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ROLAND BARTHES

SOBRE RACINE

Tradução I Ivone C. Benedetti


Revisão da tradução I Márcia Valéria Marrinez de Aguiar

Martins Fontes
São Paulo 2008
Esta obra foi publicedn origil1011llt'lIft' ('/1/ frallâs (()/lI o título
SUR RACINE
por Édiííons dn Seuií, Paris.
Índice
Coplfrigill © Édiliolls dn SI'I/il, 1963.
Copyrigllt © 2008, Livraria Martil/s Fontes Editora Uda.,
São Paulo, para (/ presente edição.

l~edição 2008

Tradução
IVONE C. BENEDETTI

Revisão da trad ução


Márcia Valàia Mllrtil1fz âvAglli(/,.
Acompanhamento editorial
Lncimm Ve;f
Revisões gráficas
Sandm Gorcin Cortes
Marisa Rosa Te;xe;ra
Produção gráfica
Gemido Alves
Paginação/Fotolitos
Síudío 3 Desentoloimento Editorial
Nota prévia , , , . VII

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)
L O Homem raciniano . 1
Barthes, Roland, 1915-1980. A estrutura 3
Sobre Racine I Roland Barthes ; tradução Ivone Castilho
Benedetti ; revisão da tradução Márcia Valéria Martinez de A Câmara. 4
Aguíar. - São Paulo: Editora WMF Marfins Fontes, 2008.
Os três espaços exteriores: morte, fuga, acontecimento. 6
Título original: Sur Racine.
Bibliografia. A horda. , .. 10
ISBN 978-85-7827-038-4

1. Racine, Jean, 1639-1699 - Crítica e interpretação 2. Teatro


Os dois Eros. 13
francês (Tragédia) - História e crítica I. Título.
Perturbação, 19
08-05100 CDD-842.4

Índices para catálogo sistemático:


A "cena"erótica, 22
1. Teatro francês: História e crítica 842.4
O tenebroso raciniano. 26
Todos OS direitos desta edição reseruados à
Relação fundamental, 30
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
IÚIII cnselneiro RI/malho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Técnicas de agressão. 34
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I' 1111111: III/r) Qllllliflltnrtinsfontes.col1l.br http://www.wllifmnrtillsfollles.com.br
A divisão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 I Nota prévia I
O Pai. . . .. . . . .. . . .. . . ... . . ... . . . . . . .. . .. 48
A reviravolta. ............................. 52
A Culpa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 57
O "dogmatismo" do herói raciniano . . . . . . . . . . . . . 59
Esboços de soluções. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
O Confidente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 66
O medo dos signos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 69
Logos e Prdxis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 72

Obras.. ... . ... . . ... . ... . .. . . ... . . . . . . . .. . . . 77


A Tebaida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 77
Eis aqui três estudos sobre Racine: nasceram em circunstâncias
Alexandre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
diversas, e aqui não procuraremos dar-lhes unidade retrospectiva.
Andrômaca ........................ ....... 90
O primeiro (O Homem raciniano) apareceu na edição do
Britânico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 102
Teatro de Racine publicada pelo Club français du Livrei. Sua lin-
Berenice. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 112
guagem é um tanto psicanalítica, mas o tratamento não o é; não
Bajazet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 120
o é de direito, porque jd existe uma excelente psicanálise de Racine,
Mitrídates . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 128
a de Charles Mauron', a quem devo muito; não o é de fato, por-
Ifigênia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 133
que a análise aqui apresentada não concerne de modo nenhum a
Pedra 143
Racine, mas somente ao herói raciniano: ela evita inferir o autor
Ester. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 153
da obra e a obra do autor; é uma análise voluntariamente fechada:
Atalia , 158
coloquei-me no mundo trdgico de Racine e tentei descrever suapo-
pulação (que poderíamos facilmente abstrair sob o conceito de Homo
11. Oeclamar Racine. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 169
1. Tomos Xl e XlI da coleção Théâtre classique [rançais, Club français du Livre, Paris, 1960.
111. I listória ou literatura? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 183 2. Charles Mauron, L'Inconscient dans l'oeuure et Ia vie de Racine, Gap, Ophrys, 1957.

VII
I Sobre Racine I I Nota prévia I

racinianus}, sem nenhuma referência a uma fonte deste mundo ele comporta um interlocutor implícito: o historiador da literatu-
(tirada, por exemplo, da história ou da biografia). Tentei recons- ra, de formação universitária, a quem sepede, aqui, que empreenda
tituir uma espéciede antropologia raciniana, ao mesmo tempo estru- uma verdadeira história da instituição literária (se quiser ser his-
tural e analítica: estrutural no fUndo, porque a tragédia é aqui toriador), ou então que assuma abertamente a psicologia à qual se
tratada como um sistema de unidades (as "figuras") e de funções 3; refere (se quiser ser crítico).
analítica naforma, porque só uma linguagem apta a acolher o medo
do mundo, como acredito ser a psicanálise, pareceu-me convir ao Resta dizer algumas palavras sobre a atualidade de Racine (por
encontro com um homem fechado. que foi ar de Racine hoje?). Como se sabe, essa atualidade é muito
O segundo estudo (Dizer Racine) é constituído pela resenha
rica. A obra de Racine esteve mesclada a todas as tentativas críticas
de uma representação de Fedra, no TNP'4. A circunstância está
de alguma importância empreendidas na França na última década:
hoje ultrapassada, mas parece-me sempre atual confrontar a re-
crítica sociológicacom Lucien Go/dmann, psicanalítica com Charles
presentação psicológica e a representação trágica, e apreciar, assim,
Mauron, biográfica com [ean Pommier e Raymond Picarei, de psi-
se ainda podemos representar Racine. Além disso, embora esse es-
cologia profunda com GeorgesPoulet eJean Starobinski; a tal ponto
tudo seja dedicado a um problema de teatro, veremos que nele o
que, por um notável paradoxo, o autor francês que é sem dúvida o
ator raciniano só é louvado na medida em que renuncia ao pres-
mais ligado à idéia de uma transparência clássicaé o único que con-
tígio da noção tradicional de personagem, para atingir a noção
seguiu fozer convergir para si todas as linguagens novas do século.
de figura, isto é, de forma de uma fUnção trágica, tal como esta
Isso porque, na verdade, a transparência é um valor ambí-
foi analisada no primeiro texto.
guo: é ao mesmo tempo aquilo sobre o que nada há para dizer e
O terceiro estudo (História ou literatura?) é inteiramente de-
aquilo sobre o que mais há para dizer. Portanto, é a própria trans-
dicado, através de Racine, a um problema geral de crítica. O texto
parência que foz de Racine um verdadeiro lugar-comum de nos-
foi publicado na rubrica Débats et combats da revista Annales',
sa literatura, uma espécie de grau zero do objeto crítico, um lugar
3. Esse primeiro estudo comporta duas partes. Diríamos, em termos estruturais, que uma
vazio mas eternamente oferecido à significação. Se a literatura é es-
é de ordem sistemática (analisa figuras e funções) e outra é de ordem sintagmática (re- sencialmente, como acredito, ao mesmo tempo sentido posto e senti-
toma, em extensão, os elementos sistemáticos no nível de cada obra).
4. Publicada em Théãtre populaire, n~ 29, março de 1958. [T.N.P.: Théâtre National Po-
dofrustrado, sem dúvida Racine é o maior escritorfrancês; seu gênio
pulnire, criado oficialmente em 1920, teve sua época áurea sob a direção de Jean Vilar não estaria, então, situado em especial em nenhuma das virtudes
(1951 a 1963). Roland Banhes escreveu muitos textos sobre o T.N.P. nesse período. Ver
F rritos sobre ("'!TO, São Paulo, Martins Fomes, 2006. (N. da Coord.) 1 que, sucessivamente, fizeram sua fortuna (pois a definição ética de
• Annalrs n? 3. maio-junho 1960. Racine não cessou de variar), mas numa arte sem igual da dispo-

VIII
IX
I Sobre Racine I I Nota prévia I

nibilidade, que lhe possibilita manter-se eternamente no campo de tária. E épor ter honrado perfeitamente oprincípio alusivo da obra
qualquer linguagem crítica. literária que Racine nos incita a representar plenamente nossopa-
Essa disponibilidade não é uma virtude menor; é, pelo con- pel assertivo. Portanto, afirmemos sem reservas, cada um por con-
trário, o próprio ser da literatura, levado a seu paroxismo. Escrever ta de sua própria história e de sua própria liberdade, a verdade
é abalar o sentido do mundo, colocar nele uma interrogação indi- histórica ou psicológica ou psicanalítica ou poética de Racine; ex-
reta, à qual o escritor, num último suspense, abstém-se de respon- perimentemos em Racine - visto seu próprio silêncio - todas as lin-
der. A resposta quem dá é cada um de nós, contribuindo cada um guagens que nosso século nos sugere; nossa resposta será sempre eft-
com sua história, sua linguagem, sua liberdade; mas como história, mera, e é por isso que ela pode ser inteira; dogmáticos porém res-
linguagem e liberdade mudam infinitamente, a resposta do mun- ponsáveis, não devemos abrigá-Ia sob uma "verdade" de Racine que
do ao escritor é infinita: nunca se cessade responder ao que foi es- somente o nosso tempo teria descoberto (por qual presunçdo/); bas-
crito fora de qualquer resposta: afirmados, depois rivalizados e de- tará que nossa respostaa Racine empenhe, bem além de nós mesmos,
pois substituídos, os sentidos passam, a pergunta fica. toda a linguagem através da qual nosso mundo fola a si mesmo,
Assim se explica, sem dúvida, que haja um ser trans-histórico linguagem que é uma parte essencial da história que ele se dá.
da literatura; esseser é um sistema funcional no qual um termo é
fixo (a obrá), e o outro, variável (o mundo, o tempo que consomem R. B.
essaobra). Mas, para que ojogo se cumpra, para que possamos ain-
da hoje folar de Racine como algo novo, é preciso respeitar certas
regras;por um lado, épreciso que a obra seja verdadeiramente uma
forma, que ela designe verdadeiramente um sentido trêmulo, e não
um sentido fechado; por outro lado (pois nossa responsabilidade
não épequena), épreciso que o mundo responda assertiuamente à
pergunta da obra, que elepreencha ftancamente, com sua própria
matéria, o sentido posto; em suma, épreciso que à duplicidade fo-
tal do escritor, que interroga sob pretexto de afirmar, corresponda
a duplicidade do crítico, que responde sob pretexto de interrogar.
Alusão e asserção, silêncio da obra que fola efola do homem
que escuta, tal é o sopro infinito da literatura no mundo e na his-

x XI
L O HOMEM RACINIANO
A estrutura

Há três Mediterrâneos em Racine: o antigo, o judaico e


o bizantino. Mas, poeticamente, esses três espaços formam um
único complexo de água, poeira e fogo. Os grandes lugares
trágicos são terras áridas, apertadas entre mar e deserto, som-
bra e sol levados ao estado absoluto. Basta visitar a Grécia de
hoje para compreender a violência da pequenez e o quanto a
tragédia raciniana, por sua natureza "constrita", combina com
esses lugares que Racine nunca viu: Tebas, Butroto e Trezena,
capitais da tragédia, são vilarejos. Trezena, onde Fedra morre,
é uma colina árida, fortificada por pedregulhos. O sol cria um
exterior puro, nítido, despovoado; a vida está na sombra, que
é ao mesmo tempo repouso, segredo, troca e falta. Mesmo fora

