Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ANAIS DO
III SIMPÓSIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS DA UFMA
SÃO LUÍS
2022
Copyright © 2022 by EDUFMA
Revisão Os autores
Anais do III Simpósio de Estudos Literários da UFMA [recurso eletrônico] / organizadores, Rafael
Campos Quevedo, Gabriela Santana de Oliveira. — São Luís: EDUFMA, 2022.
200 p.
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-5363-027-7
1. Estudos literários. I. Quevedo, Rafael Campos. II. Oliveira, Gabriela Santana de.
CDD 809
CDU 82.09
Comissão Organizadora
Comissão Científica
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 8
SIMPÓSIO 1 - CAMPO E CIDADE NA POESIA: EXPERIÊNCIAS E CENAS DA
MEMÓRIA ............................................................................................................................... 9
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO ......................................................................... 10
TANIRA RODRIGUES SOARES
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA .......................................... 16
JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO ............................. 24
FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS
RUAS LISBOETAS .............................................................................................................................................. 33
VALCI VIEIRA DOS SANTOS
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO
DISCURSO LITERÁRIO..................................................................................................................................... 40
MARIA DAÍSE DE OLIVEIRA CARDOSO
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM.... 48
RENATA FERREIRA DE OLIVEIRA
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES
BRITTO................................................................................................................................................................... 53
GUILHERME DE OLIVEIRA DELGADO FILHO
SIMPÓSIO 2 - POESIA, OUTRAS ARTES, OUTROS SABERES .................................. 59
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO
POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ......................................................... 60
SCHEILA CRISTINA ALVES COSTA LEITE
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM
“TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA................................................................................... 66
MARIANE PEREIRA ROCHA
SIMPÓSIO 3 - A LÍRICA MARANHENSE ONTEM E HOJE ........................................ 73
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS
OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS .................................................................................................... 74
JOSÉ GOMES PEREIRA; BÁRBARA INÊS RIBEIRO SIMÕES DAIBERT
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE
FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA ............................................................................................. 82
MAURO CEZAR BORGES VIEIRA
UMA LEITURA POLÍTICA DE MISSAS NEGRAS, DE INÁCIO XAVIER DE CARVALHO ........... 92
PATRICIA RAQUEL LOBATO DURANS CARDOSO
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA
ROSA E MARIANA LUZ ................................................................................................................................. 100
GABRIELA DE SANTANA OLIVEIRA
SIMPÓSIO 4 - (PÓS)MODERNOS ETERNOS ................................................................ 113
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE
ANTONIO MACHADO .................................................................................................................................... 114
WALTER PINTO DE OLIVEIRA NETO • ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS
PÁGINA | 7
Apresentação
Há quem afirme que a poesia nasceu junto Para uns, a poesia deve espelhar a alma de
com o advento da própria linguagem humana e quem a escreveu. Estes buscam no poema a
que a humanidade teria se expressado primeiro sinceridade do sentimento. Por outro lado, certa
poeticamente para só depois usar a linguagem vez um poeta (que não foi apenas um, mas
para se comunicar e trocar informações. Sabe- vários) disse que o poeta é, acima de tudo, um
se que a poesia (no início sempre acompanhada fingidor.
do canto) esteve presente nas formas de A poesia já se uniu e já se divorciou de
evocação do sagrado (nos ritos e nos cultos praticamente todas as artes numa fecundíssima
primitivos) e até mesmo nos trabalhos agrícolas, promiscuidade. Para alguns, certos letristas de
como forma de mitigar o cansaço proveniente canções são poetas, para outros letra de música
do labor físico. é uma coisa e poesia é outra. Até o caçula das
A poesia já foi registro da formação cultural de artes, o cinema, andou em íntima relação com a
um povo (lembremos, por exemplo, da reverência poesia. Lembremos de um cineasta que em sua
dos antigos gregos a Homero). Já foi elemento fase surrealista disse que o cinema deveria
agregador de valores nacionais e também repúdio tornar-se poesia.
à ordem social. O poema se faz com palavras e não com ideias,
Já foi crítica mordaz aos costumes e jogo de respondeu Mallarmé ao pintor Degas. E, por fim,
obscenidades; expressão de sentimentos nobres já não surpreende, hoje, a declaração do antigo
e das angústias mais insondáveis. Já foi objeto professor que disse que a matemática é, no fundo,
decorativo, artefato de ourivesaria e já desceu pura poesia.
do monte Parnaso para habitar o lodo e o limo. Não nos enganemos: tudo já foi dito. Mas há
Desceu mais aquém, às órbitas do Inferno, onde formas diferentes de dizer do mesmo e também
encenou uma Comédia a que um poeta italiano do tudo. “Já fiz de tudo com as palavras. Agora
chamou posteriormente de “Divina”. eu quero fazer de nada”, disse o velho poeta
Essa mesma arte a que chamamos poesia já concreto e “quais são as palavras que nunca são
serviu à catequese de fiéis e também já flertou ditas” lembra-nos o saudoso letrista (ou seria
com Lúcifer. Isso a que chamamos poesia já poeta?) do rock nacional.
serviu para acariciar os ouvidos burgueses com Nunca houve civilização sem poesia e toda
a retórica do belo nos salões, nos saraus, mas cidade tem seus poetas. Nossa época, contudo,
também já nos legou o cáustico discurso do vive sob o signo da dispersão e os apreciadores
hediondo, como no célebre verso “escarra nessa da arte poética (leitores e escritores), bem como
boca que te beija” do visceral poeta paraibano. a Universidade, devem propor espaços de
A poesia já foi marginal, engajada, pretendeu fomentação, novas ágoras que possibilitem
não ser mais poesia, aboliu a metrificação, deu encontros dessa natureza. Esse foi o intuito da
sentença de morte ao verso e já se propôs, até terceira edição do SELUFMA cujos textos
mesmo, a banir a própria palavra do poema. Já apresentados nos Simpósios temos a satisfação
rejeitou falar das coisas e dos sentimentos para de registrar nesses Anais.
falar de si mesma e às vezes descambou para o Evoé a todos!!
silêncio da página em branco. Os organizadores.
PÁGINA | 9
SIMPÓSIO 1
Campo e cidade na poesia: experiências e cenas da memória
PÁGINA | 10
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: A obra poética de Paulo Corrêa caracterizada pela relação estabelecida entre os
Lopes, ainda pouco explorada no universo elementos da natureza e as transformações
acadêmico, e sem o devido reconhecimento em humanas, em que tais alterações servem como
sua cidade natal (Itaqui-RS), será abordada metáforas para a vida e suas modificações, ao
nessa comunicação a partir de uma breve permitir que a esperança ressurja das cinzas e
biografia da vida e obra do poeta. Serão favoreça a construção de novos caminhos e
enfocados alguns poemas que caracterizam sua horizontes, com viabilidade e capacidade de
singularidade poética centrada no cotidiano e na concretização, ou seja, que se tornem uma
singeleza de coisas que integram o viver e realidade possível.
conviver humano. Os títulos de suas
publicações sugerem a temática predominante Palavras-chave: Poesia; Natureza; Lirismo;
do poeta, isto é, uma poesia que reproduz Memória.
vivências humanas em contato com a natureza e
a busca pela eternização dessa vida terrena. 1 Breve Introdução
Dentre os títulos publicados, destacam-se: Augusto Meyer o definiu como um “poeta e
Poemas de mim mesmo (1931), Caminhos visionário”, com grandes olhos negros como se
(1932), Poemas da vida e da morte (1938), Um fossem “janelas abertas para o lado noturno da
caso estranho (1942), Canto de libertação vida” (1962, p. 8); já Guilhermino Cesar
(1943), entre outros. Todas as publicações estão destacou que, em sua maturidade, conseguiu
reunidas em Obra Poética de Paulo Corrêa “[...] captar aquilo a que tanto se esforçara por
Lopes (1958); nela, o poeta insere os seres atingir – a poesia essencial” (1958, p.9).
humanos nos mais variados contextos, ao Para Elvo Clemente, a poesia de Paulo
permitir que se vislumbre a possibilidade de Corrêa Lopes “[...] canta os fatos comuns da
mudança da realidade vivenciada, assim como existência dando-lhes um significado
percepções e ações de cada pessoa que se fazem transcendental”, isto é, apresenta sua
presentes em seus versos. São poemas que experiência poética em dois polos, sendo eles o
enfocam as nuances de lugares e tempos que temporal e o eterno (CLEMENTE, 1991, p. 14).
integram a memória afetiva do poeta, Com estas apresentações, podemos
oportunizando com isso que ressignificações considerar que Paulo Corrêa Lopes ainda é um
sejam realizadas e novas abordagens poeta sul-rio-grandense pouco conhecido, no
interpretativas renasçam do que está escrito. A entanto teve sua produção referendada por
poesia de Paulo Corrêa Lopes é carregada de teóricos literários expressivos e pelo seu
uma sensibilidade e de lirismo apurados, público leitor.
resultando numa poética que tem como fonte de Também cabe mencionar sua participação
inspiração a vida em sua dimensão mais singela, ativa no movimento literário do Rio Grande do
Sul ao lado de outros escritores, a partir de seu tendo sido colaborador em diversas revistas e
envolvimento em discussões a respeito do jornais do eixo Rio-São Paulo, além de ter
modernismo gaúcho, com a publicação de exercido o magistério de 1926 até os primeiros
soneto no manifesto modernista gaúcho (1930), meses do ano de 1929, na propriedade dos
na Revista Globo, ao lado de poetas como Albuquerque Lins, em São Paulo, ministrando
Ernani Fornari, Rui Cirne Lima, Augusto aulas de primeiras letras. Em agosto de 1929,
Meyer, Sílvio Soares, Vargas Neto, Pedro resolveu mudar-se definitivamente para o Rio
Vergara e Manoelito de Ornellas, entre outros Grande do Sul, mais precisamente para Porto
(SANSEVERINO, 2011). Alegre, onde residiu até o dia 09 de setembro de
Convém mencionar que a obra poética de 1957, data de seu falecimento. Tendo, em 19 de
Paulo Corrêa Lopes é pouco explorada no julho de 1939, casado com Íris Potthoff,
universo escolar e acadêmico, além de não ser resultando desta união o nascimento de seus
reconhecida em sua cidade natal. Com estas dois filhos: José Paulo e Antônio Luís.
informações preliminares, pretende-se abordar Dentre as atividades exercidas pelo poeta,
uma breve biografia da vida e obra do poeta para, pode-se destacar: funcionário da Comissão
posteriormente, enfocar alguns poemas que Rockfeller (1920), redator de jornais, redator e
caracterizem sua singularidade poética centrada gerente da Agência Star no Rio de Janeiro,
no cotidiano e nas pequenas coisas que integram prático de farmácia na cidade paulista de Casa
o viver e conviver humano. Branca e oficial administrativo da Secretaria do
Interior do Rio Grande do Sul. Paulo Corrêa
2 O Poeta Paulo Corrêa Lopes
Lopes converteu-se ao catolicismo quando tinha
Paulo Corrêa Lopes nasceu em 19 de julho 35 anos de idade e a partir desse instante,
de 1898 em Itaqui (RS) 2 , era filho de José tornou-se um católico fervoroso, religiosidade
Corrêa Lopes, natural de Itaqui, e de Maria bastante presente ao longo de sua produção
Dolores Musa Lopes, nascida em Virgínia, literária, como, por exemplo, neste trecho de
Estado de Minas Gerais. Em 1910, por ocasião Súplica:
do falecimento de seu pai, Paulo Corrêa Lopes,
Senhor, ouve minha súplica,
juntamente com sua mãe e seus irmãos, foram que sofri e andei por estradas
residir em São Paulo, onde iniciou sua vida indignas de teus passos.
estudantil no grupo escolar Prudente de Morais, Como, depois de tanta miséria,
na capital do Estado. Cabe ressaltar uma Ainda tive forças para me levantar?
peculiaridade estudantil de Paulo, uma vez que Foi a Tua misericórdia, Senhor, que me
segundo informações constantes em seus dados levantou do abismo fundo em que eu vivia
biográficos, ele somente aprendeu a escrever (LOPES, 1958, p. 175).3
aos doze anos de idade. A presença da temática da religiosidade em
Após ter concluído o primário, equivalente ao sua produção está relacionada a partir de
Ensino Fundamental na atualidade, ingressou na aspectos reflexivos e sentimentais, tais como a
Escola Normal, sendo diplomado em 1918. Com conexão do homem com uma divindade. Esses
idade adequada para prestar o serviço militar, poemas carregam em sua constituição a
Paulo retornou a sua cidade natal e ingressou no sensibilidade apurada de alguém que acredita
quartel, período que compreende os anos de 1920 em uma força maior e superior e se utiliza de
e 1921. Após essa permanência em Itaqui, suas palavras para expressar esse entendimento.
resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro. Essa Em Canto de gratidão, poema que integra a
mudança deveu-se ao fato do poeta almejar Coletânea Canto de libertação é possível
participar de um ambiente cultural efervescente identificar a religiosidade aliada ao cotidiano
que o possibilitasse um contato mais amplo e simples dos seres humanos. O poema inicia
dinâmico com novidades e assuntos em voga na nominando:
sociedade brasileira. Em seguida, mudou-se para
São Paulo, mas manteve seu círculo de amizades, Senhor, [...]
No tempo em que me afligi,
ampliando-o com outras pessoas relacionadas ao
No tempo em que procurei com as próprias mãos
ambiente literário. Resolver o meu destino
Paulo Corrêa Lopes foi um intelectual ativo,
2 3
Os dados biográficos foram extraídos dos textos de Cesar Mantida a grafia original.
(1958) e Soares (2008).
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 12
Vi tudo rolar nas águas do desespero, apagar de sua trajetória, uma vez que seus
Vi tudo morrer. poemas e sonetos com características
Nada pude enquanto pensei em minhas parnasianas foram escritos quando ainda era
forças. jovem, sem o conhecimento da essência da
Nada consegui enquanto não me voltei para o
poesia (CESAR, 1958).
Teu amor (LOPES, 1958, p. 151).
3 A Poética do Cotidiano Humano
Nessas produções de temática religiosa
pode-se destacar o que Cesar (1958) enfatizou Com o propósito de demonstrar a
ao mencionar que o poeta era muito criterioso versatilidade e singularidade poética de Paulo
em suas produções, trabalhava incessantemente Corrêa Lopes foram escolhidos dois poemas4,
até atingir a quase perfeição de sua poética. tendo como requisitos os períodos de
Tinha uma preocupação com seus leitores, pois publicações e, posteriormente, a temática
queria que tivessem acesso a uma produção enfocada, isto é, as transformações ocorridas na
lapidada, pensada e amplamente refletida, de vida humana e suas relações com aspectos
modo a possibilitar, com isso, que sua leitura presentes na natureza e na sociedade, com
fosse prazerosa, fluída e, principalmente, ênfase na reflexão e no lirismo observados no
despertasse o interesse pela poesia. desenvolvimento da temática.
Dentre os intelectuais que escreveram a O primeiro poema pertence à coletânea
respeito da produção literária de Paulo Corrêa Penumbra, cujo título é Renascimento, em que
Lopes destacam-se: Augusto Meyer, Manuel se nota a sensibilidade do poeta na produção de
Bandeira, Manoelito de Ornellas, Guilhermino um soneto clássico composto sob a forma de
César e Ângelo Ricci. Sua produção literária dois quartetos e dois tercetos, com versos
enfoca os momentos mais simples e sublimes que heterométricos. O soneto é composto por rimas
a vida proporciona ao ser humano, pois por meio cruzadas nos quartetos, rimas paralelas nos dois
de suas poesias o leitor poderá viajar na primeiros versos do primeiro e segundo
imaginação, nos sentimentos de alegria, amor, tercetos, e rimas opostas no terceiro verso do
paixão, sinceridade, tristeza, angústias e primeiro terceto com o terceiro verso do
sofrimentos, bem como perceber a importância de segundo terceto.
viver, uma vez que o poeta transita pelos extremos Esses aspectos demonstram o cuidado do
momentos da existência humana: vida e morte. poeta na construção de um soneto que versa
Revelou-se grande modernista após a sobre uma das temáticas centrais dos
experiência parnasiana de Penumbra, em parnasianos, a natureza. Cabe salientar que a
1919. As obras seguiram-se em pequenos poética de Paulo Corrêa Lopes permite que o
volumes, em que se encontram as vivências leitor de seus poemas vá além da descrição
de uma alma em luta com os valores apresentada e se questione sobre a realidade em
transitórios em busca da união perene como o que está inserido, pois ao mencionar que a
amor absoluto (CLEMENTE, 2003, p. 63). geada destruiu a vida presente na natureza,
Os títulos das publicações sugerem a também demonstra que a primavera está
temática abordada pelo poeta, isto é, uma poesia chegando e, com ela, as mais variadas
que aborda as vivências humanas em contato manifestações de vida. Nessa descrição sucinta
com a natureza e a busca pela eternização desta de aspectos ambientais e transformações, o
vida terrena. Dentre os títulos publicados, poeta insere os seres humanos nesse contexto,
destacam-se: Poemas de mim mesmo (1931), oportuniza que se vislumbre a possibilidade de
Caminhos (1932), Poemas da vida e da morte mudança da realidade vivenciada, pois assim
(1938), Um caso estranho (1942), Canto de como se altera a estação do ano, também podem
libertação (1943), entre outros. Todas as ocorrer mudanças na vida de todos os seres.
publicações estão reunidas em Obra Poética [...]
Paulo Corrêa Lopes (1958). Espera, ó triste coração, espera!
É importante ressaltar que a publicação de Também há de surgir a primavera,
Penumbra, para o poeta, significou um A primavera de um amor profundo.
momento de produção poética que desejava E diz-me o coração com a voz dorida:
“Estou cansado de sofrer na vida, encerra com uma ‘chave de ouro’ – último
Estou cansado de esperar no mundo! verso, espécie de síntese do poema”
(LOPES, 1958, p. 254). (GONZAGA, 1991, p. 117).
O soneto Renascimento caracteriza-se pela Nos dois tercetos do soneto, percebe-se a
relação estabelecida entre elementos da natureza e intenção do poeta em oferecer ao leitor um
transformações humanas, assim como a geada alento, uma esperança para situações
congela e pode destruir, a primavera é o vivenciadas, pois assim como a primavera trará
renascimento dessa destruição, portanto essas “Uma aquarela esplêndida” (LOPES, 1958, p.
alterações servem como metáforas para a vida 254), também a vida poderá apresentar novos
humana e suas modificações, por permitir que a horizontes de felicidades e realizações, frente ao
esperança ressurja das cinzas e oportunize a cenário atual castigado pelos rigores da geada.
construção de novos caminhos e horizontes, com É a esperança de que um novo amanhã possa
viabilidade e capacidade de realização, ou seja, surgir e trazer consigo transformações
que se tornem uma realidade, do mesmo modo responsáveis pelo renascimento humano e
que as estações do ano. ressignificação de cada pessoa.
Ao descrever os efeitos da geada, e O segundo poema apresentado, cujo título é
consequentemente do inverno rigoroso que se Rua, integra a coletânea Um caso estranho e
estabeleceu, o poeta emprega no primeiro revela um poeta que fez uso da prosa para
quarteto caraterísticas marcantes do movimento expressar seus sentimentos e percepções do
parnasiano, isto é, a objetividade, mundo, embora, conforme destaca Cesar (1958, p.
imparcialidade e descrição (GONZAGA, 10), Paulo Corrêa Lopes “[...] considerava mais
1991). Ao iniciar o soneto com a afirmação poesia que prosa” a produção presente nessa
“Tudo murchou, tudo morreu” (LOPES, 1958, publicação. Rua foi escrito sob a forma de um
p. 254), o poeta descreve uma situação poema em prosa, pois a mensagem está expressa
independente de suas vontades ou desejos, é a em texto discursivo e não na estrutura clássica de
constatação de que a geada queimou toda a uma poesia, isto é, escrito em versos, com a
natureza ao seu alcance, ao oferecer a presença ou não de rimas e/ou de estrofes, entre
visualização de um cenário natural alterado outras características. No entanto, há uma carga de
pelos efeitos do frio. profundidade poética claramente marcada por
No segundo quarteto, que trata sobre a espaços de leitura e sinais de pontuação,
presença da objetividade e da imparcialidade, conferindo sensibilidade e leveza ao transmitir a
evidencia-se o momento em que a poesia mensagem, tão presentes em suas poesias.
demonstra o surgimento da primavera e, a partir Ao conceder destaque para as palavras “Rua
disso, renovará a natureza castigada pelo frio, Solitária” o poeta chama a atenção dos leitores
em que o ambiente se torna agradável e para a temática abordada, desenvolvendo a
prazeroso aos olhos dos seres humanos. O partir deste enfoque o caminhar de alguém neste
caráter descritivo do soneto também é lugar, o simples transitar, refletindo sobre sua
percebido no momento em que destaca a vida e os caminhos percorridos. O texto inicia
presença da primavera e, com ela, irá com a frase “Rua solitária, por onde cruzei
desabrochar “Uma aquarela esplêndida e tantas noites à procura de um mundo perdido!”
formosa” (LOPES, 1958, p. 254). (LOPES, 1958, p. 142) e com ela finaliza o
Portanto, verifica-se que os dois quartetos do poema, isto é, a reflexão humana se dará ao
soneto se apresentam com características longo deste espaço transitado, mas suas nuances
parnasianas, e permitem que se revele ao leitor e desdobramentos servirão para o desenrolar da
uma habilidade no manejo das palavras por vida inteira. É o poema indicando uma metáfora
parte do poeta Paulo Corrêa Lopes, pois ele da vida, pois assim como o transeunte passará
transformou em poesia as alterações visíveis do pela rua, também cruzará pela vida; cabe
tempo e da natureza presentes no cotidiano. salientar que a rua é imóvel, estática, não sofre
O soneto Renascimento apresenta-se com os alterações, não se modifica em sua essência de
aspectos formais oriundos do movimento lugar de circulação; já a vida é repleta de
parnasiano, uma vez que “[...] os parnasianos mudanças e transformações, num constante ir e
reivindicam a tradição clássica do soneto, vir, querer e perder, partir e chegar.
composição poética centrada obrigatoriamente É mister ressaltar que a construção de
em dois quartetos e dois tercetos e que se poemas em prosa integra a produção literária
PAULO CORRÊA LOPES: UM POETA DO COTIDIANO 14
Corrêa Lopes. Porto Alegre: Instituto Estadual Espera, ó triste coração, espera!
do Livro – IEL, 1958. p. 7-10. Também há de surgir a primavera,
A primavera de um amor profundo.
CLEMENTE, Ir. Elvo. Folhas do caminho.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
E diz-me o coração com a voz dorida:
________. O temporal e o eterno. In: LOPES, “Estou cansado de sofrer na vida,
Paulo Corrêa. Obra Poética Paulo Corrêa Estou cansado de esperar no mundo!
Lopes. 2.ed. Porto Alegre: IEL, EDIPUCRS,
FAPERGS, 1991. p. 13-17. RUA6
GONZAGA, Sergius. Manual de Literatura Rua solitária, por onde cruzei tantas noites à
brasileira. 8.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, procura de um mundo perdido! Rua solitária,
1991. onde o eco de meus passos acordou velhos
sonhos que dormiam!
LOPES, Paulo Corrêa. Obra Poética Paulo
Corrêa Lopes. Porto Alegre: Instituto Estadual Quantos, antes de mim, não pisaram as tuas
do Livro – IEL, 1958. pedras! Quantos corações não vislumbraram
MEYER, Augusto. Lembrança do poeta. In: através de tua luz humilde, uma luz mais bela.
Correio da manhã – 1960 a 1969. A sombra da
estante. Edição 21327, 08 out./1962. p. 8. Rua solitária, quando a noite te envolver,
Disponível em: lembra-te que a marca de meus passos ficou
<http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/Ho para sempre gravada na mudez de tuas pedras.
tpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=33265
&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader# Rua solitária, ouve meu canto de gratidão. A ti
>. Acesso em: 15 dez. 2015. devo a certeza de que não há nada que seja de
SANSEVERINO, Antônio Marcos V.. Poesia todo desprezível no mundo.
itinerante do Trem da Serra. In: Revista
Brasileira de Literatura Comparada, n.18, Rua solitária, por onde cruzei tantas noites à
2011. p. 143-168. Disponível em: procura de um mundo perdido!
<http://www.abralic.org.br/downloads/revistas/1
415577258.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2015. ********
SOARES, Tanira Rodrigues. Paulo Corrêa
Lopes: a literatura como essência de vida. In:
Jornal Folha de Itaqui, Projeto Itaqui 150
anos: Resgate cultural, 18 jul./2008, p. 7.
Anexos
RENASCIMENTO5
Tudo murchou, tudo morreu com a geada,
Tudo crestou a geada tenebrosa.
Também padece e chora desolada
A natureza, a eterna mãe piedosa!
5 6
LOPES, 1958, p. 254. LOPES, 1958, p. 142.
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
12 “Luiz Alberto Pont Beheregaray, Berega, nasceu em impressões de sua infância em meio ao pampa gaúcho: sua
1934, em Uruguaiana. Residiu em Porto Alegre de 1958 a gente, sua cultura e suas coisas e o inseparável cavalo.
2000, exercendo as atividades de bancário, empresário e Neste quesito, rompeu fronteiras e o retratou em inúmeras
artista plástico, quando voltou a sua cidade natal, para se raças, nos infinitos movimentos, usos, culturas e esportes”
dedicar à pecuária. [...]. Sua temática foi recorrente às (BEREGA, 2021).
impressões da cultura de sua terra, sua região, e suas
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
21
tem o poder de registrar os traços do passado, Lima indica as marcas identitárias que compõem
oferece ao grupo a possibilidade de reapropriar-se sua figura a partir das recomendações paternas.
desse passado através dos traços transcritos” No momento em que rememora, o autor utiliza-se
(2014, p.109). de sua subjetividade para buscar construir sua
Em Rubens Colombo Lima, poema dedicado identidade (BERND, 2013).
a seu pai, Mano Lima expõe todo o sentimento Embora a peculiaridade do linguajar, Lima
de filho e demonstra que, embora a rusticidade oferta uma filosofia pessoal e verdadeira, ao
e rigores presentes na vida do campo, o dizer que: “Pois o mal só reponta os fracos / E
amanhecer, o silêncio do ambiente e a hora do esses, por si, já são derrotados [...] / O homem
chimarrão se fazem cenário para um momento é o que é / E não aquilo que qualquer um
de reflexão e de consagração da saudade: “Hoje pensa”. Expressa a humildade que o acompanha
levantei cedo demais / Senti saudade tua, meu e a justifica enquanto ensinamento paterno, pois
pai / Olhei pra cadeira onde mateava, ‘tava’ em seu poema está escrito: “E não tenha medo
vazia / E um silêncio tomou conta de mim / de pedir desculpa / Quando estiver errado / E
Quando, na cabeceira da mesa, / tu também não sempre que puder perdoar, / perdoe / Sem se
‘tava’”; ou seja, o autor, na condição de filho, sentir derrotado”.
busca a presença física de seu pai e faz um Valores como honestidade, justiça,
retorno à sua infância para destacar os valores consciência povoam o poema como marca de
paternos que habitam seu interior: “Então quem vive e pratica aquilo em que acredita:
lembrei de minha infância / Não só do grande “Não tenha vergonha de ter terra nas unhas, /
pai / Mas também do grande amigo, / Do Mas a alma limpa como a vertente / de um
carinho que tu me dava, / De teus ensinamentos lajeado / Tenha compromisso, seja honesto,
/ Que, no momento, nem tanto me importava”. trabalhador, / Justo e agradecido / E quanto
Nota-se uma articulação da sensibilidade mais longe for / Mais se lembre de onde tenha
poética do autor com a realidade representada no saído”.
poema, de modo que há uma reprodução da Para Candau (2014), memória e identidade se
experiência vivenciada com base na impressão nutrem e se apoiam enquanto potencializadores no
pessoal de quem rememora (POLLAK, 1992). E momento em que uma história de vida é construída
a paisagem que se verifica tem como efeito a a partir de uma narrativa, pois “[...] não é suficiente
reprodução de um sentimento de filho para pai, em apenas nomear para identificar, é preciso ainda
que saudade e ausência se complementam para conservar a memória dessa nominação” (p. 69).
compor o quadro paisagístico onde a emoção se Lima encerra sua viagem às memórias da
encarrega de conduzir o poeta ao “reencontro com infância com destaque para o cenário das
o mundo” (COLLOT, 2013). rememorações e da dor que o acompanha desde a
Começa, então, a elencar os ensinamentos que partida de seu pai: “Na fumaça do fogo de chão /
foram por ele incorporados e mantidos até o Do velho galpão onde nós ‘mateava’ [...] Pra
presente, repassando-os a seus filhos, pois agora curar esta ferida,”; e manifesta sua gratidão ao
lhe cabe essa missão de retransmitir o que foi externar: “Pois tenha certeza, meu velho, / Que
aprendido: “Mas era em ti que eu me espelhava / teus ensinamentos que me ajudaram / A
“Agarradito” em tuas bombachas / Foi que conquistar um espaço na vida”. Lima encerra o
aprendi a ser homem / Aprendi a ser humilde pra poema demonstrando que o momento do
não ser humilhado / Ser amigo dos amigos / chimarrão pode se transformar em uma conversa
Respeitar pra ser respeitado”. Dá ênfase às lições permanente com seu pai: “Hoje levantei cedo
absorvidas no que diz respeito às determinações demais / Pra, pelo menos, em pensamento /
pessoais, isto é, as reflexões e pensamentos que Matear contigo, meu pai”.
devem nortear qualquer atitude: “Me ensinou a ter Por meio da rememoração, Lima dá vida a
coragem / Para dominar meus próprios impulsos / uma identidade em que as heranças memoriais
E procurar estar sempre com a verdade do lado, se refletem na base de sua construção enquanto
[...] Não te preocupa com o que pensam de ti,/ Mas cidadão, já que: “Sem memória, o sujeito se
sim com tua consciência”. esvazia, vive unicamente no momento presente,
Considerando-se o que trata Pollak (1992) ao perde suas capacidades conceituais e
expressar que a identidade é produzida “em cognitivas. Sua identidade desaparece”
referência aos outros”, cujos critérios são a (CANDAU, 2014, p. 60). E a imagem do ‘filho
aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade, mateando com o pai’ invoca uma paisagem
OS PEÇUELOS DA MEMÓRIA: RETRATOS DE CAMPO E FRONTEIRA | JUCELINO VIÇOSA DE VIÇOSA
22
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
13
Mestranda em Estudos Literários pelo PPGEL-UFMT • UFMT• E-mail: fernanda_dnj@hotmail.com •
Especialização em Linguagem e Ensino: Língua e Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Maria Domingues da Rocha
Literatura UFMT-CUA• Graduação em Letras/Francês Reis (UFMT).
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
25
através do estudo formal é possível apreender num primeiro momento, por partir do que está
convenientemente os aspectos sociais posto, visível, que é o próprio texto, a
(CANDIDO, 2006, p. 9). linguagem, em detrimento da matéria (social),
Fez-se necessário que numa segunda reedição permite ao crítico interpretações sobre a obra
do livro Literatura e Sociedade fosse apresentada que não se limite ao resultado das relações entre
uma nota explicativa para a escolha feita pelo causa e significado.
termo ‘estrutura’, tendo em vista que na ocasião Sobre a ideia de jogo consideramos também o
de uso não haver marcada distinção entre os estudo de Hans-Georg Gadamer, em sua obra
campos de estudos estruturalistas e funcionalistas. Verdade e Método I ao afirmar que,
Justificando-se a escolha que se fez pelo uso do Quando, em correlação com a experiência da
termo ‘estrutura’ da seguinte forma: arte, falamos de jogo, jogo não significa aqui
[...] o que eu desejava naquele tempo era o comportamento ou muito menos o estado de
apenas acentuar o relevo especial que deve ânimo daquele que cria ou daquele que
ser dado à estrutura, como momento de uma usufrui e, sobretudo, não significa a
realidade mais complexa, cujo conhecimento liberdade de uma subjetividade que atua no
adequado não dispensa o estudo da jogo, mas o próprio modo de ser da obra de
circunstância onde mergulha a obra, nem da arte (1997, p.174).
sua função (CANDIDO, 2006, p.10). Portanto, o jogo, ou melhor, o ser da obra de
A escolha por partir da estrutura ‘interna’ arte deve ser compreendido a partir dele mesmo.
das obras literárias em relação ao contexto Como uma entidade que se impõe aos aspectos
social ‘externo’ não reduz a importância da transitórios como o ato de criação e de reprodução
segunda, contudo, acrescenta ao estudo, nesta da obra, sendo elementos que não podem ser
perspectiva de análise, valores distintos acerca resgatados para ser compreendida, bastando,
do objeto literário. Contrariando a prática da apenas, o trato por ela mesma para isso.
tradição, que partia do objeto para explicar, 2 A obra de arte literária enquanto objeto
revelar ou justificar práticas e fatos gerados por de análise
um contexto político social, desconsiderando,
por vezes, o valor agregado ao ato de criação Entendendo que a obra literária não é
presente no objeto artístico-literário. produto originário, estritamente, da ação
Desfazendo-se, portanto, uma prática limitante criativa e/ou artística de um sujeito em um
anteriormente habitual no processo analítico das determinado contexto social. Podendo ser
obras literárias. O autor considera sobre a produto de processos também autômatos. Deste
distinção no trato com a obra literária que, modo, nenhum dos fatores (subjetivo e social)
podem ser considerados como categorias únicas
antes procurava-se mostrar que o valor e o ofertadas como recurso para pensar e elaborar a
significado de uma obra dependiam de ela interpretação e a análise de uma obra literária,
exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que
como objeto artístico, a ponto de ser suficiente
este aspecto constituía o que ela tinha de
essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, para sua leitura.
procurando-se mostrar que a matéria de uma obra Existe para tais finalidades outras formas e
é secundária, e que a sua importância deriva das procedimentos de análise e interpretação do
operações formais postas em jogo, conferindo- objeto artístico que desconsidera a influência
lhe uma peculiaridade que a torna de fato ontológica e social exercida sobre ele. Não
independente de quaisquer condicionamentos, sendo essas as condições nem os parâmetros
sobretudo social, considerado inoperante como escolhidos para a condução deste trabalho, nem
elemento de compreensão (CANDIDO, 2006, para com o objeto, nem para as análises e
p.12). interpretação advindas dele.
O jogo mencionado por Candido, seria Partimos, no entanto, daquilo que Antonio
aquele possibilitado pelo trato com os recursos Candido considera como postura diante do
linguísticos que quando operados (forjados) objeto artístico literário, para ele:
pelo autor promovem efeitos de sentidos e a A criação literária traz como condição
interpretação do objeto artístico. Tais efeitos necessária uma carga de liberdade quea torna
permitem gestos de leitura e ideias que independente sob muitos aspectos, de tal
poderiam ou não estar relacionados ao aspecto maneira que a explicação dos seus produtos é
material, de âmbito histórico-social. Ao optar, concentrada, sobretudo neles mesmos. Como
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
26
linguagem, sendo a linguagem “um dos lugares um sujeito sobre o mundo” (2013, p. 103). Tal
cruciais para este encontro” (ibidem, p. 12). relação traduz-se em experiência ofertada pela
Compreende-se, dessa relação ser possível interação entre o sujeito e o espaço.
verificar nos textos literários para “depreender A partir do corpo se dá a percepção do
o que se diz de vivo nesta transferência da espaço, uma vez que ele está no mundo e
paisagem ao domínio da atividade e do percebe-o como parte de sua existência. Por
pensamento humanos” (COLLOT, 2013, p. 13). isso, Michel Collot (2013) compreende “a
Por ser a mente humana centro das paisagem (...) como um espaço disponível ao
operações sinápticas produzidas pelas olhar e também acessível a um corpo, sendo ao
terminações nervosas do corpo, inferimos que a mesmo tempo público e privado, suscetível de
paisagem se constrói pela interação de todos uma modelagem a partir do sujeito”. Acrescenta
esses sentidos corporais (fala, visão, audição, ainda que,
tato e paladar), quando em estímulo, Se o pensamento tem uma parte ligada ao
representados pela linguagem. Por isso, não ser espaço, é porque está situado em si mesmo:
possível desconsiderar as fontes corporais como ora é o corpo que constitui o ponto de fixação
produtoras de sentido/percepções, uma vez que da consciência com o mundo e o ponto de
se encontram interligadas para esse fim, na vista a partir do qual essa consciência se pode
mesma medida em que são partícipes com o compreendê-lo […] a percepção das coisas no
sujeito da experiência social. espaço, mobiliza não apenas a visão, mas a
Constitui-se, assim, a ideia de pensamento- sensação dos movimentos do corpo. […] O
paisagem, como uma construção (racional e corpo é o traço de união entre o espaço e o
espírito (COLLOT, 2013, p. 37).
sensorial) que para Collot,
Nasce de um encontro com o mundo, o qual A paisagem constrói no sujeito um universo de
deixa de inspecionar. No entanto, não se trata, sentidos gerados pela relação entre o sujeito e o
de modo algum, de um pensamento confuso ou espaço-lugar, para os quais Yi-Fu Tuan (1965)
intricado, mas, justamente, de uma nova define como sentidos de topofilia ou topofobia, o
racionalidade, cujo modelo encontrou tanto em primeiro remete a sentidos que agradam ao sujeito
Merleau-Ponty quanto em Valéry ou em e o segundo que o desagradam. Dessa comunhão
Francis Ponge, que buscava sobre o prado e de percepções é possível compreender e interpretar
sobre a página “uma verdade que seja verde”, as relações imagéticas construídas/elaboradas a
que produza “noções ao mesmo tempo físicas e partir da linguagem poética.
lógicas, que possamos, com evidência e clareza,
ao mesmo tempo, perceber e conceber”. A 4 Paisagens urbanas na obra literária
paisagem parece-me ser uma noção desse
gênero (2013, p.12). O ambiente urbano desenvolve-se, em geral,
a partir de pequenos vilarejos que se expandem,
Sendo assim, através da interação do sujeito seja em número de habitantes seja em serviços
com os espaços-lugares é possível pensar a e sistemas que estão diretamente relacionados
construção de paisagens que, posteriormente, com o modo de caracterização do espaço como
são reveladas ao mundo por meio da citadino.
materialidade linguística. Tais paisagens são Identificamos essa construção da cidade nas
construções cujo sentido advém tanto do olhar paisagens representadas na poética marilzeana.
(corpo) lançado pelo sujeito no horizonte num Logo que o olhar do eu lírico percorre esse lugar,
movimento de observação, como “recita um cântico” como que buscando libertar,
possibilitados, pela percepção do corpo, por meio de ecos, os seres dissonantes que
enquanto outras vias sensoriais, deste espaço. transitam e constroem rotineiramente esses
Para Collot, a perspectiva do horizonte pelo lugares marcados pela reiteração pelo ciclo em
sujeito modifica a ele mesmo, uma vez que se curvas elípticas que tem no tempo sua
percebe como parte deste ambiente que se torna continuidade cuja existência humana se
ponto de referência para seu estado de existência. fragmenta, não para todos que habitam o espaço
Tal experiência torna possível a elaboração de urbano, há, porém, distinção entre as classes da
reflexões que se constroem em detrimento da sociedade exposta na obra aqui em análise.
paisagem que é produto da relação do corpo A vida na cidade, polis, agrega sentidos ao ser
referencial, sendo “a paisagem [...] um caso como parte de sua existência e percepções, sendo
exemplar dessa aliança necessária entre interior e assim, a cidade não é um ‘mero’ olhar adiante, ou
exterior, já que é definida pelo ponto de vista de
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
28
para fora, mas uma construção dessa existência, ser alma [...] (PESSOA, 1982, p. 17-18).
que é própria. Compreende-se aqui esta cidade No trecho, Fernando Pessoa busca revelar a
conforme Eric Dardel, alma ao assemelhá-la ao transitório e inumano
A cidade não é somente um panorama sistema urbano, do qual se vê parte. O eu poético
abarcado com um só golpe de vista: [...] A busca sentidos que só encontra no tempo presente
cidade como realidade geográfica, é a rua. A em que transita como corpo-matéria pela vida,
rua como centro e quadro de vida cotidiana, pelo cotidiano, mesmo que livre, sente-se
onde o homem é passante, habitante, artesão; aprisionado.
elemento constitutivo e permanente, às vezes
quase inconsciente, na visão demundo e no 5 Construção fenomenológica nas análises
desamparo do homem; realidade concreta,
imediata, que faz do citadino “um homem da As interpretações aqui construídas partiram de
rua”, um homem diante dos outros, sob o análises feitas a partir das estruturas do poema,
olhar de outrem, “público” no sentido entendendo-as como ‘estratos poéticos’ conforme
original da palavra. Para muitos homens, identificados por Maria Luiza Ramos em seu livro
sobretudo os do século passados, a rua é onde Fenomenologia da obra literária (2011)
se nasce, onde se vive e onde se morre sem construída tendo por base o pensamento do
que se possa sair (DARDEL, 2015, p. 28). filósofo polonês Roman Ingarden em seu livro A
As paisagens urbanas têm sido uma obra de arte literária (1965) que faz referência ao
perspectiva recorrente que se impõe sobre o método e às divisões por estratos. Contudo, o
olhar do eu lírico. Podemos citar como exemplo autor detém-se mais às questões da ontologia da
a obra poética de Fernando Pessoa (1888 - obra do que as análises propriamente. Sobre o
1935) Livro do Desassossego (1982) que método fenomenológico escolhido para o
compõe paisagens urbanas ao notá-las como desenvolvimento das análises, como estratégia
parte de si e como modo de refletir a existência para investigação, justifica-se, pois,
em meio às mudanças e transformações a que a fenomenologia é a ciência do ser dos entes
eram submetidos os seres humanos ao – é ontológico. [...] Da própria investigação
conviverem com a mutação constante dos resulta que o sentido metodológico da
espaços. Podendo assim comparar a existência descrição fenomenológica é interpretação.
e a cidade a um constante e interminável (...) Fenomenologia da presença é
“canteiro de obras” sobre o qual mereceu e hermenêutica no sentido originário da
palavra, em que se designa o ofício de
merece, ainda, particular atenção.
interpretar (HEIDEGGER, 2006, p.77 apud
Bernardo Soares, um dos heterônimos de RAMOS, 2011, p. 26).
Fernando Pessoa, constrói sua percepção da
cidade de Lisboa construída tanto pela Sendo o direcionamento interpretativo apenas
perspectiva da visualidade quanto ao focalizar uma das possíveis perspectivas para as análises
nos meandros e movimentos da cidade, por estudos fenomenológicos que tem na
transformado essa experiência em algo sobre si. ontologia sua perspectiva. O sentido da obra serve
Como no trecho seguinte: de motivação inicial para a percepção do valor
estético, mas não constitui um fim em si mesmo.
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o
Para o crítico a sensação constitui-se como partida
sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele
sossego que o contraste acentua na parte que o para compreensão dos demais elementos
dia mergulha em mais bulício. A Rua do (camadas do poema) que “carregam” os sentidos
Arsenal da Alfândega, o prolongamento das ao campo da compreensão e entendimento.
ruas tristes que se alastram para leste desde que
6 Interpretação na obra
a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos
cais quedos – tudo isso me conforta de tristeza, O poema selecionado para estabelecer a
se me insiro, por essas tardes, na solidão de seu aproximação entre a ideia de paisagens urbanas e
conjunto. [...] Por ali me arrasto, até haver sociedade é ‘Estranha Aldeia Poluída’ transcrito
noite, uma sensação de vida parecida com a abaixo, que faz parte do livro Corpo Desnudo
dessas ruas. De dia elas são cheias de um
(1981) segundo livro publicado pela autora Marilza
bulício que não quer dizer nada; e de noite são
cheias de uma falta de bulício que não quer
Ribeiro. A partir do qual, também, possibilitou que
dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou compreendêssemos os recursos e procedimentos
eu. Não há diferença entre mim e as ruas para mobilizados, dentre eles o da paisagem.
o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ESTRANHA ALDEIA POLUÍDA
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
29
14 Emprego da palavra re-volta está empregado neste mesmo ponto/estado de partida/saída/início, mas volta
trabalho para expressar o movimento que se pretende modificado para um outro tempo, o tempo continuo da
enfatizar no poema para aquilo que volta, não para o existência.
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
30
mansidão, lentidão, murmúrio. Tal mansidão imagens. Representando, por esta via a ideia de re-
justifica-se tanto na concordância semântica como volta, por estabelecer a continuidade de uma ação
na fonética. Esta ideia de mansidão faz referência partindo de um ponto de referencialidade
ao sujeito poético identificado no poema, na temporal que é ‘a manhã’, não estática, mas
primeira estrofe, por ‘os homens’. A partir do eu contínua no ‘ritual sagrado’. Temos nessa
lírico a percepção desse sujeito é construída pela primeira estrofe a ideia geral que será re-tomada,
vivência nesse ambiente (lugar) social, espaço também, nas demais.
urbano apresentado em gradação como: ‘cidade’, Na segunda e terceira estrofes, a partir da
‘bairros’, ‘aldeias’, ‘tribos’ e, por fim, como percepção do sujeito lírico, depreende-se a
‘espaço vazio’. paisagem, imagem de uma cidade, lugar de
A alternância de sons gerados pelas representação, um espaço construído, “um
consoantes oclusivas [d] e [p] oferecem ao espaço que é obra do homem” (DARDEL,2015,
poema reforço para o efeito elíptico de re-volta, p. 27), em constante movimento e crescimento,
no “traço explosivo, momentâneo, prestam-se a opondo-se à imagem da aldeia, lugar de
reproduzir ruídos duros, secos, de batidas, pequeno povoado, sendo aproximadas, de modo
pancadas, passos pesados [...] Saliente-se que as a realizar esse jogo pela ideia de contrastes.
surdas ([p], [t], [k]) dão uma impressão mais Segundo o geógrafo Eric Dardel
forte, violenta do que as sonoras ([b], [d], [gu])” a forma mais importante do espaço construído
(MARTINS, 1997, p. 34) que percorre a leitura está ligada ao habitat do homem. A vila ou a
do poema. A escolha feita pelos níveis fônicos, aldeola ainda totalmente dominados por seu
bem como a opção por versos curtos com ritmos habitat rural; no seu extremo oposto, a grande
marcado associado ao campo semântico da cidade moderna onde o homem é moldado na sua
construção contribui para o efeito elíptico (ida e conduta, nos seus hábitos, nos seus costumes,
volta) contínuo no poema. suas ideias e seus sentimentos, por esse horizonte
A posição inicial ocupada pelo verbo artificial que viu nascer, crescer, escolher sua
‘mover’ engendra um movimento que se refaz profissão. Entre vila e a grande cidade, entre a
pequena cidade provincial adormecida e a vasta
ao longo de todo o poema, como uma volta que
cidade industrial atarefada, não há mais que uma
se repete e ressignifica a cada nascer do dia. O diferença de grau, de nome ou de extensão.
movimento de ida, assemelhado ao de partida, Trata-se de espaços que, para o homem, diferem
está representado pelo verbo que conjugado na em qualidade e significado. A vila encontra seu
terceira pessoa do singular acrescido da sentido no trabalho nos campos, que impõe ao
partícula ‘se’ indica ação reflexiva do sujeito: ‘a homem seu ritmo lento e seguro. A pequena
manhã’. Esse nascer do dia marca o início de um cidade compreende-se como um centro de
tempo contínuo, que não cessa de ocorrer. A relações para um grupo de vilas [...]. A grande
relação de semelhança estabelecida pela cidade é uma intervenção do homem sobre a
comparação entre ‘a manhã’ e ‘um ritual Terra, um desenvolvimento circundando um
ponto, [...]. Às vezes arejado e opulento, às vezes
sagrado’ nos permite pensar ser ‘a manhã’
miserável e repugnante, uma presença compacta,
correspondente à prática, ação formada por um de onde pode nascer tanto essa polidez particular
conjunto de regras, do verbo sagrar, ou seja, que chamamos de “urbanidade” quanto esses
uma ação natural da ordem do sagrado, sobressaltos de revolta, esses motins que a
dedicada à Deus. Nos dois primeiros versos: história registra como reações próprias às
Move-se a manhã / como um ritual sagrado, a populações urbanas (DARDEL, 2015, p. 27-28).
construção temporal refere-se ao tempo da
Dentro desse processo de construção das
natureza marcado pela rotina a qual estão todos
paisagens é possível notar para onde está sendo
os seres humanos15 reféns.
direcionada a percepção do eu lírico, ao
No terceiro verso, da primeira estrofe, ‘onde os
construir essa digressão de imagens em que a
homens’ o advérbio de lugar ‘onde’ faz a primeira
‘cidade’ está para ‘aldeia’, assim como ‘os
referência ao espaço sobre o qual o eu lírico
bairros’ estão para ‘tribos’. Sendo tais espaços
desenvolve sua percepção, sem mencionar de
condicionadores da existência de sujeitos
modo direto qual espaço se refere, deixando
assujeitados pela ‘Ordem’ advindos de ‘Os
entendido que já faz parte do saber comum. Esse
donos-das-cerimônias’ sobre o ‘culto’. Sendo o
recurso nos permite visualizar o movimento
culto um momento sagrado consagrado a deus,
estabelecido pelo eu lírico para a construção das
15 Identificado como ‘os homens’ no poema.
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
31
onde ocorre a prática de rituais sagrados. perspectivas de estudo que a percebem com as
Percebemos nesta associação, polos cujos mesmas concepções.
valores sociais são antagônicos, sendo um A ideia de paisagem proposta por Michel
grupo de homens formado pelos ‘donos’, pela Collot (2013) construída a partir da percepção
‘ordem’, pelas ‘leis’, pelos ‘cães’ e outro pelos do sujeito poético inserido no ambiente
homens oriundos de ‘tribos decadentes’, ‘mais possibilita compreender as relações próprias de
fraco’, ‘caçados’, ‘perseguidos’, pela ‘fome’ de um espaço originário pela vida em sociedade.
‘um povo’ constituindo um sistema próprio da Relação construída de modo a indicar
urbanidade. Lembramos que correspondências nos níveis fônicos, gráficos e
A paisagem não é, em sua essência, feita para se semânticos.
olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar Assim como Antonio Candido (2006) não
de um combate pela vida, manifestação de seu prescinde da relação entre existência e
ser com os outros, base de seu ser social. [...]. sociedade para se pensar a obra literária, Michel
Uma verdade emerge da paisagem, contudo, não Collot também não, para a construção da
como teoria geográfica ou mesmo como valor paisagem ao considerar a necessidade de “levar
estético, mas como expressão fiel da existência em conta essa espacialização da atividade e do
[...]. A paisagem não é somente “paisagem da pensamento humano que devolve à paisagem
história”, campo de batalha ou cidade morta. [...] um lugar eminente, que se inscreve em longa
A paisagem pressupõe uma presença do homem,
mesmo lá onde toma forma de ausência. Ela fala
duração” (2013, p. 198), desse modo, expõe que
de um mundo onde o homem realiza sua Desde muito, as ciências do homem e da
existência como presença circunspecta e sociedade – das quais a própria História se
atarefada (DARDEL, 2015, p. 33). encontra em primeiro lugar, mas também, é
claro, a Geografia, a Etnologia, a Psicologia,
Atribui-se ao uso excessivo de adjetivos um entre outras – mostraram a importância da
recurso que reforça o valor social na obra poética gestão e da representação de seu meio ambiente
em questão, na medida em que sua aplicação para a evolução dos indivíduos como as
revela a posição do sujeito lírico sobre o sistema sociedades. Vivemos, sentimos, criamos,
sócio-existêncial representado. pensamos no espaço e com ele, como também
Na sexta estrofe, por dois versos, tem-se o no tempo (COLLOT, 2013, p. 198).
desfecho, sem fecho, para o sujeito ‘um povo’ O poema analisado possibilitou estabelecer
introduzido pelo artigo indefinido de modo a as correspondências e associações. Cabendo à
reforçar a ideia de impropriedade do ser, que tem escolha pela abordagem teórica, bem como, a
no tempo ‘a hora’ o prenúncio de sua permanência interpretação dos recursos linguísticos para
num tempo contínuo e esperado, uma vez que compreender e tornar evidente os sentidos
intui o processo de ‘preparo’ ao povo. Tem-se produzidos pela obra literária.
ainda ao final de cada estrofe o uso da pontuação
reticências (...) que expressa sentido de Referências
continuidade, hesitação, incerteza etc. Tal
repetição gráfica funciona como reforço para a CANDIDO, A. Literatura de dois gumes. In:
ideia construída no poema e que tem sido repetida, idem, p. 163-180. MG, IV, 196, 1969.
engendrando o movimento de re-volta, que em si CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 9 ed.
admite a revisitação pelo sujeito lírico na própria Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
existência e condição da qual é parte.
COLLOT, M. Poética e Filosofia da
7 Considerações Finais Paisagem. Trad. Ida Alves, 1ed. Rio de
A análise aqui desenvolvida buscou Janeiro:Ed.: Oficina Raquel, 2013.
considerar o estudo da obra de arte literária a DARDEL, E. O Homem e a Terra: natureza
partir da concepção proposta por Antonio da realidade geográfica. Trad. WertherHolzer.
Candido (2006) ao considerar no processo de São Paulo: Perspectiva. 2015.
análise e interpretação tanto a forma como a
substância. Da mesma maneira Hans-Georg GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método
Gadamer (1997) definiu a obra como jogo, I: Traços fundamentais de uma
sobre o qual se fez necessário compreendê-la a hermenêutica filosófica. Trad. Flavio Paulo
partir de sua existência. Considerar a obra de Meurer: Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
arte como parte ontológica nos permitiu abordar
PERCEPÇÕES DA PAISAGEM URBANA: NA POESIA DE MARILZA RIBEIRO | FERNANDA DANIELLE NEVES DE JESUS
32
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Cesário Verde, um dos poetas mais Palavras-chave: Cesário Verde; Projeto
expoentes da literatura portuguesa, construiu Literário; Cidade; Lisboa.
um consistente projeto literário na segunda
metade do século XIX, o qual, dada a sua veia 1 Introdução
de esteta, acha-se atual e reverbera por entre os Quando pensamos em projetos literários que
fios entretecidos de tantos outros projetos tenham se debruçado sobre a cidade,
literários. A obra literária de Cesário Verde concebendo-a como matéria poética por
possui uma amplitude temática que viabiliza a excelência, o nome do poeta português Cesário
desenvoltura de um sujeito poético que transita Verde se impõe como um dos mais importantes
livremente por todos os espaços, mas, da literatura portuguesa. A cidade se torna, para
especialmente, pelo binômio campo e cidade. ele, um lugar em que principalmente as
Neste texto, nosso objetivo é acompanhar as sucessivas cenas do cotidiano lhe oferecem
deambulações do sujeito poético cesárico pelas temas e motivos para pintar os mais diferentes
ruas de Lisboa, buscando identificar, por quadros sociais.
intermédio de seus instantâneos, as impressões A cidade de Lisboa, ainda que não tenha
da capital lusa. A estrutura deambulatória experimentado o mesmo ritmo de
configura, na verdade, uma poesia itinerante, já desenvolvimento das principais capitais
que a exploração do espaço citatino se perfaz europeias da segunda metade do século XX, em
com base em sucessivas deambulações, numa termos de surto industrial, como Londres e
perspectiva de câmara de filmar, cujos vários Paris, por exemplo, mesmo assim viu sua
planos vão sendo delineados. Assim, através da geografia ser transformada paulatinamente. A
análise de três de seus poemas, quais sejam “O expansão urbana, sem dúvida, passou a dar uma
Sentimento dum Ocidental”, considerado por nova feição aos traçados de praças e ruas
Joel Serrão (1999) o ponto mais alto da poesia lisboetas. Os velhos casarios, aos poucos, foram
do poeta português. Aliás, é da Obra Completa perdendo espaço para edifícios de andares,
de Cesário Verde, estudada e organizada pelo chamados por Cesário Verde de verdadeiras
mesmo autor, que extrairemos estrofes de “O “gaiolas”. Ruas estreitas e sem vida
Sentimento dum Ocidental”, além de “Num transformaram-se em largas avenidas, com suas
Bairro Moderno” e “Desastre”. Assim, montras inspiradas nas parisienses, as quais
pretendemos traçar quadros deambulatórios de passaram a exercer fascínio sobre os transeuntes
um sujeito poético que soube captar como que se viam atraídos pelas suas novidades.
ninguém os instantâneos de uma cidade em O mundo urbano da civilização industrial,
desenvolvimento. ainda que tímido, aportou-se na capital
portuguesa, sem deixar de exibir suas paisagens
antagônicas: de um lado, verbi gratia, em 1886,
já haviam sido introduzidas na capital lusa
16
Doutor em Estudos Literários/Literatura Comparada/UFF -
Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia-UNEB –
valci@ffassis.edu.br.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
34
17Trata-se do primeiro verso da quadra de número onze da constante da Obra Completa de Cesário Verde estudada e
parte II do poema “O Sentimento dum Ocidental”, organizada por Joel Serrão.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
35
Evidencia-se, assim, um olhar transfigurador falou, nem um noticiário, nem numa conversa
que se depara com um caleidoscópio de cenas comigo; ninguém disse bem, ninguém disse
da vida real, nada restando ao sujeito poético mal! (SERRÃO, 1999, p. 226)
senão acionar sua veia denunciadora. Neste poema de Cesário Verde, um dos
A visão do sujeito poético cesárico, de pontos altos de seu projeto literário,
acordo com Annabela Rita, em seu texto O contrariando, portanto, a indiferença daqueles
Sentimento dum Ocidental: Um programa que se mostraram insensíveis em face da arte de
estético, serve, também, de trampolim para sua escrita, a cidade de Lisboa se torna,
outras realidades, causando-lhe estímulos, definitivamente, o alvo preferido do poeta-
encorajando-o a meditar [n]um livro que pintor-fotógrafo e, conforme já dissemos em
exacerbe18. Vamos, pois, tomar de empréstimo livro de nossa autoria, “Campo e cidade na
a Annabela Rita duas dessas realidades que poesia de Cesário Verde”, essa mesma cidade
estimulam o salto do poeta para acompanhar as “se apresenta, aos seus olhos, com imagens
suas deambulações, quais sejam: “por múltiplas, em face aos diversos quadros e
transfiguração, para uma realidade imaginária, instantâneos constituídos com base em sua
irreal e metafórica da vivência do sujeito, dita vivência e em marchas deambulatórias”
por imagens fúnebres; por associação de ideias, (SANTOS, 2010, p. 77).
para uma realidade evocada” (RITA, 1992, p. Assim, na primeira estrofe que inaugura “O
45). Sentimento dum Ocidental”, o sujeito poético já
“O Sentimento dum Ocidental”, publicado anuncia o seu estado d’alma. Ao percorrer as
em 10 de junho de 1880, num número especial ruas lisboetas, no lusco-fusco dos dias, seus
do Jornal de Viagens, da cidade do Porto, foi sentimentos disparam um “eu” soturno,
dedicado, por Cesário Verde, ao centenário de melancólico, eivado de sombriedades, por isso
Camões. O poema está estruturado em quatro tudo aquilo que o cerca causa-lhe enjoo,
subtítulos: I – Ave-Marias; II – Noite Fechada; sofrimento, até mesmo, o poético Tejo, a
III – Ao Gás; e IV – Horas Mortas19. Possui cem agitação de pessoas que transitam, quem sabe,
versos decassílabos distribuídos em vinte e para cima e para baixo de suas margens, ou a
cinco estrofes-quadras, em que o primeiro verso maresia, esse cheiro forte, característico, que se
rima com o terceiro e o segundo com o quarto desprende do mar, do Tejo-Mar:
verso.
