidas, Kinda e Hejaz85. Eram regiões de líricos, odes de conteúdo especialmente
grande extensão desértica, com diversos oásis amoroso, bem como enaltecimento –
espalhados, e, sendo assim, a disputa pelos ou ainda crítica, como no caso dos Sa’alik88
recursos hídricos era intensa. Diversas – da tribo e seus antepassados, ou elogio a um
caravanas cruzavam o deserto de sul a norte e morto. Eram poemas geralmente extensos cujos
vice-versa por diversas razões, como versos eram formados por dois hemistíquios
comerciais e religiosas. Havia nômades e dispostos lado a lado com uma pequena quebra
seminômades nessas regiões cujas religiões espacial no meio. Possuía uma rima única na
eram: cristã, judaica e, majoritariamente, do última sílaba do segundo hemistíquio, com
culto a vários deuses – o politeísmo. Os exceção do primeiro verso em que a última
nômades da Península Arábica eram chamados sílaba do primeiro hemistíquio apresenta
de “beduínos” 86 , que viviam de saques, também a rima. A seguir, um exemplo de Amr
pastoreio, agricultura e comércio, bem como Kulthum.
eram nômades ou seminômades e de

82 85
O marco acordado como sendo o do advento da Era do Onde se localizavam Meca e Medina.
Islã é a fuga - hegira - do profeta de Meca para Medina, 86 A palavra “beduíno” vem de uma raiz árabe que carrega
em 622, por ocasião do desagrado do povo de Meca a o significado de “início”, sendo os beduínos considerados
Mohammad e seus ensinamentos. Portanto, o período pré- os principais antepassados dos árabes.
87 Significa “cortada ao meio”. É uma clara referência à
islâmico compreende os séculos anteriores ao século VII.
83 Chamada pelo Império Romano de Arabia Felix – disposição dos versos.
“Arábia Feliz”. 88 Essa palavra árabe pode ser traduzida como “saltadores”.
84 Do latim e grego Palmyra, que quer dizer “palmeira”. A Eram desgarrados que viviam principalmente de saques e
cidade teria recebido este nome por pertencer a um grande furtos.
oásis rodeado de palmeiras, no meio do deserto.
Localizava-se no deserto de Tadmor.
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 156

‫وأنا العاصمون إذا أطعنا‬ ‫عصينا وأنا العازمون إذا‬ Esse excerto do estudioso é especialmente
‫كدرا وطينا‬
ً ‫صفوا ويشرب غيرنا‬
ً ‫ونشرب إن وردنا الماء‬ aplicável às poetas. À mulher, era esperado o
luto passional pelo marido/irmão/pai morto em
Transliterando-se, seria confronto, juntamente com discursos de grande
Wa 'ana al-'aaSumuun 'idza 'aTa'ana Wa elogio a este. Dois grandes exemplos do que
'ana al-'aazimuun 'idza 'aSyna elucidamos são as poesias de Al-Khansa’ e Al-
Khirniq.
Wa nashrab 'in wardina al-ma' Sufuuan
Wa yashrab ghirna kadran waTyna A poeta Al-Khansa’ viveu entre os séculos
VI e VII, sendo contemporânea ao surgimento
Numa tradução livre, seria algo como do Islã, religião para a qual se convertera
Somos benfeitores se obedecidos e posteriormente. Seu nome verdadeiro era
severos se desobedecidos Tamadur bint Amr bin Al-Harith Al-Salmiyah,
sendo “Al-Khansa’” – “nariz empinado” – uma
junto à fonte, bebemos água pura e eles,
ao contrário, a turva e barrenta
alcunha recebida por uma característica peculiar
de sua feição: o nariz avantajado e empinado.
Tem-se, pois, dois versos - quatro Tornou-se uma das poetisas pré-islâmicas
hemistíquios - com rima em na, presente no mais famosas e escreveu especialmente após a
primeiro e segundo hemistíquio do primeiro morte de seus dois irmãos, revelando sua dor e
verso e no segundo hemistíquio do segundo tristeza, bem como seu orgulho e louvor de
verso. ambos. Nabigha al-Dhubyani, outro poeta pré-
4 As poetas do Período da Jahiliya islâmico, disse sobre ela: “Al-Khansa é a mais
sensível dos gênios e da humanidade”.
De acordo com Mussa (2003), “a Em 612, teria perdido seu irmão Muawiyah
condição feminina na Idade da Ignorância foi durante um conflito tribal. Desolada, convenceu
superior à da era que estava por vir com o advento seu irmão mais novo – Sakhran – a vingar a
do Islã” (p. 168). Ainda de acordo com o autor, os morte de Muawiyah. Sakhran conseguiu matar
direitos eram praticamente os mesmos e os algozes de seu irmão, mas feriu-se
compartilhavam as mais diversas atividades com gravemente e por isso veio a padecer em 615.
os homens, como no comércio – muitas eram ricas Mais uma vez desesperada, compõe uma elegia
proprietárias de caravanas – e na guerra, cuidando a seu irmão mais novo:
dos feridos. Foram astrólogas, profetizas e, acima
ً ‫صخرا‬َ ‫َمس‬
ِ ‫ع الش‬ ُ ‫يُذَ ِ ِّك ُرني‬
ُ ‫طلو‬ ‫ب‬ ُ ‫َوأَذ ُك ُرهُ ِل ُك ِِّل‬
ِ ‫غرو‬
de tudo, poetas. Podiam escolher seus maridos e
‫َمس‬
ِ ‫ش‬
tinham o direito ao divórcio.
Alberto Mussa (2003) ainda nos explica َ ‫َولَوال ك‬
‫َثرة ُ الباكينَ َحولي‬ ُ‫على إِخوات ِھم لَقَتَلت‬
َ
que a muru’a “virilidade” não estava associada ‫نَفسي‬
ao masculino, ou seja, era exigido tanto ao ‫َو ما يَبكونَ مِ ث َل أَخي‬ ‫َفس‬
َ ‫الن‬ َ ُ ‫َولَكِن‬
‫ع ِّزي‬
homem quanto à mulher, consistindo em ‫عنه بِالتَأ َسِّي‬
َ
características como: lealdade, honra, coragem
Transliterando-se, seria:
e generosidade. Em contrapartida, os homens
tinham apreço por cultivar hábitos como o de Yudzakruni Talaw'a ash-shamsi Sakhran
cuidado com a aparência e o de adornar o rosto. Wa adzkuruhu likuli ghurwb shamsi
Essa vaidade facial hoje considerada um traço Wa lawla kathra al-bakyn Hawly
do universo feminino era bem quista por ambos. 'Ala 'ikhuatihim laqataltu nafsi
Inclusive, da mesma raiz de muru’a forma-se
Wa ma yabkun mthla 'akhy
‘imra’a “mulher”. Essa raiz carrega o Walakin 'azy an-nafs 'anhu bi at-ta'asi
significado de “ser saudável”.
Mussa (2003) ainda afirma que Em uma tradução livre, seria:
Os poemas eram de fato a garantia da A aurora me recorda o Sahran
imortalidade do falecido. As noções sobre a E me recordo dele a cada ocaso/
eternidade da alma e vida além da morte eram E se não fossem tantos chorosos
um tanto vagas. Na verdade, sendo uma por seus irmãos em meu entorno, eu me
civilização da palavra, os árabes só mataria/
consideravam eterno aquele cujo nome Eles não choram por alguém como meu irmão
permanecia presente entre os poemas Mas, ainda assim, me consolo nesse choro
recitados pela tribo (p. 171)
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 157

Há relatos folclóricos que dizem que a poeta La yaba'adan qawmy al-ladzina hum
teria ficado cega de tanto derramar lágrimas Sumo al-'uda wa aafa tuljuzri
pelo irmão morto. An-nazilwn bi kul mu'atarakin Wa aT-
Observa-se a mesma forma do poema de Taiabwn ma'aakida al-'azri
Amr Kulthum: poema de rima única com dois
hemistíquios por verso, estando a rima no Traduzindo:
segundo hemistíquio. Também se utilizou de E disse Al-Khirniq sofrendo por Bishar e os
vocabulário culto e de prosódia fluída, que foram mortos com ele no Dia do Qulab
mostrando domínio da língua culta manifesta Temo testemunhar a chacina do meu povo
artisticamente na poesia. Assim, vemos que Al- que é veneno dos inimigos e flagelo das
Kharniq era grande conhecedora da métrica vítimas/
que nas batalhas desce de sua montaria
poética da época e dotada de vasta cultura, a
e combate sobre os próprios pés e cujos
ponto de dominar a arte da poesia como os homens são castos no laço de suas tangas
muitos poetas homens de sua cultura. Contudo,
para além da forma, a temática merece especial Vemos, pois, o pranto da poetisa pela morte
atenção: o choro de uma irmã pelo irmão morto, dos seus. Lamúria feita ao mesmo tempo em
sendo este superior a qualquer homem, aos que enaltece os falecidos enumerando suas
olhos da irmã. virtudes. Sua devoção chega a tal ponto que
A poeta ao qual destacaremos, por fim, é Al- afirma:
Khirniq Bint Badr, também dos séculos VI e ‫هَذا ثَنائي ما بَقَيتُ لَ ُھم‬ ‫فَإِذا َهلَكتُ أَ َج َّنني‬
VII. Era parente de dois grandes nomes da ‫قَبري‬
poesia pré-islâmica: irmã do grande poeta Hadza thnaa'i ma baqaytu lahum Fa'idza
Tarafa Bin Al-’Abd e sobrinha do poeta al- halaktu 'ajanany qabry
Mutalammis. Este é o elogio que deixo a eles
Não era feliz no casamento, tendo feito uma e quando chegar minha hora o farei do meu
queixa sobre isso com seu irmão. Tarafa fez, túmulo
E, para completar, compara o martírio do seu
pois, uma poesia satírica sobre o homem
marido e seus companheiros ao sacrifício de
acusando -o, de maltratar sua irmã. O marido, animais aos deuses:
por sua vez, caluniou Tarafa ao rei de Hira, que,
assim, encomendou sua morte ao governador do ‫القَوا‬15 َ‫سوق‬َ َ ُ‫غَداةَ ق‬
‫الب َحتفَ ُھ ُم‬
Bahrein. Dedicou, pois, poemas fúnebres a seu ُ ‫تير ي‬
‫ُساق ِللعَتر‬ ِ َ‫الع‬16
irmão, na mesma métrica mencionada. Ghada qulaab Hatfahum Sawq al-'atyr
A poeta também compôs elegias pela morte yusaaq lil'atyr li'aqawi
de seu marido e de seu filho Bishr Bin 'Amr Bin Reajo ao martírio deles no dia do Qulab
como à imolação aos deuses
Mirtid, ambos fatalmente feridos – juntamente
com outros companheiros – na batalha épica de Temos exemplificado, assim, o que
Yowm Qulab, que teria envolvido várias tribos supracitamos quanto ao teor da poesia
no Península Arábica. feminina, neste perfeito arquétipo que é Al-
O trecho a seguir exemplifica o que Khirniq, que também dominava a métrica e o
mencionamos: uso culto da língua.
‫ش ًرا و َمن قُتِ َل معه في يوم قالب‬
ِّ ِ‫وقالت الخرنق ترثي ب‬ 5 Considerações Finais
‫زر ال َيب َعدَن قَومي الَّذينَ ُه ُم‬
ِ ‫س ُّم العُدا ِة َوآفَةُ ال ُج‬
ُ A poesia árabe pré-islâmica é a mais
preciosa fonte de conhecimento da Península
91
ِ ُ ‫ َمعاقِدَ األ‬90 َ‫طيَّبون‬
‫زر‬ َ ‫َوال‬ 11‫ ِب ُك َّل ُمعت ََرك‬89 َ‫النازلون‬
ِ Arábica daquele tempo. Saboreamos as poéticas
narrativas sobre a vida beduína nos desertos:
Transliterando-se: seus costumes, temores e paixões.

89 91
A raiz dessa palavra relaciona-se ao sentido de descer. Plural de Izaar, é uma vestimenta masculina tradicional
Aqueles que descem, nesse caso, significa descer do cavalo originalmente ligada aos Hadhrami - povo do Hadhramaut,
e lutar sobre os próprios pés). no leste do Yemen - mas já conhecida e usada em outros
90 países, especialmente depois de diáspora desse povo. É um
Aqueles que são perfume significa, neste caso, pano único usado na parte inferior do corpo e é usada tanto
pureza/castidade em casa, quanto em público.
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 158

Afunilamos neste artigo à temática da poesia


de autoria feminina do Período da Jahiliyya,
para mostrarmos que, diferente do que prevê o
senso comum, as mulheres beduínas possuíam
um espírito forte e audacioso, tão adaptadas à
dura vida no deserto quanto qualquer homem.
Para além de apresentarem características
viris de lealdade e coragem como qualquer
homem, eram mulheres cultas, conhecedoras da
métrica poética da época e capazes de
produzirem uma culta poesia, demonstrando
grande domínio da língua e da estética literária
exigidas no fazer poético da cultura pré-
islâmica.
Assim, as poesias de autoria feminina
também são grandes fontes de consulta de
estudiosos que intentam compreender o modo
de vida e organização sociopolítica da época.
Referências

GIORDANI, Mário C. História do Mundo


Árabe Medieval. Petrópolis: Editora Vozes:
3ªed. 1992.
MUSSA, Alberto Baeta Neves. Os poemas
suspensos (Al-Muallaqat). Rio de Janeiro:
Record, 2006.
SOBEH, Mahmoud. Historia de la literatura
árabe clássica. Cátedra: madrid, 2002.
Vozes Femininas: gênero, mediações e
práticas da escrita / Flora Sussekind. Tânia
Dias. Carlito Azevedo (orgs.). Rio de Janeiro:
7letras: Fundação Casa Rui Barbosa. 2003.

********
SIMPÓSIO 5
Poesia Afro-Brasileira: ancestralidade, luta e resistência
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA


Marco Antonio Notaroberto da Silva92

RESUMO: O movimento simbolista da refletiria o momento da vida nacional às voltas


literatura surge, na cultura europeia, em meados com questões objetivas pertinentes à Primeira
do século XIX, no ambiente da 2ª Revolução República. Assim, torna-se interessante
Industrial, como uma reação às correntes investigar o reconhecimento do Simbolismo no
analíticas do século, exprimindo através dos Brasil através do poeta Cruz e Sousa e sua
novos poetas “o desgosto das soluções referencialidade, pois é sabido que a força
racionalistas e mecânicas e nestas motriz da obra é o pathos inconformista
[reconhecendo] o correlato da burguesia reconhecido, atualmente, graças à biografia do
industrial em ascensão” (BOSI, 2013, p.279). poeta. A pesquisa recai no ato de expressão de
No Brasil, o movimento é inaugurado com a Cruz e Sousa, especialmente em sua reflexão
publicação de Missal e Broquéis, do poeta sobre o tema no poema em prosa intitulado
catarinense João da Cruz e Sousa, em 1893, Iniciado (1899), e sua relação com o que
tendo sido seus Manifestos publicados em 1891, podemos chamar de espírito do tempo, tendo em
no extinto jornal carioca Folha Popular. Em vista a potência e a porosidade de suas escolhas
oposição ao Parnasianismo, o Simbolismo estéticas fundamentadas em sua posição contra
irrompe com o intuito de demonstrar novos o autoritarismo.
caminhos às Letras brasileiras, principalmente
através da artesania da linguagem e, assim como Palavras-chave: Cruz e Sousa; Iniciado;
o seu correlato europeu, insistindo na Simbolismo; referencialidade.
construção de um sentido subjetivo através da
sublimação, sem a necessidade de se “buscar o 1 Introdução
nexo lógico na imaginação e a literalidade das Como uma reação às correntes analíticas do
palavras” (MURICI, 1995, p.35). Com efeito, à século, o movimento simbolista da literatura
época, não agradou ao público leitor brasileiro surge, na cultura europeia, em meados do século
acostumado à estética realista e parnasiana na XIX, no ambiente da 2ª Revolução Industrial.
literatura. A poética de Cruz e Sousa instaurava Ao exprimir através de seus novos poetas o
o “verbo novo” (MURICI, 1995, p.35), criadora desgosto às soluções racionalistas e mecânicas
que era de espaços artificiais - novos lugares da imperativas à época, o Simbolismo reconhece
sensibilidade e da experiência - através da nestas o correlato da burguesia industrial em
linguagem. De tom sinestésico, a poesia e a ascensão (BOSI, 2013, p.279).
prosa cruz-e-souziana operaram a vasta No Brasil, o movimento literário é
utilização do cromatismo e da musicalidade, inaugurado com a publicação de Missal e
assim como a idealização do objeto, Broquéis, do poeta catarinense João da Cruz e
revolucionando, de fato, a escrita e tensionando Sousa, em 1893. Seus manifestos são
a recepção de literatura há muito baseadas no publicados em 1891, no extinto jornal carioca
método objetivo. Contudo, a crítica brasileira, Folha Popular. Em oposição ao Parnasianismo,
sobretudo a finissecular, por vezes, se refere ao o Simbolismo irrompe com o intuito de
Simbolismo como “produto de importação” demonstrar novos caminhos às Letras
(BOSI, 2013, p.284), pois tal poética não brasileiras, principalmente através da artesania

92
Dutorando em Letras • UERJ/CAPES • O presente trabalho foi realizado com apoio da
manotsva@gmail.com Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 161

da linguagem e, bem como o movimento Dessa forma, nos é lícito relacionar a arte
europeu, insistindo na elaboração do sentido simbolista ao período em que se manifesta
subjetivo, sem a necessidade de se buscar o como uma resposta ao cientificismo e ao
nexo lógico na imaginação e a literalidade das realismo impessoal na literatura. Havia, em
palavras (MURICI, 1995, p.35). meados do século XIX, tal pulsão em reunir o
Com efeito, não agradou ao público leitor Eu aos aspectos cósmicos, ou espiritualistas,
brasileiro acostumado à estética realista e para demonstrar uma contradição à autoridade
parnasiana na literatura. A poética de Cruz e referendada pela Ciência. A proposição dos
Sousa instauraria o “verbo novo” (Ibid., p.35), simbolistas foi a de reintroduzir o sensível na
pois criadora de espaços artificiais – novos mecânica das ideias que impunha sua força
lugares da sensibilidade e da experiência – sobre o cotidiano humano, encontrando espaço
através da linguagem. De tom sinestésico, a fértil, para o desenvolvimento desta iniciativa,
poesia e a prosa cruz-e-sousiana operaram a na arte.
vasta utilização do cromatismo e da No entanto, a força revolucionária desse
musicalidade, assim como a idealização do movimento parece evanescer quando o
objeto, revolucionando, de fato, a escrita e trazemos para a realidade oitocentista brasileira.
tensionando a recepção da literatura há muito Segundo Bosi, os simbolistas brasileiros “não
baseadas no método objetivo. tiveram atrás de si uma história social diversa”
Contudo, a crítica brasileira, sobretudo a dos seus antecessores parnasianos e realistas.
finissecular, por vezes, se refere ao Simbolismo Por isso, o autor pergunta-se: “o movimento
como “produto de importação” (BOSI, 2013, teria nascido por motivos internos, ou foi obra
p.284), visto que tal estética não refletiria o de imitação direta de modelos franceses?”
momento da vida nacional às voltas com (Ibid., p.284), ao passo que responde,
questões objetivas pertinentes à Primeira oferecendo-nos análises estilísticas do
República. Assim, nos será interessante movimento em geral, que o Simbolismo
investigar a manifestação do Simbolismo no brasileiro seria “o sucedâneo fatal do
Brasil através do poeta Cruz e Sousa e a Parnasianismo”, visto que, como técnica, teriam
referencialidade de sua obra, pois, é sabido que um grau de diferença muito pequeno, “naquele,
sua força motriz tem como base o o culto a Forma; neste, a religião do Verbo”, e
inconformismo do poeta reconhecido graças à conclui: “O poeta, inserindo-se cada vez menos
sua biografia. na teia da vida social, faz do exercício da arte a
O presente artigo recai no ato de expressão sua única missão e, no limite, um sacerdócio. A
de Cruz e Sousa, especialmente em sua reflexão rigor, o caso brasileiro nada tem de excepcional
sobre o tema no livro de prosa poética intitulado [ilustrando] uma tendência fomalizante” (Ibid.,
Evocações (1898), e sua relação com o que p.285) já previsível pela influência dos
podemos chamar de espírito do tempo, tendo em decadentistas franceses.
vista a potência de suas escolhas estéticas Contudo, é mister evidenciar no panorama
fundamentadas em sua posição contra o do Simbolismo brasileiro o caso de João da
autoritarismo. Cruz e Sousa, poeta fundador do movimento no
país. Em sua obra, Cruz e Sousa busca
2 O caso de João da Cruz e Sousa, poeta
investigar as possibilidades transcendentais da
fundador
experiência humana através do alargamento do
Como relata-nos Alfredo Bosi, o século XIX sentido da palavra. Ao eleger a dor como
foi fortemente marcado por correntes analíticas inspiração possível para a transfiguração do
do pensamento: homem, seu ato de escrita se torna um alto
Visto à luz da cultura europeia, o Simbolismo exemplo da poesia existencial oitocentista
reage às correntes analíticas dos meados do (Ibid., 295).
século, assim como o Romantismo reagira a Em vista disso, a temática eleita como principal
Ilustração em 89. Ambos os movimentos [...] é a via-crúcis do ser. O sujeito lírico revela-nos a
recusam-se a limitar a arte ao objeto, à técnica consciência de que apesar de uma vida pautada pela
de produzi-lo, a seu aspecto palpável; ambos, experiência dolorosa, que desregraria os sentidos
enfim, esperam ir além do empírico e tocar, com levando-o próximo à loucura, haveria matéria para
a sonda da poesia, um fundo comum que a expressão em poesia. A forma do poema (o
susteria os fenômenos, chama-se Natureza, soneto) recolheria toda a sensação dispersa
Absoluto, Deus ou Nada (BOSI, 2013, p.279).
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 162