3
I Sobre Rncine I I O Homem raciniano I

de casa, não há uma aragem verdadeira: é o maquis, o deserto, A Câmara é contígua ao segundo lugar traglco, que é a
um espaço não organizado. O habitat raciniano conhece um Antecâmara, espaço eterno de todas as sujeições, pois é ali que
só sonho de fuga: o mar, os navios. Em Ifigênia, todo um povo se espera. A Antecâmara (a cena propriamente dita) é um meio
fica prisioneiro da tragédia porque o vento não sopra. de transmissão; participa ao mesmo tempo do interior e do ex-
terior, do Poder e do Acontecimento, do oculto e do extenso;
presa entre o mundo, lugar da ação, e a Câmara, lugar do silên-
A Câmara cio, a Antecâmara é o espaço da linguagem: é ali que o homem
trágico, perdido entre a letra e o sentido das coisas, fala suas
Essa geografia apóia uma relação particular da casa com seu
razões. A cena trágica não é, pois, propriamente secreta': antes,
exterior, do palácio raciniano com suas cercanias. Embora a
é um espaço cego, passagem ansiosa do segredo à efusão, do
cena seja única, conforme à regra, podemos dizer que há três lu-
medo imediato ao medo dito: é armadilha farejada, e é por isso
gares trágicos. Há primeiramente a Câmara: resquício do antro
que a permanência nela imposta à personagem trágica é sem-
mítico, é o lugar invisível e perigoso onde o Poder está embos-
pre de extrema mobilidade (na tragédia grega, é o coro que es-
cado: Câmara de Nero, palácio de Assuero, Santo dos Santos
pera, é ele que se move no espaço circular, ou orquestra, situado
onde se abriga o Deus judaico; esse antro tem um substituto fre-
diante do Palácio).
qüente: o exílio do Rei, ameaçador porque nunca se sabe se o
Rei está vivo ou morto (Amurat, Mitrídates, Tcscu). As persona- Entre a Câmara e a Antecâmara, há um objeto trágico que

gens só falam desse lugar indefinido com respeito e terror, qua- exprime, de modo ameaçador, ao mesmo tempo a contigüidade

se não ousam entrar nele, passam diante dele com ansiedade. A . e a troca, o roçar do caçador e da presa: é a Porta. Ali se vigia,

Câmara é, ao mesmo tempo, a morada do Poder e sua essência, ali se treme; ultrapassá-Ia é uma tentação e uma transgressão:
pois o Poder é apenas um segredo: sua forma esgota sua função: todo o poder de Agripina se exerce à porta de Nero. A Porta
ele mata por ser invisível: em Bajazet, são os mudos e o negro tem um substituto ativo, necessário quando o Poder quer es-
Orcan que trazem a morte e, com o silêncio e a escuridão, pro-
longam a terrível inércia do Poder ocultado'. Et ta mort est le prix de tout audacieux
Qui sans être appeli se presente à leurs ye/lx (I, 3.)
[No fundo de seu palácio, sua majestade terrível! A seus súditos afeta tornar-se invisível; ! E
1. A função da Câmara real está bem expressa nestes versos de Estber [Erter]: a morte é o prêmio de todo audacioso! Que sem ser chamado se apresenta a seus olhos.]

Ali flnd de leur palais leur rnajesté terrible 2. Sobre o fechamento do lugar raciniano, ver Bernard Dort, Huis elos racinien, Cahiers
Afficte à leurs sujets de se rendre inuisible; Renaud-Barrault, VIII.

4 5
I Sobre Racine I I o Homem raciniano I
Mas Racine tem morte e tem fala
piar a Antecâmara ou paralisar a personagem que lá está, é o mento, A morte física jamais pertence ao espaço trágico: diz-se
Véu (Britânico, Ester, Atalia); o Véu (ou a Parede que escuta) que é por decência': mas o que a decência afasta na morte car-
não é uma matéria inerte destinada a esconder, ele é pálpebra, nal é um elemento estranho à tragédia, uma "impureza", a es-
símbolo do Olhar mascarado, de modo que a Antecâmara é um pessura de uma realidade escandalosa porque já não pertence
lugar-objeto cercado de todos os lados por um espaço-sujeito; à ordem da linguagem, que é a única ordem trágica: na tragé-
a cena raciniana é, assim, duplamente espetáculo, aos olhos do dia nunca se morre, porque sempre se fala. E, inversamente,
Se Phedre nãopara o herói, sair da cena é morrer, de uma maneira ou de ou-
invisível e aos olhos do espectador (o lugar que melhor expri- confessasse
me essa contradição trágica é o Serralho de Bajazet). o amor ela tra: os "saia" de Roxana a Bajazet são sentenças de morte, e
morreria? esse movimento é o modelo de toda uma série de desfechos
O terceiro lugar trágico é o Exterior. Da Antecâmara ao
Exterior, não há nenhuma transição; eles estão colados um ao nos quais basta ao carrasco despedir ou afastar a presa para

outro de modo tão imediato quanto a Antecâmara e a Câma- fazê-Ia morrer, como se o simples contato com o ar exterior

ra. Essa contigüidade é expressa poeticamente pela natureza fosse dissolvê-Ia ou fulminá-la: quantas vítimas racinianas

por assim dizer linear do recinto trágico: as paredes do Palá- morrem assim por já não estarem protegidas por aquele lugar

cio mergulham no mar, as escadas dão para navios prestes a trágico que, no entanto - como diziam -, causava-lhes um so-

partir, as muralhas são um balcão colocado acima do próprio frimento mortal (Britânico, Bajazet, Hipóiito). A imagem es-

combate, e, se existem caminhos secretos, estes já não fazem sencial dessa morte exterior, em que a vítima definha lenta-

parte da tragédia, já são a fuga. Assim, a linha que separa a mente fora do ar trágico, é o Oriente de Berenice, para onde

tragédia de sua negação é tênue, quase abstrata; trata-se de um os heróis são interminavelmente chamados para a não-tragé-

limite no sentido ritual do termo: a tragédia é, ao mesmo tem- dia. De maneira mais geral, transplantado para fora do espa-

po, prisão e proteção contra o impuro, contra tudo o que não ço trágico, o homem raciniano se entedia: percorre todo o es-

é ela mesma. paço real como uma sucessão de cadeias (Orestes, Antíoco,
Hipólito): aí, evidentemente, o tédio é um substituto da mor-
te: todas as condutas que suspendem a linguagem põem fim
Os três espaços exteriores: morte, fuga, acontecimento à vida.

O Exterior é, com efeito, a extensão da não-tragédia; ele 3. Arálida se mata em cena, mas expira fora de cena. Nada ilustra melhor a disjunção entre
gesto e realidade. [A decência (bienséance) era uma das regras do teatro clássico francês.
contém trê espaços: o da morte, o da fuga, o do Aconteci- (N. da Coord.)]

6 7
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

o segundo espaço exterior é o da fuga: mas a fuga nunca de cada um deles a essência trágica e de só trazer à cena fragm '11

é nomeada, a não ser pela casta inferior dos familiares; os con- tos de exterior purificados sob o nome de notícias, enobre i-
fidentes e os comparsas (Acomat, Zarex) recomendam incessan- dos sob o nome de relatos (batalhas, suicídios, retornos, assas-
temente aos heróis a fuga em um daqueles inúmeros barcos sinatos, festins, prodígios). Pois, diante dessa ordem exclusiva
que passam diante de toda tragédia raciniana, para demonstrar da linguagem que é a tragédia, o ato é a própria impureza.
o quanto sua negação está próxima e é fãcil" (há apenas um " Além disso, nada mostra melhor a disparidade física dos
barco-prisão em Racine, é aquele em que a cativa Erífila se apai- dois espaços, o interno e o externo, do que um curioso fenôme-
xona por seu raptor). Aliás, o Exterior é um espaço ritualmente no de distorção temporal que Racine descreveu perfeitamente
devoluro, isto é, consignado e destinado a todo o pessoal não trá-
"e~_'azet: -':ntre o~~mpo ~:e!~~! é·o~~~3iiJ~~h!~~-,.~á
,. __ .-
~.~i~:)
gico, à maneira de um gueto às avessas, pois nele o que é tabu J~o..da ..!!lensa.g~Il},jie modo que nunca se está seguro de que o
é a amplidão do espaço, e o fechamento, um privilégio: é para acontecimento recebido seja o mesmo que o acontecimento
ali e dali que vão e vêm os confidentes, criados, mensageiros, ocorrido: o acontecimento exterior, em suma, nunca está ter-
matronas e guardas, encarregados de alimentar a tragédia com ~~::~..:.:.!~~~.?:.::~clui sua transformação em pura ~aus~f;~\
acontecimentos: suas entradas e saídas são tarefas, não sinais ou . chado na Antecamara, rece ;ena:oaoextenor apenas o alimen-
atos. No conclave infinito (e infinitamente estéril) que é toda Ii to que lhe traz o confidente, o herói vive numa incerteza
~ irre-)

tragédia, eles são os secretários oficiosos que preservam o he- J ~:~!~~:~tecimento lhe jà/taJhá sempre um' tempo a
. rói do contato profano com o real, poupam-no, por assim di- mais, o próprio tempo do espaço: esse problema inteiramente
zer, da cozinha trivial do fozer e só lhe transmitem o aconteci- einsteniano constitui a maior parte das ações trágicas'. Em re-