Trata-se de uma obra-prima verdeana, Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
construída a partir de uma complexa Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
ambiguidade de sentimentos, na feliz expressão Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
de Sílvio Castro (1990, p. 90). Obra-prima esta (SERRÃO, p. 149)
só reconhecida após a morte do Poeta. Em vida,
ele bebeu do fel da incompreensão e da falta de E, à medida que o sujeito poético empreende
reconhecimento, inclusive de seus pares. Em suas deambulações pelos cenários de Lisboa,
carta endereçada ao amigo António de Macedo mais seu estado nauseabundo parece aflorar-se.
Papança, o Conde de Monsaraz, de 29 de agosto A cidade se mostra para ele carregada de uma
de 1880, Cesário Verde se queixa da falta de atmosfera que o deixa irrequieto,
receptividade ao seu poema que foi publicado desassossegado, agitado; sua ambiência causa-
naquela que ele considerava uma “folha bem lhe perturbações. O bulício presente na quadra
impressa”. Ouçamos seus lamentos: anterior se estende e se apresenta em forma de
turba, deixando claro o quanto incomoda ao eu
Ah! Quanto eu ia indisposto contra tudo e poético o turbilhão de pessoas em seus
contra todos! Uma poesia minha, recente, movimentos de idas e vindas.
publicada numa folha bem impressa, limpa,
Dessa forma, os quadros pintados com as
comemorativa de Camões, não obteve um
olhar, um sorriso, um desdém, uma cores do progresso e suas consequências fazem
observação! Ninguém escreveu, ninguém ainda mais aumentar o seu enjoo. Do bojo desse
enjoo, há pensamentos que o remetem a outros
18 Esta expressão final fomos buscar no primeiro verso da mesma edição, há uma dedicatória no poema a Guerra
quinta quadra do Parte III do poema “O Sentimento dum Junqueiro. Ainda segundo o mesmo crítico, o poema foi
Ocidental”. publicado em duas versões: uma em vida de seu autor, no
19 De acordo com Joel Serrão, os subtítulos aparecem, pela ano de 1880; a outra, em 1887, em O Livro de Cesário
primeira vez, na edição de Silva Pinto. Inclusive, nesta Verde, na edição já mencionada de Silva Pinto.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
36
lugares, como numa transfiguração, e eis que denunciadores de vidas marcadas pela
surge o céu baixo, de neblina, de cromatismo tragicidade: “Mas se vivemos, os emparedados,
monótono, numa alusão direta ao famoso céu / Sem árvores, no vale das muralhas!... / Julgo
londrino, famoso pelos seus nevoeiros, avistar, na treva, as folhas das navalhas ; E os
impeditivos de cenários que podem despertar gritos de socorro ouvir estrangulados.” (p. 155)
um absurdo desejo de sofrer/viver: Destas imagens exemplificadoras do estado
O céu parece baixo e de neblina,
de emparedamento em que se encontra o sujeito
O gás extravasado enjoa-me, perturba; poético, percebe-se a presença, portanto, de seu
E os edifícios, com as chaminés, e a turba olhar transfigurador, o qual foca numa realidade
Toldam-se duma cor monótona e londrina. que se quer imaginária, metafórica, irreal,
(Ibidem, p. 149) conforme nos apontou alhures Annabela Rita.
Essa transfiguração é-nos revelada, ao longo do
Ora, à medida que o deambulante insone
poema, por intermédio de imagens que
circula por entre vias, ruas e praças, mais cenas
corroboram o sentimento de clausura do poeta
do cotidiano impulsionam a lente do sujeito
diante das contradições e rasuras de uma cidade
poético. Há um verdadeiro turbilhão de imagens
que se mostra impiedosa para os menos
que demonstram a força do seu poder de
favorecidos.
captação. A cidade que se torna símbolo da
Essas contradições aumentam à medida que
opressão, aumenta ainda mais a noção de
a cidade de Lisboa começa a assimilar o
clausura que perpassa as estrofes do poema. Na
progresso preconizado pelos ares da
verdade, o poeta sente-se deslocado, um
modernidade de fins do século XIX. Mas, com
desplaced, um verdadeiro gauche
esse progresso, também surge o lado obscuro da
drummondiano, em meio a uma cidade que o
“cidade maldita”, com seus quadros que causam
inspira, mas que também o incomoda, e que se
revolta ao sujeito poético. Suas deambulações
torna capaz de causar-lhe dor e sofrimento. Seu
fazem-no deparar-se com o aumento cada vez
sentimento ambíguo acirra-se à medida que ele
de diferentes tipos sociais, com suas
se sente emparedado, em face do antagonismo
diversificadas profissões, que surgem para dar
reinante na Lisboa da segunda metade do século
conta de atender às exigências do universo
XIX, ocasionado por projetos políticos que
urbano e sua avidez por desenvolvimento a
quase sempre ignoravam os menos
todo custo: são trabalhadores das mais
privilegiados.
diferentes origens que se debruçam sobre
Não são poucas as estrofes que trazem no
máquinas, construções, alterando a geografia da
seu bojo vocábulos associados a essa ideia de
cidade de Lisboa, para atender ao desejo
emparedamento, criando, assim, uma
desmedido da burguesia, ainda que estes
linguagem poética cara ao projeto literário de
mesmos operários nem sempre reunissem as
Cesário Verde: ao se referir às construções que
qualidades necessárias para o desempenho de
passam a surgir na Lisboa ávida pela
funções a eles destinadas, tornando-se, dessa
modernidade, construções estas substitutas dos
forma, quase sempre alvos fáceis de acidentes
velhos casarios, o sujeito poético as denomina
provocados pela omissão de patrões que os
de gaiolas, vocábulo que se faz presente em
enxergavam tão-somente como objetos.
alguns dos versos de seus poemas: “Semelham-
O poeta, ao fixar o seu olhar sobre essa nova
se a gaiolas, com viveiros, / As edificações
realidade urbana, tenta se adaptar a ela, num
somente emadeiradas:” (p. 149); ao fazer alusão
processo de adesão-repulsão, pois instaura em
às cadeias, cujos espaços agora são ocupados
seu ser um conflito básico, representativo de
em maior escola, em função da violência que
uma tentativa de adaptação psicológica a um
aumenta em Lisboa, em decorrência do inchaço
novo ambiente que foi tecnizado muito
desordenado dos bairros principalmente
rapidamente, tornando-se, portanto, um espaço
periféricos: “Toca-se às grades, nas cadeias.
citatino artificializado pela ação humana.
Som / Que mortifica e deixa loucuras mansas!”
Em face desse “eu” conflituoso, o sujeito
(p. 151); ao dar ênfase ao modus vivendi de
poético, de um lado, sente-se à vontade pelas
pessoas que, dadas as novas configurações
ruas lisboetas ao se deparar com uma espécie de
citadinas, fruto do paradoxo da modernidade
invasão simbólica da cidade pelo campo,
oitocentista, se sentem-se deslocadas,
quando, por exemplo, passa a dramatizar essa
emparedadas, desprovidas das mínimas
invasão através da narrativa de uma vendedeira
condições de sobrevivência, e cujos gritos são
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
37
Um preto, que sustinha o peso dum varal, responsável pelo próprio destino trágico:
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não
desfaleça!” E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça imensa,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral. (p. 100) Na tumba, e sem o adeus dos rudes
camaradas:
Outra cena digna de nota alude-se à Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
indiferença das pessoas que se mostram O inverno estava à porta e as obras atrasadas.
insensíveis diante da miséria humana. Há
aqueles que não se incomodam com o que E antes, ao soletrar a narração do facto,
presenciam. Comportam-se como se nada havia Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
acontecido. O trágico é concebido por elas com
“Morreu! Pois não caísse! Alguma
normalidade, tamanha a superficialidade e o bebedeira!” (p. 102)
descaso de seu comportamento:
3 Considerações Finais
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria, E assim o sujeito poético da poesia de
Gritava para alguns: “Que cena tão faceta! Cesário Verde vai deambulando pelas ruas de
Reparem! Que episódio!” Ela já não gemia. (p. Lisboa à procura de quadros revoltados que
100) passam a exibir as veias abertas de uma “capital
Assim como aqueles que permaneciam maldita” que se apresenta com suas fortes
apáticos diante do ocorrido, acomodados em contradições, deixando claro a dimensão
suas cadeiras de bar, os transeuntes, por seu metafórica duma dramática tradução da dor
turno, também, corroboravam sua indiferença humana.
com a falta de sentimento humano e As imagens captadas a partir das
solidariedade. Era como se repetisse apenas deambulações do sujeito poético são
mais uma cena diante de tantas que se sucediam construídas através de uma linguagem
no cotidiano de trabalhadores desprovidos dos impressionista de cariz inovador. Ao fazer uso
mais básicos direitos. Parece institucionalizar- dessa linguagem, Cesário Verde, consoante
se, dessa forma, a perversa coisificação pensamento de Sílvio Castro (1990, p. 61-62),
humana. Instauram-se a humilhação e a se debruça sobre a realidade das coisas, numa
dominação de pessoas que se veem exploradas transcrição plástica que dá do mundo a sua
em face da corrupção e decadência da classe mais profunda objectividade. É uma
burguesa, a qual se torna capaz de fazer transcrição de invenções e participação, pela
qualquer coisa para manter os seus privilégios: qual a vida dos homens, principalmente
daqueles mais amaldiçoados pela injustiça e
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocotes, pela violência – os operários, os pobres, os
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros infelizes, os miseráveis – encontra a mais
E ouviam-se canções e estalos de chicotes, moderna denúncia.
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos
cocheiros. (p. 100) Em última análise, o sujeito poético do
(...) projeto literário verdeano é aquele que não ficou
Um fidalgote brada a duas prostitutas: alheio à realidade de seu tempo; ao contrário,
“Que espantos! Um rapaz servente de deu conta de perceber a existência de fortes
pedreiro!” marcas de uma época em que o abatimento
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas moral do povo português tornava-se cada vez
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro. (p.
mais flagrante, em face dos graves problemas de
101)
natureza político-econômica, os quais só faziam
E o desfecho da pobre vítima da apatia agravar, ainda mais, as diferenças sociais e o
humana e das injustiças sociais não poderia ter acirramento da miséria humana. Mas ele não
sido diferente. Foi apenas mais, dentre tantos apenas percebe! Sai deambulando pelas ruas e
outros, que perdeu a sua vida em consequência avenidas lisboetas à caça de instantâneos da
do domínio de seus exploradores. Como se não vida urbana. Tais instantâneos se transformam
bastasse, também tornou-se vítima da hipocrisia em versos poéticos que se revoltam à medida
e da ironia daqueles que poderiam tê-lo que se deparam com as injustiças de uma
compreendido; mas que, no entanto, passaram a sociedade que se mostra apática e
apontar o dedo em riste, acusando-lhe de ser profundamente injusta.
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
39
4 Referências
BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida
Moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 1996.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um
lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas.
Volume III. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CASTRO, Sílvio. O Percurso Sentimental de
Cesário Verde. Lisboa: Biblioteca Breve –
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990.
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária:
poesia e prosa. São Paulo: Cultrix, 2012.
RITA, Annabela. O Sentimento dum Ocidental:
Um programa estético. In: Colóquio-Letras, nº
125/126, jul.dez./1992.
SANTOS, Valci Vieira dos. Campo e cidade
na poesia de Cesário Verde. Vila Velha, ES.:
Opção Editora, 2010.
VERDE, Cesário. Obra completa de Cesário
Verde. Org. pref. e notas de Joel Serrão. Lisboa:
Livros Horizonte, 1999.
********
A POESIA DE CESÁRIO VERDE E AS DEAMBULAÇÕES DE SEU SUJEITO POÉTICO PELAS RUAS LISBOETAS
40
ISBN: 978-65-5363-027-7
20
Doutoranda em Literatura • daiseoliveira@hotmail.com
• UnB • Orientadora: Sylvia Helena Cyntrão
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
41
com o suor do seu rosto, tendo como destino também rejeitado. Vejamos a letra:
final a mesma terra onde, por capricho divino,
haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó Assentamento
tornará a ser (SALGADO, 1997, p. 9). Quando eu morrer, que me enterrem
Na beira do chapadão
Segundo as palavras do escritor, a terra é o
Contente com minha terra
destino final de todos os homens, uma espécie Cansado de tanta guerra
de punição pelos pecados. No contexto artístico, Crescido de coração
essa temática tornou-se a base para incorporar a Zanza daqui, zanza pra acolá
anedota, as fotografias e as canções do projeto. Fim de feira, periferia afora
Cada artista, à sua maneira, revelou como a A cidade não mora mais em mim
disputa pela terra conduz à morte, seja ela Francisco, Serafim
simbólica, coletiva ou individual. A disputa Vamos embora
pelo espaço, para o homem, deve ser uma ânsia Embora
de prazer e satisfação, âncora de suas memórias Ver o capim
Ver o baobá
e recordações, limiar entre o vivido e imaginado
Vamos ver a campina quando flora
– como fonte de retorno ao real ou ao onírico, A piracema, rios contravim
mas que se efetue entre o tempo e o espaço Binho, Bel, Bia, Quim
como forma de ressignificação do presente e, Vamos embora
quiçá, do futuro. Quando eu morrer
A canção “Assentamento” foi escolhida para Cansado de guerra
este estudo por ser uma composição que abre Morro de bem
campo para muitas problemáticas relativas ao Com a minha terra:
espaço como lugar e à paisagem como uma Cana, caqui
necessidade do homem que a ocupa. Extraída da Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
produção mencionada, a letra da canção
Amplidão, nação, sertão sem fim
salienta, de modo peculiar, as questões que Oh, Manuel, Miguilim
entrelaçam o urbano e a projeção que se tem Vamos embora
para e por ele. A canção não traz em sua Zanza daqui, zanza pra acolá
textualidade imagens de ruas ou avenidas, mas Fim de feira, periferia afora
seu discurso desenvolve-se, inicialmente, a A cidade não mora mais em mim
partir da ideia de urbanização, seja no meio da Francisco, Serafim
urbe ou rural. Vamos embora
Embora
2 Desenvolvimento Ver o capim
A letra poética evidencia um sujeito que Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
expressa uma espécie de último desejo: retirar-
A piracema, rios contravim
se do frenético meio urbano e ser enterrado à Binho…
“Beira do Chapadão” – distanciar-se do lugar Fonte: (HOLLANDA, 2006, p. 408-409)
vivido e projetar-se para o espaço imaginado,
recordado. No entanto, o sujeito da canção Em concordância com um projeto marcado
reconhece que a cidade, mesmo com suas fortemente por questões políticas e ideológicas,
guerras e demais consequências do processo de o discurso da letra de Chico Buarque encontra-
globalização, também ensina ao homem, o se fincado no próprio significado do título da
engrandece, o torna sábio – aspecto este que canção – Assentamento. Entendido como um
deve ser valorizado. Inserido no mundo do espaço territorial de povoamento que é,
imediatismo e da objetividade, o sujeito social geralmente, constituído por trabalhores rurais
se vê definido pelas funções que necessita que ocupam terras “ilegalmente”. Do ponto de
desempenhar para se adequar aos contornos do vista jurídico, os assentamentos são marcas
espaço urbano. “Assentamento” ecoa as muitas concretas de ocorrências divergentes entre o
vozes que circundam entre o visível e o meio rural e o arquétipo do meio urbano, que
desejável, lugares escolhidos e intermediários, exige trabalho excessivo e organização dos
ambiente onde a mente aprende a habitar, mas o grupos sociais. O assentado vive no limite da
coração anseia abandonar – um espaço engranengem urbana, porém no meio rural.
conquistado pelo homem, mas que é por ele Além de plantar e colher para sua
sobrevivência, ele necessita romper com as
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
42
questões autoritárias que circundam os negros (ex-escravos que, por diferentes meios,
interditos nesses espaços. haviam sido libertados ou comprado sua
As questões que envolvem disputa por liberdade) e, posteriormente, os imigrantes
territórios sempre estiveram atreladas às discussões europeus. Assim, “com a formação do
sobre política e ideologia, trabalho e lucro, espaço trabalhador livre, conservou-se a separação
e poder. A princípio, após a revolução industrial e entre o trabalhador e os meios de produção”
a efervescência do capitalismo, surgiu a ideia de (FERNANDES, 2000, p. 27), intensificando as
que o trabalho organizado da cidade acabaria com disputas entre os latifundiários e os sem-terra –
as questões agrárias, ou seja: sujeitos que eram explorados pelos fazendeiros
[...] a agricultura e o trabalho agrícola deviam
e expulsos da terra, fazendo desses espaços uma
desaparecer rapidamente frente ao trabalho questão de poder versus resistência21.
industrial, tanto do ponto de vista quantitativo Durante o Golpe Militar, em 1964, as
(riqueza produzida) como do ponto de vista questões dos assentamentos, que se
qualitativo (necessidades satisfeitas pelos disseminaram em diversas partes do Brasil,
produtos da terra); a agricultura ela mesma foram fortemente abaladas pelas questões
podia e devia se industrializar. Além disso a políticas. O golpe significou um retrocesso nos
terra pertencia a uma classe (a aristocracia, os avanços conquistados pelos trabalhadores,
proprietários fundiários, os feudais). A aumentou a acumulação e a concentração da
burguesia devia, parece, exterminar essa
riqueza nas mãos dos latifundiários. Mesmo
classe ou a subordinar até retirar dela toda
importância. Enfim, último ponto, a cidade ia
com o fim do militarismo, as consequências se
dominar o campo, preparando o fim (o arrastam até os dias atuais. Com o incentivo e
ultrapassamento) da oposição (LEFEBVRE, insenções fiscais concedidas aos grandes
2006, p. 439). empresários, o crescimento econômico da
agricultura capitalista e da indústria
Na verdade, ao invés de o trabalho agrícola extimularam os despejos das famílias
ser suplantado, o que ocorreu foi uma camponesas. Conforme Lefebvre (2006, p.
reafirmação das novas modalidades de 436):
produção, como bem notou o filósofo francês.
A terra, com efeito, é dominada para fins O poder político não é, enquanto poder
lucrativos, buscando atender aos anseios de uma político produtor de espaço: mas ele o
classe espécifica. Ocupar a terra passou a ser reproduz, enquanto lugar e meio da
reprodução das relações sociais (que a ele são
uma exigência do novo modelo de organização
confinadas). No espaço do poder, o poder não
do social, e, consequetemente, uma questão de aparece como tal; ele se dissimula sob ‘a
poder. “Não somente o capitalismo se apoderou organização do espaço’. Ele elide, ele elude,
do espaço pré-existente, da Terra, mas ele tende ele evacua. O que? Tudo o que se opõe. Pela
a produzir o espaço. Como? Através e pela violência inerente e se esta violência latente
urbanização, sob a pressão do mercado não é suficiente, pela violência aberta.
mundial” (LEFEBVRE, 2006, p. 442).
No ano de 1984, como forma de enfrentar o
No Brasil, essas questões relacionadas com
poder que se impunha aos trabalhadores
o capitalismo e a ocupação territorial encontra-
explorados, ocorreu, em Cascavel, no Paraná, o
se eminentemente vinculada à luta pela terra.
1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Sem-
Bernardo Fernandes (2000), ao discurtir sobre a
Terra. Nessa ocasião é que se decidiu fundar o
consolidação do MST no Brasil, relembra que a
MST, com os seguintes objetivos: a) lutar pela
própria história da formação do país é marcada
terra; b) lutar pela reforma agrária; c) lutar por
pela invasão do território indígena, pela
mudanças sociais no país. Desde então, as lutas
escravidão e pela produção do território
entre o governo e os assentados foram se
capitalista. Uma disputa que envolvia os
intensificando. No entanto, é no ano de 1996
sitiantes (pequenos proprietários ou posseiros),
que ocorre o massacre de maior visibilidade
os agregados (moradores em terra alheias que
nacional22, registrado pelas lentes de Sebastião
viviam e trabalhavam nas grandes fazendas), os
21 22
A Guerra de Canudos, Guerra do Contestado e o O massacre de Eldorado dos Carajás. Nas palavras de
Cangaço são exemplos de marcos históricos que abordam Saramago, “como pode ser sarcástico o destino de certas
as relações de ocupação de terra e autoritarismo dos palavras...” (SALGADO, 1997, p.11) Ironicamente
coronéis. Eldorado significa: Local pródigo em riquezas e
oportunidades.
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
43
24 Árvore que pode chegar até vinte metros (Adansonia tempos imemoriais. Os mitos e o pensamento mágico-
digitata ). Faz parte da família das bombacáceas, com religioso yorubá têm na simbologia da árvore um de seus
tronco gigantesco, ereto, madeira branca, mole e porosa, temas recorrentes”. Disponível em
casca medicinal e de que se extrai fibra têxtil. O baobá “é https://www.geledes.org.br/baoba-arvore-simbolo-das-
um dos símbolos fundamentais das culturas africanas culturas-africanas/
tradicionais. Os velhos baobás africanos de troncos
enormes suscitam a impressão de serem testemunhas dos
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
45
Dito e Miguilim, em determinados momentos inclusive no que diz respeito à relação entre os
da trama, semelhanças com o sujeito lírico da indivíduos. As narrativas também passam a
canção. Na canção, a persona não abandona apresentar semelhanças em seus enredos. A
seus companheiros, insiste para regressem com dinâmica do cotidiano citadino assume uma
ele: Francisco, Serafim, Binho, Bel, Bia, Quim, linearidade já conhecida. Essas cidades tornam-
Manuel e Miguilim. Na novela, Miguilim se unidades de produção, dominadas pelos
demonstra o receio em morrer longe dos seus, e escritórios, exploração agrícola e instalação de
consequentemente, de sua terra. A cena é empresas – perspectiva de trabalho que tem
narrada durante o abraço de dois irmãos, em atraído bastante os trabalhadores rurais (alguns
uma noite de muita ventania e chuva, enquanto deles são os que desistem de esperar a
os mais velhos estavam sentados no alpendre da concretização da reforma agrária). Imbuídos
casa e as crianças em volta, tentando pelo anseio de conquistar um trabalho, mudam
acompanhar a conversa. para a cidade – ou melhor, para os espaços de
Miguilim, você tem medo de morrer?
trabalho – e passam a vivenciar a rotina e
― Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só estaticidade desses lugares. É o que demonstra
se fosse sozinho. Queria a gente todos Lefebvre no fragmento que se segue:
morresse juntos... O espaço do trabalho resulta, portanto: de
(ROSA, 2001, p. 28, grifos meus) gestos (repetitivos) e atos (seriais) do labor
O eu lírico da canção e o eu lírico da novela produtivo, mas também e cada vez mais da
não rejeitam a morte, apenas expressam seus divisão (técnica e social) do trabalho e, por
conseguinte, dos mercados (locais, nacionais,
desejos, cada um através de suas razões.
mundial) e, enfim, das relações de propriedade
Miguilim é uma criança que compartilha seu (a posse e a gestão dos meios de produção). O
cotidano com seus familiares mais próximos e que significa que o espaço do trabalho ganha
por eles tem grande apreço. Trata-se de uma contornos e fronteiras por e para um
experiência ainda limitada, até mesmo pela pensamento abstraídos; rede entre redes,
pouca idade, mas que já expressa grande espaço entre espaços que compenetram, ele
sentimento, não apenas pelos familiares, mas não tem nenhuma existência relativa
sobretudo pelo lugar onde vive 25 . Por outro (LEFEBVRE, 2000, p. 264).
lado, o sujeito da canção, de certo modo, já Neste sentido, o tempo, nesses espaços, tende
experiente pelas memórias que compartilha, a ser medido em esferas ambíguas, tanto pela
tenta justificar o porquê do seu último desejo. unidade de medida convencial, como pela
Encontra-se “cansado de tanta guerra”, mas qualidade que passa. Assim, quando o tempo, em
“crescido de coração”. Quem sabe por isso, já é termos qualitativos, não acontece de modo
capaz de reconhecer que a cidade o permite positivo gera-se a fadiga. Isto é, produz-se uma
viver em mais ambientes, zanzando por seus sensação de incômodo e insatisfação, o que faz da
diversos lugares (feira, periferia e os espaços memória uma das poucas alternativas que
para além desta). Nesse vai a vem, a cidade não proporcionam bem-estar ao sujeito, muito embora
deixa de ser um lugar frenético impulsionado não seja capaz de reestabelecer as distâncias entre
pelo capitalismo contemporâneo, que não espaço e tempo. Na perpectiva de Michel de
aprofunda as relações. E, quiçá, por essa razão, Certeau (1998), a memória se torna intermediária
o eu lírico enfatiza: a cidade não mora mais em entre as percepções distintas e os espaços
mim. Mais do que circular pela cidade e morar paralelos – o habitado e o recordado. Através do
nela, é necessário que a cidade também habite o tempo kairós, a ordem dos luagres se alteram,
homem contemporâneo, faça parte de seu “mas essa mudança tem como condição os
cotidiano e lhe transmita uma sensação de recursos invisíveis de um tempo que obedece a
liberdade e bem-estar. outras leis e que, por surpresa, furta alguma coisa
A superficialidade do homem com a cidade, à distribuição proprietária do espaço”
em certos casos, é resultado de uma sociedade (CERTEAU, 1998, p. 161).
capitalista na qual os espaços de trabalho
tornam-se os mais previsíveis possíveis,
25E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um
Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm
de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os era bonito! (ROSA, 2001, p. 82).
olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe,
A CIDADE NÃO MORA MAIS EM MIM: QUESTÕES DE MEMÓRIA E ESPAÇO E URBANO NO DISCURSO LITERÁRIO
46
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
26
Doutoranda em Literatura Comparada •
renata_foli@hotmail.com • UFF • Orientadora Profa. Dra.
Celia Pedrosa
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 49
uso de enjambements, quanto na encenação de um fecha-se em torno dele como quarto. Logo, não
sujeito urbano que caminha pelas ruas do Méier, se trata dum espaço completamente
bairro histórico do Rio de Janeiro. desconhecido ou dum sujeito em busca de
Os versos curtos e as pausas dialogam com lugares separados de sua vivência. O que
o deslocamento do sujeito poético, que observa Angela põe em cena é o regresso, e nele é
e caminha pela cidade fazendo uso de tempos possível experienciar tanto o processo de
heterogêneos, seja pelo olhar anacrônico, seja territorialização, quanto o de
pelo tempo lento e arrastado de seus desterritorialização: o primeiro processo, ocorre
movimentos, como se desejasse captar várias com o reconhecimento do lugar, que o sujeito
dimensões do espaço: “A cada templo/cada habita(ou). Já o segundo, acontece na
tijolo esfarinhado” (MELIM, 2006, p.34). transformação do lugar numa paisagem nova,
Nesse sentido, o ritmo encenado está vinculado que, tal como um quadro, exige um
à sucessão e ao movimento das imagens, distanciamento, exige o espaçamento do sujeito.
ocasionado uma oscilação rítmica que parece E aqui cabe resgatar a noção de território,
acompanhar o olhar do ser poético movente e que segundo Guattari e Rolnik, no livro
aberto à alteridade. Noutras palavras, temos Micropolítica: cartografias do desejo (2010),
uma corrente rítmica com a qual se deixa fluir pode ser relativo tanto a um espaço vivido,
um movimento, ora numa fluência contínua/ quanto a um sistema percebido no seio do qual
livre, ora numa fluência interrompida, seja um sujeito se sente em casa:
“pelas ruas irregulares do Méier”, seja pelas O território é sinônimo de apropriação, de
reminiscências. Por essa via, o corpo do sujeito subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
poético e o corpo-poema parecem ser um só. conjunto de projetos e representações nos
No que tange ao sujeito encenado — pela quais vai desembocar, pragmaticamente, toda
sua condição de exterioridade e abertura ao série de comportamentos, de investimentos,
mundo, associada ao movimento rítmico nos tempos e nos espaços sociais, culturais,
irregular, causando uma embriaguez não só no estéticos, cognitivos (GUATTARI;
movimento de leitura, como também no ROLNIK, 2010, p.388).
movimento do sujeito poético no horizonte das Ainda, segundo os autores, tal território pode
temporalidades—, lembrou-nos a figura do se desterritorializar, isto é, “abrir-se, engajar-se
flâneur, que , segundo Walter Benjamin (2006), em linhas de fuga e até sair do seu curso”, já que
é aquele que vagueia pela cidade por um longo a espécie humana “está mergulhada num
tempo, deixando a embriaguez apoderar-se de imenso movimento de desterritorialização, no
seu corpo: “essa embriaguez não se nutre sentido de que seus territórios ‘originais’ se
apenas naquilo que lhe passa sensorialmente desfazem ininterruptamente” (GUATTARI;
diante dos olhos, mas apodera-se ROLNIK, 2010, p.388).
frequentemente do simples saber, de dados E é por intermédio dessa desterritorialização,
inertes, como de algo experienciado ou vivido”. que o sujeito poético meliniano percebe o espaço
(BENJAMIN, 2006, p.462). como outro, como um território des(conhecido),
No entanto, no que tange ao vivido, o sujeito modificado pelo tempo, e “pelo egoísmo dos
meliniano difere do flâneur benjaminiano. Pois, homens e das mulheres ricos/e ignorância de
ao se deslocar sob o efeito do forte calor carioca, homens e mulheres pobres” (MELIM, 2006, p.34.),
um calor que “incha/enche/emprenha”, deixando causando, assim, um estranhamento e
as ruas e a embriaguez anamnéstica conduzi-lo em distanciamento que o erradica de sua percepção
direção a um tempo que desapareceu, ele evoca imediata e da paisagem/morada da memória.
um passado que é, ao mesmo tempo, alheio e Noutras palavras, temos a figuração dum sujeito
particular. Isto é, sua visão, direcionada à que percebe o bairro do Méier como um território
paisagem citadina, põe em jogo memória atravessado, “de um lado a outro, por linhas de fuga
visuoespacial, trazendo à tona a dimensão aurática que dão prova da presença, nele, de movimentos de
do Méier, ou melhor, dos elementos que desterritorialização e reterritorialização"
sobreviveram à passagem do tempo. (DELEUZE; GUATTARI, 2009, p.71)
Parafraseando Benjamin, em Passagens Por esse ângulo, a paisagem citadina do
(2006:426), o bairro do Méier se apresenta aos Méier não é figurada de forma passiva, ao
olhos do sujeito poético em seus polos contrário, é “apresentada com uma cena móvel,
dialéticos, abre-se para ele como paisagem e animada por um jogo de sombras e luzes”
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 51
(COLLOT, 2013, p. 24). Um jogo possibilitado space) que a história da arte cansou de nos
pela imagem dialética, pelo olhar anacrônico do repetir, desde a perspectiva renascentista até
sujeito, que percebe o presente, os novos o espaço pretensamente "puro" de Mondrian.
tempos, mas sente as diferentes temporalidades (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 281).
que ele proporciona: “os novos tempos/ apenas No poema, “Pelas ruas do Méier”, observamos
salpicaram lembranças” (MELIM, 2006, p.34). a oscilação dessas experiências, expostas na
Neste sentido, a paisagem rompe com a citação de Didi-Huberman, a partir de dois modos
dicotomia sujeito e objeto. Nos termos do de construção: imagens que tocam a
geógrafo francês Augustin Berque (BERQUE, espectralidade do tempo no lugar e as que tocam a
2000, p. 160, apud COLLOT, 2013 p. 27), esse materialidade do tempo no espaço paisagístico: a
rompimento pode ser chamado de trajectivité, materialidade está vinculada aos aspectos visíveis,
isto é, a mediação entre o mundo das coisas (o rastros, vestígios que podem ser enxergados por
meio) e a subjetividade humana. Logo, o qualquer passante, como nos versos “Temos que
sujeito e a paisagem, encenados por Angela, dar importância as ruínas” ou “A cada templo/
podem ser lidos como parte de um conjunto, cada tijolo esfarinhado. / Andaimes corroídos/
já que se constituem mutuamente, numa espetados no ar/um dia sustentaram nossas sujas
confluência, dessa forma, como lemos no cidade” (MELIM, 2006, p.34).
Já a espectralidade está ligada ao ângulo
poema: não é só o verão, “assim
psíquico, isto é, à memória críptica
desornado”, que está fora de época” ou os (inconsciente e espectral) do sujeito poético.
elementos da paisagem que sobreviveram, Entre as figurações dessa, está o espectro da
remetendo, assim, ao outrora, sem cessar de juventude— como podemos ler no verso que
se reconfigurar; temos, também, encenada abre o poema, “Jovem de novo”, que é repetido
uma subjetividade poética que apresenta um no final da composição com algumas alterações,
ritmo semelhante ao do espaço observado. “outra vez jovem no calor do Méier” —; e o
Trata-se de um sujeito que demonstra, por espectro da felicidade associado ao de
intermédio da memória e das percepções, contemplação, sentimentos que pareciam ser
suas sobrevivências, seus movimentos de naturais ao sujeito, no pretérito, como em:
eternos retornos: “jovem de novo/ quando o “Pelas ruas irregulares do Méier/vou feliz/me
sinto no passado”, mas já não são possíveis, em
verão vem” (MELIM, 2006, p.34).
sua plenitude, no presente, devido ao olhar
Em relação a dimensão aurática do lugar, é
crítico/objetivo, como podemos constatar em:
importante ressaltar que o termo lugar, nesta
“Beleza tristealegre do incompleto e misturado
análise, está atrelado à ideia de significação, ou
(...)/ outra vez jovem no calor desolado do
seja, está relacionado não só a percepção do
Méier”. (MELIM, 2006, p.34). Assim, temos
sujeito, mas também ao afeto. Nessa perspectiva,
encenada, também, a passagem do olhar
cabe citar as reflexões de Didi-Huberman (2015),
contemplativo, ao o olhar crítico, retorcido por
em Suposição do lugar: aparição do longínquo,
problematizações de ordem afetiva e social.
nas quais apresenta uma distinção entre a
Logo, como pontuou Michel Collot, essa troca
experiência temporal do lugar e a do espaço,
entre interior e exterior “não diz respeito apenas
vinculadas ao espetáculo visível que a paisagem
à percepção individual, mas também à relação
pode proporcionar. Para o filósofo,
que a sociedade mantém com o ambiente”
a paisagem abre-se a uma experiência do (COLLOT, 2013, p.27).
visual e o espaço – as coordenadas Ainda no que tange à espectralidade,
objetiváveis, segundo as quais nós situamos queremos abordar, também, a memória crítica
um objeto ou nós mesmos - abre-se a uma de Angela, e com isso, não desejamos cotejar o
experiência do lugar. Quando Newman
eu lírico com o eu biográfico, e sim ampliar
descreve esse "sentimento que aqui é o
espaço" (the feeling that here is the space), é nossa reflexão sobre os modos de construção
preciso compreender que o aqui, o aqui do das imagens dialéticas neste poema, pois
lugar, trabalha somente para desconstruir as entendemos que a rememoração, quando
certezas usuais que temos do espaço ao instaurada no âmbito da poesia, pode ser um
procurarmos, espontaneamente, objetivá-lo. mecanismo interessante e produtivo.
Eis por que a afirmação desse aqui vem Então, observamos que ao figurar um sujeito
acompanhada de uma crítica exacerbada ao poético num espaço que reúne diversos
"alarido a propósito do espaço" (the clamor of
POÉTICA DA PAISAGEM: A EXPERIÊNCIA DIALÉTICA DO OLHAR EM ANGELA MELIM 52
ativadores da memória, Angela evoca não só um fulgura", escreve Benjamin em 1939, em seus
bairro que frequenta, ou seja, uma paisagem que fragmentos sobre Baudelaire. E, em seus
viu, vivenciou, e nos convida a ver— e nesse paralipomenes às teses Sobre o conceito de
sentindo, “se vê vendo através da ficção história, em 1940: "A imagem dialética é uma
bola de fogo que atravessa todo o horizonte do
subjetiva do eu poético” (PEDROSA, 2011, p.
passado. Ao fazê-lo, ela desenha um espaço
87). —, mas também um lugar que remete a sua que lhe é próprio, um Bildraum que caracteriza
infância: a cidade de Moscou, na Rússia, onde sua dupla temporalidade de "atualidade
morou dos onze aos treze anos. integral" (integraler Aktualität) e de abertura
Quando aborda a estação de trem do Méier, as "para todos os lados" (allseitiger) do tempo.
lotações — “tudo em escala de gente/ ao alcance (BENJAMIN, 1982, p.240 apud DIDI-
de gente (..) Cascateia o trem” —, Angela insere HUBERMAN, 2015, p.127, grifo nosso)
um verso que desterritorializa e desorienta o leitor 4 Considerações Finais
— “como em Riabina, Riabina” (MELIM, 2006,
p.34). Nele, temos a alusão à figura da riabina, um A partir da análise do exercício poético em
fruto comum na Rússia. torno da tematização da experiência do olhar, da
Como é sabido, Moscou é o centro da ampla memória e do espaço paisagístico, concluímos
rede ferroviária russa, e a história das principais que a poética de Angela Melim traz à tona uma
estações de trem da cidade está intimamente trama singular de visão, espaço, tempo e
entrelaçada com a do desenvolvimento do país, memória, evocando a dimensão aurática da
bem como no Méier, onde uma parte do passado paisagem encenada, e a imagem dialética em
do bairro está ligada diretamente à história dos sua essencial função: a crítica. Parafraseando,
trens. Assim, não só o bairro do Méier, como Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos
também seus elementos anacrônicos, como a olha (1998), um dos caminhos para conhecer/
antiga estação de trem, atuam no poema como ler a poesia de Angela Melim é captar a seu
um gatilho mnemônico, que apesar de remeter modo de ser aurático, sua forma de ir e vir
ao outrora, não é exatamente o passado, e sim a incessante: “uma forma heurística na qual as
memória. Nas palavras de Didi-Huberman, a distâncias e as temporalidades contraditórias se
memória decanta o passado de sua exatidão: experimentam dialeticamente” (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p.147)
E ela que humaniza e configura o tempo,
entrelaça as fibras, assegura suas transmissões, Referências
devotando-o a uma impureza essencial (..)pois a
memória é psíquica em seu processo, anacrônica COLLOT, Michel. Poética e filosofia da
em seu efeito de montagem, reconstrução ou paisagem. Tradução Ida Alves et al.Rio de
decantação do tempo. (DIDI-HUBERMAN,
2015, p. 41, grifo nosso). Janeiro: Editora Oficina,2013
Decantação, essa, que não ocorre só nas DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil
temporalidades figuradas, mas também no platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
processo de construção do verso— “como em Paulo: Ed. 34, 2009. v.1.
Riabina, Riabina/ poiezdi catchaietsa” DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do
(MELIM, 2006, p.34)—, no qual a poeta tempo: história da arte e anacronismo das
“mistura” os idiomas (português e russo). No imagens. Trad. Vera Costa Nova e Márcia
caso das palavras em russo, ao invés de grafar o Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
vocábulo, Angela apresenta a pronúncia (Trem
– Поезд – póiesd ou poiezdi). DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos
Nesse sentindo, o lugar da imagem poética olha. 2 ed. Trad. Paulo Neves. Rio de Janeiro:
meliniana não é determinado, ao contrário, seu Editora 34, 1998.
“movimento visa uma desterritorialização GUATTARI Félix; ROLNIK, Suely.
generalizada” (DIDI-HUBERMAN, 2015, Micropolítica: cartografias do desejo. 10ed.
p.125-126). Em vista disso, em “Pelas ruas do Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
Méier”, temos evocada a dimensão aurática da
poesia, a imagem dialética, que Benjamin MELIM, Angela. Possibilidades. Rio de
entende sob o modo visual e temporal de uma Janeiro: Íbis Libris, 2006.
fulguração, isto é, lampejo, clarão: PEDROSA, Celia. Ensaios sobre poesia e
"A imagem dialética é uma imagem que contemporaneidade. Rio de Janeiro: Eduff, 2011.
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
27
Doutorando em Letras • guilhermedelgaduh@gmail.com •
Universidade Federal do Paraná
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 54
Inclusive, essa espécie de indeterminação, de exemplo, uma ligação evidente entre a oitava-
limbo espaço-temporal é uma das marcas mais rima e a dicção heroica, que é flexibilizada,
fortes do poema, que discutiremos mais adiante. mas não desfeita, quando a estrofe passa a ser
Antes, retomemos o que diz Britto a respeito de usada em poemas herói-cômicos: afinal, se
essa forma não estivesse previamente
possíveis associações entre formas de verso
associada às narrativas épicas, como a de
livre e determinadas visões de mundo: Camões, não seria uma dessacralização usá-
O verso livre tradicional – longo, terminado la em narrativas satíricas, como fez Byron.
em pausa, marcado por enumerações e [...] O caso do soneto, então, nos proporciona
aliterações – lançado por Whitman e um exemplo ainda melhor. Nas mãos de
retomado em língua portuguesa por Fernando Shakespeare, ele ganha um sentido bem
Pessoa/Álvaro de Campos e Mário de diverso do que tinha em Petrarca e Camões,
Andrade, entrou em cena juntamente com a como fica patente no soneto 130, que zomba
tematização da nova realidade da urbe explicitamente do endeusamento da figura
moderna, vista como uma cornucópia de feminina na fórmula petrarquista [...] E
possibilidades, com sua pletora de quando pensamos no que fizeram com o
movimento, cor e sobretudo ruído. Não por soneto poetas tão diferentes quanto Fernando
acaso, à medida que o entusiasmo com a Pessoa/Álvaro de Campos, Jorge de Lima,
cidade moderna e a identificação com a Drummond e Glauco Mattoso, para
multidão expressos por Whitman, mencionar apenas quatro nomes e
Pessoa/Campos e o Mário da Pauliceia dão permanecer no âmbito da poesia lusófona,
lugar a sentimentos de alienação e busca de parece claro que nas mãos de cada um desses
refúgio na subjetividade, o verso livre poetas o soneto sofre um processo de
tradicional é substituído por um verso muito ressignificação, por vezes radical. (BRITTO,
diferente, que podemos chamar de 2014, p. 36).
williamsiano: curto, fracionado, muitas vezes
Ressignificação essa que nos remete
não terminado em pausa, um verso que com
frequência não corresponde a nenhuma novamente à obra poética de Britto, no mais das
unidade sonora e estabelece uma relação vezes radical. A título de evidência, lembremos
tensa e cambiante entre o plano da escrita e o que a sextina é uma forma poética inventada
da fala. (BRITTO, 2014, p. 36-37). pelo trovador provençal Arnaut Daniel (1150-
1210), sendo entendida, também, como uma
Como se vê, não tardou para que houvesse
forma extremamente desafiadora em razão da
uma clara dissidência, um claro complexidade de seu esquema permutatório de
descontentamento daqueles poetas do início do rimas idênticas. Dessa maneira, “Vilegiatura”
século XX com a visão de mundo que
apontaria para uma dupla dissidência: a
aproximava um sentimento de êxtase à profusão princípio, no plano subjetivo, ao ir de encontro
de estímulos suscitados pela urbe. Com o passar àquele entusiasmo whitmaniano com a urbe,
dos anos, verificamos que esse conforme há de atestar a volúpia repleta de
descontentamento apenas aumentou, tanto que, paisagens campesinas do poema em questão; e
hoje, a herança de Álvaro de Campos que nos por último, já no plano formal, por se
parece mais palpável está longe de ser aquela desenvolver a partir de uma sextina, indo de
das odes sensacionistas, em louvor de rodas e encontro a uma pretensa rebeldia associada ao
engrenagens; herdamos, sobretudo, o seu verso livre, que acabou por se tornar a forma
cansaço, “[u]m supremíssimo cansaço” “mais identificada com o poético em si”
(CAMPOS, 1993 [1944]), cada vez mais (BRITTO, 2014, p. 28), conforme o próprio
evidente em meio à atual realidade, tão virtual autor aponta:
quanto pandêmica. Somado a isso, há um
segundo aspecto não desprezado por Britto: No Brasil o verso livre tornou-se a forma
assim como o uso do verso livre não é, por si só, default da poesia contemporânea. Adotar a
pressuposto de modernidade ou métrica tradicional passou a ser uma forma de
dissidência, um desvio do mainstream da
contemporaneidade, o emprego de metros e
linguagem poética de nosso tempo: o que não
formas tradicionais não está fadado a ser deixa de ser irônico, quando se leva em conta
passadista: que o verso livre surgiu justamente como uma
Sem dúvida, as formas poéticas, ao surgirem, atitude de rebeldia, uma rejeição das
estão impregnadas de conotações impostas convenções da arte poética. (BRITTO, 2014,
pelas condições de uso originais; mas tais p. 28).
conotações não se eternizam. Há, por
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 55
Esquema de rimas
praticada pela primeira vez, nada impede que
gerações posteriores dela se apropriem,
Versos
modificando-a e utilizando-a de modo Sílabas
Poema Escansão
totalmente diverso. É esse o sentido do acentuadas
famoso bordão de Pound: make it new.
(BRITTO, 2014, p. 37).
Com relação à sextina no âmbito da poesia VILEGIATURA
lusófona, praticaram-na autores do porte de um
Sá de Miranda (1481-1558) e de um Luís de 1 Munidos de A - / - - - / || / 2-6-7-10
2 maçãs, lápis e B - - / - - || 4-6-10
Camões (c. 1524-c. 1580), e, de modo mais 3 fósforos, C ---/-/-- 4-6-10
episódico, no contexto brasileiro do século XX, 4 conquistaremos D - / || 4-6-10
Américo Facó (1885-1953) e Jorge de Lima 5 Nínive amanhã, E ---/-/-- 2-6-10
6 se não der praia e F - / - || 2-4-8-10
(1893-1953) (MOISÉS, 2013 [1974]). Mais a noite for de ---/-/--
recentemente, porém, essa forma vem ganhando 7 sono. F -/- 2-4-6-8-10
8 Porque afinal os A -/---/-- 1-4-8-10
espaço na produção de autores contemporâneos 9 dias são E -/ (3)-6-10
como Rodrigo Garcia Lopes (1965) e 10 dourados B - / - /- - - / - 2-4-6-10
Emmanuel Santiago (1984), além do próprio 11 e tudo é matinal D / || 3-6-8-10
12 nessa estação C 2-(6)-8-10
Paulo Henriques Britto. Ainda assim, não é de de água fresca, - / - / - / - ||
se surpreender que, de modo geral, nas 13 madrigais e C / - / - - || 2-6-10
apreciações de “Vilegiatura”, seja comum se 14 cópulas. F /--/---/ (3)-6-8-10
15 D - / - - || 2-4-6-10
limitarem à proeza de Britto retomar uma forma 16 São tantas mãos A --\--/-- 2-6-10
poética tão restrita quanto a sextina sem jamais 17 e bocas, tantas B - / || 3-6-10
18 cópulas, E -/-/-/-- 3-7-10
se estenderem sobre as implicações que tantas razões de - / ||
acompanham a escolha dessa forma. Sob tais 19 se riscar um E --/--/-/ (4)-6-10
pontos de vista, esse poema tende a se 20 fósforo, C -/- 1-(4)-6-8-10
21 é tão horizontal B -/---\-/ 2-4-6-10
sobressair quase que exclusivamente como uma 22 essa estação, F - / - || 2-4-8-10
demonstração de virtuose por parte do seu autor, 23 que é puro A 1-4-8-10
aproximando-se, ainda, de um exercício de 24 engodo a idéia D -/---/-- 1-4-6-10
do amanhã. - / - ||
estilo. Ou seja, comumente se destaca tão 25 E por que não D --\--/-/ 3-7-10
somente a tradição medieval que cerca sua 26 beber o sol E - / - - || 2-6-10
27 dourado A - / - / - || / - 3-6-8-10
forma, bem como a já mencionada 28 enquanto não C --/- 3-6-8-10
complexidade de seu esquema de rimas. Porém, 29 nos sobrevém o F -/---/-- 2-6-8-10
tal apreciação, a nosso ver, diz pouco. Interessa- 30 sono? B -/-- 4-6-10
--/--/--
nos mais o que Britto diz a partir de uma forma 31 Idéias B - / || 4-8-10
tão restrita quanto essa – o que nos leva, 32 sussurradas pelo D --/---/- 2-4-7-10
naturalmente, a refletir sobre como ele o diz. 33 sono, F -/ 2-4-8-10
34 pela sofreguidão E 2-6-10
“tantas razões de se riscar um fósforo” 35 de muitas C ---\-/-- 2-6-8-10
36 cópulas. A - / || 4-8-10
A fim de observar de que maneira as Enquanto isso, / - - \ - / || -
37 Nínive dourada B / - / - || 2-6-10
paisagens do campo e da cidade são 38 aguarda a D - / - / || - / - 1-4-6-10
apresentadas em meio à atmosfera fatigante de 39 combustão de F - - / || 4-8-10
“Vilegiatura”, examinemos uma análise formal nossos fósforos
ENTRE O CAMPO E A CIDADE: UMA LEITURA DE “VILEGIATURA”, DE PAULO HENRIQUES BRITTO 56
********
SIMPÓSIO 2
Poesia, outras artes, outros saberes
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
28
Especialista em Literatura Brasileira; surykatu@gmail.com;
UEMA
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 61
Desta forma, este estudo pretende destacar e suporte desta instituição, fazendo com que o
analisar o modo como a família, objeto da obra autor estabeleça mesmo uma relação de causa e
drummoniana e da série de Matt Groenning, efeito entre essa mulher e a própria felicidade
representa em vários momentos a figura como se observa na última estrofe do poema:
materna, bem como sua aproximação e [...]
distanciamento com os princípios éticos O agiota, o leiteiro, o turco,
hegelianos no que tange a ética e o outro O médico uma vez por mês,
fundamento da família “o amor”. O bilhete todas as semanas
Branco! Mas a esperança sempre verde.
2 Poema “Família” de Carlos Drummond
E a mulher que trata de tudo
de Andrade E a felicidade.
O poema “Família” de Carlos Drummond de (D’ONOFRIO, 2000, p.31)
Andrade é construído por este escritor com duas Dessa forma, verifica-se que o texto em
características peculiares: o ambiente familiar estudo retrata um tema recorrente nos poemas
com uma dimensão mais harmônica através da de Drummond, a família, que surge diversas
figura da mãe, bem como o recurso estilístico da vezes nos seus textos, mas a família aqui em
hipotipose, ao longo de todo o texto, para que o questão não é a que aparece com uma memória
leitor tenha a sensação de que percebe ou lembrança dolorosa de um passado que não
pessoalmente as descrições do cotidiano desta passou totalmente e pesa no presente, mas sim a
família como se realmente os fatos descritos por de uma família em que o amor é o seu maior
Drummond estivessem diante de seus olhos. A fundamento, a base para a harmonia entre os
plasticidade proporcionada pelo elemento seus membros. E de modo geral, esse poema é
estilístico da hipotipose revela ao leitor a construído pelo autor em torno de uma
descrição viva e animada da realidade de uma atmosfera intimista por meio da disposição de
família que vive o seu dia a dia simples, mas imagens em um efeito de simultaneidade de
cheio de amor e equilíbrio, de forma apresentá- objetos e ações que o recurso estilístico
la como se fosse visível. utilizado no texto nos permite sentir.
Cada estrofe do poema apresenta uma
enumeração e um verso que se repete em todas 3 Série Os Simpsons” de Matt Groennig
elas “A mulher que trata de tudo”, esse verso Os Simpsons é uma série de animação e
resume a concepção de harmonia dentro de uma sitcom norte-americana criada por Matt
família em que tudo gira em torno da mulher, a Groenning, um cartunista profissional dos
quem compete a organização da casa e o auxílio EUA, para a Fox Broadcasting Company. A
aos filhos e ao marido, como se verifica nos série é uma paródia satírica do estilo de vida da
versos a seguir: classe média dos Estados Unidos (incluindo aí a
Três meninos e duas meninas, cultura, a sociedade e até mesmo a televisão) e
sendo uma ainda de colo. aspectos da condição humana, através da
A cozinheira preta, a copeira mulata, família protagonista, que incluem o patriarca
o papagaio, o gato, o cachorro, Homer Jay Simpson (Homer), a matriarca
as galinhas gordas no palmo de horta Marjorie Bouvier Simpson (Marge), o filho
e a mulher que trata de tudo. Bartholomew Simpson (Bart), a filha Elisabeth
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, Marie Simpson (Lisa) e a caçula Margareth
O cigarro, o trabalho, a reza,
Simpson (Maggie), que vivem na fictícia cidade
A goiabada na sobremesa de domingo,
O palito nos dentes contentes, de Springfield.
O gramofone rouco toda noite Muito embora a primeira temporada da série
E a mulher que trata de tudo. […] tenha iniciado em 1989, Os Simpsons são, de
(D’ONOFRIO, 2000, p.31) acordo com alguns críticos, o evento televisivo
mais importante dos anos 90, exibindo ao
Nesse poema em estudo, a cena construída é
grande público personagens distintos e
a vida no campo de uma família composta por
indubitavelmente irreverentes e curiosos.
três meninos, duas meninas, uma cozinheira,
Homer, o chefe da família, aos 35 anos, é um
uma copeira e uma dona de casa mencionada no
elemento totalmente estranho e engraçadíssimo
texto repetidas vezes, intencionalmente pelo
que está constantemente acima do peso, é
autor, para evidenciar o destaque que
inspetor de segurança do setor 7G na usina
Drummond dá a figura da mãe/mulher como
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 62
nuclear da cidade e adora beber cerveja e assistir emoções que sente terem sido perdidas.
TV, nesse item, ele é o primeiro a sentar-se em Lisa Simpsson, uma menina de oito anos de
frente ao aparelho e ficar horas olhando para ela idade, representa o “filho” inteligente dos
junto com os filhos. Na verdade, Homer Simpsons, ela é, ao contrário de seu pai, a
representa a imagem do preguiçoso na série, imagem da virtude que a coloca constantemente
tanto no seu ofício na usina nuclear onde em situação de crise existencial numa sociedade
trabalha, quanto na sua casa, pois sua função no vazia, hipócrita e cínica. É o ser mais
setor 7G na usina limita-se a monitorar a equilibrado de toda a família Simpson,
máquina de salgadinhos, olhar o relógio, vegetariana convicta, defensora dos direitos das
estudar a pálpebra internamente e prevenir os minorias, feminista ardorosa e exemplarmente
problemas na pastelaria, já em sua casa, mesmo estudiosa, Lisa é a personificação da
sendo um pai dedicado e capaz de cometer consciência que reina sobre sua família e
qualquer disparate para defender a família que também sobre Springfield, pois é mais madura
ele ama, sua função é fazer patrulha deitada, do que a grande maioria dos habitantes da
distribuição de roupa de baixo e produção de cidade e tenta a cada novo episódio, ajudar tanto
migalhas de comida pelo chão. Homer tem sua família quanto aos demais habitantes ao seu
verdadeira adoração por sua esposa e filhos, redor a melhorar suas vidas.
tanto que frequentemente se questiona e Maggie, a caçula de um ano de idade da
pergunta, principalmente para sua filha Lisa, se família Simpson, um bebê que embora ainda
ele faz sua amada mulher feliz. não fale é um ser de muita expressão e
Marge Simpson, esposa de Homer, aos 34 inteligência e adorada por todos, sendo
anos, é uma mãe de família e dona-de-casa que considerada por muitos fãs a mais inteligente
não gosta de muitas mudanças. Mãe dedicada, dos Simpsons. Ela ama chupar sua chupeta e
seu principal divertimento é resmungar e adora animais. Há aproximadamente cinco anos
reclamar o tempo todo, representando muito essa personagem vem tentando pronunciar
mais do que uma simples mãe preocupada com algumas poucas palavras e dentre elas “papai” o
seus filhos, essa personagem é projetada na que deixa Homer completamente satisfeito.
série como a mulher dos anos 90 que começa a Essa série famosa conquistou um seleto
ajudar financeiramente seu marido, ela é aquela grupo de seguidores fiéis e embora tenha sido
que busca seu lugar no mundo frente a um recebida pelo público brasileiro com certa
cenário que era até então exclusivamente dos frieza, o seu roteiro tem um singular
homens, trabalhando inclusive ao lado de seu perfeccionismo de produção tanto na
marido Homer na usina nuclear. O único linearidade dos episódios e na ligação entre
excesso deste personagem é o seu enorme e alto pequenos detalhes quanto na riqueza das
cabelo azul que ela usa cotidianamente, mas até referências, críticas sutis e atuais e na
mesmo a escolha da cor azul do cabelo de originalidade de suas temáticas.