propondo, em meio às turbulentas nevroses, a da vida social” por seu ato de expressão.
cristalização do sentimento. Assim lemos o poema Embora saibamos que, formalmente, o
Crê! publicado, postumamente, em Últimos Simbolismo em Cruz e Sousa demonstre-se
sonetos (1905): poroso à forma parnasiana e concordemos que
Vê como a Dor te transcendentaliza!
são inegáveis as influências estrangeiras, a
Mas do fundo da Dor crê nobremente. inauguração do discurso simbolista no Brasil
Transfigura o teu ser na força crente enquanto atitude de espírito, pelo poeta, deve
Que tudo torna belo e diviniza. ser sublinhada como uma iniciativa relacionada
Que sejas a Crença uma celeste brisa ao período histórico. O Simbolismo demonstra
Inflando as velas dos batéis do Oriente uma reação da subjetividade contra o
Do teu Sonho supremo, onipotente, autoritarismo em suas mais variadas nuances e
Que nos astros do céu se cristaliza. a esperança por tempos democráticos. Por isso
Tua alma e coração fiquem mais graves, inserido, inquestionavelmente, na vida
Iluminados por caminhos suaves,
nacional.
Na doçura imortal sorrindo e crendo...
Oh! Crê! Toda a alma humana necessita 3 Poeta-artista – indivíduo
De uma Esfera de cânticos, bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo! A abolição da escravatura no Brasil deu-se
(CRUZ E SOUSA, 1995, p.195). em 1888. Dois anos depois Cruz e Sousa
mudava-se para o Rio de Janeiro. Filho de
Percebemos que é na dor existencial Guilherme, mestre pedreiro escravo, e de
conjugada à crença na arte que o sujeito lírico Carolina Eva da Conceição, escrava liberta por
transcendentaliza-se durante o caminho que lhe ocasião de seu casamento, foi educado por
é hostil. Em toda a obra cruz-e-souziana Clarinda Fagundes de Sousa e seu marido, o
perceberemos tal potência da dor como pathos Marechal Guilherme Xavier de Sousa, que
transfigurador, algo intimamente relacionado à havia herdado seus pais. Nascido em Desterro
enorme influência que a religião e a filosofia (atual Florianópolis), estabelecia-se na capital
tiveram na obra do poeta, assim como no desejoso de inserir-se na vida literária da cidade
Simbolismo em geral, e ao alargamento do que no momento, como vimos, era pautada pelo
sentido da palavra. Parnasianismo e pelo Realismo.
Dessa maneira, procuramos salientar a Sua obra compõe-se de fases. Inicialmente
experiência subjetiva na gênese da poesia de eivada no sentimento abolicionista, porém sem
Cruz e Sousa. De fato, o Simbolismo nos se distanciar da característica sinestésica,
apresenta a poética do Eu como premissa desvela-se no flerte a forma realista e
própria ao movimento. Se expressar é a aposta parnasiana, até encontrar-se como
contra o mecanicismo autoritário imposto pelo essencialmente simbolista com a publicação de
período e Cruz e Sousa irá cantar suas sensações seus dois primeiros livros, Missal (prosa) e
e sentimentos. Broquéis (poesia).
Assim, podemos borrar a tese que se refere Em tal período de efervescência política –
ao Simbolismo brasileiro como um “produto de pós-abolição e nascente República – João da
importação” trazendo, além dos aspectos Cruz e Sousa chega ao Rio, em situação
formais do movimento apontados por Alfredo financeira complicada e com difícil acesso a
Bosi, as razões para a sua manifestação oportunidades. Mas, escreve. Segue publicando
primordial em Cruz e Sousa. Para Bosi, seus textos e poemas em jornais de relativa
o fenômeno histórico do insulamento simbolista popularidade em uma cidade pouco receptiva a
no fim do século XIX não deve causar novidades. Passa a ganhar maior atenção após a
estranheza. O movimento enquanto atitude de publicação de seus primeiros livros, em 1893,
espírito, passava ao largo dos maiores todavia vive em situação de penúria.
problemas da vida nacional, ao passo que a Ao dedicar-se intensivamente a sua arte, vai
literatura realista-parnasiana acompanhou
fazendo-se conhecer como indivíduo em um
fielmente os modos de pensar, primeiro
progressistas, depois acadêmicos, das gerações
ambiente oficialmente intolerante. Nas palavras
que fizeram e viveram a Primeira República do ensaísta Alexei Bueno, a sua obra é “o maior
(BOSI, 2013, p.286, grifo nosso). exemplo de amor à arte já registrado na história
brasileira” (NETO, 2010, p.144), tal amor o
Ora, Cruz e Sousa sendo poeta e preto, no lapidador essencial do ofício do poeta, até a sua
Brasil de fins do século XIX, insere-se na “teia
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 163

morte em 1898, aos 36 anos. Assim, seguindo a tese de Huizinga, o poeta


Dessarte, a partir da análise de sua obra, é uma das principais potências do homo
buscamos um modo de interpretação para a sua ludens 94 . Iniciado no jogo poético como o
percepção do ofício do poeta, visto que seu decifrador dos enigmas cósmicos, pois
trabalho, altamente subjetivo, se alinha à sua intimamente conectado ao ente ancestral, o
concepção de indivíduo. Para tanto, poeta é mais poroso ao contato com o
encontramos extenso material em sua prosa Desconhecido, em especial devido a liberação
poética que, embora pouco apreciada pela de seus sentidos.
crítica especializada muito pelo fator estilístico, Em Iniciado, poema em prosa que abre o
revela-nos as considerações do poeta sobre a Evocações, Cruz e Sousa apresenta justamente
criação de seu Eu poético e sua relação com as esta questão. Atentemos novamente para a
ideias acerca da poesia. Neste momento epígrafe, mas, neste momento, a do poema em
chamamos a atenção ao livro Evocações, prosa em particular: “Desolado alquimista da
publicado em 1898. dor, Artista, tu a depuras, a fluidificas, a
Sua epígrafe apresenta-nos a seguinte espiritualizas, e ela fica para sempre, imaculada
citação de Villier de L’Isle Adam: Les seuls essência, sacramentando divinamente a tua
vivants méritant le nom d’Artistes sont les Obra” (CRUZ E SOUSA, 1995, p.519).
créateurs, ceux qui éveillent des impressions A dor, tão frequentemente experimentada
intenses, inconnues et sublimes. 93 Percebemos pelo poeta como a fundamental sensação,
então que Evocações tratará, em suma, da revela-se como imperativo existencial do
experiência criativa do poeta e de sua reflexão artista. A partir da experimentação da dor,
sobre o distanciamento em relação ao ilustrada como substância alquímica, e de sua
establishment. Supõe-se que, através de sua consequente expressão em forma de poesia, o
visão romântica, o poeta pertenceria à outra indivíduo inicia-se como o poeta. Algo
esfera, merecendo o título somente através do ritualístico que remete a um círculo fechado ao
aprofundamento no Desconhecido. qual nem todos possuem o direito de entrar. O
Desse modo, o poeta em Cruz e Sousa será o jogo então se baseia na transfiguração da dor em
iniciado nas Artes, articulador do jogo entre ser beleza, ou seja, o decifrar de um enigma
ou não ser de determinado círculo ou ordem. cósmico.
Logo, vislumbramos toda a potência lúdica de Ao poema em prosa:
sua percepção do oficio do poeta. PEDRARIAS RUBENTES dos ocasos;
De acordo com Johan Huizinga, dentre os Angelus piedosos e concentrativos, a Millet.
três grandes gêneros na poesia: o lírico, o épico Te Deum glorioso das madrugadas fulvas,
e o dramático, através do deslumbramento paradisíaco,
o lírico é o que permanece mais próximo da rumoroso e largo das florestas, quando a luz
esfera lúdica, da qual todos derivam. [O] abre imaculadamente num som claro e
lírico deve ser tomado, além do gênero metálico de trompa campestre – claro e
enquanto tal, todos os modos que exprimem fresco, por bizarra e medieval caçada de
arrebatamento. Na escala da linguagem es[b]eltos fidalgos; a verde, viva e viçosa
poética, a expressão lírica é a mais distante da vegetação dos vergéis virgens; os
lógica [...] é a linguagem da contemplação opalescentes luares encantados nas matas; o
mística, dos oráculos e da magia. É nela que cristalino cachoeirar dos rios; as colinas
o poeta experimenta mais intensamente a emotivas e saudosas, – todo aquele esplendor
sensação de ser inspirado de fora, é nela que de colorida paisagem, todo aquele encanto de
se encontra mais próximo da suprema exuberância de prados, aqueles aspectos
sabedoria, mas também da demência. O selvagens e majestosos e ingênuos, quase
abandono total da razão e da lógica é bíblicos, da terra acolhedora e generosa onde
característico da linguagem dos sacerdotes e nasceste, – deixaste, afinal um dia, e vieste
dos oráculos [...] é o grão de estupidez peregrinar inquieto pelas inóspitas, bárbaras
necessário ao lírico moderno [pela] terras do Desconhecido... (Ibid., p.519).
necessidade de mover-se fora das limitações Logo no primeiro parágrafo de Iniciado há a
do intelecto (HUIZINGA, 2019, p.187). apresentação do movimento de deslocamento

93 “Os únicos mortais que merecem ser chamados de artistas 94Conceito articulado pelo autor para se referir à
são os criadores, aqueles que despertam as impressões importância do fator lúdico na constituição do ser humano.
intensas, desconhecidas e sublimes” (tradução nossa).
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 164

doloroso, dos “vergéis virgens” de sua terra para inconsciência meio-névoa, que te impulsiona
as “inóspitas, bárbaras terras do Desconhecido” para a Concepção; se assim tu és, por
que, nos parágrafos seguintes, se configurará gérmens inevitáveis, fatais, a tua Obra, ainda
como o espaço onírico: em gestação, atestará eloquentemente, mais
tarde, as inauditas manifestações do
Vieste de tua paragem feliz e meiga, – temperamento (CRUZ E SOUSA, 1995,
amplidão de bondade patriarcal, primitiva, – p.522).
mergulhar na onda nervosa do Sonho, que já
de longe, dos ermos rudes do teu lar, Tal habilidade do poeta em viver a arte
fascinava magnéticos fluidos, de reflete-se na poesia cruz-e-souziana em uma
imponderados mistérios, o teu belo ser relação análoga ao desvelamento dos enigmas.95
contemplativo e sensibilizado (Ibid., p.519). Um conhecimento indisponível aos demais faz-
se necessário e somente os iniciados no jogo
É evidente a intenção do poeta em se
poético original possuiriam tais capacidades.
distanciar dos movimentos literários vigentes à
Como visto acima, o poema atestará a
época levando-nos a crer que Cruz e Sousa, ao
veracidade da intenção do poeta.
se afirmar como poeta simbolista, ilustra o
Para Huizinga, o que “a linguagem poética
deslocamento como imperativo de sua natureza
faz é, essencialmente, jogar com as palavras.
e se coloca, de certa forma, longe dos demais,
[...] Nunca se perderam inteiramente as íntimas
construindo-se como indivíduo pela diferença.
relações entre a poesia e o enigma” (2019,
Para tal, o poeta não segue pelas vias
p.175-176). Considerando, portanto, a
habituais, mas pela “Via-Sacra da Arte”,
linguagem poética essencialmente lúdica e
evocando o modo ritualístico ao qual olhará
caracterizando-a como uma função essencial ao
para o seu ofício e que se manifestará por toda
espírito.
a sua obra. Munido de seu aparato sensível, o
Em Iniciado, Cruz e Sousa discursa sobre
lírico não será como os outros, viciados:
sua própria natureza lírica a qual não teria outro
“Chegas para a Via-Sacra da Arte a esta
caminho para expressão senão pelo ofício do
avalanche imensa de sensações e paixões
poeta, formatando um espaço onde concorda a
uivantes, roçando esta multidão insidiosa,
ação e a sensação e harmoniza a sua
confusa, dúbia, que de rastos, de rojo,
constituição como ser de espírito, sacrifício e
burburinha, farejando ansiosamente o Vício”
liberdade, ou seja, como indivíduo.
(Ibid., p.519).
Vejamos outro poema em que Cruz e Sousa
Huizinga afirma que “só aquele que é capaz
se afirma como único, por conseguinte, como
de falar a linguagem da arte recebe o título de
portador de subjetividade:
poeta. A linguagem artística difere da
linguagem vulgar pelo uso de termos, imagens Tu és louco da imortal loucura,
e de figuras especiais que nem todos serão O louco da loucura mais suprema.
capazes de compreender” (2019, p.174), A Terra é sempre a tua negra algema,
introduzindo a ideia, muito cara a Cruz e Sousa, Prende-te nela a extrema Desventura.
de que a arte seria evocada apenas por iniciados,
Mas essa mesma algema de amargura,
no caso, indivíduos que são, ou que conseguem Mas essa mesma Desventura extrema
ser admitidos no círculo fechado e que, por Faz que tu’alma suplicando gema
consequência disso, estão à margem da E rebente em estrelas de ternura.
normatização. Para o poeta catarinense, a
possibilidade de contato verdadeiro com a arte Tu és o Poeta, o grande Assinalado
será inata: Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco...
Não é, apenas, querer, não é poder, apenas –
é Ser! – E se tu sabes ser, se tu és, numa Na Natureza prodigiosa e rica
legitimidade flagrante, num enraizamento Toda a audácia dos nervos justifica
muito intenso de todo o teu organismo, Os teus espasmos imortais de louco!
vivendo a Arte e não a Arte vivendo em ti; se (CRUZ E SOUSA, 1995, p.201).
assim tu és, na profundidade real desse
esquisito e maravilhoso estado, meio Em O Assinalado, o soneto acima, publicado

95Heráclito, um dos pseudônimos de Cruz e Sousa, é decifrador de enigmas” (HUIZINGA, 2019, p.152).
conhecido como o filósofo obscuro. “A natureza e a vida Justamente como se considerara Cruz e Sousa.
são um griphos, um enigma, e ele próprio [Heráclito] é um
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 165

em Últimos sonetos (1905), e em diversos derradeira parede, fechando tudo, fechando


poemas cujo título traz um adjetivo, o poeta tudo – horrível! – parede de Imbecilidade e
demonstra a sua autoafirmação como indivíduo Ignorância, te deixará num frio espasmo de
expressando, através do seu ofício, a sua terror absoluto... (Ibid., p.673).
subjetividade. Logo, o ato de expressão de Cruz Em pujante retrato da sociedade, o
e Sousa é essencial para compreendermos a sua poeta se refere às ciências deterministas que
iniciativa de ser reconhecido como indivíduo, o infestaram o Brasil de sua época, bem como a
poeta simbolista, em meio a um ambiente hostil, postura das gerações e a do cânone literário nos
o da elite cultural fluminense. oitocentos. As imagens das paredes subindo ao
Contudo, visto à recepção de seu trabalho redor do emparedado, evoca, além da influência
por seus contemporâneos, ao mesmo tempo em da literatura de Edgard Allan Poe, a
que o poeta afirma-se como O Assinalado, claustrofobia do poeta que exerceu plenamente
também compreende-se como o Emparedado, o seu ofício, mas não conseguiu cativar a
famoso texto que fecha o Evocações. sensibilidade de seus contemporâneos.
Se pergunta Cruz e Sousa: O texto é finalizado com a imagem
Artista! Pode lá ser se tu és D’África, tórrida espiralada de pedras sobre mais pedras:
e bárbara, devorada insaciavelmente pelo E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às
deserto, tumultuando de matas bravias, pedras já acumuladas, mais pedras, mais
arrastada sangrando no lodo das Civilizações pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e
despóticas, torvamente amamentada com o fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais
leite amargo e venenoso da Angústia! A pedras, mais pedras! E as estranhas paredes
África arrebatada nos ciclones torvelinhantes hão de subir, – longas, negras, terríficas! Hão
das Impiedades supremas, das Blasfêmias de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até
absolutas, gemendo, rugindo, bramando no às Estrelas, deixando-te para sempre
caos feroz, hórrido, das profundas selvas perdidamente alucinado e emparedado dentro
brutas, a sua formidável Dilaceração humana! do teu Sonho... (Ibid., p.673).
[...] Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso
ser se tu vens dessa longínqua região Percebemos, então, que o Sonho, ambiente
desolada, lá no fundo exótico dessa tortuoso dos iniciados na arte, esfera escolhida
África...(Ibid., p.672). pelo poeta para dar voz ao seu ofício, onde
através do deslocamento doloroso o indivíduo
De tom cáustico, Emparedado ilustra toda a
angústia e desesperança do poeta não se tornaria indivíduo, acaba por se transfigurar
em nada mais que uma dura prisão.
reconhecido devido às suas origens. Atentemos
para o fato de que Evocações é aberto com Cruz e Sousa não verá Evocações publicado.
Iniciado e fechado com Emparedado dando Tendo vivido uma existência precária, é
forma à queda, a decepção por não ter sua infectado pela tuberculose em 1897. Graças à
subjetividade devidamente dignificada pelo fato ajuda de amigos segue para Sítio, em Minas
de ser um poeta preto, descendente direto de Gerais, em busca de tratamento, mas a doença o
escravos africanos, no Brasil oitocentista. consome em 19 de março de 1898.
Após a morte sua literatura começa a ganhar
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos maior relevância, assim como, o movimento
milenários da vasta edificação do Mundo, simbolista brasileiro em geral. As obras inéditas
porque atrás de ti e adiante de ti não sei são publicadas postumamente, por intermédio
quantas gerações foram acumulando,
do amigo Nestor Vítor, incluindo Evocações, o
acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre
pedra, que para aí estás agora o verdadeiro belíssimo Últimos sonetos e os demais trabalhos
emparedado de uma raça. Se caminhares para dispersos.
a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, 4 Conclusão
numa parede horrendamente incomensurável
de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares Gostaríamos, assim, de evidenciar a
para a esquerda, outra parede, de Ciências e inauguração do movimento simbolista no Brasil
Críticas, mais alta do que a primeira, te pelo poeta João da Cruz e Sousa como ato,
mergulhará profundamente no espanto! Se objetivando alargar o discurso que considera o
caminhares para frente, ainda nova parede, movimento alheio às questões nacionais
feita de Despeitos e Impotências, tremenda, enquanto atitude de espírito.
de granito, broncamente se elevará ao alto! Se
caminhares, enfim, para trás, ah! ainda uma
Cruz e Sousa preza, em suas primeiras
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 166

experiências literárias, pela referência realista NETO, Godofredo de Oliveira. Cruz e Sousa,
inspirada por Émile Zola e considera o soneto, o poeta alforriado. Rio de Janeiro: Garamond,
forma fixa, como a estrutura por excelência de 2010.
sua poesia, mas elege o Simbolismo como o
discurso de sua obra. Parece-nos clara a escolha
do poeta em se afirmar como indivíduo pelo seu ********
ato de expressão, pois se na Europa o
movimento surge como uma resposta ao
racionalismo exacerbado, no Brasil ele
demonstra uma reação contra o autoritarismo
intelectual.
Alfredo Bosi, em História concisa da
Literatura Brasileira, trata do movimento
simbolista em geral quando se refere ao seu
insulamento. Reserva um capítulo para
discorrer especificamente sobre a poesia cruz-e-
souziana, dando maior ênfase aos aspectos
formais, mas não há grande evidência a respeito
da potência do ato. Algo que está de acordo com
a proposta de seu livro, um estudo propriamente
literário. Em vista disso, foi-nos interessante
analisar a obra de Cruz e Sousa além da poesia
ao encontrarmos em sua prosa poética material
para larga interpretação da relação que o poeta
travava com ofício e vivência.
Portanto, acreditamos ser inquestionável o
fato da inauguração do Simbolismo no Brasil
ser possuída pelo espírito de seu tempo e
coerente com as questões nacionais. Embora
Cruz e Sousa não tenha instaurado o verso livre,
a relevância de sua obra recai, além dos
aspectos formais, na instauração de um novo
discurso.
Referências:

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura


brasileira. 49. Ed. – São Paulo: Cultrix, 2013.
CRUZ E SOUSA, João da. Cruz e Sousa: obra
completa / organização, Andrade Murici;
atualização Alexei Bueno. – Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1995.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo
como elemento da cultura. Tradução João
Paulo Monteiro, revisão de tradução Newton
Cunha. 9. Ed. rev. e atual. São Paulo:
Perspectiva, 2019.
MURICI, Andrade. Atualidade de Cruz e
Sousa. In.: CRUZ E SOUSA, João da. Cruz e
Sousa: obra completa / organização, Andrade
Murici; atualização Alexei Bueno. – Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM


CAROLINA MARIA DE JESUS
Suelen Gom (Suelen Cristina G. da Silva)96

RESUMO: A partir da escrita de Carolina Antonio Candido (2002, p. 177), para quem “a
Maria de Jesus, o presente trabalho propõe uma organização da palavra comunica-se ao nosso
reflexão sobre o potencial questionador do texto espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em
literário em relação à memória e à construção seguida, a organizar o mundo”.
imagética da pessoa negra, principalmente ao
propor uma revisão de qualificações de cunho Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus;
negativo. Com ênfase nas estruturas poéticas do Negação; Poesia; Imagem; Memória.
texto de Carolina, sem deixar de lado sua prosa,
intentamos realizar uma leitura da negação 1 Introdução
empreendida pela autora em seus escritos, a O presente trabalho propõe uma breve
partir do viés da contestação e entendendo esse reflexão sobre a construção da memória da
movimento como uma espécie de agenciamento pessoa negra e do potencial de contestação e
(Deleuze e Guattari) de desconstrução e negação que pode ser empreendido pelo texto
reconstrução imagética da pessoa negra, literário nesse sentido a partir da leitura de
especialmente da mulher negra. O poder do não poemas de Carolina Maria de Jesus e da
em Carolina é analisado a partir de poemas contextualização com seus escritos diarísticos.
presentes em sua Antologia Pessoal (1996) e do Partimos da análise de poemas da autora
poema publicado no jornal Folha da Noite, em presentes em Antologia Pessoal (1996), sem
1958, considerando algumas passagens de perder de vista suas considerações expressas em
Quarto de Despejo (1960). No âmago da seu primeiro diário, a fim de compreender como
disputa de narrativas empreendida em nossos determinadas afirmações a respeito dos sujeitos
tempos, temos Carolina Maria de Jesus e sua periféricos são delineadas e a que ponto a autora
escrita que deixou sementes de nega estereótipos sobre a representação desses
questionamentos na e sobre a literatura e a próprios sujeitos e, em consequência, sobre si.
sociedade brasileira, as quais permanecem Assim, em um primeiro momento analisamos
dando frutos: como, a exemplo, o relançamento algumas afirmações de vozes de sujeitos líricos
de parte de sua obra e os movimentos de onde a desolação, a autoimagem de descarte e a
contestação do cânone literário que culminam pouca perspectiva sobre a vida se fazem
em publicações como a antologia Carolinas presentes para, posteriormente, observar como
(Bazar do Tempo, 2021). Esse é o contexto em a autora desenvolve sua poética também com
que este trabalho se insere, tentado dialogar com uma proposta de reescritura da imagem e da
os processos que fazem uma revisitação memória negativas reiteradamente ligadas à
questionadora da história através das memórias pessoa negra e ao sujeito periférico.
e imagens outrora silenciadas. A leitura é Memória também produz história. Em outros
desenvolvida a partir das reflexões de teóricos e termos, a memória socialmente construída é
filósofos como Grada Kilomba, Conceição atravessada por “todas as noções e imagens
Evaristo, Félix Guattari e Suely Rolnik e tomadas dos meios sociais de que fazemos parte”

96
Doutoranda em Literatura Comparada e Mestra em
Estudos Literários • suelencristina@id.uff.br •
Universidade Federal Fluminense - bolsista CAPES.
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 168

(HALBWACHS, 1990, p. 37) e pode definir e morou na extinta favela do Canindé e ao ocorrer
guiar padrões para a própria experiência social dos seu primeiro lançamento, teve a condição de
indivíduos e grupos, que podem se repetir de “favelada” (representando, assim, tudo aquilo
geração a geração. Seria, então, “a consciência que a sociedade da época gostaria de manter à
social virtual em uma determinada sociedade”, de distância) amplamente fixada a seu sobrenome
acordo com Viana (2006, p. 9). Provavelmente e à sua divulgação. A partir disso, muito do que
muitos de nós, ainda na juventude, ouvimos que fora produzido e veiculado sobre Carolina na
conhecimento é poder; mas, com o curso da vida sociedade e no âmbito acadêmico acabou
seguindo o fluxo de uma sociedade capitalista e do fazendo reforço à construção de uma história
cansaço, como afirma Byung-Chul Han (2017), única para a autora: a da escritora favelada
muitas vezes podemos não nos dar o tempo da imbuída no campo semântico da miséria, da
reflexão necessária ao entendimento de que os fome, da falta e da ausência; inclusive um tanto
atos de narrar, escrever, criar e projetar imagens afastada da “aura” da designação de escritora.
também têm o poder de criação de imaginário. Porém, a própria publicação de Quarto de
Entretanto, esses exercícios podem assumir uma Despejo já trazia elementos de uma recusa à
forma coercitiva. Temos notícia cotidiana - desde imagética que poderia ser criada sobre a autora
as representações que vemos na televisão, filmes, - o que é expressivamente mais abordado em
campanhas publicitárias, até em livros que lemos seu segundo livro publicado, Casa de
- da construção imagética negativa da pessoa Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961),
negra tornada memória. Uma memória colonial que não foi bem recebido pela crítica, e em
tão coletiva que se reproduz pelas vias da história outros textos seus.
até os nossos tempos.
2 Algumas afirmações na voz de sujeito lírico
Já no começo dos anos 20 do século XXI
somos testemunhas oculares de mudanças e/ou Entrando no universo da produção poética
quebras de paradigmas com relação à população da autora, em um dos poemas de sua Antologia
negra como um todo e, particularmente, no Pessoal, Carolina (1996, p. 98-100) desenha a
Brasil. Mesmo que talvez a contragosto ou imagem daquele que é “O infeliz”, conforme se
ainda movidas por um apelo direcionado ao expressa no título. Ao longo de todas as
lucro ou a um não prejuízo financeiro, as estrofes, que se estendem por três páginas, o
indústrias de entretenimento passam por um sujeito lírico reitera, sempre no primeiro verso:
momento de repensar as formas de “Vejam, tenho os cabelos grisalhos”. Como se
representação e representatividade da pessoa para nos lembrar incessantemente de sua
negra em suas produções. Vale ressaltar que condição de alguém que já teve muita vida
isso também pode ser, em muitos casos, fruto de percorrida e não é feliz nessa idade onde a
uma conscientização a respeito das estruturas juventude ficou no passado, o sujeito contrasta
que formam a nossa sociedade. Mergulhadas com o próprio título do poema seguinte: “Sou
nesse tempo, muitas vozes que já falavam, feliz”. Ao longo de todo o livro há jogos de
consideradas subalternas, passam por um perspectivas sobre a vida e papéis sociais,
processo de amplificação de escuta, devido à ressaltando o processo criativo de concepção de
agenda da população negra. Na literatura, alteridade desenvolvido pela autora. Mesmo
emergem muitas “vozes mulheres”, como ecoa afirmando: “Já passei tantos trabalhos/ Que não
o poema de Conceição Evaristo, que revisitam posso enumerá-los”, nos é exposta uma
tempos e espaços para recriar a memória a partir sequência de atividades de um passado do qual
do lugar de fala de quem sempre esteve o sujeito lírico traz recordações de experiências
marginalizado, fora do panteão do poder. Novas em declínio. Sua habitação é metaforizada tal
narrativas e imagens são propostas e muitas como o “quarto de despejo” designa a favela nos
delas negam um referencial criado segundo um diários da autora. Mas, diferente da Carolina
olhar colonizador sobre o negro. autora, sua juventude fora outra: “Quando
No bojo dessas criações, está uma referência jovem, eu vivia tão bem.../ Sítios, prédios e
que, desde seu primeiro lançamento, já armazém/ Hoje.. sou um homem falido.// [...]
questionava a história que era produzida sobre Meu Deus que fatalidade./ Perdi minha
si. Carolina Maria de Jesus, mineira da cidade habitação/ Vim residir num porão./ Longe da
de Sacramento, que migrou para São Paulo na sociedade” (JESUS, 1996, p. 99). O poema é um
esperança de uma vida e futuro melhores, dos variados exemplos onde a autora
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 169

desenvolve processos de criação de vozes tão operada pela negação de uma imagem de
próximas quanto afastadas de si, alteridades que estigma: “Eu não sou indolente. Há tempos que
povoam sua escrita. eu pretendia fazer o meu diario. Mas eu pensava
Esse homem que chega à velhice, tem que não tinha valor e achei que era perder
cabelos brancos, mas é “um verdadeiro infeliz” tempo” (JESUS, 1993, p. 25). Pensar não ter
(ibidem, p. 100) tem seus reflexos em outros valor pode ser visto como resultado não apenas
“personagens” da favela do Canindé, inclusive das condições materiais de vida do sujeito, mas
a própria Carolina, no que tange ao desejo de da memória, imaterial e simbólica, que é
destituir-se da vida em razão de suas condições. construída a respeito de grupos marginalizados,
Ele, que também está a “vagar sujo, imundo” favorecendo imagens negativas repassadas
(ibidem, p. 99), pede a morte para findar o sofrer através do discurso, de pessoa a pessoa e
do seu presente e de algumas de suas memórias. geração a geração. Afinal de contas, como
Esse sujeito lírico parece espelhar algumas das formulam Guattari e Rolnik, muitos e diversos
considerações de Carolina a respeito de sua vida sãos os processos que interferem na
pessoal, conforme podemos ver em seu subjetivação e, em consequência, nas
primeiro diário: “Eu estou começando a perder enunciações dos sujeitos:
o interesse pela existencia. Começo a revoltar. A subjetividade é produzida por
E a minha revolta é justa” (JESUS, 1993, p. 30). agenciamentos de enunciação. Os processos
Por entre uma série de poemas que evocam o de subjetivação, de semiotização - ou seja,
apreço pelas coisas, pessoas e circunstâncias da toda a produção de sentido, de eficiência
vida ou uma relação amorosa, mas que por semiótica - não são centrados em agentes
vezes são quebrados por reflexões de denúncia individuais (no funcionamento de instâncias
social, o tempo da velhice figura como solitário intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem
e infeliz. Não corresponde a um tempo de em agentes grupais. Esses processos são
percursos realizados, sonhos cumpridos e duplamente descentrados. Implicam o
funcionamento de máquinas de expressão que
descanso afetuoso na maturidade. Um destino
podem ser tanto de natureza extra-pessoal,
delineado por desesperanças que não se afasta extra-individual (sistemas maquínicos,
da experiência de pessoas que vivem em econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos,
situação limite por conta principalmente das ecológicos, etológicos, de mídia, enfim
privações financeiras; estas que solidificam, por sistemas que não são mais imediatamente
muitas vezes, lugares e opções sociais. antropológicos), quanto de natureza infra-
humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas
3 Negação como contestação - por uma de percepção, de sensibilidade, de afeto, de
outra memória representação, de imagens, de valor, modos
Carolina, em algumas passagens de Quarto de memorização e produção de idéia,
de despejo afirma, com uma voz (tanto sistemas de inibição e de automatismos,
sistemas corporais, orgânicos, biológicos,
biográfica quanto não biográfica - no sentido de
fisiológicos, etc.). (GUATTARI E ROLNIK,
pertencente a uma narrativa que cria uma 1996. p. 31)
narradora) sentir-se rebotalho: “E quando estou
na favela tenho a impressão que sou um objeto Podemos compreender, então, que o exterior
fora de uso, digno de estar num quarto de tem seus efeitos e contribuições no
despejo”; “Sou rebotalho. Estou no quarto de desenvolvimento da subjetividade dos
despejo, e o que está no quarto de despejo ou indivíduos, e que esse processo é estabelecido
queima-se ou joga-se no lixo” (JESUS, 1993, p. ao longo da vida, em decorrência das vivências.
33). Entretanto, diante dessas afirmações De volta ao texto literário, ao mesmo tempo em
diarísticas e das presentes em poemas como “O que Carolina afirma as questões e
infeliz”, se faz necessário destacar o teor de uma circunstâncias sociais de teor negativo que
“autoirônica denominação” (FERNANDEZ, fizeram parte de sua trajetória e do coletivo no
2018, p. 384) que faz parte da escrita de qual habitava, seus textos são palco para um
Carolina. Ademais, é possível considerar que a quase reajuste de contas, uma contestação que
autora não prescreve uma permissão para que os tem e assume a possibilidade de reorganizar os
supostos leitores de seus escritos construam papéis e promover uma reflexão sobre a
uma identidade de rebotalho que a referencie. realidade. Para Antonio Candido (2004, p. 177),
Pelo contrário, a afirmação de si pode ser a obra literária é uma espécie de “objeto
construído” e possui um “poder humanizador”,
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 170

que não é pequeno. Ainda segundo o autor, “A maio de 1958 - antes mesmo de Quarto de
organização da palavra comunica-se ao nosso despejo:
espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em Não digam que fui rebotalho,
seguida, a organizar o mundo”. Em Literatura e que vivi à margem da vida.
Sociedade, Candido (2006, p. 36) afirma que “a Digam que eu procurava trabalho,
arte pressupõe um indivíduo que assume a mas fui sempre preterida.
iniciativa da obra”. Assim, podemos considerar Digam ao povo brasileiro
que assumir a iniciativa da obra é também o que meu sonho era ser escritora,
movimento de responsabilização com o mas eu não tinha dinheiro
empreendimento de um projeto literário e de para pagar uma editora. (JESUS apud
assumir os riscos inerentes a esta escolha. E DANTAS, 1958)97
torna-se evidente o “poder humanizador” de um Estamos diante de um poema que nega e
texto escrito a partir de uma lógica outra sobre afirma, com a precisão de duas possíveis
a pessoa negra, sua vida e perspectivas, versões de criação de memória, de lembranças
questionadora da lógica vigente segundo a qual a respeito da autora. A voz do poema, do sujeito
indivíduos são colocados às margens das lírico, é, de certa forma, rasgada - radicalmente
estruturas de consideração social e humana. - por uma voz autoral. Em seu interior, habita a
A psicanalista e pesquisadora Neusa Santos não aceitação de uma produção imagética
Sousa (1990, p. 17), de entrada a seu Tornar-se negativa e unificada, a negação de uma imagem,
Negro afirma que “uma das formas de exercer de uma construção semântica sobre a figura
autonomia é possuir um discurso sobre si dessa mulher negra periférica, de uma história
mesmo”. E, de certa maneira, o exercício dessa única e universalizante. Nesse ponto, é
autonomia está intimamente relacionado à relevante recordar que, em se tratando de
questão de se possuir o status de sujeito, de que mulheres negras e/ou demais sujeitos
trata Grada Kilomba em Memórias da considerados socialmente como “minorias” ou
plantação. Nas palavras da teórica e artista “marginais”, a caracterização individual muitas
interdisciplinar, ter esse status significa que vezes é extensão de uma visão que se tem do
“indivíduos podem se encontrar e se apresentar coletivo; por isso consideramos o teor
em esferas diferentes de intersubjetividade e universalizante, aquilo que se estende para além
realidades sociais, e por outro lado, podem do indivíduo. Assim, quando a autora prescreve
participar em suas sociedades, isto é, podem que “Não digam” aquilo que está
determinar os tópicos e anunciar os temas e midiaticamente posto, mas “Digam” uma outra
agendas das sociedades em que vivem” coisa, a partir de outra visada, está a trabalhar a
(KILOMBA, 2019, p. 74). Em um dos poemas potência do não: da negação através da palavra
de Carolina, emblemático e ponto-chave para a escrita que permanece enquanto registro. E a
nossa reflexão em curso, podemos observar o reivindicar uma fala que propague outras
exemplo de uma força de reescrita da história propostas para a construção imagética de si.
nas palavras que parecem responder com Ecoando aos dias de hoje, a voz da autora
prontidão a algo que já estaria posto. Levantar parece pôr em questão algumas posições
questionamentos sobre o que se diz ou o que se defendidas a respeito de si, de sua vida e de sua
perpetua na história, por diferentes vias de proposta literária. E isso remonta à questão de
discurso, a partir da reiteração de elementos que, através da escrita, ainda nos tempos
criadores de uma memória negativa sobre a anteriores à sua primeira publicação, Carolina
pessoa negra. Entre a abertura à poesia e a registra suas contestações e defende seu projeto
escrita de si, a autora deixa emergir ecos que de escritora. No citado poema, Carolina não
interrogam seu presente e o futuro. Principiando apenas nega uma imagem e discurso, mas
por negar o que está dado, a voz poética da expressa seu conhecimento a respeito da
autora põe em questão, por escrito, não apenas projeção de um escritor enquanto pertencente
o que era desenvolvido à época sobre sua ao que se constitui como ramo da literatura.
produção textual, sua imagem e legado, mas o Podemos depreender, nessas circunstâncias tão
que viria a ser. Os versos abaixo foram atuais, que a valoração social de Carolina
publicados no jornal Folha da Noite, em 09 de enquanto autora necessitava do capital, do