mento pronto, reduzido ao estado de causa pura. Esta é a ter-


5. Mais comme uous sauez, maLgré ma diLigente,
ceira função do espaço exterior: manter o ato numa espécie de Un Long cbemin sépare et te camp et Byzance;
Mille obstacles divers m'ont même trauersé,
quarentena, em que só pode penetrar uma população neutra,
Ei je puis ignorer tout ce qui s'est passé. (Bajaut, I, I.)
encarregada de fazer a triagem dos acontecimentos, de extrair Ce combat doit, dit-on, fixer nos destinées;
Et même, si d'Osmin je compte les journées, '
Le Ciel en a déjll régLé L'événement,
4. Nos uaisseaux sont tout prêts et le vent nous appelle ... (Andromaque, lII, I.) E: le Sitltan triomphe ou fiát en ce moment. (Bajazet, I, 2.)
Des uaisseaux dons Ostie armes en diligence ... (Bérénice, I, 3.)
[Mas, como sabeis, apesar de minha diligência, I Um longo caminho separa o acampa-
Déjll sur un oaisseau dons le port préparé ... (Bajaut, 11I, 2.) mento e Bizâncio, I Mil obstáculos diversos atravessaram minha passagem, I E posso ig-
[Nossos barcos estão prontos e o vento nos chama ... norar tudo o que aconteceu.
Barcos em Ósria armados diligenremente ... j Esse combate, dizem, deve decidir nossos destinos; I E, até, se conto os dias de Osmin, I
Jó num barco preparado no poho ... ] O Céu já decidiu o acontecimento, I E o Sultão triunfa ou foge neste rnornenro.]

8 9
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

sumo, a topografia raciniana é convergente: tudo converge duramente a herança, e somente após um longo tempo de lu-
para o lugar trágico, mas nele tudo se envisca. O lugar trágico tas fratricidas vieram a fundar entre eles uma aliança razoável:
é um lugar estupefato, preso entre dois medos, entre dois fan- cada um renunciava a cobiçar a mãe ou as irmãs: o tabu do in-
tasmas: o da extensão e o da profundidade. cesto estava instituído.
Essa história, mesmo sendo ficção, constitui todo o teatro
"
de Racine. Se das onze tragédias fizermos uma tragédia essen-
A horda .r·· •.·-···_- .._·- ..··..·...• --- .••...•...... " _ .. -._.' ... -----,

:~~~e disp~sermos, num.a espécie de constelação ~x~mplar, essa\


/ tribo de mais ou menos cinqüenta personagens traglCos que ha-
Portamo, uma primeira definição do herói trágico é a se- t
! bita a tragédia raciniana:..5!!_'2?Etra~~?~. as fig~:~s e. ~~.3S.õ.:~
..~a)
., r-"~-'-~'~ .. ,~.
guinte: ele é o encerrado, aquele que não pode sair sem mor-
\ horda primiriva.:o pai, proprietário incondicional da vida dos
rer: seu limite é seu privilégio; o cativeiro, sua distinção. Afora --" -. ' ..
filhos (Amurat, Mirrídates, Agamenon, Teseu, Mardoqueu, joa-
o povo da criadagem, definido paradoxalmente por sua liber-
de, até mesmo Agripina); as mulheres, ao mesmo tempo mães, ir-
dade, o que resta no lugar trágico? uma casta gloriosa na pro-
mãs e amantes, sempre cobiçadas, raramente obtidas (Andrô-
porção direta de sua imobilidade. De onde vem ela?
maca, Júnia, Atalida, Mônirna): os irmãos, sempre inimigos
Alguns autores' afirmaram que, nos tempos mais recuados
porque disputam a herança de um pai que não está completa-
de nossa história, os homens viviam em hordas selvagens; cada
mente mono e volta para puni-los (Eteocles e Polinice, Nero
horda estava submetida ao macho mais vigoroso, que possuía
e Britânico, Farnace e Xifares): o filho enfim, dilacerado até a
indistintamente mulheres, crianças e bens. Os filhos eram des-
morte entre o terror do pai e a necessidade de destruí-I o (Pir-
possuídos de tudo, a força do pai os impedia de obter as mu-
ro, Nero, Tito, Farnace, Atalia),:lJn~;':~alidad~ d~s i~'~ãos;-\
lheres, irmãs ou mães, que eles cobiçavam. Se, por infelicidade,
provocavam o ciúme do pai, eram impiedosamente mortos,
~~~ato o paI e su ~dos 0!t9.S.' ~~as..~.~.?_~óes fu~
l_cl~I1E.a.i~4.<? ..~~~~~.iEi~~)r- -.._ ..-
castrados ou banidos. Por isso - dizem tais autores -, os filhos
Não sabemos bem o que é representado aqui. Será - de
acabaram por unir-se para matar o pai e tomar seu lugar. Mor-
acordo com a hipótese de Darwin - um velhíssimo acervo fol-
ro O pai, a discórdia irrompeu entre os filhos; estes disputaram
clórico, um estado mais ou menos associal da humanidade? Será
- de acordo com a hipótese de Freud - a primeiríssima histó-
(,. 1).11 win . Aikinson, retomados por Freud (MoiSe et le monothéisme, p. 124 [Trad. bras.
/III/;sl! r o monotelsmo, esboço de psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, 2006]). ria da psique, reproduzida na infância de cada um de nós? Ve-

10 11
o Homem raciniano
I Sobre Racine I

Os dois Eros
rifico apenas que o teatro raciniano só encontra coerência no
nível daquela fábula a~~g~:~!tuada muito atrás da história ()u
A unidade trágica, portanto, não é o indivíduo, mas a fi-
da psique humana7); pureza d;íí~g--~-;:-;~··g··;;ç~~-d;;;J·~~:cír~(
r_O .,'--------.,-
. -. gura, ou melhor, a função que a define. Na horda primitiva, as
( no, a precisão da "psicologia" e o conformismo da metafísiZ~"'"
relações humanas se situam em duas categorias principais: a re-
! são aqui pr~Esç§J;s_m.Jl..itotênl.l.~§jo solo arcaico está ali, muit~j
~~..>És;~~ção original não é d~;~~penhada
.,
~~~p~~;~~;;-:s, lação de cobiça e a relação de autoridade; são elas que encon-
tramos obsessivamente em Racine.
no sentido moderno da palavra; Racine, acompanhando sua
ét<?~a, chamava-os com muito mais justeza ddãt;;;;;:;'trãt3"~s~1
HG~~~.~~?S ~<01~O primeiro nasce entre os aman-
r:: -------.------------.
Hno fundo, de máscaras,
;
figuras cujas diferenças não provêm doi
tes de uma longínqua comunidade de existência: foram cria-

mas da posição que ocupam na confiJ


dos juntos, amam-se (ou um ama o outro) desde a infância
iregistro de nascimento,
! _/
(Britânico e Júnia, Antíoco e Berenice, Bajazet e Atalida): a
\,?~.::~J?i!:!.~L<u!~.E-~~.~élTl-eE.s:.~~~-~as;
fraeifunç[ô-que as
geração do amor comporta uma duração, um amadurecimen-
distingue (o pai se opõe ao filho, por exemplo), ora é seu grau
to imperceptível; em suma, entre os dois parceiros há uma
de emancipação em relação à figura mais regressiva de sua li-
mediação, a mediação do tempo, do Passado, enfim de uma le-
nhagem (Pirro representa um filho mais liberto que Nero; Far-
galidade: foram os pais que fundaram a legitimidade desse
naces, que Xifares; Tito, que Antíoco; Hermione representa uma
amor: a amante é uma irmã que se cobiça com autorização,
fidelidade menos flexível que a de Andrôrnaca). Assim, o dis-
portanto em paz; seria possível chamar esse amor de Eros so-
curso raciniano apresenta grandes massas de linguagem indivi-
roral; seu futuro é pacífico, ele é contrariado apenas pelo ex-
sa, como se, através das diferentes falas, uma única e mesma pes-
terior; parece que seu sucesso decorre da própria origem: como
soa se expressasse; em relação a essa fala profunda, o recorte
aceitou nascer através de uma mediação, a infelicidade não lhe
puríssimo do verbo raciniano funciona como um verdadeiro
é fatal.
chamado; a linguagem é aforística, não realista; destina-se ex-
o outro Amor, ao contrário, é um amor imediato; nasce
pressamente à citação.
bruscamente; sua geração não admite latência, ele surge à ma-
neira de um acontecimento absoluto, o que é expresso,
em geral, por um passado definido como brutal (eu o vi, ela
7. "Racine não retrata o homem como ele é, mas um pouco abaixo e fora dele, naquele
ponto em que os outros membros da família, 0$ médicos e os tribunais começariam a
me agradou etc.). Esse Eros-Acontecirnento é o Eros que liga
fi ar preocupados, caso não se tratasse de teatro" (Ch. Mauron, L'Inconscientdans l'oeuvre Nero a Júnia, Berenice a Tito, Roxana a Bajazet, Erifila a Aqui-
et I« uie de Racinei.