Marge reflete, pela simbologia que essa cor
4 Família na Filosofia do Direito de Hegel
carrega, o sentido de paz e segurança que essa
mãe representa naquela família, bem como a De acordo com o pensamento político
imagem da mulher exuberante porém discreta hegeliano, dentro do conjunto ética e Estado, o
que sai, finalmente, do anonimato. homem considerado como substancia ética da
Bart Simpson, filho mais velho do casal, um sociedade civil, somente desenvolve todo o seu
garoto rebelde de dez anos de idade, estudante dever em face da liberdade, mas uma liberdade
da Springfield Elementary School, está na 4 somente na medida em que prossegue dentro do
série, adora bagunça passando a maior parte do que é reconhecido de aceitado pela ética e pelo
seriado junto de seus amigos a fazer travessuras, Estado.
esse personagem seria um herói anti-herói e o Se a razão para Hegel é a certeza consciente
Simpson mais mal interpretado, porque ele não de ser toda a realidade. O Estado para Hegel é
entende o motivo dos moradores o um todo ético organizado, ou seja, o verdadeiro,
recriminarem. Mas mesmo sendo um arquétipo porque é a unidade da verdade universal e
do Bad Boy, capaz de roubar os livros dos subjetiva. Dessa forma, a vontade individual
professores e causar com isso o cancelamento (singular) e a vontade universal (O Estado)
das aulas, Bart é um menino esperto que encontram como identidade os direitos e
contraria as normas da sociedade em busca de deveres, assim no desenvolvimento da ideia de
UMA LEITURA DO TEMA FAMÍLIA NA SÉRIE “OS SIMPSONS” DE MATT GROENNING E NO POEMA “FAMÍLIA” DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 63
figura paterna, mas sim a da mãe/mulher como Kant visitam Springfield. Disponível em:
uma forma de se reavivar a imagem da família http://acervo.plannetaeducacao.com.br/portal/a
no afeto e no amor, que o próprio Hegel, na rtigo.asp?artigo=267. Acesso em 08 de
Filosofia do Direito, considera como a unidade setembro de 2021.
da família. Na série Os Simpsons, a relação
MARTINS, Jorge Manuel Venâncio. A poesia
texto/família nem sempre aparece nos episódios
de Carlos Drummond de Andrade: Memória
de maneira equilibrada, porque por vezes
e família articulações poéticas. Disponível em:
percebe-se a questão da identificação, da
ite.cefetmg.br/wp-
consciência de alguns membros da família
content/uploads/sites/114/2019/10/107_Poesia
Simpson oscilar em alguns momentos, muito
_Martins.pdf. Acesso em: 09 de setembro de
embora a figura paterna que ainda representa a
2021.
casa dos Simpsons, ainda conserve a imagem da
família patriarcal na forma do afeto. ROCHA, Alessandra Almeida da; PIRES,
Portanto, a escolha do poema e da série em Flavia da Silva; CARDOSO, Kátia Regina
questão é em virtude de sua abrangência Costa; GOMES, Nataniel dos Santos. Os
cultural e social, bem como da importância de Simpsons uma crítica ao estilo de vida norte-
seus temas ao exaltar a família, dentro da americano. Disponível em:
concepção hegeliana, como a base para a http://www.filologia.org.br/pub_outras/sliit02/
formação do indivíduo, a instituição de sliit02_87-92.html. Acesso em: 07 de setembro
formação do início do desenvolvimento da de 2021.
eticidade natural e imediata, como o SILVA, Ricardo. Explorando a filosofia n’Os
fundamento do Estado. Simpsons. Disponível em:
Referências http://www.aescotilha.com.br/literatura/ponto-
virgula/os-simpsons-e-a-filosofia-editora-
BARBOZA, Marlene Alípio. Individualidade madras-resenha/. Acesso em: 08 de setembro de
e família: considerações sobre a formação 2021.
(Building) do indivíduo na filosofia do direito
WIKIPIDEA. Os Simpsons. Disponível em:
de Hegel a partir da família. Recife: O autor,
https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Simpsons.
2011.
Acesso em: 08 de setembro de 2021.
BRYCH, Fábio. Filosofia do Direito: Uma
WIKIPEDIA. Princípios da Filosofia do
introdução ao pensamento político de Hegel.
Direito. Disponível em:
Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Princ%C3%ADpi
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-
os_da_Filosofia_do_Direito. Acesso em: 03 de
47/filosofia-do-direito-uma-introducao-ao-
setembro de 2021.
pensamento-politico-de-hegel/amp/. Acesso
em: 09 de setembro de 2021.
CABRAL, João Francisco P. Sobre o Estado – ********
Filosofia do Direito de Hegel. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/sobre-
estado-filosofia-direito-hegel.htm. Acesso em:
10 de setembro de 2021.
CHÀTELET, François. Hegel. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995.
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto:
Teoria da lírica e do drama. 1.ed. São Paulo:
Ática, 2000.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios
da filosofia do direito. Tradução de Orlando
Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
MACHADO, João Luís de Almeida. Os
Simpsons e a filosofia: Aristóteles, Nietzsche e
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: O presente artigo discute a primeiro livro, 20 poemas para seu walkman em
experiência poética na contemporaneidade, a 2007. Dez anos depois, publica seu quinto livro
partir da relação da lírica de Marília Garcia com de poemas, Câmera Lenta (2017). Nele
as imagens, no poema “tem país na paisagem?” encontramos poemas longos que apresentam
do livro Câmera lenta (2017). Dessa forma, marcas de uma linguagem narrativa, assim
busca-se compreender de que maneiras a como uma rede intertextual complexa, a partir
aproximação entre poesia e fotografia produz da qual a poeta elabora sua lírica. Além disso,
significados no texto poético de Marília e na são constantes os diálogos com outras artes,
tradição na qual ela está inserida. Para tanto, como o cinema e a fotografia, o que podemos
utiliza-se como aporte para a discussão perceber já no título da obra, que faz referência
principalmente as reflexões de Celia Pedrosa a um recurso bastante utilizado nas produções
(2010, 2015) sobre poesia contemporânea e cinematográficas. Assim, encontramos na obra
Susan Sontag (2003), Joan Fontcuberta (2010) de Garcia uma reflexão sobre as imagens que
e Walter Benjamin (2017) sobre fotografia. A perpassa sua composição lírica e amplia as
partir das análises, foi possível perceber que discussões sobre o fazer poético, sobre a
Marília Garcia constrói uma lírica que, ao memória bem como sobre as formas de
problematizar os usos da fotografia, propõe uma intepretação da realidade, presente não somente
reflexão acerca da capacidade de apreensão do em Câmera Lenta, mas também nas demais
presente, bem como das expectativas geradas obras da poeta.
em torno dos registros visuais realizados pela Celia Pedrosa (2010), em uma análise de 20
câmera. Ao evidenciar a relação da fotografia poemas para seu walkman, reflete que há uma
com o ordinário, Garcia vincula à experiência contradição na cultura contemporânea na qual
poética a uma tendência contemporânea na qual uma “intensificação dos processos de produção
o cotidiano substitui os acontecimentos e reprodução tecnológica” se radicalizam e se
homéricos de outrora. A lírica de Garcia em tensionam. Para Pedrosa, a poesia de Marília
"tem país na paisagem?", assim, demonstra que convive com essa intensificação, “inclusive
discutir o registro do cotidiano e do banal pode transformando a materialidade desses processos
ser uma forma de questionar e elaborar a própria em tema, questão e procedimento formal, como
existência, mobilizando algumas das grandes estamos vendo (PEDROSA, 2010, p. 36)”.
questões existenciais, entre elas, o Entre esses processos de produção e reprodução
pertencimento, o espaço, a realidade e a tecnológica, a fotografia e o cinema ganham
apreensão e passagem do tempo. destaque, especialmente em Câmera lenta.
No que diz respeito à fotografia, Natália
Palavras-chave: Marília Garcia; Poesia Brizuela explica que quando essa se torna
contemporânea; Fotografia. natural na vida privada e pública, recorrente no
cotidiano, ela passa a integrar os regimes
1 Considerações iniciais artísticos, “não como representação, nem como
Marília Garcia, poeta carioca, publicou seu ilustração, nem como arte, mas como conceito”
29
Doutoranda em Letras • marianep.rocha@gmail.com •
Universidade Federal de Pelotas
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 67
(2014, p. 80). Esses novos usos da fotografia assim como a menção de nomes próprios de
permitem, então, deslocamentos e intersecções pessoas e lugares, como incrustações não
entre as áreas, já que, conforme a autora, “as dissolvida no andar do poema (LEONE,
artes começaram a expandir-se, a deslocar-se, a 2015, p. 132).
transitar por zonas e materialidades que não A autora aponta, então, tais inserções como
eram as que, até aquele momento, haviam a manifestação tanto de um outro que se
definido cada uma” (BRIZUELA, 2014, p. 80). entrecruza com o próprio eu poético, quanto do
Quando a literatura toca a fotografia, então, “a próprio eu que se apresenta múltiplo e participa
literatura move-se para uma prática conceitual, de uma “singular-pluralidade”. Argumentamos,
abre-se para o mundo, para aquilo que não era porém, que esses entrecruzamentos vão além do
antes parte dos materiais, do meio literário” discurso do outro, são também outros tipos de
(2014, p. 31). discurso, ou seja, o discurso fotográfico e o
Aulus Martins (2016), circunscrevendo a discurso cinematográfico compõem essa rede
discussão ao campo da poesia, elucida que de referências na qual a poesia de Marília se
existem ao menos duas possibilidades de elabora. Sendo assim, o presente trabalho
diálogo entre poesia e fotografia. Na primeira discute a experiência poética na
delas, fotografia e poema dividem o mesmo contemporaneidade, a partir da relação da lírica
espaço, com a materialidade fotográfica de Marília Garcia com as imagens, tanto quanto
construindo sentindo juntamente ao texto procedimento como quanto temática. Dessa
poético. Na outra, a fotografia se manifesta no forma, investiga-se o diálogo que essa poesia
poema “seja pela sua mera descrição, seja pela estabelece com a fotografia e busca-se
apropriação de recursos e gestos inerentes ao compreender de que maneiras essa aproximação
ato fotográfico” (MARTINS, 2016, p. 107). produz significados no texto poético. Como
Nesta segunda tendência, vamos encontrar corpus de análise, para o desenvolvimento do
poemas em que a fotografia, “apesar de não presente texto, será utilizado o poema “tem país
estar presente, é percebida através de alterações na paisagem?” de Câmera lenta (2017).
na sintaxe” (BRIZUELA, 2014, p. 31), e, assim, Ao estudar a poesia contemporânea é
podemos visualizar determinados elementos do importante que novas abordagens sejam
dispositivo fotográfico dos quais a literatura se utilizadas, uma vez que, conforme reflete Celia
apropria, “como a indexicalidade, o corte, o Pedrosa, a lírica contemporânea "passa a se
ponto de vista, o pôr em cena, a dupla caracterizar também pela pluralidade de
temporalidade (passado-presente/o que foi-o discursos e tendências" (2015, p. 322) e, assim,
agora), o caráter documental, sua função há uma “dificuldade de enfrentamento do
mnemônica, o ser uma mensagem sem código” heterogêneo e de fazer disso oportunidade de
(BRIZUELA, 2014, p. 31). questionar generalizações e discutir a partir de
Ao discorrer sobre a poesia de Marília, Luciana tensões, incertezas" (PEDROSA, 2015, p. 323).
di Leone (2015) explica que há um método poético Dessa maneira, quando Beatriz Resende (2008)
na lírica de Garcia que organiza tudo aquilo que explica que para analisar as novas produções
está suspenso ao redor, “o método da perplexidade literárias é preciso “deslocar a atenção de
ante as partículas de outros poemas, de outros modelos, conceitos e espaços que nos eram
discursos, de outros tempos, em fim [sic], ante a familiares até pouco tempo atrás" (RESENDE,
imagens mínimas que revelam, de forma 2008, p. 15), entendemos que estudar a poesia a
intermitente, suas conexões com outros corpos, sua partir de sua posição de diálogo com a
condição de desprendimento” (LEONE, 2015, p. fotografia e o cinema é uma abordagem atual
131). A autora afirma ainda que esta poesia se que nos abre uma série de possibilidades de
caracteriza pelos “momentos de encontros análise.
discursivos”:
2 Como ver o tempo passar neste lugar?
Insisto nisso me baseando, entre outros
elementos, na visível utilização de citações O poema “tem país na paisagem? (versão
propriamente ditas (as “atracadoras”, de compacta)” está inserido na seção “pausa” de
Walter Benjamin, que nos fazem dizer outra Câmera lenta (2017). Seu título deixa
coisa, sempre outra coisa), mas também na subentendido que há uma versão “estendida” do
insistência com que aparecem verbos dicendi, poema, visto que é a compacta que compõe o
ou signos de intrusão (aspas, dois pontos, volume. De fato, este poema, com algumas
itálicos), que abrem o discurso ao seu outro,
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 68
alterações e muitos acréscimos havia sido lido A partir da primeira estrofe, reproduzida
pela poeta na Casa de Rui Barbosa em abril de acima, percebemos que há importantes
2017, com o mesmo título. Na ocasião, a poeta perguntas que norteiam as práticas do eu lírico,
fez a leitura dos versos do poema ao mesmo sejam elas explícitas, “como ver o tempo/
tempo em que reproduzia em um projetor uma passar neste lugar?” ou implícitas “e tiro uma
série de fotos. Essa leitura está agora disponível foto/ que possa me dizer/ alguma coisa/ sobre
no canal do youtube30 da poeta e conta com a estar aqui”. Essas perguntas, no entanto, não
seguinte descrição: “’Tem país na paisagem?’ são respondidas pelo gesto fotográfico do eu
passou a se chamar "Parque das ruínas" e lírico, já que é “o resto” (v. 4), além da
integra novo volume da autora publicado pela fotografia, que gira “em torno da pergunta:/
editora Luna Parque (2018)”. Em Parque das como ver o tempo/ passar neste lugar?”. Assim,
ruínas (2018), encontramos os versos lidos pela a fotografia é apenas um hábito, atividade que a
poeta, compostos agora também pelas poeta realiza de maneira quase mecânica, todos
fotografias projetadas na ocasião. Não há, no os dias, enquanto somente o “resto” é destinado
entanto, nem no canal do youtube, nem no às perguntas que precisam ser respondidas.
volume novo de 2018, menção à versão Além disso, o referente que o eu lírico fotógrafo
compacta de Câmera lenta. Aqui, temos acesso captura, a ponte, também é da ordem da rotina,
às fotografias através das impressões e gestos de já que ele a registra corriqueiramente, conforme
um eu lírico que, diariamente, às 10 horas, na terceira estrofe do poema:
fotografa uma ponte de uma cidade na qual ele chego na ponte às 10h para
chegou recentemente. Através desse processo a foto diária e tem
fotográfico diário, a poeta elabora diferentes um caminhão em cima
da faixa de pedestre.
reflexões sobre a possibilidade da captura da
espero alguns segundos
realidade e a passagem do tempo. O poema até ele andar
discute, ainda, questões como a repetição e a e aperto o clique. (GARCIA, 2017, v. 49-55)
rotina, o pertencimento e o não pertencimento:
O eu lírico espera o caminhão se mover para
1. tirar a foto, em um indício de que ele não deseja
aqui só tenho uma regra:
registrar nada que considere fora do comum
todos os dias às 10h
tiro uma foto da ponte. para a cena que pretende capturar. No oitavo
o resto é livre e gira verso, ao fazer referência a Georges Perec e
em torno da pergunta: mencionar o “infra-ordinário”, o poema já
como ver o tempo revela que o ato de ir até ponte significa, para
passar neste lugar? ele, o registro do ordinário. Segundo Andrea
Penso no infra- Silva (2018), a escolha pela referência ao
ordinário de georges perec escritor francês não se dá por acaso, já que o
e todos os dias termo "infra-ordinário", título de um de seus
vou até a ponte livros póstumos, foi utilizado por Perec para
e tiro uma foto
refletir sobre o apagamento do banal e do
que possa me dizer
alguma coisa cotidiano em detrimento do sensacionalismo do
sobre estar aqui. trágico:
a ponte tem três arcos. A provocação lançada pelo autor francês
a água do rio é verde. volta-se contra o sequestro da rotina pela
atravesso a ponte com 124 passos. sociedade do espetáculo e das manchetes
quando um barco passa, catastróficas, que parecem sempre desviar
uma onda se forma. nossa atenção da progressão ordinária da
escrevo a partir das fotos e vida. A indústria das notícias, por esse ponto
depois apago as fotos. de vista, deforma nossa percepção até que não
(você poderia imaginar uma foto sejamos mais capazes de reconhecer o que
do primeiro dia? está a nossa volta (SILVA, 2018, p. 317).
isso aqui é uma
expedição). (GARCIA, 2017, v. 1-26, grifos A fotografia, que teve sua dimensão
da autora) ampliada a partir dos seus usos jornalísticos,
contribuiu para a construção dessa sociedade do
30 https://www.youtube.com/watch?v=qEQfXg4b9Ko
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 69
espetáculo, assim como para a insensibilidade aspectos da natureza que se tornam evidentes
que surge perante ela. Susan Sontag comenta em uma fotografia não poderiam ser percebidos
que “a caçada de imagens mais dramáticas a olho nu, através da simples observação do
(como, muitas vezes, são definidas) orienta o referente. O autor explica, então, que “a
trabalho fotográfico e constitui uma parte da natureza que fala à câmera é diferente da que
normalidade de uma cultura em que o choque se fala aos olhos. Diferente sobretudo porque a um
tornou um estímulo primordial de consumo e espaço conscientemente explorado pelo homem
uma fonte de valor” (2003, p. 61). Sendo assim, se substitui um espaço em que ele penetrou
o que as fotografias dos “grandes inconscientemente” (BENJAMIN, 2017b, p.
acontecimentos”, especialmente do trágico, 55). Dessa maneira, é somente ao olhar as
causariam, seria uma insensibilização para a fotografias que o observador “sente o impulso
experiência cotidiana, já que vivemos em uma irresistível de procurar numa fotografia dessas a
sociedade, conforme comenta Walter ínfima centelha do acaso, o aqui e agora com
Benjamin, para a qual a “vivência do choque se que a realidade como que consumiu a imagem”
tornou norma” (BENJAMIN, 2017a, p. 113). (BENJAMIN, 2017b, p. 55). Em “tem país na
A poeta, então, ao fotografar as miudezas do paisagem?”, o eu lírico que observa as
cotidiano e ao insistir no registro do banal, vai na fotografias é o próprio fotógrafo que, apesar de
contramão do gesto que vincula a fotografia ao ter estado todas as manhãs presente na ponte,
espetáculo. Para Joan Fontcuberta (2010a) fazer ainda carrega a expectativa de que as fotos
do banal matéria fotográfica é uma característica revelem algo diferente daquilo que
bastante contemporânea, já que até a testemunhou, “algum indício do que
modernidade, fotografava-se apenas os momentos aconteceu”.
especiais, as “exceções da cotidianidade: ritos, As fotografias organizadas pelo eu
celebrações, viagens, férias etc” lírico/fotógrafo parecem construir, ainda, uma
(FONTCUBERTA, 2010b p. 40). Para o autor, narrativa: “tento ver alguma mudança /de um
Há alguns anos fazer uma foto ainda era um
dia para /o outro”. Essa espécie de timeline
ato solene reservado a ocasiões privilegiadas; construída a partir das fotos, ao mesmo tempo
hoje disparar a câmera é um gesto tão banal em que, para a poeta, capturam algo que seus
quanto coçar a orelha. A fotografia se tornou olhos sozinhos não teriam percebido, é também
onipresente, há câmeras por toda parte reorganizada de forma desconectada da
captando tudo. O que há meio século teria realidade, já que, conforme vimos na estrofe
parecido uma sofisticada câmera de espião é anterior, o eu lírico esperava a cena ficar de
hoje um padrão comum que carregamos no acordo com o que ele acreditava ser mais
bolso (FONTCUBERTA, 2010a, p. 39). adequado para representar sua cena (“espero
Se a fotografia do banal parece não ter alguns segundos/ até ele andar/ e aperto o
impacto no cotidiano do eu lírico, notamos que clique”). Visto que toda a teoria moderna da
a longo prazo, entretanto, a poeta espera que as fotografia debate sua desvinculação do real e
fotografias sejam capazes de revelar alguma que a manipulação é parte constituinte da
coisa sobre o passado, conforme verificamos na fotografia (FONTCUBERA, 2010b) não é o
quarta parte do poema: gesto da manipulação que surpreende no
poema, mas sim a expectativa de que ela seja
procuro a foto da ponte
capaz de revelar alguma coisa sobre o real,
feita um mês antes.
seria possível ver mesmo reconhecendo a manipulação em sua
algum indício do que aconteceu? prática. O que a fotografia revela, nesse
procuro a foto do dia seguinte: sentido, é uma possibilidade de leitura do real
um caminhão e quatro pessoas. que é construída pela subjetividade de quem o
tento ver alguma mudança capturou. Assim, o que o eu lírico espera
de um dia para encontrar nas fotografias da ponte talvez diga
o outro. (GARCIA, 2017, v. 72-80) mais a respeito dele mesmo do que da ponte ou
Essa capacidade da fotografia de captar da cidade que ele captura. Quando a poeta diz
algum indício da realidade e de revelar “e tiro uma foto/ que possa me dizer/ alguma
determinados aspectos do passado também foi coisa/ sobre estar aqui” o que ela deseja da
discutida na primeira metade do século XX por fotografia, muito mais do que a compreensão
Benjamin (2017b). Para ele, determinados sobre o lugar na qual ela se encontra, é a
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 70
compreensão sobre a presença dela nesse lugar. em um momento de caos, as pessoas não são
Aliado a isso, parece haver ainda uma busca capazes de identificar o que está acontecendo,
de compreensão de algum acontecimento os barulhos, os gritos e a desestruturação da
maior, que abalou o infraordinário da cidade. ordem poderiam indicar tanto um ato de
Na versão estendida de Parque das ruínas, a terrorismo quanto uma catástrofe natural.
poeta menciona o atentado ao jornal Charles De toda forma, o desencontro entre o eu
Hebdo, em 7 de janeiro de 2015. Na versão lírico e os lugares que habita, seja a ponte que
compacta, porém, há apenas uma sugestão ao fotografa, seja a casa que reside, vai perpassar o
acontecimento, na parte três, a partir das poema de forma significativa:
reflexões do eu lírico um tempo depois do antes de chegar,
ocorrido: “’um mês depois/ ainda pareço um ela me disse que o quarto era iluminado.
zumbi’,/ ela me diz e estamos no dia/ 7 de “é difícil olhar as coisas
fevereiro.” (GARCIA, 2017, v. 45-48). diretamente”, penso
(...) são muito luminosas ou muito
volto para casa com pressa escuras. (GARCIA, 2017, v-27-32)
e leio o aviso na porta Esse desencontro é, naturalmente,
de entrada. manifestado através da dificuldade do eu lírico
há um mês colocaram de “olhar as coisas diretamente”, já que “olhar”,
este aviso ali e o país
“ver” e “enxergar” são comumente metáforas
entrou em estado de alerta.
todos os dias agora para entendimento e apreensão da realidade.
um novo vocabulário se espalha. Assim, a descontinuidade entre o eu lírico e os
todos os dias tento entender lugares que frequenta é, em última instância, um
o que as pessoas dizem desencontro entre o eu e a realidade que ele não
seria [terrorismo] ou [terremoto]? consegue apreender. Dessa maneira, o eu lírico
todos os dias agora recorre às fotografias para tentar assimilar a
uma linha de sombra existência e o tempo presente:
por onde passo e aquela
poeira cinza e todos os dias
e colante. (GARCIA, 2015, v. 56-71) vou até a ponte
e tiro uma foto
O foco no infraodinário posto desde o início que possa me dizer
do poema não se perde, uma vez que a poeta alguma coisa
retorna às fotografias como uma tentativa de a sobre estar aqui. (GARCIA, 2017, v. 10-15)
partir do infraordinário ver o extraordinário: ela Notamos, dessa forma, que além do
busca na rotina de um mês antes do atentado desencontro da poeta com os locais geográficos,
algo fora da normalidade, ao mesmo tempo em há ainda uma dificuldade de pertencimento em
que percebe, na rotina atual, que o relação ao momento presente. Como vemos nos
extraordinário, a presença constante da ameaça versos a seguir, o eu lírico de “tem país na
e o medo também vão se constituindo como paisagem?” não parece conseguir apreender o
parte ordinária da vida na cidade. tempo presente em sua totalidade, ou ainda,
Além disso, percebemos, ao longo do utilizando a reflexão de Giorgio Agamben,
poema, que eu lírico registra um lugar com o (2007) de coincidir com esse tempo:
qual não está familiarizado, o que fica manifesto
através das referências de tempo e lugar que a e todos os dias às 10h
poeta utiliza, como “antes de chegar,” pergunto:
(GARCIA, 2017, v. 27), “como atravessar os como ver este instante
passando? sempre tinha tentado
meses neste lugar/ e ver o que acontece?”
pular as etapas da vida
(GARCIA, 2017, v. 40-41, grifos da autora). e apagar o entre.
Nesse mesmo sentido, nas estrofes citadas como atravessar os meses neste lugar?
acima, vemos que a dificuldade do eu lírico ao e ver o que acontece?
entender o idioma falado também o situa em um a fotografia divide futuro
lugar de estrangeiridade e não pertencimento, e passado – seria possível ver o que
“seria [terrorismo] ou [terremoto]?”. O fato do está no meio? (GARCIA, 2017, v. 34-44,
eu lírico não entender se o que está sendo dito é grifos da autora)
“terromoto” ou “terrorismo” sugere, ainda, que O “ver” (v. 38), portanto, tem um sentido
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 71
duplo. Está ao mesmo tempo evidenciando a vestígio do que aconteceu há tanto tempo.
incapacidade do dispositivo fotográfico de dar Porém, na ponte, assim como em suas
conta de uma realidade, já que apesar das fotografias, tudo segue igual: o poema se
constantes fotografias que o eu lírico captura, encaminha para o fim com a repetição dos
ele não consegue registrar o momento que mesmos versos da primeira estrofe “a ponte tem
passa, nem ver o presente, apenas o passado e o três arcos/ a água do rio é verde./ atravesso a
futuro; e agindo de metáfora para a ponte com 124 passos./ quando um barco
incapacidade da própria poeta de entender a passa,/ uma onda se forma”. Assim, a fotografia
realidade na qual se encontra inserida. aqui é evidenciada em um gesto duplo, ao
Vamos ter acesso à pergunta que dá título ao mesmo tempo em que falha, pois não consegue
poema, “tem país na paisagem?”, apenas nas dar conta de registrar nenhum dos
estrofes finais, após um momento narrativo, no acontecimentos extraordinários da cidade ou da
qual a poeta conta a história de uma mulher que ponte, ela também reassegura e auxilia a poeta
morreu na mesma ponte que ela fotografa. Mais na aproximação com o lugar, visto que a
uma vez, então, Marília reflete sobre a normalidade pode ser reconfortante e familiar.
possibilidade de um acontecimento Nesse sentido, a pergunta, ao fim do poema,
extraordinário se manifestar no infraordinário “tem país na paisagem?”, ratifica a necessidade
da rotina: de pertencimento que a poeta elabora durante
quando chego ao rio,
todo o poema, já que demonstra que o eu lírico
sinto um vento nas costas não consegue saber quais características
e lembro do fantasma que ronda a ponte. daquele país, sua cultura, idioma e
ela era casada com um homem idiossincrasias, o constituiriam
que estava na guerra significativamente, a ponto de se manifestarem
e teve um amante que lutava na paisagem que observa. A falta de conexão
pelo país inimigo. com o lugar atinge, dessa forma seu ápice
contam que, em uma noite de inverno, durante a finalização do poema e a poeta não
uma noite fria e escura, parece encontrar respostas para as perguntas
ela ficou na ponte esperando o amante
que são postas ao longo das estrofes.
durante muitas horas ele não veio.
ela morreu congelada 3 Reflexões finais
ou caiu no rio.
olho para a esquina Em “tem país na paisagem?” encontramos
em busca do espectro dela. um eu lírico que, ao mesmo tempo em que
olho ao redor e a ponte tem três arcos. registra o banal e o cotidiano, subvertendo os
a água do rio é verde. usos da fotografia de uma sociedade voltada
atravesso a ponte com 124 passos. para o extraordinário, também a utiliza na
quando um barco se passa, tentativa de pertencer a algum lugar e de
uma onda se forma. aprofundar seu entendimento da realidade e, por
ouço o barulho da onda conseguinte, de si mesmo. O dispositivo
e do barco.
fotográfico, contudo, revela apenas “indícios”,
agora me sento no parapeito da ponte
e olho para o outro lado do rio. o “passado e o futuro”, sem nunca conseguir
tem país na paisagem?, auxiliar a poeta na compreensão do presente,
pergunto, que fica perdido no “entre”, no “meio”. O
e, enquanto isso, ao longe, poema “tem país na paisagem?” deixa uma série
o fantasma vai indo embora de perguntas em aberto, convidando o leitor a
no meio dos carros, encontrar suas próprias respostas frente ao
ela caminha desconhecido e a um lugar que poderia
em plena luz do dia constituir qualquer espaço geográfico no
e some. (GARCIA, 2015, v- 94-126) mundo.
Para o eu lírico do poema, este fato tão fora Marília Garcia constrói, assim, uma lírica
da normalidade, o suicídio de uma mulher que que problematiza os usos da fotografia e,
tinha um amante de país inimigo, na mesma através deles, propõe uma reflexão acerca da
ponte que faz parte de seu cotidiano e que capacidade de apreensão do presente, bem
rotineiramente registra, merece destaque. Ela como das expectativas geradas em torno dos
busca, então, nas fotografias, alguma indicação, registros visuais realizados pela câmera. Ao
A LÍRICA DE MARÍLIA GARCIA A PARTIR DAS APROXIMAÇÕES COM A FOTOGRAFIA EM “TEM PAÍS NA PAISAGEM?” DE CÂMERA LENTA 72
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Este trabalho tem por objeto um Firmina dos Reis, foi dedicado à mãe da
estudo sobre o viés intersemiótico na música da escritora, apresentando uma linguagem
cantora paraibana Socorro Lira, que melancólica e um vasto repertório
musicalizou o poema Uns Olhos, da escritora melodramático, alinhado ao modelo do
maranhense do século XIX Maria Firmina dos Romantismo brasileiro, além de temas variados
Reis, também conhecida por ser a primeira como desesperança e a exaltação nacionalista da
escritora afrodescendente a publicar um terra. Convém lembrar que houve um
romance no Brasil, chamado Úrsula. A obra esquecimento histórico do qual Maria Firmina
poética Cantos à Beira-mar, publicada em 1871, fora vítima. Quando um exemplar de Úrsula foi
em São Luís do Maranhão, com cinquenta e seis encontrado em 1975 dentro de um sebo, e ainda
poemas inspirou a cantora Socorro Lira, sob a enigmática identificação de ter sido
convertendo alguns deles em música. Maria escrito por “uma maranhense”, os dados foram
Firmina honrou os ilustres escritores da época ligados e descobriu-se após investigação
com alguns poemas a eles dedicados, promoveu documental, que se tratava de uma obra
a exaltação do nacional, do mar e seus encantos firminiana. Da publicação de uma nova edição,
e os desencantos de amor na vida, dentro de uma surgiram novas edições posteriores e a partir do
temática melancólica e inclinada para o ano 2000 as pesquisas sobre ela foram
Romantismo brasileiro. As metáforas geradas a intensificadas.
partir da presença do mar, por exemplo, Se fôssemos procurar para comprar algum
fortaleceram o tom nostálgico, melódico e exemplar de Cantos à Beira-mar, há quatro ou
saudosista dos versos, projetando o eu-lírico a cinco anos, não o encontraríamos disponível,
um universo imaginário de alegrias e tristezas. sendo o mesmo uma raridade presente apenas na
Um detalhe curioso é a escassa quantidade de Biblioteca da Universidade Federal do
estudos sobre a musicalização de poemas do Maranhão, sendo-nos negada a possibilidade de
chamado período oitocentista brasileiro, empréstimo. Também deve-se destacar que a
situação essa que gerou a motivação necessária crítica literária recente tenha se dedicado mais ao
para pesquisa, análise e documentação desse romance Úrsula e ao conto A Escrava,
fenômeno. Propomos, através desse estudo, provavelmente pela temática do negro e pelo fato
analisar como se deu a transformação do poema de ter sido a escritora pioneira dos escritos
para a música, em alinhamento aos conceitos abolicionistas, sendo ela afrodescendente, e
intersemióticos de Julio Plaza, apresentados em tendo ela dado voz e destaque a personagens
seu livro Tradução Intersemiótica. negras em suas narrativas, na prosa. Estes dois
fatos fazem-na fundamental tanto para os estudos
Palavras-chave: Poética; Música; Oitocentismo; literários como para os estudos históricos.
Tradução Intersemiótica. Essa questão, ou seja, os holofotes projetados
sobre suas obras mais famosas na prosa, ajuda-nos
1 Introdução a entender o surgimento de uma edição disponível
O livro Cantos à Beira-mar, de Maria de Cantos à Beira-mar, para compra de livro
físico e também de livro eletrônico no atual temático, e também singular, pela exploração da
mercado brasileiro de literatura. Na verdade, a sentimentalidade. Para quem os lê há uma
comunidade acadêmica, não apenas do Curso determinada impressão de que sob a batuta de
Superior de Letras, passou a se interessar pela Maria Firmina, as palavras parecem chorar no
produção firminiana. Além de intelectual gerúndio, ante a um emaranhado efusivo de
maranhense, trata-se de uma personalidade paixão e tormenta, amor e ódio, loucura e
feminina que o povo brasileiro, de um modo geral, lucidez. Interessante é que esses opostos
desconhece. Isso tanto é fato comprovável que parecem se completar, dentro de uma interação
não se ouve falar dela nas escolas, e agora, de de cumplicidade.
forma ainda acanhada tem-se divulgado o seu A esse respeito, ou seja, da participação
trabalho em algumas universidades. Os livros firminiana na produção musical brasileira do
didáticos, até hoje, patrocinados pelo governo século XIX, é preciso fazer constar a seguinte
federal, não a apresentam aos alunos do Ensino observação: o brasileiro daquele século apreciava
Fundamental, muito menos os livros de literatura música, mesmo que influenciada pelos elementos
do Ensino Médio. clássicos, já sendo possível constatar elementos
Isso significa que um estudante universitário nacionais nessa música em formação. Esse fato
de Ciências Humanas, por exemplo, ao estrear em reforça ainda mais a ideia segundo a qual estudar
uma de nossas universidades, dependendo de que a produção musical desta escritora maranhense,
instituição este fizer parte, poderá cursar todos os ajuda a compreender os mecanismos pelos quais a
períodos, inclusive colar grau, sem, contudo, música oitocentista do Brasil fora produzida. Isso
nunca ter ouvido falar, muito menos ter lido algo ajuda-nos a compreender que do mesmo modo
sobre Maria Firmina dos Reis. Assevera-se o fato que havia tambores sendo tocados nas senzalas,
de que o mesmo poderá ser um futuro professor também haviam concertos sendo apresentados
de Língua Portuguesa ou de Literatura, que não para a nobreza. A passagem ou transição de um
terá na sua bagagem curricular universitária esse evento para outro já estava marcada de misturas,
conhecimento. E como nossos professores conforme apontou Enio Squeff:
universitários falarão de quem ainda não Em termos brasileiros, não houve
conhecem? De fato, o trabalho ainda está em sua simplesmente a transposição da música do
fase inicial, emanando de determinados escravo para a música de concerto. Embora o
programas de pós-graduação. Brasil tenha sido um dos últimos países do
Essa situação comprova também o predomínio mundo a conceder a libertação da
da literatura de prestígio, consolidando-se como escravatura, a sociedade escravagista da
cânone literário, e colocando à margem, toda época da abolição já tinha se diluído em parte,
produção não pertencente a esse seleto grupo. Tal enquanto forma predominante de produção,
postura pode ser compreendida mais como um principalmente em estados mais
desenvolvidos. Mas a semi-escravidão
fator de preconceito literário do que propriamente
persistiria. E com ela, naturalmente, as
desconhecimento, pois alguns poucos que formas do gesto sublimado (SQUEFF e
passaram a conhecer sua obra, podem ter feito WISNIK, 2004, p. 46).
uma espécie de vista grossa. O que uma mulher no
período oitocentista poderia produzir de Aproveitando as considerações supracitadas,
relevância literária crítica? Ou o que uma começamos a entender que a música brasileira do
afrodescendente, cuja mãe havia sido escravizada, século XIX houvera sido ambientada dentro de
teria para acrescentar a cultura letrada de nosso um contexto de relações culturais “diluídas”
país? O detalhe mais sutil de tudo isso é que tais (emprestando o referido conceito), não sendo
perguntas não apenas foram feitas pelos críticos muito difícil perceber que o popular e o erudito já
da época oitocentista, sobretudo, ainda faz parte estavam dinamicamente envolvidos. Entender tal
das discussões de nosso tempo. processo é fundamental para darmos início aos
Na poesia, Maria Firmina dos Reis, além estudos referentes a musicalização de
dessa obra, também escreveu poemas avulsos determinados poemas de Maria Firmina dos Reis,
publicados em jornais da época, em São Luís do na cabeça de quem, música e poesia desfrutavam
Maranhão, contudo o acabamento artístico de relações bem próximas.
projetado sobre os cinquenta e seis poemas de Além disso, um detalhe que pode colaborar na
Cantos à Beira-mar estabeleceu uma estética ao interação entre autora e obra é a questão geográfica,
mesmo tempo homogênea, pelo conteúdo isto é, o local que pode ter servido de inspiração
para a poeta. A cidade de Guimarães situa-se no
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 76
litoral do Estado do Maranhão e não foi por acaso mesma afirmou em seu CD:
que o mar e a praia tiveram presença marcante nos Embora, quando criança, eu desejasse ser
versos firminianos, contribuindo para a reflexão escritora, a música foi tomando espaço na
proposta em torno de temas como o amor, a solidão minha vida. Depois de minha mãe, que
e a saudade. Podemos sintetizar, sem nenhum cantava e nos contava histórias em casa,
exagero, que o mar era a sua genuína encontrei no meu caminho as cirandeiras e
territorialidade. Ela escreveu seus versos pensando coquistas de Caiana dos Crioulos, e aprendi
no mar e no povo de sua cidade, envolvendo as com seu canto-dança. Junto com elas, produzi
relações entre o homem e seus semelhantes, sob o dois álbuns de música e um documentário
olhar atento da natureza, a quem ela reverenciara sobre essa arte cultivada no quilombo de
Caiana. Mais adiante, vaguei pelas Cantigas
com adjetivos diversificados.
de Amigo medievais galego-portuguesas
Apenas a título de informação, convém frisar cantadas por mulheres há cerca de novecentos
que se hoje temos algum material sobre Maria anos onde hoje fica a Eurorregião Galiza-
Firmina é por causa de Nascimento Morais Filho, Norte de Portugal. Desse mergulho resultou o
quem organizou em 1976 a edição fac-similar de meu brasileiríssimo álbum Cores do
Cantos à Beira-mar de 1871, e graças às suas Atlântico, que reivindica a autoria das
contribuições documentais reunidas em um livro cantigas paralelísticas para as nossas
denominado Maria Firmina: Fragmentos de Uma ancestrais compositoras (LIRA, 2019,
Vida, é que a crítica moderna tomou prefácio do CD).
conhecimento da escritora e de sua obra, que se Desse modo podemos compreender que
encontrava esquecida dentro de um sebo. Foi muito provavelmente o ouvido musical da
nesse livro que Morais Filho tornou de cantora tenha sido preparado para, em
conhecimento público vários versos avulsos da consonância com sua voz, ter chegado ao
poeta e de outras produções musicais, como por estágio que hoje se encontra. Além disso, o
exemplo, o Hino da Liberdade dos Escravos, repertório de sua memória musical foi sendo
inclusive com partitura. ativado e reativado, ao passo que todas as vezes
Por fim, com relação a esse estudo, sua em que isso acontecera, surgiu uma
estrutura está organizada da seguinte forma. reinterpretação semiótica das performances
Primeiramente, teremos uma espécie de musicais as quais ela se dispôs a seguir, não pelo
documentário-entrevista, no qual a cantora interesse da fama ou da quantidade de CD’s
Socorro Lira conta sobre sua biografia e o que a vendidos, entretanto, pela sensibilidade que ela
levou a se interessar pelos versos de Maria teve em olhar para essa humanidade silenciada,
Firmina dos Reis. Em seguida, para um melhor conforme suas palavras:
entendimento sobre a metodologia adotada,
teremos uma síntese do que significa tradução Não pude mais parar de olhar para essa
metade silenciada da humanidade, que somos
intersemiótica, reforçando os conceitos que
nós, mulheres, e que mesmo nessa condição
serão desenvolvidos. Logo após, trataremos de contribui tanto para o desenvolvimento
um poema contido no livro que foi musicalizado humano em todas as esferas da vida. Em
pela cantora paraibana, seguindo-se das minhas buscas sempre me perguntei o porquê
considerações finais. de a outra metade, guiada pelo “Princípio
Masculino” ou patriarcado, há cinco mil anos,
2 Da mente de uma criança para o coração insiste em impedir nossa participação em
de uma mulher igualdade, como se pudesse prescindir de nós,
O que fica claro dentro da biografia da da nossa inteligência, da nossa energia e
cantora paraibana Socorro Lira é a influência criatividade. Como se fosse justo e possível
seguir controlando nossos movimentos
que ela sofre do canto folclórico, aguçado pela
(LIRA, 2019, prefácio do CD).
família e potencializado pela sua própria busca,
embora precoce e infante, no mundo musical. O Dentro desse contexto de militância
que chama a atenção nesta cantora é o começo ideológico-musical do gênero feminino,
pelos clássicos da Língua Portuguesa, nos encontramos duas Firminas, uma, do século XIX,
primórdios da nossa literatura, no ainda galego- afrodescendente, assumidamente mulher e que
português, passando ao português arcaico e buscou, com as armas de que dispunha, aparelhar-
chegando, por fim à “inculta e bela” língua de se de bons argumentos para colaborar com a
Luís Vaz de Camões, conforme o que ela erudição da época, outra, firmina, do século XXI,
afrodescendente, igualmente mulher e assumida,
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 77
que tem buscado olhar com carinho para as vozes A sequência das músicas no CD da cantora
de uma ancestralidade esquecida. Ambas Socorro Lira é a seguinte: 01. Uns olhos
nordestinas, uma maranhense e outra paraibana, (bolero); 02. Ela! (reggae); 03. Amor (loa de
talvez o elemento diferencial positivo seja que esta maracatu cearense); 04. Meus amores (canção
já não precise identificar seus trabalhos sob o choro); 05. Embora eu goste (fado); 06.
pseudônimo de “uma paraibana”. O talento vocal Itaculumim (canção); 07. Seu nome (valsa); 08.
de Socorro Lira, notadamente sem interesses de se Uma tarde em cumã (samba); 09. O meu desejo
tornar celebridade ou de enriquecer-se na carreira (poema); 10. O meu desejo (milonga); 11. O
musical, conduz sua própria obra, conforme suas volúvel (baião). Todos estes títulos foram
palavras a esse respeito, ao relatar como tudo retirados do livro Cantos à Beira-mar,
começou e o que a fez se interessar pela obra de percebendo-se que a cantora fizera um recorte
Maria Firmina dos Reis: de um total de cinquenta e seis poemas.
Foi num desses encontros que o Universo 3 A explicação da metodologia de tradução
ajeita que estive novamente com Maria intersemiótica
Valéria Rezende, em João Pessoa, na Paraíba.
Ela me ‘convocou’ para estar no primeiro Ao lidarmos com categorias textuais que
Mulherio das Letras que aconteceria por lá, foram convertidas em música, a partir de uma
em outubro de 2017, e me deu a tarefa de textualidade poética, como é o nosso caso,
musicar poemas de Firmina, que recebia a precisamos observar como se deu tal processo.
mulheragem (por assim dizer no feminino a Nossa preocupação, a partir de então, será de
palavra homenagem) daquele evento. Até o buscar a natureza ou essência da produção
ano da graça de 2017 eu não sabia que o poética original, no perfil semântico das
Maranhão nos tinha dado Maria Firmina dos
palavras, para que, em confronto com a
Reis. Apaixonei-me por ‘Ela’. Na ocasião,
publicado o EP Seu Nome, ficamos tão tradução a qual passaremos a chamar de
contentes que pensamos em seguir avivando intersemiótica, seja possível observar tal
vozes de poetas brasileiras apagadas da fenômeno.
história da literatura. Susana Ventura foi Elucidamos que o teórico que fundamenta
integrada a integrar a pesquisa. E assim foi. tal pesquisa é Julio Plaza, cujo livro intitulado
Durante quatorze meses, de setembro de 2017 Tradução Intersemiótica propõe um estudo
a dezembro de 2018, estive imersa, por vezes mais aprofundado de como a Semiótica
afogada, no profundo oceano que é a poesia enquanto ciência pode colaborar na
dessas mulheres; artistas que, por um custo interpretação de textos visuais, verbais, não-
altíssimo, fizeram de suas vidas os melhores
verbais, imagens, ícones, assim como no
exemplos para nós que estamos aqui, agora,
continuando a saga do feminino no planeta funcionamento de codificação e decodificação
Terra, a procura de lugar pacífico para linguísticas no âmbito da passagem de um texto
descansar da árdua travessia que têm sido traduzido para outra modalidade. Desse modo,
nossas existências. Tenho dito: mulheres, o autor, ao fazer uma releitura dos postulados
publiquem! Deixem o registro para a história! do pai da Semiótica, Charles Sanders Peirce,
Só assim daqui a cento e cinquenta anos, acaba também mostrando quais as
quiçá, vocês estarão no Spotify. (LIRA, 2019, fundamentações teóricas que sustentam esses
prefácio do CD). estudos.
Conforme se observa no depoimento acima, É interessante relembrar que o pai da
o trabalho de Socorro Lira tem uma vertente Linguística, Ferdinand de Saussure, disse sobre
ideológica de convite e encorajamento para que tal assunto:
mais mulheres venham a se interessar pela Propomo-nos a conservar o termo signo para
cultura, pela música, pela erudição, na designar o total, e a substituir conceito e
manifestação de um grito que tem sido imagem acústica respectivamente por
historicamente calado pela convenção social. O significado e significante; estes dois termos
que nos interessa, enquanto observadores do têm a vantagem de assinalar a oposição que
fenômeno de passagem da poesia para a música, os separa, quer entre si, quer do total de que
adotando o quadro teórico-metodológico da fazem parte. Quanto a signo, se nos
contentamos com ele, é porque não sabemos
tradução intersemiótica é compreender, mesmo
por que substituí-lo, visto não nos sugerir a
que com uma pequena amostra, como se deu língua usual nenhum outro (SAUSSURE,
esse processo. 1985, p. 81).
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 78
Conforme observamos acima, para grupo dos ícones (em), representado pelas
Saussure, a língua dispunha de signos imagens, diagramas e pelas metáforas; grupo
linguísticos, que poderiam ser denominados por dos índices (de), representado pelas fotografias;
significante e significado. Entretanto, Charles e o grupo dos símbolos (para), representando
Pierce, discordando do mestre de Genebra, uma contiguidade institutiva, ou seja, a
avançou para além das fronteiras estruturais, convenção ou o hábito social é que vai
chegando ao chamado conceito triádico dos determinar a representação dos símbolos. O uso
signos, classificados como ícones, índices e que Pierce fizera das preposições “em”, “de” e
símbolos. A explicação dada por Charles Pierce “para” foi para chamar a atenção à função a qual
sobre signo acabou explicando como cada grupo se refere.
funcionava a lógica do processo de semiose, isto Quando lidamos com tradução entre textos
é, “uma relação de momentos num processo de modalidades diferentes, como é o nosso caso,
sequencial-sucessivo ininterrupto” (PLAZA, passando da poesia para a música, deve-se levar
2003, p. 17). Desse modo, não existe o chamado em conta os valores e as especificidades
conhecimento imediato como que surgido por si estéticas, que são os recursos empregados por
só. Os pensamentos surgem de outros seus autores no ato da criação. Considerando
pensamentos, inseridos numa espiral que o conhecimento proposto pelo ícone
ininterrupta de sequência pensamental. permite uma possibilidade de compreensão dos
Dentro dessa linha de raciocínio, o que serve signos, o ponto de partida para o entendimento
para o pensamento, serve também para a da especificidade do signo estético tem a
linguagem. Pois, de acordo com Pierce, só é prevalência do ícone. O signo icônico apresenta
possível pensar através de signos. A linguagem, sua propriedade -EM, logo, o signo estético
por expressar o pensamento, está inserida também, conforme apontou Plaza:
dentro dessa ideia. Nesse sentido, podemos, em No caso do signo estético, por seu lado, o
conformidade com Plaza, concluir que fundamento não é mais do que a expressão da
“pensamento e linguagem são atividades ideia de possibilidade, indeterminação,
inseparáveis: o pensamento influencia a talidade, essência e auto-referência.
linguagem e esta incide sobre o pensamento” Lembrando aqui a classificação de signos,
(PLAZA, 2003, p. 19). vemos que o signo icônico, por ser apenas
Avançando nessa ótica, chegamos à natureza qualissigno e, como tal, mera possibilidade
da representação, pois colocando-se no mesmo lógica, só pode ter com seu objeto uma
nível de equivalência o pensamento e a relação de similaridade e semelhança o que
produz na mente sentimentos de analogia
linguagem, somos obrigados a concordar que
com algo (PLAZA, 2003, p. 24).
cada palavra pode representar uma ideia, um
conceito, sem, contudo, se materializar naquilo Chega-se, portanto, a questão da problemática de
a que está se referindo. Todo signo tem função tradução estética, que segundo Plaza, ao se reportar
representativa, por exemplo, a palavra em Otávio Paz, a tradução embora difícil, não é
“manga”, em alusão à fruta. O que nos vem à impossível, pois considerando que tradução e
criação são concebidas como atividades gêmeas, são
mente é a representação mental dela, e não a igualmente complexas, porém, ambas guiadas por
fruta em si. Esse conceito de representação é um fio condutor de lógica. Se o ato de criação teve a
muito importante para a tradução capacidade de se guiar por um fio de lógica, ao ato
intersemiótica. de interpretação deve-se esperar o mesmo. E é dentro
Recuperando a síntese da ideia, todo signo dessa lógica que se fundamenta nossa pesquisa.
desempenha seu respectivo valor
4 Análise Comparativa da letra Uns Olhos
representativo, ou seja, não existe signo neutro,
com a versão original
sem função representativa de significado, pois
sempre estará associado a uma representação. Uns Olhos (música)
Assim, no grupo dos signos que mais
interessam para a tradução, temos os ícones, os Vi uns olhos...que olhos tão belos!
índices e os símbolos, formando a chamada Esses olhos têm certo volver,
Que me obrigam a profundo cismar,
natureza triádica dos signos, proposta por
Que despertam-me um vago querer.
Pierce, conforme adiantamos no início desta Esses olhos me calam na alma
seção. Viva chama de ardente paixão:
Tal divisão foi feita da seguinte forma: Esses olhos me dão alegria,
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 79
hoje, como captadores de áudio, microfones de bilabial, que em junção com o fonema /a/,
alta performance e caixas de som potentes. Tais articula uma falsa sílaba. Quanto mais isso
evidências apontam o caráter teatral da poesia acontecia, mais o poema ganhava ares musicais,
naquelas circunstâncias. naquele contexto.
Aplicando esse mesmo conceito ao trabalho Quando finalmente chegamos à natureza
de Socorro Lira, entendemos que a produção semântica, os motivos se divergem. Se por um
musical parece ter buscado um elo de lado, na forma poética proposta por Maria
comunicação músico-temporal, como que Firmina, o verbo “geram” esteve associado à
advinda do túnel do tempo, através dos ideia de tudo o que se pode nascer, ser criado,
instrumentos empregados, nesse sentido, a fazendo surgir o produto de uma gestação, o
opção pelo bolero não deve ter sido por acaso. engravidar-se de alegria, por outro lado, na
Cabe destacar que o bolero fortaleceu mais tradução intersemiótica proposta por Socorro
ainda os tons românticos da letra, o espaço Lira, o verbo “dão” vai por um caminho
longo dos prelúdios, antes do vocal, parece diferente. Adotando o princípio da lógica da
tentar reproduzir e talvez consiga em parte, os tradução intersemiótica, assim questionamos:
nostálgicos e solenes saraus do século XIX. Se “esses olhos me dão alegria”, eles só podem
Em segundo lugar, temos a questão me dar essa alegria, se eles a tem, logo, eles não
eufônica. Não há uma estrofe em que não fazem gerar, eles dão. É uma sutil diferença que
apareçam, e sempre no começo de cada verso, faz sugerir dois polos bem distintos. Uma coisa
os pronomes demonstrativos “esse” ou “nesse”. é dar, outra coisa é fazer gerar.
A tonalidade recai sobre a penúltima sílaba, e a Juntando esses três níveis de análise em
posição desses pronomes no início da sílaba, torno da tradução intersemiótica de uma só
permitiu, em termos tonais, que cada verso palavra, entendemos que não seria possível
apresentasse três tons, como uma espécie de fazê-la sem analisarmos os fatores
onda, o leve no começo, o mais forte no meio, e coadjuvantes, tais como, dimensão estética,
o retorno ao leve no final. Isso na escala, questão eufônica e a natureza fonético-
segundo a ordem da Arte Declamatória. Para semântica, para que, por último, chegássemos
não sermos repetitivos, na questão musical, a no cerne do assunto: a adoção na música, de um
análise é praticamente idêntica, acrescentando- verbo diferente da versão original, oriunda do
se o fato de que a flauta deu o efeito das poema. Também deve-se destacar que quando
reticências no final da terceira estrofe. Houve Maria Firmina dos Reis escreveu tais versos, era
um prolongamento no tempo de execução da de praxe entre poetas e escritores nacionais da
flauta para coincidir com a mensagem de mais época adotarem o português de Portugal, o qual
vida. Em outras palavras, a música permitiu chamamos de português lusitano, e a autora de
acessar um detalhe sentimental do poema: Cantos à Beira-Mar não fugiu a essa regra.