97 Tambémpublicado no livro 50 poemas de revolta da


Companhia das Letras, 2017, p. 75.
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 171

aporte financeiro, de uma editora na qual sorriso. Como ressalta Ayana Moreira Dias (2021,
publicar e, só após publicada, tendo leitores que p. 623) em sua resenha sobre a coletânea: “um rosto
porventura comprassem os livros, seria uma alegre, vivo e forte de Carolina Maria
escritora. À sua maneira, a autora compreende de Jesus, confrontando a imagem de precarização
as questões outras e diversos processos, além do hegemonicamente significada pela crítica branca”.
ato de puramente escrever, que levam alguém a Uma outra face que também dialoga com a
ser valorado enquanto escritor. E, dadas as pluralidade presente na exposição “Carolina
dinâmicas e estruturas sociais, o valor tem a Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”
tendência a pertencer a certos grupos (que se do Instituto Moreira Salles de São Paulo.
autovalorizam e exercem a valoração daqueles Ainda que afirme reiteradamente e, com
que são considerados “outros”). isso, denuncie a experiência da pobreza e afins,
De acordo com Terry Eagleton (2003, p. 22), Carolina não encerra seu discurso nessa questão
os juízos de valor que constituem a literatura apenas. Pelo contrário, também reiteradamente
“são historicamente variáveis, mas que esses afirma em tom propositivo outras maneiras
juízos têm, eles próprios, uma estreita relação possíveis de ser e estar no mundo. Imagina
com as ideologias sociais. Eles se referem, em outras formas para a sua existência e dos seus.
última análise, não apenas ao gosto particular Isso porque, embora relate as experiências da
mas aos pressupostos pelos quais certos grupos favela e de seus trânsitos pela cidade enquanto
sociais exercem e mantêm o poder sobre alguém sem a estima e vestimentas necessárias
outros”. O desejo pela escrita e pela construção para habitar lugares como um elevador ou um
de um percurso literário, com o fôlego e as escritório, reconhece: “eu não saio do quarto de
localizações de Carolina, tem então suas despejo, o que posso saber o que se passa na sala
peculiaridades. Ele passa a ser também um de visita?” (JESUS, 1993, p. 71). Sua jornada
“atrevimento contra a instituição literária” de sair do “quarto de despejo” vai além de
como afirma Conceição Evaristo (2009, p. 28): transitar materialmente pelas ruas da cidade a
“Quando uma mulher como Carolina Maria de catar ou receber doações. Sua saída é também
Jesus crê e inventa para si uma posição de aquela das projeções reflexivas e
escritora, ela já rompe com um lugar contemplativas da vida e do(s) mundo(s) à sua
anteriormente definido como sendo o dela, o da volta, de onde surgem passagens apinhadas de
subalternidade, que já se institui como um poesia, como “A noite está tépida. O céu já está
audacioso movimento”. Nesse movimento, a salpicado de estrelas. Eu que sou exotica
audácia atinge outros limites no momento em gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer
que é registrada, documentada enquanto um vestido” (ibidem, p. 28). Com essa
literatura. Carolina não apenas inventa, consciência de deslocamentos, projeta em seu
enquanto escreve, uma posição de escritora, poema uma quase carta, na qual abre diálogo
mas declara por escrito, para si e para seus direto com seu destinatário para que “Digam ao
leitores, um projeto de desconstrução e povo brasileiro”, transmitam à memória e à
reconstrução da autoimagem e da memória. história nacionais, a versão de si a partir de seu
próprio punho de escritora.
4 Considerações finais
Ao afirmarmos na abertura deste trabalho
Em nossos tempos, soma-se a essa negação e reflexivo que memória também produz história,
desejo por outras afirmações de Carolina a referindo-nos à social (visto que existem
ilustração que é capa do livro Carolinas (2021, diferentes modos e campos de abordagem para
Flup e Bazar do Tempo), que apresenta ao público a memória), consideramos o fato de que ela está
leitor “a nova geração de escritoras negras em diálogo com as construções discursivas e
brasileiras”, segundo seu subtítulo: uma antologia imagéticas veiculadas ao longo de períodos de
em homenagem à autora composta de percursos tempo que formam, pouco a pouco, a história.
literários e experiências plurais, por novas gerações Ao retornar e fazer-se presente na vida cotidiana
de mulheres negras que também repensam suas da sociedade (na forma de costumes, práticas
histórias e memórias individuais e coletivas. sociais ou discursos diversos), a memória social
Cobrindo novas narrativas que passam a habitar o tem o potencial de moldar realidades e por vezes
solo da literatura brasileira, o trabalho gráfico da delinear processos significativos para os
capa apresenta uma Carolina visualmente expressa sujeitos. E, em muitos casos, os moldes podem
no signo da alegria estampada em cores, texturas e se estruturar a partir de preconceitos, exclusões
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 172

e violências, como expressam as inúmeras de uma afirmação, “Digam ao povo brasileiro/


construções discursivas que desconsideram a que meu sonho era ser escritora”, a voz do
pessoa negra enquanto sujeito e objetificam sua poema tem a autonomia do ato de dizer e de
existência. E a literatura, por sua parte, tem (re)escrever a própria história, de projetar outras
papel importante nesses retornos e também na memórias individuais e coletivas. Além disso, a
sua negação. Antonio Candido afirma que: voz do poema assume o protagonismo de
nas nossas sociedades a literatura tem sido
encaminhar uma mensagem ao povo brasileiro,
um instrumento poderoso de instrução e presente e futuro. A Carolina dos versos de
educação, entrando nos currículos, sendo “Não digam que fui rebotalho” não é apenas
proposta a cada um como equipamento quem traz à literatura “O drama da favela escrito
intelectual e afetivo. Os valores que a por uma favelada”, conforme o título da matéria
sociedade preconiza, ou os que considera do jornal Folha da Noite, mencionado, onde o
prejudiciais, estão presentes nas diversas poema também fora publicado. Sua escrita em
manifestações da ficção, da poesia e da ação certa medida também “nasce dos movimentos
dramática. A literatura confirma e nega [...] de negação do estado de coisas predominante”,
fornecendo a possibilidade de vivermos
de que fala Antonio Candido. Não porque
dialeticamente os problemas. Por isso é
indispensável tanto a literatura sancionada
necessária e diretamente reescreva a história,
quanto a proscrita; a que os poderes sugerem mas por propor, com seu gesto de escrita, a
e a que nasce dos movimentos de negação do revisão da criação imagética sobre a pessoa
estado de coisas predominante. (CANDIDO, negra e do status da mulher negra no âmbito
2004, p. 174) literário.
Considerando que as relações de esferas
Negar o estado de coisas predominante
mais individuais muitas vezes são reflexo (ou
parece ser um dos movimentos que Carolina
mesmo podem refletir-se) de um todo maior, de
Maria de Jesus empreende. Para além dos
um constructo social, a imagem, somada a
registros e denúncias relacionados à
diversas outras imagens, acaba por criar a
subalternização do favelado e à precariedade de
paisagem complexa que norteia a memória
sua vida, podemos observar algumas outras vias
social. Quando Carolina, através de uma voz
de questionamento na autora, como a referida
poética, propõe e lança ao futuro outra imagem
àquilo que está posto como padrão e regra.
e discurso a respeito de sua escrita e legado,
Através da leitura dos poemas de Carolina,
atravessa as estruturas temporais e de escrita e
intentamos pensar sobre como os discursos e
desenvolve um trabalho de base: o de questionar
criações imagéticas presentes em nossa memória
e propor outras narrativas para uma mesma
social podem ser questionados por determinado
história literária que vinha sendo construída
discurso escrito, que tem a palavra como
para si. É, em certa medida, mas não apenas
elemento. Complexa e ao mesmo tempo simples,
concernente ao contexto do capitalismo, a
a palavra, literariamente empenhada, refaz o
forma encontrada por Carolina de “recusar
percurso de significação para ressignificar os
todos esses modos de encodificação
valores relacionados às relações de poder. Ao
preestabelecidos, todos esses modos de
empregar a palavra “não” em um contexto
manipulação [...] para construir [...] modos de
relacionado à autoimagem de um sujeito lírico ou
sensibilidade, modos de relação com o outro,
biográfico, Carolina transpõe o individual e
modos de produção, modos de criatividade que
parece atingir uma enunciação coletiva que
produzam uma subjetividade singular”
pretende questionar certos valores e papéis
(GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 17).
reiteradamente relacionados à pessoa negra. Um
questionamento presente na literatura escrita por Referências
pessoas negras antes e depois dela, como Cruz e
Sousa e Conceição Evaristo; algo que por muito CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade.
tempo não esteve presente nos livros didáticos 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
que formam nossa sociedade, mas que faz parte CANDIDO, Antonio. O direito à literatura.
de uma outra memória: a que poderíamos chamar In:____. Vários escritos. 4 ed. São Paulo: Duas
de memória da contestação, daqueles que foram Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
colocados à margem das decisões e instituições 2004.
sociais e culturais.
Por outro lado, ao empregar a expressividade
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 173

DIAS, Ayana Moreira. Negras vozes de


mulheres: resenha do livro Carolinas (2021). In:
Opiniães, São Paulo, ano 10, nº 18, ja.-jun.
2021, p. 595-601.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma
introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma
poética de nossa afro-brasilidade. In: Scripta,
Belo Horizonte, v. 13, n. 25, 2º sem. 2009, p.
17-31.
FERNANDEZ, Raffaella Andréa. Negritude
obliterada nos poemas e na obra de Carolina
Maria de Jesus. In: Estudos Linguísticos e
Literários, nº 59, Salvador, jan.-jun. 2018, pp.
381-393.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica:
cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.
JESUS, Carolina Maria de. Antologia pessoal.
Org. José Carlos S. B. Meihy. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ, 1996.
JESUS, Carolina Maria de. “Não digam que fui
rebotalho”. In: DANTAS, Audálio. O drama da
favela escrito por uma favelada: Carolina Maria
de Jesus faz um retrato sem retoque do mundo
sórdido em que vive. Folha da Noite. São
Paulo, ano XXXVII, n. 10.885, 9 mai. 1958.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo.
2 ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se Negro: as
vicissitudes da identidade do negro brasileiro
em ascensão social. 2 ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1990.
VIANA, Nildo. Memória e Sociedade: uma
breve discussão teórica sobre memória social.
In: Espaço Plural, ano VI, nº 14, 1º sem. 2006,
p. 8-10.

********
SIMPÓSIO 7
A poesia e suas margens
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE!


Marcelo D’Ávila Amaral98

RESUMO: Esta apresentação pretende Concerne ele porque manifestação mesma do


problematizar os valores estéticos e sua primoroso, do inefável, do inconsciente, do
conceituação movidos para instrumentalizar o burilado, do evanescente, do primado da beleza,
estudo das artes em geral e da literatura em e, até, do nonsense. Em palavreado mais
particular quando de entradas de objetos poéticos pragmático, uma literatura do ideal; do não-real;
no Cânone Literário Brasileiro, mormente ao que do não-táctil e do não-dúctil. Nesse caminho, a
diz respeito à produção poética contemporânea poesia segue – por muito tempo eu diria –
nossa. As possibilidades que passam ao largo das matéria para apreciação de poucos. Não
agências que sustêm o cânone literário me somente de poucos iniciados, mas mais
interessam aqui. Quero-as necessárias para uma notadamente de poucos abastados, cujas “burras
devida reestruturação das medidas de valor dessas estão cheias” de dinheiro e… tempo. Assim, nas
entradas canônicas em prol de identidades acepções caras a um Harold Bloom, a
violentadas cotidiana e continuamente e de sua “verdadeira” literatura seria como a
inclusão discursiva a legitimar uma realidade outra consubstanciação do discurso dos vencedores.
possível. Uma realidade prenhe de identidade mais Acontece de a peleja ainda estar em curso...
genuína e conforme à identidade brasileira, porque O pensador e historiador indiano Dipesh
heteróclita, híbrida. Para tanto, apresento uma Chakrabarty comunga de um esforço em contrário
análise crítica do cypher Favela Vive como vetor às elucubrações acima mencionadas. Compõe ele
potencial do discurso poético do rap nacional em uma frente teórico-crítica sul-asiática (Subaltern
favor de uma construção epistemológica contra- Studies) para pensar as sociedades ocidentalizadas
hegemônica para os estudos de literatura no país, na como parte de um projeto de domínio não só
medida em que me atenho a três procedimentos de político, financeiro e militar, mas epistemológico.
constituição textual (verbo-visual), a saber: sample, Ao par de muitos outros teóricos integrantes do
flow e linhas de soco. Esses e outros procedimentos que se começa a chamar estudos decoloniais, o
formais utilizados para as composições em rap teórico indiano procura pensar um mundo cujos
cooptam o ouvinte para uma experiência poética saberes pretende resgatar por meio do
total, onde música e ritmo se misturam a ideologias, reconhecimento da heterogeneidade formativa e
materialidades e perspectivas de enunciação da identidade singular dos povos oprimidos pela
partilhadas entre público e artista e entre artista e empresa dos colonialismos (no plural). Não que
artista que poderiam muito fecundamente fazer as Chakrabarty negue as categorias de pensamento a
vezes de constructos a servir à teoria literária partir do modelo europeu, sob as quais todos nós
praticada por nós nos meios acadêmicos. nos formamos. Chakrabarty pretende,
concomitantemente aos usos daquelas categorias,
Palavras-chave: Cânone Brasileiro; cânone uma crítica severa ao eurocentrismo como lastro
literário; Rap nacional; Favela Vive. d’O conhecimento e d’A ciência em detrimento de
outros saberes, de outras narrativas – impedindo-
1 Introdução os de emergir em comunhão global, ainda que
O fazer poético parece ser a ação literária constitutivos de historicidades singulares.
mais concernente ao estatuto das Belas-Artes. Histórias de realidades subalternizadas pelas

98
IFPR (professor ebtt)/UFPR (doutorando). Orientador:
prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado.
E-mail: marcelodavilaamaral@gmail.com
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 176

noções de universalidade, modernidade, Penso a gesta do vetor estético desse


nacionalidade e individualidade: discurso no desassossego das gentes; eu o
Nor is this program for a simple rejection of
percebo a partir do eu há muito em mim
modernity, which would be, in many situations, perdido, ou negado. (Sem me reconhecer no
politically suicidal. I ask for a history that outro como lhe posso ser empático, como seu
deliberately makes visible, within the very discurso me poderia afetar, sem ao outro eu me
structure of its narrative forms, its own afeiçoar?). Realidade bruta, assim, como esteio
repressive strategies and practices, the part it poético. A pedra como pedagogia (uma vez
plays in collusion with the narratives of mais!), como possibilidade poética! A aspereza
citizenships in assimilating to the projects of the do cotidiano, a violência que a realidade assume
modern state all other possibilities of human na destituição de tudo que é coletivo e solidário
solidarity. The politics of the modern state all
em prol de uma individualidade estagnada foi
other possibilities of human solidarity. The
politics of despair will require of such history
observada por Marcos Siscar como
that it lay bare to its readers the reasons why característico do que chamou de crise; da crise
such a predicament is necessarily inescapable. como inscrição no corpus poético do hoje:
This history that will attempt the impossible: to [...] a autonomia desejada pela poesia não é
look toward its own death by tracing that which aquela que a isolaria da realidade intolerável,
resists and escape the best human effort at mas aquela que de fato lhe fornece os
translation across cultural and other semiotic recursos para carregar ou suportar os
systems, so that the world may once again be paradoxos de sua inscrição na realidade,
imagined as radically heterogeneous. atribuindo-lhe a condição de discurso
(CHAKRABARTY, 2000, p. 73-74)99 histórico que denuncia, inclusive, as ficções
Assim, nos processos de apagamentos paradisíacas da cultura como identidade entre
históricos de existências disformes ao projeto forma e experiência. Nesse sentido, o
discurso poético aspira ao gesto dilemático
moderno de nação, a violência, em seus
pelo qual seria possível, inclusive, iluminar o
múltiplos formatos – como necropolítica ou sentido de outros campos e discursos sociais,
como subtração identitária de subjetividades reconhecendo neles as estratégias políticas
únicas – promove um silenciamento de poéticas implícitas de manipulação, eufemização ou
e epistemologias a reforçar a construção de uma desdramatização da linguagem. (SISCAR,
autoimagem subalterna, cujo modus operandi 2010, p. 10. Grifos do autor).
se dá sob o signo da individualidade do sujeito
Para Siscar, então, a poesia do hoje não se
moderno e, portanto, “universal”. Cabe, então,
caracterizaria por sua reclusão à “torre de
a pergunta: universal para quem, cara pálida?
marfim”, mas por uma abertura aos dilemas
Daí a urgência em se pensar discursos
morais, políticos e legais do agora; à inscrição
poéticos que nos falem mais de perto, que nos
da ruptura, do drama e da revanche no corpo
falem ao detalhe. Certamente o sonho, o
social (e poético) nosso.
inefável, o espectral, o bucólico, o fantasmático,
o maravilhoso, a nacionalidade, a religiosidade, 2 Poética; ética
a metalinguagem, a ode até, todas essas e outras Pode-se alegar que o poeta não deveria ser
formas diegéticas também podem um sujeito histórico, socialmente inscrito.
positivamente gestar a contemporaneidade. No Afinal, os pós-estruturalistas europeus
entanto, desejo pensar o que ainda não temos e declararam a morte do autor já há algumas
propor um olhar para imagéticas de que décadas. A questão da intenção foi muito
carecemos. Encontro, pois, uma pulsão que combatida por aqueles que desejaram (e
emerge das cores, das dores e dos humores desejam) a autonomia do texto literário como
nossos de cada dia: o rap nacional. traço primeiro de sua literariedade, para
99Nem é este um programa para uma simples rejeição da seus leitores as razões pelas quais tal situação é
modernidade, a qual seria, em muitos casos, uma política necessariamente inevitável. Esta é uma história que tentará
suicida. Eu rogo por uma história que deliberadamente o impossível: olhar para a própria morte por perseguir
torne visível, dentro das estruturadas formas narrativas, aquilo que resiste e escapa do melhor esforço humano na
suas próprias estratégias e práticas repressivas e a parte tradução através da cultura e de outros sistemas semióticos,
que ela desempenha em conivência com as narrativas de para que o mundo possa mais uma vez ser imaginado como
cidadania em assimilar ao projeto do estado moderno todas radicalmente heterogêneo. (Tradução livre de Abel
as outras possibilidades de solidariedade humana. A Mescena, Beatriz Araújo, Rocky Lacerda e Vitor Moura).
política do desespero exigirá que tal história desnude para
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 177

ficarmos na nomenclatura dos formalistas Gerd Bornheim, na sua leitura acerca do sujeito
russos. Roland Barthes desejou que a intenção moderno em suas tensões éticas com o mundo
fosse apenas aquela criada no momento da que o cerca, elenca seis características para que
leitura, quando autor e leitor perfariam acompanhemos a evolução do projeto burguês
entidades de papel e tinta, cuja realidade ou de homem e mundo: a autonomia, o trabalho, a
manifestação seria apenas escrita. Nisto penso propriedade privada, o capitalismo, o
que há uma dose de razão: os pós-estruturalistas conhecimento humano (racionalismo de
queriam matar não qualquer autor, mas o autor Descartes), e a liberdade. Todas essas, sozinhas
de gosto burguês. Tratava-se, pois, de uma ou em conjunto, fornecem uma pista de como o
crítica da ideologia. Uma crítica da crítica por homem moderno (o homem burguês para
assim dizer (Cf. COMPAGNON, 2014). Bornheim) revolucionou um mundo passado ou
Barthes e companhia, entretanto, não arcaico e criou um mundo novo com o qual
conseguiram apagar a autoridade do texto e a estabeleceu suas relações intersubjetivas em
questão permanece aberta; mesmo que sob a bases outras, bases materiais e laicizadas nunca
forma de “intenção em ato”, como assim antes vistas. Por todo esse longo processo
categorizavam a questão. histórico se constituiu o paradigma do homem
Um problema teórico, estético e também universal; e, por extensão, da cultura universal
ético: pudesse mesmo ser esse leitor um sujeito e da literatura universal. Focalizando o início do
do tipo papel-e-tinta somente? Esse poderia ser Iluminismo, Bornheim nos fala do contrato
um problema filosófico interessante. Se eu dele social, balizado por aquelas características
aqui me ocupasse, teria que, primeiramente, citadas, como saída para o convívio social
identificar uma certa régua paramétrica a possível, já que, agora, a sociedade é constituída
elencar determinado corpus poético entre ao redor do indivíduo e não o contrário:
aqueles discursos cujo valor se sedimentasse Pois acontece que a burguesia – e é a primeira
sob o aceite do gosto de nossas Letras. Nesse vez que isto se verifica na história do homem
momento, teria que perseverar na procura por – pretende impor-se como classe universal;
categorias de pensamento que, sendo cordato ao destituída a monarquia e longe ainda das
Cânone Literário Brasileiro ou contra- inquietantes esferas do proletariado que
hegemônico, argumentassem em favor da seriam criadas pela revolução industrial, o
relevância que lhe almejo, a esse certo corpus burguês vive a possibilidade de dar plena
poético. Ainda que me seja dada a possibilidade expansão a todo o seu ideário. Um dos
defender que o autor ou o sujeito para o qual maiores trunfos da burguesia reside
justamente neste ponto: ela reformula toda a
escreve fossem social e historicamente situados
questão da universalidade e até mesmo dos
no espaço para além de uma abstração do universais. Se pensarmos no caráter
homem universal (europeu, branco e cristão), profundamente regional da pólis grega, em
certamente encontraria dificuldades em que até os deuses eram exclusivos de uma
problematizar a localidade de certos conceitos determinada cidade, e se atentarmos para a
que partem ainda dessa abstração mesma soberana superioridade do Sacro Império
chamada Europa (chamo “Europa” abstração na medieval, que levava a ignorar todo o outro
justa acepção de Dipesh Chakrabarty: a Europa que não o cristão, podemos entrever o notável
que temos “dentro de nós”, e que, também ela, avanço realizado nesse ponto pela cultura
não corresponde a um continente real. Uma burguesa. (BORNHEIM, 2007, p. 354).
Europa hiper-real). Ou seja, ainda que eu Assim, se quisermos categorias para pensar
propale como instrumental teórico o a complexidade da cultura e da literatura nas
materialismo histórico, ainda assim, essas sociedades contemporâneas, mais ainda as às
categorias seriam difíceis de serem pensadas a margens da geopolítica planetária como a
partir de um território e de uma democracia brasileira, “universal” é uma categoria que deve
muito diferentes daquela sociedade industrial ser questionada por uma crítica compromissada
inglesa (europeia, branca e cristã) sobre a qual com diálogos fecundos e verdadeiramente
Karl Marx e tantos outros teóricos europeus democráticos.
formularam suas teorias, que aceitamos como Não estou a fazer apologias contra os
universais, ainda que contra-hegemônicas em pensamentos sob os quais todos nos tornamos
alguma medida. especialistas em nossas áreas. Apenas desejo
O homem universal é uma criação burguesa. salientar que, ao teorizar sobre o fazer literário
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 178