13
12
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I
r.: ..
...
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.....
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~
les, Fedraa H.!pólit.9..:,P herói é capturado, atad~.S:Qm~y.~J mente, por ser um Eros predador, pressupõe toda uma física
\'rapt~':-; essa cap~E~ ..ésernprede ord.~E:.yi~~Jf(voltaremos a da imagem, uma óptica, no sentido próprio.
is'~~)~~;'~sses dois'E;~ssã~ i~compatíveis, não se pode Nada conhecemos sobre a idade e a beleza dos apaixo-
passar de um ao outro, do amor-arrebatamento (sempre con- nados racinianos. Periodicamente, trava-se uma verdadeira ba-
denado) ao amor-duração (sempre esperado), e essa é uma das talha para se saber quão jovem é Fedra, se Nero é adolescen-
formas fundamentais do fracasso raciniano, Sem dúvida, o te, se Berenice é mulher madura, se Mitrídates é um homem
amante infeliz, aquele que não conseguiu arrebatar, sempre ainda atraente. Decerto são conhecidas as normas da época,
pode tentar substituir o Eros imediato por uma espécie de subs- sabe-se que era possível jazer uma declaração de amor a uma
tituto do Eros sororal; pode, por exemplo, enumerar as razões donzela de quatorze anos sem que ela se ofendesse, e que a mulher
que há para amá-lo", tentar introduzir uma mediação nessa :/flJa -q!~lojLr!OSJ~~'!:!tf.....~_~.r::..:_rr:!.~"
iS~~_"~.~n.:
...l?()ll<:.a.}~p~rtânci~:
relação malograda, recorrer a uma causalidade; pode imagi- t
{
a beleza raciniana é abstrata no sentido de ser sempre nomea-y
rn' ..:
..,~_,.~
..:-.~,~'''~.
,- - /" . ~>"=~~'''~'~~'''''''~_'-''--''''''. "'-''''''''-'''''''~''/

nar que, à força de ser visto, será amado, que a coexistência, ,da; Racine dIZ: Bajazet e encantador, Berenice tem belas mãos;
fundamento do amor sororal, acabará por produzir esse amor. o conceito, de alguma maneira, dispensa da coisa". Seria pos-
Mas essas são, precisamente, razões, ou seja,_~!!:~..!.~g.Ll~em. sível dizer que a beleza é uma decência, uma característica de
destinada a mascarar o fracasso inevitáv~!fÓ amor sororal é, '\ classe, e não uma constituição anatômica: não há esforço na-
(:~~;S:dãdo-;;-~~~
.?.ii1ia2~~ng~nquo mu~o antigo 0;/ quilo que se poderia chamar de adjetividade do corpo.
No entanto, o Eros raciniano (pelo menos o Eros ime-
\~~ f~sJ(cuja versão i3:~tl~.~~~.?
..~.~~eri~:~o·
importante para RacineU O Eros real, o retratado, ou seja,')..! diato de que falaremo~4Qrªv~I!te)6nca é sub!i_~Q~ sai~d~\
('§?~~íi;Te~~;-;~~~---;;-~-;-;do
e perfei~~- de uma pura visão, ele sel
E?.!F~'~-;-qu;~o,
--,.... __ ...
é o Eros ime~,~ ~~_, ··A~---------_~_·-"'.-~_~
•••.•
n•...-. ••• .."'.~_'_"""-"'"-._
...~_.~_.--- .._, __

9. Por exemplo:
8. Ouvrez lesyeux, Seigneur, et songeons entre nous
Par combien de raisons Bérénice est à uous. (Bér. Ill, 2.) Cettefiáe princesse a percé son beau sein...
j'ai senti son beau corps tout froid entre mes bras... (Teb. V, 5.)
Quoi! Madame, les soins qu'il a pris pour vous plaire,
On sait qu'elie est charmante, et de si belles mains
Ce que uous avez foit, ce que uouspouvez foire,
Semblent uous demander l'empire des humains. (Ser. Il, 2.)
Sespérils, ses respects, et surtout vos appas,
Tout cela de son coeur ne uous répond-il pas? (Baj. I, 3.) Bajazet est aimable; il vit que son salut ... (Sai 1, 2.)
(Abri os olhos, Senhor, e pensemos entre nós I Por quantas razões Berenice é vossa. [Aquela altiva princesa transpassou o belo seio ... / Senti seu belo corpo frio entre meus
Como! Senhora, os cuidados que ele teve em vos agradar, / O que fizestes, o que podei, braços ...
fazer, I Seus perigos, seus respeitos e, sobretudo, vossa sedução, I Tudo isso ele não vos Sabe-se que ela é sedutora, e tão belas mãos / Parecem pedir-vos o império dos humanos.
responde com seu coração'] Bajazer é encantador, e viu que sua salvação ... ]

14 15
I Sobre Racine I ! O Homem raciniano I

(imobii~~~f~~i-;;:~çi~ p~;pé;~-;d~ ~orpo c;;;;ci~~~~ <§.rtes e fraco_~~'~)é(fe âlili'.~.-~o~o ext~ns!~~,a


\."'-~duz infinitamente
-._._. __ - - - --
a _~ena ori inal g,h!ç ..•o formouJ(Berenice, ~eparãÇão-dos sex~ é s~~.situação na rel~~.~o de forças q~
Fedra, Erifila e Nero revivem o nascimento de seu amor"): a lança alguns na virilidade e outrõs-ilafeminilidade,\sem con-
narrativa que esses heróis fazem desse amor aos confidentes sideraçãó -pelo sex;ElorÓgíCo~llr mulheres virií61des (basta
não é, evidentemente, uma informação, mas um verdadeiro que participem do Poder: Axiana, Agripina, Roxana, Atalia).
protocolo obsessivo; aliás, é por ser pura prova de fascinação Há homens feminóides, não por caráter, mas por situação:
que em Racine o amor se distingue tão pouco do ódio; o ódio Taxiles, cuja covardia é frouxidão, abertura perante a força
é francamente físico, é sentimento agudo do outro corpo; tal
de Alexandre; Bajazet, ao mesmo tempo cativo e cobiçado, fa-
como o amor, nasce da visão e dela se alimenta; e, tal como o
dado, por uma alternativa propriamente raciniana, ao assassi-
amor, produz uma vaga de alegria. Racine apresentou muito
nato ou à violação; Hipólito, que está em poder de Fedra, de-
bem a teoria desse ódio carnal em sua primeira peça, A Tebaida",
sejado por ela e, ademais, virgem (Racine tentou "desfernini-
O que Racine exprime de modo imediato, portanto, é a
zar" Hipólito tornando-o apaixonado por Arícia, mas sem
alienação, e não o desejo. Isso fica evidente quando examina-
sucesso, como demonstra o julgamento dos contemporâneos:
mos a sexualidade raciniana, que é mais de situação que de
a situação inicial era forte demais); Britânico, odiado por Nero,
natureza. Em Racine, o próprio sexo está submetido à situa-
não deixa de estar em certa relação erótica com ele, pois bas-
ção fundamental das figuras trágicas, que mantêm uma relação
ta que o ódio coincida com o Poder para que os sexos se com-
de f.<?:!Ia;não há caracteres no teatro raciniano (por isso,fã.f~
partilhem: Nero goza com o sofrimento de Britânico como
".~?I~~am~;-~~~:WúllG?kmTz~~-;- individuaÍidade das)
com o sofrimento de uma mulher amada e torturada". Vê-se
\perso;;~g~~perguntar se Andrômaca é sedutora"Ou' se :BaJ;~
aqui o surgimento de um primeiro esboço da fatalidade raci-
zet éft~ihi~~n~s~~tia;-(iu~;e-f~mal do termo~\
niana: uma simples relação, no início puramente circuns-
(u'do extra~~-;;-d;põSíÇã~que ocupa na c'on~ação ;~~-~
tancial (cativeiro ou tirania), é convertida em verdadeiro
\la.sJor~u:;_das..fraq.~í!á....A.Ejvisão do mundo raciniano em
. _---_._-.---~----- dado biológico; a situação, em sexo; o acaso, em essência .
As constelações mudam pouco na tragédia, e a sexuali-
10. De maneira mais geral, a narrativa não é, de modo algum, uma parte morta da tragédia;
ao contrário, é sua parte fanrasrnãrica, ou seja, em certo sentido a mais profunda. dade em geral é imóvel. Mas se, extraordinariamente, a relação
11. A teoria do ódio físico é apresentada em A Tebaida, IV, I. O feudalismo sublimara o
Eros dos adversários ao submeter o corpo-a-corpo a um ritual de cavalaria. Encon-
tra-se um vestígio dessa sublimação em Alexandre (conflito entre Alexandre e Poro): 12. A relação erótica entre Nero e Britânico é explícita em Tácito. Quanto a Hipóliro, Ra-
Alexandre é cavalheiresco - mas, justamente, está fora da tragédia. cine o fez apaixonado por Arícia, para que o público não o tomasse por um invertido.

16 17
I Sobre Racine I o Homem raciniano I

de força cede, se a tirania enfraquece, o próprio sexo tende a Perturbação


modificar-se, inverter-se: basta que Atalia, a mais viril das mu-
lheres racinianas, sensível ao "encanto" de Joás, relaxe seu poder, Portanto, é a alienação que constitui o Eros raciniano. Se-
para que sua sexualidade se perturbe: assim que a constelação gue-se q~bcorpo humano nao é trata o em termospITsUCãS;
dá indícios de modificar-se, uma nova divisão afeta o ser, um Imas em termos mágicos. orno vimos, a idade e a beleza não
novo sexo aparece, Atalia torna-se mulher". Inversamente, as têm nenhuma espessura: o corpo nunca é dado como objeto
per~~~ag~~~'q~~:p~; ~;~~Ú~;~~:~~ão fora de qualq~er relaç~ apolíneo (o apolinismo, para Racine, é uma espécie de atribu-
/
i
.--- _.~ '-

'·,~~.X~.rça (ou seja!o.:a d~ tr~.gé~i_atE_~~_~êm~~ Confidentes, to canônico da morte, em que o corpo se torna estátua, 9U
criados, conselheiros
te expulso de Eros por Nero")
sexual. Evidentemente,
(Burrhus, por exemplo, desdenhosamen-
nunca têm acesso à existência
é nos seres mais manifestamente asse-
-
seja, passado glorificado,
encialmente
como se sabe, prolongam
arrumadq)(õ
comoção, defec ão, desordem
o corpo de maneira
corpo raciniano
As roupas - que,
ambígua,
{es

ao
xuados, a matrona (Enona) ou o eunuco (Acornato) que se de- mesmo tempo para rnascará-lo e exibi-lo - têm a incumbência
clara o espírito mais contrário à tragédia, o espírito de viabili- de teatralizar o estado do corpo: pesam quando há culpa; des-
dade: somente a ausência de sexo pode autorizar a definir a vida, fazem-se quando há desamparo; o gesto implícito, aqui, é o
não como uma relação crítica de forças, mas como uma dura- desnudamento (Fedra, Berenice, [únia"), a demonstração si-
ção, e essa duração, como um val~ sexo é um privilég;-;;~~á- multânea de culpa e sedução, pois em Racine a desordem carnal
; gíC;porque éOprimelrõâtributo do conflito original: não são I
é sempre, de certa maneira, chantagem, tentativa de causar pena
\~~~.~~5ue~~~.~~_~~.9nflito; é o _~~~~ito que define o~~~:.J (às vezes levada ao ponto da provocação sádica"). Essa é a Iun-