Poderia até o eu-lírico não ter mais nenhum
5 Considerações Finais
grande motivo para viver, porém, nesses olhos,
ele vai querer não apenas viver, bem como, um Esse estudo, colocando música e poesia em
viver prolongado. O prolongamento do tempo paralelismo comparativo, num primeiro
musical permitiu expressar essa ideia, esse momento, potencializou os estudos sobre signos
signo tonal. linguísticos, à luz da Semiótica, e, num segundo
Em terceiro lugar, deparamo-nos com a momento, contribuiu com o aprofundamento
natureza fonético-semântica dos verbos interpretativo-comparativo, sobretudo na área
“geram” e “dão”. Pelo fato de que este último musical como elemento de tradução da poesia.
tenha uma única sílaba métrica, no momento da Tais abordagens permitiram provar que há,
composição, seria mais interessante o seu uso, portanto, uma relação entre a essência da
por exigir apenas uma nota musical. Caso fosse significância da música e dos estudos de
mantida a forma original “geram”, isso causaria tradução intersemiótica, conforme as palavras
um efeito estranho dentro da escala musical. de José Luiz Martinez, ao elaborar um artigo
Observando este último verbo, segundo a ordem sobre música e semiótica musical, baseado em
fonológica, para a poesia, e naquelas Charles Peirce:
circunstâncias de formalidade, versos rimados e Em seu aspecto de primeiridade, a música se
métrica, é interessante notar que na formação justifica como uma arte, pois diz respeito
“/geram alegria/”, o fonema /m/ é plosivo e principalmente ao propósito estético, entre eles,
UMA ANÁLISE INTERSEMIÓTICA NA MÚSICA DE SOCORRO LIRA SOBRE O POEMA UNS OLHOS, DE MARIA FIRMINA DOS REIS 81
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo Palavras-chave: Ferreira Gullar; Poema Sujo;
analisar a criação do Poema Sujo (1976), de Rabo de Foguete; Autobiografia poética;
Ferreira Gullar, tomando como documentos de criação literária.
processo os livros Rabo de Foguete (2008),
publicado pela primeira vez em 1999, e 1 Introdução
Autobiografia poética e outros textos (2015). Em 1999, Ferreira Gullar publicou seu livro
Para tanto, lançaremos mão dos conceitos da Rabo de foguete: os anos de exílio onde o autor
chamada crítica de processo, teorizada pela relata a perseguição que sofreu durante a
pesquisadora Cecilia Almeida Salles (2006; Ditadura Militar que o fez fugir de casa,
2011), desdobrada da crítica genética, aparato primeiramente para morar com amigos, depois
teórico que também será esteio desta pesquisa tendo que rumar para a União Soviética,
através do trabalho de Pino e Zular (2007). passando por Peru, Chile e Argentina, até voltar
Compreende-se que a análise dessas duas obras, ao Brasil no final da década de 1970. Um dos
tratadas como documentos do processo de pontos mais interessantes da obra é o relato dos
escrita do Poema Sujo, apresentaram cenários bastidores da criação do Poema Sujo, escrito em
um tanto diversos, apesar de complementares 1975 em Buenos Aires, e publicado em 1976
em diversos aspectos. Dessa forma, o confronto aqui no Brasil, sem a presença de seu autor.
entre elas faz emergir as modulações da relação Em 2015, Gullar volta à escrita de si, agora
de Ferreira Gullar com o exílio, fato com sua “autobiografia poética” publicada na
preponderante para a escrita do Poema Sujo. obra Autobiografia poética e outros textos. O
Assim, abre-se espaço para pensarmos não só as volume contém, além desse primeiro texto em
relações da criação literária da obra em questão que o autor faz considerações sobre sua vida de
com a memória (RICOEUR, 2007) e com a escritor, desde a juventude em São Luís, outros
autobiografia (LEJEUNE, 2014), mas também textos como entrevistas, ensaios em que o autor
em como essas duas categorias influenciaram o faz considerações sobre a poesia, além do
autor no momento de contar a história dessa “Manifesto neoconcreto”. Ao compararmos o
criação tanto em Rabo de Foguete quanto na relato sobre a criação do Poema sujo feito na
Autobiografia poética. Dessa forma, Autobiografia poética com aquele narrado em
construiremos um quadro bastante amplo que Rabo de foguete percebe-se que o poeta elenca
ajude a compreender o processo de criação outros fatores, que não tinham sido levados em
poética desta que é a principal obra do autor consideração antes. Sabendo que ambos os
maranhense. relatos são antes complementares do que
divergentes, cumpre-nos analisar a criação
poética do Poema sujo através dessas duas
obras além de problematizar os motivos que
34 Trabalho orientado pelo Prof. Dr. José Dino Costa Literatura Maranhense (GELMA). Contato:
Cavalcante vieiramaurocezar@gmail.com
35
Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Maranhão
(PGLetras/UFMA). Membro do Grupo de Estudos em
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 83
processo como conceito mais abrangente do que A discussão sobre a noção de pacto, Lejeune
manuscrito e todo o deslocamento resultante (2014) inicia através de uma definição de
desse movimento proporcionou a entrada dos autobiografia: “narrativa retrospectiva em prosa
textos autobiográficos no rol de documentos que uma pessoa real faz de sua própria
acerca dos rastros do processo de criação existência, quando focaliza sua história, em
literária. É, assim, mais um componente a ser particular a história de sua personalidade”
considerado nas pesquisas em crítica genética. (LEJEUNE, 2014, p. 16). Seu propósito era, na
Contudo, textos autobiográficos em que se verdade, utilizar esse conceito como uma forma
pode apreender o processo de criação dos de definir um corpus para sua pesquisa.
autores não são exclusividade de nosso tempo. Entretanto, o autor abandona essa definição
Ainda no século XIX, são publicados textos em anos depois acreditando que tinha sido deveras
que o autor lega ao leitor algumas considerações ortodoxo, em favor de um pensamento mais
sobre o seu processo de composição. É o caso, livre em que “[...] ‘autobiografia’ pode designar
por exemplo, de A filosofia da composição, de também qualquer texto em que o autor parece
Edgar Allan Poe, publicado em 1846. No texto, expressar sua vida ou seus sentimentos,
o autor inglês, numa leitura que nos convida a quaisquer que sejam a forma do texto e o
embarcar nos bastidores, explicita o processo de contrato proposto por ele” (LEJEUNE, 2014, p.
criação de um de seus poemas mais conhecidos, 62, grifos do autor).
O corvo. Somos apresentados, durante a leitura, O importante para Lejeune não são as
não só às explicações de Poe sobre o poema em possibilidades de conceituação do gênero e,
questão e a forma como ele foi escrito, mas sim, a noção de pacto. O pacto autobiográfico é
também a considerações do escritor sobre o a identidade autor-narrador-personagem,
fazer poético, sobre a sua visão da narrativa estabelecida de forma expressa pelo texto ou de
ficcional36 e sobre a literatura em geral. forma tácita pelos elementos paratextuais. A
Quase cinquenta anos após a publicação de A noção de identidade de nome, evocada pelo
filosofia da composição, outro texto, esse brasileiro, pacto autobiográfico, dá um caráter de verdade
chega às mãos dos leitores interessados em entender às enunciações do texto:
os bastidores da criação. Trata-se de Como e por que
sou romancista, de José de Alencar. Escrito em 1873 A autobiografia (narrativa que conta a vida do
e publicado postumamente vinte anos depois, o texto autor) pressupõe que haja identidade de nome
de Alencar é uma autobiografia literária, onde o autor entre o autor (cujo nome está estampado na
faz um apanhado geral de sua carreira como homem capa), o narrador e a pessoa de quem se fala.
de letras. Sendo, portanto, mais geral do que A Esse é um critério muito simples, que define,
filosofia da composição, não deixa de oferecer além da autobiografia, todos os outros gêneros
subsídios para que o pesquisador adentre a intimidade da literatura íntima (diário, autorretrato,
alencariana e embarque nos bastidores de suas obras. autoensaio). (LEJEUNE, 2014, p. 28)
Já no século seguinte, Josué Montello segue Assim, a autobiografia se distancia do
os passos de José de Alencar ao publicar romance, que tem, ao invés de um pacto de
“Confissões de um romancista”, como prefácio verdade, um pacto de ficcionalidade. Por mais
aos seus Romances e novelas, no início da que o autor tenha feito diversas considerações
década de 1980. Montello faz um passeio desde relativizando esse pacto referencial da
as raízes de sua família até a publicação de seus autobiografia, notadamente no ensaio O pacto
últimos romances até então, numa espécie de autobiográfico (bis), publicado pela primeira
justificativa dos caminhos percorridos. vez em 1986, persiste o afastamento da
Em comum a esses três textos há o pacto autobiografia e o romance. Assim, mesmo que
autobiográfico. Em todos eles percebemos o o texto autobiográfico seja literariamente
autor-narrador-personagem37 em busca de legar trabalhado, dando ao leitor a ideia de que talvez
ao leitor um pouco de sua vida íntima de homem nem tudo o que é narrado tenha acontecido
e de escritor. A noção de pacto autobiográfico daquela maneira, isso não o aproxima do
foi formulada por Philippe Lejeune em seu romance. Há uma vontade de verdade na
ensaio O pacto autobiográfico. autobiografia que não há no romance.
36 37
Edgar Allan Poe escreveu alguns dos grandes contos da Em que pese o fato de que Alencar e Montello serem
literatura inglesa como The Tell-Tale Heart, William personagens em seus respectivos textos do que Edgar
Wilson, The fall of the house of Usher e The Black Cat. Allan Poe, que adota um tom mais ensaístico em A
filosofia da composição.
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 85
Os casos de Rabo de foguete e Autobiografia sujo. O contexto dessa criação é expresso pelo
poética são representativos de textos que próprio autor a seguir:
firmam com o leitor um pacto autobiográfico. Esse estado crescente de insegurança me
Nos dois textos temos o Gullar autor, narrador e preocupava. Sentia-me encurralado: com o
personagem de suas próprias histórias. Em passaporte cancelado pelo Itamarati, estava
Rabo de foguete o pacto autobiográfico é impedido de ir para qualquer outro país senão
estabelecido de maneira expressa através do aqueles que faziam fronteira com o Brasil.
texto de abertura da obra, uma espécie de Mas exatamente esses eram dominados por
prefácio sem título, assinado com as iniciais do ditaduras ferozes, aliadas da ditadura
seu autor, FG: brasileira. Para aumentar a preocupação,
surgiram rumores de que exilados brasileiros
Nunca fez parte de meus planos escrever estavam sendo sequestrados em Buenos Aires
sobre os anos de exílio. Em 1975, quando e levados para o Brasil, com a ajuda da polícia
Paulo Freire me solicitou um texto sobre argentina. Achei que era chegada a hora de
minha experiência de exilado, para um livro tentar expressar num poema tudo o que eu
que reuniria depoimentos desse tipo, neguei- ainda necessitava expressar, antes que fosse
me a escrevê-lo. Temia, de um lado, praticas tarde demais – o poema final. (GULLAR,
inconfidências que comprometessem a 2008, p. 273)
segurança dos companheiros, e de outro,
sentia-me traumatizado demais para abordar Cumpre asseverar que, além do incômodo de
o tema. Foi só recentemente, por insistência estar há anos fora de seu país, longe de sua
de Cláudia Ahimsa, que mudei de atitude. família, num país onde militantes comunistas
(GULLAR, 2008, s.p.). eram perseguidos pela ditadura recém
No caso de Autobiografia poética, o pacto instaurada, sem ter para onde ir, o período da
autobiográfico é estabelecido pelo próprio título criação do Poema sujo coincide, também, com
da obra, que dá o tom ao leitor, antes mesmo as fugas de um dos seus filhos, que mais tarde
deste virar a primeira página, de que haverá teria confirmado o diagnóstico de
revelações sobre a carreira literária de seu autor. esquizofrenia. Assim, diante do caos instalado
Assim, em ambas as obras identificamos a em sua vida, Gullar busca dar forma a tudo
identidade autor-narrador-personagem, tal qual aquilo que vivia e sentia materializando um
formulou Lejeune (2014). Contudo, se em Rabo “poema final”, nas palavras do próprio autor.
de foguete esses três elementos se coadunam no Salles ao estudar os motivos pelos quais o artista
entrecho narrativo da obra, em Autobiografia sai da inércia para a criação, comenta que: “O
poética o Gullar personagem vai perdendo percurso de concretização da obra caminha para
espaço nas páginas finais do texto, em que uma satisfação mesmo que transitória, como já
predomina o Gullar narrador fazendo discutimos. Pois há uma profunda verdade que
conjecturas poéticas e estéticas sobre suas ele procura expressar em sua obra [...]”
obras, contrastando com o início (SALLES, 2011, p. 41). Seguindo o relato,
eminentemente narrativo do texto. Essa Gullar tenta dar forma ao seu “poema final”,
mudança de postura culminará em relatos como aponta a seguir:
diferentes sobre um mesmo tema: a criação do Quando essa ideia despontou na minha
Poema sujo. cabeça, esqueci tudo o mais e entreguei-me a
ela. Imaginei que o melhor caminho para
3 A criação do Poema sujo em Rabo de realizar o poema era vomitar de uma só vez,
foguete sem ordem lógica ou sintática, todo o meu
Em Rabo de foguete, Gullar narra a sua passado, tudo o que viveram, como homem e
como escritor. Posto para fora esse magma,
experiência de perseguido pela Ditadura Militar
extrairia dele, depois, os temas com que
por ser um dos dirigentes do Partido Comunista construiria o poema. Tão excitado fiquei, a
Brasileiro. Depois de vagar pelas casas de seus cabeça a mil, que só muito tarde logrei
amigos, escondendo-se por quase um ano, adormecer. (GULLAR, 2008, p. 237)
Gullar é mandado para a União Soviética para
fazer um curso junto ao comando do Partido Pode-se perceber, portanto, que se a ideia do
Comunista local. Após o fim desse curso, o poema era dizer aquilo que precisava ser dito antes
maranhense é posto de volta no avião rumo à que fosse tarde demais, ou seja, a materialização
América Latina, passando por Peru e Chile até poética busca uma ancoragem numa realidade,
se fixar na Argentina, onde escreve o seu Poema estando o poeta a vomitar “todo o seu passado”.
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 86
Mas não se trata da realidade tal qual ela silêncio, não há linguagem... Sim, mas eu
aconteceu, e sim, um real idealizado, um passado tenho que começar antes da linguagem, antes
mais simples, daí a profusão de imagens poéticas de mim, antes de tudo... E então escrevi:
evocando a paisagem da São Luís de sua turvo turvo
a turva
juventude que se encontra no Poema sujo.
a mão do sopro
Há, portanto, uma produção poética contra o muro
resultado de uma experiência do vivido em escuro
contraste com a experiência do passado, abrindo [...]. (GULLAR, 2008, p. 237-238)
espaço para a reconstrução da memória. Essa
relação travada entre a experiência e a criação Esse movimento de tentativa de encontro do
artística é tratada por Salles (2016, p. 68) da fio que desenrolará a criação será melhor
seguinte maneira: discutido a frente, com os subsídios que o autor
nos dá em sua Autobiografia poética. O que nos
A estreita relação nos leva a examinar seus interessa nesse excerto é a constatação de que
modos de ação nos processos criativos, sem Ferreira Gullar, mesmo tendo uma ideia de
separá-las, mantendo exatamente o que as
como queria desenvolver o seu poema –
conecta: interagem por meio de emoções ou
de sensações, como vimos. A percepção do vomitando a vida – ainda enfrentava a
mundo exterior se dá por sensações intensas, dificuldade proveniente da criação poética. A
nas fugidias. Para que um aspecto desta rigor, a dificuldade enfrentada por Gullar é
percepção fique na memória é necessário que teorizada por Salles (2011; 2016) que afirma
o estímulo tenha uma certa intensidade. que o controle do artista sobre sua obra é
relativo, daí que a obra, por vezes, construa-se a
Salles, ao comentar a participação da
si mesma, através da pena do escritor. É o que
memória na criação artística, expõe o seguinte:
nos diz o próprio Gullar a seguir:
[...] memória não é um lugar onde as
lembranças se fixam e se acumulam. Cada Senti que tinha encontrado o umbigo do
nova impressão impõe modificações ao poema (porque, como as pessoas e outros
sistema. Como memória é ação, ou seja, bichos, o poema também começa pelo
essencialmente plástica, as lembranças são umbigo) e, quase sem tomar fôlego, escrevi
reconstruções: redes de associações, cinco laudas. Ao terminá-las, sabia de tudo:
responsáveis pelas lembranças, sofrem que o poema ia ter por volta de cem páginas,
modificações ao longo da vida. Nós nos que teria vários movimentos como uma
modificamos e assim altera-se a percepção sinfonia e que se chamaria Poema sujo. Hoje,
que temos de nosso passado, mudando nossas ao refletir sobre aqueles momentos, estou
lembranças. (SALLES, 2016, p. 69-70) certo de que o poema me salvou: quando a
vida parecia não ter sentido e todas as
Assim, percebe-se que Gullar buscava a perspectivas estavam fechadas, inventei,
reconstrução de sua São Luís da juventude, através dele, um outro destino. (GULLAR,
percebendo no seu passado um lugar seguro, diferente 2008, p. 238).
daquele seu presente de tantas incertezas e tantos
desgostos. A criação, portanto, cumpre sua função de Assim, percebe-se que, após iniciar o poema
ato eminentemente solitário e egocêntrico (SALLES, – utilizando-se do artifício de começar antes da
2011; 2016), sendo, antes de qualquer outra coisa, linguagem – Gullar encontra as tendências pelas
uma forma de derramamento do autor por sobre a quais conseguirá materializar a sua obra.
folha em branco. Somente após o poema iniciado é que o autor
Contudo, essa relação da experiência do consegue concebê-lo, tal qual o artificio do seu
vivido e a reconstrução pela memória com a início antes da linguagem. Contudo, as
ideia do poeta de “vomitar a vida” na sua tendências de criação não garantem que o objeto
criação não resultou em um processo simples. artístico seja completado. Por vezes, o artista,
Pelo contrário, Gullar teve problemas para no nosso caso, o poeta, enfrenta a dificuldades
iniciar a sua produção, como nos conta no ao perceber que a tendência que ele próprio
excerto abaixo: estabeleceu não é mais suficiente para levá-lo
Enquanto tomava o café, refleti, o facho adiante na criação. Gullar passou por um
abaixou, busquei o caminho possível: já sei, momento semelhante, como relata a seguir:
vou começar antes da linguagem... é... mas Nada me fez interromper o poema. Estava
antes da linguagem, o que há é o silêncio e entregue a ele todas as horas do dia e da noite,
não se pode dizer o silêncio; quando há só me desligando para tomar alguma
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 87
providência indispensável e dormir. Esse Gullar operando a criação poética como uma
estado durou de março a setembro de 75, ação transformadora, tal qual teorizada por
quando o fluxo perdeu força e cessou. Sabia Salles a seguir:
que o poema não estava concluído embora
não soubesse como concluí-lo. Após algum As pessoas são receptivas a partir de algo que
tempo, repentinamente, escrevo as estrofes já existe nelas de forma potencial e que
finais, que começam assim: encontra nesse fato uma oportunidade
concreta de se manifestar. Há no ser de cada
O homem está na cidade pessoa certas áreas de sensibilidade a partir
como uma coisa está em outra das potencialidades latentes que serão
e a cidade está no homem ativadas pelos acontecimentos [...]. Pode-se
que está em outra cidade (GULLAR, 2008, falar, portanto, em esquemas perceptivos
p.239) peculiares a cada indivíduo, que revelariam
No excerto acima, percebe-se que a singularidades de tendências. Seria o poder
dificuldade imposta pela perda do fluxo, ou de reconhecer os fatos em certas direções.
(SALLES, 2011, p. 97)
seja, pela impossibilidade da tendência criativa
em proporcionar o encerramento do poema é, ao A percepção do mundo em que vivia e a
mesmo tempo, limitadora e potencializadora, reconstrução não-fidedigna de seu passado
obrigando o poeta a reconfigurar sua criação maranhense se unem para a resultar na
para atender as demandas do objeto inacabado. remodelação da realidade, transfigurada
Essa tensão entre limites e possibilidades é poeticamente, fazendo emergir o Poema sujo.
conceituada por Salles (2011, p. 69) da seguinte Em Rabo de foguete percebemos a criação do
maneira: “[...] essas limitações revelam-se, Poema sujo como resultado da ação
muitas vezes, como propulsoras da criação. O transformadora de Ferreira Gullar.
artista é incitado a vencer os limites
4 A criação do Poema sujo em
estabelecidos por ele mesmo ou por fatores
Autobiografia poética
externos [...]”.
Assim, olharmos a criação do Poema sujo O texto de Autobiografia poética começa
em Rabo de foguete é compreender de que dando-nos a ideia de que, a despeito de seu tom
forma o momento vivido por Gullar analítico, será narrativo, com o autor tentando
proporcionou o aparecimento desse objeto entender – ou tentando explicar ao leitor – o
artístico. Dessa maneira, o relato da criação porquê de ter tomado certas decisões na sua
artística está eivado da angústia de seu autor, trajetória poética. É o que vemos logo no
angústia essa relacionada não só à própria primeiro parágrafo da obra:
criação como também a sua situação pessoal e É difícil entender claramente o que nos leva a
familiar. Dito de outra maneira, olhar a criação tomar este ou aquele rumo na vida. Por
do Poema sujo através de Rabo de foguete é exemplo, quando tinha doze ou treze anos de
compreender que a angústia do artista é idade, roubava copos em botequins e
geradora de obra de arte, como afirma Salles lanchonetes no Centro de São Luís. Meus
(2011, p. 89): companheiros nessas travessuras tinham mais
ou menos essa mesma idade, e nenhum de nós
O artista diz enfrentar angústia de toda se tornou ladrão para o resto da vida. Eu me
ordem: morrer e não poder terminar a obra; tronei escritor; o outro, jogador de futebol; e
reação do público; busca de disciplina; o o terceiro extraviou-se, entregando-se à
desenvolvimento da obra; querer e não poder maconha e depois à cocaína. Se não sei o que
dedicar-se ao trabalho; precisar e não me levou a praticar aqueles pequenos delitos,
conseguir dedicar-se ao trabalho; a primeira tampouco sei por que, aos treze anos,
versão; enquanto dos ‘personagens’ não se abandonei a molecagem para dedicar-me à
põem em pé; angústia que leva à criação. literatura. (GULLAR, 2015, p. 16).
Dessa maneira, Ferreira Gullar, ao E assim, o autor vai narrando a sua trajetória
compartilhar com o leitor de Rabo de foguete de poeta, desde os primeiros versos em São
toda a sua angústia como homem, compartilha, Luís, explicando como e por que deu os passos
também, toda a sua potência criativa, resultado que deu. Em consonância com essa verve
dessa mesma angústia. O que poderia ser um narrativa, o texto convive com a análise de seu
momento de fraqueza para o homem, é um gesto próprio autor-narrador, como se este passasse a
de força para o poeta. Percebe-se, portanto, vida em revista, já enfrentando a velhice.
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 88
Contudo, esse jogo de “narração x análise” nessa mesma obra, com seus outros escritos.
vai, gradualmente, virando de ponta a cabeça Resta, no texto da Autobiografia poética, um
quando nos aproximamos temporalmente do relato puramente analítico em que o Gullar da
relato acerca da criação do Poema sujo. O tema segunda década do século XXI se volta para o
é introduzido logo depois da narração da Gullar de quase meio século antes e tenta
aventura comunista de Gullar: “[...] escrevi entendê-lo, compreender os seus caminhos,
outros poemas de cordel, como História de um identificar padrões.
valente, feito a pedido do Partido Comunista De semelhante com o relato de Rabo de
para uma campanha pela libertação de Gregório foguete temos dois excertos que valem a análise
Bezerra, preso pela ditadura militar que já se detida. O primeiro é sobre o teor da obra em
havia instalado no país a partir de abril de 1964” criação:
(GULLAR, 2015, p. 57). Ao pensar em escrever aquele poema – na noite
Já então, o olhar analítico do autor-narrador em que me veio o ímpeto de escrevê-lo –,
suplanta a narração e encontra, naqueles poemas imaginei começá-lo com uma espécie de
políticos com forte apelo social o nascedouro de vômito do vivido. Como sabia de antemão que
um tipo poético que desembocará no Poema sujo, o poema abrangeria minha vida inteira, desde o
quase uma década depois: começo em São Luís e seu desenrolar através
dos anos, imaginei vomitar tudo, criando uma
Minha atitude, então, em face da poesia, era espécie de magma, donde, em seguida, extrairia
essencialmente pragmática, isto é, menos o poema. (GULLAR, 2015, p. 58)
preocupada com a qualidade poética do que
com o objetivo político a alcançar. Mais tarde Esse movimento de vomitar a vida na folha
me dei conta de que fazer má poesia não de papel em branco e extrair dali o poema já foi
servia para nada. Ao escrever um poema, a visto no relato de Rabo de foguete. O que se
preocupação principal tem de ser com a percebe no excerto acima é uma compreensão
qualidade literária, poética. Isso me levou a de que o poema teria, se olharmos de
elaborar melhor os poemas dessa fase e
determinado ângulo, um teor autobiográfico.
mesmo a tentar criar uma linguagem poética
de qualidade a partir do vocabulário que o Essa tendência não fica tão clara em Rabo de
tema político-social inevitavelmente implica. foguete. Mais adiante, Gullar faz outra
Iniciei, então, uma nova trilha poética, que consideração que coincide com o que já foi visto
desembocou, em 1975, no Poema sujo. De no texto anterior:
algum modo, procurei realizar uma espécie
Naquele momento, ao conceber esse modo de
de alquimia vocabular entre as palavras
iniciá-lo, não sabia por que o fazia. Só mais
naturalmente poéticas e outras antipoéticas,
recentemente tomei consciência de que, na
ou não poéticas, como nomes de empresas
verdade, queria que o poema ‘não
internacionais, que simbolizavam o
começasse’. [...] No fundo, era para evitar o
capitalismo. (GULLAR, 2015, p. 57-58)
começo ‘lógico’. Aquilo que era de algum
Ainda no mesmo tom, para dar substância à modo vomitar o tema para, só depois, tratá-lo
sua afirmação anterior, o autor ainda coerentemente. (GULLAR, 2015, p. 58-59)
complementa com o seguinte: No excerto acima, Gullar retoma a
No Poema sujo, creio eu, deu-se uma dificuldade que foi iniciar o Poema sujo, dando
implosão de tudo que fora elaborado durante ao leitor a informação de que queria que o
os anos de 1962 e 1975. É certo que nada poema “não começasse”, ou que, na verdade,
disso foi planejado nem realizado com plena começasse a partir do encontro da pena com o
consciência do que fazia, mas, como sempre papel em branco, como afirma a seguir:
ocorre comigo, foi acontecendo à medida que
me dava conta das dificuldades e das turvo turvo
descobertas (GULLAR, 2015, p. 58). a turva
mão do sopro
Assim, percebe-se que Gullar encontra uma contra o muro
ligação entre a poesia política que fazia na
Como afirmar que esse não é o início do
década de 1960 e o Poema sujo. Não há menção poema, se é com esses versos que ele se
ao exílio, nem mesmo às dificuldades com o inicia? Pode-se dizer que esses versos não são
filho. Não há, pelo menos, um bastidor concreto ainda o assunto do poema, que, por isso, não
que evidencie como se deu a criação de sua começa ali. Não obstante, pode-se discordar
principal obra, como ele já havia feito antes, disso, observando que, se o poema ainda não
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 89
existia, era impossível fazer tal afirmação. A somente as libertar-se da realidade, a força
conclusão lógica creio ser a seguinte: criadora pode agir segundo suas próprias
precisamente por que o poema ainda não tendências. Como já discutimos, a obra está,
existia, aqueles primeiros versos são de fato o sempre, de algum modo, liga a essa realidade
começo dele. O que também é verdade é que, externa, e ganha feições singulares a partir de
por ainda estar sendo feito, aqueles versos uma representação ficcional da realidade
iniciais são um começar arbitrário [...].
(GULLAR, 2015, p. 60). Pode-se notar, portanto, que a abordagem da
criação do Poema sujo em Autobiografia poética
Se em Rabo de foguete o autor-narrador vai num caminho oposto aquela vislumbrada em
entrega ao leitor o relato de que os mesmos Rabo do foguete. Enquanto nesta, Gullar está
versos reproduzidos acima foram “achados” preocupado em construir um contexto para que o
enquanto Gullar tomava café, aqui o início do leitor entenda de que forma a vida vivida e a
Poema sujo serve de ensejo para que o autor memória reconstruída influenciaram na criação
reflita e analise sobre o início de sua obra. do poema, em Autobiografia poética a
Assim, se o autor de Rabo de foguete olha para preocupação parece recair sobre a forma da
trás e identifica que a criação do Poema sujo criação, a técnica propriamente dita, como sendo
pode ser abordada como uma ação um relato do sucesso de determinado movimento
transformadora (SALLES, 2011), com o poeta criativo, construindo uma verdade artística para
transmutando os elementos que tem ao seu a criação de poemas.
redor e utilizando-os na composição de sua obra
de arte, o autor de Autobiografia poética se 5 Duas explicações para o mesmo processo
atém exclusivamente à materialidade de sua A primeira hipótese que pode ser levantada
criação, identificando em seu percurso criativo para compreender as razões pelas quais Ferreira
uma tentativa de construção de verdades Gullar nos entrega duas explicações diferentes
poéticas, tal qual afirma Salles (2011, p. 136): sobre o mesmo processo reside na própria
“[...] estamos interessados na verdade artística natureza de cada documento de processo
da criação, ou, em outras palavras, no caráter da analisado, no caso Rabo de foguete e
verdade buscada pelo artista ao longo de seu Autobiografia poética.
trajeto em direção à obra. É a verdade guardada Sendo Rabo de foguete um livro que trata dos
pela obra, vista, aqui, sob o ponto de vida de sua anos de exílio do seu autor, parece natural que a
construção”. Convém esclarecer que quando ênfase narrativa recaia sobre a experiência do
tratamos de construção de verdade não nos exilado. Assim, Gullar parece nos convidar a
referimos à uma instancia referencial que liga a adentrar o seu íntimo para que compreendamos os
criação poética à vida do autor. Trata-se, na passos dados por ele. No caso da criação do Poema
verdade, de construir verdades artísticas, de sujo, o autor-narrador escolhe seguir essa mesma
testar movimentos criadores para que o poeta se linha narrativa e atrelar o seu processo criativo à
convença de que aquela técnica criativa resulta experiência traumática que estava vivendo. Aliás,
em um objeto. No caso específico da para dar unidade a Rabo de foguete, o autor-
Autobiografia poética, Gullar parece narrador não deixa o leitor esquecer que aquela é
interessado em defender a tese de que criou o uma experiência traumática, mesmo nos raros
Poema sujo antes de seu começo, como ele momentos de felicidade.
próprio evidencia no último excerto da obra A Autobiografia poética tendo o objetivo de
reproduzido acima. apresentar os caminhos percorridos na criação
Assim, o autor parece querer distanciar a poética de Gullar desde os seus primeiros escritos,
criação do Poema sujo da realidade dando a essa narrativa um olhar analítico que recai
extratextual, que, na verdade, não é alvo de suas sobre cada passo dado, não menciona o exílio ou
atenções em Autobiografia poética. A própria porque o autor não julgou necessário – por já ter
abordagem do movimento criador como um narrado essa experiência em Rabo de foguete ou
processo de construção de verdades artísticas se por receio de quebrar a verve analítica da obra – ou
propõe a uma compreensão que se dá no interior porque esse acontecimento está diretamente ligado
do processo, distanciando-se do contexto vivido a um trauma, e narrar o trauma não é uma tarefa
pelo autor. É o que Salles (2011, p. 137) afirma: simples. Sobre isso, Seligmann-Silva (2008, p. 67)
O artista, ao construir uma nova realidade, vai assevera que:
desatando-a daquela externa à obra. Pois Nestas situações, como nos genocídios ou nas
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 90
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: A partir da relação entre Literatura sempre que se pensa na literatura dos autores
e Sociedade, propõe-se uma leitura política do maranhenses que escreveram durante a passagem
livro de poemas Missas Negras, de Inácio do século XIX para o XX, os chamados
Xavier de Carvalho, publicado em 1902, em neoatenienses. Tais literatos/intelectuais
Manaus. A obra é composta por trinta e quatro construíram por meio de seus escritos e atuação
poemas, sendo a maioria sonetos. Alguns artística e política uma ideia de que seriam
críticos da literatura maranhense concordam restauradores de uma atmosfera de renascença
que a obra do referido autor insere-se no intelectual, alicerçada em uma outra construção de
Simbolismo ou Decadentismo, enquanto outros que seriam herdeiros diretos da vocação artístico-
afirmam que é difícil enquadrá-la em uma literária maranhense. Essa convicção baseava-se
escola literária específica. No entanto, o autor no sucesso que vários literatos maranhenses
está inserido no terceiro ciclo da literatura alcançaram ao longo do século XIX.
maranhense, chamado pela historiografia Aliado a isso, o período de escrita dos
tradicional de ciclo decadentista, o qual não diz literatos que se dedicaram à lírica coincide com
respeito a uma estética literária, mas a uma a vigência do Simbolismo/Decadentismo no
situação política e social instável em Brasil, levando autores como Maranhão
comparação a outros momentos da história, Sobrinho e Inácio Xavier de Carvalho a serem
além de um juízo de valor em relação às considerados também “poetas malditos”, tendo
manifestações artísticas produzidas nesse em vista a recorrência de algumas temáticas,
período. Tem-se como objetivo compreender o como morte, pessimismo e transcendentalismo,
sentimento de decadência e o imaginário em suas obras. Por fim, historicamente, não só
decorrente dele presentes na literatura o Maranhão como o Brasil, na passagem dos
autodenominada de neoateniense, nos séculos, vivia um período de forte crise política,
primórdios do século XX. Para isso, discute-se social e econômica, sobretudo com o fim do
o modelo explicativo prosperidade/decadência sistema escravista, a desagregação das lavouras
como único aceito para explicar o período, e a vinda de um novo regime político. Tal
assim como o mito da neoateniensidade. Busca- regime instaurou um clima de incertezas, aliado
se evidenciar a produção literária do período a à própria passagem de século que, em si, já é um
partir da obra supracitada, desvelando seu período instável e, por vezes, caótico.
decadentismo (literário ou temático) e a sua Tudo isso ambienta a obra de Inácio Xavier
relação com o contexto socioeconômico por de Carvalho, intitulada Missas Negras,
meio das figurações presentes na obra. publicada em 1902, em Manaus. Conforme
Carvalho (1912), foi com essa obra que o autor
Palavras-chave: Literatura Maranhense; encontrou a maturidade literária. Em
Literatura Neoateniense; Missas negras; Inácio concordância, Ramos (1986) afirma que foi
Xavier de Carvalho; Decadentismo. com esse livro que Carvalho se tornou um dos
maiores poetas da escola simbolista.
Literatura decadente e/ou literatura Apesar de se tratar de poemas, a obra tem um
decadentista? Essa é uma discussão que se coloca
38
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Literatura • duranspat@gmail.com • UFSC
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 93
caráter autobiográfico, podendo-se ver, para além Frutos Selvagens (1894), poemas líricos
da temática simbolista, uma visão decadente e românticos; Missas negras (1902), poemas
pessimista diante do que era o presente do mundo. decadentistas; Parábolas e Parabolas (1919),
Conforme Cândido (1991, p. 111), citando Proust, poemas humorísticos no Pará.
toda vez “que um grande artista nasce, é como se Ao realizar um importante mapeamento do
o mundo fosse criado de novo, porque nós simbolismo no Brasil com a obra Panorama do
começamos a enxergá-lo conforme ele o mostra”. movimento simbolista brasileiro, Muricy
Assim, podemos perceber o mundo pela ótica de (1973) dedica um pequeno capítulo a Xavier de
Inácio Xavier de Carvalho, uma forma Carvalho, destacando três sonetos contidos em
extremamente pessimista, mas cheia de poesia. Missas Negras, inserindo o autor nessa escola
Em sua obra, não só a estética decadentista é literária. Já em artigo do suplemento literário do
influência, mas também a história dolorida da Guesa Errante, Carneiro (2003, p. 21) assevera
conjuntura que se estabelecia em torno de si e do que as obras de Inácio Xavier de Carvalho não
seu fazer literário. podem ser encaixadas num modelo literário
Diante do exposto, este presente artigo tem único, estando incluídas simultaneamente no
o objetivo de fazer uma leitura política da obra Simbolismo, no Decadentismo e no Pré-
Missas Negras, pensando a relação autor-obra- modernismo. Carvalho era considerado “um
leitor, ou, mais profundamente, a relação entre poeta maldito” e, ao mesmo tempo, “irônico,
literatura e sociedade, ou seja, a natureza satírico, satânico, contraditório, pessimista,
ambígua não apenas do texto (que é e não é fruto paradoxal e ambíguo”. É notório que as duas
de um contato com o mundo), mas do seu visões não são antagônicas, mas
artífice (que é e não é um criador de mundos complementares, pois se, de fato, Carvalho não
novos) (CÂNDIDO, 1991, p. 112). Proponho constitui uma obra toda simbolista, pelo menos
uma leitura política no sentido etimológico da Missas Negras tem algumas influências.
palavra, porque, conforme Jameson (1992), O título do livro já indica que o texto tem um
toda interpretação de um texto, mesmo que não tom ritual, religioso, confessional, profético,
seja histórico, deve acessar a História, a história assim como também de sacrifício e sofrimento.
escondida, seu inconsciente político. Esses elementos cristãos vão estar presentes em
Ademais, torna-se necessário um estudo toda a obra como se fossem a música que
mais aprofundado a fim de biografar com mais acompanha esse ritual religioso. Os poemas
detalhes quem foi Inácio Xavier de Carvalho, o falam de “frade infernal”, “sermões de dor”,
qual, inclusive, publicou algumas obras fora do logo, mesmo não escrevendo em forma de
Maranhão e as quais não temos acesso. sermões, os textos têm muito desse discurso
Carvalho nasceu em 1871, em São Luís, e moralizador da pregação cristã.
morreu em 1944, no Distrito Federal Associado ao substantivo missas está o
(MEIRELES et al., 1958). É perceptível que a adjetivo negras, que, nesse caso, apresenta um
literatura não constituía o seu principal modo de significado negativo, como triste, lúgubre,
ganhar a vida, tendo seguido na magistratura. melancólico, funesto, maldito, perverso,
Graduou-se em Direito pela Faculdade do lutuoso, apagado, decadente, morto. Esses
Recife, exerceu as funções de promotor público, adjetivos trazem os sentimentos do eu-lírico ao
juiz municipal e juiz federal no Maranhão, juiz longo do livro. Logo, o livro é um sermão
municipal de Abaeté em Minas Gerais, pessimista e dolorido acerca da vida. O poema
procurador geral do estado do Amazonas e juiz que abre o livro é intitulado Profissão de fé:
substituto em Belém. Além disso, foi professor Uma andorinha só não faz Verão!... Embora!
do Liceu Maranhense e jornalista. Participou - Asas desdobrarei ao sol das Crenças Minhas
ativamente do movimento cultural de sua época, E entrarei para o Além, pelas nuvens a fora
fundando agremiação literárias como a Oficina Longe de feras más e das aves daninhas...
dos Novos. Depois de um grupo dissidente Ó ave! e então verás que essas penas que
desta, fundou a Renascença Literária e foi tinhas
também um dos fundadores da Academia Negras... branquejarão ao contato com a
Maranhense de Letras, em 1909, ocupando a Aurora...
cadeira nº 9. Sua escrita jornalística era intensa, E... hás de nojo sentir das outras andorinhas.
Uma andorinha só não faz Verão!... Embora!
tendo participado de vários periódicos
Subirás pelo céu... alto, alto, tão alto
maranhenses. Suas obras literárias incluem: Que não vejas o chão, que não vejas as casas
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 94
Agrupadas aqui n’este humano planalto... poeta continua a ser exaltada, em especial
E descerás depois... já sem peias e algemas, quando comparada com reis e com a lira, grande
Águia imensa de Luz, desdobrando nas asas instrumento que acompanhava a poesia, feita de
Todo um poema ideal de Revoltas Supremas! ouro. Assim como no primeiro poema, mais
(CARVALHO, 1902, não paginado).
uma vez, o eu-lírico se declara um poeta
Assim como o poema de Olavo Bilac, de insubmisso, que escreve poemas cujo poder é
mesmo título, fala sobre o fazer do artista, aqui ferir e marcar.
também o eu-lírico está preocupado com o fazer A posição pessoal do fazer artístico do poeta
do poeta. No entanto, enquanto aquele compara figura como a posição do fazer artístico dos
o fazer do literato ao fazer do ourives, este escritores de sua época. Nos poemas fica nítido
compara o seu fazer a um voo, que, embora que o fazer literário, apesar de esmerado, forte,
solitário, não pode deixar de ser feito, pois representativo, não encontra ressonância na
produzirá um novo ser que não é mais humano, sociedade, sendo que a glória só é possível fora
mas uma águia “de luz”. Essa águia branqueia das terras maranhenses, ou em uma outra
ao contato com o sol e consegue ter suas dimensão, que é o Céu. Em poucos momentos
habilidades melhoradas com a acuidade visual da história do Maranhão se observou tanta
para produzir poemas que indiquem suas preocupação em fazer cultura, incluindo a
revoltas supremas. Assim, é o fazer do poeta, organização de diversos jornais e eventos, além
aquele que consegue enxergar aquilo que os da publicação de diversas obras. Contudo, o fato
outros não enxergam, que consegue produzir desses intelectuais dessa época não terem
um mundo ideal. conseguido projeção nacional, outorgou-lhes
Outros poemas do livro tratam sobre essa um estigma de literatura decadente,
mesma temática e, da mesma forma, exaltam o subliteratura ou mesmo literatura menor.
fazer artístico, como em Deixando a argila, do Dos grupos maranhense e fluminense que
qual destaco um trecho: vão fundar o cânone nacional naquele
Dominarás o Céu! Vamos, alma de artista!
momento, conforme Corrêa (1993), São Luís se
Que, em te vendo passar, todo o cortejo tornava a esclerose passadista, enquanto o Rio
irrompa de Janeiro adquiria o caráter da experiência de
De Astros a te seguir... e o Éter todo se vista renovação. Martins (2006, p. 123) descreve o
De amplas Ressurreições, de Aleluias e imaginário daquele grupo que queria produzir
Pompa!... frutos selvagens, mas só corporificava uma
Que a Lua, ao te avisar, sob os teus pés se babilônia de exílio:
rompa!
- vencendo todo o Além, só de um golpe de Rachaduras Solarescas. Desconforto. Saudades.
vista, Distância incômoda em relação a um passado
Toma um bloco de Céu... dele faze um prefigurado pelos Novos Atenienses como
trompa... singular, glorioso, polissêmico e semiofórico.
...Que da terra ninguém a teus Triunfos Reconhecimento melancólico de inferioridade
assista! […] (CARVALHO, 1902, não intelectual num confronto com os integrantes
paginado). das gerações antecedentes, seus referenciais
onipresentes. Imagens demarcadoras das
Sobre esse mesmo fazer literário, destaco responsabilidades desses epígonos neo-
trecho do poema Poeta: atenienses em vista da predisposição acalentada
de dar cabo a um movimento de renascimento
Sobre o largo portal do castelo onde mora
cultural do Maranhão e remontar à continuidade
Meu grande coração de escritor insubmisso
essencial inaugurada pelo Grupo Maranhense,
Inundada na luz de um resplendor da aurora que, como pensavam esses letrados, teria sido
Há uma lira de Rei feita em ouro maciço. […] atrofiada em sua trajetória pela emergência de
(CARVALHO, 1902, não paginado). vigoroso processo de decadência material,
O sucesso dos artistas em todos os poemas moral e intelectual, sintomático na vida
está no campo do imaginado, no Céu, nos maranhense, fragilizando tanto o exercício da
Astros, na Lua, no Além, no Sol, sendo que a hegemonia, conforme manejado historicamente
por essa elite dominante, quanto a visão de
terra, grafada em minúscula, não por acaso, é
mundo que lhe era correlata.
diminuída em relação aos outros elementos, não
conseguindo ver/entender seu sucesso. No O sonho ou a estratégia de consagração
último poema mostrado, a superioridade do traçada para se tornarem continuadores de um
A CRIAÇÃO DO POEMA SUJO: UMA CRÍTICA DE PROCESSO ATRAVÉS DE RABO DE FOGUETE E DA AUTOBIOGRAFIA POÉTICA 95
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Embora pareça tímida, quando se Ferreira Gullar, entre outros tantos. Não
pensa em uma proporção numérica frente aos podemos esquecer, porém, que em terras
homens, a literatura de autoria feminina desde o maranhenses as mulheres também escreveram,
século XIX se fez presente em terras e escreveram muito. Algumas pesquisas
maranhenses. Vencendo muitas barreiras, acadêmicas recentes têm colaborado no sentido
algumas mulheres encontraram lugar para suas de dar mais visibilidade a essa produção. Com
vozes através das letras e podem, portanto, ser esse trabalho, que tem como objeto de estudo a
tidas como pioneiras, pois abriram um espaço lírica de três maranhenses pioneiras em nossa
antes interdito à mulher. Perspectivando esse literatura, pretendemos também contribuir
cenário, três maranhenses merecem destaque: nesse sentido, uma vez que voltaremos nosso
Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Laura olhar para uma matéria ainda pouco
Rosa (1884-1976) e Mariana Luz (1871-1960). investigada, a saber: a poesia de Maria Firmina
Laura Rosa e Mariana Luz foram as duas dos Reis, de Laura Rosa e de Mariana Luz.
primeiras mulheres a entrar na Academia O surgimento da obra dessas autoras se dá no
Maranhense de Letras. Maria Firmina dos Reis século XIX, época em que São Luís era dominada
não tem assento na AML, mas já colocou culturalmente por “latinistas e helenistas de valor,
definitivamente seu nome na história com seu mas a situação do ensino era precária, como aliás
romance – Úrsula – considerado precursor na em todo o Império”, nesse contexto “as
luta contra a escravidão. Essas autoras têm muito oportunidades de estudo para as moças eram
em comum. Mulheres negras, pobres, mínimas”. (TELLES, 2004, p. 343). Nesse período,
professoras, solteiras, que vivendo no interior do o que se esperava de uma mulher é que vivesse
Estado, valeram-se da força do intelecto e do restrita ao espaço doméstico, a esfera pública não
espírito para conquistar seu espaço na sociedade. lhe cabia. Também não cabia à menina receber uma
O objetivo desse trabalho é investigar a produção educação formal. Dentre tantos interditos à
lírica dessas autoras, destacando suas liberdade, à autonomia, aos direitos civis, a
peculiaridades, semelhanças, diferenças e, em educação também era negada às mulheres, situação
especial, analisando como os elementos naturais comum mesmo entre as famílias burguesas como
são representados por cada uma. demonstra Miridan Falei (2004):
39
Mestre em Estudos teóricos e críticos em Literatura pela
UFMA (gabrielasantana1611@gmail.com)
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 101
pais para ministrar aulas em casa. Muitas Maranhense de Letras, através de sua editora,
apenas conheceram as primeiras letras e publicou Poesias reunidas de Laura Rosa, obra
aprenderam a assinar o nome. Enquanto seus organizada por Diomar das Graças Motta.
irmãos e primos do sexo masculino liam Mariana Gonçalves da Luz, em 1949,
Cícero, em latim, ou Virgílio, recebiam
tornou-se a segunda mulher a adentrar na
noções de grego e do pensamento de Platão e
Aristóteles, aprendiam ciências naturais, Academia Maranhense de Letras, onde é
filosofia, geografia e francês, elas fundadora da Cadeira 32. A escritora de
aprendiam a arte de bordar em branco, o Itapecuru Mirim produziu textos dramáticos
crochê, o matiz, a costura e a música. (p. (perdidos), fundou um Teatro e uma companhia
210; destaques nossos). teatral em sua cidade natal, foi cronista e poeta.
É autora do livro de poemas Murmúrios. O
Contrariando as expectativas sociais,
pequeno volume Murmúrios foi publicado após
algumas mulheres adquiriram uma instrução
o falecimento da poeta, em 1960, em uma
mais consolidada, por vezes à custa do
pequena tiragem, a título de homenagem
autodidatismo, e se tornaram professoras e
póstuma. Murmúrios foi reeditado trinta anos
escritoras. Este é o caso das autoras aqui
depois, novamente em uma tiragem reduzida,
estudadas: Maria Firmina dos Reis (1822-
rapidamente esgotada. A partir de 2014, com a
1917), Laura Rosa (1884-1976) e Mariana Luz
publicação da pesquisa de Jucey Santana,
(1871-1960). Três maranhenses negras, pobres,
Marianna Luz: vida obra e coisas de Itapecuru-
mulheres solteiras que exerceram o magistério
Mirim, têm ganhado força os esforços de resgate
e se fizeram importantes educadoras de várias
de Mariana. Em 2021, com o apoio da
gerações de crianças nas cidades do interior do
Academia Maranhense de Letras, foi publicada
Estado onde moravam, respectivamente:
a terceira edição de Murmúrios41.
Guimarães, Caxias e Itapecuru Mirim.
Conforme mencionado anteriormente, nosso
Além da atuação docente, Maria Firmina dos
propósito com este estudo é colaborar com as
Reis, Laura Rosa e Mariana Luz dedicaram seu
pesquisas em torno da obra lírica dessas autoras.
tempo, e porque não dizer sua vida, à literatura.
Instiga-nos compreender as semelhanças e as
Elas participaram ativamente da vida intelectual
diferenças entre tais produções. Como o
maranhense colaborando na imprensa,
formato de um artigo acadêmico não comporta
publicando livros, participando de antologias,
um estudo aprofundado sobre todo esse
envolvendo-se com grupos de literatos,
material, optamos por fazer um recorte
proferindo conferências.
temático, ou seja, estabelecer um cotejo entre a
Na esfera literária, Maria Firmina dos Reis
forma como os elementos da natureza são
é, hoje, uma autora nacionalmente reconhecida
representados por cada uma delas.
por Úrsula, considerado o primeiro romance
Presente na poesia de todos os tempos, a
abolicionista de língua portuguesa. Os contos
natureza ora apresenta-se mero cenário, lugar
“A escrava” e “Gupeva” também já contam com
fictício ou real, nesses casos, sempre necessário
uma considerável fortuna crítica. O mesmo não
para situar os acontecimentos, ora eleva-se ao
podemos dizer de Cantos à beira-mar, livro que
status de imagem poética, ou seja, atravessada pela
reúne os poemas de Firmina40.
imaginação do poeta, ganha múltiplos significados.
Laura Rosa, por sua vez, é uma autora que
Bosques, florestas, fontes, flores, diferentes
ainda hoje habita no ostracismo. Muito pouco se
espécies de árvores, os mais variados animais, ao
sabe da escritora que morou em Caxias, adotou
povoarem a literatura, perdem a clareza da
o pseudônimo de Violeta do Campo e foi a
descrição e ganham intensidade expressiva.
primeira mulher a ocupar um lugar na
O professor, ensaísta e poeta francês Michel
Academia Maranhense de Letras, onde fundou
Collot tem se ocupado da investigação poética
a Cadeira 26. Sua posse foi em 1943. Laura
em torno da paisagem. Collot (2015, p. 18)
Rosa é reconhecida como professora, jornalista,
distingue lugar e paisagem, sendo o primeiro
contista, cronista, conferencista, mas também
definido por uma delimitação “topográfica e
escreveu poesia. Em 2016, a Academia
40 Em 1871, o volume Cantos à beira-mar chega ao editora da Academia Ludovicense de Letras lança a
público em São Luís, impresso pela Typographia do Paiz. terceira edição da obra.
41 Trata-se do livro Mariana Luz: Murmúrios e outros
Mais de um século depois, em 1976, José Nascimento
Morais Filho publica em fac-símile a segunda edição do poemas, publicado em 2021 e organizado por mim.
livro, no Rio de Janeiro pela editora Granada. Em 2017, a
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 102
respeito, Antonio Candido (2000, p. 28) diz: Michel Collot (2015, p. 21) lembra que a
Enquanto a natureza refinada do
paisagem da praia remete a “três faixas
Neoclassicismo espelha na sua clara superpostas, segundo os três níveis da areia, do
ordenação a própria verdade [...] para o mar e do céu.” Essas três faixas estão
romântico ela é sobretudo uma fonte de representadas no poema pela “branca areia”,
mistério, uma realidade inacessível, contra a pela “onda enfraquecida” e pelo “vento
qual vem bater inutilmente a limitação apaixonado.” Firmina ainda insere um quarto
humana. Ele a procura, então, nos aspectos elemento que desequilibra a horizontalidade: a
mais desordenados, que, negando a ordem rocha. As formações rochosas existentes nessa
natural, permitem uma visão profunda. região, conhecidas como pedras de Itacolomi,
(grifos nossos).
figuram nesse texto e ressurgem em outros.
Acentuando também essa diferença, Alfredo Notemos que o mar é derrotado pela areia e
Bosi (2015, p. 79) afirma que “a natureza vencido pelas rochas. O que ganha relevo é a
romântica é expressiva. Ao contrário da natureza praia que se confunde à disposição anímica do
árcade, decorativa. Ela significa e revela.” Na sujeito (“aqui minha alma expande-se). A beira-
pena do romântico, o mundo natural passa por mar é o lugar onde o sujeito poético está situado.
um processo de individualização, através do qual A praia é um entrelugar, confinada entre o
a natureza funde-se ao estado emocional do continente e o mar, oferece-se como um espaço
indivíduo. “O mundo natural encarna as propício à meditação, onde “a mente vaga em
pressões anímicas” (BOSI, 2015, p. 79). solidões longínquas.”
Esses dois movimentos românticos estão A recorrência do dêitico “aqui” aponta para
presentes na poesia de Firmina, leia-se, sua as três configurações da praia: espaço carregado
tendência de retratar a natureza local e de de magia e encanto propício aos devaneios da
associá-la aos estados da alma. Ainda mais um alma (“o mago encanto destas praias nuas”);
terceiro movimento de ruptura vale ser espaço capaz de acalmar os sofrimentos
mencionado: se por um lado o Neoclassicismo (“menos ardente me goteja o pranto”) e por fim,
valoriza o equilíbrio, o Romantismo exalta os espaço privilegiado ao amor.
sentimentos extremados, o tumulto, o O poema apresenta oito quadras de versos
desespero. Também essa terceira característica decassílabos, estruturadas com dois versos
pode ser verificada na lírica de Firmina como brancos (1 e 3) e dois versos rimados (2 e 4). A
verificaremos nos poemas “Uma tarde em presença do verso branco não compromete a
Cumã” e “Nas praias do Cumã”. musicalidade que é garantida através de outros
recursos como o uso de rimas toantes. O texto
Uma tarde um Cumã
Aqui minha alma expande-se, e de amor apresenta a seguinte divisão: nas quatro
Eu sinto transportado o peito meu; primeiras estrofes encontramos um sujeito
Aqui murmura o vento apaixonado, poético em estado contemplativo tomado pelo
Ali sobre uma rocha o mar gemeu. sentimento amoroso. A afinidade entre o
E sobre a branca areia — mansamente indivíduo e a natureza que aí teve início ganha
A onda enfraquecida exausta morre. novos contornos, ao passo que a segunda
Além, na linha azul dos horizontes, metade do poema adquira um tom mais
Ligeirinho baixel nas águas corre. sensuais. No quinto as divagações do sujeito o
[...] transportam a um “delírio vago”, a paixão e o
A mente vaga em solidões longínquas,
desejo se intensificam. Nas últimas três
Pulsa meu peito, e de paixão se exalta;
Delírio vago, sedutor quebranto, estrofes, o eu poético dirige ao seu amado um
Qual belo íris, meu desejo esmalta. convite para que venha juntar-se a ele “ao som
[...] das vagas.” A concretização do convite
Sentirás ao ruído destas águas, amoroso deve se realizar na praia.
Ao doce suspirar da viração,
Nas praias de Cumã
Quanto é grato o amor aqui jurado,
Solidão
Nas ribas deste mar, — na solidão.
Aqui na solidão minha alma dorme;
Vem comigo gozar um só momento,
Que letargo profundo!... Se no leito,
Tanta beleza a me inspirar poesia!
As horas mortas me revolvo em dores,
Ah! vem provar-me teu singelo amor
Nem ela acorda, nem me alenta o peito.
Ao som das vagas, no cair do dia. (REIS,
No matutino albor a nívea garça
2017, p. 37-8).
Lá vai tão branca doudejando errante;
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 104
Que fala das crenças, que vida lhes é. do povo tupi que ao ver-se expulso de suas
Ele começa com voz soluçada: “praias saudosas”, enche-se de valentia ao
“Nas praias do norte nascidos tupi; preferir lutar e morrer a desistir de sua
Existem palácios no mar encantados, liberdade. A narrativa é vertida pelos versos
No leito das águas de Itaculumim.
mais longos do endecassílabo, de acentuação
Ah! quanto é formoso seu vasto recinto,
Oh! quanto são belas as virgens d’ali! variada ao gosto da ação que se desenrola, bem
[...] aos moldes de “I-Juca Pirama”. O sofrimento
O colo das virgens é branco, e aéreo; dessa gente expatriada de seu lugar idílico se
As tranças de ouro rasteiam no chão; estende ao meio natural que também chora, o
O canto é sonoro — tem tal harmonia cenário que era composto a priori por singelas
[...] praias agora dá lugar a “noites de inverno”
Seu corpo mimoso semelha à palmeira, sacodidas por trovões que gemem nas matas.
Que troca co’a brisa seu ledo folgar: A certa altura, tem início o discurso do pajé
[...] que revela funda nostalgia pelo paraíso terrestre
Deixamos a vida nos lares queridos,
perdido: as praias do Norte. Esse lugar se
Vagamos incertos por ínvio sertão.”
Entre suspiros cessa o triste canto; afigura como a paisagem ideal (locus amoenus)
Mais não disse o pajé! ondes as virgens são mais belas e o canto mais
Um silêncio dorido sucedera harmonioso. À beleza e perfeição da natureza
Ao seu canto de dor... corresponde diretamente a felicidade do homem
Ele! tão feliz... ele, ditoso que nela habita, porém, quando tudo isso é
Eu seu doce folgar; perdido o que resta é solidão e um triste vagar
Em palácios dourados repousando, por “ínvio sertão”. A fertilidade e frescor das
Em instantes de amor... praias beijadas pelo mar e pela brisa são
Agora na soidão — agora longe substituídos pela aridez do sertão.
Dessas deusas do mar;
Nas quatro estrofes seguintes, compostas por
Agora errante, triste, e sem destino
Sentia a aguda dor... decassílabos e pentassílabos intercalados, o
Por isso era canto bem sentido narrador lastima o fado do pajé e de sua gente.
Lá por ínvios sertões! Vale notar como nesses quartetos os versos não
Perdera as salças praias, arenosas, rimam, como a demostrar a quebra da harmonia
Perdera o seu amor! e da beleza à qual os indígenas foram
Lastimava seu fado — e se carpia submetidos com a chegada dos europeus. No
Das praias do Cumã. entanto, nessas estrofes sobressai-se somente
E de Itaculumim se recordava uma única rima: o último verso de cada quadra
Com suspiros de dor... finda com o som “or”, rimando “amor” e “dor”,
[...] (REIS, 2017, p. 119-22).