e para lhe sermos efetivamente críticos, moral constrói, pois, um outro mundo,
devemos tentar deslocar uma estabelecida artifício do pensamento dominante. Dá-se a
historiografia literária, por cuja construção ideia de realidade uma virtude muito própria
também todos somos responsáveis. e peculiar, ligadas às concepções daqueles
que criam essa realidade. [...] Assim, somos
Quero, isso sim, ter em mente aqui uma
convidados a assistir ao espetáculo do mundo
ética. Ética que poderia tanto pensar o autor ou e a participar dele sem o desejarmos: temos,
o leitor, e, por sua vez, a poética que os liga. portanto, pouca coisa ou quase nada de real
Pelo espaço que este ensaio dispõe, entretanto, no que vemos, em particular em um mundo
detenho-me aí mesmo: na intenção e na dominado por imagens e espetáculos
recepção. Interesso-me pelo eu-poetante, pela incoerentes dos novos meios de comunicação
subjetividade que enuncia que tanto mais é — qualquer coisa é mostrada ou dita, aparece
potente, penso, quanto mais é ética, permitindo e desaparece por força de uma vontade
reconhecer-se no outro. As possibilidades que estranha a nós. (NOVAES, 2007, p. 16)
passam ao largo das agências que sustêm o Insisto, pois, pensar um corpus poético que,
cânone literário me interessam agora e então. para além de uma abstração clássico-edílico-
Quero-as necessárias para uma devida bucólica, seja uma substância táctil e dúctil
reestruturação das medidas de valor dessas àqueles sujeitos não reconhecíveis outrora
entradas canônicas em prol de identidades (“desconhecíveis e desconhecidos”) que todos
violentadas cotidiana e continuamente e de sua somos. Para tanto, a título de exemplo e análise,
inclusão discursiva a legitimar uma realidade escolho o chypher Favela Vive como exemplo
outra possível. Uma realidade prenhe de sintomático de possiblidade político-poética
identidade mais genuína e conforme à sobre a qual este ensaio tem seu título e tema, a
identidade brasileira, porque heteróclita, mimetizar a violência como forma e expurgo;
híbrida. procedimentos semântico-estilísticos como
Estou a falar “realidade”, “real” como recursos “para carregar ou suportar os
insumos, forma e tema, para uma construção paradoxos de sua inscrição (da poesia) na
poética cuja efetiva penetração se dê na justeza realidade”, qual gesto dilemático (e político)
de esses insumos se coadunarem à recepção da apontado há pouco por meio do professor-poeta
obra. O problema do real não é, ele mesmo, um Marcos Siscar. Ao meu ver, um discurso
dos pontos fulcrais dos estudos literários que poético, cuja potência lírica se extraia da
atende pelo nome mimesis? Assim, não digo da cotidiana violência sofrida pelos favelados dos
realidade sensível, empírica, mas de um real grandes centros urbanos do Brasil, demonstra
experienciado a partir do sensível cuja inscrição uma assunção da responsabilidade crítica que
se dá nos sujeitos que recepcionam a obra, o pretendo compor aqui.
discurso poético. Percebo que essa penetração
os impacta, os sujeitos, por possibilitar o 3 Poético-político
encontro com sua identidade mesma, em seus Sob o nome Favela Vive, refiro-me de quatros
corpos, mesmo que ultrajados. A partir do videoclipes dirigidos por Guilherme Brehm e
encontro, o leitor/ouvinte divisa sua editado por GB LAB, que se configuram como um
subjetividade, ao par que, reconhecendo-se, cypher, que, no jargão da cultura rapper, é uma
fortalece a estruturação de seu caráter individual reunião de vários artistas para dar voz a um
e também coletivo. É nesse sentido que discurso “encorpado”, que, do contrário, corre o
reconheço um determinante ético que não pode risco de permanecer circunscrito aos fãs simpáticos
ser realizado a partir do nada, no mesmo passo a esse universo. Por se caracterizar com um cypher,
que o real não pode ser experiencializado a não a cada vídeo lançado, foram agregados mais artistas
ser a partir do discurso sobre ele, de um discurso e técnicos na sua execução. A crescente recepção
sobre as coisas: dos vídeos retroalimentou-os para novas
Ora, uma moral pensada e constituída a partir produções, incrementando, ainda, sua linguagem
da ideia de “vazio-vazio”, isto é, uma moral sonora e audiovisual. Uma poética do som e da
que abole a experiência, a história presente e imagem nasceu e renasceu a cada lançamento.
a antecipação, e que leva em conta apenas Também é importante salientar o período de
uma consciência formada de nadas lançamento, que, no interstício de 5 anos, da
cotidianos, de mil lacunas e intervalos primeira à quarta e última produção, abrangeu o
desconhecíveis e desconhecidos, é o ponto de período das últimas eleições político-partidárias
partida para o artifício e as aparências. Essa
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 179

no país, tanto nos níveis municipais, quantos comunidades, não necessitando – na medida em
nos estaduais e federais (nos anos de 2016, 2018 que códigos, moda, gestos, sonoridades eram
e 2020 respectivamente). Ou seja, trata-se de comungados por todos sob o signo da cultura
uma inscrição poética marcadamente política já hip-hop – de tradução. Com o tempo, o cenário
na sua origem, na sua intenção, na sua autoria. mudou. O rap, além de um maior alcance,
Poética de inscrição política, não somente passou a ter também mais autonomia em relação
político-partidária (é bom que se o diga). a outros signos e símbolos do hip-hop, o que
Certamente, música e poesia dialogam. resultou, consequentemente, em contrapontos,
Ouvimos falar sobre a musicalidade da poesia, entre artista e público, mais virtuais e, até, não
assonâncias e aliterações feitas sob forma tonal, compartilhados.
contagem de sílabas poéticas como marcações Em linhas gerais, sample é, como a tradução
do tempo do verso, experimentações formais nos conta, uma amostra, um procedimento
que nos soam como improvisos acústico- amostral para que, a partir de algo exterior à
instrumentais e tantos outros procedimentos de composição que se pretenda realizar, possa-se
construção textual de poemas que tomam dar fim ao texto sonoro final; algo no nível da
emprestados seus conceitos e sua nomenclatura pirataria, do saque e do assalto – e não tomo tais
da música. Contudo, não legamos à música, ao adjetivações por pejorativas; encaro-as segundo
menos as de caráter popular, o estatuto da a perspectiva positiva de Villa-Forte (2019). O
poesia (claro que, para as agências ainda em flow, por sua vez, é a vocalização mesma do
vigor do cânone literário, toda adjetivação compositor/cantor/performer (rapper e grupos
popular parece ser um demérito em si, mas, nem de rappers) e tanto mais valorizada quanto mais
nisso, há uma similitude completa do campo dos articulada à velocidade do compasso musical
estudos literários ao campo da música, quando, (beat) de que usufrui, sublinhando a aptidão e o
por exemplo, pensamos na literatura de cordel talento fisiológicos do corpo que enuncia a letra.
ou no teatro farsesco do tipo commedia Já as linhas de soco estão mais para o nível
dell’arte). De todo modo, as duas expressões linguístico da composição e correspondem ao
certamente têm motes e procedimentos próprios conjunto de versos, à enunciação poético-rímica
e, assim, elas podem coexistir de forma (a rima tão gabada), cuja finalidade é o impacto,
estanque muito confortavelmente. pela crueza objetiva de suas palavras, tal como
Desde sua origem, o rap, cuja sigla em inglês um soco realizado por um punho – uma rima
dá a pista (RAP = Rythm and Poetry), propõe propalada como um soco; nos dois sentidos que
uma aproximação mais íntima entre esses dois esse verbo possui.
modos de dizer. Obviamente, o rap não Linhas de soco se caracterizariam, então, por
significar dizer cantando ou sob uma batida uma sequência rímica que, por exemplo, diz:
eletrônica simplesmente. Esse discurso verbo- “Mano, os cara peita de subir de
visual detém procedimentos muito específicos. madrugada/sempre marca operação com a porta
Neste ensaio, me deterei em três deles: sample, da creche lotada/Mais uma mãe revoltada, uma
flow e linhas de soco, que, juntos, sintomatizam pergunta sem resposta/Como o policial não viu
um conceito que vem se tornando caro aos seu uniforme da escola? Vinícius é atingido
estudos literários: a noção de performance. com a mochila nas costas”. Ou ainda: “Entre o
crime e o rap/click-clack/nasce um som, morre
4 A favela vive!
um moleque/História triste sem snap/Quem é
Muitos dos procedimentos formais guerra quer paz/vocês querem músicas sobre
utilizados para as composições em rap cooptam armas/Escrevo sobre traumas/pra ouvidos que
o ouvinte para uma experiência poética total têm almas”. E: “Que é isso?/Foi tiro do blindado
(Cf. ROTHENBERG, 2006), quando música e que acertou Marcos Vinícius/Caído ali, sem
ritmo se misturam a ideologias, materialidades árbitro de vídeo”. Ou ainda mais: “Parei pra
e perspectivas de enunciação partilhadas entre respirar por um instante/Mas quando olhei pro
público e artista e entre artista e artista. Tal céu só vi os tiros de traçante/Pensei, meu Deus,
partilha reside justamente em bases comuns a quem dera fossem as estrelas cadentes/Que o
todos, que, de início, levou o rap nacional à sangue que escorresse não fosse de um
circunscrição a locais e públicos determinados, inocente/Seria o bastante” (FAVELA VIVE 3,
pois os materiais externos à composição, a coisa
a priori, estava somente ao alcance daquelas
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 180

2018)100. Cito todas as passagens de há pouco aprimoramento de técnicas surgidas a partir


em sequência proposital, na tentativa frustrada daquelas vanguardas do início do século XX.
de emular a falta de fôlego de quem vive em Samplear seria, assim, “escrever” sonoramente
localidades onde a violência, diária, não lhe dá a partir de leituras daquele que se apropria do
tempo sequer para respirar. Esse “ar que falta” corpo (discurso vocal: texto e som) alheio e o
é o que corporifica, presentificando, para além reformula segundo sua perspectiva particular.
de outros atributos da apresentação musical, a Poderíamos estender essa acepção ao ato de
poesia de que trato aqui. escrever e ler?
Escrever linhas de soco é preparar o corpo Para Sêneca, comenta Foucault, a função da
(textual, que seja) para uma briga. Tentar escrita é reunir as leituras e transformá-las num
revidar presentificando sentidos perscrutados corpo. E adverte que este corpo não deve ser
no contexto diário no qual o eu se inscreve e a entendido como um corpo de doutrina mas
partir do qual escreve e apresenta seu texto – como o próprio corpo de quem escreve, daquele
que, num cypher como o Favela Vive, é uma que soube ler e montar o que leu. A escrita
exceção rara ao esquema autoral do rap, cujo transforma a leitura em forças e em sangue.
autor e enunciador se integralizam no mesmo Escrever seria apossar-se não de uma verdade
sujeito. Clara também é a necessidade de o prévia e universal, mas de uma verdade
particular, pessoal, construída no exercício
ouvinte/leitor/público conhecer a realidade
cotidiano da leitura. E fazer dessa verdade algo
factual, ainda que circunstancial, de violências marcado na própria alma e vivido como se fosse
específica e concretamente sofridas, o que não o corpo de quem escreve. (CARNEIRO, 2013,
é muito difícil, vista a atualidade do tema para a p. 725. Grifos do autor).
grande mídia brasileira, seja a séria ou a
sensacionalista. A violência urbana é uma pauta No cypher Favela Vive, não há samples
urgente em nossa sociedade, e os discursos que reconhecíveis segundo a perspectiva da cultura
lhe atravessam são de toda ordem: tanto pleitos rap, mesmos os sonoros. Penso, porém e ao meu
acerca da cidadania e direitos, como falácias ver, existir uma possibilidade linguística em
eleitoreiras das mais vulgares. Nesse caminho forma de sample por apropriações de textos de
de tomada de consciência político-poética, cito outros universos musicais, como as paráfrases
mais uma vez Favela Vive: tomadas à composição Não é sério, de grupo de
rock Charlie Brown Jr: “Ideia certa, papo reto,
E eu não saí nesse retrato/Escrevo um não tem mistério/o dinheiro em si não faz o
desacato/Responsa é minha pena sem fiança/Os império/Seu legado, sua honra, seu
professores do assalto/à la casa do
mérito/Espero, país que eu quero, progresso/o
favelado/revistam a mochila das criança/O
bonde do mal passou/E eu disse hoje eu não jovem do Brasil sendo levado a sério”
vou/preciso escrever uma matança/Avisa a (FAVELA VIVE 3, 2018); apropriação em
minha mina que hoje eu vou me atrasar/E forma de homenagem a Chorão, cantor vítima
guarda os nossos filhos onde a polícia não de overdose de cocaína em 2013, como muitos
alcança. (FAVELA VIVE 3, 2018, grifo nosso) dos ídolos representantes da juventude na
história recente da música do Ocidente nosso. O
O sample, por sua vez, radicaliza o corpo
tributo e a leitura a partir das composições e da
enquanto poesia: expõe o corpo tal fratura
morte do corpo de Chorão se coadunam à crítica
exposta. Samplear é deslocar uma matéria
à falácia das “guerras às drogas” empreendidas
sonoro-linguística, alterando-a para o encaixe
por políticas públicas de caráter necrológico,
do ritmo na poesia que se molda (RAP). A
uma necropolítica: “Tão pedindo intervenção
amostra, assim, são pedaços, por vezes
em pleno ano de eleição/Será que tu num
arrancados sem autorização, de um corpo alheio
entendeu como funciona isso até hoje?/O
– palavras e sons misturando-se em marcações
exército subindo pra matar dentro da favela/mas
temporais outras que não aquelas originais,
a cocaína vem da fazenda dos senadores”
quase como uma quebra da tradição ou um
(FAVELA VIVE 3, 2018)101. Corpos – textuais,
processo de desmonte e de colagem no
atuais e de vítimas fatais –, então, são trazidos à

100 101
Não posso garantir a exatidão das quebras dos versos Cito reiteradamente Favela Vive 3, por que foi por meio
retirados dos vídeos que constituem o cypher Favela Vive. desta “fase” que conheci o cypher. Nisso, há um propósito
O que vinculo aqui são transcrições presentes na web, de em colocar meu próprio corpo em primeiro plano. Meu
forma algo livre. corpo: por onde reverberou a primeira vez este discurso;
onde primeiramente ecoou a força poética desse discurso.
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 181

cena, à cena enunciada pelo mesmo volume concernentes a subjetividades, ainda hoje,
corporal daqueles que fazem a crítica e sofrem negadas (poderia igualmente dizer
a violência institucional diariamente. racializadas). É nesse sentido que a autoria é o
É certo que realizo um deslocamento ponto central para o discurso poético do rap,
conceitual para o campo dos estudos enquanto perfazem-no os rappers.
linguísticos e literários e o que ofereço pode Como já mencionei, a intenção para a
exemplificar o que chamamos intertextualidade. produção poética do Ocidente ainda é um
Entretanto, no cypher Favela Vive, percebo um conceito polêmico e, por isso mesmo, caro à sua
diálogo intertextual diferente daqueles literatura e às agências que sustêm o cânone. Na
pensados pelos formalistas russos, pois além produção poética do rap, entretanto, a dicotomia
dos textos, os diálogos são travados de maneira entre autoria e sentido do texto literário
intersubjetiva, diálogos feitos por (poético) se desfaz, na medida em que esse
subjetividades atravessadas pelo mesmo discurso só alcança seu efeito total — a poesia
fenômeno que chamo genericamente de total da qual nos dá uma pista Rothenberg
violência. Assim, o sample é uma tradução da (2006) — porque e se enunciado por aqueles
presentificação e da importância do corpo que sujeitos concretos, e não outros. Outro corpo,
enuncia a cena. A presença que fala da acepção com outras pertenças, não poderia realizar tal
mesma do que venha ser poesia, do que venha experiência, tampouco fazê-la valer àqueles ao
ser literário: qual seu discurso se dirige. É nesse sentido que
O ideal […] seria conduzir a reflexão em uma
penso ética e política como partes constituintes,
dupla trajetória: a que nos levaria ao lugar intrínsecas à produção de sentidos poéticos
nodal, em que o “literário” se articula na proposta pelo rap nacional. O flow nos dá a
percepção e aquela em que se encontraria um chave de entendimento do ato performático que
homem particular, feito de carne e sangue. De venho salientando desde o início de minha
qualquer modo, essa operação comportaria o análise do cypher Favela Vive. É preciso
perigo de nos conduzir ao indivíduo, por via entender a expressão poética na sua totalidade.
dedutiva, e de apagar aquilo que justamente o Entender como a presença um corpo (de um
torna indivíduo: uma estatura, um peso, uma corpo preto!), para além do textual (ainda que
constelação original de traços físicos e
também possa ser só textual), concretiza uma
psíquicos. Melhor seria inverter o
movimento: partir empiricamente do que
experiência estética que se presentificada no e a
poderia ser ponto de chegada (a percepção partir do – o vocábulo erudito dá a pista –
sensorial do “literário” por um ser humano corpus poético:
real) para poder induzir alguma proposição Escutar um outro é ouvir, no silêncio de si
sobre a natureza do poético. (ZUMTHOR, mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa
2018, P. 24-25) voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma
Presença real, “percepção sensorial do atenção que se torna meu lugar, pelo tempo
‘literário’ por um ser humano real: um corpo dessa escuta. Essas palavras não definiriam
igualmente bem o fato poético?
sempre reiterado no cypher Favela Vive pelo flow.
(ZUMTHOR, 2018, p. 77)
Flow é o modo de fazer mais corpóreo que o
rap consegue produzir, pois é realizado a partir A exceção para a proeminente centralidade
da capacidade de articulação psicomotora do do sujeito enunciador e poetante a um tempo são
indivíduo que está em cena rimando. O flow cyphers como o Favela Vive. Entretanto, o
focaliza, assim, o sujeito como elemento central cypher não nega o sujeito individualizado; ao
ao discurso que enuncia, que só pode partir de contrário: o entende parte de uma comunidade
um ser determinado (localizado). Este sujeito é constituída sob uma lógica diferente daquela da
(quase sempre) a consubstanciação do eu-lírico, mercadoria, do liberalismo, da individualidade
porque autor tanto das rimas como da própria pensada como um ideal europeu (branco e
performance que realiza. Importa, ainda, dizer cristão) de existência. Nesse sentido, Favela
que esse lugar ocupado pelo eu, temporal e Vive é sintomático exemplo, pois enunciação
espacialmente, é a possibilidade mesma de uma vocalizada por diversas vozes, por diversos eus
enunciação comunitária, igualmente. Daí a que, irmanados, continuam seguindo fortes
periferia e a favela como matérias porque juntos: “eu sou porque nós somos”
extremamente robustas e complexas (Unbuntu) – filosofia tão cara na atualidade
estruturando discursos de pertencimento àqueles mesmos indivíduos diaspóricos que
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 182