15. Belle, sans ornements, dans le simple appareil


13. Ami. depuis deux jours, je ne Ia connais plus. D'une beauté qu'on vient d'arracber ali sommeil. (Brit. Il, 2.)
O nest plus cette reine éclaire«; intrepide,
Laissez-moi releuer as uoiles detachés,
Élevie au-dessus de son sexe timide ...
Et ees cbeueux épars dont vos Jeux sont cachés. (Ber. IV. 2.)
Ele jlotte, elle hisite; en un mot, elle est [emme. (At. III. 3.)
QJte ces uains ornements, que ces uoiles me pêsent! (Fed. I. 3.)
[Amigo. há dois dias, não a reconheço mais. I Já não é aquela rainha esclarecida, intrépi-
da, I Elevada acima de seu sexo tímido ... I Ela vacila, hesita; em suma, é mulher.] [Bela, sem ornamentos, no simples aparato I De uma beleza que se acaba de roubar ao
sono.
14. Mais, croyez-moi, l'amour est tine nutre science,
Deixar-me erguer esses véus soltos, I E esses cabelos esparsos que escondem vossos olhos.
Burrhus; et je ferais quelque difficulti
Como estes vãos adornos. como estes véus me pesam!]
D'abaisser jusque-Ià uotre sivirité. (Brit. I1I, 1)
[Mas, acredirai, o amor é outra ciência, / Burrhus: e eu oporia alguma dificuldade I 16. Laisse, laisse, Pbénice, il vara son oltvrage ... (Ber. IV. 2.)
Em rebaixar até ela a vossa severidade]. [Deixa. deixa, Fenícia, ele verá sua obra ... ]

18 19
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

ção implícita de todas as perturbações físicas, tão abundante- Berenice, Enona). O mutisino tem um correspondente gestual,

mente registradas por Racine: rubor, palidez, sucessão brusca que é o desfalecimento, ou pelo menos sua versão nobre, o aba-

de ambos, suspiros e, finalmente, pranto cujo poder erótico se timento. Trata-se sempre de uma espécie de ato bilíngüe: como
fuga, a paralisia tende a negar a ordem trágica; como chanta-
conhece: sempre se trata de lima realidade ambígua, ao mes-
gem, ela ainda participa da relação de força. Portanto, toda vez
mo tempo expressão e ato, refúgio e chantagem: enfim, a de-
que um herói raciniano recorre à desordem corporal, tem-se o
sordem raciniana é essencialmente um signo, ou seja, um sinal
indício de má-fé trágica: o herói cauila com a tragédia. Todas
e uma cominação.
essas condutas tendem a uma frustração do real trágico, são
A comoção mais espetacular, ou seja, mais condizente com
deserção (ambígua, aliás, pois desertar da tragédia talvez seja
a tragédia é a que atinge o homem raciniano em seu centro vi-
reencontrar o mundo), simulam a morte, são mortes parado-
tal, em sua linguagem" A interdição da fala, cuja natureza se-
xais, mortes úteis, pois delas se volta. Naturalmente, a pertur-
xual foi sugerida por alguns autores, é muito freqüente no he-
bação é um privilégio do herói trágico, pois só ele está impli-
rói raciniano: ela exprime perfeitamente a esterilidade da relação
cado numa relação de força. Os confidentes podem participar
erótica, sua imobilidade: para poder romper com Berenice, Tito
da comoção do amo - na maioria das vezes tentar acalmá-lo:
se torna afásico, ou seja, num mesmo movimento ele se esqui-
mas nunca dispõem da linguagem ritual da comoção: uma
va e escusa: eu vos amo demais e eu não vos amo o bastante en- criada não desmaia. Por exemplo: o herói trágico não pode
contram aí, economicamente, um signo comum. Fugir à fala dormir (salvo se for monstro, como Nero, dormirá um sono
é fugir à relação de força, é fugir à tragédia: só os heróis extre- ruim); Árcade dorme, Agamenon vela, ou melhor - forma no-
mos podem atingir esse limite (Nero, Tito, Pedra), de onde seu bre do repouso porque atormentada -, sonha.
parceiro trágico os tira com a maior rapidez possível, obrigan- Em suma, o Eros raciniano só põe os corpos na presença
do-os de alguma maneira a recuperar uma linguagem (Agripina, um do outro para destazê-los. A visão do corpo adverso pertur-
ba a Iinguageml8 e a transtorna, quer exagerando-a (nos discur-
17. Em especial:

Jái voulu lui parler, et ma voix sest perdue ... (Brit. Il, 2.) 18. Naturalmente, a fascinação pelo corpo adverso também ocorre nas situações de ódio.
Et des le premier mot, ma langue embarrassée Vejamos como Nero descreve sua relação com Agripina:
Dans ma bouche vingt fois a demeuré glacée. (Ber. Il, 2.) Eloigné de ses yeux. j'ordonne, je menace ...
Mes ye/lx ne voyaient plus, je ne pouuais parler. (Fed. I, 3.) Mais (je t'expose ici mon ãme toute nue)
Sitôt que mon malheur me ramêne à sa uue,
[Quis falar-lhe, e minha voz sumiu ...
Soá que je n'ose encor démentir te pouuoir
E já na primeira palavra, minha língua travada I Na boca vime vezes ficou gelada.
De ces yeux Otl j'ai lu si longtemps mon devo ir ...
Meus olhos já não viam, eu não podia falar.]

20 21
I Sobre Racine I
I O Homem raciniano I

sos excessivamente racionalizados), quer impondo-lhe um in-


amorosa a apoteose de Tiro; Fedra comove-se ao enxergar em
terdito. O herói raciniano nunca consegue uma conduta justa
Hipóliro a imagem de Teseu. Há uma espécie de transe: o passa-
em face do corpo alheio: a freqüentação real é sempre um fra-
do volta a ser presente, mas sem deixar de ser organizado como
casso. Não haverá então nenhum momento em que o Eros ra-
uma lembrança: o sujeito vive a cena sem ser submerso nem de-
ciniano seja feliz? Sim, precisamente quando é irreal. O corpo
cepcionado por ela. A retórica clássica possuía uma figura para
adverso é felicidade apenas quando é imagem; os momentos
expressar essa imaginação do passado: era a hipotipose (Imagi-
bem-sucedidos da erótica raciniana são sempre lembranças.
na, Pirro, os olhos cintilantes ...); um tratado da época'? diz que
na hipotipose a imagem ocupa o lugar da coisa: impossível defi-
nir melhor o fantasma. Essas cenas eróticas, de fato, são verda-
A "cena" erótica
deiros fantasmas, rememoradas para alimentar o prazer ou o res-
sentimento, estando submetidas a todo um protocolo de repeti-
O Eros raciniano se expressa única e exclusivamente pela
ção. O teatro raciniano, aliás, conhece um estado ainda mais
narrativa. A imaginação é sempre retrospectiva, e a lembrança
explícito do fantasma erótico, que é o sonho: o sonho de Atalia
sempre tem a acuidade de uma imagem: esse é o protocolo que
é, literalmente, uma premonição; miticamente, é uma retros-
regra o intercâmbio entre real e irreal. O nascimento do amor
pecção: Aralia apenas revive o Eros que a liga à criança (ou seja,
é lembrado como uma verdadeira "cena": a lembrança é tão
mais uma vez, a cena em que ela a viu pela primeira vez).
bem organizada que está perfeitamente disponível, pode ser re-
Em resumo, na erótica raciniana, o real é incessantemente
memorada à vontade, com a maior probabilidade de eficácia.
frustrado, e a imagem, inflada: a lembrança recebe a herança do
Assim, Nero revê o momento em que se apaixonou por Júnia;
fato: ela carrega20• A vantagem dessa frustração é que a imagem
Erifila, o momento em que Aquiles a seduziu; Andrômaca, o erótica pode ser arrumada. O que impressiona no fantasma raci-
momento em que Pirro se expôs a seu ódio (pois o ódio segue niano (e constitui sua grande beleza) é seu aspecto plástico: o
o mesmo processo do amor); Berenice revê com perturbação rapto de J únia, o de Erifila, a descida de Fedra ao Labirinto, o
triunfo de Tito e o sonho de Atalia são quadros, ou seja, organi-
Mais enfin mes efJorts ne me servent de rien;
Mon génie étonné tremble deuant le sim. (Brit. lI, 2.)
zam-se deliberadamente de acordo com normas da pintura: essas
[Afastado de seus olhos, ordeno, ameaço ... I Mas (exponho aqui minha alma toda
nua) I Assim que minha desdita me leva a revê-Ia, I Não ouso novamente desmentir o 19. Pe. Ber";ard Lamy, La Rbétorique ou l'Art de parler (1675).
poder I Daqueles olhos nos quais li tanto tempo meu dever ... I Mas no fim meus es-
20. Mais, Phénice, O" m'emporte un souuenir charmant? (Ber. I, 5.)
forços de nada me valem; I Meu gênio assustado treme diante do seu.]
[Mas, Fenícia, para onde me arrasta uma lembrança adorável?]