“amor” e “dor.” Temos aí uma espécie de
Afeita a poemas mais longos, Firmina síntese de todo o poema, bem como do destino
constrói esse belo texto de métrica variada e da raça tupi, uma vida plena de amor que se
malabarismo rítmico, permeado de partes transforma em “aguda dor.”
líricas, trechos narrativos e pelo discurso do O poema indianista firminiano delineia a
pajé. Bosi (2015, p. 78) afirma que “o fulcro da comunhão entre o homem nativo e sua terra.
visão romântica do mundo é o sujeito”, porém Vimos nessa amostragem como ao retratar o
notamos aqui um movimento diferente, o centro espaço natural, Firmina não busca apenas
não é mais o sujeito e seus anseios, Firmina reproduzir um cenário, sua natureza é viva, age
empresta sua voz aos índios, a toda uma nação sobre os sentimentos do indivíduo e sofre com
tupi. ele. As praias, com sua beleza selvagem,
Nas três primeiras estrofes, os versos ligeiros ganham contornos psicológicos, e mais, o
da redondilha menor dão o tom de uma suave específico é exaltado em lugar do universal.
balada. O sujeito poético descreve a existência
3 As pérolas pequeninas de Laura Rosa
de duas praias fronteiriças – Cumã e Itaculumim
– e anuncia que elas são o objeto de seu canto. Extraída do poema “Aurora”, a expressão
A paisagem é recortada por elevações que “pérolas pequeninas” é uma boa forma de
escondem segredos. A seguir, tem início um começar a pensar a poética da primeira
longo trecho de caráter mais narrativo que parte maranhense a entrar na Academia Maranhense
de uma pergunta: “Não vedes?”. A narração fala de Letras. Nada de voos elevados, de sofrimento
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 106
43 44
O texto aqui apresentado apresenta algumas variações Topos deve ser entendido como fórmulas, esquemas do
em relação à edição preparada por Diomar das Graças pensar, maneiras técnicas de expor e argumentar,
Motta e adotada neste trabalho. Servimo-nos na versão do provenientes da Antiguidade clássica, que se cristalizaram
poema publicada na Revista Elegante (Ano IX, N. 95, na tradição literária universal.
20/05/1900, p. 3), pois notamos alguns trechos que
levantavam dúvidas.
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 108
do Romantismo são detectáveis por meio de Aponta lá no céu, Saara imenso e infindo,
diálogos com outros poetas ou mesmo através A caravana enorme e errante das estrelas.
motivos 45 relidos pelos simbolistas, porém a (LUZ, 2021, p. 111).
exaltação da cor local como vimos em Firmina, Tecendo sugestões, a autora vale-se da hora
não parece ser uma preocupação para a poeta crepuscular não como um objeto com fim em si
itapecuruense46. mesmo, mas como um instrumento que revela
A poesia para Mariana, como bem observa um estado da alma. Assim, o crepúsculo torna-
Rafael Quevedo (2021, p. 18) no prefácio de se capaz de desencadear um movimento que
Mariana Luz: Murmúrios e outros poemas leva ao inefável aludido no último terceto em
(2021) é uma tentativa de sublimação da vida um “turbilhão de glória”.
comum, um convite para “alar-se”, “alçar-se a Vale destacar no alexandrino com acentuação
uma experiência que a eleva”, é o que nas sílabas 6 e 12, metro que a autora gosta de
encontramos nos trechos de “O Caminho”: explorar, a tensão semântica entre os dois
Quando contemplo o azul da imensidade, hemistíquios, como no primeiro verso que opõe a
Limpo de nuvens, todo azul somente, serenidade (“tarde morna e serena”) e o desespero
Sinto o punhal agudo da saudade (“sol, agonizante”). Por meio de um cromatismo
Atravessar-me o peito cruelmente. requintado, a tensão se repete no verso seguinte
[...] que une a situação em jogo a cores de sentidos
É tarde agora... Além, há outra esfera conflitantes. Explicamos: o sol se amortalha,
Onde, risonha e eterna, a primavera cumpre lembrar que tradicionalmente a cor das
De luz e aroma nutrirá meu ser... (LUZ, 2021,
mortalhas é branca, mas nesse caso o astro vai
p. 101).
morrer na “fulva cabeleira”, que nos transmite
No esforço de transfigurar a condição uma ideia de vida, pois fulva é a cor vibrante do
humana e dar-lhe horizontes transcendentais, os ocre, do dourado que está aqui associada a uma
versos da autora apontam para o alto, para “o cabeleira, o que nos remete a ideias de
azul da imensidade”, para essa “outra esfera” movimento. Ligado ao melancólico e nasalado
onde as aflições atinentes ao plano da “amortalhando” temos, portanto, paradoxalmente
experiência cotidiana são superadas em um uma explosão de vida e movimento.
plano espiritual. Mais que telúrica, a natureza A fusão de diferentes sensações, imagens,
em Mariana é etérea, com voos de pássaros, movimentos, cores, perfumes (“aroma sutil”)
brisas, luares, colinas, cimos de árvores indica o esforço em representar o instante em
(“virentes franças47”) e imagens crepusculares, sua totalidade, em incorporar o mundo
sobre as quais nos deteremos mais detidamente, espiritual ao mundo natural. A musicalidade do
a começar pelo soneto “Crepúsculo”: poema se beneficia das tradicionais rimas
Tarde morna e serena. O sol, agonizante, externas, além das aliterações e assonâncias.
Se amortalhando vai na fulva cabeleira Em uma escrita embebida da atmosfera
E lança sobre a terra a chispa derradeira decadentista 48 e pessimista do fin de siècle, a
Do seu olhar de rei, todo altivo e arrogante. autora personifica os sentimentos através das
Divaga pelo espaço incerto, nesse instante manifestações da natureza. Deste modo, o
Um aroma sutil. Nos leques da palmeira elemento crepuscular presentifica a um só
Perpassa docemente a aragem tão fagueira tempo encantamento e funda nostalgia como é
Fazendo farfalhar a fronde verdejante. possível observar na breve amostragem abaixo:
Desdobra a tarde o manto e, triste e
merencória, “Desengano”
Estende-o sobre a terra e, célere fugindo, Ia morrendo o dia. Um bando alvo de pombas
Se oculta lá no azul, entre cérulas telas. Ruflando docemente as asas tão nevadas
E eis aqui, afinal, luzindo em turbilhão de glória, Descia, a tatalar nas selvas perfumadas
Em procura do ninho oculto pelas sombras.
45 Apesar de não serem propriamente românticos, alguns fica no campo da suposição uma vez que esses textos estão
temas recorrentes desse período como a mágoa dos amores quase todos perdidos.
47 Verso de “Resposta” (LUZ, 2021, p. 99).
contrariados, a impossibilidade expressiva, a volúpia da
48 Nesse ponto, não é demais lembrar que no Brasil,
morte são relidos pelos simbolistas e decadentistas.
46 Cumpre mencionar que essa observação se aplica para a durante um tempo, o Simbolismo e o Decadentismo
lírica luziana. É possível que o teatro da autora tenha se existiram como estéticas paralelas, chegando a haver uma
detido a questões mais locais, essa observação, no entanto, espécie de imbricação entre ambas. Pensamos ser esse o
caso que marcou a trajetória artística de Mariana Luz.
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 110
humana e então o sofrimento lhe causa profunda Por meio da configuração literária, a natureza
angústia que beira a revolta contra o mundo. física assume um valor de um sistema de signos.
Sua poesia revela de modo consistente um Em Firmina, a terra natal ganha contorno de
mal-estar com a sociedade, sua palavra é “paisagem ideal”, lugar idílico, propício ao
portadora de toda sorte de humilhações que a vida diálogo (interior ou com o outro) e ao encontro.
impõe ao homem comum, o que por vezes revela Como diz Collot no trecho acima, “a paisagem
uma tensão de ordem religiosa, a saber, a não saberia se reduzir a um puro espetáculo”, uma
esperança, virtude cristã, chega a ser questionada. vez que ela carrega consigo um valor de memória
Fervorosa católica, a autora flerta com o spleen, afetiva e de fonte de emoções. Assim, a beleza do
mas não se permite entregar-se ao desespero. local é associada à beleza feminina e a felicidade
Nessa dinâmica, o entardecer reveste-se no plena somente se realiza na harmoniosa
instante suspenso que representa o conflito que convivência do homem com seu lugar. Afastar-se
assola a alma, a morte de um sonho anelado e a da paisagem é tornar-se um expatriado, o que gera
vida renascida e salva “pela Dor”, como vimos no toda sorte de sofrimentos.
poema registrado logo acima. Sendo o crepúsculo O sentido da visão é acionado nos poemas de
este momento decisivo, de “duelo da treva com a Laura Rosa, mas como um catalizador de
luz49”, entende-se a importância que essa imagem reflexões que a partir daí se desdobram. É digno
ganha na lírica de Mariana. de nota um aspecto presente nessa poética, a
saber, a tendência de voltar o olhar para a
5 Considerações finais
própria poesia. Através de elementos pequenos,
Refletindo acerca da forma como o homem tidos até como insignificantes, a poeta lança sua
apreende o mundo sensível, Michel Collot crítica sobre o valor da poesia e sobre o lugar do
(2015, p. 20) defende que essa experiência poeta na sociedade, leia-se, o poeta, artesão da
extrapola a simples percepção visual e ganha palavra, é como uma aranha que projeta do alto
dimensões sensoriais: sua obra, bela e resistente, mas que sofre toda
Se confundem o interior e o exterior, o que é sorte de perseguições e maledicências. A
sentido e o que é experimentado; longe de resistência da poesia diz respeito a resistir ao
apreender o que se oferece a nossos olhos, tempo, a sobreviver, a estar acima das
nós é que somos apreendidos. Nós o vicissitudes da vida comum. De forma
experimentamos mais comumente por interessante, Laura Rosa vale-se de coisas
intermédio de outros canais do que pela vista, mínimas para falar de algo elevado, que flerta
que é o mais intelectualizado de nossos com a imortalidade.
sentidos; sabe-se a que ponto os odores, os Em Mariana, o horizonte sangrento surge
sabores ou as sensações tácteis podem carregando de ritmos e odores, revelando seu
solicitar a memória afetiva e (res)suscitar um
poder quase mágico de destronar o sol todo-
universo indissociavelmente interior e
exterior. Nossa tradição ocidental confere à poderoso. Encontra lugar nessa imagem a
vista um privilégio excessivo e quase propensão mística da autora que sinaliza nesse
exclusivo na abordagem da paisagem. Ora, a instante crepuscular seu anelo de converter a
paisagem não saberia se reduzir a um puro dor em salvação do homem.
espetáculo. Ela se oferece igualmente aos
outros sentidos, e diz respeito ao sujeito, por
Referências
inteiro, corpo e alma. Ela não se dá somente
a ver, mas a ser sentida e vivenciada. ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-
Comum: Alguns Temas de Horácio e sua
Arriscamos afirmar que o excerto traduz a Presença em Português. São Paulo: Editora da
representação do mundo natural construída pelas Universidade de São Paulo, 2015.
três poetas maranhenses. Cada uma, a seu modo,
transfigura os elementos da natureza em BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. Tradução de
instrumentos de expressão poética. A praia em José Bonifácio. São Paulo: Perspectiva, 2007.
Firmina, os pequenos animais de Laura Rosa e o BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
crepúsculo em Mariana transmitem sensações, brasileira. 50. ed. São Paulo: Cultrix, 2015.
desejos e angústias, revelando uma simbólica
simbiose entre o homem e aquilo que o cerca.
49Verso extraído do poema “Pôr do sol”. (LUZ, 2021, p.
183).
A FIGURAÇÃO DO ELEMENTO NATURAL NA POESIA DE MARIA FIRMINA DOS REIS, LAURA ROSA E MARIANA LUZ 112
ISBN: 978-65-5363-027-7
partir da revolução industrial, da instauração da tornam moda, para ser, pouco depois,
técnica como medida de todas as coisas, o ente suplantadas por outras. A literatura, então,
moderno esgota sua filiação com o eu em torno torna-se um laboratório de experimentos
do eu, para descansar nos braços da máquina. formais (COMPAGNON, 2014b).
Não obstante, esta tampouco resolve sua Entretanto, Compagnon (2014) defende que
inquietude existencial, tornando-o, mais uma há um conjunto de artistas, certamente minoria,
vez, órfão de ídolos (NIETZSCHE, 2017). os antimodernos, que, mesmo modernos e
É assim que a humanidade chega ao modernistas, renegam enfaticamente de seu
desdobramento do século XIX para o XX, Zeitgeist. A maioria das suas produções se
momento em que surge uma série de destinam a romper aquilo que foi feito
intelectuais 52 em todo ocidente, reconhecidos justamente para romper com a tradição, ou para
pelo pessimismo para com seu tempo e para se contrapor à tradição da ruptura. Dito de outra
com o futuro (BERMAN, 1986). Esse volkgeist forma, se a modernidade nasce com o intuito de
traduz-se na proliferação de ideias que rejeitam superar a tradição – tornando-se depois uma
a razão secular proveniente do Iluminismo tradição que teria de ser superada, e assim
(TODOROV, 2008), a fim de instaurar uma sucessivamente (COMPAGNON, 2014b) –,
nova epistemologia à serviço da desconfiança então os antimodernos são os defensores
tanto do que já foi, a saber, a tradição, como da propositalmente módicos da tradição
moral presente. Tratou-se, enfim, de romper (COMPAGNON, 2014), uma vez que não
com os paradigmas da modernidade, utilizando, conseguem desassociar-se radicalmente do
para isso, uma revisitação ao passado. ethos de seu tempo. Eles se sabem
Tal desnorteio do apolíneo, como diz condicionados pela circunstância sóciohistórica
Habermas (2010), mescla as distintas categorias em que estão inseridos, e, por isso, não podem
do moderno, outrora considerada como a era da ser categorizados como simples reacionários ou
razão subjetiva – na Baixa modernidade – ou da conservadores ortodoxos. Nesse sentido, o
razão técnica – na Alta modernidade. Assim, o antimoderno continua sendo moderno, só que
que antes era evitado a qualquer custo: a um moderno às avessas, um moderno na
contradição, a junção de partes antagônicas e/ou retaguarda da modernidade (COMPAGNON,
o incerto, agora, vira método. Nesse cenário é 2014) – o que implica, também, contraposição
onde desfilam intelectuais de todas as áreas e às vanguardas nascentes desse período53.
estilos, procurando dar um sentido – se é que No seu livro Os antimodernos (2014),
ainda exista um paradigma do sentido – ao ser Compagnon reluz algumas teorias e orientações
do novo século. hermenêuticas, a fim de identificar os intelectuais
Esse direcionamento filosófico do modernos intitulados por ele de antimodernos.
contraditório recai numa arte que aceita Para tal missão, evidencia alguns rasgos de teor
abertamente tais leis, encontrando uma político, filosófico, histórico, ideológico, estético
renovação estética estagnada aridamente nos etc próprios à maioria deles54.
movimentos precedentes, os quais relegam a A partir desses preceitos, intencionamos
objetividade ao primeiro plano do fazer vislumbrar o poeta espanhol Antonio Machado
artístico. No campo da literatura, os como um antimoderno, usando, para isso,
modernismos permitem que o autor exiba ademais da pesquisa de Compagnon como base
novamente sua subjetividade, alicerçada a teórico-conceitual, estudiosos da literatura e
experimentações estéticas que rapidamente se história espanhola, como Marçal (2020) e Shaw
52 Sobre a identificação e problematização da categoria foi Góngora, carecia de qualquer compromisso social e
conceitual de intelectual moderno, recomendamos a leitura muito menos estético. Faltava-lhes, na concepção deles,
do artigo: OLIVEIRA NETO, Walter Pinto de; CAMPOS, alma, espírito, seriedade. Para mais informação,
Alexandre Silveira. As contendas políticas do intelectual recomendamos a leitura de Brown (2000) e Unamuno, em
orgânico Miguel de Unamuno. Revista Vernáculo, n.° 47, Cómo se hace una novela. Todavia, Compagnon, em Os
S1, 2021, p. 124 – 140. Disponível em: antimodernos, no último capítulo, antes do epílogo, alude
https://revistas.ufpr.br/vernaculo/article/view/74739. a Barthes como um antimoderno situado numa
53 No caso específico espanhol, a Geração de 98 foi subcategoria específica: a do antivanguardista.
contrária aos vanguardismos, principalmente ao Recomendamos, também, sua leitura
54 Referimo-nos aos seis paradigmas do antimoderno: a
vanguardismo literário proveniente da Geração de 27,
formada por Lorca, Miguel Hernández, Alberti, entre Contrarrevolução, o Anti-iluminismo, o Pessimismo, o
outros. A crítica principal de Unamuno e companhia Pecado original, o Sublime e o Vituperacional.
consistiu no seguinte: a revolução vanguardista, cujo ícone
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 116
(1982). Todavia, faremos uso da poética e olhos ao seu tempo e espaço, ou seja, não foge
poesia de Machado nas suas obras Los à modernidade circunstancial, assimilando-a
complementares (1957) e Campos de Castilla como parte inevitável de sua constituição
(1997). ontológica. Em síntese: “os verdadeiros
O trabalho se compõe de dois estágios: no antimodernos são, também, ao mesmo tempo,
primeiro, assinalaremos algumas ideias modernos, ainda e sempre modernos, ou
elementares da teoria da antimodernidade; no modernos contra sua vontade”
segundo, analisaremos alguns poemas do poeta (COMPAGNON, 2014, p. 12).
andaluz que nos permitirão, em consonância Suas ideias, maioritariamente contraditórias
com a proposta de Compagnon, classifica-lo e ambíguas, encontram na literatura o caudal
como um poeta-filósofo-intelectual estético propício para o desenvolvimento e
antimoderno. exposição delas:
2 Entre a modernidade e a tradição: O gênio antimoderno se refugiou na literatura,
antimodernidade e na mesma literatura que qualificamos como
moderna, na literatura com a qual a
Como já explicamos prévia e brevemente, a posterioridade fez seu cânone, literatura não
Alta modernidade ocidental tem como bandeira tradicional, mas propriamente moderna porque
a instauração da moda, que, por sua vez, torna- antimoderno, literatura cuja resistência
se uma tradição rapidamente a ser suplantada ideológica é inseparável de sua audácia
(COMPAGNON, 2014b). O novo como literária. (COMPAGNON, 2014, p. 15).
ideologia cria uma recepção ambígua desse No contexto espanhol finissecular, devido à
fenômeno histórico: encontram-se, por um lado, mistura caótica entre fé e razão, ciência e
os que fazem apologia aos preceitos mística, e tradição e inovação (BROWN, 2000),
fundamentais da modernidade, tornando-os, surge um agrupamento filosófico e estético cuja
portanto, como menciona Berman (1986), marca ideológica se pauta na tensão entre mudar
modernos radicais ou modernos incompletos; e, para alcançar a modernidade ou manter a
no outro lado do cenário, interpõem-se os que tradição, conservando a particularidade
negam a modernidade, propondo, em seu lugar, espanhola, em detrimento da estrangeira
voltar ao passado: os reacionários e (MARÇAL, 2020). Esses literatos,
tradicionalistas. denominados por parte da crítica de Geração de
No entrelugar de ambas as orientações estão 98, distanciam-se, ao menos nas duas primeiras
os verdadeiros modernos, os modernos décadas do século XX, de outros literatos
completos. Na tese de Berman (1986), o espanhóis contemporâneos, os modernistas, que
moderno só se vê completo quando se torna um desenvolvem um tipo de arte mais otimista,
antimoderno, isto é, quando avista uma parnasiana, simbolista, enfim, mais de acordo
circunstância e decide atravessá-la para ir além aos modernismos vigentes – principalmente o
dela, imbuído do desejo de superá-la. Assim, se latinoamericano 55 –. Assim, valendo-nos das
o moderno incompleto ou moderno radical se categorias previamente explicitadas,
sente confortável com o modus operandi da poderíamos afirmar que os modernistas
modernidade em que habita, o verdadeiro representam os modernos incompletos e a
moderno “percorre as ruas à procura de um Geração de 98 os antimodernistas.
caminho para fora delas, [sendo] forçado a se Dessa forma, mantida na inquietude entre o
desfazer do equilíbrio, das mesuras e do decoro novo e o velho, a Geração de 98 se transforma
e a aprender a graça dos movimentos bruscos na porta-voz preferida das almas em pena da
para sobreviver” (BERMAN, 1986, p. 210). Espanha de fim de século, especialmente
Por essa razão que o antimoderno, não sendo desanimada após perder suas últimas colônias
estritamente um moderno, tampouco é um do Caribe 56 numa desastrosa guerra contra os
reacionário ou tradicionalista, pois não fecha os
55Vale a pena ressaltar que, apesar de que a maior parte Unamuno, no seu artigo José Asunción Silva, como o
dos poetas latinoamericanos seguiram o caudal da poesia verdadeiro representante da poesia moderna, uma vez que
simbolista francesa do seu tempo – ou seja, a poesia dos sua fome de eternidade o permite expressar versos capazes
modernistas incompletos –, como Rubén Darío e Delmira de comunicar aquilo que o poeta-filósofo não pode e/ou
Agustini. Outros e menos incidentes casos trilharam pelo deve rechaçar jamais: o desespero pela finitude da alma
angst próprio do fim de século, como o colombiano José (UNAMUNO, 1950).
56 Cuba, Puerto Rico e Filipinas.
Asunción Silva. Este último, inclusive, foi designado por
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 117
EUA. Nesse campo de angústia política, social, razón, es decir a las dos formas de
filosófica e literária que esse grupo de literatos comunicación humana. El individualismo
desenvolve seus escritos (BROWN, 2000). romántico es idea lista y cordial, desmesura
Grosso modo, pode-se afirmar que no campo do la razón, pero cree en ella, exalta el
sentimiento hasta agotarlo [...].
ensaio se destaca Miguel de Unamuno; no do
(MACHADO, 1957, p. 114)57.
romance, Pío Baroja; no do teatro, Valle-Inclán;
e no da poesia, Antonio Machado. E continua:
3 Antonio Machado: o antimoderno Cuando el espíritu romántico desfallece [...] sólo
se salva el culto al yo, a la pura intimidad del
No capítulo dedicado a Antonio Machado, no sujeto individual. Y una nueva fe, un tanto
livro A ficção e o poema, Costa Lima traz à tona a perversa, se inserta [...] Se piensa que lo
o poeta que, na concepção dele, representa a crise individual humano, el yo propiamente dicho, el
poiética incipiente da modernidade finissecular, sí mismo es lo diferencial entre hombre y hombre
só que por meio de uma autenticidade estética e y que carece de formas de expresión genéricas.
filosófica direcionada por sendeiros senão Razón y sentimiento son cosas de todos,
antagônicos, ao menos divergentes aos trilhados instrumentos ómnibus que el poeta desdeña en su
afán de cantarse a sí mismo, no responden a la
por Baudelaire. Lima menciona o francês como
íntima realidad psíquica. Y el problema de la
paradigma poético que os grandes líricos de lírica, en su relación con el lenguaje, se complica.
ocidente de início do século XX seguiam, mas que (MACHADO, 1957, p. 114)58.
encontra na Espanha e mais concretamente em
Antonio Machado um curioso caso de escritor que Essa negação ao eu poético retroalimentado,
nessa época não pertencia “ao paradigma que na concepção de Machado faz-se presente
romântico, [e] tampouco se integrava na na literatura do seu tempo, o situa numa
modernidade formulada por Baudelaire” (LIMA, contradição da qual nunca se desvincularia
2012, p. 215). (LIMA, 2012). De acordo com Compagnon
Isso motivou o que Lima (2012) chama de (2014), o escritor antimoderno é contraditório,
Marasmo espanhol, ou seja, o contraste entre a uma vez que, ao mesmo tempo que recusa “a
percepção reinante sobre a Idade Média e a escritura branca e a manutenção da poesia como
Modernidade, que definiria o país tanto no aquiescência ao mundo e à linguagem”
aspecto político, como ideológico, e, como não, (COMPAGNON, 2014, p. 388), tornando-a
literário. É a partir desse marasmo que Antonio estéril de “ideais e princípios”
Machado rejeita Baudelaire, Rimbaud, (COMPAGNON, 2014, p. 373), e, portanto,
Mallarmé ou Verlaine, aderindo-se, num afastada do mundo; também o antimoderno se
primeiro momento, à lírica do nicaraguense afasta do mundo, procurando, em lugar disso,
Rubén Darío (BROWN, 2000), para, logo a criar uma literatura dedicada “à gestão do
seguir, desvincular-se deste e fundar uma poesia passado” (COMPAGNON, 2014, p. 405).
considerada por ele de profunda, em contraste Esse olhar constante do antimoderno ao
com a superficial, hermética e ébria dos passado ilustra uma espécie de fetichismo pela
modernistas. Nas palavras do próprio Machado: história, pelas ruínas e pela monarquia,
tornando melancólica sua literatura
Cuando seguimos con alguna curiosidad el (COMPAGNON, 2014). Esse viés saudosista,
movimiento literario moderno, pudiéramos
pessimista e antimodernista é vislumbrável ao
señalar la eclosión de múltiples escuelas
aparentemente arbitrarias y absurdas, pero longo da produção poética do autor, sendo nos
que todas ellas tuvieron un denominador poemas das duas primeiras décadas do século
común: guerra al sentimiento, guerra a la XX em que tal paradigma se evidencia com
57 Quando acompanhamos com alguma curiosidade o uma nova fé, um tanto perversa, se inserta. [...] Pensa-se
movimento literário moderno, pudéramos assinalar a eclosão que o individual, o eu propriamente dito, o si mesmo é o
de múltiplas escolas aparentemente arbitrárias e absurdas, mas diferencial entre homem e homem e que carece de formas
que todas elas tiveram um denominador comum: guerra ao de expressão genéricas. Razão e sentimento são coisas de
sentimento, guerra à razão, isto é, às duas formas de todos, instrumentos fulcrais que o homem desdenha no seu
comunicação humana. O individualismo romântico é ideia gosto de cantar-se a si mesmo, não respondem à intima
inteligente e cordial, rejeita a razão, mas acredita nela, exalta realidade psíquica. E o problema da lírica, em sua relação
o sentimento até esgotá-lo. (Tradução nossa). com a linguagem, se complica. (Tradução nossa).
58 Quando o espírito romântico falece [...] somente se salva
maior relevo. O sevilhano volta constantemente Por outro aspecto, denominada no milênio
aos poetas da Idade Média, como Garcilaso de prévio de Castilla, o escritor a procura nos
la Vega ou o místico Gonzalo de Berceo. tempos atuais, encontrando-a às vezes impoluta,
El primero es Gonzalo de Berceo llamado,
forte e dominadora; e, em outras situações, em
Gonzalo de Berceo, poeta y peregrino, ruína, contaminada pela modernidade. A
que yendo en romería acaeció en un prado, Castilla gloriosa a podemos presenciar no
y a quien los sabios pintan copiando un poema Desde mi rincón:
pergamino. Con este libro de melancolía,
Trovó a Santo Domingo, trovó a Santa María, toda Castilla a mi rincón me llega;
y a San Millán, y a San Lorenzo y Santa Oria Castilla la gentil y la bravía;
y dijo: Mi dictado non es de juglaría; la parda y la manchega.
escrito lo tenemos; es verdadera historia. ¡Castilla, España de los largos ríos
Su verso es dulce y grave: monótonas hileras que el mar no ha visto y corre hacía los mares;
de chopos invernales en donde nada brilla; Castilla de los páramos sombríos,
renglones como surcos en pardas sementeras, Castilla de los negros entinares!
y lejos, las montañas azules de Castilla. Labriegos transmarinos y pastores
Él nos cuenta el repaire del romero cansado; trashumantes —arados y merinos—;
leyendo en santorales y libros de oración, labriegos con talante de señores,
copiando historias viejas, nos dice su dictado, pastores del color de los caminos.
mientras le sale afuera la luz del corazón. (MACHADO, 1997, p. 127)60.
(MACHADO, 1997, p. 138-139)59.
Nota-se no poema um forte teor
No poema, Machado intitula Berceo como o
melancólico, evidenciado não só na afirmação
poeta e hermeneuta ao qual os escritores devem
do primeiro verso, em que opina que o livro, seu
seguir. Para este e aquele, o papel do escritor é
livro, é uma obra melancólica, mas, também, na
o de narrar as sensibilidades do presente. Assim,
força que o eu lírico pretende dar ao poema com
se o tempo atual é o da decadência, então não
a colocação de exclamações do quarto ao sétimo
será fechando os olhos à decadência que esta
verso. Antes desse momento de fulgor, o eu
desaparecerá para surgir, como substituta, uma
lírico anuncia que ele sente, vindo de todos os
era que convide ao otimismo. Não, o poeta há
cantos da nação, a influência dessa Castilla
de arraigar-se nas entranhas da história e dela
pretérita: gentil, corajosa e manchega. Não é
extrair, assim como Berceo, a verdade (íntima).
casualidade que escolha o gentílico manchego,
Contudo, como já manifestamos, há uma
dado que referencia àquele nascido em Castilla
contradição entre a ética poética dos versos de
La Mancha, região onde Espanha principia-se
Machado e o que desvela sua perene apologia à
como nação; e de onde é Dom Quixote.
antiguidade castellana, uma vez que critica o
Continuando com a análise do poema, os
pouco compromisso social dos modernistas,
quatro versos contidos entre exclamações
manifestando ele – e sua geração (SHAW, 1982)
aglomeram em si três vezes a palavra Castilla,
– a mesma fuga da realidade, mudando, somente,
a fim de realçar o nome da região, como se por
o automóvel estético de escape. E é que o andaluz
repeti-la reiteradamente esta voltasse da sua
menoscaba sua Espanha, seu tempo, obvia a
dimensão incorpórea e onírica, para tornar-se de
circunstância moderna específica, a fim de
novo imanente. Assim, o eu lírico continua
localizar a Espanha da Idade Média, que, devido
mencionando todos os elementos que fazem
ao seu ethos esplendoroso, necessita legar seu
parte dela, como a ausência de mar, os paramos
volkgeist esplendoroso à Espanha
sombrios, pastores, cores etc.
contemporânea de inícios do século XX.
Nesse sentido, há uma alternância entre
59 O primeiro é Gonzalo de Berceo chamado/ Gonzalo de nos diz seu ditado,/ enquanto sai-lhe afora a luz do coração.
Berceo, poeta e peregrino/ Que, indo de romería em (Tradução nossa).
romería aqueceu em um prado,/ E a quem os sábios pintam
60
copiando um pergaminho/Trovou a Santo Domingo, Com este livro de melancolia,/ toda Castillha ao meu
trovou a Santa María,/ e a San Millán, e a San Lorenzo e canto me chega;/ Castilha a gentil e corajosa;/ a parda e
Santa Oria/ e disse: Meu ditado non es de juglaría;/ escrito manchega./ Castilha, Espanha dos largos rios/ que o mar
o temos; é a verdadeira história/ Seu verso é doce e grave: não viu e corre até os mares;/ Castilla dos paramos
monótonas fileiras/ de choupos invernais onde nada sombrios,/ Castilla das negras botijas!/ Camponeses
brilha;/ traços como ranhuras azuis de Castilha./ Ele nos transmarinos e pastores/ transhumanos – arados e merinos
conta o repaire do romeiro cansado;/ lendo em –;/ camponeses com postura de senhores,/ pastores de cor
santificações e livros de oração,/ copiando histórias velhas, dos caminhos. (Tradução nossa)
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 119
61 Oh terra ingrata e forte, terra minha!/ Castilla, tuas 2008). Para mais informação, recomendamos a leitura do
decrépitas cidades!/ A azeda melancolia/ que povoa tuas artigo: OLIVEIRA NETO, W. P.; CAMPOS, A.S. O palpitante
sombrias solidões!/ Castilla varonil, adusta terra;/ Castilla silêncio de Castilla: intra-história na lírica da Geração de 98. In:
do desdém contra a sorte,/ Castilla da dor e da guerra,/ terra Congresso Internacional de Letras (CONIL), 2021, Bacabal.
imortal, Castilla da morte! (Tradução nossa). Congresso Internacional de Letras - Anais, 2021. p. 1136-1154.
62 O conceito de intrahistória foi acunhado por Unamuno em Disponível em: https://sites.google.com/ufma.br/anais-e-
En torno al casticismo (1895, originalmente). Este remete à resumos-do-conil/publica%C3%A7%C3%B5es/anais/anais-
história esquecida pelos jornais e livros de história, mas que diz iv-conil?authuser=0.
63 Espera, dorme ou sonha? (Tradução nossa)
muito mais sobre a essência do povo castellano que a dos
64 Entre comigo no teu seio tranquilo/ bem abrigada tua
supostos heróis que a representam. Unamuno é da opinião de
que o resgate da tradição eterna da nação há de se dar pelo imagem de glória;/ faça tua rocha à minha carne um asilo;/
resgate do ethos desse passado, cujas marcas se encontram durma por séculos em mim tua memória,/ minha Espanha
presentes na alma do povo das vilas, dos pueblos, enfim, das de sonho! (Tradução nossa).
zonas ainda não corroídas pela modernidade. (UNAMUNO,
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 120
a técnica e a tecnologia científicas para inferir que seu pessimismo também é o vitalista.
viabilizar uma dominação, exploração e Para o sevilhano, há salvação para a
destruição da natureza e do homem, que modernidade, encontrando-se tal redenção da
gerariam a desumanização, a violência e a cultura e alma espanhola na juventude
belicosidade (MARÇAL, 2020, p. 19).
(MACHADO, 1957). Já, ele, como intelectual
A nação espanhola, pendulada entre os mais perto da morte que da vida, entende que
cantos de sereia do industrialismo e as elegias seu papel é o de filtrar o que há de melhor na
místicas da Idade Média, vê-se mãe de uma sua memória e difundi-lo, a fim de que os jovens
série de escritores, que no desdobramento do possam, quem sabe, romper com o pecado
século XIX para o XX exploram essa dualidade original que ele, assim como os escritores da sua
que aqui definimos de antimodernidade. geração, não conseguiu erradicar:
Escolhemos definir o andaluz de Y es hoy aquel mañana de ayer… Y España toda,
antimoderno, pois se o antimoderno é “incapaz con sucios oropeles de Carnaval vestida
de concluir seu luto pelo passado”, é também aún la tenemos: pobre y escuálida y beoda;
possível afirmar que está incluído “no más hoy de un vino malo: la sangre de su herida.
movimento da história” (COMPAGNON, 2014, Tú, juventud más joven, si de más alta cumbre
p. 18). Dessa forma, não poderíamos categorizar la voluntad te llega, irás a tu aventura
a Antonio Machado como mero reacionário ou despierta y transparente a la divina lumbre:
tradicionalista, pois ele não se ancorou como el diamante clara, como el diamante pura.
rigidamente no passado, mas conheceu e até usou (MACHADO, 1997, p. 130)66.
de dispositivos da modernidade – principalmente Referências
de carácter estético – para atravessar o cenário
onde estava inserido contra sua vontade, sendo, BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido
por isso, um tipo de “moderno a contrapelo” desmancha no ar: a aventura da modernidade.
(COMPAGNON, 2014). Trad. C. F. Moisés, A. M, L. Ioratti, M. Macca.
Todavia, gostaríamos de mencionar que o 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
pessimismo inerente ao antimoderno, não é o
BROWN, Gerald G. Historia de la literatura
mesmo que o niilista contemplativo de
española: el siglo XX (Del 98 a la guerra civil).
Schopenhauer, mas o crítico, vitalista e
Trad. Carlos Pujol. Barcelona: Editorial Ariel,
enérgico, próprio ao de Unamuno (2005) ou
Nietzsche (2017). Dito com outras palavras, o 2000.
pessimismo antimoderno é aquele que obra bem COMPAGNON, Antoine. Os Antimodernos:
esperando o mal ou, como diria Barthes, aquele de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Trad.
que possui “um pessimismo – ou um Laura T. Brandini. Belo Horizonte:N Editora
Derrotismo, ou um Abstencionismo, mas de UFMG, 2014.
uma Forma intensa de Otimismo: um Otimismo
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos
sem Progressismo” (BARTHES, 1979 apud
da modernidade. Trad: Cleonice P. Mourão,
COMPAGNON, 2014, p. 427).
Consuelo F. Santiago e Eunice D. Galéry. 2ª ed.
Miguel de Unamuno, o autor da Geração de
Belo Horizonte: Editora UFGM, 2014b.
98 mais páreo à orientação filosófica e estética
de Machado (SHAW, 1982), alcunha a este tipo LIMA, Luiz Costa. Antonio Machado. In: A
de pessimismo como Pessimismo religioso: “el ficção e o poema. 1ª ed. São Paulo: Companhia
que desespera de la finalidad humana del das Letras, 2012.
Universo, de que el alma individual se salve
GIDDENS, Anthony. Modernidade e
para la eternidad”, pois “el pessimismo que
identidade. Trad. Plínio Dentzien. Rio de
protesta y se defiende, no puede decirse que sea
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
tal pessimismo” (UNAMUNO, 2005, p. 271)65.
No caso de Antonio Machado, podemos
65 O que desespera da finalidade humana do Universo, de pobre e esquálida embriagada;/ mas hoje de um vinho
que a alma individual se salve para a eternidade, [pois] o ruim: o sangue de sua ferida./ Tu, juventude mais jovem,
pessimismo que [não] protesta e se defende, não pode se da mais alta cume/ a vontade te chega, irás à tua
dizer-se que seja pessimismo como tal. (Tradução nossa). aventura/ acordada e transparente à divina lume:/ como o
66 E é hoje aquela amanhã de ontem...E Espanha toda,/ diamante clara, como o diamante pura. (Tradução nossa)
com sujos disfarces de Carnaval vestida/ ainda a temos:
PRESO NA RETAGUARDA DA MODERNIDADE: O PROJETO LÍRICO ANTIMODERNO DE ANTONIO MACHADO 121
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
67 <https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/os-
Mestranda em Letras pela Universidade Federal do
Maranhão • fernandabreu97@gmail.com • Orientador: desmandamentos-por-geraldo-carneiro-salgado-
Rafael Campos Quevedo maranhao-210136.html>
68 Manifesto irônico intitulado “Os desmandamentos”,
por isso, verdadeiras. Ao afastar-se dos pensamento clássico para elevar a estética a que
clichês, o artista romântico se aproximado do pertence. A tendência romântica em
que chamou de originalidade “pois o desvalorizar o artifício é sentida na
verdadeiro poeta não imita, mas inventa. Não contemporaneidade, o que pode provocar
precisa ser um erudito. É um “gênio”. [...] A desvios de interpretações e mais que isso, um
genialidade não se aprende, o gênio nasce” reducionismo na arte de criação poética.
(CARPEAUX, 1978, p.158). A concepção romântica de sinceridade como
O Romantismo surge atribuindo grande verdade poética – “a poesia é verdadeira
valor ao individualismo, abrindo espaço para a porque corresponde ao estado de espírito do
vazão do subjetivo e, consequentemente, para a poeta”- não foi abandonada por boa tarde da
novidade. A recorrência dos usos de artifícios crítica e da historiografia literária. Ainda hoje
da cultura greco-latina era vista como barreira as vidas e quase sempre as personalidades dos
para a fluidez das vivências e emoções do poeta. poetas antigo são reduzidas linearmente de
É referente a essa estética o conteúdo contido no seus poemas” (ACHCAR, 1994, p.43)
prefácio de Gonçalves de Magalhães, retirado Em Razão do poema, José Guilherme
do livro Suspiros Poéticos e Saudades, em que Merquior coloca a razão como ordenadora das
aponta como infrutífero o fazer poético visto até emoções e das fantasias pois, é através dela que
então, colocando como saída a inovação o poema se enriquece ao poder fazer uso de
advinda com preceitos Românticos. diversas formas lógicas. Em sua afirmação, as
Até aqui, como só se procurava fazer uma visões poéticas que se instauram por um ideal
obra segundo a Arte, imitar era o meio de pureza não são possíveis de serem aplicadas
indicado: fingida era a inspiração, e artificial em linguagem.
o entusiasmo. Desprezavam os poetas a
A razão existe na poesia, e regula tanto o
consideração se a Mitologia podia, ou não,
sentimento quanto a fantasia, que no
influir sobre nós. [...] como se pudesse
verdadeiro poema não lhe são de nenhum
parecer belo quem achasse algum velho
modo opostos. Mas a atuação da razão vai
manto grego, e com ele se cobrisse. Antigos
ainda mais longe: é capaz de trazer para o
e safados ornamentos, de que todos se
poema várias formas lógicas. Diga-se de
servem, a ninguém honram!
passagem que nos referimos aqui a estruturas
Quanto à forma, isto é, a construção, por
lógicas, a armações do raciocínio, e não a
assim dizer, material das estrofes, de cada
elementos intelectuais. [...] Não se poderia
cântico em particular, nenhuma ordem
eliminar melhor a veleidade de fazer da
seguimos; exprimindo as idéias como elas se
poesia uma pura interjeição, um puro
apresentaram, para não destruir o acento da
“sentimento”, ou uma pura notação do
inspiração; além de que, a igualdade dos
sensorial “puro”. Tais purezas podem
versos, a regularidade das rimas, e a simetria
consistir até mesmo em programas literários;
das estâncias produz uma tal monotonia, e dá
nunca serão praticáveis em linguagem
certa feição de concertado artificio que jamais
(MERQUIOR, 2013, p.184)
podem agradar. (MAGALHÃES, s/d, p.3)
Ao tratar dos clássicos, o poeta faz críticas Na modernidade, o topos é singularmente
aos modos de composição que frisam a tomado em “Autopsicografia”, poema
igualdade dos versos, a regularidade das rimas publicado pela primeira vez em 1932 na revista
e a simetria das estâncias em detrimento da Presença, expõe a um só tempo a arte do
expressão do que é individual. Destaca-se aqui fingimento poético e seus desdobramentos na
a primeira parte da citação que põe a visão da recepção do leitor.
tradição como renegadora do que não lhe parece AUTOPSICOGRAFIA
fruto do trabalho de composição, como a O poeta é um fingidor
inspiração, e para tratar do rebaixamento dela Finge tão completamente
pelos autores de antes, faz uso da palavra Que chega a fingir que é dor
“fingida”, no sentido de “insincera”, “falsa” ou A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
“mentirosa”, isto porque para a tradição a
Na dor lida sentem bem,
espontaneidade não é sinônimo originalidade, Não as duas que ele teve,
enquanto que para os românticos é condição Mas só a que eles não têm.
sine qua non. Tais adjetivos parecem ser E assim nas calhas de roda
utilizados como forma de desqualificar o Gira, a entreter a razão,
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 124
deleitar a razão. Desta forma, Pessoa expressa contemporâneo, lança em 2006 pela primeira
um resumo da estética do fingimento poético, vez o poema “balada do impostor” no livro que
em que é sugerido ao poeta que intelectualize o tomou o mesmo nome. O Balada do impostor,
vivido para transformá-lo em arte. Tal assim como considerável parte da obra de
intelectualização da emoção é vista pelo poeta Carneiro, é perpassado pelo reflexo de grandes
como fruto do seu sentimento, não provenientes obras, autores e mitos da cultura ocidental,
do coração, mas da imaginação, como aparece como Ilíada, Odisseia, Homero, Shakespeare,
na primeira estrofe do poema “Isto”, do Olavo Bilac; Eros, Musas, Orfeu e Prometeu,
ortônimo. referências que aparecem nos poemas de forma
ISTO explicitada ou não. O intertexto provocado pelo
Dizem que finjo ou minto poeta o mostra não como um autor soberbo, mas
Tudo o que escrevo. Não. como um leitor privilegiado que se utiliza de
Eu simplesmente sinto outras vozes além da sua para nutrir sua obra. É
Com a imaginação.
o que veremos no seguinte poema, no qual
Não uso o coração.
[...] (PESSOA, 2006, p. 133) podemos perceber vestígios de uma
aproximação entre o poema de Carneiro e o
Dessa forma, “autopsicografia” traz também tema do fingimento poético, além de traços
a colocação no poema do sentimento sentido metapoéticos.
não com o coração, mas com a imaginação, no
balada do impostor
campo do possível. A razão em remodelar a
sou um impostor, um dia saberão
emoção ponto de partida, travestida em “Isto” que simulei tudo o que sempre fui.
como “imaginação”, se atina em criar uma sou uma ficção, meu sangue é só linguagem
ficcionalidade recriando um sentimento natural. meu sopro é uma explosão que vem de dentro
É por meio da imaginação que o poeta finge, em forma de palavra.
no sentido originário do termo, daquele que quando já não for mais, serei eu mesmo.
modela com os dedos, que dá nova forma, enquanto tardo, trapaceio contra o tempo,
podendo assim remodelar suas vivências, suas a máquina vai me devorando
emoções e até a própria figura do poeta, como e vou passando como tudo passa
Pessoa faz com o seu ortônimo que pode ser em busca de uma graça que ultrapasse
o círculo da minha circunstância
também uma figura desenhada na obra poética.
o espelho que já não seja senão o outro
Uma das justificativas de Vasconcellos para esse que me habita e me espreita
tomar o autor como mito é justamente o fato que e, não sendo eu, me acata os meus espantos
“o autor se constituiu enquanto personagem de (CARNEIRO, 2010, p.82)
si mesmo, levando a autoria para o plano
ficcional” (VASCONCELLOS, 2013, p.37), é Tomando o título do poema como ponto de
justamente por esse grande jogo de partida para sua análise, destacam-se as duas
ficcionalidade traçado por Fernando Pessoa que palavras mais importantes: “balada” e
Achcar toma essa marca do poeta para sintetizar “impostor”. A primeira é uma forma lírica
o pensamento entre enunciação e eu lírico remetida aos primórdios da poesia, com
etimologia proveniente do baixo latim, ballare,
Pode-se dizer que a personagem segunda com que significa o mesmo que “dançar”. A origem
que identificamos o eu-lírico é um anônimo do nome se justifica pela forma poética balada
“heterônimo” do poeta, e está para ele como os
possuir melodia acentuada e ser associada às
heterônimos estão para Fernando Pessoa, - se
é justo entender que o que fez Pessoa foi mais primitivas manifestações poéticas, época
multiplicar, sistemática e explicitamente, a em que a poesia era acompanhada por uma
persona (ou as personae) que todo lírico cria. performance, realizada com o apoio de
[...] O sujeito real se traduz ficticiamente em instrumentos e danças (MOISÉS, 1988, p.53). A
sujeito lírico. Em outras palavras, o poeta lírico segunda palavra é descrita no dicionário da
será sempre um fingidor, ainda que o eu-lírico língua portuguesa organizado por Rodrigues e
finja a dor que ele, poeta (quem o saberá?), Nuno como o “que ou aquele que se faz passar
deveras sente. (ACHCAR, 1994, p.50) pelo que não é, que engana” (2005, p.425). O fato
5 O fingimento poético em Geraldo da palavra “impostor” ser associada no título do
Carneiro poema a uma forma poética tão antiga abre uma
chave interpretativa que pode adjetivar não
Geraldo Eduardo Carneiro, poeta brasileiro somente o eu lírico deste poema como impostor,
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 126
como também associar essa prática constitutiva paralelo com a última estrofe de Pessoa,
do poema como uma possibilidade integrada à levando em consideração a simbologia do
natureza da forma literária. sangue como sofrimento, emoções, sendo
Nos dois primeiros versos do poema há uma tratado como fruto da linguagem, no poema
confissão por parte do eu lírico a seu interlocutor: pessoano, para trazer a mesma carga semântica,
“sou um impostor”. E completa afirmando que o poeta português faz uso das imagens do
em um dia futuro saberão [a verdade], ele coração e do comboio de rodas. A construção
simulou o que sempre foi. Apesar de se colocar do poema por meio da reconstrução das
como um dissimulador, aquele que “faz parecer emoções/cenas vividas está inteiramente ligada
como real” (RODRIGUES E NUNO, 2005, ao uso criativo da linguagem pelo poeta, que
p.735), não toma juízo de valor dessa confissão trabalha a palavra a fim de atribuir-lhe novos
com algo negativo, mas como característica que usos e significações. Sendo assim, a linguagem
um dia será revelada e conhecida por todos, configura-se como o instrumento de trabalho do
tomando em consideração seus propósitos que poeta, como destaca Décio Pignatari, o poeta
serão apresentados mais adiante. faz a linguagem: “A palavra “poeta” vem do
No terceiro verso o eu lírico se caracteriza grego “poietes = aquele que faz” Faz o quê? Faz
como um ser de ficção, constituído linguagem. [...]. O poema é um ser de
intrinsecamente pela linguagem. Apesar do linguagem. O poeta faz linguagem. Vale dizer:
termo “ficção”, modernamente, ser está sempre criando o mundo” (PIGNATARI,
costumeiramente associado ao texto em prosa, é 2004, p.10-11).
possível estabelecer uma aproximação entre o Os próximos dois versos trazem a ideia do
termo e o uso poético relacionado ao fingimento ponto de partida do poema do impostor, que se
a partir da etimologia da palavra dá pelo sopro que vem como uma explosão de
Fictio é a palavra cognata do verbo
dentro para fora do poeta em forma de palavra.
fingo/fingere em latim como resultado da Esses versos, assim como a denominação do
ação desse verbo cujo primeiro significado é poema como balada, rememoram os tempos do
modelar com os dedos ou desenhar com os berço da poesia, em que sua manifestação do
dedos e a representação constituída a partir divino era firmada por meio do canto e da
dessa ação é a fictio, nossa ficção. Esse performance, manifestação essa que trazia o
mesmo verbo latino dá origem aos termos culto às Musas, divindades das tradições mito-
fingir, figura e fingimento em português. poéticas que proporcionavam aos mortais o
Quando, portanto, pensamos a literatura, contato com a poesia divina, que chega aos
como reconstrução de cenas, de objetos e de
homens por meio do “sopro”, ponto de partida
seres, tal modelagem não pode ser
considerada real ou verdadeira, pois que,
do poema inspirado69. Nessa ocasião o poeta se
apenas é a sua imagem, uma figura, um encontra em estado de ausência de razão, para
fingimento, uma ficção. (MARTINS, 2009, que assim a Musa possa tomá-lo como
p. 143) intérprete. Remodelando as heranças poéticas
da tradição, o poema de Geraldo Carneiro não
Ao rememorar as raízes latinas, Paulo mostra mais um sopro que vem de fora, como
Martins traz a fictio como resultado das ações no caso da inspiração pelas Musas, mas sim um
do verbo fingere (modelar), o mesmo verbo sopro que vem de dentro do poeta, que faz agora
latino que dá origem ao termo fingimento. As uso de sua racionalidade para arquitetar o
palavras “ficção” e “linguagem”, presentes no poema. Agora o poema surge da maquinação do
poema, são constituintes do fazer literário poeta que, longe se ser apoiado por algum
baseado na remodelação das emoções ainda insight, se torna o ser pensante e criativo que
“em estado bruto”, no qual a primeira, a ficção, utiliza do artificio do poeta, a linguagem, para
torna-se o resultado do trabalho de fingir as tornar sua obra única.
palavras por meio do uso criativo da linguagem. É por meio da modelagem das várias formas
Neste mesmo verso, quando o poema traz de se usar a palavra que o poema pode
“meu sangue é só linguagem” pode-se traçar um proporcionar ao poeta a “trapaça contra o
69“Inspiração foi o termo do latim tardio que traduziu a relacionados ao pneuma (sopro), isto é, como se uma voz
ideia de entusiasmo e que ressaltou um aspecto marcante “soprasse internamente” – daí a terminologia “ins–piro”,
contido na noção grega: era frequente que a intervenção vinculada ao próprio sopro da fala sobrenatural” (MUNIZ,
divina nas ações humanas fosse descrita em termos 2011, 13-14)
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 127
tempo”. A ideia do poema poder funcionar como textos dos dois poetas se aproximam quanto às
meio de imortalização do poeta e de quem esteja características metapoéticas e, principalmente,
nele representado volta-se para Horácio e sua pela temática que aponta o poeta (por ele
famosa Carmina 3.30 70 , ode que dá nome ao mesmo) como um fingidor, ou seja, aquele que
topos do Exegi monumentum ou perenidade da faz uso racional dos acontecimentos e de suas
poesia. Achcar afirma que o tema da poesia como emoções para poder exprimi-los em arte,
fonte de perenidade “parece ser tão velho como fazendo uso criativo da linguagem, abrindo
a lírica: um dos títulos mais valiosos que um vate assim a gama de possibilidades artísticas do
podia ostentar era justamente o de perenizador poeta para criar novas ficções.
daquilo que seu canto celebrava” (ACHCAR,
6 Considerações finais
1994, p.159). O tema horaciano revive na poesia
de Geraldo Carneiro também no poema A ideia de não haver a necessidade colocar
“autorretrato deprê”, ao mencionar que “todo nos poemas as experiências sentidas é a
poeta nasce um pouco póstumo / como volúpia principal temática que aproxima o poema de
de vencer a morte” (CARNEIRO, 2010, p. 64), Geraldo Carneiro ao poema “Autopsicografia”
sendo essa, segundo o topos, uma forma de de Fernando Pessoa e, consequentemente, ao
ultrapassar o círculo de sua circunstância. fingimento poético como uma forma de escrita
Os três últimos versos voltam à questão da literária.
ficcionalidade, do não ser “eu” para ser o outro. O poema de Fernando Pessoa inicia com a
O espelho em que o eu lírico se mira não o constatação “O poeta é um fingidor”, assim
reflete, mas reflete um outro que está sempre a como o poema de Geraldo Carneiro se inicia
sua espreita. Esse outro que surge como reflexo com “sou um impostor”. Os dois referem-se ao
do eu lírico pode significar a potencialidade poeta, o primeiro de forma explícita no primeiro
criativa que o poeta dispõe para tratar de um “eu” verso do poema e o segundo por meio dos
no poema, que não precisa, necessariamente, ser vestígios que aparecem adiante que estão
reflexo de quem o escreve. É justamente por não ligados ao universo da criação literária. Esses
precisar ser ele que são postas várias versos (versos 3, 4 e 5), falam a respeito da
possibilidades de criações do ficcional. ficcionalidade, da “essência” da constituição do
O “outro” a que o poema se refere, além da poema que é a linguagem, assim como o sangue
possibilidade ficcional de quem se fala no é para o homem, e, por fim da palavra.
poema, pode fazer referência aos poetas que, de Esses poetas são postos, primeiramente,
certa forma, influenciaram o poeta, os outros como impostores de forma direta (O poeta é um
que estão sempre à espreita por fazerem parte de fingidor / sou um impostor), colocados de tal
sua formação, dessa forma, o poeta pode se forma que à primeira vista parece ser um
apropriar do artifício de rasurar a seu modo o adjetivo pejorativo, mas que depois a ideia é
palimpsesto que lhe foi ofertado e deixar ecoar suavizada pela a explicação do porquê de eles
no seu poema o que foi lhe deixado como serem adjetivados de tal forma.
herança pelos poetas que o precederam. Eles são postos como fingidores/impostores,
O último verso “e, não sendo eu, me acata os que aqui podemos tomar tais adjetivos como
meus espantos” induz-nos a pensar o eu do sinônimos, pois arquitetam seus escritos
poema em um lugar confortável de liberdade poéticos por uma ótica que não se limita à visão
para dispor desses outros a quem pode recorrer, biografista do poema, muito pelo contrário,
sendo eles os seus espantos, suas inquietudes proporcionam uma visão do fazer literário que
que proporcionam a ideia criativa do poema. alarga as várias possibilidades de ficcionalidade
Segundo Octavio Paz, “a criação poética é do poema. Tratar o poema como possibilidade
exercício de nossa liberdade, de nossa decisão de ficção afasta a ideia de tomada do texto
de ser. Essa liberdade [...] é o ato pelo qual artístico como como um documento, mas sim
vamos mais além de nós mesmos, para sermos como um produto da imaginação do poeta, em
mais plenamente”. (PAZ, 1982, p.218) uma elaboração fictícia. Sendo assim, o
Diante do observado, percebe-se que os fingimento se opõe à escrita biográfica, mas
70Um monumento mais que o bronze eterno / E que reais mérito ganhada, / Eleva-te e de boa mente cinge/ com
pirâmides mais alto / Arrematei, que nem voraz dilúvio, / délfico laureal os meus cabelos. (Tradução de Elpino
Áquilo iroso ou série imensa de anos / Nem nos tempos a Duriense) (ACHCAR, 1994, p. 154-155)
fuga estragar possa/ [...] Melpómene, / com soberba por
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 128
acredita que a apuração da sinceridade dos originalidade ao pôr em temas rasurados seus
sentimentos narrados não interfere na novos traços. A metáfora da rasura do
experiência estética. palimpsesto é posta por Ivan Junqueira, que
Além de tais traços que favorecem uma aproxima a prática da escrita em papiros à
leitura do poema de Carneiro com vestígios da pratica intertextual no livro O encantador de
obra de Fernando Pessoa sobre ele, nota-se no serpentes (1987) ao tratar da prática intertextual
poema contemporâneo a presença de outras como algo tão antigo quanto a técnica do
vozes presentes na composição. Notam-se palimpsesto, que nada mais era que pergaminho
vestígios de temáticas caras à crítica da ou papiro, que
literatura que, grosso modo, pelo seu uso “era por diversas vezes raspado ou lavado
consagrado, cristalizam-se como lugares- pelos copistas e, a seguir, polido com marfim
comuns. É o caso das marcas que sinalizam a para que nele de novo pudesse escrever. O
referência ao mito da inspiração poética e o que ali estava escrito, porém, jamais era
exegi monumentum. inteiramente apagado. E assim, à revelia das
Os dois temas aparecem de forma sutil, o ambições e impulsos de originalidade de
primeiro tendo em vista a palavra-chave quem sobre ele escrevesse o seu texto e da
“sopro”, acompanhada da explicação que é um impossibilidade técnica de suprimir-se por
sopro que vem de dentro em forma de palavra, completo o que já estava escrito, o texto ali
grafado haveria de persistir pelos tempos
o oposto contrário da tradição do mito das
afora” (JUNQUEIRA, 1987, p. 86).