ainda sofrem sob a mesma lógica racista e mãos. Por isso, importa sobremaneira creditar
violenta imposta aos seus ancestrais em nome seu surgimento à cena poética contemporânea
da modernidade do Ocidente, sob os auspícios nacional como uma concatenação de esforços
da cidadania liberal plena. Persiste, ainda, a centrados na realidade social de onde se deram
pergunta: plena para quem? as vivências do grupo ADL e, daí, seu diálogo
com outros representantes de gerações
5 Conclusão ou de volta ao início
anteriores (e posteriores?) do rap brasileiro,
Aos procedimentos formais que apontei pois, a cada diálogo travado, vozes mais
neste ensaio poderiam se somar muitos outros, representativas engrossaram pleitos que
tanto ao nível imagético, semiótico e semântico permanecem atuais, num apontamento
como ao linguístico propriamente. Assim, premente de como as violências vividas se
iconografia fílmica, aspectos atitudinais dos mantêm desde há muito. Como este ensaio
corpos rimantes, ambientação inscrita em deseja se inscrever na ordem política e estética
territórios urbanos sitiados, desvios da norma da história recente do país, é de suma
padrão do português brasileiro urbano dito culto importância nomear todas os corpos que
como possibilidade sonora, entre outros tantos encorparam tal empreitada. Corpos
traços bem caracterizariam o discurso do rap majoritariamente negros marcados pela
nacional em sua inteireza poética, um corpus diáspora imposta a seus antepassados, cuja
dinâmico como vetor de novos paradigmas dívida está longe de ser paga. São eles: DK,
poéticos a possibilitar outros rearranjos Lord e Índio (ADL), Sant, Raillow, Froid, BK,
sintagmáticos, a apontar para possibilidades 220voltzfunkero, MVBill, Praga “Canela de
narrativas outras. Pensei dedicar-me ao Favela Ouro”, André Brum, Orochi, MC Cabelinho,
Vive por enxerga no cypher uma amostragem Cesar MC, Kmila CDD, Edi Rock, Choice,
bastante bem amarrada desse discurso e toda Djonga, Menor da Chapa, Negra Li. E tantos
poética que lhe é característica com uma outros corpos “por trás das câmeras”.
metonímia fecunda a deslocar um dado corpus Chamo a atenção para os corpos rimantes de
enunciativo para o campo dos estudos literários há pouco, porque entendo, conjuntamente com
comprometido com o estatuto da literatura Paul Zumthor, que deles mesmos emana a
como um direito democrático e humano. Nessa poesia da qual falo. Essa emanação só é possível
esteia, o rap perfaz um caminho que, enquanto porque encontra em mim, outro corpo, tensões
mimetiza as violências sofridas nas zonas e pulsações onde reverberam, em toda minha
periféricas das grandes cidades brasileiras, não extensão psicofisiológica, sua força e potência.
afasta a tomada de consciência política que Por isso, utilizei-me de noções sinestésicas no
enuncia um real que menos edulcora vivências início deste ensaio. Chamei a poesia de Favela
que transforma a experiência da violência em Vive de dúctil, de táctil. Trata-se, ao meu ver, de
possibilidade estética e, assim sendo, em um corpus poético com peso e volume, com
perseverança do desejo de vida em territórios aspereza e densidade, feito de carne e de sangue.
marcados por políticas de morte. Temos aí um É esse o axioma do que entendo por poesia.
exemplo honesto da poesia que toma para si a
Se admitimos que há, grosso modo, duas
responsabilidade de dizer o hoje. Resta saber espécies de práticas discursivas, uma que
que respostas a crítica literária tem a lhe dar. chamaremos [...] de “poética”, e uma outra, a
Se as preocupações políticas da crítica literária diferença entre elas consiste em que o poético
do século passado (século XX) se sustentam em tem de profundo, fundamental necessidade,
distinções subjacentes, mas não menos para ser percebido em sua qualidade e para
decisivas, em relação ao modo mais ou menos gerar seus efeitos, da presença ativa de um
atento com que a poesia se insere na história, corpo: de um sujeito em sua plenitude
caberia hoje, com urgência, entender os psicofisiológica particular, sua maneira
diferentes dispositivos pelos quais o discurso própria de existir no espaço e no tempo e que
poético tem compreendido sua capacidade de ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao
herdar a crise. Ou seja, o modo como vem, tato das coisas. Que um texto seja
desde muito cedo, nomeando o real e reconhecido por poético (literário) ou não
construindo essa história. (SISCAR, 2010, p. depende do sentimento que nosso corpo tem
13, grifos do autor). necessidade para produzir seus efeitos; isto é;
para nos dar prazer. É este, a meu ver, um
O cypher Favela Vive é, segundo sua própria critério absoluto. Quando não há prazer – ou
definição, um empreendimento feito a muitas ele cessa – o texto muda de natureza.
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 183

(ZUMTHOR, 2018, P 34) FAVELA VIVE 4. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo
Os desenlaces estéticos aqui referidos são (13:55 min). Publicado pelo canal Youtube.
reclamados à luz das análises literárias. Por Disponível em:
óbvio, consigo vislumbrar o valor e a <https://youtu.be/SZ1H5lIOIuU >. Acesso em:
importância dos paradigmas estabelecidos pelo 17 out. 2021.
cânone; entretanto, os críticos literários temos o NOVAES, Adalto. Cenários. In: NOVAES,
imperativo ético de afirmar a identidade dos Adalto (org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras,
corpos que, mesmos ultrajados, ainda desejam; 2007.
e, se desejam, ainda não estão vencidos. Ao
passo que enunciam outras possibilidades de ROTHENBERG, Jerome. Etnopoesia no
existências, tais corpos vão estabelecendo milênio. Rio de Janeiro, Azougue Editorial,
novos paradigmas, novos códigos, novas 2006.
possibilidades poéticas. Corpos cujo o direito à SISCAR, Marcos. Poesia e Crise. Campinas,
literatura não mais se lhes pode negar. As mais SP: Editora da Unicamp, 2010.
147 milhões de visualizações somente na
VILLA-FORTE. Escrever sem escrever:
plataforma Youtube até o fechamento deste
literatura e apropriação no século XXI. Rio de
texto servem-lhes de metonímia. Corpos que
Janeiro: Editora PUC-Rio; Belo Horizonte:
não se deixam curvar à crueldade da prosa, pois
Relicário, 2019.
sua pulsão teima, ainda e contra tudo e todos,
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção,
existir em verso.
leitura. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
Referências

BORNHEIM, Gerd. O sujeito e a norma. In: ********


NOVAES, Adalto (org.). Ética. São Paulo: Cia
das Letras, 2007.
CARNEIRO, Flávio Martins. O leitor fingido
[recurso eletrônico]: ensaios. Rio de Janeiro:
Rocco Digital, 2013.
CHAKRABARTY, Dipesh. Provisializing
Europe: postcolonial thought and historical
difference. New Jersey, Oxfordshire: Princeton
University Press, 2000.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da
teoria. Belo Horizonte, Editora Ufmg, 2014.
FAVELA VIVE. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo
(5:44 min). Publicado pelo canal YouTube.
Disponível em:
<https://youtu.be/hvMA1Aam1pQ >. Acesso
em: 17 out. 2021.
FAVELA VIVE 2. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo
(7:37 min). Publicado pelo canal Youtube.
Disponível em:
<https://youtu.be/goBD7WaN2e4 >. Acesso
em: 17 out. 2021.
FAVELA VIVE 3. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo
(8:57 min). Publicado pelo canal Youtube.
Disponível em:
<https://youtu.be/avbOUVHr0QI>. Acesso em:
17 out. 2021.
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA


Eduardo José da Costa Neto102 • Rizonilda Sales Natividade 103

RESUMO: A proposta desta comunicação é Palavras-chave: Barroco; Contemporaneidade;


instigar o leitor a olhar a poesia satírica do Boca Discriminação; Resistência.
do Inferno, de modo a entendê-la a partir da
reflexão sobre a denúncia da discriminação 1 Introdução
racial nos versos dilacerantes de Gregório de A temática proposta, Poesia como
Matos. O poeta, assertivamente, foi o primeiro instrumento de resistência, não é exatamente
a ecoar, em versos luso-brasileiros, o protesto nova. Sob ângulos diversos, a poesia de Gregório
contra toda forma de opressão e de de Matos tem suscitado múltiplos estudos, entre
discriminação racial, em especial, aos pretos. O os quais, um que data de 1967 e é atribuído ao
objetivo é demonstrar a denúncia do professor pesquisador, Fernando da Rocha Peres.
preconceito em relação ao preto, concebido A proposta é instigar o leitor a olhar a poesia
como objeto. O corpus escolhido foi o belíssimo satírica do Boca do Inferno, de modo a entendê-la
poema Juízo anatômico dos achaques que a partir da reflexão sobre a denúncia da
padecia o corpo da República em todos os seus discriminação racial nos versos dilacerantes de
membros e inteira definição do que em todos os Gregório de Matos. O poeta, assertivamente, foi o
tempos é a Bahia, no qual o poeta baiano primeiro a ecoar, em versos luso-brasileiros, o
apresenta uma ideia da conjuntura sociocultural protesto contra toda forma de opressão e de
do negro no século XVII. Esta proposta discriminação racial, em especial, aos pretos.
justifica-se pela atualidade do tema e por sua O objetivo é demonstrar a denúncia do
relevância nos debates políticos e sociais. preconceito em relação ao preto, concebido como
Apesar de denunciar a opressão aos povos objeto. Nessa direção, o corpus escolhido foi o
africanos, desde o setecentismo, com versos belíssimo poema de circunstância — satírico —
cirúrgicos e engenhosos, Gregório de Matos só Juízo anatômico dos achaques que padecia o
ganhou presença mais expressiva na literatura corpo da República em todos os seus membros
brasileira a partir dos anos 1900. A metodologia e inteira definição do que em todos os tempos é
utilizada foi a revisão sistemática, pois, nas a Bahia, no qual o poeta baiano apresenta uma
palavras de De-La-Torre-Ugarte-Guanilo, ideia da conjuntura sociocultural do negro no
Takahashi e Bertolozzi (2011, p. 1261) é "uma século XVII.
metodologia rigorosa proposta para: identificar Esta proposta justifica-se pela atualidade do
os estudos sobre um tema em questão, aplicando tema e por sua relevância nos debates políticos e
métodos explícitos e sistematizados de busca; sociais. Apesar de denunciar a opressão aos povos
avaliar a qualidade e validade desses estudos, africanos, desde o setecentismo, com versos
assim como sua aplicabilidade". Com base cirúrgicos e engenhosos, Gregório de Matos só
nessa premissa, a revisão sistemática figura ganhou presença mais expressiva na literatura
como método útil, embora ainda pouco brasileira a partir dos anos 1900.
explorado, para as ciências do movimento A metodologia utilizada consiste na revisão
humano, oferecendo capacidade de síntese e sistemática, pois, nas palavras de De-La-Torre-
novos direcionamentos. Ugarte-Guanilo, Takahashi e Bertolozzi (2011, p.
1261) é uma metodologia rigorosa proposta para:
identificar os estudos sobre um tema em questão,

102
Graduado em Letras – Doutorando em Teoria da Graduada em Arte • Universidade Federal do
103

Literatura • eduardofaccenda@hotmail.com • Puc/SP • Amapá/Macapá • risosales@hotmail.com


POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA 185

aplicando métodos explícitos e sistematizados de repetição. O restante da palavra deriva do


busca; avaliar a qualidade e validade desses estudos, verbo latino sistere, que significa parar,
assim como sua aplicabilidade.
Com base nessa premissa, a revisão
permanecer, ficar de pé, estar presente. A
sistemática figura como método útil — embora resistência da poesia é afirmativamente esse
ainda pouco explorado — para as ciências do insistir em estar.
movimento humano, oferecendo capacidade de Na perspectiva romanesca, a poesia estará
síntese e novos direcionamentos. estreitamente ligada ao sentimento íntimo do
ser humano, uma vez que este é poético por
2 Desenvolvimento natureza. “Essa faculdade é análoga à
Antes de abordar a questão do objeto de disposição divinizadora, que nos permite a
pesquisa, é interessante debruçar-se, mesmo percepção do sagrado: a faculdade de poetizar é
que de forma breve, sobre o conceito de poesia uma categoria a priori.” (PAZ, 1982, p. 203).
e resistência. Por isso Novalis acreditava ser a poesia “arte de
excitar a alma”. Para Schiller, a poesia estaria
Um dia, ao começar a escrever um livro associada a um caráter divino, muito além do
didático sobre literatura, tive que dar uma
prosaísmo do cotidiano humano: “Poesia é a
definição de poesia e embatuquei. Eu, que
desde os dez anos de idade faço versos; eu, força que atua de uma maneira divina e
que tantas vezes sentira a poesia a passar em inapreendida, além e acima da consciência”.
mim como uma corrente eléctrica e afluir aos (SCHILLER apud BANDEIRA, 1958, p. 1271).
meus olhos sob a forma de misteriosas Para Bosi (2010): “Resistência é um
lágrimas de alegria: não soube no momento conceito originariamente ético, e não estético.”
forjar já não digo uma definição racional E continua: “O seu sentido mais profundo apela
dessas que, segundo a regra da lógica, devem para a força da vontade que resiste a outra força,
convir a todo o definido e só ao definido, mas exterior ao sujeito. Resistir é opor a força
uma definição puramente empírica, artística, própria à força alheia. O cognato próximo é
literária. (BANDEIRA, 1985, p.125).
in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir.” Nessa
Se, para o grande poeta, Manuel Bandeira, a mesma vereda, reforça Lamartine:
missão de definir poesia não é das mais simples, é a encarnação do que o homem tem de mais
não seria o contrário para o poeta-crítico íntimo no seu coração e de mais divino em
mexicano, Otávio Paz (1976): a poesia é a seu pensamento, do que a natureza visível
maneira mais instintiva para o ser humano, uma tem de mais magnífico nas imagens e mais
vez que ela consolida um ritmo essencial à melodioso nos sons! É a um tempo
própria linguagem. sentimento e sensação, espírito e matéria; eis
Ao refletirmos sobre o termo resistência, porque é a língua completa, a língua por
mesmo que de forma breve, em especial na excelência, que o homem capta pela
humanidade inteira, ideia para o espírito,
poesia do poeta baiano, Gregório de Matos, sentimento para a alma, imagem para a
a principal noção de sentido que nos vem é imaginação e música para o ouvido.
sempre o contra, o embate: reação de um (LAMARTINE, 1987, p. 125).
corpo contra a ação de outro; defesa contra A proposta de resistência do professor Bosi
o ataque; opor-se contra alguma coisa. preenche, perfeitamente, uma das vertentes do
Intento aqui evidenciar na literatura Barroco, o conflito como força motriz, capaz de
barroca, representada pela poesia satírica do proporcionar, ao ser, movimento, no sentido de
Boca do inferno, um traço da função pública não se render e de se superar. Nesse mesmo
da literatura enquanto instrumento de movimento, inscreve-se a angústia daquilo que
resistência, mas pensando uma resistência Gregório de Matos, por meio da sua escrita
afirmativa e por isso, talvez, menos ferina, sabia fazer de melhor: resistir, usar a
desgastada e cansada. Ao tomarmos escrita e a poesia como formas de resistência.
A poesia, com a sua finalidade de encantar
resistência, etimologicamente – a
para resistir, agregada ao pensamento do poeta
etimologia aqui apenas como um ponto de baiano, Gregório de Matos, revela, de forma
partida e não como tentativa de recuperação muito coerente, o pensamento da sociedade
de um possível sentido ideal –, temos o colonial luso-brasileira do século XVII.
prefixo re- que indica insistência, dobra, Nos versos a seguir, do poema Juízo
POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA 186

anatômico dos achaques que padecia o assusta?................................................... Injusta.


corpo da República, em todos os membros, Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
e inteira definição do que em todos os Que anda a Justiça na praça
tempos é a Bahia, o poeta baiano deixa clara Bastarda, vendida, injusta.
a sua visão: 6
Que vai pela
Epigrama clerezia?..........................................................
1 Simonia.
Que falta nesta cidade? E pelos membros da
...................................................................... Igreja?................................................... Inveja.
Verdade. Cuidei que mais se lhe
Que mais por sua desonra? punha?................................................. Unha
.................................................................... Honra. Sazonada caramunha,
Falta mais que se te ponha? Enfim, que na Santa Sé
............................................................ Vergonha O que mais se pratica é
O demo a viver se exponha, Simonia, inveja e unha.
Por mais que a fama a exalta, 7
Numa cidade onde falta E nos frades há
Verdade, honra, vergonha. manqueiras?.................................................. Freiras.
2 Em que ocupam os
Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio. serões?.................................................. Sermões.
Quem causa tal perdição?... Ambição. Não se ocupam em
E no meio desta loucura?... Usura. disputas?................................................... Putas.
Notável desaventura Com palavras dissolutas
De um povo néscio e sandeu, Me concluo na verdade,
Que não sabe que perdeu Que as lidas todas de um frade
Negócio, ambição, usura. São freiras, sermões e putas.
3 8
Quais são seus doces O açúcar já
objetos?......................................................... Pretos. acabou?..............................................................
Tem outros bens mais Baixou.
maciços?................................................. Mestiços. E o dinheiro se
Quais destes lhe são mais extinguiu?...................................................... Subiu.
gratos?................................................ Mulatos. Logo já
Dou ao Demo os insensatos, convalesceu?..........................................................
Dou ao Demo o povo asnal, Morreu.
Que estima por cabedal, À Bahia aconteceu
Pretos, mestiços, mulatos. O que a um doente acontece:
4 Cai na cama, e o mal cresce,
Quem faz os círios Baixou, subiu, morreu.
mesquinhos?............................................. 9
Meirinhos. A Câmara não
Quem faz as farinhas acode?.................................................... Não pode.
tardas?...................................................... Guardas. Pois não tem todo o
Quem as tem nos poder?............................................ Não quer.
aposentos?.................................................... É que o Governo a
Sargentos. convence?...................................... Não vence.
Os círios lá vêm aos centos, Quem haverá que tal pense,
E a terra fica esfaimando, Que uma câmara tão nobre,
Porque os vão atravessando Por ver-se mísera e pobre,
Meirinhos, guardas, sargentos. Não pode, não quer, não vence.
5 À CIDADE DA BAHIA.
E que justiça a (MATOS, Gregório de.2010)
resguarda?......................................................
O próprio título do poema Juízo anatômico
Bastarda.
É grátis dos achaques que padecia o corpo da República,
distribuída?................................................................ em todos os membros, e inteira definição do que
Vendida. em todos os tempos é a Bahia já chama a
Que tem, que a todos atenção para uma análise detida: a República é
POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA 187

a reconstituição de um corpo e, crítica, escárnio, insensibilidade e comiseração


consequentemente, os membros são seus órgãos ou compaixão.
que devem fazer esse corpo funcionar. No lapso Na crítica, aponta-se a falha de maneira
temporal entre Monarquia e República, mesmo negativa, comparando com um padrão
o poeta baiano vivendo num período normalmente esperado nas mesmas situações. O
monárquico e prevendo, como consequência escárnio consiste no humor como critério de
natural, a sua derrocada e o surgimento da explicitação de uma atitude que frustrou a
República, os males que afligiam a Monarquia expectativa de quem assumiu determinado
seriam os mesmos a afligir a República. papel. Escárnios mais sofisticados utilizam-se
À grande vítima, o povo, em especial das da ironia, da sátira, dentre outros mecanismos
camadas mais baixas, a classe dominante da linguagem, para o mesmo fim, como no
determina a falta da verdade e da honra, poema modernista trazido a título de ilustração.
restando a vergonha. Na insensibilidade, não damos importância à
Ao longo do poema, com maestria, o poeta falha, ignorando tanto o ato quanto o indivíduo
baiano descreve um processo histórico da Bahia por ela responsável. Por fim, com a
no século XVII, caracterizando-o com ricas comiseração, ou a compaixão, colocamo-nos,
figuras de linguagens, como as metáforas e as hipoteticamente, no lugar daquele que falha, em
antíteses. um ato de empatia, lamentando o fracasso
A ironia colonial, em conjunto com a sátira, ocorrido.
constitui elemento de pura nitroglicerina à É muito claro quando Gregório de Matos
poesia de Gregório de Matos, que descortina denuncia os que fazem da República a extensão de
uma dicotomia, no ser humano, de importância seu patrimônio particular, violando a expectativa
primitiva ao entendimento do arcabouço das de cooperação criada pelo Contrato Social.
ações do homem: vergonha, vergonha... O
3 Considerações Finais
“Epigrama” aponta ações de corrupção que
parecem intrínsecas ao corpo baiano da Pode-se perceber, portanto, que Gregório de
República brasileira à época da narrativa Matos, na verdade, suplicava, em seu poema,
poética. Qualquer semelhança com a situação pela existência do mínimo ético, pois, ali, ele
política contemporânea do Brasil se trata de clamava por valores morais dos quais carecia
mera coincidência. (ou carece?) a sociedade analisada. Entretanto o
Na primeira estrofe, entre outros que ele, indiretamente, canta, ao declarar Numa
substantivos, o poeta destaca “vergonha”, cidade onde falta Verdade, honra, vergonha, é
advinda da falta de autoestima da população sobre a importância de garantir a estrutura ética
pelo fracasso da classe dominante no exercício mínima, para formar indivíduos autônomos e
de papéis de poder que deveriam beneficiar o sensíveis à noção de as atitudes cooperativas
povo. serem essenciais à vida em comunidade.
Na segunda estrofe, o poeta baiano expõe, A sátira em verso de Gregório de Matos é um
não só a mera incapacidade de os consortes jogo astuto de disfarces, que não passa
públicos exercerem papéis particulares despercebido a quem conhecer as várias linhas
similares, mas, principalmente, a incapacidade da poética satírica do autor. Consciente da
total em participar da estrutura orgânica da complexidade e importância desta atitude de
sociedade delineada, já que visam, apenas, ao espírito e deste modo de expressão, o poeta
“negócio”, à “ambição” e à “usura. reflete com alguma frequência sobre o género
É notório que a vergonha “simples” atua no ou sobre a pulsão e a tonalidade satíricas.
campo individual. Desse modo, a falha no Gregório de Matos constrói uma imagem e
exercício de um ofício, ou numa atividade uma reputação de persona satírica: um génio
realizada por um indivíduo, gera efeitos satírico que, face a uma constante exigência de
bastante distintos dos presentes no fracasso no atuação, não pode desviar-se do imperativo de
exercício da vida pública em geral, o qual incita proclamar a autonomia da sua vontade e razão.
a vergonha “moral”. Não falta quem, a propósito, por exemplo, da
A simples inabilidade ao exercer um chegada à Bahia de “Pedralves”, lhe peça “alguma
determinado ofício, ou atividade, não se trata de sátira honrada”, ou lhe rogue uma “sátira em
um problema moral, podendo gerar diversos louvor” (MATOS, 1989, pp. 144 e 177).
sentimentos de repulsa aos espectadores: A teoria da sátira de Gregório de Matos,
POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA 188