22
23
Sobre R/lcine I I O Homem raciniano I

cenas não so sao compostas, súas personagens e objetos têm Bajazet é um ser de sombra, confinado no Serralho; Mitrída-
uma disposição calculada em visía de um sentido global, convi- tes compensa toda a amplidão de suas expedições guerreiras
dam aquele que vê (e o leitor) a uma participação inteligente, apenas com a cativa Mônima (essa troca, nele, é uma conta-
como também - e sobretudo - têm a própria especialidade da bilidade abertamente declarada); Fedra, filha do Sol, deseja
pintura: o colorido; nada está mais próximo do fantasma racinia- Hipólito, homem da sombra vegetal, das florestas; o imperial
no do que um quadro de Rembrandr, por exemplo: nos dois Assuero escolhe a tímida Ester, na sombra criada; Atalia como-
casos, a matéria é organizada em sua própria imaterialidade; o ve-se com Eliacin, cativo do Templo. Por toda parte, sempre,
que se cria é a superftcie. reproduz-se a mesma constelação, do sol inquietante e da som-
Todo fantasma raciniano pressupõe - ou produz - uma
bra benéfica.
combinação de sombra e luz. A origem da sombra é o cativeiro.
Talvez essa sombra raciniana seja mais uma substância que
O tirano vê a prisão como uma sombra onde é possível mergu-
uma cor; é sua natureza uniforme e, digamos, espalhada que faz
lhar e apaziguar-se. Todas as cativas racinianas (há quase uma por
da sombra uma felicidade. A sombra é um lençol, de tal modo
tragédia) são virgens mediadoras e consoladoras; dão ao homem
que, em última análise, é possível conceber uma luz venturo-
respiração (ou pelo menos é isso que ele lhes pede). Alexandre so-
sa, desde que ela possua essa mesma homogeneidade de subs-
lar ama em Cleófila a prisioneira; Pirro, dotado de fulgor, encon-
tância: é o dia (e não o sol, assassino porque fulgor, aconteci-
tra em Andrômaca a sombra maior, a sombra do túmulo onde os
mento e não ambiente). A sombra aqui não é um tema satur-
amantes se enterram numa paz compartilhada21; para Nero, in-
niano; é um tema de desfecho, efusão, e é exatamente a utopia
cendiário, Júnia é ao mesmo tempo sombra e água (o pranto)";
do herói raciniano, cujo mal é a constrição. Aliás, a sombra
está associada a outra substância efusiva, o pranto. O raptor de
21. O rúmulo a três é mesmo um túmulo a quatro na cena eliminada:
Pyrrhus de mon Hector semble avoir pris laplace. (And V, 3.) sombra também é um raptor de lágrimas: para Britânico, ca-
[Pirro parece ter tomado o lugar de meu Heitor.)
tivo, portanto sombroso, as lágrimas de Júnia nada mais são
22. Fidéle à sa douleur et dans l'ombre enfimlée ... (Brit. 11, 2.)
Ces trésors dont te Ciel ooulut uous embeliil;
que um testemunho de amor, signo intelectivo: quanto a Nero,
Les auez-uous reçus pour les ensevelir? (11, 3.) solar, essas mesmas lágrimas O nutrem ao modo de um alimen-
Et pouuez-uous, Seigneur, souhaiter qu'un! fi!!e
Qui vit presque en naissant éteindre sa fil1~ille, to estranho, precioso; não são mais signo, mas imagem, objeto
Qui, dans l'obscurité nourrissant sa doulelllC .. (lI, 3.)
destacado de sua intenção, objeto com que é possível sa-
[Fiel à sua dor e na sombra encerrada ...
Esses tesouros com que o Céu quis vos adornar, / Acaso os recebestes para os enterrar? ciar-se, apenas em sua substância, tal como um nutriente fan-
E podeis, Senhor, querer que uma moça I Que quase ao nascer viu extinguir-se sua fa-
mília, I Que na escuridão alimentando sua dor ... ] tasmático.

24 25
I Sobre Rocine I I O Homem raciniano I

Inversamente, o que se denuncia no Sol é sua descontinui- é um conflito pintado, teatralizado: encena o real, na forma de
dade. O surgimento diário do astro é um ferimento infligido substâncias antinômicas; a cena erótica é teatro no teatro, pro-
ao meio natural da Noite": enquanto a sombra pode persistir, cura traduzir o momento mais vivo, porém também mais frá-
ou seja, durar, o Sol tem apenas um desenvolvimento crítico gil da luta: o momento em que a sombra vai ser penetrada pelo
e, ademais, de desdita inexoravelmente repetida (há um acordo fulgor. Pois o que se tem aqui é uma verdadeira inversão da me-
de natureza entre a natureza solar do clima trágico e o tempo de táfora corrente: no fantasma raciniano, não é a luz que é inun-
vende ta, que é pura repetição). Nascido na maioria das vezes dada pela sombra; a sombra não invade. É o contrário: a som-
com a própria tragédia (que dura um dia), o Sol se torna as- bra se transpassa de luz, a sombra se corrompe, resiste e se en-
sassino juntamente com ela: incêndio, ofuscamento, ferimen- trega. É esse puro suspense, é o átomo frágil de duração em
to ocular, é o fulgor (dos Reis, dos Imperadores). Sem dúvida, que o sol deixa ver a noite sem ainda a destruir que constitui
se conseguir tornar-se homogêneo, temperar-se, conter-se, de aquilo que se poderia chamar de tenebroso raciniano. O claro-
algum modo, o sol poderá encontrar uma roupagem paradoxal, escuro é a matéria seletiva do deciíramenro", e esse é exatamen-
o esplendor. Mas o esplendor não é uma qualidade própria da te o tenebroso raciniano: ao mesmo tempo quadro e teatro, quadro
luz, é um estado da matéria: há um esplendor da noite. vivo, digamos, ou seja, movimento imóvel, oferecido a uma lei-
tura infinitamente repetida. Os grandes quadros racinianos"
sempre apresentam esse grande combate mítico (e teatral) en-
o tenebroso radniano tre a sombra e a luz": de um lado, noite, sombras, cinzas, lágri-
mas, sono, silêncio, suavidade tímida, presença contínua; do ou-
Chegamos ao cerne do fantasma raciniano: a imagem trans- tro, todos os objetos da estridência: armas, águias, feixes, tochas,
põe para a disposição de suas substâncias o próprio antagonis- estandartes, gritos, vesrimentas fulgurantes, linho, púrpura, ouro,
mo, ou melhor, a dialética do carrasco e da vítima; a imagem
24. Roland Kuhn, Phénoménologie du masque d travas te test de Rorschacb, Oesclée de Brouwer.

25. Os grandes quadros racinianos são:


23. O toi, Soleil, ô toi qui rends le [our au monde.
Rapto de Júnia. (Brit. 11. 2.)
Que ne tas-tu laissé dons une nuit profonde! (Teb. I.!.)
Triunfo de Ti to. (BeI: I. 5.)
[O tu. Sol. que devolves o dia ao mundo. I Por que não o deixaste em uma noite pro- Pirro criminoso. (Andr. J, 5.)
funda!]
Rapto de Erifila. (If Il, 1.)
Não por acaso Racine escrevia sobre Uzês (em 1662): Sonho de Aralia, (At. Il, 5.)
Et flOUS auons des nuits plus be!!es que vos jours. 26. Esse combate mícico é esboçado sob outra forma nas marinhas racinianas, incêndios
[E temos noites mais belas que vossos dias.] de navios no mar.

26 27
I Sobre Racine I \
I O Homem raciniano I

aço, fogueira, chamas, sangue. Entre essas duas classes de subs-


brança, ela lhe representa o conflito no qual ele está implicado
tâncias, uma troca sempre ameaçadora, mas nunca realizada, que como objeto. O tenebroso raciniano constitui uma verdadeira
Racine expressa com uma palavra própria, o verbo realçar", fotogenia, não só porque nele o objeto é purificado de seus ele-
que designa o ato constiturivo (e tão saboroso) do tenebroso. rnentos inertes e tudo nele brilha ou se apaga, ou seja, significa,
Entende-se por que há em Racine aquilo que se poderia mas também porque, apresentado como quadro, ele desdobra
chamar de fetichismo dos olhos". Os olhos são, por natureza, o ator-tirano (ou ator-vítima), faz dele um espectador, permi-
luz oferecida à sombra: empanados pela prisão, embaçados pe- te-lhe recomeçar infindavelmente diante de si mesmo o ato sá-
las lágrimas. O estado perfeito do tenebroso raciniano são olhos dico (ou masoquista). É esse desdobramento que constitui toda
cheios de lágrimas e erguidos para o CéU • Esse é um gesto que 29
a erótica raciniana; Nero, cujo Eros é puramente imaginário",
foi freqüentemente tratado pelos pintores, como símbolo da ino- organiza incessantemente entre ele e Júnia uma cena idêntica,
cência martirizada. Em Racine, sem dúvida há isso, mas esse na qual é ao mesmo tempo ator e espectador, cena que ele re-
gesto resume principalmente um sentido pessoal da substância: gra até em suas falhas sutilíssimas, extraindo prazer de uma de-
não só a luz se purifica com água, perde o fulgor, se espalha, tor- mora em pedir perdão pelas lágrimas provocadas (a realidade
na-se uma camada feliz, como também o próprio movimento nunca poderia garantir um tempo tão bem ajustado) e dispon-
ascensional talvez indique mais lembrança do que sublimação, do, por meio da lembrança, de um objeto ao mesmo tempo

lembrança da terra, da escuridão da qual aqueles olhos partiram: submisso e inflexível". Essa preciosa imaginação, que possibilita

é um movimento aqui captado em sua própria persistência, de a Nero conduzir à vontade o ritmo do amor, é empregada por
Erifila para livrar a figura do herói amado de seus elementos ero-
tal modo que representa simultaneamente, num paradoxo pre-
ticamente inúteis; de Aquiles, ela só lembra (incessantemente)
cioso, os dois termos do conflito - e do prazer.
aquele braço ensangüentado que a possuiu, braço cuja natureza
Percebe-se por que a imagem assim constituída tem um
fálica, suponho, é bastante evidente". Assim, o quadro racinia-
poder traumatizante: exterior ao herói na qualidade de lern-

27 Relevaient de ses yeux les timides douceurs (Brit. Il, 2.) 30. [e me foi, de sa peine une image charntante. (Brit. li, 8.)

[ Realçavam de seus olhos a tímida suavidade.] [De sua dor tenho uma imagem encantadora.]

28. Problema abordado por G. May (D'Ovide à Racille) e J. Pommier (Aspects de Racine). 31. J'aimais jusqu'à ses pleurs queje [aisais couler.
Quelquefois, mais trop tard, je lui demandais f;Tltce. (Brit. 11, 2.)
29. Triste, levant au ciel ses yeux mouilies de larmes ... (Brit. 11, 2.)
[Eu amava até seu pranto, que eu provocava. I Às vezes, porém (arde demais, pedia-lhe
De mes larmes au Ciel j'offinis le sacrifice. (Est. 1, 1.)
perdão.]
[Triste, erguendo ao céu os olhos cheios de lágrimas ...
32. Cet Achille, l'auteur de tes maux et des miem,
De minhas lágrimas oferecia ao Céu o sacrifício.]
Dont Ia sanglante main m'enleua prisonniere ...

28
29
, I O Homem raciniano I
I Sobre Racine I

no é sempre uma verdadeira anamnese: o herói tenta o tempo seres dos quais um ama, e o outro, não. A relação essencial é de

todo remontar à fonte de seu fracasso; mas como essa fonte é autoridade, e o amor só serve para reueld-la. Essa relação é tão

seu próprio prazer, ele se imobiliza no passado: nele Eros é uma geral, tão formal, poderíamos dizer, que eu não hesitarei em re-

força retrospectiva: a imagem é repetida, nunca superada. presentá-Ia na forma de uma equação dupla:

A tem todo o poder sobre B.