Musas inspiradoras. O enlace com o tema
também é reforçado pelo conjunto do livro Essa percepção de diálogos entre os textos
“Balada do impostor”, em que a temática do não buscou realizar uma busca entre fonte e
auxílio divino para a criação poético acontece influência, mas sim verificar o modo criativo
com frequência ao longo da obra, sendo com que o poeta dispôs das heranças deixadas
destaque, inclusive, no prefácio. A temática da por outros poetas. O que buscamos verificar
inspiração nesse poema surge para ser negada, aqui foi o processo de intertextualidade
pois o eu lírico busca abandonar as realizado por Geraldo Carneiro.
características irracionais do poeta inspirado A intertextualidade, como propriedade
para revelar-se como um agente ativo do seu descrita, passou a significar um procedimento
próprio poema, aquele que faz uso dos artifícios indispensável à investigação das relações
da linguagem para se tornar memorável para a entre os diversos textos. Tornou-se chave
posteridade. para a leitura e um modo de problematizá-la.
É justamente para tratar do objetivo do poeta Como sinônimo das relações que um texto
em se tornar presente no porvir que aparecem as mantém com um corpus textual pré ou
marcas do topos da perenidade da poesia, coexistente, a intertextualidade passou a
cristalizado pelo poema de Horácio, mas que orientar a interpretação, que não pode mais
desconhecer os desdobramentos de
possui vestígios da temática proveniente do
significados e vai entrelaça-los como a
período arcaico - quando a poesia era marcada própria origem etimológica da palavra
pela oralidade, tendo em vista que a escrita esclarece: texere, isto é, tecer, tramar
ainda não havia sido inventadas - a ideia da (CARVALHAL, 2006, p. 128).
poesia como forma de perenizar o poeta e o que
está disposto no poema. A partir das ideias de comunicabilidade
Dessa forma, ao analisar o poema de Geraldo entre textos traçada pela intertextualidade,
Carneiro, percebe-se que o poeta se mune de uma afasta-se deste artigo a busca entre “fontes” e
leitura atenta não apenas de Fernando Pessoa e “influências”, que pressupõe alguma
de suas ideias do fingimento poético, mas superioridade de um texto sobre outro,
também de outros poetas que constituem seu estabelecendo-se assim uma hierarquia, para, ao
arcabouço de espelhamento “o espelho que não invés disso, dar lugar às análises nos diálogos
seja senão o outro / esse que me habita e me temáticos entre os textos, percebendo como tais
espreita” (CARNEIRO, 2010, p. 82). poetas contemporâneos reutilizam esse
É dessa forma que Geraldo Carneiro se esquema de pensar deixado como herança,
apropria do palimpsesto, tomando temas já dessa forma “a intertextualidade como
famosamente vistos em outros autores, mas em propriedade textual elide o sentido negativo e dá
que seu trabalho com as palavras ganha ênfase à natureza criativa do processo de
produção textual.” (CARVALHAL, 2006,
“SOU UMA FICÇÃO, MEU SANGUE É SÓ LINGUAGEM”: O FINGIMENTO POÉTICO EM “BALADA DO IMPOSTOR” 129
p.129). Na mesma esteira, Donizeti Pires aponta MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
a intertextualidade como um certo combustível literários, São Paulo: Editora Cultrix LTDA,
para a máquina do poema, ao colocar o poeta, 1988
“leitor privilegiado”, como provocador de
MUNIZ, Fernando (org). As Artes do
novos olhares sobre as leituras que o
Entusiasmo: a inspiração da Grécia à
constituem, adicionando a elas seu arcabouço
contemporaneidade. Rio de Janeiro: 7Letras,
criativo “o poeta, leitor privilegiado, se vê assim
2011
compelido a rasurar71 o acervo recebido e a nele
escrever e inscrever sua obra e seu pensamento PAZ, Octávio. O Arco e a Lira. Tradução de
poético-estético, levando ao paroxismo uma Olga Savary, 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora
prática que, inevitavelmente, sempre Nova Fronteira, 1982
acompanhou a literatura” (PIRES, 2007, p.16). PESSOA, F. Páginas Íntimas e de Auto-
Referências Interpretação (Textos estabelecidos e
prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do
ACHCAR, F. Lírica e lugar-comum: alguns Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
temas de Horácio e sua presença em português.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de
São Paulo: Edusp, 1994.
Janeiro: Nova Aguilar. 3ª edição, 2006
CARNEIRO, Geraldo. Poemas reunidos. Rio
PIGNATARI, Décio. O Que É Comunicação
de Janeiro: Nova fronteira: Fundação Biblioteca
Poética. Cotia: Ateliê Editorial, 2004
Nacional, 2010
PIRES, Antônio Donizeti. Lugares-comuns da
CARPEAUX, O. M. Prosa e ficção do
lírica, ontem e hoje. Linguagem – Estudos e
Romantismo in: GUINSBURG, J. (Org). O
Pesquisas, Catalão, vols. 10-11 – 2007.
Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva,
Disponível em:
1978.
<https://revistas.ufrg.br/lep/article/download/.
CARVALHAL, Tânia. Intertextualidade: a Acesso em 03. jun. 2020
migração de um conceito. Via Atlântica, n. 9,
RACHWAL, Gabriel Dória. Conversa entre
p. 125-136, 17 jun. 2006. Disponível em: <
Paulo Henriques Britto e Fernando Pessoa.
http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/
2011. Dissertação (estudos literários).
view/50046 > Acesso em 08 jun 2020
Programa de pós-graduação em Letras, Paraná.
ELIOT, T.S. Ensaios. Tradução, introdução e
RODRIGUES E NUNO (coord).
notas de Ivan Junqueira, São Paulo: Art Editora,
Minidicionário Larousse da Língua
1989 Portuguesa. São Paulo: Larousse do Brasil
JUNQUEIRA, Ivan. Intertextualismo e poesia Participações Ltda, 2005
contemporânea. In:___. O encantador de
VASCONCELLOS, Lisa Carvalho. Vertigens
serpentes. Rio de Janeiro: Alhambra, 1987 do eu: autoria, alteridade e autobiografia na
MAGALHÃES, Gonçalves de. Suspiros obra de Fernando Pessoa. 1ª ed. Belo Horizonte:
poéticos e saudades. Núcleo de Educação a Relicário, 2013
distância, Belém.
MARTINS, Paulo. Literatura latina II.
********
Curitiba, IESDE Brasil, 2009
MOISÉS, Calos Felipe. Almoxarifado de mitos.
In___. Fernando Pessoa: almoxarifado de
mitos. São Paulo: Escrituras Editora, 2005.
71 O molde de escrita escolhido por Donizeti Pires faz que ali estava escrito, porém, jamais era inteiramente
referência à metáfora utilizada por Ivan Junqueira em O apagado. E assim, à revelia das ambições e impulsos de
encantador de serpentes (1987) ao tratar da pratica originalidade de quem sobre ele escrevesse o seu texto e
intertextual como algo tão antigo quanto a técnica do da impossibilidade técnica de suprimir-se por completo o
palimpsesto, pergaminho ou papiro, que “era por diversas que já estava escrito, o texto ali grafado haveria de persistir
vezes raspado ou lavado pelos copistas e, a seguir, polido pelos tempos afora” (JUNQUEIRA, p. 86)
com marfim para que nele de novo pudesse escrever. O
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Este trabalho parte das teorizações que a ideia de inovação absoluta, na época
de René Girard sobre o mimetismo, articulando- romântica e pós-romântica, é falsa. Com base
as à concepção de criação poética fundamentada nisso, é possível pensar em uma mediação
na tradição da imitação. Girard (2009) mostra, interna na qual modelo e imitador ocupam um
em Mentira romântica e verdade romanesca, mesmo plano temporal e físico, o que dá
através de personagens inseridas em romances, margem para a rivalidade e a emulação. Isso
como um modelo orienta ao sujeito desejante posto, a partir da perspectiva do autor e de uma
objetos que devem ser almejados. Tal discussão propriamente teórica, objetiva-se
mecanismo do desejo, delineado pelo teórico examinar os processos de composição que
francês, pode ocorrer de forma externa, quando envolvem a imitatio e a aemulatio, bem como a
o modelo está distante do sujeito, ou interna, no ideia da tradição de ruptura a datar do
qual essa distância, física ou psicológica, é Romantismo. Em um primeiro plano, dialoga-
reduzida. Como consequência dessa se com poéticas clássicas que versam sobre a
aproximação entre sujeito desejante e mediador, imitação e a importância dos modelos, tais quais
a possibilidade de rivalidade aumenta entre os a Arte poética, de Horácio (2005), o Tratado da
entes que aspiram à possessão do mesmo objeto. imitação, de Dionísio de Halicarnasso (1986), e
Sabe-se que desde a Antiguidade greco-romana Do sublime, de Longino (2005). Ademais, o
a concepção de mimesis esteve relacionada com segundo plano considera, com base na relação
a criação artística, tendo um forte abalo apenas entre imitação e inovação apresentada por
no final do século XVIII quando os românticos Girard (2002), uma abordagem mimética da
puseram em xeque a legitimidade da qualidade criação poética no Romantismo e nos
poética com base na imitação dos autores movimentos que o sucedem, considerando as
canônicos que pertenciam à tradição clássica. ponderações de Octávio Paz (1993) em A outra
Na obra A voz desconhecida do real: uma teoria voz e Haroldo de Campos (1996) em O arco-íris
dos mitos arcaicos e modernos, René Girard branco. Observa-se a estreita relação entre
(2002) observa como essas duas espécies de imitação e emulação desde os tratados da
mediação podem ser verificadas em períodos Antiguidade, como também a presença da
que aderem ou não, em grande parte de suas mimesis após a ruptura romântica.
produções culturais, à imitação dos modelos
clássicos. Na percepção girardiana, o período Palavras-chave: Criação poética; Teoria
entre o século XVI e XVII, é caracterizado pela mimética; René Girard; Emulação; “Tradição
mediação externa, tanto no campo intelectual de ruptura”.
quanto espiritual. É, sobretudo, nos séculos XIX
e XX que o gosto pela inovação cresce, 1 Introdução
eliminando a mediação externa de modelos Os apontamentos presentes nestas
canônicos. Embora este tipo de intermédio discussões partem das observações de René
mimético desmorone, Girard (2002) argumenta Girard (2002) sobre a relação entre imitação e
72
Graduanda do curso de Letras - Português e Inglês • 73Doutor em Literatura • rafael.quevedo@ufma.br •
emillysilvarodrigues2000@gmail.com • UFMA/PIBIC UFMA
FAPEMA
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 131
inovação, em A voz desconhecida do real: uma exemplo econômico para depois mostrar que as
teoria dos mitos arcaicos e modernos. Servem- atividades culturais denominadas inovadoras
se também de outras obras do autor que ajudam também imitam modelos. Assim, a imitação é
a compreender melhor sua concepção de um percurso comum para aqueles que desejam
mímeses. Assim, nota-se que dois tipos de inovar. De forma equivalente, René Girard
mediação do modelo são possíveis: uma externa (2002) mostra que também é possível criar
e outra interna. Enquanto a primeira pode ser quando se está imitando.
percebida na criação poética até o século XVII, O aparente paradoxo apresentado por Girard
a segunda começou a ser difundida a partir do (2002) é apontado a partir de sua teoria
final do século XVIII. mimética que concebe o desejo como resultado
Uma vez que Girard (2002) afirma que não da mímeses de um modelo. À vista disso, duas
há inovação sem utilizar algum procedimento formas de mediação são possíveis: uma externa
de imitação, este trabalho vale-se de e outra interna. Enquanto o modelo da externa
comentários importantes sobre a mímeses está distante do ente que o imita, a interna tem
presentes nas poéticas clássicas de Horácio esses dois espacialmente próximos, propiciado
(2005), Dionísio de Halicarnasso (1986) e a rivalidade, uma vez que ambos desejam o
Longino (2015), que foram retomados pelos mesmo objeto.
neoclássicos e questionados pelos românticos. Em Mentira romântica e verdade romanesca, o
O desejo de mudança e de ruptura com os autor mostra como o ser que deseja, na mediação
preceitos vigentes situa-se no contexto da externa, declara a todos quem é o seu modelo. Em
modernidade, que foi marcada pela crítica e pela contrapartida, na mediação interna, a admissão da
visão linear do tempo a qual almejava o existência de um mediador é suprimida pelo seu
progresso do futuro. Essa ideia entrou em imitador que passa a alimentar por ele os
declínio, no início do século XX, quando alguns sentimentos de ódio e de admiração. Com base
acontecimentos históricos, como a Primeira e a nisso, a lógica na relação entre modelo e sujeito é
Segunda Guerra Mundial, resultaram no ocaso explicada pela rivalidade estabelecida entre os
da perspectiva utópica dos modernos. dois quando a esfera de convivência de um está
Considerando a “tradição de ruptura” e a próxima da esfera do outro. No mundo
situação da poesia no contexto pós-moderno, tais econômico, esse mecanismo é evidente no caso de
quais abordam Octavio Paz (1993) e Haroldo de uma companhia imitar outra, a qual está em maior
Campos (1996), objetiva-se examinar de que destaque. Entretanto, aquela que imita consegue
forma a teoria mimética pode dialogar com a inovar à medida que o elemento de novidade do
concepção de inovação na poesia. rival é dominado, possibilitando uma imitação
mais audaciosa, podendo ocasionar uma melhoria.
2 A teoria mimética de René Girard
A princípio, esse aperfeiçoamento é ignorado
René Girard (2002, p. 229), em A voz porque difere, aparentemente, do modelo vigente,
desconhecida do real: uma teoria dos mitos mas logo nota-se o resultado inovador, tal como
arcaicos e modernos, afirma que o ato de imitar mostra Girard (2002, p. 230 – 231). Nesse sentido,
e o ato de inovar não são tão diferentes entre si é comum que os imitadores de uma geração sejam
quanto usualmente se pensa: os inovadores de outra.
A inovação é suposta excluir a imitação tão É importante observar, no conjunto de
radicalmente como a imitação excluía a ensaios sobre a obra shakespeariana, que Girard
inovação. Como exemplo do emprego (2010, p. 604) faz algumas considerações sobre
correcto da palavra, cita-se naturalmente a a criação artística. Segundo o teórico, ao
frase: “É mais fácil imitar do que inovar”. comentar a peça Conto do inverno, enquanto a
Na minha opinião, esta concepção é falsa, preocupação dos renascentistas era imitar com
mas é mais fácil demonstrar essa falsidade em pouca fidelidade, os modernos, todavia,
certos domínios do que noutros. receavam não inovar ou repetir o que outros
Para o autor, a inovação não exclui a artistas tinham feito. Na teoria, a rejeição da
imitação, de modo que, mesmo quando afirma- mímeses era clara, mas, na prática, ela
se estar realizando algo completamente novo, continuava presente através da busca coletiva
há processos imitativos envolvidos, os quais são pela originalidade, o que ocasionou a
mais evidentes em certas áreas do que em competição entre os próprios artistas que
outras. Por isso, o teórico francês utiliza o aderiam e depois rompiam com as modas
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 132
estéticas. Portanto, a mímeses estava implícita, mediação ficou mais evidente na sociedade a
mesmo com as mudanças, sendo transferida partir da Revolução Francesa, quando a imitação
para o subterrâneo. do rei foi substituída pela imitação entre as
Observa-se que René Girard, nas obras aqui pessoas, como vizinhos, colegas de trabalho etc.
referenciadas, não elimina a possibilidade de Mediação externa e mediação interna estão
inovação, na verdade, ele questiona o rigor desse ligadas, segundo a concepção girardiana, com a
processo quando é tido como isento de qualquer imagem, maléfica ou benéfica, de inovação.
espécie de imitação. O autor destaca que a Conforme o teórico, essa relação pode ser
metamorfose de um imitador em inovador é percebida a partir de diferentes momentos
comumente percebida com surpresa pelo público históricos e o tipo de tratamento que eles deram
em geral. Isso sugere que o papel da imitação na à imitação explícita de modelos. Dessa maneira,
inovação, à primeira vista, é obscuro, mas pode a última fase da mediação externa situa-se entre
tornar-se detectável, posteriormente, a partir de o século XVI e XVII quando a preocupação não
um raciocínio mais abstrato. era com a prática da mímeses, mas sim com
Em Coisas ocultas desde a fundação do aqueles considerados maus imitadores. Durante
mundo: a revelação destruidora do mecanismo esse período o modelo encontra-se longe,
vitimário, resultado de estudos desenvolvidos temporalmente e espacialmente, de seus
entre 1975 e 1977, o mimetismo é evidenciado imitadores. Portanto, ele é explicitamente
como um problema antigo fundamental para a apreciado, de modo que a possibilidade de uma
compreensão do processo de evolução do rivalidade mais direta, entre mediador e
homem. Esse tema é importante para o teórico discípulo, é impossível. Neste contexto, inovar
que ao constatar, em seu tempo, uma certa significa ir de encontro ao que normalmente é
obliteração de estudos sobre a mímeses, aponta apresentado como estável, consoante com o que
a “culminação de uma tendência que remonta ao René Girard (2002, p. 223) destaca:
início da época moderna e que se afirma, no As pessoas acusavam-se umas às outras de
século XIX com o romantismo e o serem maus imitadores, infiéis à verdadeira
individualismo” (GIRARD, 2008, p. 28). essência dos modelos. Não é preciso
Ligada à retomada das discussões sobre a esperar muito, com a Querela dos Antigos
importância da imitação, o caráter de e dos Modernos, para que a questão central
apropriação ou aquisição desse procedimento dos debates se torne a da escolha dos
também deve ser avaliado, dado que qualquer modelos: os tradicionais ou os seus rivais
aprendizagem, no comportamento humano, modernos. Mas a ideia que deve haver
remete à ação de imitar. Do mesmo modo, ao modelos permanece comum aos dois
campos. O princípio da imitação estável,
reconhecer a importância do papel aquisitivo da
sobre o qual se baseia o sistema, é a última
mímeses, os seus efeitos também devem ser coisa que se pensa pôr em causa.
considerados, tal como a rivalidade.
Os contornos conflitantes da imitação em Antes da inovação ser apreciada, ela era
uma mediação interna devem ser identificados concebida como apocalíptica, majoritariamente,
em razão de que a própria tentativa de ocultar a até o século XVIII. No entanto, foi a partir do
rivalidade pode acentuá-la ainda mais. Girard século XIX com a contestação dos modelos
(2008) observa que essa contradição pode ser antigos, os quais eram tidos como referência,
cômica em alguns casos, mas desastrosa em que a inovação passou a ter significado positivo.
outros. De forma análoga, Richard J. Golsan Consequentemente, a mediação externa dá
(2014) destaca, ao introduzir pontos lugar a um novo mundo em que os indivíduos
importantes da teoria mimética, além de são livres para adotar ou não modelos.
relacioná-lo com o mito, que os indivíduos Progressivamente, a imitação e a tradição
também tendem a negar a imitação de um foram excluídas sendo substituídas por uma
modelo e a suprimir a atuação de um mediador ruptura completa que passou a ser importante
em seus desejos. para os criadores. Todavia, o teórico francês
Já a mediação recíproca entre rivais ocorre destaca que a mímeses não esteve ausente, com
quando o modelo e o sujeito estão próximos. efeito, ela converteu-se em contraimitação, uma
Dessa forma, à medida que a rivalidade cresce, as vez que o desejo de imitar tende a aumentar
diferenças são apagadas tornando-os duplos uns conforme é rejeitado pelo indivíduo. Girard
dos outros. Para Girard (2009), esse tipo de (2002, p. 227) observa a ruptura como resultado
de ideias, permeadas na literatura, na filosofia e
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 133
na música sobre uma inovação pura, isto é, escritores consagrados pela tradição teriam se
desvinculada de qualquer tipo de imitação de aproximado da beleza absoluta, quanto de um
modelos, que estimulou transformações no que forte sentimento de oposição à rudeza da
chamados de arte moderna. Com base nisso, o linguagem e das formas empreendidas pela
autor dá exemplos de como a mediação interna, literatura medieval. Assim, esse processo
em forma de ruptura, mais com o passado do apresentou aspectos de idolatria, uma vez que a
que com os outros, pode ser concebida no novo “imitação não era apenas das formas e dos
contexto: o pintor mede seu talento pela temas, mas dos processos, dos tópicos, do
capacidade de inovação da mesma forma que o ingrediente mitológico, das imagens e até da
amante mede seu amor pela habilidade de língua”.
inovar no domínio dos enamorados. A Arte poética, de Horácio (2005, p. 63),
Destacam-se dois pontos importantes destaca-se, nesse contexto, ao mostrar alguns
depreendidos da discussão girardiana. O princípios importantes para a obra de arte – a
primeiro é o desmoronamento da mediação unidade, a adequação ao gênero e a ordenação –
externa que elimina a imitação explícita de além de enfatizar a necessidade da formação
modelos antigos, mas não a mímeses como um intelectual do artista. Para este romano, ao invés
todo. O segundo acentua que o enraizamento da de serem apenas copistas servis, os poetas
inovação supõe o conhecimento do passado, deviam sempre atentar para a cadência de seus
bem como do processo mimético. próprios poemas, estudando “os modelos
Ademais, o autor acrescenta que enquanto a gregos com mão noturna e diurna”. O autor
estética moderna tende a prezar pela inovação, observa que pode ser ainda mais difícil para o
o pós-modernismo, diferentemente, salienta artista criar, mantendo o primor artístico, sem
uma imitação sem descriminação de modelos, ter um referencial para os personagens e os
aparecendo em forma paródica e irônica. No temas, sendo mais aconselhável traduzir
entanto, essa última concepção apenas Homero.
silenciaria a questão de quem é inovador e quem É difícil dar tratamento original a argumentos
não é. No entanto, ela não reconhece a tendência cediços, mas, a ser o primeiro a encenar temas
de apropriação mimética, assim como a desconhecidos, ainda não explorados, é
passagem da mediação interna para a externa, o preferível transpor para a cena uma passagem
que apenas corresponderia a mais uma fase de da Ilíada. Matéria pública se tornará de
nossa ‘falsa consciência’ romântica. direito privado, se você não se demorar aí
pela arena vulgar, aberta a toda gente, nem,
3 Mímeses e criação poética: imitatio e tradutor escrupuloso, se empenhar numa
aemulatio reprodução literal, ou, imitador, não se meter
De acordo com Guinsburg e Rosenfeld numas aperturas de onde a timidez ou as
exigências da obra o impeçam de arredar o
(2008) o vocábulo classis, que originou o termo
pé. (HORÁCIO, 2005, p. 59)
Classicismo, designava, em latim, os ricos que
pagavam impostos pelas frotas. Dessa forma, É possível inferir, a partir do trecho
um escritor classicus seria aquele que escrevia evidenciado, que Horácio (2005) aconselha o
para uma classe abastada da sociedade. artista a buscar fontes conhecidas, como o caso
Posteriormente, a palavra passou por algumas da epopeia de Homero, para o argumento de sua
transformações ganhando, por exemplo, valor obra. O poeta romano ensina, após essa primeira
didático, quando se refere às composições advertência, de que forma o escritor deve fazer
literárias estudadas nas escolas, ou estilístico, uso da matéria obtida de seu modelo para não
que alude às obras baseadas em certos preceitos cair em uma imitação servil. Um cuidado
modelares da Antiguidade greco-romana a qual fundamental seria o de não se demorar em
passou a ser denominada clássica. Essa tomada aspectos próprios do gênero imitado, o épico, e
de princípios para a criação artística ocorreu, tentar transpô-los para a tragédia, visto que
sobretudo, com a revalorização da prática e da aquilo considerado bom em uma espécie não é
teoria dos antigos gregos e romanos durante o consoante em outra. Da mesma maneira,
Renascimento. traduzir fielmente, palavra por palavra, também
Spina (1967, p. 93) destaca que o ato de pode ser um problema para o poeta. Essas duas
imitar os modelos antigos, na Renascença, é precauções estão relacionadas com uma
resultado tanto da convicção de que os terceira: o poeta não deve sujeitar-se tanto ao
modelo, em virtude de que isso pode confundi-
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 134
lo ao tentar adequar-se às regras do próprio tudo que é virtuoso no modelo através de uma
poema. Para essa última interpretação, foram observação continuada.
importantes os comentários de Cândido É necessário rivalizar com o que há de
Lusitano na sua tradução da Arte poética. melhor nos antigos. Consequentemente, não se
Muitas das recomendações dadas por imita apenas um artista, mas tudo que há de belo
Horácio (2005) referem-se ao teatro, em vários outros reconhecidos pela excelência
especialmente no gênero da tragédia. de suas obras. Como exemplo, o estudioso
Entretanto, ressalta-se, nos escritos deste poeta grego cita a lenda Zeuxis que, ao pintar o corpo
lírico, a importância da imitatio para a criação nu de Helena, mandou chamar as moças da
artística, sem ser servil, o que remete ao cidade de Crotona, porque ao reunir as partes
conhecimento de escritores convencionados que fossem ‘dignas’ de pintura, produziria uma
pela tradição, possivelmente, desde quando os obra única, perfeita e bela. Por isso, o autor
filólogos alexandrinos estabeleceram um aconselha procurar “formas de antigos corpos,
cânone de autores gregos. de colher o melhor do seu espírito e, ao juntares
Para Dionísio de Halicarnasso (1986, p. 49), a tudo isto o dom da erudição, de modelar não
em seu Tratado da imitação, a importância da uma figura que se desgasta com o tempo, mas
leitura e da erudição também é fundamental na sim a beleza imortal da arte” (DIONISIO DE
mímeses de escritores-modelo. Neste processo, HALICARNASSO, 1986, p. 52).
ele menciona uma outra atividade “do espírito A importância da emulação e da imitação de
que o move no sentido da admiração daquilo modelos antigos também aparece em Do
que lhe parece ser belo”, denominada emulação, sublime, de Longino (2015), como vias para
ou aemulatio. Essa formulação expressa a chegar ao sublime. Embora a obra trate,
compreensão das virtudes de um modelo com o mormente, sobre questões de retórica, o autor
intuito de igualar-se a ele ou superá-lo. transfere ao âmbito da elocução preocupações
Ao observar o significado da palavra próprias da inventio, tal qual a mímeses. Ele
emulação, em outras línguas e em outros pontua, também, que enquanto a poesia se vale
contextos, é perceptível que ela apresenta um mais do que é fabuloso e exagerado,
aspecto semântico fértil, conforme pontua ultrapassando o crível, na retórica, contudo, é
Saltarelli (2009, p. 255): melhor aquilo que é verdadeiro e realizável.
Nesse ponto é interessante lembrar que o termo
O autor – cuja identidade real permanece
grego traduzido pelos latinos como aemulatio é obscura – considera que Platão (2006), tendo
zélozis, o qual está na origem da palavra como base uma passagem do livro IX da
portuguesa zelo, mas também na espanhola República, (586a), pode ser tomado como um
celo, da francesa jalouise e da italiana gelosia. exemplo de caminho para o sublime pela
Enquanto no português a palavra denota imitação e pela emulação. Mais adiante,
cuidado ou proteção, no espanhol, no francês e Longino (2015, p. 86) afirma que o filósofo
no italiano ela significa ciúme, inveja. Essa grego, ao comentar os malefícios da poesia de
polissemia gerada na evolução do sentido da Homero, na verdade, está emulando um modelo
palavra define bem a relação do escritor com o
antigo capaz de inspirar no imitador a
seu modelo: trata-se de uma relação dúbia, de
cuidado e ciúme, simultaneamente. Ao mesmo
criatividade, mesmo que para condenar
tempo em que o escritor admira seu modelo, determinada atividade.
guarda-lhe inveja, mas uma inveja positiva. Tal A emulação é um procedimento que deve ser
sentimento é esclarecido por Aristóteles, nos considerado por aqueles que almejam elaborar
capítulos X e XI da Retórica, onde estabelece qualquer obra de expressão elevada. Este
uma oposição entre phthónesis, traduzível como exercício, argumenta Longino (2015), não se
inveja, e a zélosis, traduzível como emulação. trata de plágio ou furto (klope), na verdade,
Dessa forma, não é apenas a matéria do consiste em uma forma de extrair de um molde
argumento que deve orientar a criação poética, tudo que é belo. Percebe-se que neste último
mas também o desejo de superar as ponto o autor se aproxima do que foi discutido
particularidades da obra imitada, como propõe sobre a imitação das boas partes no tratado de
Dionísio de Halicarnasso (1986, p. 52). Embora Dionísio de Halicarnasso (1986).
esse desejo possa estar próximo da inveja, tanto As observações de Raul Miguel Rosado, na
no teor etimológico quanto sentimental, ele tradução feita por ele da edição do Tratado da
também desperta no imitador a admiração de imitação, afirmam a leitura crítica que o
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 135
imitador deve fazer dos escritores-modelo. própria relação dos românticos com a
Consequentemente, é preciso pensar que o modernidade é envolvida pelo anseio de negar
próprio conceito de originalidade, nesse e, consequentemente, de mudar.
contexto clássico, existia fazendo par com a O ocaso das ideias modernas de tempo como
imitação para reproduzir, de modo artístico, o uma sucessão linear em progresso e de mudança
real ou para aproveitar-se dos modelos e incluir corresponde ao que é chamado, correntemente,
alguma coisa pessoal à obra final. Essa pós-modernismo. Este termo é questionado por
concepção de inovação, portanto, contrasta com Octavio Paz (1993) que, ao discutir a situação
a que herdamos dos românticos na qual toda da poesia na década de 80 e 90 do século XX,
noção de criatividade, a priori, é ligada apenas observa a sua época não apenas como algo que
ao artista que a criou. vem depois da Idade Moderna, mas diferente
Considerando os comentários de Rosado e os dela, seja metamorfoseada ou transfigurada.
escritos de Dionísio de Halicarnasso (1986), em Ainda assim, ele afirma que a criação poética
sua referida obra, nota-se que a imitação, para que foi, em grande parte do século XX, uma herança
não fosse servil, exigia do artista a sabedoria na dos movimentos românticos e das vanguardas.
hora de escolher os modelos e, posteriormente, a No conjunto de ensaios presentes em A outra
interferência, de maneira pessoal, naquilo que se voz, o poeta mexicano apresenta uma dificuldade
desejava fazer na obra, a fim de igualar ou superar visível, logo no início da discussão, em interpretar
o escritor que se imitava. a palavra “moderno”, posto que ela revela, ao
Francisco Achcar (1994, p. 38) também mesmo tampo, aquilo que é transitório e
examina como a originalidade na poesia da contemporâneo. Caso pensemos que o moderno é
Antiguidade clássica não resulta do “simples o hoje, precisamos considerar que os antigos
abandono da tradição, mas de um jogo astuto também viam a si mesmos como modernos.
com os elementos dela”. Segundo este autor, a Consequentemente, Paz (1993) aponta um
imitação e a emulação foram importantes para problema universal, que também é colocado para
uso dos tópoi na poesia, ainda que não tenha todos os homens, ao tentar nomear o tempo em que
chegado até nós uma poética da época dedicada vivem. Desse modo, sugere-se que aceitamos,
à relação entre lírica e mímeses. ainda que de forma provisória, o termo Idade
Moderna, que se formou ao longo do século XVIII
4 Inovação após ruptura romântica
e teve seu apogeu até pouco antes do final do XIX.
A grande representação de um anseio por É com a crise das concepções modernas que a
transformações, no âmbito da literatura e de Idade Contemporânea surgiu. Contudo, a duração
outras artes, foi o Romantismo, no final do – mais de um século – desse período também
século XVIII, que procurou romper tanto com implica uma reflexão sobre o emprego do termo
as regras sobre a criação artística quanto com o contemporâneo.
seguimento de modelos antigos. Se, antes, o Agamben (2009) afirma que é
neoclassicismo colocava a Antiguidade greco- contemporâneo aquele que não coincide
romana em evidência, depois, com os perfeitamente com o seu tempo. É esta espécie
românticos, as mudanças resultaram em um de anacronismo que faz com que o homem
novo olhar para o presente, como escreve perceba o momento em que vive, sem deixar de
Antonio Candido (2006, p.137): pertencer a ele. Assim, a contemporaneidade
O Romantismo foi, portanto, o começo de adere ao seu próprio tempo, ao passo que toma
uma literatura aberta às mudanças, ao aderir distância dele. Ao comentar como o poeta deve
ao presente, não ao passado, num momento observar o presente, outra definição de
de rápidas mudanças técnicas e sociais. Isso contemporaneidade é mencionada pelo filósofo
foi se acentuando até as vanguardas do século italiano: é aquilo que olha para o seu tempo a
XX, que privilegiaram a mudança incessante, fim de apreender não apenas as luzes, mas
orientada por um inconformismo permanente também tudo o que é obscuro. Nesse sentido,
que se manifestou pela negação de conceitos, voltar-se para as trevas de nossa época significa
valores e procedimentos. procurar compreendê-la e interpretá-la
A negação que marca o Romantismo é fruto continuamente.
do momento em que a crítica, a revolução e a Ser contemporâneo demanda uma
utopia permeavam grande parte do pensamento observação sobre aquilo que é recente ou
filosófico e literário do período. No entanto, a moderno para reconhecer nele o arcaico. Além
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 136
disto, o passado também nos ajuda a entender as no futuro, tal qual escreveu Horácio (2003,
sombras do presente, dividindo, como considera p.141) em sua ode III, 30.
Agamben (2009, p. 72), o tempo e o colocando Porém, o poeta da pós-modernidade encontra-
em relação a outros. se perdido no tempo porque enquanto ele se afasta
Certamente, essa noção de contemporâneo, do passado, o futuro lhe parece arruinado. Por isso,
que não deixa de voltar-se para o passado, é de modo análogo, Haroldo de Campos (1996)
diferente da concepção de criação poética que se também crítica a palavra pós-moderno e sugere que
situou na modernidade. A Querela dos Antigos e ela seja substituída por pós-utópico, uma vez que,
Modernos foi um exemplo de que já no final do em certo momento histórico, a poesia encarnou-se
século XVII muitos artistas questionavam a no social acompanhando os desdouros das ideias
hegemonia dos modelos antigos. Por conseguinte, revolucionárias.
a mudança e a ruptura apresentaram um caminho Já não se recorre a uma oposição dominante
comum para o futuro utópico. Entretanto, essas em relação a outras tradições do passado, mas,
ideias, conforme Paz (1993, p.54), perderam reflete-se sobre o agora, ou a agoridade. Neste
grande parte da força que tinham ao se momento, o passado não pode ser visto como
transformarem em “tradição de ruptura”. aprisionador, na verdade, seria preciso perceber,
No campo da literatura e das artes a estética
como sugere Campos (1996, p. 269), a nossa
da modernidade, desde o Romantismo até “história plural” e apropriar-se dela de forma
nossos dias, tem sido de mudança. A tradição crítica, sendo um dos meios a tradução de poesia.
moderna é a de ruptura, uma tradição que De igual modo, recorre-se à advertência de
nega a si própria e assim se perpetua.[...] Hoje Octávio Paz (1993, p. 110) sobre como deve-se
assistimos ao crepúsculo da estética da reagir ao desgaste das formas poéticas:
mudança. A arte e a literatura deste fim de
século perderam paulatinamente seus poderes Quando uma forma se desgasta ou se converte
de negação; há muito tempo suas negações em fórmula, o poeta deve inventar outra. Ou
são repetições rituais, fórmulas suas encontrar uma antiga e refazê-la: reinventá-la.
rebeldias, cerimônias suas transgressões. Não A invenção de uma forma é, com frequência,
é o fim da arte: é o fim da ideia da arte uma novidade de 200 ou 300 anos: nada mais
moderna. Ou seja: o fim da estética fundada novo que os poemas chineses recriados por
no culto à mudança e à ruptura. Pound, as canções em que Apollinaire
ressuscita metros medievais ou a música
A “tradição de ruptura” fica mais clara na indecisa que passa e não pesa, que Dário
obra Os filhos do barro em que Paz (1984) aprendeu em Verlaine e este em Villon. Mas a
discute como a ruptura, que se anuncia através indústria prefere, às novidades autênticas, as
da quebra de vínculos com o passado, pode ser digeríveis, as fórmulas às formas.
chamada de tradição. Na verdade, para o autor, Aponta-se que as “novidades autênticas”
a modernidade seria uma tradição que põe em consistem na criação de fórmulas que logo se
xeque a existência de outra vigente para, logo desgastam, enquanto as formas da poesia,
depois, dar lugar a mais uma tradição. Todo esse elaboradas para durar, são criadas a partir de
processo faz com que a modernidade seja outros escritores e de outras formas.
sempre um outro, já que nega qualquer À vista disso, a aspiração pela ruptura,
movimento corrente para aderir a um mais incentivada pelo Romantismo, representa o eco de
“atual”. Por isso, a principal característica que um momento histórico marcado pela crítica e pela
diferencia a tradição antiga da moderna é que visão do tempo em direção ao progresso. Ainda
enquanto aquela mantém-se, seguindo seus que estas ideias tenham declinado, ao longo do
preceitos com base no passado, esta última é século XX, herdamos delas, em grande parte,
constituída pela heterogeneidade na negação nossa visão sobre a criação de tudo que é novo no
das tradições anteriores, sendo, ou pretendendo campo das artes. Não obstante, perceber que a
ser, autossuficiente. ruptura também se transformou em tradição nos
Para Paz (1993, p. 109), a poesia que se faz repensar a relação que estabelecemos com o
manifesta, no final do século XX, parece ser passado, por vez, pouco distante, porquanto a
uma poesia de convergência que recomeça e tradição da ruptura finda certas formas literárias
regressa constantemente. Nela o poeta, como vigentes para fundar outras.
em outros tempos, escolhe os seus antepassados Se a visão de tempo no pós-modernismo -
– da mesma forma que Neruda fez com ultramodernismo ou pós-utópico - não é tão crédula
Whitman – na intenção, também, de serem lidos quanto antes em relação a um futuro utópico,
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 137
recorrer ao passado, sem estabelecer com ele uma futuro nos fez recorrer aos antigos, sem
intensa negação, é possível para criar formas estabelecer com eles uma negação absoluta e
poéticas. Essa atividade é viável porque, como sem declará-los modelos incontestáveis de
vimos, um poeta sempre tem a leitura de outros que nossa criação artística.
conseguiram aquilo que ele almeja: a perenidade no A poesia que sucede ao declínio das
tempo. Como afirma Paz (1993), não se trata de vanguardas, afirma Paz (1993), é também a
desejo por sucesso, mas de desejo por vida. poesia do presente e esta poesia, não tão
Destaca-se, todavia, que essa recorrência ao diferente de outras formas artísticas, é, como
passado não exime o poeta de seu próprio presente. quis René Girard (2002), mimética. Logo, se a
Assim mostra Agamben (2009): retornar ao antigo poesia desde os primórdios ajudou a contar a
nos ajuda a interpretar o que é obscuro no hodierno. história de um povo e o mimetismo está ligado
De modo equivalente, no caso do escritor, pode à história do homem, negar nossa tendência à
significar inovação. mímeses constitui mais uma instância da crença
Aqui, voltamos para Girard (2002) e suas romântica sobre o novo.
considerações sobre o pós-modernismo que já
Referências
não pergunta, frequentemente, quem é o
inovador de seu tempo. Na verdade, para o
ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar-comum:
teórico francês, as tendências culturais após o
alguns temas de Horácio e sua presença em
modernismo dão continuidade à mímeses dos
português. São Paulo: Editora da Universidade de
modelos, de modo que este mecanismo fica
São Paulo, 1994.
oculto sob as formas de paródia e de ironia.
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo?.
5 Considerações Finais
In:______. O que é contemporâneo? e outros
Depreende-se, com base em tudo que foi ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
discutido, que partes importantes do processo Chapecó: Argos, 2009. p. 55 – 73.
imitativo estão presentes na inovação. Girard
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo
(2002) estabelece duas delas: a mediação
Pinheiro. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2017.
externa, que prevaleceu até os neoclássicos, e a
mediação interna, que teve seu clímax do CAMPOS, Haroldo. Poesia e modernidade: da
Romantismo às vanguardas. Enquanto uma morte da arte à constelação. O poema pós
exibe seus modelos, a outra os vela e, ao romper utópico. In:______. O arco-íris branco. Rio de
com uma tradição, passa a tentar provar o Janeiro: Imago, 1996. p. 243 – 268.
porquê de a forma atual ser diferente da CANDIDO, Antonio. Romantismo, negativida
anterior, como aquela que rivaliza. de, modernidade. Anuario del
Até a rivalidade faz parte de um Colegio de Estudios Latinoamericanos,
procedimento longevo e que, no nível México, v. 1, p. 137 - 141, 2006, Universidad
antropológico, pode ser violento. Na criação Nacional Autónoma de México.
poética, ela nos evoca a concepção de aemulatio
importante na imitação de modelos antigos, que DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Tratado da
aparece em tratados clássicos como uma imitação. Tradução de Raul Miguel Rosado
advertência para imitar sem ser servil. Aqui, o Fernandes. Lisboa: INIC/Centro de Estudos
novo atualiza-se em um conjunto de tradições, Clássicos da Universidade de Lisboa, 1986.
o qual para demonstrar sua excelência artística GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação
apresenta melhorias em relação ao modelo do mundo: a revelação destruidora do
imitado, distanciando-se de uma ideia de plágio mecanismo vitimário. Tradução de Martha
ou de submissão servil ao modelo. Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Mas, para o Romantismo é preciso mudar e
romper com tudo aquilo que alegadamente ______. Inovação e repetição. In:_______. A voz
aprisionaria os artistas, tais quais as regras e os desconhecida do real: uma teoria dos mitos
modelos. Longe disso, Girard (2002) nos diz arcaicos e modernos. Tradução de Filipe Duarte.
que a negação de se imitar um paradigma incita Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 221 – 239.
ainda mais a rivalidade. Não podemos saber até ______. Mentira romântica e verdade
que ponto a tradição de ruptura nos levaria, já romanesca. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São
que o declínio das concepções utópicas sobre o Paulo: É Realizações, 2009.
INOVAR É IMITAR: A CRIÇÃO POÉTICA EM DIÁLOGO COM A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD 138
ISBN: 978-65-5363-027-7
vertente dos estudos comparatistas é herdeira da de um trabalho voltado à literatura europeia cuja
chamada Stoffgeschichte, “[...] contribuição metodologia alicerça-se na investigação dos
mais genuinamente alemã à teoria e à prática da tópoi. Na supracitada obra, o referido estudioso,
Literatura Comparada que começa a se firmar baseando-se no método da Toposforschung,
no século XIX, e cujos estudiosos a ela se apresenta um impressionante quadro das
dedicaram na tradição legada por Goethe e sua origens e da unidade cultural da literatura
concepção de Weltliteratur” (p. 01). Francisco europeia. Para a realização desse intento,
Achcar (2015), por sua vez, afirma que tal desloca a topologia de seu enquadramento
método investigativo foi paulatinamente caindo retórico e transfere-a a um contexto literário,
no esquecimento no âmbito dos estudos mostrando como os diversos tópoi da
literários, pois que Antiguidade puderam se inscrever na literatura
A crítica idealista, o hegelianismo crociano
europeia medieval, e como esta passou por uma
ou marxista consideraram essa prática espécie de roupagem retórica na medida em que
irrelevante ou a impugnaram como vários procedimentos e temáticas adentraram,
superficialmente formalista, um descaminho, também, o campo das produções literárias. Para
um estorvo à compreensão verdadeira da obra Curtius (2013), os tópoi poéticos têm uma dupla
literária. Mesmo críticos positivistas gênese: uns provém da retórica clássica,
interessados na chamada “crítica de fontes”, enquanto outros surgem na própria literatura,
Quellenforschung, não viam ou veem na caça incorporando-se, posteriormente, à retórica
de semelhanças mais que comparatismo também. Assim, para esse autor,
rudimentar, trabalho ancilar, mero fornecedor
de subsídios para a análise crítica (p. 13). Nem todos os topoi se derivam dos gêneros
retóricos. Muitos procedem originariamente da
Porém, ainda de acordo com Achcar poesia e passaram, depois, à retórica. [...] em
(2015), o estudo acerca dos tópoi, no âmbito todos os topoi poéticos, o estilo da exposição está
da investigação literária, foi “reproposto em condicionado historicamente. Há, porém, topoi
nossa época pela obra clássica de Ernst que estão ausentes no decorrer de toda a
Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Antiguidade. Só aparecem na época de Augusto,
Média Latina” (p. 19). O crítico alemão, na em seu último quartel, e subitamente os vemos
obra supracitada, ao selecionar a circular por toda parte. [...] Oferecem um duplo
investigação tópica como fulcro interesse. Em primeiro lugar, de biologia
literária: neles podemos observar a formação de
metodológico de seu trabalho crítico-
novos topoi, ampliando assim nosso
literário, tomou como ponto de partida a conhecimento sobre a gênese dos elementos
observação de algumas constantes formais literários. Em segundo lugar, aqueles
semânticas no campo da poesia europeia e topoi são sintomas de uma nova atividade
sua presença e difusão nos textos ao longo da espiritual, sintomas que não se manifestam senão
história da literatura. Assim, o topos, nessa daquele modo. Assim, aprofunda-se nosso
obra, caracterizar-se-ia como sendo um conhecimento da história da alma do Ocidente e
conjunto de elementos comuns dotados de tocamos num domínio recentemente estudado
unidade estrutural e que se organiza de pela psicologia de C. G. Jung [...] Atemo-nos ao
acordo com determinados princípios que se antigo conceito de tópica que se conservou, para
nós, como ponto de partida e princípio heurístico.
vão fixando em certos textos, gêneros e
Mas, enquanto a tópica antiga é parte integrante
épocas literárias. Nesse sentido, Curtius se de um sistema pedagógico e, portanto,
baseia na esquematização de determinados sistemática e normativa, tentamos estabelecer os
elementos dos tópoi, que cataloga em fundamentos de uma tópica histórica, a qual é
inventário, procurando investigar a suscetível de muitas aplicações (p. 123).
transformação da tópica de natureza
Interessante notar, na transcrita passagem, as
argumentativa – porque oriunda da retórica –
conexões estabelecidos por Curtius entre os tópoi
numa tópica de conteúdos, num repositório
poéticos e retóricos, bem como a anunciação de
de temas, motivos e clichês semânticos que
um afastamento em relação ao caráter normativo
se reiteram continuamente ao longo da
da topologia para concentrar-se na topologia
história literária europeia, notadamente no
histórica, isto é, aquela que nasce em decorrência
campo da poesia.
de circunstâncias históricas específicas, pois são
Afirmamos, portanto, que é com Curtius que
materializações da psicologia coletiva (nos termos
modernamente se notabiliza o desenvolvimento
de C. G. Jung), assim a frequência e regularidade
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 141
dos tópoi não é tão somente uma questão de definição de Aguiar e Silva (2006), os tópoi
eficiência retórica, mas da própria atemporalidade seriam os
“dos arquétipos, das imagens inconscientes [...] motivos, temas e esquemas formais que se
coletivas” (CURTIUS, 2013, p. 145). repetem ao longo dos tempos, permanecendo
De modo que, para Curtius, o substancialmente invariáveis – que têm a sua
reaparecimento, sobrevivência e atualização origem imediata em textos gregos, helenísticos
dos tópoi devem-se, sobretudo, às existentes e latinos e que se disseminaram nas literaturas
correspondências entre estes e os arquétipos do europeias em língua vulgar durante a Idade
inconsciente coletivo. Por esse motivo, os tópoi Média e em épocas posteriores ou que se
são recursos que vão além da mera ancoragem formaram já nas literaturas europeias modernas,
nos elementos retóricos. O objetivo precípuo do no âmbito do código de determinados estilos de
época (p. 262).
estudioso alemão, com a sua Literatura
Europeia e Idade Média Latina (1948), seria, na Os tópoi seriam, portanto, essas unidades
opinião de Rafael Quevedo (2018), o de “atestar semânticas e essas vitrificações expressivas nas
a continuidade cultural entre a tradição clássica quais cada poeta constrói a seu modo a forma mais
e a Idade Média a partir da recorrência de condizente de expressão verbal. No sentido
lugares-comuns literários (os tópoi) e metáforas apresentado, o topos se apresenta como elemento
consagradas” (p. 19). Assim, para alcançar o seu retórico que, em sua diacronia, sofre inevitáveis
intento, Curtius procurou demonstrar nesse variações e atualizações, em conformidade com o
monumental trabalho que a literatura europeia, contexto proveniente das épocas literárias, com as
da Antiguidade clássica até o Renascimento, características de mentalidade decorrentes das
seria tributária de certa unidade ligada à variadas situações históricas.
memória do sistema semiótico literário.
2 O lugar da investigação tópica na poesia
A frequência com que aparecem os tópoi nas
tradicional até o Romantismo
produções poéticas de diversos quadrantes
temporais acaba resultando na constituição de uma Essa apresentada metodologia investigativa, a
tradição literária, resgatando os elementos retóricos Toposforschung, notabilizou-se particularmente no
dessa memória do sistema semiótico literário. É estudo da poesia das épocas tradicionais, visto que
nesse sentido, portanto, que os tópoi servem como nas poéticas produzidas na Antiguidade clássica,
modelos de referência tanto para os emissores, bem como nos períodos medieval e renascentista,
quanto para os receptores, sendo utilizados de evidenciava-se com bastante recorrência a prática
modo polivante nos diversos textos e contextos, produtiva da imitatio (imitação, seguimento de
numa linha de continuidade histórica, formando modelos), em que era não apenas comum, mas até
justamente essa tradição de que fala Aguiar e Silva mesmo recomendável que um poeta empregasse,
(2006) ao caracterizar essa memória do sistema em suas composições líricas, referências criativas a
literário. Assim, pois, se refere o teórico português obras de outros poetas, numa demonstração de sua
quanto a essa caracterização: erudição no diálogo com a tradição75. Desse modo,
A memória representa, em termos semióticos, a investigação tópica no estudo do gênero lírico
a chamada tradição literária, que não deve ser antigo, medieval e renascentista mostrava-se uma
identificada com uma inerte ou interessante via de análise da poesia em sua relação
indiferenciada acumulação diacrónica de com o mosaico de clichês e lugares-comuns
elementos, já que a memória, em cada estágio fornecidos pelo patrimônio poético. Assim, no
sincrônico do sistema, se encontra organizada campo da crítica literária, “a procura por loci
e valorada sistemicamente (p. 258-259). símiles sempre foi uma atividade predileta, e em
Desse modo, a configuração dos tópoi alguns casos quase exclusiva dos comentadores de
(lugares-comuns) na memória do sistema textos clássicos” (ACHCAR, 2015, p. 13). A
semiótico da literatura seria algo mesmo explicação para essa preferência do comparatismo
inerente e constitutivo do jogo referente à literário em se buscar, apontar e explicar as diversas
produção criativa no campo da poesia – o reconstruções dos tópoi poéticos da tradição
gênero mais codificado da arte literária. Na clássica deve-se justamente ao fato de que nessas
75Utilizando-se de Francis Cairns sobre a poética clássica, de arte alusiva: um poema toma do repertório tradicional
Francisco Achcar denomina esse tipo de produção como uma série de lugares-comuns e, juntamente, a maneira de
“composição genérica”, a qual corresponderia “a uma organizá-los, derivando daí sua pertinência genérica”
codificação da prática intertextual, uma forma particular (ACHCAR, 2015, p. 18).
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 142
épocas tradicionais (que vai da Antiguidade sobretudo a poesia lírica, voz do individual, do
clássica ao Renascimento): subjetivo, daquilo que não faz parte do
[...] a produção de poesia era marcada pela mais
repertório comum nem se submete a esquemas
ou menos disciplinada obediência a convenções estabelecidos” (ACHCAR, 2015, p. 18).
e fórmulas consagradas, razão pela qual a Essa iconoclastia 76 referente aos lugares-
repetição de conteúdos ou formas de expressão comuns de teor clássico nas produções líricas se
de um poema para o outro não constituía, em si acentua em fins do século XVIII, com o
mesmo, um demérito do autor, mas, às vezes, era Romantismo, e se consolida definitivamente no
a própria exibição de sua qualidade como poeta alvorecer do século XX, com as vanguardas
(QUEVEDO, 2014, p. 02). modernistas que, nesse sentido, imprimiram ao
Esse cenário relativo às produções poéticas gênero lírico, por exemplo, a derrocada de
pautadas pelo processo da imitatio e da modelos fixos, a instituição do verso branco, a
aemulatio passou, todavia, por estrondoso abalo proclamação à métrica irregular e disforme,
com o advento do movimento romântico. O bem como a exaltação da concepção romântica
Romantismo, em seu projeto artístico, passou a de que a poesia nasce a partir da inspiração e do
cultuar, agora, não mais a imitação e o gênio artístico, além do estabelecimento de um
seguimento de modelos, mas justamente a maior prosaísmo e liberdade de linguagem na
novidade, a originalidade, a inspiração nascida constituição do poema. Nesse sentido, o
do gênio, da emoção e, com isso, estabelecia-se Modernismo reiterava e consolidava justamente
a ruptura com as tradições de índole classicista. aquele “[...] ato romântico que se inscrevia na
Assim, ainda segundo Quevedo (2014): tradição inaugurada pelo Romantismo: a
tradição que nega a si mesma para continuar-se,
Com a campanha movida pelo Romantismo
a tradição da ruptura” (PAZ, 1984, p. 109).
em nome da deposição do princípio clássico da
imitação artística e pelo coroamento de uma Portanto, foi com o movimento romântico que
poesia como expressão da individualidade do se instituiu a noção de que “a poesia se justifica
poeta, a circulação dos tópoi sofre, como expressão de uma alma superior, que não
inevitavelmente, forte abalo, uma vez que tem modelos a seguir, nem outras regras senão
certas convenções deixam de ter o status que as que demandam de sua inspiração” (LIMA,
possuíam na lírica tradicional e passam a ser 2002, p. 262). O apontado aspecto marcou essa
vistas como artifícios e entraves à plena fluidez tentativa de obliterar o processo criativo
da vazão sentimental, cujo desaguadouro baseado na imitação e emulação de certas
deveria ser o próprio poema (p. 02). convenções poéticas como critério de
Nesse sentido, pode-se afirmar que a escola legitimidade literária. Com isso, houve, no
romântica foi a responsável por introduzir a âmbito da crítica literária, um paulatino
noção de poesia como diretamente ligada ao abandono da investigação de tópoi poéticos,
subjetivismo do autor, aos seus estados partindo-se do princípio do solapamento do
anímicos e emocionais e, por isso, decorrente de processo dialógico na criação literária.
sua genialidade e inspiração, sendo um gênero Todavia, é preciso enfatizar que a expansão
literário diretamente relacionado à sinceridade das correntes teóricas no âmbito dos estudos
do poeta. Esses motivos levariam à derrocada literários, mormente aquelas voltadas ao campo
do culto aos lugares-comuns da tradição lírica, da Literatura Comparada, no meado do século
vez que a ourivesaria em torno das XX, propiciaram a superação desse idealismo
reapropriações de tópoi poéticos seria romântico em torno das noções de genialidade e
responsável, na visão romântica, pelo originalidade do fazer poético. Passou-se a
engessamento da livre expressão individual. Por compreender, cada vez mais, que o dialogismo
isso, as formações de novos esquemas de é traço inerente às produções literárias, de modo
expressão “são tidas, desde o Romantismo, que a moderna crítica literária tem se tornado
como o essencial do que deve exprimir a poesia, cada vez mais consensual quanto à
76Lembremos, nesse sentido, a metáfora do “martelo” com notas de Célia Berrettine. 2º ed. São Paulo: Perspectiva,
que Victor Hugo ameaçava as poéticas clássicas, bem 2002. Cf. PAZ, Octávio. “A Tradição da Ruptura”. In:
como o oximoro da “tradição da ruptura”, expressão ______. Os Filhos do Barro: Do Romantismo à
cunhada por Octávio Paz para caracterizar a tradição da Vanguarda. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São
poesia moderna. Cf. HUGO, Victor. Do grotesco e do Paulo: Cosac Naify, 1984, p. 17-35.
sublime: Tradução do prefácio de Cromwell. Tradução e
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 143
77Tomamos, neste trabalho, essa designação para todos os moderna crítica literária, cf. SAMOYAULT, Tiphaine. A
processos de retomada, deliberada ou não, de um texto por Intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo:
outro. Para uma visão, todavia, mais exata sobre as Aderaldo & Rothschild, 2008.
nuances da noção de intertextualidade no interior da
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 144
torno dos lugares-comuns da tradição são, similitude com o passado – e esse processo será
portanto, o ser da literatura. De modo que no substantivado também no tempo futuro. Essa
sentido esposado por Quevedo (2018), o gênero imbricação temporal e o permanente diálogo
lírico, por ser mais longevo (em comparação aos com os dados fornecidos pelo passado fez-se
gêneros em prosa), bem como por ser uma arte ainda mais evidente com o advento da
mais codificada, torna-se mesmo inevitável que modernidade, tendo em vista justamente essa
o seu mostruário se faça de temas já “tradição da ruptura” que caracteriza a
consagrados pela tradição poética construída ao mentalidade contemporânea. Por esse motivo,
longo dos séculos, visto que, conforme o no Modernismo e Pós-Modernismo,
pesquisador, “possuem ligações muito A oposição entre o passado e o presente
profundas com o âmbito da experiência literalmente se evapora, pois o tempo
humana” e, como se sabe, o gênero lírico é transcorre com tal celeridade, que as
aquele considerado como sendo subjetivo por distinções entre os diversos tempos –
excelência, aquele “espaço íntimo da passado, presente, futuro – apagam-se ou pelo
comunicação” (ACHCAR, 2015, p. 47). menos se tornam instantâneas, imperceptíveis
Nesse sentido, concordamos com e insignificantes. Podemos falar de tradição
Quevedo (2014), quando este considera a moderna sem que nos pareça incorrer em
aparente e lógica “[...] impossibilidade [...] de contradição porque a era moderna poliu, até
apagar quase por completo, o antagonismo
haver uma produção poética totalmente isenta
entre o antigo e o atual, o novo e o tradicional
de seus lugares comuns, ainda que dentro de (PAZ, 1984, p. 18-19).
uma conjuntura radicalmente oposta à da
tradição clássica” (p. 03). Essa apontada É por esse motivo, portanto, que a literatura
impossibilidade de produções poéticas livres de contemporânea apresenta-se como um espaço
seus lugares-comuns é o que tem estimulado, onde se confluem e convivem as mais diversas
nas produções contemporâneas, a utilização tradições, justamente por causa dessa
imprevista e inovadora dos tópoi já consagrados evaporação entre o passado e o presente de que
pela tradição, procurando-se chegar, através fala Paz (1984). Nesse sentido, a
dessas utilizações criativas, a caminhos contemporaneidade estabelece-se, então, como
variados – e até mesmo inéditos – no que tange o locus privilegiado para o qual o poeta poderá
às reapropriações dos tópoi das diversas direcionar a sua produção lírica por caminhos
tradições líricas, afinal “na poesia culta, nunca vários, tendo em vista o apontado derrocamento
se abandona o jogo – joga-se com as regras dos preceitos a programas estéticos e cartilhas
dele” (ACHCAR, 2015, p. 19). O diálogo programáticas. Assim,
inevitável da poesia com os esquemas de Herdeiros [...] da destituição das escolas
expressão fornecidos pela tradição é, portanto, literárias e também da morte das vanguardas
regra inerente ao processo de constituição do históricas, o autor contemporâneo tem, ao seu
gênero lírico e, assim, de fato se apresenta dispor, todo um legado literário para um tipo
impossível uma produção poética que seja de uso guiado, unicamente, por propósitos
totalmente isenta de seus lugares-comuns, como que somente sua própria inclinação artística
bem asseverou Quevedo (2014). poderá instituir. No campo da lírica, não
De modo que as criações artísticas atuais são somente pela sua maior longevidade (se
comparado aos gêneros em prosa, por
permeadas por um legado cultural da história
exemplo), como também por ter sido durante
humana através dos tempos. As diversas formas séculos uma arte bastante codificada, o
culturais – entre as quais, a literatura – mostruário de tradições se faz muito mais
transcendem o espaço temporal: das primeiras perceptível: do uso das formas fixas a
manifestações artísticas às novidades recriações de temas da lírica latina ou grega,
contemporâneas, a humanidade vive um diversos são os caminhos pelos quais o poeta
contínuo diálogo entre passado, presente e o contemporâneo pode transitar em direção ao
legado futuro. O passado frutificou o presente; passado (QUEVEDO, 2018, p. 19).
o hoje é o gérmen do futuro; e o futuro é a A perícia e a destreza de determinado poeta
incógnita consubstanciada no tempo presente. evidencia-se, muitas vezes, justamente no modo
O ser humano se constitui, em sua formação como trabalha na reconstrução e atualização de
cultural e existencial, através desse dialogismo algum dos topos poéticos provenientes da
atemporal: o que se é hoje só é possível por ter tradição, visto que, conforme Achcar (2015):
MODERNA CRÍTICA EM POESIA: EM TORNO DA INVESTIGAÇÃO TÓPICA NO ESTUDO DO GÊNERO LÍRICO CONTEMPORÂNEO 147
[...] ao contrário do que à primeira vista pode ELIOT, T. S. “Tradição e Talento Individual”.
parecer, é, sobretudo, na utilização dos tópoi In: _________. Ensaios. Tradução, introdução
que se revela a originalidade do poeta: a e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art
seleção, a expressão e a combinação deles Editora, 1989.
oferecem possibilidades inesgotáveis de
soluções imprevistas dentro do uso KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise.
tradicional, chegando até às transgressões Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed.
desse uso (p. 29). São Paulo: Perspectiva, 2005.