defendida na sua poesia, é dialética e CURTIUS, Ernst R. Literatura europeia e


programática. O poeta elogia a arte da sátira Idade Média latina. Tradução de Teodoro
enquanto arte da palavra ao serviço da ética e Cabral (com colaboração de Paulo Rónai). São
insurge-se contra aqueles que não se indignam Paulo: Editora Universidade de São Paulo,
contra a mentira e a hipocrisia: 2013.
O néscio, o ignorante, o inexperto,/ Que não DE LA TORRE-UGARTE-GUANILO, MC. A
elege o bom, nem mau reprova,/ Por tudo pesquisa na literatura. São Paulo: Escola de
passa deslumbrado, e incerto.// [...]//Diz logo Enfermagem da Universidade de São Paulo;
prudentaço, e repousado,/ Fulano é um 2008.
satírico, é umlouco,/ De língua má, de
coração danado.// Néscio: se dissoentendes DUARTE, P. Estio do Tempo: Romantismo e
nada, ou pouco,/ Como mofas com riso, e estética moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
algazarras/Musas, que estimo ter, quando as São Paulo: Iluminuras, 1995.
invoco?// Se souberas falar,também falaras,/
Também satirizaras, se souberas,/ E se foras FICHTE, J. G. A doutrina-da-ciência de 1794
Poeta, poetizaras. (MATOS, 1989, p. 294) e outros escritos. Seleção de textos,
A sátira, na sua constituição ao mesmo GAGNEBIN, J.M. Nas fontes paradoxais da
tempo antropológica e axiológica, obriga a crítica literária. Walter Benjamin relê os
refletir sobre os erros, as perversidades e as românticos de Iena. In: SELIGMANN-SILVA,
injustiças; por isso, num tempo de crise de M. (org.). Leituras de Walter Benjamin. São
valores, gera verdades para a vida. Paulo: FAPESP/Annablume, 1999. p.61-78
Diante do exposto, podemos perceber que MATTOS, Gregório de. Gregório de Mattos. In:
a categoria da sátira no poema é marca MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira
bastante forte na crítica dos poemas de através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2004,
Gregório de Matos, pois toma o satírico como p.39-52.
meio para denunciar as irregularidades de
uma sociedade, em que se vive à mercê da NOVALIS. Pólen. Fragmentos, diálogos,
administração da nobreza, mas também monólogo. Tradução, apresentação e notas de
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
ridicularizar a passividade da população e a
Iluminuras, 2009.
corrupção da Igreja. Desse modo, o soneto se
constrói a partir dessa insatisfação social e PAZ, Octavio. O arco e a lira. (Trad. Olga
política, e é por meio dele que o eu-satírico Svary) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
expõe sua indignação em relação às condições PAZ, Octavio. Signos em rotação. (Trad.
em que se encontrava a Bahia. Sebastião Uchoa Leite) São Paulo: Perspectiva,
Referências 1972.
PERES, Fernando da Rocha. Febre Terçã.
ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar-comum: Salvador: corrupio, 2000, p. 140.
alguns temas de Horácio e sua presença em
português, São Paulo: Editora Universidade de PERES, Fernando da Rocha. Gregório de
São Paulo, 1995. Mattos e Guerra: uma re-visão biográfica.
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e PERES, Fernando da Rocha. Memória da Sé.
Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. Salvador: secretaria da Cultura e Turismo do
Estado, 1999, p. 255.
BOSI, Alfredo. “Entrevista a Rinaldo Gama:
Poesia como resposta à opressão”. In: Revista PERES, Fernando da Rocha. Salvadolores ou
FAPESP, ed. 87. São Paulo, maio de 2003. coisas de amor. Salvador: Égua Dor, 2004,
p.45.
BOSI, Alfredo. “Posfácio – A poesia é ainda
necessária?”. In: O ser e o tempo da poesia. Salvador: Ed. Macunaíma, 1983, p.121.
São Paulo: Cia das Letras, 2010. SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética
COSTA-LIMA, L. Limites da voz: do Homem. Trad. Roberto Schwarz
Montaigne, Schlegel, Kafka. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2005
POESIA COMO INSTRUMENTO DE RESISTÊNCIA 189

SCHILLER, Friedrich. Acerca do Sublime. In:


Teoria da Tragédia. Trad. Flavio Meurer. São
Paulo: EPU, 1991b.
SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e
sentimental. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo:
Iluminuras, 1991a.tradução e notas de Rubens
Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.

********
Disponível on-line em selufma.com.br

ISBN: 978-65-5363-027-7

PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA


OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER
Deyse Gabriely Machado Brito104 • Cristiane Navarrete Tolomei105

RESUMO: Tendo em vista como o dentro dos poemas; refletir como os poemas
patriarcalismo é uma marca muito presente dentro apontam para o patriarcalismo como um processo
da literatura brasileira, e mais especificamente, antigo que ainda reverbera; e analisar como os
muito enfática no âmbito da literatura versos de resistência apontam para a existência da
maranhense, muitas escritoras do Estado colonialidade do ser e do poder. Para tanto, foram
acabaram passando despercebidas ou acabaram utilizadas como aporte teórico as autoras Saffioti
esquecidas com um tempo, o que fez com que a (1987), Lugones (2020) e Segato (2021).
escrita de autoria feminina no Maranhão fosse
enfraquecida, não por falta de autoras, mas devido Palavras-chave: Literatura maranhense; Autoria
ao patriarcalismo excludente. Diante de tal fato, feminina; Poesia de resistência; Rita de Cássia.
felizmente, tem existido um movimento
acadêmico em direção a uma revisão 1 Introdução
historiográfica literária que tem resgatado muitos A literatura, para além do intuito de deleite e
nomes de mulheres que são de suma importância contribuição artística, acaba por ser uma
para as letras maranhenses, no entanto, essa mimesis da realidade, isso porque é inscrita em
movimentação tem atingido pouco os escritos de um tempo histórico o que leva a extrair
autoria feminina contemporâneos fazendo com situações e contextos que fazem parte da
que esses continuem marginalizados, e é nesse história, identidade, e cultura, de modo a
sentido que este trabalho busca apresentar e registrar na ficção prosaica e no lirismo de
analisar a obra de uma maranhense versos percepções sobre o mundo, dentro da
contemporânea que ainda é pouco revisitada: Rita particularidade mimética e artística do literário.
de Cássia Oliveira. Além de Rita de Cássia fazer Desse modo, o texto literário pode apresentar
parte de um grupo marginalizado, suas poesias dupla função: o deleite da leitura e de reflexão
refletem o patriarcalismo hegemônico e a da função social.
necessidade de se reafirmar como mulher em uma Pensando na influência dialética que a
sociedade que costumeiramente a silencia, historicidade pode exercer dentro de uma cultura
constituindo assim uma resistência que faz com e é refletida também no âmbito literário, a partir
que seja possível que se realize uma leitura a luz da teoria antropológica-social da decolonialidade,
do feminismo decolonial. Dessa maneira, o este trabalho se propõe a pensar como a hierarquia
trabalho está pautado em uma pesquisa entre dominadores x dominados advém do
bibliográfica de cunho qualitativo em que o arquétipo colonizador x colonizado, o que leva a
objetivo geral consiste em fazer uma leitura consistência da colonialidade mesmo na ausência
decolonial dos poemas “Renascer” e da política decolonial.
“Concessão”, os quais estão na obra (RE)Nascer Partindo dessa questão, nota-se que a
Mulher (1983) de Rita de Cássia Oliveira; quanto literatura brasileira, principalmente a que está
aos objetivos específicos pretendeu-se perceber dentro do cânone, evidencia a dominação
como são problematizadas as categorias de gênero patriarcalista e elitista herdadas das relações do

104 105Doutora e professora Programa de Pós-Graduação em


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras
(PGLB-UFMA); Universidade Federal do Maranhão. E- Letras (PGLB-UFMA); Universidade Federal do
mail: deysemb19@gmail.com. Maranhão. E-mail: cntolomei@yahoo.com.
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 191

processo de colonização que houve no Brasil - ainda reverbera; e analisar como os versos de
e na América Latina como um todo -, tendo em resistência apontam para a existência da
vista que há a supremacia da figura que atende colonialidade do ser e do poder.
pelo perfil de homem, branco, burguês, e pater
2 Teoria decolonial e a persistência da
familias 106 , sendo esse, segundo a lógica
colonialidade de poder e de gênero
colonial, o indivíduo que melhor atende a uma
capacidade cívica e pública, de modo a excluir Tendo em vista a ampla gama de vertentes
os “dominados” que fogem desse padrão. que teorizam a questão do período colonial e o
Tendo em vista os privilégios que dispõem o que o sucedeu, faz-se preliminar discorrer como
esteriótipo “padrão” acima elencado - sendo esse a teoria decolonial encara esse evento histórico
o principal dominador e sujeito que reverbera a que continua a repercutir em nossa sociedade e
colonialidade -, pretende-se apontar sob uma nossa literatura, como mimesis da realidade
leitura decolonial, em especial a colonialidade de social, acaba por absorver.
gênero. A partir dessas questões, este trabalho se Quando se refere à colonização, logo se pensa
propõe a pensar a literatura de autoria feminina, no processo histórico-político-social que se
mais especificamente a literatura escrita por desenvolveu principalmente na América Latina
mulheres no Maranhão, tendo em vista que durante o século XVI, estando esse acabado, para
apesar de o Maranhão está num processo nós brasileiros, no final do século XIX. No
constante de revisitação historiográfica, nota-se entanto, esses 300 anos sob o regime colonial
que existe pouco envolvimento de escritoras constituíram valores e percepções que se
ainda contemporâneas, que também precisam ser encravaram em nossa sociedade e ultrapassam a
revisitadas no sentido de terem sua obra política da colonização, sendo as marcas,
conhecida e lida. consequências e continuidade dos crimes,
É nesse sentido que este trabalho busca chamados pela teoria decolonial de colonialidade:
apresentar e analisar a obra de uma maranhense Independência, todavia, não necessariamente
contemporânea ainda pouco explanada no implica descolonização na medida em que há
ambiente acadêmico e literário lógicas coloniais e representações que podem
maranhense/nacional: Rita de Cássia Oliveira. continuar existindo depois do clímax
A escritora além de carregar a marginalização específico dos movimentos de libertação e da
por ser mulher, carrega os preceitos de ser conquista da independência. Nesse contexto,
mulher e negra, fatores que acabam sendo decolonialidade como um conceito oferece
refletidos em suas poesias que problematizam o dois lembretes-chave: primeiro, mantém-se a
patriarcalismo hegemônico e a necessidade de colonização e suas várias dimensões claras no
horizonte de luta; segundo, serve como uma
se reafirmar como sujeito em uma sociedade
constante lembrança de que a lógica e os
que costumeiramente a silencia. legados do colonialismo podem continuar
No intuito de resgatar e desvelar seus escritos existindo mesmo depois do fim da
assim como tecer comentários sob a teoria colonização formal e da conquista da
decolonial, para este trabalho foram selecionados independência econômica e política.
os poemas Concessão e Renascer que estão na (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 32).
sua obra (RE)Nascer Mulher (1983). Desse Partindo dos povos da Europa e suas
modo, este trabalho pautado em uma pesquisa
conquistas através da colonização das terras e
bibliográfica sob uma abordagem de cunho
territórios ainda no século XVI, acabam por
qualitativo estabelece como objetivos, o objetivo
dominar também os povos e assim invadir o
geral de realizar uma leitura decolonial dos
pensamento, o conhecimento e a cultura que
poemas Renascer e Concessão, os quais estão na
possuíam. Ao se apropriar do ensejo de
obra (RE)Nascer Mulher (1983) de Rita de
“domesticação” e civilização dos nativos e
Cássia Oliveira; quanto aos objetivos específicos escravizados, o caráter de violência e intimidação
pretende-se perceber como são problematizadas
dos europeus é disfarçado a partir do discurso
as categorias de gênero dentro dos poemas;
pautado na condescendência, conceito abordado
refletir como os poemas apontam para o pela antropóloga Susana de Castro (2020) a qual
patriarcalismo como um processo antigo que

106
Termo utilizado pela antropóloga Rita Segato em vez desconhecida, mas sua ‘respeitabilidade’ como chefe de
de heterossexual, isso porque “sua vida sexual é família pode ser comprovada”. (SEGATO, 2021, p. 109).
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 192

aponta que o colonizador argumenta que a analisar os escritos de Rita de Cássia, mulher
exploração dos povos tidos como inferiores, na negra em um estado marginalizado, que se
verdade consistiria em um processo de “salvá-los” propõe a pensar uma das principais e terríveis
da barbárie em que viviam. faces da colonialidade: a colonialidade de
A perspectiva em que a colonialidade se gênero.
alonga para além da colonização é de suma Ao evidenciar o construto social de
importância para atender a decolonialidade, colonizador x colonizado que ainda persiste,
principalmente quando grupos que outrora pensa-se o preconceito e a sobreposição
foram colonizados continuam a experimentar patriarcal como fatores não proporcionados a
traços da história como presente. E assim, partir dos fenótipos, mas sim por uma ordem
problematiza-se o fato de a colonialidade ser histórica que se torna estrutural e delineia as
marca preeminente da modernidade, de modo visões entre aqueles que são tidos como
que continua a utilizar-se dos fenótipos “dominados” e “inferiores”, tal construção
referentes à cor da pele negra ou indígena como social é afirmada por Saffioti como conceito de
símbolo de um ser culturalmente, uma “profecia auto-realizadora”, isto é,
espiritualmente e ontologicamente inferior, “negros e mulheres, assim como todas as
mesmo que exista a negação ou inconsciência categorias sociais discriminadas, de tanto
desses preconceitos, o que fomenta o fato de o ouvirem que são inferiores aos brancos e aos
preconceito ser de ordem estrutural. homens, passam a acreditar em própria
É pensando em como se ergue o colonizador ‘inferioridade’”. (SAFFIOTI, 1987, p. 29).
na figura do europeu o qual atende pelas Embora Saffioti não esteja circunscrita no
características de homem, branco, burguês e círculo de autores decoloniais, a autora em seus
pater familias, que se pensa como o sujeito que estudos problematiza as construções de
carrega esse padrão atualmente atende aos superioridade em um mundo capitalista, de
ideais para projetos cívicos e públicos dentro da modo que percebe a subalternidade racial e de
nossa sociedade, o que atesta a discussão que a gênero que insiste na inferioridade dos sujeitos
colonialidade é um fenômeno amplo que ainda não-normativos.
é reverberado em diversas esferas da vida Desdobrando sua pesquisa na figura
social. Desse modo, a teoria decolonial surge feminina, a autora aponta como uma das formas
como movimento de resistência em que procura de potencializar a inferioridade social da mulher
evidenciar os traços da colonialidade ao mesmo se dá pelos preconceitos históricos que são
compasso que procura desfazer-se dessa: herdados e transmitidos através da educação
A teoria decolonial, [...] criticamente reflete
formal e informal de geração a geração, o que
sobre nosso senso comum e sobre implica a nossa afirmação da construção da
pressuposições científicas referentes a tempo, inferioridade da mulher se desenvolver a partir
espaço, conhecimento e subjetividade, entre do sistema colonial na modernidade.
outras áreas-chave da experiência humana, A antropóloga Rita Segato (2021) aponta
permitindo-nos identificar e explicar os que o que se existia antes da colonização era um
modos pelos quais sujeitos colonizados sistema patriarcal de baixa intensidade, no
experienciam a colonização, ao mesmo entanto, “quando foram colocados sob a pressão
tempo em que fornece ferramentas da colonização, a influência da metrópole e da
conceituais para avançar a descolonização.
república exacerbou as hierarquias já existentes
(MALDONADO-TORRES, 2018, p. 33).
(as de casta, status e gênero como um tipo de
A colonialidade, como “herança” da status), que se tornaram autoritárias e
colonização acaba por determinar os eixos de perversas.” (SEGATO, 2021, p. 95), o que
poder e dominação as quais abrangem o gerou o que a autora chama de patriarcado de
controle de raça, gênero, trabalho, alto impacto, o qual ampliou a capacidade de
subjetividade e intersubjetividade, que dano, apontando para novas e particulares
reproduz o que Quijano (2005) intitula de formas de agressão a atingir a subjetividade,
colonialidade de poder. corporeidade e desapropriação da figura
A partir dessa discursão de situar o intuito feminina no mundo moderno. Assim, à medida
da teoria decolonial e dialogando com o objeto que a subjetividade das mulheres de cor é a mais
de estudo desse trabalho, devido tratar de negligenciada, seus corpos são os mais
questões de gênero e de raça ao se propor a supersexualizados e explorados.
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 193