A ama B, que não ama A.
Relação fundamental

Mas o que se deve marcar é que a relação de autoridade é


Desse modo somos remetidos a uma relação humana em
extensiva à relação amorosa. A relação de amor é muito mais
que a erótica não passa de intermediador. O conflito é funda-
fluida: pode ser mascarada (Atalia e Joás), problemática (não é
mental em Racine, presente em todas as suas tragédias. Não se
certeza que Tito ame Berenice), apaziguada (Iflgênia ama o
trata em absoluto de um conflito de amor, que possa opor dois
pai) ou invertida (Erifila ama seu carcereiro). A relação de auto-
ridade, ao contrário, é constante e explícita; não afeta apenas
Dans les cruelles mains par qui je fits rauie
[e demeumi longtemps sans lumiere et sans vie. um mesmo par ao longo de uma tragédia"; pode revelar-se
Enfin mes tristes yeux chercherent la clarté;
fragmentariamente aqui e ali; é encontrada em formas varia-
Et me voyant presse/" d'un bras ensanglante
Je frémissais, Doris, et d'un uainqueur sallvage das, ampliadas, às vezes quebradas, mas sempre reconhecíveis:
Craignais de rencontrer l'effroyable visage. (If Il, J.)
por exemplo, em Bajazet, a relação de autoridade se desdobra:
[Esse Aquiles, autor de teus males e dos meus, I Cuja mão sangrenta me fez prisionei-
ra... I Nas mãos cruéis pelas quais fui arrebatada I Fiquei muito tempo sem luz e sem Amurat tem todo o poder sobre Roxana, que tem todo o poder
vida. I Por fim meus tristes olhos buscaram a claridade; I E. vendo-me premida por
sobre Bajazet; em Berenice, ao contrário, a equação dupla se de-
um braço ensangüentado I Fremia. Dóris, e de um vencedor selvagem I Temia encon-
trar o pavoroso rosro.] sarticula: Tito tem todo o poder sobre Berenice (mas não a ama);
lfigênia adivinha muito bem - o que é notável para uma moça tão virtuosa - a natu-
reza exata do trauma amoroso em Erifila. e. verdade que o ciúme lhe dá intuição:
Oui, VOlts l'aimez, perfide. 33. Estes são os pares fundamentais da relação de força (pode haver outros, episódicos):
Et ces mêmes fi/reI/r> ql/e uous me dépeignez. Creonre e Antígona. - Taxiles e Axiana. - Pirro e Andrômaca. - Nero e Júnia. - Tito e
Ces bras que dans le sang uous avez VIIS baignés. Berenice (relação problemática. ou disjunra). - Roxana e Bajazer. - Mirrfdares e Mônima.
Ces morts, cette Lesbos, ces cendres, cette fiam me, - Agamenon e lfigênia (relação apaziguada). - Fedra e Hipólito. - Mardoqueu e Ester
Sont les traits dont l'amour Ia gravé dans uotre âme. (If Il, 5.) (relação apaziguada). - Atalia e Joás. Esses pares são completos. individualizados na me-
[Sim. pérfida. o amais. I E esses mesmos furores que me pintais, I Esses braços que de dida em que a figura o permite. Mesmo quando é mais difusa, a relação não deixa de
sangue visres banhados, / Essas mortes, Lesbos, cinzas, chamas, I São os traços com que ser capital (gregos - Pirro, Agripina - Nero, Micndares e seus filhos. os deuses e Erifila,
Mardoqueu e Amã. Deus e Aralia).
o amor o gravou em vossa alma.

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

Berenice ama Tito (mas não tem nenhum poder sobre ele): aliás, que sua mãe esteja fisicamente no mesmo trono que ele. Aliás,
a desarticulação dos papéis em duas pessoas diferentes aborta a é aquele estar ali do parceiro que contém em germe o assassi-
tragédia. O segundo membro da equação, portanto, é funci~nal nato: reduzida obstinadamente a uma horrível injunção espacial,
em relação ao primeiro: o teatro de Racine não é um teatro de a relação humana só pode aclarar-se limpando-se: é preciso que
amor: seu assunto é o uso de uma força no âmago de urna situa- aquilo que ocupa um lugar desapareça; que a visão seja desem-
ção geralmente amorosa (mas não necessariamente: pensemos baraçada: o outro é um corpo teimoso que se deve possuir ou
em Aman e Mardoqueu): é o conjunto dessa situação que Raci- destruir. O radicalismo da solução trágica decorre da simplici-
ne chama de violência"; seu teatro é um teatro da violência. dade do problema inicial: toda a tragédia parece decorrer de
Os sentimentos recíprocos de A e B não têm outro fun- um vulgar não há lugar para dois. O conflito trágico é urna cri-
damento além da situação original na qual eles são colocados se espacial.
por urna espécie de petição de princípio, que é realmente o ato Como o espaço é fechado, a relação é imóvel. De início,
criador do poeta: um é poderoso, o outro é súdito; um é tira- tudo favorece A, pois este tem B à sua mercê e é precisamente B
no, o outro é cativo; mas essa relação nada seria se não fosse que ele quer. Em certo sentido, a maioria das tragédias de Raci-
acompanhada por uma verdadeira contigüidade: A e B estão ne consiste em violações virtuais: B só escapa a A por meio da
encerrados no mesmo lugar: afinal, é o espaço trágico que fun- morte, do crime, do acidente ou do exílio; quando a tragédia é
da a tragédia. À parte essa disposição, o conflito é sempre imo- oblativa (Mitrídates) ou reconciliada (Ester), é por meio da mor-
tivado; já em A Tebaida, Racine deixou claro que os motivos te do tirano (Mitrídates) ou de uma vítima expiatória (Aman).
aparentes de um conflito (no caso, a sede comum de reinar) O que suspende o assassinato, o que o imobiliza é uma alternati-
são ilusórios: são "racionalizações" posteriores. O sentimento va: A está, por assim dizer, paralisado entre o assassinato bruto
vai buscar no outro a sua essência, não os seus atributos: é à e a generosidade impossível; segundo o esquema sartriano clás-
força de odiar-se que os parceiros racinianos vêm a ser: Ereo- sico, o que A quer possuir pela força é a liberdade de B; em ou-
eles odeia Polinice, não seu orgulho. A posição (contigüidade tras palavras, ele está envolvido num paradoxo insolúvel: se pos-
ou hierarquia) é imediatamente convertida em essência: é por sui, destrói; se reconhece, frustra-se; não pode escolher entre um
estar ld que o outro aliena: Amã sofre o martírio de ver Mar- poder absoluto e um amor absoluto, entre a violação e a oblação.
doqueu imóvel à porta do Palácio; Nero não pode suportar A tragédia é precisamente a representação dessa imobilidade.
Um bom exemplo dessa dialética impotente é a relação de
34. Viole" ia: "coerção exercida sobre alguém para obrigá-Io a fazer o que não quer', obrigação que une a maioria dos pares racinianos. Situado ini-

32 33
I Sobre Racine I I O Homem raclniano I

cialmente no céu da mais sublime moral (Eu vos devo tudo, diz seu ser decorre de sua situação com relação ao outro. Portan-
o súdito raciniano a seu tirano), o reconhecimento logo se reve- to, não se trata absolutamente de uma relação de inimizade.
la uma espécie de veneno. Sabe-se da importância da ingratidão Em Racine, nunca há adversário, no sentido ritual que essa pa-
na vida de Racine (Moliere, Port- Royal). O mundo raciniano é lavra podia ter no feudalismo ou mesmo em Corneille; o úni-
fortemente contabilizado: o tempo todo calculam-se benefícios co herói cavalheiresco do teatro raciniano é Alexandre (ele
e obrigações: por exemplo, Nero, Tito e Bajazet se devem a Agri- mesmo explica com que avidez procura o "bom inimigo":"), e
pina, Berenice e Roxana: a vida de B é propriedade de A de fato Alexandre não é um herói trágico. Há inimigos que entram
e de direito. Mas é precisamente por ser obrigatória que a relação em acordo para ser inimigos, ou seja, são ao mesmo tempo
é bloqueada: é por dever o trono a Agripina que Nero a matará. cúmplices. A forma do combate, portanto, não é o enfrenta-
A necessidade de certo modo matemática de ser grato designa o mento, mas o acerto de contas: trata-se de encenar a quitação.
lugar e o momento da rebelião: a ingratidão é a forma obrigada Todas as ofensivas de A têm em vista dar a B o próprio ser
da liberdade. Sem dúvida, em Racine, essa ingratidão nem sem- do nada: trata-se, em suma, de fazer o outro viver como uma
pre é assumida: Tito reveste de bons modos sua ingratidão; se nulidade, de fazer sua negação existir, ou seja, durar; trata-se
é difícil, é por ser vital, por dizer respeito à própria vida do he- de roubar-lhe continuamente o seu ser e de fazer desse estado
rói; o modelo da ingratidão raciniana é, de fato, parental: o espoliado o novo ser de B. Por exemplo, A cria inteiramente B,
herói deve ser reconhecido ao seu tirano, exatamente como o fi- tira-o do nada e volta a mergulhá-Ia no nada à vontade (é o
lho o é aos pais que lhe deram a vida. Mas, por isso mesmo, ser que faz Roxana com Bajazet'"); ou então provoca nele uma crise
ingrato é nascer de novo. A ingratidão é aqui um verdadeiro
parto (aliás, malogrado). Formalmente, a obrigação (seu nome 35. Oui, j'ai cherché Porus; mais quoi qu'on puisse dire,
Je ne le cherchais pas afin de le détruire.
é bastante eloqüente) é um vínculo, ou seja, em termos racinia-
['auouerai que brúlant de signaLer mon bras,
nos, o próprio sinal do intolerável: só pode ser rompida por um Je me laissai conduire au bruit de ses combats,
Et qu'au seul nom d'un roi [usqu'alors invincible,
verdadeiro sismo, por uma detonação catastrófica. A de nouueaux exploits mon coeur devint sensibLe. (ALex. IV, 2.)
[Sim, procurei Poro; mas digam o que disserem, / Não o proCllrava para destruí-lo. /
Confesso que, sequioso de demonstrar minha força, I Deixei-me conduzir ao fragar ~e
seus combates, / E que, ouvindo o nome de um rei até então inveucível, I A novos fei-
Técnicas de agressão tos meu coração se fez sensível.]