Nesse sentido, as relações intertextuais LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em
exercidas pela poesia contemporânea em Suas Fontes. Vol. 1. Rio de Janeiro:
diálogo com as tradições líricas do passado se Civilização Brasileira, 2002.
efetuam tanto pelo consciente colóquio do poeta
com os lugares-comuns da tradição – por meio PAZ, Octávio. Os Filhos do Barro: Do
de paródia, citações, pastiche, alusões, etc. – Romantismo à Vanguarda. Trad. Olga Savary.
quanto também de forma inconsciente, sem que Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
o escritor tenha a intenção de manter, com os PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da
tópoi do patrimônio lírico, um voluntário Escrivaninha. São Paulo: Companhia das
diálogo. Desse modo, o poeta, pensando Letras, 1990.
expressar algo proveniente de sua própria
elaboração pessoal, acabaria esbarrando num PIRES, Donizeti Antônio. “Lugares-Comuns da
lugar-comum já consagrado pela tradição Lírica Ontem e Hoje”. In: Linguagem –
literária, por estar, esse lugar-comum, já Estudos e Pesquisas, Catalão, vols. 10-11 –
sedimentado e cristalizado na mentalidade 2007.
cultural a qual pertence o artista QUEVEDO, Rafael. “Isto Não Passa, Isto Não
contemporâneo. Esse fenômeno se explicaria Basta: A Tópica da Sintomatologia Amorosa
pelo fato de que os tópoi seriam “formulações em Cantos para Soraya de Neide Archanjo”. In:
para um motivo que mantém com a experiência Revista Araticum, v. 18, nº 2, 2018.
humana uma íntima e universal relação”
(QUEVEDO, 2014, p. 07). É, pois, no sentido _________. “Lírica Contemporânea e Tradição
apresentado, que consideramos a Poética: Topoi Clássicos em Poemas de Érico
Toposforschung como um interessante método Nogueira, Fabrício Marques e Paulo Henriques
de investigação analítico no estudo da poesia Britto”. In: Caligrama. Belo Horizonte, v.22,
contemporânea e sua relação com os lugares- n.1, p.109-124, 2017.
comuns cristalizados pelo patrimônio do _________. “O Lugar da Investigação dos
tesouro lírico, auxiliando, desse modo, na Topoi na Lírica Contemporânea de Língua
compreensão mais judiciosa em torno dos Portuguesa: Considerações Metodológicas.” In:
liames da contemporaneidade para com a Anais do III Colóquio Internacional de
tradição. Estudos Linguísticos e Literários, 2014,
Referências Maringá.
SODRÉ, Paulo Roberto; QUEVEDO, Rafael
ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar- Campos. “Vestígios do Topos do Panegírico na
Comum: Alguns Temas de Horário e Sua Poesia de Geraldo Carneiro”. In: Estudos de
Presença em Português. 1ª ed. São Paulo: Literatura Brasileira Contemporânea. UnB,
Editora da Universidade de São Paulo, 2015. p. 289-304, 2016.
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria
da Literatura. Vol. I. 8ª ed. Coimbra:
********
Almedina, 2006.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europeia
e Idade Média Latina. Tradução de Teodoro
Cabral (com colaboração de Paulo Rónai). 3ª
ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2013.
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Este artigo pretende investigar aspectos depoimento, Orides reflete sobre isso ao dizer
da obra da poeta paulista Orides Fontela em se que: “Esta posição existencial básica de meus
tratando das relações que seus poemas estabelecem poemas já é filosófica, isto é, seria possível
com a ideia do inefável e do silêncio. Investiga-se desenvolvê-la em filosofia, e daí veio meu
aqui a poesia da autora como um lugar de lucidez e interesse pela filosofia propriamente dita.”
de uma tentativa de equilíbrio muitas vezes instável (FONTELA, 2019, p.36).
e incerto entre o estar aqui e o intento de descortinar “Posição existencial” pode ter significados
o que existe para além do humano, região árida e múltiplos, sendo o sentido original concernente
sumariamente impiedosa. Como uma tentativa de apenas à própria poeta, porém dentro dos limites
solução para tal impasse Orides estabelece um deste texto pensamos esta posição como uma
sistema de símbolos fechados e reiterativos, os intensa busca por devassar os limites do(s)
quais trabalha com extrema atenção. Com relação mundo(s): o que habitamos e o que nos transcende.
a isso Alcides Villaça expõe que “o silêncio de E é na poesia que Orides encontra um meio
Orides requalifica alguns símbolos essenciais numa propício para a tentativa de apreensão da
economia estoica, quase desumana” (1996, p.1). A realidade, no mesmo ensaio supracitado ela
partir de tal perspectiva escolhemos para esta relaciona a arte poética ao mito e ao logos.
análise, dentre todos os símbolos orideanos, a Sabemos que desde o nascimento da filosofia
imagem do branco, signo que tal como o silêncio houve uma progressiva preponderância do
permeia, na obra da poeta, o mundo dito originário logos sobre a interpretação mitológica, além da
e com ele se confunde. Finalmente, além de ideia de que o mundo todo poderia ser explicado
contarmos com os próprios textos e depoimentos através da linguagem. Não obstante,
da autora, tal qual o seu conhecido “Sobre poesia e A poesia, como o mito, também pensa e
filosofia- um depoimento”, nos basearemos nos interpreta o ser, só que não é pensamento
aportes teóricos de diversos pensadores a exemplo puro, lúcido. Acolhe o irracional, o sonho,
de George Steiner (1988), Santiago Kovadloff inventa e inaugura os campos do real, canta.
(2003), Susan Sontag (2015), Jean Chevalier Pode ser lúcida, se pode pensar – é um logos
(2000), Alcides Villaça (1996) e outros. – mas não se restringe a isso. Não importa:
poesia não é loucura nem ficção, mas sim um
Palavras-chave: Inefável; Silêncio; Orides instrumento altamente válido para apreender
Fontela; Lírica Brasileira o real – ou pelo menos meu ideal de poesia é
isso. (FONTELA, 2019, p.35)
1 Introdução
Esse lugar do poema faz ressoar de certa
Orides Fontela (1940-1998) costumava maneira a crise geral da linguagem que a partir
pensar que havia muito de poesia na filosofia, de meados século XIX se abatera com mais
para a poeta por exemplo a obra do filósofo força sobre a mentalidade ocidental, mas que
alemão Martin Heidegger poderia ser lida como havia iniciado séculos antes. George Steiner,
poesia, por outro lado também acreditava que a em seu livro Linguagem e silêncio: ensaios
sua produção poética continha muito de sobre a crise da palavra (1988), reflete acerca
formulação filosófica, como ela própria afirma de uma espécie de encolhimento do campo
no texto Sobre poesia e filosofia- um verbal que se dá a partir do século XVII com a
78
Mestrando em Letras pelas UFMA, sob orientação do
Prof. Dr. Rafael Campos Quevedo.
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 149
concorrência crescente de outras linguagens como visión y revelación, como un símbolo tras
universalizantes a exemplo da matemática e da el cual late la verdad. Al poeta se le reserva una
música, tal processo faz com que o alcance e a vez más el importante papel de intermediario
configuração da linguagem verbal sejam entre el hombre y la divinidad a través de una
palabra que oculta el misterio sagrado y se
repensados: “é no curso do século XVII que
convierte en exponente de la infinitud divina79.
significativas áreas da verdade, da realidade e (DOMÍNGUEZ, 2013, p.322)
da ação afastam-se da esfera da manifestação
verbal”.(STEINER, 1998,p.32) e ainda: Ao mesmo tempo que a noção do poeta
como vate sobrevive, ela passa pelo crivo do
até o século XVII, a esfera da linguagem
uma série de processos que o tensionam o lugar
abarcava quase a totalidade da experiência e
da realidade; hoje compreende um domínio do poeta. Como exemplo temos o esvaziamento
mais estreito. Não mais articula - ou lhe são da transcendência, como nos diria Hugo
pertinentes - todas as principais modalidades Friedrich com a ideia de “idealidade vazia” ao
de ação, raciocínio e sensibilidade. falar de Baudelaire: “A meta da ascensão não só
(STEINER, 1988, p.43) está distante, como vazia, uma idealidade sem
conteúdo. Esta é um simples polo de tensão,
Esta crise foi sentida pelo mundo artístico,
hiperbolicamente ambicionado, mas jamais
Steiner expõe o caso das tentativas modernas de
atingido” (FRIEDRICH,1978, p.48)
inaugurar uma nova sensibilidade e de se
Também é pertinente falar neste ponto
libertar de antigas formas e retóricas que não
constantes crises pelas quais passa a arte
compraziam a consciência da linguagem que
literária, que, como nos diz Marcos Siscar, é um
despontava. Para exemplificar esse processo, o
sintoma da estética moderna: “A meu ver, o
teórico traz à tona personagens capitais para a
sentimento de crise deve ser reconhecido como
literatura do início do século XX como os
um traço característico, da natureza ética, da
poetas Rimbaud, Rilke, Mallarmé. Ademais
constituição do discurso literário moderno.”
surrealistas, que tentaram devassar os avessos
(SISCAR, 2010, p.32)
da expressão, encontrar-lhe os ecos e
Para Octavio Paz, por sua vez, toda a crise é
principalmente trazendo também questões
afinal uma crise, e crítica, da linguagem. A poesia,
como o hermetismo e o inconsciente. Para
portanto, que tem a linguagem como cerne e
Richard Sheppard:
material se alimenta desses tensionamentos na
Muitos escritores passam por um período em época moderna. Tal tendência ecoa, de certa
que parece ter se afastado do plano da forma, na produção contemporânea, na qual se
consciência uma dimensão essencial, uma insere Orides Fontela.
energia vital, em que a superfície da Veremos mais adiante que Orides Fontela
linguagem deixou de ser luminosa e se tornou
opaca. E essa experiência se torna mais
pode ser um exemplo disso, ainda que em sua
familiar à medida que nos aproximamos da poesia não sejam corriqueiros questionamentos
época moderna. (SHEPPARD, 1989, p.263) diretos e explícitos sobre a insuficiência da
linguagem para compreender a vastidão que a
Ainda sobre o tema fala Antonio Garrido ultrapassa. Aventamos, portanto, a hipótese de
Domínguez no artigo “Lo inefable o la que ela guarda tais questões atrás de um sistema
experiencia del límite” (2013). O pesquisador de símbolos, os quais trabalha num processo de
espanhol analisa de forma sucinta as ideias que tensionamento extremamente lúcido.
se coadunam acerca do tema do inefável e expõe
que muito se discutiu o papel da poesia para 2 Orides Fontela: O branco e o
tentar abarcar conceitos que a linguagem inefável
comum deixaria escapar. Fala por exemplo da Aquele que se debruçar sobre a obra poética
ideia romântica do poeta como visionário e de da paulista Orides Fontela depreenderá, entre
como, guardadas as devidas diferenças, tal outras nuances, a presença um impulso ao mais
noção ressoa no século XX: alto permeado de uma intensa consciência sobre
En él la palabra poética continuó interpretándose a dificuldade de tal processo.
79Nele a palavra poética continuou se interpretando como divindade através de uma palavra que oculta o mistério
visão e revelação, como símbolo depois do qual pulsa a sagrado e se converte em expoente da infinitude divina.
verdade. Ao poeta se lhe reserva uma vez mais o (DOMÍNGUEZ, 2013, p.322, tradução nossa)
importante papel de intermediário entre o homem e a
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 150
que le confiere un valor ideal, asintótico 80 . sabor da exploração, pelo contrário, “introverte-
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 231) se”. Asséptico, o branco não apresenta destino.
O branco, como nos deixa entrever a citação Resta-nos no fim do poema uma imagem que se
acima, pode relacionar-se tanto à ausência como desdobra sobre si mesma, como a espiral do
à totalidade e detém um caráter de absoluto que poema anterior.
não passa insuspeito a Orides Fontela. No Porém, dentro da obra da poeta há um
poema, a primeira estrofe é composta de três momento de guinada, a partir dele o ponto de
versos constituídos de um único substantivo vista poético tende a voltar-se mais para o real,
cada. São três pontos chaves para modificando a tensa busca pelo transcendente.
compreendermos a construção metafórica do Esse senso de realismo aflora com mais força
branco no poema. Liana é um tipo de cipó, em seus últimos livros, Rosácea (1986) e Teia
trepadeira; um liame, por sua vez, é qualquer (1996). A própria poeta, almeja a sua obra nesta
objeto que sirva para atar e por fim, a mais última fase menos abstrata, mais estendida à
reconhecível das imagens: a do linho, concretude do mundo:
entrelaçamento minucioso dos fios. Olhe, eu sinto que fechei um ciclo não no
Estas três imagens, em certo sentido, Trevo, e sim no fim de Alba. Até Alba, os
representam a contenção. Servem para cobrir, meus versos viviam pairando lá em cima,
prender, delimitar. Porém, relacionadas com o sublimes demais. Poesia sobre poesia...
branco atingem um maior nível de abstração, o Chegou um ponto em que eu mesma fiquei
que nos leva a indagar: o que conteria esse “pê da vida”. Cansei. Minha poesia estava
meio velha, e eu assumi isso. Estava me
espaço neutro, original e silencioso a não ser ele
repetindo. Agora faço uma poesia mais
próprio? Surge no poema a imagem da espiral, vivida, mais encarnada. Chega de coisas lá
o branco como um símbolo que se desdobra em cima. (FONTELA, 2019, p.48)
sobre si mesmo.
Os símbolos são retrabalhados nessa lógica,
ANTÁRTIDA como por exemplo a imagem do branco no
O campo branco (nenhum mapa) intenso.
poema “Toalha” do livro Teia:
Os passos consomem-se
o espaço introverte-se TOALHA
branco branco Pano branco.
Asséptico/ absoluto. Integralmente branco.
Norte nenhum (Material mas
noite nenhuma suspenso
-branco sobre na brancura).
o branco. (FONTELA, 2015, p.198) Branco
Que as formas nascem …. ah,
O poema acima pertencente ao livro Alba tão branco
(1983) e é outro que desenvolve a imagem do véu
branco. O título já nos dá a ideia desse território para receber o sangue
inóspito e inclemente, local onde o humano ainda de todas
tenta algum controle. Logo no primeiro verso as coisas. (FONTELA, 2015, p.378)
deixa-se assente a falta de caminhos, essa
O símbolo do branco, cuja extrema relação
indeterminação de rumos, “(nenhum mapa)”, que
com o silêncio primordial pudemos testemunhar
também significa a impossibilidade de dominar
nos outros poemas ganha os contornos do
esse espaço “intenso”. O fato de que apenas esse
concreto e cotidiano na imagem da toalha. Na
verso constitui a estrofe parece querer demonstrar
segunda estrofe faz-se a ressalva sobre a forma
o caráter de amplidão daquele espaço.
que apesar de “material” está suspensa na
A segunda estrofe reforça a ideia de que
brancura. O branco aqui estaria finalmente
estamos à mercê do absoluto desamparo desse
rendido a uma possibilidade de definição (“que
mundo de silêncio que o branco indica. O
as formas nascem”), por isso talvez finalmente
avanço destrói-se pela imobilidade (“os passos
aberto ao humano. Como um sudário recebendo
consomem-se”) e o espaço não se expande ao
80 Como sua cor contrária, o preto, o branco pode situar-se assim ora ao princípio ora ao final da vida diurna e do
em dois extremos da gama cromática. Absoluto e não mundo manifestado, o que lhe confere um valor ideal,
tendo outras variações que as que vão da matidez ao brilho, assintótico. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p.
significa ora a ausência ora a soma das cores. Se coloca 231, tradução nossa)
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 152
o sofrimento (sangue) de todas as coisas, vê-se Só que este “estar aqui” é, também, estar “a
uma mudança na imagem do branco através do um passo” – de meu espírito, do pássaro, de
símbolo nada ascético da toalha. Esta recebe o Deus – e este um passo é o “impossível” com
sangue, que assume a forma do percalço, do que que luto. (FONTELA, 2019, p. 36)
se perde na lida difícil com o ser. É este impossível, que não economiza o
Ainda que digamos que em sua última fase a sangue do eu-lírico dos poemas da autora, que faz
poesia de Orides Fontela está mais aberta ao com que no fim de sua produção sua poética volte
concreto, devemos ter em mente, porém, que o os olhos à concretude das coisas. Orides Fontela
real nunca esteve ausente. Pelo contrário o lado habita um lugar de trânsito entre dois pesos: o real
humano, vertedouro de sangue, alvo da imperiosa e aquilo que o ultrapassa, o inefável.
falta de mercê do essencial, sempre se desvelou. Uma alargada e lúcida consciência não
O que acontece para o fim é tão somente uma permite que a crueza e a violência de ambos os
espécie de abertura maior para o concreto. espaços se diluam ou se escondam atrás das
3 Considerações finais imagens poéticas. Pelo contrário, o hermético
sistema de símbolos orideanos longe de
Poeta severa em seu projeto lucidez, Orides escamotear a tensão, evidencia-a. O branco é
Fontela parece apresentar ao leitor um jogo de apenas um dos símbolos cultivados com uma
forças que tentam se equilibrar, de um lado depuração aparentemente controlada, mas que
estão o transcendente e o inefável, do outro a ainda assim deixa entrever as feridas e o sangue
força perscrutadora da linguagem. Ao mesmo de tão árduo comprometimento.
tempo insuficiente para os intentos de expressão
e carregada de acúmulo histórico, a linguagem, Referências
como nos diz Susan Sontag, produz um “duplo
descontentamento”: “Faltam-nos palavras e CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain.
dispomos de palavras em demasia” (SONTAG, Diccionario de los símbolos. Traducción:
2015, p.31) Manuel Silvar, Arturo Rodríguez. Barcelona:
Orides, ciente dos tensionamentos da Heder, 2000.
linguagem poética e possuindo-a como única DOMÍNGUEZ, Antonio Garrido. (2013). Lo
arma, portanto, encontra um caminho para tal inefable o la experiencia del límite. Revista
dilema: propõe-se a trabalhar no espaço contido Signa, 22, p. 317-331.
de um sistema de símbolos que são muitas vezes
reiterativos, aparecendo e reaparecendo durante
FONTELA, Orides. Entrevista do mês.
toda a sua obra. Sobre tal aspecto, diz o crítico
[Entrevista concedida a] Augusto Massi, José
Alcides Villaça:
Maria Cançado e Flávio Quintiliano. In:
Lição prevenida da morte, o silêncio de FONTELA, Orides. Toda palavra é
Orides requalifica alguns símbolos essenciais crueldade. Organizado por Nathan Matos. Belo
numa economia estoica, quase desumana, de Horizonte, MG: Moinhos, 2019
quem se determinou um tão lacônico quanto
fundo testemunho. Suas meditadas sínteses _____. Nas trilhas do trevo In: FONTELA,
poéticas surgem como provocações, nestes Orides. Toda palavra é crueldade. Organizado
dias em que a reflexão ou se aparta da por Nathan Matos. Belo Horizonte, MG:
sensibilidade ou sucumbe alegremente ao Moinhos, 2019
conforto das reações automatizadas.
(VILLAÇA, 1996, p.1) _____. Poesia Completa. Organização de Luis
Dolhnikoff. São Paulo: Hedra, 2015.
Entretanto, desde o primeiro livro a ampla
consciência do fazer poético conectada à _____. Uma conversa com Orides Fontela.
lucidez e à contenção do seu símbolo esbarra na [Entrevista concedida a] Michel Riaudel In:
percepção também muito clara de que o real é FONTELA, Orides. Toda palavra é
inescapável e que, portanto, não consegue crueldade. Organizado por Nathan Matos. Belo
suportar de forma permanente a força inumana Horizonte, MG: Moinhos, 2019
do essencial: KOVADLOFF, Santiago. O silêncio
Ora, uma intuição básica de minha poesia é o primordial. Trad. Eric Nepomuceno e Luís
“estar aqui” - autodescoberta e descoberta de Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio,
tudo, problematizando tudo ao mesmo tempo. 2003
O INEFÁVEL E O SILÊNCIO INUMANO EM ORIDES FONTELA 153
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
82 85
O marco acordado como sendo o do advento da Era do Onde se localizavam Meca e Medina.
Islã é a fuga - hegira - do profeta de Meca para Medina, 86 A palavra “beduíno” vem de uma raiz árabe que carrega
em 622, por ocasião do desagrado do povo de Meca a o significado de “início”, sendo os beduínos considerados
Mohammad e seus ensinamentos. Portanto, o período pré- os principais antepassados dos árabes.
87 Significa “cortada ao meio”. É uma clara referência à
islâmico compreende os séculos anteriores ao século VII.
83 Chamada pelo Império Romano de Arabia Felix – disposição dos versos.
“Arábia Feliz”. 88 Essa palavra árabe pode ser traduzida como “saltadores”.
84 Do latim e grego Palmyra, que quer dizer “palmeira”. A Eram desgarrados que viviam principalmente de saques e
cidade teria recebido este nome por pertencer a um grande furtos.
oásis rodeado de palmeiras, no meio do deserto.
Localizava-se no deserto de Tadmor.
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 156
وأنا العاصمون إذا أطعنا عصينا وأنا العازمون إذا Esse excerto do estudioso é especialmente
كدرا وطينا
ً صفوا ويشرب غيرنا
ً ونشرب إن وردنا الماء aplicável às poetas. À mulher, era esperado o
luto passional pelo marido/irmão/pai morto em
Transliterando-se, seria confronto, juntamente com discursos de grande
Wa 'ana al-'aaSumuun 'idza 'aTa'ana Wa elogio a este. Dois grandes exemplos do que
'ana al-'aazimuun 'idza 'aSyna elucidamos são as poesias de Al-Khansa’ e Al-
Khirniq.
Wa nashrab 'in wardina al-ma' Sufuuan
Wa yashrab ghirna kadran waTyna A poeta Al-Khansa’ viveu entre os séculos
VI e VII, sendo contemporânea ao surgimento
Numa tradução livre, seria algo como do Islã, religião para a qual se convertera
Somos benfeitores se obedecidos e posteriormente. Seu nome verdadeiro era
severos se desobedecidos Tamadur bint Amr bin Al-Harith Al-Salmiyah,
sendo “Al-Khansa’” – “nariz empinado” – uma
junto à fonte, bebemos água pura e eles,
ao contrário, a turva e barrenta
alcunha recebida por uma característica peculiar
de sua feição: o nariz avantajado e empinado.
Tem-se, pois, dois versos - quatro Tornou-se uma das poetisas pré-islâmicas
hemistíquios - com rima em na, presente no mais famosas e escreveu especialmente após a
primeiro e segundo hemistíquio do primeiro morte de seus dois irmãos, revelando sua dor e
verso e no segundo hemistíquio do segundo tristeza, bem como seu orgulho e louvor de
verso. ambos. Nabigha al-Dhubyani, outro poeta pré-
4 As poetas do Período da Jahiliya islâmico, disse sobre ela: “Al-Khansa é a mais
sensível dos gênios e da humanidade”.
De acordo com Mussa (2003), “a Em 612, teria perdido seu irmão Muawiyah
condição feminina na Idade da Ignorância foi durante um conflito tribal. Desolada, convenceu
superior à da era que estava por vir com o advento seu irmão mais novo – Sakhran – a vingar a
do Islã” (p. 168). Ainda de acordo com o autor, os morte de Muawiyah. Sakhran conseguiu matar
direitos eram praticamente os mesmos e os algozes de seu irmão, mas feriu-se
compartilhavam as mais diversas atividades com gravemente e por isso veio a padecer em 615.
os homens, como no comércio – muitas eram ricas Mais uma vez desesperada, compõe uma elegia
proprietárias de caravanas – e na guerra, cuidando a seu irmão mais novo:
dos feridos. Foram astrólogas, profetizas e, acima
ً صخراَ َمس
ِ ع الش ُ يُذَ ِ ِّك ُرني
ُ طلو ب ُ َوأَذ ُك ُرهُ ِل ُك ِِّل
ِ غرو
de tudo, poetas. Podiam escolher seus maridos e
َمس
ِ ش
tinham o direito ao divórcio.
Alberto Mussa (2003) ainda nos explica َ َولَوال ك
َثرة ُ الباكينَ َحولي ُعلى إِخوات ِھم لَقَتَلت
َ
que a muru’a “virilidade” não estava associada نَفسي
ao masculino, ou seja, era exigido tanto ao َو ما يَبكونَ مِ ث َل أَخي َفس
َ الن َ ُ َولَكِن
ع ِّزي
homem quanto à mulher, consistindo em عنه بِالتَأ َسِّي
َ
características como: lealdade, honra, coragem
Transliterando-se, seria:
e generosidade. Em contrapartida, os homens
tinham apreço por cultivar hábitos como o de Yudzakruni Talaw'a ash-shamsi Sakhran
cuidado com a aparência e o de adornar o rosto. Wa adzkuruhu likuli ghurwb shamsi
Essa vaidade facial hoje considerada um traço Wa lawla kathra al-bakyn Hawly
do universo feminino era bem quista por ambos. 'Ala 'ikhuatihim laqataltu nafsi
Inclusive, da mesma raiz de muru’a forma-se
Wa ma yabkun mthla 'akhy
‘imra’a “mulher”. Essa raiz carrega o Walakin 'azy an-nafs 'anhu bi at-ta'asi
significado de “ser saudável”.
Mussa (2003) ainda afirma que Em uma tradução livre, seria:
Os poemas eram de fato a garantia da A aurora me recorda o Sahran
imortalidade do falecido. As noções sobre a E me recordo dele a cada ocaso/
eternidade da alma e vida além da morte eram E se não fossem tantos chorosos
um tanto vagas. Na verdade, sendo uma por seus irmãos em meu entorno, eu me
civilização da palavra, os árabes só mataria/
consideravam eterno aquele cujo nome Eles não choram por alguém como meu irmão
permanecia presente entre os poemas Mas, ainda assim, me consolo nesse choro
recitados pela tribo (p. 171)
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 157
Há relatos folclóricos que dizem que a poeta La yaba'adan qawmy al-ladzina hum
teria ficado cega de tanto derramar lágrimas Sumo al-'uda wa aafa tuljuzri
pelo irmão morto. An-nazilwn bi kul mu'atarakin Wa aT-
Observa-se a mesma forma do poema de Taiabwn ma'aakida al-'azri
Amr Kulthum: poema de rima única com dois
hemistíquios por verso, estando a rima no Traduzindo:
segundo hemistíquio. Também se utilizou de E disse Al-Khirniq sofrendo por Bishar e os
vocabulário culto e de prosódia fluída, que foram mortos com ele no Dia do Qulab
mostrando domínio da língua culta manifesta Temo testemunhar a chacina do meu povo
artisticamente na poesia. Assim, vemos que Al- que é veneno dos inimigos e flagelo das
Kharniq era grande conhecedora da métrica vítimas/
que nas batalhas desce de sua montaria
poética da época e dotada de vasta cultura, a
e combate sobre os próprios pés e cujos
ponto de dominar a arte da poesia como os homens são castos no laço de suas tangas
muitos poetas homens de sua cultura. Contudo,
para além da forma, a temática merece especial Vemos, pois, o pranto da poetisa pela morte
atenção: o choro de uma irmã pelo irmão morto, dos seus. Lamúria feita ao mesmo tempo em
sendo este superior a qualquer homem, aos que enaltece os falecidos enumerando suas
olhos da irmã. virtudes. Sua devoção chega a tal ponto que
A poeta ao qual destacaremos, por fim, é Al- afirma:
Khirniq Bint Badr, também dos séculos VI e هَذا ثَنائي ما بَقَيتُ لَ ُھم فَإِذا َهلَكتُ أَ َج َّنني
VII. Era parente de dois grandes nomes da قَبري
poesia pré-islâmica: irmã do grande poeta Hadza thnaa'i ma baqaytu lahum Fa'idza
Tarafa Bin Al-’Abd e sobrinha do poeta al- halaktu 'ajanany qabry
Mutalammis. Este é o elogio que deixo a eles
Não era feliz no casamento, tendo feito uma e quando chegar minha hora o farei do meu
queixa sobre isso com seu irmão. Tarafa fez, túmulo
E, para completar, compara o martírio do seu
pois, uma poesia satírica sobre o homem
marido e seus companheiros ao sacrifício de
acusando -o, de maltratar sua irmã. O marido, animais aos deuses:
por sua vez, caluniou Tarafa ao rei de Hira, que,
assim, encomendou sua morte ao governador do القَوا15 َسوقَ َ ُغَداةَ ق
الب َحتفَ ُھ ُم
Bahrein. Dedicou, pois, poemas fúnebres a seu ُ تير ي
ُساق ِللعَتر ِ َالع16
irmão, na mesma métrica mencionada. Ghada qulaab Hatfahum Sawq al-'atyr
A poeta também compôs elegias pela morte yusaaq lil'atyr li'aqawi
de seu marido e de seu filho Bishr Bin 'Amr Bin Reajo ao martírio deles no dia do Qulab
como à imolação aos deuses
Mirtid, ambos fatalmente feridos – juntamente
com outros companheiros – na batalha épica de Temos exemplificado, assim, o que
Yowm Qulab, que teria envolvido várias tribos supracitamos quanto ao teor da poesia
no Península Arábica. feminina, neste perfeito arquétipo que é Al-
O trecho a seguir exemplifica o que Khirniq, que também dominava a métrica e o
mencionamos: uso culto da língua.
ش ًرا و َمن قُتِ َل معه في يوم قالب
ِّ ِوقالت الخرنق ترثي ب 5 Considerações Finais
زر ال َيب َعدَن قَومي الَّذينَ ُه ُم
ِ س ُّم العُدا ِة َوآفَةُ ال ُج
ُ A poesia árabe pré-islâmica é a mais
preciosa fonte de conhecimento da Península
91
ِ ُ َمعاقِدَ األ90 َطيَّبون
زر َ َوال 11 ِب ُك َّل ُمعت ََرك89 َالنازلون
ِ Arábica daquele tempo. Saboreamos as poéticas
narrativas sobre a vida beduína nos desertos:
Transliterando-se: seus costumes, temores e paixões.
89 91
A raiz dessa palavra relaciona-se ao sentido de descer. Plural de Izaar, é uma vestimenta masculina tradicional
Aqueles que descem, nesse caso, significa descer do cavalo originalmente ligada aos Hadhrami - povo do Hadhramaut,
e lutar sobre os próprios pés). no leste do Yemen - mas já conhecida e usada em outros
90 países, especialmente depois de diáspora desse povo. É um
Aqueles que são perfume significa, neste caso, pano único usado na parte inferior do corpo e é usada tanto
pureza/castidade em casa, quanto em público.
A POESIA ÁRABE FEMININA NO PERÍODO DA JAHILIA: TRADUÇÃO COMENTADA DE VERSOS DE AL-KHANSA’ E AL- KHIRNIQ 158
********
SIMPÓSIO 5
Poesia Afro-Brasileira: ancestralidade, luta e resistência
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
92
Dutorando em Letras • UERJ/CAPES • O presente trabalho foi realizado com apoio da
manotsva@gmail.com Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 161
da linguagem e, bem como o movimento Dessa forma, nos é lícito relacionar a arte
europeu, insistindo na elaboração do sentido simbolista ao período em que se manifesta
subjetivo, sem a necessidade de se buscar o como uma resposta ao cientificismo e ao
nexo lógico na imaginação e a literalidade das realismo impessoal na literatura. Havia, em
palavras (MURICI, 1995, p.35). meados do século XIX, tal pulsão em reunir o
Com efeito, não agradou ao público leitor Eu aos aspectos cósmicos, ou espiritualistas,
brasileiro acostumado à estética realista e para demonstrar uma contradição à autoridade
parnasiana na literatura. A poética de Cruz e referendada pela Ciência. A proposição dos
Sousa instauraria o “verbo novo” (Ibid., p.35), simbolistas foi a de reintroduzir o sensível na
pois criadora de espaços artificiais – novos mecânica das ideias que impunha sua força
lugares da sensibilidade e da experiência – sobre o cotidiano humano, encontrando espaço
através da linguagem. De tom sinestésico, a fértil, para o desenvolvimento desta iniciativa,
poesia e a prosa cruz-e-sousiana operaram a na arte.
vasta utilização do cromatismo e da No entanto, a força revolucionária desse
musicalidade, assim como a idealização do movimento parece evanescer quando o
objeto, revolucionando, de fato, a escrita e trazemos para a realidade oitocentista brasileira.
tensionando a recepção da literatura há muito Segundo Bosi, os simbolistas brasileiros “não
baseadas no método objetivo. tiveram atrás de si uma história social diversa”
Contudo, a crítica brasileira, sobretudo a dos seus antecessores parnasianos e realistas.
finissecular, por vezes, se refere ao Simbolismo Por isso, o autor pergunta-se: “o movimento
como “produto de importação” (BOSI, 2013, teria nascido por motivos internos, ou foi obra
p.284), visto que tal estética não refletiria o de imitação direta de modelos franceses?”
momento da vida nacional às voltas com (Ibid., p.284), ao passo que responde,
questões objetivas pertinentes à Primeira oferecendo-nos análises estilísticas do
República. Assim, nos será interessante movimento em geral, que o Simbolismo
investigar a manifestação do Simbolismo no brasileiro seria “o sucedâneo fatal do
Brasil através do poeta Cruz e Sousa e a Parnasianismo”, visto que, como técnica, teriam
referencialidade de sua obra, pois, é sabido que um grau de diferença muito pequeno, “naquele,
sua força motriz tem como base o o culto a Forma; neste, a religião do Verbo”, e
inconformismo do poeta reconhecido graças à conclui: “O poeta, inserindo-se cada vez menos
sua biografia. na teia da vida social, faz do exercício da arte a
O presente artigo recai no ato de expressão sua única missão e, no limite, um sacerdócio. A
de Cruz e Sousa, especialmente em sua reflexão rigor, o caso brasileiro nada tem de excepcional
sobre o tema no livro de prosa poética intitulado [ilustrando] uma tendência fomalizante” (Ibid.,
Evocações (1898), e sua relação com o que p.285) já previsível pela influência dos
podemos chamar de espírito do tempo, tendo em decadentistas franceses.
vista a potência de suas escolhas estéticas Contudo, é mister evidenciar no panorama
fundamentadas em sua posição contra o do Simbolismo brasileiro o caso de João da
autoritarismo. Cruz e Sousa, poeta fundador do movimento no
país. Em sua obra, Cruz e Sousa busca
2 O caso de João da Cruz e Sousa, poeta
investigar as possibilidades transcendentais da
fundador
experiência humana através do alargamento do
Como relata-nos Alfredo Bosi, o século XIX sentido da palavra. Ao eleger a dor como
foi fortemente marcado por correntes analíticas inspiração possível para a transfiguração do
do pensamento: homem, seu ato de escrita se torna um alto
Visto à luz da cultura europeia, o Simbolismo exemplo da poesia existencial oitocentista
reage às correntes analíticas dos meados do (Ibid., 295).
século, assim como o Romantismo reagira a Em vista disso, a temática eleita como principal
Ilustração em 89. Ambos os movimentos [...] é a via-crúcis do ser. O sujeito lírico revela-nos a
recusam-se a limitar a arte ao objeto, à técnica consciência de que apesar de uma vida pautada pela
de produzi-lo, a seu aspecto palpável; ambos, experiência dolorosa, que desregraria os sentidos
enfim, esperam ir além do empírico e tocar, com levando-o próximo à loucura, haveria matéria para
a sonda da poesia, um fundo comum que a expressão em poesia. A forma do poema (o
susteria os fenômenos, chama-se Natureza, soneto) recolheria toda a sensação dispersa
Absoluto, Deus ou Nada (BOSI, 2013, p.279).
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 162
propondo, em meio às turbulentas nevroses, a da vida social” por seu ato de expressão.
cristalização do sentimento. Assim lemos o poema Embora saibamos que, formalmente, o
Crê! publicado, postumamente, em Últimos Simbolismo em Cruz e Sousa demonstre-se
sonetos (1905): poroso à forma parnasiana e concordemos que
Vê como a Dor te transcendentaliza!
são inegáveis as influências estrangeiras, a
Mas do fundo da Dor crê nobremente. inauguração do discurso simbolista no Brasil
Transfigura o teu ser na força crente enquanto atitude de espírito, pelo poeta, deve
Que tudo torna belo e diviniza. ser sublinhada como uma iniciativa relacionada
Que sejas a Crença uma celeste brisa ao período histórico. O Simbolismo demonstra
Inflando as velas dos batéis do Oriente uma reação da subjetividade contra o
Do teu Sonho supremo, onipotente, autoritarismo em suas mais variadas nuances e
Que nos astros do céu se cristaliza. a esperança por tempos democráticos. Por isso
Tua alma e coração fiquem mais graves, inserido, inquestionavelmente, na vida
Iluminados por caminhos suaves,
nacional.
Na doçura imortal sorrindo e crendo...
Oh! Crê! Toda a alma humana necessita 3 Poeta-artista – indivíduo
De uma Esfera de cânticos, bendita,
Para andar crendo e para andar gemendo! A abolição da escravatura no Brasil deu-se
(CRUZ E SOUSA, 1995, p.195). em 1888. Dois anos depois Cruz e Sousa
mudava-se para o Rio de Janeiro. Filho de
Percebemos que é na dor existencial Guilherme, mestre pedreiro escravo, e de
conjugada à crença na arte que o sujeito lírico Carolina Eva da Conceição, escrava liberta por
transcendentaliza-se durante o caminho que lhe ocasião de seu casamento, foi educado por
é hostil. Em toda a obra cruz-e-souziana Clarinda Fagundes de Sousa e seu marido, o
perceberemos tal potência da dor como pathos Marechal Guilherme Xavier de Sousa, que
transfigurador, algo intimamente relacionado à havia herdado seus pais. Nascido em Desterro
enorme influência que a religião e a filosofia (atual Florianópolis), estabelecia-se na capital
tiveram na obra do poeta, assim como no desejoso de inserir-se na vida literária da cidade
Simbolismo em geral, e ao alargamento do que no momento, como vimos, era pautada pelo
sentido da palavra. Parnasianismo e pelo Realismo.
Dessa maneira, procuramos salientar a Sua obra compõe-se de fases. Inicialmente
experiência subjetiva na gênese da poesia de eivada no sentimento abolicionista, porém sem
Cruz e Sousa. De fato, o Simbolismo nos se distanciar da característica sinestésica,
apresenta a poética do Eu como premissa desvela-se no flerte a forma realista e
própria ao movimento. Se expressar é a aposta parnasiana, até encontrar-se como
contra o mecanicismo autoritário imposto pelo essencialmente simbolista com a publicação de
período e Cruz e Sousa irá cantar suas sensações seus dois primeiros livros, Missal (prosa) e
e sentimentos. Broquéis (poesia).
Assim, podemos borrar a tese que se refere Em tal período de efervescência política –
ao Simbolismo brasileiro como um “produto de pós-abolição e nascente República – João da
importação” trazendo, além dos aspectos Cruz e Sousa chega ao Rio, em situação
formais do movimento apontados por Alfredo financeira complicada e com difícil acesso a
Bosi, as razões para a sua manifestação oportunidades. Mas, escreve. Segue publicando
primordial em Cruz e Sousa. Para Bosi, seus textos e poemas em jornais de relativa
o fenômeno histórico do insulamento simbolista popularidade em uma cidade pouco receptiva a
no fim do século XIX não deve causar novidades. Passa a ganhar maior atenção após a
estranheza. O movimento enquanto atitude de publicação de seus primeiros livros, em 1893,
espírito, passava ao largo dos maiores todavia vive em situação de penúria.
problemas da vida nacional, ao passo que a Ao dedicar-se intensivamente a sua arte, vai
literatura realista-parnasiana acompanhou
fazendo-se conhecer como indivíduo em um
fielmente os modos de pensar, primeiro
progressistas, depois acadêmicos, das gerações
ambiente oficialmente intolerante. Nas palavras
que fizeram e viveram a Primeira República do ensaísta Alexei Bueno, a sua obra é “o maior
(BOSI, 2013, p.286, grifo nosso). exemplo de amor à arte já registrado na história
brasileira” (NETO, 2010, p.144), tal amor o
Ora, Cruz e Sousa sendo poeta e preto, no lapidador essencial do ofício do poeta, até a sua
Brasil de fins do século XIX, insere-se na “teia
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 163
93 “Os únicos mortais que merecem ser chamados de artistas 94Conceito articulado pelo autor para se referir à
são os criadores, aqueles que despertam as impressões importância do fator lúdico na constituição do ser humano.
intensas, desconhecidas e sublimes” (tradução nossa).
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 164
doloroso, dos “vergéis virgens” de sua terra para inconsciência meio-névoa, que te impulsiona
as “inóspitas, bárbaras terras do Desconhecido” para a Concepção; se assim tu és, por
que, nos parágrafos seguintes, se configurará gérmens inevitáveis, fatais, a tua Obra, ainda
como o espaço onírico: em gestação, atestará eloquentemente, mais
tarde, as inauditas manifestações do
Vieste de tua paragem feliz e meiga, – temperamento (CRUZ E SOUSA, 1995,
amplidão de bondade patriarcal, primitiva, – p.522).
mergulhar na onda nervosa do Sonho, que já
de longe, dos ermos rudes do teu lar, Tal habilidade do poeta em viver a arte
fascinava magnéticos fluidos, de reflete-se na poesia cruz-e-souziana em uma
imponderados mistérios, o teu belo ser relação análoga ao desvelamento dos enigmas.95
contemplativo e sensibilizado (Ibid., p.519). Um conhecimento indisponível aos demais faz-
se necessário e somente os iniciados no jogo
É evidente a intenção do poeta em se
poético original possuiriam tais capacidades.
distanciar dos movimentos literários vigentes à
Como visto acima, o poema atestará a
época levando-nos a crer que Cruz e Sousa, ao
veracidade da intenção do poeta.
se afirmar como poeta simbolista, ilustra o
Para Huizinga, o que “a linguagem poética
deslocamento como imperativo de sua natureza
faz é, essencialmente, jogar com as palavras.
e se coloca, de certa forma, longe dos demais,
[...] Nunca se perderam inteiramente as íntimas
construindo-se como indivíduo pela diferença.
relações entre a poesia e o enigma” (2019,
Para tal, o poeta não segue pelas vias
p.175-176). Considerando, portanto, a
habituais, mas pela “Via-Sacra da Arte”,
linguagem poética essencialmente lúdica e
evocando o modo ritualístico ao qual olhará
caracterizando-a como uma função essencial ao
para o seu ofício e que se manifestará por toda
espírito.
a sua obra. Munido de seu aparato sensível, o
Em Iniciado, Cruz e Sousa discursa sobre
lírico não será como os outros, viciados:
sua própria natureza lírica a qual não teria outro
“Chegas para a Via-Sacra da Arte a esta
caminho para expressão senão pelo ofício do
avalanche imensa de sensações e paixões
poeta, formatando um espaço onde concorda a
uivantes, roçando esta multidão insidiosa,
ação e a sensação e harmoniza a sua
confusa, dúbia, que de rastos, de rojo,
constituição como ser de espírito, sacrifício e
burburinha, farejando ansiosamente o Vício”
liberdade, ou seja, como indivíduo.
(Ibid., p.519).
Vejamos outro poema em que Cruz e Sousa
Huizinga afirma que “só aquele que é capaz
se afirma como único, por conseguinte, como
de falar a linguagem da arte recebe o título de
portador de subjetividade:
poeta. A linguagem artística difere da
linguagem vulgar pelo uso de termos, imagens Tu és louco da imortal loucura,
e de figuras especiais que nem todos serão O louco da loucura mais suprema.
capazes de compreender” (2019, p.174), A Terra é sempre a tua negra algema,
introduzindo a ideia, muito cara a Cruz e Sousa, Prende-te nela a extrema Desventura.
de que a arte seria evocada apenas por iniciados,
Mas essa mesma algema de amargura,
no caso, indivíduos que são, ou que conseguem Mas essa mesma Desventura extrema
ser admitidos no círculo fechado e que, por Faz que tu’alma suplicando gema
consequência disso, estão à margem da E rebente em estrelas de ternura.
normatização. Para o poeta catarinense, a
possibilidade de contato verdadeiro com a arte Tu és o Poeta, o grande Assinalado
será inata: Que povoas o mundo despovoado
De belezas eternas, pouco a pouco...
Não é, apenas, querer, não é poder, apenas –
é Ser! – E se tu sabes ser, se tu és, numa Na Natureza prodigiosa e rica
legitimidade flagrante, num enraizamento Toda a audácia dos nervos justifica
muito intenso de todo o teu organismo, Os teus espasmos imortais de louco!
vivendo a Arte e não a Arte vivendo em ti; se (CRUZ E SOUSA, 1995, p.201).
assim tu és, na profundidade real desse
esquisito e maravilhoso estado, meio Em O Assinalado, o soneto acima, publicado
95Heráclito, um dos pseudônimos de Cruz e Sousa, é decifrador de enigmas” (HUIZINGA, 2019, p.152).
conhecido como o filósofo obscuro. “A natureza e a vida Justamente como se considerara Cruz e Sousa.
são um griphos, um enigma, e ele próprio [Heráclito] é um
INICIAÇÃO AO OFÍCIO EM CRUZ E SOUSA 165
experiências literárias, pela referência realista NETO, Godofredo de Oliveira. Cruz e Sousa,
inspirada por Émile Zola e considera o soneto, o poeta alforriado. Rio de Janeiro: Garamond,
forma fixa, como a estrutura por excelência de 2010.
sua poesia, mas elege o Simbolismo como o
discurso de sua obra. Parece-nos clara a escolha
do poeta em se afirmar como indivíduo pelo seu ********
ato de expressão, pois se na Europa o
movimento surge como uma resposta ao
racionalismo exacerbado, no Brasil ele
demonstra uma reação contra o autoritarismo
intelectual.
Alfredo Bosi, em História concisa da
Literatura Brasileira, trata do movimento
simbolista em geral quando se refere ao seu
insulamento. Reserva um capítulo para
discorrer especificamente sobre a poesia cruz-e-
souziana, dando maior ênfase aos aspectos
formais, mas não há grande evidência a respeito
da potência do ato. Algo que está de acordo com
a proposta de seu livro, um estudo propriamente
literário. Em vista disso, foi-nos interessante
analisar a obra de Cruz e Sousa além da poesia
ao encontrarmos em sua prosa poética material
para larga interpretação da relação que o poeta
travava com ofício e vivência.
Portanto, acreditamos ser inquestionável o
fato da inauguração do Simbolismo no Brasil
ser possuída pelo espírito de seu tempo e
coerente com as questões nacionais. Embora
Cruz e Sousa não tenha instaurado o verso livre,
a relevância de sua obra recai, além dos
aspectos formais, na instauração de um novo
discurso.
Referências:
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: A partir da escrita de Carolina Antonio Candido (2002, p. 177), para quem “a
Maria de Jesus, o presente trabalho propõe uma organização da palavra comunica-se ao nosso
reflexão sobre o potencial questionador do texto espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em
literário em relação à memória e à construção seguida, a organizar o mundo”.
imagética da pessoa negra, principalmente ao
propor uma revisão de qualificações de cunho Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus;
negativo. Com ênfase nas estruturas poéticas do Negação; Poesia; Imagem; Memória.
texto de Carolina, sem deixar de lado sua prosa,
intentamos realizar uma leitura da negação 1 Introdução
empreendida pela autora em seus escritos, a O presente trabalho propõe uma breve
partir do viés da contestação e entendendo esse reflexão sobre a construção da memória da
movimento como uma espécie de agenciamento pessoa negra e do potencial de contestação e
(Deleuze e Guattari) de desconstrução e negação que pode ser empreendido pelo texto
reconstrução imagética da pessoa negra, literário nesse sentido a partir da leitura de
especialmente da mulher negra. O poder do não poemas de Carolina Maria de Jesus e da
em Carolina é analisado a partir de poemas contextualização com seus escritos diarísticos.
presentes em sua Antologia Pessoal (1996) e do Partimos da análise de poemas da autora
poema publicado no jornal Folha da Noite, em presentes em Antologia Pessoal (1996), sem
1958, considerando algumas passagens de perder de vista suas considerações expressas em
Quarto de Despejo (1960). No âmago da seu primeiro diário, a fim de compreender como
disputa de narrativas empreendida em nossos determinadas afirmações a respeito dos sujeitos
tempos, temos Carolina Maria de Jesus e sua periféricos são delineadas e a que ponto a autora
escrita que deixou sementes de nega estereótipos sobre a representação desses
questionamentos na e sobre a literatura e a próprios sujeitos e, em consequência, sobre si.
sociedade brasileira, as quais permanecem Assim, em um primeiro momento analisamos
dando frutos: como, a exemplo, o relançamento algumas afirmações de vozes de sujeitos líricos
de parte de sua obra e os movimentos de onde a desolação, a autoimagem de descarte e a
contestação do cânone literário que culminam pouca perspectiva sobre a vida se fazem
em publicações como a antologia Carolinas presentes para, posteriormente, observar como
(Bazar do Tempo, 2021). Esse é o contexto em a autora desenvolve sua poética também com
que este trabalho se insere, tentado dialogar com uma proposta de reescritura da imagem e da
os processos que fazem uma revisitação memória negativas reiteradamente ligadas à
questionadora da história através das memórias pessoa negra e ao sujeito periférico.
e imagens outrora silenciadas. A leitura é Memória também produz história. Em outros
desenvolvida a partir das reflexões de teóricos e termos, a memória socialmente construída é
filósofos como Grada Kilomba, Conceição atravessada por “todas as noções e imagens
Evaristo, Félix Guattari e Suely Rolnik e tomadas dos meios sociais de que fazemos parte”
96
Doutoranda em Literatura Comparada e Mestra em
Estudos Literários • suelencristina@id.uff.br •
Universidade Federal Fluminense - bolsista CAPES.
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 168
(HALBWACHS, 1990, p. 37) e pode definir e morou na extinta favela do Canindé e ao ocorrer
guiar padrões para a própria experiência social dos seu primeiro lançamento, teve a condição de
indivíduos e grupos, que podem se repetir de “favelada” (representando, assim, tudo aquilo
geração a geração. Seria, então, “a consciência que a sociedade da época gostaria de manter à
social virtual em uma determinada sociedade”, de distância) amplamente fixada a seu sobrenome
acordo com Viana (2006, p. 9). Provavelmente e à sua divulgação. A partir disso, muito do que
muitos de nós, ainda na juventude, ouvimos que fora produzido e veiculado sobre Carolina na
conhecimento é poder; mas, com o curso da vida sociedade e no âmbito acadêmico acabou
seguindo o fluxo de uma sociedade capitalista e do fazendo reforço à construção de uma história
cansaço, como afirma Byung-Chul Han (2017), única para a autora: a da escritora favelada
muitas vezes podemos não nos dar o tempo da imbuída no campo semântico da miséria, da
reflexão necessária ao entendimento de que os fome, da falta e da ausência; inclusive um tanto
atos de narrar, escrever, criar e projetar imagens afastada da “aura” da designação de escritora.
também têm o poder de criação de imaginário. Porém, a própria publicação de Quarto de
Entretanto, esses exercícios podem assumir uma Despejo já trazia elementos de uma recusa à
forma coercitiva. Temos notícia cotidiana - desde imagética que poderia ser criada sobre a autora
as representações que vemos na televisão, filmes, - o que é expressivamente mais abordado em
campanhas publicitárias, até em livros que lemos seu segundo livro publicado, Casa de
- da construção imagética negativa da pessoa Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961),
negra tornada memória. Uma memória colonial que não foi bem recebido pela crítica, e em
tão coletiva que se reproduz pelas vias da história outros textos seus.
até os nossos tempos.