Atendendo-se a essas considerações é de Maria Lugones (2020) aponta como a


grande valia ressaltar como a inferiorização colonialidade de poder gera a colonialidade de
perpetuada na modernidade produz uma gênero, e a fim de superá-lo conceitua o
opressão ainda mais enfática quando os feminismo decolonial.
preceitos de raça e classe estão circunscritos a Desse modo, o objeto desse trabalho ancora-
único indivíduo, de modo a existir o que se no feminismo decolonial para discorrer como
Lugones (2020) denomina de a literatura de autoria feminina enfrenta um
interseccionalidade. campo árido para seu desenvolvimento e
O conceito de interseccionalidade diz reconhecimento, sendo ainda mais enfático seu
respeito ao fato de os sujeitos atravessados por velamento quando se trata de escritos de
diversas condições de subalternidade, mulheres de cor que explicitam seu lugar social
encontram-se na mais baixa hierarquia social e a busca pelo poder da palavra. É nesse sentido
possível, devido ao fato de quando se fala em que se resgata a poesia de Rita de Cássia
mulher, pensa-se especificamente a mulher Oliveira, sendo essa mulher negra, dentro da
branca, e quando se fala em negro, pensa-se o literatura maranhense, a qual é tão apegada aos
homem negro, o que faz com que no conjunto dogmas “tradicionalistas” e costumeiramente
de mulher negra, haja um vazio. deixa os escritos femininos à margem de
Dessa forma, ao considerar que as mulheres de explanação e reconhecimento.
cor107 são interseccionadas por questões de classe, Aliando a teoria decolonial e a necessidade da
gênero, sexualidade e raça, existiria uma espécie constante revisão que o próximo tópico se propõe
de pirâmide em que em primeiro lugar se a pensa como as instituições literárias acabam por
encontraria o homem branco, seguido da mulher ser um espaço exclusivista que tende a carregar
branca, para logo após vir o homem de cor, e por vestígios da colonização, para por fim analisarmos
último, a mulher de cor, senda essa a maior vítima os escritos de Rita de Cássia.
de todas as violências no mundo moderno.
3 Vestígios da colonialidade no âmbito
Dada essas camadas extras que implicam
literário
uma segregação e opressão mais acentuadas que
o feminismo ocidental, predominantemente Tendo em vista a considerável supremacia
formado por mulheres brancas, não se torna que atende o estereótipo de homem, branco,
suficiente para atender as questões que burguês e pater famílias continua a ser
envolvem a raça e a discriminação sofridas perpetuada por toda esfera social, esse
pelas mulheres de cor da América Latina. indivíduo acaba por obter proeminência
A necessidade de um feminismo específico hegemônica também no âmbito literário, tendo
para a América Latina advém do fato do modelo em vista que a literatura se desenvolve dentro de
de colonização em que foi instituída a distinção um contexto social-cultural, o que reflete os
hierárquica entre humano e não humano que dogmas da colonialidade. Noelly Novaes
acompanha a relação entre o colonizador e o Coelho (1991, p. 95) argumenta que:
colonizado, estando à mulher de cor circunscrita Ninguém duvida que a Literatura ou a Arte em
ao que Lugones (2020) chama de diformismo geral, nada mais são do que formas especiais
sexual, sendo essa uma fêmea “não-humana- de relações que se estabelecem entre os
por-mulher”, o que implica não somente homens e suas circunstâncias de vida, [...] a
parâmetros de dominação, mas de forma ainda natureza da Arte depende do que acontece no
mais violenta, acarreta a desumanização. contexto histórico, econômico e social, de
Estando a mulher de cor sob essas condições classe ou de dominação, em que está “situado”
e o feminismo eurocentrado não conseguindo o artista ou o escritor. Nesse sentido, não é
abranger as particularidades da América Latina, possível pensarmos a criação artística ou

107 O uso termo “mulheres de cor”, cunhado nos Estados coalizão orgânica entre mulheres indígenas, mestiças,
Unidos por mulheres vítimas da dominação racial, como mulatas, negras, cheroquis, porto-riquenhas, siouxies,
um termo de coalizão contras múltiplas opressões. Não se chicanas, mexicanas, pueblo – toda a trama complexa de
trata apenas de um marcador racial ou de uma reação à vítimas da colonialidade do gênero, articulando-se não
dominação racial, ele é também um movimento solidário enquanto vítimas, mas como protagonistas de um
horizontal. “Mulheres de cor” é uma frase que foi adotada feminismo decolonial. A coalizão é uma coalizão aberta,
pelas mulheres subalternas, vítimas de diferentes com uma intensa interação intercultural. (LUGONES,
dominações nos Estados Unidos. “Mulheres de cor” não 2020, p. 80).
propõe uma identidade que separa, e sim aponta para uma
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 194

literária, em sua verdade maior, sem Felizmente, desde o início da vida literária
pensarmos na Cultura em que ela está imersa. maranhense houveram mulheres a escrever, e de
Desse modo, o sujeito que atende ao padrão modo ainda mais contestativo ao cânone, já
social acaba por ter um lugar muito mais incidiam escritos de mulheres de cor que
acessível e de maior visibilidade dentro da embora tenham passado muito tempo
historiografia literária brasileira, de forma que esquecidos, vêm sendo resgatados, como é o
imperam os escritos desses, assim como seus caso das escritoras Maria Firmina dos Reis e
valores e percepções, obtendo assim o lugar de Mariana Luz. Esse panorama brasileiro, e mais
construtor do cânone e da representação cultural especificamente maranhense, revela como a
e literária brasileira, sendo o âmbito literário história das mulheres tem buscado mudança e a
uma entre tantas instituições a se contaminarem quebra aos paradigmas patriarcais. Passa-se por
pelas arraigas da colonialidade. Esse um caminho que vai do silêncio ao poder da
exclusivismo é atestado e exposto pela teoria palavra, da tomada de consciência frente à
decolonial a qual aponta que sociedade, no entanto, essa movimentação tem
atingido pouco os escritos de autoria feminina
quando um termo se torna “universal”, contemporâneos fazendo com que esses
porque agora representa generalidade, o que continuem marginalizados.
era inicialmente uma hierarquia se transforma
em um abismo onde o “outro” não tem lugar
Desse modo se faz importante revisitar
na grade. Assim, a estrutura binária é também a escrita da autora contemporânea Rita
obviamente diferente da dual. A estrutura de Cássia Oliveira, sendo mulher de cor na
dual é uma estrutura de dois, enquanto a sociedade maranhense, a escritora que também
estrutura binária é uma matriz de “um” e seus é doutora em filosofia, desde cedo esteve ligada
outros. (SEGATO, 2021, p. 108). à militância de esquerda, na política estudantil,
Assim, os escritos de autoria feminina, quando ainda estudante de Filosofia, na política
negra, homossexual, entre outras características partidária e ideológica, além de que tem
que se encontram fora do padrão, por muito participado ativamente de comunidades que
tempo acabaram sendo invisibilizados, buscam o bem-estar social, como Centro de
despercebidos, ou até mesmo ignorados. Cultura Negra, Grupo de Mulheres da Ilha,
Felizmente, de modo ainda recente, vários Comissão de Justiça e Paz, entre outros
escritos têm sido recuperados e aos poucos, (CÔRREA et. al, 2011), o que implica o seu
mesmo fora do padrão canônico, tem ganhado autoconhecimento como ser social e a
seu espaço dentro da literatura nacional. representação da mulher que tem o poder da
Dentro desse panorama que envolve os palavra e expressa sua condição como mulher
escritos das mulheres, a partir do momento em negra sob lirismo poético que levam ao
que se visa à ampliação do reconhecimento das encantamento e à reflexão.
manifestações literárias de autoria feminina, já 4 Entre a Concessão e o Renascer para ser
se realiza um processo de descontinuidade e mulher: leitura a luz do feminismo
subversão do próprio cânone e das estruturas de decolonial
poder, o que tem resultado, mesmo que aos
Diante do próprio confronto que é escrever
poucos, na territorialização do sujeito feminino
em um ambiente elitista/patriarcal, Rita de
no espaço já ocupado tradicionalmente pela
Cássia Oliveira é uma das vozes dissonantes do
dominação masculina, em que para tanto foram
Maranhão que resiste de maneira dupla: tanto
necessários à ruptura e o anúncio de uma
pelo próprio ato de escrever, quanto pela
alteridade em relação à visão de mundo
temática trazida em seus poemas, o que se faz
convencionada (ZOLIN, 2005).
de suma importância e coopera para o
Tratando da literatura maranhense, como parte
enriquecimento das letras do estado, no entanto,
da literatura brasileira num todo, essa também está
sua obra ainda permanece velada e pouco
inserida nos domínios de tradição e patriarcado de
conhecida, tendo em vista que a obra (Re)nascer
forma que majoritariamente estima seu Patheon
mulher publicada em 1983 ainda é pouco
que trouxe o epíteto de Atenas Brasileira, em que
explorada e destituída de trabalhos de maior
se sobressaem, igualmente, o homem, branco,
fôlego, sendo encontrada unicamente sob a
burguês e pater famílias, o que evidencia a
listagem de Côrrea e Pinto (2011), quase 40
colonialidade de poder e de gênero sobre a escrita
anos depois de sua primeira publicação.
de autoria feminina.
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 195

No intuito de explorar a obra e abrir espaço veementemente pelos protótipos machistas e


para diálogos futuros, para este trabalho foram coloniais que se enraizaram culturalmente em
selecionados dois poemas que são intitulados nossa sociedade. Converte-se esse modelo no
Concessão e Renascer, os quais sugerem a ditado popular “branca para casar, mulata para
mudança de paradigma da mulher que tem fornicar, negra para trabalhar”, o qual é
necessidade de se sentir aceita à que renasce na facilmente reconhecido e resume a condição da
sua própria aceitação, de modo que trazem colonialidade dos corpos femininos, tendo em
“uma abordagem contundentemente feminina, a vista que implica a sua supersexualidade, à
vislumbrar a mulher em seus anseios, suas medida que destitui o sujeito do “mérito” de
relações com o repressivo mundo exterior” companheira, o que implica o dimorfismo
(CORRÊA et al. 2011, p.9): sexual, que aponta a fêmea sexualizada como
Concessão
apetrecho de satisfazer os desejos e trabalhos,
mas não como ser para se constituir o padrão
... Se me queres, social de família.
se me queres... Seguindo essa lógica que põe em voga a
aceita-me mulher. colonialidade de gênero, no poema Concessão,
Mulher semente, o homem é metáfora para a própria sociedade
mulher espinho, em que a mulher está inserida, que
negada pelo teu machismo, costumeiramente a põe sob formas de destituir
porém refeita pelo tanto de homem sua subjetividade e seu próprio ser, mas garante
que és.
a apropriação do seu corpo como objeto de
... Se me queres,
sou começo,
trabalho e de prazer.
infinitude, Corrêa (2011, p. 9) argumenta que “a autora
chegada. reflete sobre essa submissão da mulher e sobre
Se me queres... as convenções interpostas entre esta e o homem,
vem, reivindicando o direito de ser vista no mundo
mas vem manso, como sujeito e não como objeto”, o que implica
morno, a desconstrução de profecias autor realizadoras
moreno... que tendem a colocar a mulher como sujeito
agasalhar-te sob as minhas asas de abelha-rainha. inferior que precisa da reafirmação de outrem, o
Se me queres... (OLIVEIRA 1983, p.10)
que é desconstruído no final do poema, em que
O poema Concessão composto em versos o eu lírico não se despe da submissão e se ergue
livres e sob uma estética neoconcretista como ser imperioso a partir da metáfora da
traduzem visualmente a quebra de paradigma “abelha rainha”.
em um estado beletrista costumeiramente aliado Como resposta ainda mais enfática para o
a escritos de formas tradicionais fixas, o que machismo/patriarcalismo frente à sociedade, o
aponta o primeiro ponto de subversão da escrita poema Renascer retrata a ferida da mulher
de Rita de Cássia. frente ao processo histórico de opressões e
Além disso, o poema apresenta a ideia da silenciamentos e sua indignação diante da
necessidade de aceitação por parte do eu lírico perpetuação desses preceitos, de modo que
feminino, de modo que os versos sugerem um aponta a necessidade urgente e latente de se
sentimento cordial afetivo que perpassa pela livrar das amarras que prosseguem deixando a
mulher e pelo seu interlocutor masculino sob mulher no âmbito da subalternidade:
diferentes intensidades, tendo em vista que o eu Renascer
lírico sugere uma aceitação incompleta. Desse Quero despertar o bem-me-quer da História.
modo, nota-se a mulher não como companheira, E cada folha amarelecida e carcomida
o cônjuge para se estabelecer matrimônio, mas pela sífilis do machismo,
como sujeito de desejo, em que se tem jogar no abismo do tempo.
unicamente o prazer e a subserviência ao E colocar não mais flores
homem como vínculo de obstinação. mas raízes fincadas por mãos calorosas
Por outro lado, aponta esse ser feminino e regadas não com as lágrimas
como consciente de sua posição que sugere mas com o suor de quem
lutou por ser inteira.
subalternidade por se colocar como “mulher
E, do segredo que o século me revestiu,
espinho”, a qual tende a ser negada quero ser berro cada vez mais forte,
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 196

mais audaz, convencionou que as mulheres de cor aceitem


e sair rasgando todas as bocas amordaçadas situações de colonialidade de gênero como se
pelo silêncio do bem-comportado. fosse natural ou mesmo um favor.
E não me degenerarei: serei pura. Outro ponto no poema que reflete a
Não quero ser só bandeira:
identidade da mulher de cor, diz respeito aos
antes, serei atos na práxis de um vir-a-ser
parido em convulsões de uma nova era. versos que apontam o eu lírico como um sujeito
E ressurgirei inteiramente mulher! feminino habituado ao trabalhado braçal, o que
(OLIVEIRA, 1983, p.9) pode ser atestado pela expressão que contrapõe
a submissão harmoniosa que sugere a imagem
Problematizando as questões levantadas no das flores, o fato de essa mulher sugerir a
poema segundo a teoria decolonial e do necessidade de ancorar-se nas “raízes fincadas
feminismo decolonial, pode-se questionar: quem por mãos calorosas”.
seria a figura “amaldiçoada” da história? Por que Desse modo as “mãos calorosas”
se precisa despertar um “bem-me-quer”? Quando simbolizam a ideia do trabalho pesado nos
se pensa a hierarquização de categorias de gênero, campo e nas lavouras que a mão de obra
é a mulher de cor, que encontra na intersecção de feminina negra submeteu-se, o que contraria a
raça e gênero o mais baixo lugar, sendo esse o ser própria ordem sexista de fragilidade feminina a
“amaldiçoado” história. qual era restrita às mulheres brancas, enquanto
A percepção da mulher de cor como esse ser as negras realizavam trabalhos másculos, o que
abominável é trazido no poema como uma aponta a subalternidade das mulheres de cor, as
herança histórica, trazida pelo registro de folhas quais sofriam a interseccionalidade de raça e de
amarelecidas, ultrapassadas, carcomidas, gênero, e ficavam fora da própria concepção de
apodrecidas, mas que não deixam de existir, o mulher, sendo o trabalho subalterno e braçal
que reflete a questão da colonialidade de gênero atribuído às mulheres de cor até hoje, como
que perpassa a história da colonização e se ressalta Carneiro (2020, p. 2):
instaura na atualidade.
Tal percepção é atestada pelos versos que se Mulheres negras, fazemos parte de um
seguem de modo que é trazida sob a metáfora forte contingente de mulheres, provavelmente
majoritário, que nunca reconheceram em si
da “sífilis do machismo”, isto é, tendo a sífilis
mesmas esse mito, porque nunca fomos
como uma doença sexual e transmissível, o eu tratadas como frágeis. Fazemos parte de um
lírico encara o machismo também como uma contingente de mulheres que trabalharam
doença sexual que constinua sendo transmitida de durante séculos como escravas nas lavouras
geração em geração, o que faz com que a ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras,
colonialidade de gênero continue a existir. prostitutas… (CARNEIRO, 2020, p.2).
Percebendo a continuidade e progressão
A problematização do colonialidade de
histórica como algo torpe para a figura
gênero nos versos de Rita de Cássia apontam
feminina, o eu lírico anuncia a necessidade de
como os preceitos adotados no sistema
se deixar essa doença para trás e jogar no
colonial/escravagista são repercutidos, de modo
abismo, o que evidencia como essa questão se
a prosseguir colocando as mulheres de cor numa
torna “ultrapassada” por ter sobrevivido por
posição de inferioridade e exploração nas
tanto tempo, de modo que se torna urgente o
diversas facetas da vida social. Além disso, a
livrar-se da herança patriarcal/colonial.
autora aborda como esse fato se torna um ponto
Ao apontar essas questões como direito, é
chave para a tomada de consciência e
levantado ainda um dever: não mais se deixar
instauração de um ambiente de luta, de modo
ser submissa. Através da metáfora de “não
que para evidenciar as feridas coloniais, as
colocar não mais flores”, tendo em vista que a
violências e opressões vigentes, o poema utiliza
flor é símbolo de brandura e harmonia, como é
o suor como símbolo de resistência.
apontado no dicionário de símbolos literários de
E dentro desse quadro de opressão que
Chevalier e Gheerbrant (2018, p. 437): “a flor é
silencia o sujeito feminino, a autora toma
o símbolo do amor e da harmonia que
propriedade da sua intersubjetividade que
caracterizam a natureza primordial”, o que
partilha de uma subjetividade coletiva ao
reflete uma crítica a condição de aceitar de
apontar nos versos o “segredo que o século me
forma condescendente esse patriarcado racista.
revestiu”, como modo de representar as vozes
Desse modo, é abordada a necessidade de
femininas veladas e silenciadas desde tanto
confronto em uma sociedade em que se
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 197

tempo, de forma que o eu lírico tomando presentes na sociedade colonial repercutem na


consciência das opressões que sofre ergue-se atualidade o que gera a colonialidade de gênero.
como individuo que não só pode, como deve ser A colonialidade de gênero vem a ser
ouvido, destituindo-se da submissão e do expandida de diversas formas inclusive no
silenciamento para ser “aceita”. âmbito literário, de modo que o cânone e os
E assim, não mais encoberta e abastarda, padrões beletristas apoiam, sobretudo, os
finalmente poder-se-ia ser o que se é: revelar- escritos que atendem ao hegemônico padrão de
se-ia na pureza de ser sua própria essência. homem, branco, burguês, pater familias,
Desse modo, o sujeito abandonaria a fazendo com que os escritos de autoria
condescendência que problematiza Susana de feminina, principalmente a autoria feminina
Castro, em se ter que aceitar como um favor as negra esteja sob uma condição marginalizada.
normas colonialistas/patriarcais de apontar os Desse modo, esse trabalho apoiou-se na
comportamentos e sujeições para mulher, e essa teoria decolonial, de modo mais específico ao
apenas aceitar de modo submisso, considerando feminismo decolonial, para trazer a tona os
como norma a ser seguida. escritos de uma mulher de cor da literatura
Na última estrofe, o eu lírico aponta que “não maranhense que tem sua obra pouco conhecida:
quero ser só bandeira”, ou seja, é refletido como a Rita de Cássia Oliveira. Os escritos de Rita de
tomada de consciência não se resume a um fluxo Cássia problematizam a opressão e o
somente teórico, e sim pensa como essas questões comprometimento da subjetividade da mulher
que envolvem a mulher de cor exige um de cor, dentro de uma sociedade que possui uma
movimento na prática no mundo social, de modo percepção arraigada aos preceitos sexistas e
que ao denunciar as condições de opressão, é racistas que repercutem ao longo da história, no
aberto o espaço para se refletir sobre essa conduta, intuito de trazer a reflexão sobre as opressões,
e assim mudar as práticas convencionadas, para para fomentar a tomada de consciência e o
culminar em uma nova era. desejo de mudança.
E a partir dos fatores denúncia-reflexão- Desse modo, este trabalho buscou cumprir
mudança o eu lírico afirma que pode com os objetivos de resgatar e desvelar os
“ressurgir”, isto é, ela não surge, esse sujeito já escritos de uma autora ainda pouco conhecida
existira assim, no entanto, com diversas ao selecionar os poemas Concessão e Renascer
amarras. Somente com o retirar dessas amarras, que estão na obra (RE)Nascer Mulher (1983) da
poder-se-ia ressurgir por inteiro como mulher, escritora Rita de Cássia Oliveira, sob a
referindo-se a retomada da subjetividade e da abordagem decolonial. Além do teor de
corporeidade de que foram desapropriadas. expandir a escrita da autora, problematizou-se
Desse modo o poema vem a refletir sobre as as categorias de gênero dentro dos poemas,
condições de opressão subjetivas que perpassa as refletiu-se como os poemas apontam para o
vivências da mulher de cor em uma sociedade que patriarcalismo como um processo antigo que
repercute dogmas racistas e sexistas em que se ainda reverbera, apresentando o lirismo de Rita
existe um sujeito mais afetado. A poesia de Rita de Cássia como forma de resistência por tocar
de Cássia dialoga sobremaneira com o feminismo em questões sociais que sugerem a denúncia e a
decolonial devido ao fato de ela ser uma necessidade de mudanças.
representante negra e problematizar a opressão
Referências
vivenciada, mas também sugerir a reflexão e
mudança, o que a torna uma grande potencial
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literário maranhense a ser explorado e difundido.
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5 Considerações Finais Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista
hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro:
Compreendeu-se ao término desse trabalho
Bazar do Tempo, 2020. 141-153.
que a teoria decolonial vem a trazer para o cerne
de discussões as hierarquias de poder que COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina
apontam para grupos dominadores e dominados no Brasil contemporâneo. Língua e Literatura,
que refletem a relação do colonizador e v. 16, n. 19, p. 91-101,1991.
colonizado, ao observar como a colonialidade
CORRÊA, Dinacy Mendonça; PINTO,
abrange as diversas esferas da vida social, nota-
Anderson Roberto Corrêa. Poetisas
se como os padrões racistas e sexistas muito
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 198

maranhenses contemporâneas. Revista


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