2 Algumas afirmações na voz de sujeito lírico
Já no começo dos anos 20 do século XXI
somos testemunhas oculares de mudanças e/ou Entrando no universo da produção poética
quebras de paradigmas com relação à população da autora, em um dos poemas de sua Antologia
negra como um todo e, particularmente, no Pessoal, Carolina (1996, p. 98-100) desenha a
Brasil. Mesmo que talvez a contragosto ou imagem daquele que é “O infeliz”, conforme se
ainda movidas por um apelo direcionado ao expressa no título. Ao longo de todas as
lucro ou a um não prejuízo financeiro, as estrofes, que se estendem por três páginas, o
indústrias de entretenimento passam por um sujeito lírico reitera, sempre no primeiro verso:
momento de repensar as formas de “Vejam, tenho os cabelos grisalhos”. Como se
representação e representatividade da pessoa para nos lembrar incessantemente de sua
negra em suas produções. Vale ressaltar que condição de alguém que já teve muita vida
isso também pode ser, em muitos casos, fruto de percorrida e não é feliz nessa idade onde a
uma conscientização a respeito das estruturas juventude ficou no passado, o sujeito contrasta
que formam a nossa sociedade. Mergulhadas com o próprio título do poema seguinte: “Sou
nesse tempo, muitas vozes que já falavam, feliz”. Ao longo de todo o livro há jogos de
consideradas subalternas, passam por um perspectivas sobre a vida e papéis sociais,
processo de amplificação de escuta, devido à ressaltando o processo criativo de concepção de
agenda da população negra. Na literatura, alteridade desenvolvido pela autora. Mesmo
emergem muitas “vozes mulheres”, como ecoa afirmando: “Já passei tantos trabalhos/ Que não
o poema de Conceição Evaristo, que revisitam posso enumerá-los”, nos é exposta uma
tempos e espaços para recriar a memória a partir sequência de atividades de um passado do qual
do lugar de fala de quem sempre esteve o sujeito lírico traz recordações de experiências
marginalizado, fora do panteão do poder. Novas em declínio. Sua habitação é metaforizada tal
narrativas e imagens são propostas e muitas como o “quarto de despejo” designa a favela nos
delas negam um referencial criado segundo um diários da autora. Mas, diferente da Carolina
olhar colonizador sobre o negro. autora, sua juventude fora outra: “Quando
No bojo dessas criações, está uma referência jovem, eu vivia tão bem.../ Sítios, prédios e
que, desde seu primeiro lançamento, já armazém/ Hoje.. sou um homem falido.// [...]
questionava a história que era produzida sobre Meu Deus que fatalidade./ Perdi minha
si. Carolina Maria de Jesus, mineira da cidade habitação/ Vim residir num porão./ Longe da
de Sacramento, que migrou para São Paulo na sociedade” (JESUS, 1996, p. 99). O poema é um
esperança de uma vida e futuro melhores, dos variados exemplos onde a autora
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 169
desenvolve processos de criação de vozes tão operada pela negação de uma imagem de
próximas quanto afastadas de si, alteridades que estigma: “Eu não sou indolente. Há tempos que
povoam sua escrita. eu pretendia fazer o meu diario. Mas eu pensava
Esse homem que chega à velhice, tem que não tinha valor e achei que era perder
cabelos brancos, mas é “um verdadeiro infeliz” tempo” (JESUS, 1993, p. 25). Pensar não ter
(ibidem, p. 100) tem seus reflexos em outros valor pode ser visto como resultado não apenas
“personagens” da favela do Canindé, inclusive das condições materiais de vida do sujeito, mas
a própria Carolina, no que tange ao desejo de da memória, imaterial e simbólica, que é
destituir-se da vida em razão de suas condições. construída a respeito de grupos marginalizados,
Ele, que também está a “vagar sujo, imundo” favorecendo imagens negativas repassadas
(ibidem, p. 99), pede a morte para findar o sofrer através do discurso, de pessoa a pessoa e
do seu presente e de algumas de suas memórias. geração a geração. Afinal de contas, como
Esse sujeito lírico parece espelhar algumas das formulam Guattari e Rolnik, muitos e diversos
considerações de Carolina a respeito de sua vida sãos os processos que interferem na
pessoal, conforme podemos ver em seu subjetivação e, em consequência, nas
primeiro diário: “Eu estou começando a perder enunciações dos sujeitos:
o interesse pela existencia. Começo a revoltar. A subjetividade é produzida por
E a minha revolta é justa” (JESUS, 1993, p. 30). agenciamentos de enunciação. Os processos
Por entre uma série de poemas que evocam o de subjetivação, de semiotização - ou seja,
apreço pelas coisas, pessoas e circunstâncias da toda a produção de sentido, de eficiência
vida ou uma relação amorosa, mas que por semiótica - não são centrados em agentes
vezes são quebrados por reflexões de denúncia individuais (no funcionamento de instâncias
social, o tempo da velhice figura como solitário intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem
e infeliz. Não corresponde a um tempo de em agentes grupais. Esses processos são
percursos realizados, sonhos cumpridos e duplamente descentrados. Implicam o
funcionamento de máquinas de expressão que
descanso afetuoso na maturidade. Um destino
podem ser tanto de natureza extra-pessoal,
delineado por desesperanças que não se afasta extra-individual (sistemas maquínicos,
da experiência de pessoas que vivem em econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos,
situação limite por conta principalmente das ecológicos, etológicos, de mídia, enfim
privações financeiras; estas que solidificam, por sistemas que não são mais imediatamente
muitas vezes, lugares e opções sociais. antropológicos), quanto de natureza infra-
humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas
3 Negação como contestação - por uma de percepção, de sensibilidade, de afeto, de
outra memória representação, de imagens, de valor, modos
Carolina, em algumas passagens de Quarto de memorização e produção de idéia,
de despejo afirma, com uma voz (tanto sistemas de inibição e de automatismos,
sistemas corporais, orgânicos, biológicos,
biográfica quanto não biográfica - no sentido de
fisiológicos, etc.). (GUATTARI E ROLNIK,
pertencente a uma narrativa que cria uma 1996. p. 31)
narradora) sentir-se rebotalho: “E quando estou
na favela tenho a impressão que sou um objeto Podemos compreender, então, que o exterior
fora de uso, digno de estar num quarto de tem seus efeitos e contribuições no
despejo”; “Sou rebotalho. Estou no quarto de desenvolvimento da subjetividade dos
despejo, e o que está no quarto de despejo ou indivíduos, e que esse processo é estabelecido
queima-se ou joga-se no lixo” (JESUS, 1993, p. ao longo da vida, em decorrência das vivências.
33). Entretanto, diante dessas afirmações De volta ao texto literário, ao mesmo tempo em
diarísticas e das presentes em poemas como “O que Carolina afirma as questões e
infeliz”, se faz necessário destacar o teor de uma circunstâncias sociais de teor negativo que
“autoirônica denominação” (FERNANDEZ, fizeram parte de sua trajetória e do coletivo no
2018, p. 384) que faz parte da escrita de qual habitava, seus textos são palco para um
Carolina. Ademais, é possível considerar que a quase reajuste de contas, uma contestação que
autora não prescreve uma permissão para que os tem e assume a possibilidade de reorganizar os
supostos leitores de seus escritos construam papéis e promover uma reflexão sobre a
uma identidade de rebotalho que a referencie. realidade. Para Antonio Candido (2004, p. 177),
Pelo contrário, a afirmação de si pode ser a obra literária é uma espécie de “objeto
construído” e possui um “poder humanizador”,
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 170
que não é pequeno. Ainda segundo o autor, “A maio de 1958 - antes mesmo de Quarto de
organização da palavra comunica-se ao nosso despejo:
espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em Não digam que fui rebotalho,
seguida, a organizar o mundo”. Em Literatura e que vivi à margem da vida.
Sociedade, Candido (2006, p. 36) afirma que “a Digam que eu procurava trabalho,
arte pressupõe um indivíduo que assume a mas fui sempre preterida.
iniciativa da obra”. Assim, podemos considerar Digam ao povo brasileiro
que assumir a iniciativa da obra é também o que meu sonho era ser escritora,
movimento de responsabilização com o mas eu não tinha dinheiro
empreendimento de um projeto literário e de para pagar uma editora. (JESUS apud
assumir os riscos inerentes a esta escolha. E DANTAS, 1958)97
torna-se evidente o “poder humanizador” de um Estamos diante de um poema que nega e
texto escrito a partir de uma lógica outra sobre afirma, com a precisão de duas possíveis
a pessoa negra, sua vida e perspectivas, versões de criação de memória, de lembranças
questionadora da lógica vigente segundo a qual a respeito da autora. A voz do poema, do sujeito
indivíduos são colocados às margens das lírico, é, de certa forma, rasgada - radicalmente
estruturas de consideração social e humana. - por uma voz autoral. Em seu interior, habita a
A psicanalista e pesquisadora Neusa Santos não aceitação de uma produção imagética
Sousa (1990, p. 17), de entrada a seu Tornar-se negativa e unificada, a negação de uma imagem,
Negro afirma que “uma das formas de exercer de uma construção semântica sobre a figura
autonomia é possuir um discurso sobre si dessa mulher negra periférica, de uma história
mesmo”. E, de certa maneira, o exercício dessa única e universalizante. Nesse ponto, é
autonomia está intimamente relacionado à relevante recordar que, em se tratando de
questão de se possuir o status de sujeito, de que mulheres negras e/ou demais sujeitos
trata Grada Kilomba em Memórias da considerados socialmente como “minorias” ou
plantação. Nas palavras da teórica e artista “marginais”, a caracterização individual muitas
interdisciplinar, ter esse status significa que vezes é extensão de uma visão que se tem do
“indivíduos podem se encontrar e se apresentar coletivo; por isso consideramos o teor
em esferas diferentes de intersubjetividade e universalizante, aquilo que se estende para além
realidades sociais, e por outro lado, podem do indivíduo. Assim, quando a autora prescreve
participar em suas sociedades, isto é, podem que “Não digam” aquilo que está
determinar os tópicos e anunciar os temas e midiaticamente posto, mas “Digam” uma outra
agendas das sociedades em que vivem” coisa, a partir de outra visada, está a trabalhar a
(KILOMBA, 2019, p. 74). Em um dos poemas potência do não: da negação através da palavra
de Carolina, emblemático e ponto-chave para a escrita que permanece enquanto registro. E a
nossa reflexão em curso, podemos observar o reivindicar uma fala que propague outras
exemplo de uma força de reescrita da história propostas para a construção imagética de si.
nas palavras que parecem responder com Ecoando aos dias de hoje, a voz da autora
prontidão a algo que já estaria posto. Levantar parece pôr em questão algumas posições
questionamentos sobre o que se diz ou o que se defendidas a respeito de si, de sua vida e de sua
perpetua na história, por diferentes vias de proposta literária. E isso remonta à questão de
discurso, a partir da reiteração de elementos que, através da escrita, ainda nos tempos
criadores de uma memória negativa sobre a anteriores à sua primeira publicação, Carolina
pessoa negra. Entre a abertura à poesia e a registra suas contestações e defende seu projeto
escrita de si, a autora deixa emergir ecos que de escritora. No citado poema, Carolina não
interrogam seu presente e o futuro. Principiando apenas nega uma imagem e discurso, mas
por negar o que está dado, a voz poética da expressa seu conhecimento a respeito da
autora põe em questão, por escrito, não apenas projeção de um escritor enquanto pertencente
o que era desenvolvido à época sobre sua ao que se constitui como ramo da literatura.
produção textual, sua imagem e legado, mas o Podemos depreender, nessas circunstâncias tão
que viria a ser. Os versos abaixo foram atuais, que a valoração social de Carolina
publicados no jornal Folha da Noite, em 09 de enquanto autora necessitava do capital, do
aporte financeiro, de uma editora na qual sorriso. Como ressalta Ayana Moreira Dias (2021,
publicar e, só após publicada, tendo leitores que p. 623) em sua resenha sobre a coletânea: “um rosto
porventura comprassem os livros, seria uma alegre, vivo e forte de Carolina Maria
escritora. À sua maneira, a autora compreende de Jesus, confrontando a imagem de precarização
as questões outras e diversos processos, além do hegemonicamente significada pela crítica branca”.
ato de puramente escrever, que levam alguém a Uma outra face que também dialoga com a
ser valorado enquanto escritor. E, dadas as pluralidade presente na exposição “Carolina
dinâmicas e estruturas sociais, o valor tem a Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”
tendência a pertencer a certos grupos (que se do Instituto Moreira Salles de São Paulo.
autovalorizam e exercem a valoração daqueles Ainda que afirme reiteradamente e, com
que são considerados “outros”). isso, denuncie a experiência da pobreza e afins,
De acordo com Terry Eagleton (2003, p. 22), Carolina não encerra seu discurso nessa questão
os juízos de valor que constituem a literatura apenas. Pelo contrário, também reiteradamente
“são historicamente variáveis, mas que esses afirma em tom propositivo outras maneiras
juízos têm, eles próprios, uma estreita relação possíveis de ser e estar no mundo. Imagina
com as ideologias sociais. Eles se referem, em outras formas para a sua existência e dos seus.
última análise, não apenas ao gosto particular Isso porque, embora relate as experiências da
mas aos pressupostos pelos quais certos grupos favela e de seus trânsitos pela cidade enquanto
sociais exercem e mantêm o poder sobre alguém sem a estima e vestimentas necessárias
outros”. O desejo pela escrita e pela construção para habitar lugares como um elevador ou um
de um percurso literário, com o fôlego e as escritório, reconhece: “eu não saio do quarto de
localizações de Carolina, tem então suas despejo, o que posso saber o que se passa na sala
peculiaridades. Ele passa a ser também um de visita?” (JESUS, 1993, p. 71). Sua jornada
“atrevimento contra a instituição literária” de sair do “quarto de despejo” vai além de
como afirma Conceição Evaristo (2009, p. 28): transitar materialmente pelas ruas da cidade a
“Quando uma mulher como Carolina Maria de catar ou receber doações. Sua saída é também
Jesus crê e inventa para si uma posição de aquela das projeções reflexivas e
escritora, ela já rompe com um lugar contemplativas da vida e do(s) mundo(s) à sua
anteriormente definido como sendo o dela, o da volta, de onde surgem passagens apinhadas de
subalternidade, que já se institui como um poesia, como “A noite está tépida. O céu já está
audacioso movimento”. Nesse movimento, a salpicado de estrelas. Eu que sou exotica
audácia atinge outros limites no momento em gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer
que é registrada, documentada enquanto um vestido” (ibidem, p. 28). Com essa
literatura. Carolina não apenas inventa, consciência de deslocamentos, projeta em seu
enquanto escreve, uma posição de escritora, poema uma quase carta, na qual abre diálogo
mas declara por escrito, para si e para seus direto com seu destinatário para que “Digam ao
leitores, um projeto de desconstrução e povo brasileiro”, transmitam à memória e à
reconstrução da autoimagem e da memória. história nacionais, a versão de si a partir de seu
próprio punho de escritora.
4 Considerações finais
Ao afirmarmos na abertura deste trabalho
Em nossos tempos, soma-se a essa negação e reflexivo que memória também produz história,
desejo por outras afirmações de Carolina a referindo-nos à social (visto que existem
ilustração que é capa do livro Carolinas (2021, diferentes modos e campos de abordagem para
Flup e Bazar do Tempo), que apresenta ao público a memória), consideramos o fato de que ela está
leitor “a nova geração de escritoras negras em diálogo com as construções discursivas e
brasileiras”, segundo seu subtítulo: uma antologia imagéticas veiculadas ao longo de períodos de
em homenagem à autora composta de percursos tempo que formam, pouco a pouco, a história.
literários e experiências plurais, por novas gerações Ao retornar e fazer-se presente na vida cotidiana
de mulheres negras que também repensam suas da sociedade (na forma de costumes, práticas
histórias e memórias individuais e coletivas. sociais ou discursos diversos), a memória social
Cobrindo novas narrativas que passam a habitar o tem o potencial de moldar realidades e por vezes
solo da literatura brasileira, o trabalho gráfico da delinear processos significativos para os
capa apresenta uma Carolina visualmente expressa sujeitos. E, em muitos casos, os moldes podem
no signo da alegria estampada em cores, texturas e se estruturar a partir de preconceitos, exclusões
POR UMA OUTRA MEMÓRIA: NEGAÇÃO E CONTESTAÇÃO EM CAROLINA MARIA DE JESUS 172
********
SIMPÓSIO 7
A poesia e suas margens
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
98
IFPR (professor ebtt)/UFPR (doutorando). Orientador:
prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado.
E-mail: marcelodavilaamaral@gmail.com
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 176
ficarmos na nomenclatura dos formalistas Gerd Bornheim, na sua leitura acerca do sujeito
russos. Roland Barthes desejou que a intenção moderno em suas tensões éticas com o mundo
fosse apenas aquela criada no momento da que o cerca, elenca seis características para que
leitura, quando autor e leitor perfariam acompanhemos a evolução do projeto burguês
entidades de papel e tinta, cuja realidade ou de homem e mundo: a autonomia, o trabalho, a
manifestação seria apenas escrita. Nisto penso propriedade privada, o capitalismo, o
que há uma dose de razão: os pós-estruturalistas conhecimento humano (racionalismo de
queriam matar não qualquer autor, mas o autor Descartes), e a liberdade. Todas essas, sozinhas
de gosto burguês. Tratava-se, pois, de uma ou em conjunto, fornecem uma pista de como o
crítica da ideologia. Uma crítica da crítica por homem moderno (o homem burguês para
assim dizer (Cf. COMPAGNON, 2014). Bornheim) revolucionou um mundo passado ou
Barthes e companhia, entretanto, não arcaico e criou um mundo novo com o qual
conseguiram apagar a autoridade do texto e a estabeleceu suas relações intersubjetivas em
questão permanece aberta; mesmo que sob a bases outras, bases materiais e laicizadas nunca
forma de “intenção em ato”, como assim antes vistas. Por todo esse longo processo
categorizavam a questão. histórico se constituiu o paradigma do homem
Um problema teórico, estético e também universal; e, por extensão, da cultura universal
ético: pudesse mesmo ser esse leitor um sujeito e da literatura universal. Focalizando o início do
do tipo papel-e-tinta somente? Esse poderia ser Iluminismo, Bornheim nos fala do contrato
um problema filosófico interessante. Se eu dele social, balizado por aquelas características
aqui me ocupasse, teria que, primeiramente, citadas, como saída para o convívio social
identificar uma certa régua paramétrica a possível, já que, agora, a sociedade é constituída
elencar determinado corpus poético entre ao redor do indivíduo e não o contrário:
aqueles discursos cujo valor se sedimentasse Pois acontece que a burguesia – e é a primeira
sob o aceite do gosto de nossas Letras. Nesse vez que isto se verifica na história do homem
momento, teria que perseverar na procura por – pretende impor-se como classe universal;
categorias de pensamento que, sendo cordato ao destituída a monarquia e longe ainda das
Cânone Literário Brasileiro ou contra- inquietantes esferas do proletariado que
hegemônico, argumentassem em favor da seriam criadas pela revolução industrial, o
relevância que lhe almejo, a esse certo corpus burguês vive a possibilidade de dar plena
poético. Ainda que me seja dada a possibilidade expansão a todo o seu ideário. Um dos
defender que o autor ou o sujeito para o qual maiores trunfos da burguesia reside
justamente neste ponto: ela reformula toda a
escreve fossem social e historicamente situados
questão da universalidade e até mesmo dos
no espaço para além de uma abstração do universais. Se pensarmos no caráter
homem universal (europeu, branco e cristão), profundamente regional da pólis grega, em
certamente encontraria dificuldades em que até os deuses eram exclusivos de uma
problematizar a localidade de certos conceitos determinada cidade, e se atentarmos para a
que partem ainda dessa abstração mesma soberana superioridade do Sacro Império
chamada Europa (chamo “Europa” abstração na medieval, que levava a ignorar todo o outro
justa acepção de Dipesh Chakrabarty: a Europa que não o cristão, podemos entrever o notável
que temos “dentro de nós”, e que, também ela, avanço realizado nesse ponto pela cultura
não corresponde a um continente real. Uma burguesa. (BORNHEIM, 2007, p. 354).
Europa hiper-real). Ou seja, ainda que eu Assim, se quisermos categorias para pensar
propale como instrumental teórico o a complexidade da cultura e da literatura nas
materialismo histórico, ainda assim, essas sociedades contemporâneas, mais ainda as às
categorias seriam difíceis de serem pensadas a margens da geopolítica planetária como a
partir de um território e de uma democracia brasileira, “universal” é uma categoria que deve
muito diferentes daquela sociedade industrial ser questionada por uma crítica compromissada
inglesa (europeia, branca e cristã) sobre a qual com diálogos fecundos e verdadeiramente
Karl Marx e tantos outros teóricos europeus democráticos.
formularam suas teorias, que aceitamos como Não estou a fazer apologias contra os
universais, ainda que contra-hegemônicas em pensamentos sob os quais todos nos tornamos
alguma medida. especialistas em nossas áreas. Apenas desejo
O homem universal é uma criação burguesa. salientar que, ao teorizar sobre o fazer literário
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 178
e para lhe sermos efetivamente críticos, moral constrói, pois, um outro mundo,
devemos tentar deslocar uma estabelecida artifício do pensamento dominante. Dá-se a
historiografia literária, por cuja construção ideia de realidade uma virtude muito própria
também todos somos responsáveis. e peculiar, ligadas às concepções daqueles
que criam essa realidade. [...] Assim, somos
Quero, isso sim, ter em mente aqui uma
convidados a assistir ao espetáculo do mundo
ética. Ética que poderia tanto pensar o autor ou e a participar dele sem o desejarmos: temos,
o leitor, e, por sua vez, a poética que os liga. portanto, pouca coisa ou quase nada de real
Pelo espaço que este ensaio dispõe, entretanto, no que vemos, em particular em um mundo
detenho-me aí mesmo: na intenção e na dominado por imagens e espetáculos
recepção. Interesso-me pelo eu-poetante, pela incoerentes dos novos meios de comunicação
subjetividade que enuncia que tanto mais é — qualquer coisa é mostrada ou dita, aparece
potente, penso, quanto mais é ética, permitindo e desaparece por força de uma vontade
reconhecer-se no outro. As possibilidades que estranha a nós. (NOVAES, 2007, p. 16)
passam ao largo das agências que sustêm o Insisto, pois, pensar um corpus poético que,
cânone literário me interessam agora e então. para além de uma abstração clássico-edílico-
Quero-as necessárias para uma devida bucólica, seja uma substância táctil e dúctil
reestruturação das medidas de valor dessas àqueles sujeitos não reconhecíveis outrora
entradas canônicas em prol de identidades (“desconhecíveis e desconhecidos”) que todos
violentadas cotidiana e continuamente e de sua somos. Para tanto, a título de exemplo e análise,
inclusão discursiva a legitimar uma realidade escolho o chypher Favela Vive como exemplo
outra possível. Uma realidade prenhe de sintomático de possiblidade político-poética
identidade mais genuína e conforme à sobre a qual este ensaio tem seu título e tema, a
identidade brasileira, porque heteróclita, mimetizar a violência como forma e expurgo;
híbrida. procedimentos semântico-estilísticos como
Estou a falar “realidade”, “real” como recursos “para carregar ou suportar os
insumos, forma e tema, para uma construção paradoxos de sua inscrição (da poesia) na
poética cuja efetiva penetração se dê na justeza realidade”, qual gesto dilemático (e político)
de esses insumos se coadunarem à recepção da apontado há pouco por meio do professor-poeta
obra. O problema do real não é, ele mesmo, um Marcos Siscar. Ao meu ver, um discurso
dos pontos fulcrais dos estudos literários que poético, cuja potência lírica se extraia da
atende pelo nome mimesis? Assim, não digo da cotidiana violência sofrida pelos favelados dos
realidade sensível, empírica, mas de um real grandes centros urbanos do Brasil, demonstra
experienciado a partir do sensível cuja inscrição uma assunção da responsabilidade crítica que
se dá nos sujeitos que recepcionam a obra, o pretendo compor aqui.
discurso poético. Percebo que essa penetração
os impacta, os sujeitos, por possibilitar o 3 Poético-político
encontro com sua identidade mesma, em seus Sob o nome Favela Vive, refiro-me de quatros
corpos, mesmo que ultrajados. A partir do videoclipes dirigidos por Guilherme Brehm e
encontro, o leitor/ouvinte divisa sua editado por GB LAB, que se configuram como um
subjetividade, ao par que, reconhecendo-se, cypher, que, no jargão da cultura rapper, é uma
fortalece a estruturação de seu caráter individual reunião de vários artistas para dar voz a um
e também coletivo. É nesse sentido que discurso “encorpado”, que, do contrário, corre o
reconheço um determinante ético que não pode risco de permanecer circunscrito aos fãs simpáticos
ser realizado a partir do nada, no mesmo passo a esse universo. Por se caracterizar com um cypher,
que o real não pode ser experiencializado a não a cada vídeo lançado, foram agregados mais artistas
ser a partir do discurso sobre ele, de um discurso e técnicos na sua execução. A crescente recepção
sobre as coisas: dos vídeos retroalimentou-os para novas
Ora, uma moral pensada e constituída a partir produções, incrementando, ainda, sua linguagem
da ideia de “vazio-vazio”, isto é, uma moral sonora e audiovisual. Uma poética do som e da
que abole a experiência, a história presente e imagem nasceu e renasceu a cada lançamento.
a antecipação, e que leva em conta apenas Também é importante salientar o período de
uma consciência formada de nadas lançamento, que, no interstício de 5 anos, da
cotidianos, de mil lacunas e intervalos primeira à quarta e última produção, abrangeu o
desconhecíveis e desconhecidos, é o ponto de período das últimas eleições político-partidárias
partida para o artifício e as aparências. Essa
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 179
no país, tanto nos níveis municipais, quantos comunidades, não necessitando – na medida em
nos estaduais e federais (nos anos de 2016, 2018 que códigos, moda, gestos, sonoridades eram
e 2020 respectivamente). Ou seja, trata-se de comungados por todos sob o signo da cultura
uma inscrição poética marcadamente política já hip-hop – de tradução. Com o tempo, o cenário
na sua origem, na sua intenção, na sua autoria. mudou. O rap, além de um maior alcance,
Poética de inscrição política, não somente passou a ter também mais autonomia em relação
político-partidária (é bom que se o diga). a outros signos e símbolos do hip-hop, o que
Certamente, música e poesia dialogam. resultou, consequentemente, em contrapontos,
Ouvimos falar sobre a musicalidade da poesia, entre artista e público, mais virtuais e, até, não
assonâncias e aliterações feitas sob forma tonal, compartilhados.
contagem de sílabas poéticas como marcações Em linhas gerais, sample é, como a tradução
do tempo do verso, experimentações formais nos conta, uma amostra, um procedimento
que nos soam como improvisos acústico- amostral para que, a partir de algo exterior à
instrumentais e tantos outros procedimentos de composição que se pretenda realizar, possa-se
construção textual de poemas que tomam dar fim ao texto sonoro final; algo no nível da
emprestados seus conceitos e sua nomenclatura pirataria, do saque e do assalto – e não tomo tais
da música. Contudo, não legamos à música, ao adjetivações por pejorativas; encaro-as segundo
menos as de caráter popular, o estatuto da a perspectiva positiva de Villa-Forte (2019). O
poesia (claro que, para as agências ainda em flow, por sua vez, é a vocalização mesma do
vigor do cânone literário, toda adjetivação compositor/cantor/performer (rapper e grupos
popular parece ser um demérito em si, mas, nem de rappers) e tanto mais valorizada quanto mais
nisso, há uma similitude completa do campo dos articulada à velocidade do compasso musical
estudos literários ao campo da música, quando, (beat) de que usufrui, sublinhando a aptidão e o
por exemplo, pensamos na literatura de cordel talento fisiológicos do corpo que enuncia a letra.
ou no teatro farsesco do tipo commedia Já as linhas de soco estão mais para o nível
dell’arte). De todo modo, as duas expressões linguístico da composição e correspondem ao
certamente têm motes e procedimentos próprios conjunto de versos, à enunciação poético-rímica
e, assim, elas podem coexistir de forma (a rima tão gabada), cuja finalidade é o impacto,
estanque muito confortavelmente. pela crueza objetiva de suas palavras, tal como
Desde sua origem, o rap, cuja sigla em inglês um soco realizado por um punho – uma rima
dá a pista (RAP = Rythm and Poetry), propõe propalada como um soco; nos dois sentidos que
uma aproximação mais íntima entre esses dois esse verbo possui.
modos de dizer. Obviamente, o rap não Linhas de soco se caracterizariam, então, por
significar dizer cantando ou sob uma batida uma sequência rímica que, por exemplo, diz:
eletrônica simplesmente. Esse discurso verbo- “Mano, os cara peita de subir de
visual detém procedimentos muito específicos. madrugada/sempre marca operação com a porta
Neste ensaio, me deterei em três deles: sample, da creche lotada/Mais uma mãe revoltada, uma
flow e linhas de soco, que, juntos, sintomatizam pergunta sem resposta/Como o policial não viu
um conceito que vem se tornando caro aos seu uniforme da escola? Vinícius é atingido
estudos literários: a noção de performance. com a mochila nas costas”. Ou ainda: “Entre o
crime e o rap/click-clack/nasce um som, morre
4 A favela vive!
um moleque/História triste sem snap/Quem é
Muitos dos procedimentos formais guerra quer paz/vocês querem músicas sobre
utilizados para as composições em rap cooptam armas/Escrevo sobre traumas/pra ouvidos que
o ouvinte para uma experiência poética total têm almas”. E: “Que é isso?/Foi tiro do blindado
(Cf. ROTHENBERG, 2006), quando música e que acertou Marcos Vinícius/Caído ali, sem
ritmo se misturam a ideologias, materialidades árbitro de vídeo”. Ou ainda mais: “Parei pra
e perspectivas de enunciação partilhadas entre respirar por um instante/Mas quando olhei pro
público e artista e entre artista e artista. Tal céu só vi os tiros de traçante/Pensei, meu Deus,
partilha reside justamente em bases comuns a quem dera fossem as estrelas cadentes/Que o
todos, que, de início, levou o rap nacional à sangue que escorresse não fosse de um
circunscrição a locais e públicos determinados, inocente/Seria o bastante” (FAVELA VIVE 3,
pois os materiais externos à composição, a coisa
a priori, estava somente ao alcance daquelas
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 180
100 101
Não posso garantir a exatidão das quebras dos versos Cito reiteradamente Favela Vive 3, por que foi por meio
retirados dos vídeos que constituem o cypher Favela Vive. desta “fase” que conheci o cypher. Nisso, há um propósito
O que vinculo aqui são transcrições presentes na web, de em colocar meu próprio corpo em primeiro plano. Meu
forma algo livre. corpo: por onde reverberou a primeira vez este discurso;
onde primeiramente ecoou a força poética desse discurso.
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 181
cena, à cena enunciada pelo mesmo volume concernentes a subjetividades, ainda hoje,
corporal daqueles que fazem a crítica e sofrem negadas (poderia igualmente dizer
a violência institucional diariamente. racializadas). É nesse sentido que a autoria é o
É certo que realizo um deslocamento ponto central para o discurso poético do rap,
conceitual para o campo dos estudos enquanto perfazem-no os rappers.
linguísticos e literários e o que ofereço pode Como já mencionei, a intenção para a
exemplificar o que chamamos intertextualidade. produção poética do Ocidente ainda é um
Entretanto, no cypher Favela Vive, percebo um conceito polêmico e, por isso mesmo, caro à sua
diálogo intertextual diferente daqueles literatura e às agências que sustêm o cânone. Na
pensados pelos formalistas russos, pois além produção poética do rap, entretanto, a dicotomia
dos textos, os diálogos são travados de maneira entre autoria e sentido do texto literário
intersubjetiva, diálogos feitos por (poético) se desfaz, na medida em que esse
subjetividades atravessadas pelo mesmo discurso só alcança seu efeito total — a poesia
fenômeno que chamo genericamente de total da qual nos dá uma pista Rothenberg
violência. Assim, o sample é uma tradução da (2006) — porque e se enunciado por aqueles
presentificação e da importância do corpo que sujeitos concretos, e não outros. Outro corpo,
enuncia a cena. A presença que fala da acepção com outras pertenças, não poderia realizar tal
mesma do que venha ser poesia, do que venha experiência, tampouco fazê-la valer àqueles ao
ser literário: qual seu discurso se dirige. É nesse sentido que
O ideal […] seria conduzir a reflexão em uma
penso ética e política como partes constituintes,
dupla trajetória: a que nos levaria ao lugar intrínsecas à produção de sentidos poéticos
nodal, em que o “literário” se articula na proposta pelo rap nacional. O flow nos dá a
percepção e aquela em que se encontraria um chave de entendimento do ato performático que
homem particular, feito de carne e sangue. De venho salientando desde o início de minha
qualquer modo, essa operação comportaria o análise do cypher Favela Vive. É preciso
perigo de nos conduzir ao indivíduo, por via entender a expressão poética na sua totalidade.
dedutiva, e de apagar aquilo que justamente o Entender como a presença um corpo (de um
torna indivíduo: uma estatura, um peso, uma corpo preto!), para além do textual (ainda que
constelação original de traços físicos e
também possa ser só textual), concretiza uma
psíquicos. Melhor seria inverter o
movimento: partir empiricamente do que
experiência estética que se presentificada no e a
poderia ser ponto de chegada (a percepção partir do – o vocábulo erudito dá a pista –
sensorial do “literário” por um ser humano corpus poético:
real) para poder induzir alguma proposição Escutar um outro é ouvir, no silêncio de si
sobre a natureza do poético. (ZUMTHOR, mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa
2018, P. 24-25) voz, dirigindo-se a mim, exige de mim uma
Presença real, “percepção sensorial do atenção que se torna meu lugar, pelo tempo
‘literário’ por um ser humano real: um corpo dessa escuta. Essas palavras não definiriam
igualmente bem o fato poético?
sempre reiterado no cypher Favela Vive pelo flow.
(ZUMTHOR, 2018, p. 77)
Flow é o modo de fazer mais corpóreo que o
rap consegue produzir, pois é realizado a partir A exceção para a proeminente centralidade
da capacidade de articulação psicomotora do do sujeito enunciador e poetante a um tempo são
indivíduo que está em cena rimando. O flow cyphers como o Favela Vive. Entretanto, o
focaliza, assim, o sujeito como elemento central cypher não nega o sujeito individualizado; ao
ao discurso que enuncia, que só pode partir de contrário: o entende parte de uma comunidade
um ser determinado (localizado). Este sujeito é constituída sob uma lógica diferente daquela da
(quase sempre) a consubstanciação do eu-lírico, mercadoria, do liberalismo, da individualidade
porque autor tanto das rimas como da própria pensada como um ideal europeu (branco e
performance que realiza. Importa, ainda, dizer cristão) de existência. Nesse sentido, Favela
que esse lugar ocupado pelo eu, temporal e Vive é sintomático exemplo, pois enunciação
espacialmente, é a possibilidade mesma de uma vocalizada por diversas vozes, por diversos eus
enunciação comunitária, igualmente. Daí a que, irmanados, continuam seguindo fortes
periferia e a favela como matérias porque juntos: “eu sou porque nós somos”
extremamente robustas e complexas (Unbuntu) – filosofia tão cara na atualidade
estruturando discursos de pertencimento àqueles mesmos indivíduos diaspóricos que
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 182
ainda sofrem sob a mesma lógica racista e mãos. Por isso, importa sobremaneira creditar
violenta imposta aos seus ancestrais em nome seu surgimento à cena poética contemporânea
da modernidade do Ocidente, sob os auspícios nacional como uma concatenação de esforços
da cidadania liberal plena. Persiste, ainda, a centrados na realidade social de onde se deram
pergunta: plena para quem? as vivências do grupo ADL e, daí, seu diálogo
com outros representantes de gerações
5 Conclusão ou de volta ao início
anteriores (e posteriores?) do rap brasileiro,
Aos procedimentos formais que apontei pois, a cada diálogo travado, vozes mais
neste ensaio poderiam se somar muitos outros, representativas engrossaram pleitos que
tanto ao nível imagético, semiótico e semântico permanecem atuais, num apontamento
como ao linguístico propriamente. Assim, premente de como as violências vividas se
iconografia fílmica, aspectos atitudinais dos mantêm desde há muito. Como este ensaio
corpos rimantes, ambientação inscrita em deseja se inscrever na ordem política e estética
territórios urbanos sitiados, desvios da norma da história recente do país, é de suma
padrão do português brasileiro urbano dito culto importância nomear todas os corpos que
como possibilidade sonora, entre outros tantos encorparam tal empreitada. Corpos
traços bem caracterizariam o discurso do rap majoritariamente negros marcados pela
nacional em sua inteireza poética, um corpus diáspora imposta a seus antepassados, cuja
dinâmico como vetor de novos paradigmas dívida está longe de ser paga. São eles: DK,
poéticos a possibilitar outros rearranjos Lord e Índio (ADL), Sant, Raillow, Froid, BK,
sintagmáticos, a apontar para possibilidades 220voltzfunkero, MVBill, Praga “Canela de
narrativas outras. Pensei dedicar-me ao Favela Ouro”, André Brum, Orochi, MC Cabelinho,
Vive por enxerga no cypher uma amostragem Cesar MC, Kmila CDD, Edi Rock, Choice,
bastante bem amarrada desse discurso e toda Djonga, Menor da Chapa, Negra Li. E tantos
poética que lhe é característica com uma outros corpos “por trás das câmeras”.
metonímia fecunda a deslocar um dado corpus Chamo a atenção para os corpos rimantes de
enunciativo para o campo dos estudos literários há pouco, porque entendo, conjuntamente com
comprometido com o estatuto da literatura Paul Zumthor, que deles mesmos emana a
como um direito democrático e humano. Nessa poesia da qual falo. Essa emanação só é possível
esteia, o rap perfaz um caminho que, enquanto porque encontra em mim, outro corpo, tensões
mimetiza as violências sofridas nas zonas e pulsações onde reverberam, em toda minha
periféricas das grandes cidades brasileiras, não extensão psicofisiológica, sua força e potência.
afasta a tomada de consciência política que Por isso, utilizei-me de noções sinestésicas no
enuncia um real que menos edulcora vivências início deste ensaio. Chamei a poesia de Favela
que transforma a experiência da violência em Vive de dúctil, de táctil. Trata-se, ao meu ver, de
possibilidade estética e, assim sendo, em um corpus poético com peso e volume, com
perseverança do desejo de vida em territórios aspereza e densidade, feito de carne e de sangue.
marcados por políticas de morte. Temos aí um É esse o axioma do que entendo por poesia.
exemplo honesto da poesia que toma para si a
Se admitimos que há, grosso modo, duas
responsabilidade de dizer o hoje. Resta saber espécies de práticas discursivas, uma que
que respostas a crítica literária tem a lhe dar. chamaremos [...] de “poética”, e uma outra, a
Se as preocupações políticas da crítica literária diferença entre elas consiste em que o poético
do século passado (século XX) se sustentam em tem de profundo, fundamental necessidade,
distinções subjacentes, mas não menos para ser percebido em sua qualidade e para
decisivas, em relação ao modo mais ou menos gerar seus efeitos, da presença ativa de um
atento com que a poesia se insere na história, corpo: de um sujeito em sua plenitude
caberia hoje, com urgência, entender os psicofisiológica particular, sua maneira
diferentes dispositivos pelos quais o discurso própria de existir no espaço e no tempo e que
poético tem compreendido sua capacidade de ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao
herdar a crise. Ou seja, o modo como vem, tato das coisas. Que um texto seja
desde muito cedo, nomeando o real e reconhecido por poético (literário) ou não
construindo essa história. (SISCAR, 2010, p. depende do sentimento que nosso corpo tem
13, grifos do autor). necessidade para produzir seus efeitos; isto é;
para nos dar prazer. É este, a meu ver, um
O cypher Favela Vive é, segundo sua própria critério absoluto. Quando não há prazer – ou
definição, um empreendimento feito a muitas ele cessa – o texto muda de natureza.
POSSIBILIDADES POLÍTICO-POÉTICAS: A FAVELA VIVE! 183
(ZUMTHOR, 2018, P 34) FAVELA VIVE 4. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo
Os desenlaces estéticos aqui referidos são (13:55 min). Publicado pelo canal Youtube.
reclamados à luz das análises literárias. Por Disponível em:
óbvio, consigo vislumbrar o valor e a <https://youtu.be/SZ1H5lIOIuU >. Acesso em:
importância dos paradigmas estabelecidos pelo 17 out. 2021.
cânone; entretanto, os críticos literários temos o NOVAES, Adalto. Cenários. In: NOVAES,
imperativo ético de afirmar a identidade dos Adalto (org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras,
corpos que, mesmos ultrajados, ainda desejam; 2007.
e, se desejam, ainda não estão vencidos. Ao
passo que enunciam outras possibilidades de ROTHENBERG, Jerome. Etnopoesia no
existências, tais corpos vão estabelecendo milênio. Rio de Janeiro, Azougue Editorial,
novos paradigmas, novos códigos, novas 2006.
possibilidades poéticas. Corpos cujo o direito à SISCAR, Marcos. Poesia e Crise. Campinas,
literatura não mais se lhes pode negar. As mais SP: Editora da Unicamp, 2010.
147 milhões de visualizações somente na
VILLA-FORTE. Escrever sem escrever:
plataforma Youtube até o fechamento deste
literatura e apropriação no século XXI. Rio de
texto servem-lhes de metonímia. Corpos que
Janeiro: Editora PUC-Rio; Belo Horizonte:
não se deixam curvar à crueldade da prosa, pois
Relicário, 2019.
sua pulsão teima, ainda e contra tudo e todos,
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção,
existir em verso.
leitura. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
Referências
ISBN: 978-65-5363-027-7
102
Graduado em Letras – Doutorando em Teoria da Graduada em Arte • Universidade Federal do
103
********
Disponível on-line em selufma.com.br
ISBN: 978-65-5363-027-7
RESUMO: Tendo em vista como o dentro dos poemas; refletir como os poemas
patriarcalismo é uma marca muito presente dentro apontam para o patriarcalismo como um processo
da literatura brasileira, e mais especificamente, antigo que ainda reverbera; e analisar como os
muito enfática no âmbito da literatura versos de resistência apontam para a existência da
maranhense, muitas escritoras do Estado colonialidade do ser e do poder. Para tanto, foram
acabaram passando despercebidas ou acabaram utilizadas como aporte teórico as autoras Saffioti
esquecidas com um tempo, o que fez com que a (1987), Lugones (2020) e Segato (2021).
escrita de autoria feminina no Maranhão fosse
enfraquecida, não por falta de autoras, mas devido Palavras-chave: Literatura maranhense; Autoria
ao patriarcalismo excludente. Diante de tal fato, feminina; Poesia de resistência; Rita de Cássia.
felizmente, tem existido um movimento
acadêmico em direção a uma revisão 1 Introdução
historiográfica literária que tem resgatado muitos A literatura, para além do intuito de deleite e
nomes de mulheres que são de suma importância contribuição artística, acaba por ser uma
para as letras maranhenses, no entanto, essa mimesis da realidade, isso porque é inscrita em
movimentação tem atingido pouco os escritos de um tempo histórico o que leva a extrair
autoria feminina contemporâneos fazendo com situações e contextos que fazem parte da
que esses continuem marginalizados, e é nesse história, identidade, e cultura, de modo a
sentido que este trabalho busca apresentar e registrar na ficção prosaica e no lirismo de
analisar a obra de uma maranhense versos percepções sobre o mundo, dentro da
contemporânea que ainda é pouco revisitada: Rita particularidade mimética e artística do literário.
de Cássia Oliveira. Além de Rita de Cássia fazer Desse modo, o texto literário pode apresentar
parte de um grupo marginalizado, suas poesias dupla função: o deleite da leitura e de reflexão
refletem o patriarcalismo hegemônico e a da função social.
necessidade de se reafirmar como mulher em uma Pensando na influência dialética que a
sociedade que costumeiramente a silencia, historicidade pode exercer dentro de uma cultura
constituindo assim uma resistência que faz com e é refletida também no âmbito literário, a partir
que seja possível que se realize uma leitura a luz da teoria antropológica-social da decolonialidade,
do feminismo decolonial. Dessa maneira, o este trabalho se propõe a pensar como a hierarquia
trabalho está pautado em uma pesquisa entre dominadores x dominados advém do
bibliográfica de cunho qualitativo em que o arquétipo colonizador x colonizado, o que leva a
objetivo geral consiste em fazer uma leitura consistência da colonialidade mesmo na ausência
decolonial dos poemas “Renascer” e da política decolonial.
“Concessão”, os quais estão na obra (RE)Nascer Partindo dessa questão, nota-se que a
Mulher (1983) de Rita de Cássia Oliveira; quanto literatura brasileira, principalmente a que está
aos objetivos específicos pretendeu-se perceber dentro do cânone, evidencia a dominação
como são problematizadas as categorias de gênero patriarcalista e elitista herdadas das relações do
processo de colonização que houve no Brasil - ainda reverbera; e analisar como os versos de
e na América Latina como um todo -, tendo em resistência apontam para a existência da
vista que há a supremacia da figura que atende colonialidade do ser e do poder.
pelo perfil de homem, branco, burguês, e pater
2 Teoria decolonial e a persistência da
familias 106 , sendo esse, segundo a lógica
colonialidade de poder e de gênero
colonial, o indivíduo que melhor atende a uma
capacidade cívica e pública, de modo a excluir Tendo em vista a ampla gama de vertentes
os “dominados” que fogem desse padrão. que teorizam a questão do período colonial e o
Tendo em vista os privilégios que dispõem o que o sucedeu, faz-se preliminar discorrer como
esteriótipo “padrão” acima elencado - sendo esse a teoria decolonial encara esse evento histórico
o principal dominador e sujeito que reverbera a que continua a repercutir em nossa sociedade e
colonialidade -, pretende-se apontar sob uma nossa literatura, como mimesis da realidade
leitura decolonial, em especial a colonialidade de social, acaba por absorver.
gênero. A partir dessas questões, este trabalho se Quando se refere à colonização, logo se pensa
propõe a pensar a literatura de autoria feminina, no processo histórico-político-social que se
mais especificamente a literatura escrita por desenvolveu principalmente na América Latina
mulheres no Maranhão, tendo em vista que durante o século XVI, estando esse acabado, para
apesar de o Maranhão está num processo nós brasileiros, no final do século XIX. No
constante de revisitação historiográfica, nota-se entanto, esses 300 anos sob o regime colonial
que existe pouco envolvimento de escritoras constituíram valores e percepções que se
ainda contemporâneas, que também precisam ser encravaram em nossa sociedade e ultrapassam a
revisitadas no sentido de terem sua obra política da colonização, sendo as marcas,
conhecida e lida. consequências e continuidade dos crimes,
É nesse sentido que este trabalho busca chamados pela teoria decolonial de colonialidade:
apresentar e analisar a obra de uma maranhense Independência, todavia, não necessariamente
contemporânea ainda pouco explanada no implica descolonização na medida em que há
ambiente acadêmico e literário lógicas coloniais e representações que podem
maranhense/nacional: Rita de Cássia Oliveira. continuar existindo depois do clímax
A escritora além de carregar a marginalização específico dos movimentos de libertação e da
por ser mulher, carrega os preceitos de ser conquista da independência. Nesse contexto,
mulher e negra, fatores que acabam sendo decolonialidade como um conceito oferece
refletidos em suas poesias que problematizam o dois lembretes-chave: primeiro, mantém-se a
patriarcalismo hegemônico e a necessidade de colonização e suas várias dimensões claras no
horizonte de luta; segundo, serve como uma
se reafirmar como sujeito em uma sociedade
constante lembrança de que a lógica e os
que costumeiramente a silencia. legados do colonialismo podem continuar
No intuito de resgatar e desvelar seus escritos existindo mesmo depois do fim da
assim como tecer comentários sob a teoria colonização formal e da conquista da
decolonial, para este trabalho foram selecionados independência econômica e política.
os poemas Concessão e Renascer que estão na (MALDONADO-TORRES, 2018, p. 32).
sua obra (RE)Nascer Mulher (1983). Desse Partindo dos povos da Europa e suas
modo, este trabalho pautado em uma pesquisa
conquistas através da colonização das terras e
bibliográfica sob uma abordagem de cunho
territórios ainda no século XVI, acabam por
qualitativo estabelece como objetivos, o objetivo
dominar também os povos e assim invadir o
geral de realizar uma leitura decolonial dos
pensamento, o conhecimento e a cultura que
poemas Renascer e Concessão, os quais estão na
possuíam. Ao se apropriar do ensejo de
obra (RE)Nascer Mulher (1983) de Rita de
“domesticação” e civilização dos nativos e
Cássia Oliveira; quanto aos objetivos específicos escravizados, o caráter de violência e intimidação
pretende-se perceber como são problematizadas
dos europeus é disfarçado a partir do discurso
as categorias de gênero dentro dos poemas;
pautado na condescendência, conceito abordado
refletir como os poemas apontam para o pela antropóloga Susana de Castro (2020) a qual
patriarcalismo como um processo antigo que
106
Termo utilizado pela antropóloga Rita Segato em vez desconhecida, mas sua ‘respeitabilidade’ como chefe de
de heterossexual, isso porque “sua vida sexual é família pode ser comprovada”. (SEGATO, 2021, p. 109).
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 192
aponta que o colonizador argumenta que a analisar os escritos de Rita de Cássia, mulher
exploração dos povos tidos como inferiores, na negra em um estado marginalizado, que se
verdade consistiria em um processo de “salvá-los” propõe a pensar uma das principais e terríveis
da barbárie em que viviam. faces da colonialidade: a colonialidade de
A perspectiva em que a colonialidade se gênero.
alonga para além da colonização é de suma Ao evidenciar o construto social de
importância para atender a decolonialidade, colonizador x colonizado que ainda persiste,
principalmente quando grupos que outrora pensa-se o preconceito e a sobreposição
foram colonizados continuam a experimentar patriarcal como fatores não proporcionados a
traços da história como presente. E assim, partir dos fenótipos, mas sim por uma ordem
problematiza-se o fato de a colonialidade ser histórica que se torna estrutural e delineia as
marca preeminente da modernidade, de modo visões entre aqueles que são tidos como
que continua a utilizar-se dos fenótipos “dominados” e “inferiores”, tal construção
referentes à cor da pele negra ou indígena como social é afirmada por Saffioti como conceito de
símbolo de um ser culturalmente, uma “profecia auto-realizadora”, isto é,
espiritualmente e ontologicamente inferior, “negros e mulheres, assim como todas as
mesmo que exista a negação ou inconsciência categorias sociais discriminadas, de tanto
desses preconceitos, o que fomenta o fato de o ouvirem que são inferiores aos brancos e aos
preconceito ser de ordem estrutural. homens, passam a acreditar em própria
É pensando em como se ergue o colonizador ‘inferioridade’”. (SAFFIOTI, 1987, p. 29).
na figura do europeu o qual atende pelas Embora Saffioti não esteja circunscrita no
características de homem, branco, burguês e círculo de autores decoloniais, a autora em seus
pater familias, que se pensa como o sujeito que estudos problematiza as construções de
carrega esse padrão atualmente atende aos superioridade em um mundo capitalista, de
ideais para projetos cívicos e públicos dentro da modo que percebe a subalternidade racial e de
nossa sociedade, o que atesta a discussão que a gênero que insiste na inferioridade dos sujeitos
colonialidade é um fenômeno amplo que ainda não-normativos.
é reverberado em diversas esferas da vida Desdobrando sua pesquisa na figura
social. Desse modo, a teoria decolonial surge feminina, a autora aponta como uma das formas
como movimento de resistência em que procura de potencializar a inferioridade social da mulher
evidenciar os traços da colonialidade ao mesmo se dá pelos preconceitos históricos que são
compasso que procura desfazer-se dessa: herdados e transmitidos através da educação
A teoria decolonial, [...] criticamente reflete
formal e informal de geração a geração, o que
sobre nosso senso comum e sobre implica a nossa afirmação da construção da
pressuposições científicas referentes a tempo, inferioridade da mulher se desenvolver a partir
espaço, conhecimento e subjetividade, entre do sistema colonial na modernidade.
outras áreas-chave da experiência humana, A antropóloga Rita Segato (2021) aponta
permitindo-nos identificar e explicar os que o que se existia antes da colonização era um
modos pelos quais sujeitos colonizados sistema patriarcal de baixa intensidade, no
experienciam a colonização, ao mesmo entanto, “quando foram colocados sob a pressão
tempo em que fornece ferramentas da colonização, a influência da metrópole e da
conceituais para avançar a descolonização.
república exacerbou as hierarquias já existentes
(MALDONADO-TORRES, 2018, p. 33).
(as de casta, status e gênero como um tipo de
A colonialidade, como “herança” da status), que se tornaram autoritárias e
colonização acaba por determinar os eixos de perversas.” (SEGATO, 2021, p. 95), o que
poder e dominação as quais abrangem o gerou o que a autora chama de patriarcado de
controle de raça, gênero, trabalho, alto impacto, o qual ampliou a capacidade de
subjetividade e intersubjetividade, que dano, apontando para novas e particulares
reproduz o que Quijano (2005) intitula de formas de agressão a atingir a subjetividade,
colonialidade de poder. corporeidade e desapropriação da figura
A partir dessa discursão de situar o intuito feminina no mundo moderno. Assim, à medida
da teoria decolonial e dialogando com o objeto que a subjetividade das mulheres de cor é a mais
de estudo desse trabalho, devido tratar de negligenciada, seus corpos são os mais
questões de gênero e de raça ao se propor a supersexualizados e explorados.
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 193
107 O uso termo “mulheres de cor”, cunhado nos Estados coalizão orgânica entre mulheres indígenas, mestiças,
Unidos por mulheres vítimas da dominação racial, como mulatas, negras, cheroquis, porto-riquenhas, siouxies,
um termo de coalizão contras múltiplas opressões. Não se chicanas, mexicanas, pueblo – toda a trama complexa de
trata apenas de um marcador racial ou de uma reação à vítimas da colonialidade do gênero, articulando-se não
dominação racial, ele é também um movimento solidário enquanto vítimas, mas como protagonistas de um
horizontal. “Mulheres de cor” é uma frase que foi adotada feminismo decolonial. A coalizão é uma coalizão aberta,
pelas mulheres subalternas, vítimas de diferentes com uma intensa interação intercultural. (LUGONES,
dominações nos Estados Unidos. “Mulheres de cor” não 2020, p. 80).
propõe uma identidade que separa, e sim aponta para uma
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 194
literária, em sua verdade maior, sem Felizmente, desde o início da vida literária
pensarmos na Cultura em que ela está imersa. maranhense houveram mulheres a escrever, e de
Desse modo, o sujeito que atende ao padrão modo ainda mais contestativo ao cânone, já
social acaba por ter um lugar muito mais incidiam escritos de mulheres de cor que
acessível e de maior visibilidade dentro da embora tenham passado muito tempo
historiografia literária brasileira, de forma que esquecidos, vêm sendo resgatados, como é o
imperam os escritos desses, assim como seus caso das escritoras Maria Firmina dos Reis e
valores e percepções, obtendo assim o lugar de Mariana Luz. Esse panorama brasileiro, e mais
construtor do cânone e da representação cultural especificamente maranhense, revela como a
e literária brasileira, sendo o âmbito literário história das mulheres tem buscado mudança e a
uma entre tantas instituições a se contaminarem quebra aos paradigmas patriarcais. Passa-se por
pelas arraigas da colonialidade. Esse um caminho que vai do silêncio ao poder da
exclusivismo é atestado e exposto pela teoria palavra, da tomada de consciência frente à
decolonial a qual aponta que sociedade, no entanto, essa movimentação tem
atingido pouco os escritos de autoria feminina
quando um termo se torna “universal”, contemporâneos fazendo com que esses
porque agora representa generalidade, o que continuem marginalizados.
era inicialmente uma hierarquia se transforma
em um abismo onde o “outro” não tem lugar
Desse modo se faz importante revisitar
na grade. Assim, a estrutura binária é também a escrita da autora contemporânea Rita
obviamente diferente da dual. A estrutura de Cássia Oliveira, sendo mulher de cor na
dual é uma estrutura de dois, enquanto a sociedade maranhense, a escritora que também
estrutura binária é uma matriz de “um” e seus é doutora em filosofia, desde cedo esteve ligada
outros. (SEGATO, 2021, p. 108). à militância de esquerda, na política estudantil,
Assim, os escritos de autoria feminina, quando ainda estudante de Filosofia, na política
negra, homossexual, entre outras características partidária e ideológica, além de que tem
que se encontram fora do padrão, por muito participado ativamente de comunidades que
tempo acabaram sendo invisibilizados, buscam o bem-estar social, como Centro de
despercebidos, ou até mesmo ignorados. Cultura Negra, Grupo de Mulheres da Ilha,
Felizmente, de modo ainda recente, vários Comissão de Justiça e Paz, entre outros
escritos têm sido recuperados e aos poucos, (CÔRREA et. al, 2011), o que implica o seu
mesmo fora do padrão canônico, tem ganhado autoconhecimento como ser social e a
seu espaço dentro da literatura nacional. representação da mulher que tem o poder da
Dentro desse panorama que envolve os palavra e expressa sua condição como mulher
escritos das mulheres, a partir do momento em negra sob lirismo poético que levam ao
que se visa à ampliação do reconhecimento das encantamento e à reflexão.
manifestações literárias de autoria feminina, já 4 Entre a Concessão e o Renascer para ser
se realiza um processo de descontinuidade e mulher: leitura a luz do feminismo
subversão do próprio cânone e das estruturas de decolonial
poder, o que tem resultado, mesmo que aos
Diante do próprio confronto que é escrever
poucos, na territorialização do sujeito feminino
em um ambiente elitista/patriarcal, Rita de
no espaço já ocupado tradicionalmente pela
Cássia Oliveira é uma das vozes dissonantes do
dominação masculina, em que para tanto foram
Maranhão que resiste de maneira dupla: tanto
necessários à ruptura e o anúncio de uma
pelo próprio ato de escrever, quanto pela
alteridade em relação à visão de mundo
temática trazida em seus poemas, o que se faz
convencionada (ZOLIN, 2005).
de suma importância e coopera para o
Tratando da literatura maranhense, como parte
enriquecimento das letras do estado, no entanto,
da literatura brasileira num todo, essa também está
sua obra ainda permanece velada e pouco
inserida nos domínios de tradição e patriarcado de
conhecida, tendo em vista que a obra (Re)nascer
forma que majoritariamente estima seu Patheon
mulher publicada em 1983 ainda é pouco
que trouxe o epíteto de Atenas Brasileira, em que
explorada e destituída de trabalhos de maior
se sobressaem, igualmente, o homem, branco,
fôlego, sendo encontrada unicamente sob a
burguês e pater famílias, o que evidencia a
listagem de Côrrea e Pinto (2011), quase 40
colonialidade de poder e de gênero sobre a escrita
anos depois de sua primeira publicação.
de autoria feminina.
PERSPECTIVA DECOLONIAL DOS POEMAS DE RITA DE CÁSSIA OLIVEIRA: ENTRE A CONCESSÃO E O RENASCER PARA SER MULHER 195
********