36. Songez-uous que je tiens les portes du palais,


Que je puis uous l'ouurir ou firma pour jamais,
Tal é a relação de autoridade: uma verdadeira função: o ti- Que j'ai sur votre vie un empire suprême,
Que uous ne respirez qu'autant que je uous aime? ..
rano e o súdito estão ligados um ao outro, vivem um pelo outro, Rentre dans le néant dont je t'ai foit sortir. (Eaj. II, 1.)

34 35
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

de identidade: a pressão trágica por excelência consiste em for- Como se vê, sempre se trata muito mais de frustrações do

çar o outro a perguntar-se: quem sou eu? (Erifila, Joás). Ou en- que de roubos (e é aí que se poderia falar de sadismo racinia-
tão, A dá a B a vida de um puro reflexo; sabe-se que o tema do no): A dá para tomar de volta, essa é a sua técnica essencial de
espelho ou do duplo sempre é um tema de frustração: ele é agressão; procura infligir a B o suplício de um gozo (ou de uma
abundante em Racine: Nero é o reflexo de Agripina"; Antíoco, esperança) interrompido. Agripina oculta de Cláudio, na hora
o de Tiro; Aralida, o de Roxana; aliás, há um objeto raciniano da morte, o pranto de seu filho; Júnia escapa de Nero no exato
que expressa essa sujeição especular, é o véu: A se esconde por momento em que ele acredita possuí-Ia; Hermione rejubila-se
trás de um véu, assim como a fonte de uma imagem parece es- por ocultar Andrômaca de Pirro; Nero impõe a Júnia tratar
conder-se por trás de um espelho. Ou então, A rompe o envol- Britânico com frieza etc. O próprio sofrimento pode ser frus-
tório de B com uma espécie de agressão policial: Agripina quer trado, e essa talvez seja a principal queixa do herói raciniano
possuir os segredos do filho, Nero transpassa Britânico, faz contra a divindade: esta não garante nem mesmo a desdita: é
dele pura transparência; nem mesmo Arícia escapa de querer isso que Jocasta censura com amargo r aos deuses". A imagem
expor em Hipólito o segredo de sua virgindade, tal como quem mais completa dessa frustração fundamental é dada no sonho

rebenta uma carapaça", de Atalia: Atalia estende as mãos para a mãe a fim de abraçá-Ia,
mas só toca um nada horrível". A frustração pode ser até uma

[já pensou que controlo as portas do palácio, / Que posso abri-Ias ou fechá-Ias para
espécie de desvio, de roubo ou de atribuição indevida: Antíoco
sempre, / Que tenho sobre vossa vida um império supremo, / Que só respirais porque e Roxana recebem as marcas de um amor que não é para eles.
vos amo? [...] / Volta para o nada de onde te rirei.]
37. Non, non, le temps n'estplus que Néron, jeune encare,
Me renuoyait les voeux d'une cour qui l'adore, Para Fedra, que ama Hipóliro de maneira bem diferente, esse movimento torna-se po-
Lorsqu'il se reposait sur moi de tout l'État, sitivo, materno: ela quer acompanhar Hipóliro ao Labirinto, fazer-se com ele (e não
Que mon ordre ali palais assemblait le sénat, contra ele) parteira do segredo.
Et que derriêre un vai/e, invisible et presente ... (Brit. I. 1.)
39. (Le Ciel.)
[Não, não, já se foi o tempo em que Nero, jovem ainda, I Remetia-me os votos de uma
Ainsi, toujours cruel, et tonjours en colhe,
corte que o adora, / Quando sobre mim transferia todo o Estado. I Quando minhas
11flint de s'apaiser, et devient plus séuêre:
ordens no palácio reunia o senado. I E por trás de um véu, invisível e presente ...}
11n'interrompt ses CO/lpSque pour les rcdoubler.
38. Mais defoire fléchir un courage inflexible, Et retire son braspour me mieux accabler. (Teb. III, 3.)
De porter Ia douleur dans une âme sensible, [(O Céu.)
D'enchainer un captif de sesflrs étonné Assim, sempre cruel e sempre colérico, / Finge aplacar-se e torna-se mais severo: / In-
Contre un joug qui lui plaft uainement mutiné: terrompe seus golpes só para redobrá-los, / E retira o braço para melhor me esmagar.]
C'est III ce que je ueux, c'est 'li ce qui m'irrite. (Fed. 11, 1.)
40. Et moi, je lui tendais les mains pOlir l'embrasser.
{Mas dobrar uma coragem inflexível, I Instalar a dor numa alma sensível. I Acorreutar
Mais je n'ai plns tro/lvé qu'un borrible mélange... (At. lI, 5.)
um cativo que os ferros assombram I Contra um jugo que lhe agrada inutilmente re-
(E eu estendia-lhe as mãos para abraçá-Ia. / Mas só encontrei uma horrível mistura ..]
belado: / É isso que eu quero, é isso que me exalra.]

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

A arma comum de todas essas anulações é o Olhar: olhar mais alto pomos o homem, mais terrível é a morte. A morte trá-
o outro é desorganizá-Io e depois fixá-Io em sua desordem, ou gica não é terrível; na maioria das vezes é uma categoria grama-
seja, mantê-lo no próprio ser de sua nulidade. O único e ex- tical vazia. Aliás, opõe-se ao morrer: só há uma morte-duração
clusivo meio de réplica de B é a fala, que aí é realmente a arma em Racine: a de Fedra. Todas as outras mortes na verdade são
II do fraco. É jàlando sua desdita que o súdito tenta atingir o ti- chantagens, peças de uma agressão.
rano. A primeira agressão de B é o lamento: no qual ele sub- Existe, primeiramente, a morte buscada, espécie de imo-
merge o amo; é um lamento contra a injustiça, e não contra a lação pudica, cuja responsabilidade deixa-se ao acaso, ao peri-
I
desdita; o lamento raciniano é sempre vaidoso e reivindicaci- go, à divindade, conjugando na maioria das vezes os benefícios
vo, baseado numa boa consciência; alguém lamenta-se para re- do heroísmo guerreiro e do suicídio adiado: Antíoco e Orestes
clamar, mas reclama sem revolta; toma implicitamente o Céu procuraram a morte durante anos, nas batalhas, nos mares;
como testemunha, ou seja, faz do tirano um objeto sob o olhar Atalida ameaça Bajazet de deixar-se matar por Roxana; Xifares
de Deus. O lamento de Andrômaca é o modelo de todos os la- quer se expor prontamente, já que Mônima lhe é recusada etc.
mentos racinianos, semeados de censuras indiretas e masca- Uma variedade mais discreta dessa morte buscada é o fim mis-
rando a agressão sob a deploração. terioso que ameaça coroar um sofrimento intolerável com
A segunda arma do súdito é a ameaça de morte. É um pa- uma espécie de patologia pouco científica: é uma morte inter-
radoxo precioso que a tragédia seja uma ordem profunda do mediária entre a doença e o suicídio". De fato, a tragédia dis-
fracasso e que, no entanto, aquilo que poderia ser considerado tingue a morte-ruptura da morte real: o herói quer morrer
como o fracasso supremo, a morte, nela nunca seja séria. A mor- para romper uma situação, e é essa vontade que ele já chama
te é um substantivo, parte de uma gramática, termo de uma de morte. Por isso, a tragédia se torna uma ordem estranha na
contestação. Com muita freqüência, a morte não passa de um qual a morte se flexiona no plural".
modo de indicar o estado absoluto de um sentimento, uma espé- Mas a morte trágica mais freqüente, porque a mais agressi-
cie de superlativo destinado a significar um cúmulo, um verbo de va, evidentemente é o suicídio. O suicídio é uma ameaça direta
fanfarronada. A leviandade com que o pessoal trágico maneja a
41. Je n'examine point si j'y pourrai suruiure. (Se>:lI, 2.)
idéia da morte (anuncia-a com muito mais freqüência do que
[Não examino a possibilidade de sobreviver a isto.]
a consuma) demonstra uma humanidade ainda pueril, em que o 42. Me ftront-ils SOl/jJiir tant de cruels trepas,
Sans jamais au tombeau précipiter mes pas? (Teb. III, 2.)
homem não está plenamente realizado: diante de toda essa re-
[Farão eles que eu sofra tantas mortes cruéis, I Sem nunca no cúmulo precipitar meus
tórica fúnebre, cabe colocar as palavras de Kierkegaard: quanto passos?]

38 39
I Sobre Rncine I I O Homem raciniano I

dirigida contra o opressor, é representação viva de sua resp n a morte de Pirro, Nero a de Britânico, Amurat (ou Roxana) a de
sabilidade, é chantagem ou punição". Sua teoria é apresentada Bajazet, Teseu a de Hipólito, a morte deixa de ser abstrata: en-
de modo franco (e ainda um tanto ingênuo) por Creonte (em tão já não são palavras que a anunciam, cantam ou exorcizam:
A Tebaidai: como prova de força, o suicídio é proveitosamen- são objetos, reais, sinistros, que rondam a tragédia desde o co-
te prolongado pelo inferno, pois o inferno possibilita colher o. meço: veneno de Nero, cordão do negro Orcan, diadema régio
frutos do suicídio, continuar fazendo sofrer, perseguindo uma de Mônima, carro de Hipólito: a morte trágica sempre diz res-
amante etc."; o inferno possibilita fazer o valor sobreviver à peito ao outro: seu movimento constitutivo é ser ministrada.
pessoa. Esse é um grande objetivo trágico: por isso, mesmo quan- A essas armas essenciais (frustração, chantagem) soma-se
do há morte real, essa morte nunca é imediata: o herói sempre toda uma arte da agressão verbal, compartilhada pela vítima e
tem tempo de falar sua morte; ao contrário do herói kierkegaar- por seu carrasco. O ferimento raciniano, evidentemente, só é
diano, o herói clássico nunca desaparece sem uma última réplica possível porque a tragédia implica a confiança extrema na lin-

(inversamente, a morte real, aquela que ocorre atrás do teatro, guagem; nela a palavra detém um poder objetivo, segundo um

só precisa de um tempo incrivelmente curto). A natureza agres- estatuto bem conhecido nas chamadas sociedades primitivas:

siva do suicídio aparece plenamente no sucedâneo que J únia lhe ela é chicotada. Temos aí dois movimentos aparentemente in-

dá: ao se tornar vestal, Júnia morre para Nero, mas apenas para versos, mas que provocam o ferimento: ou a palavra desvenda

Nero: ela consuma uma morte perfeitamente seletiva, que só visa uma situação intolerável, ou seja, magicamente a faz existir -

e frustra o tirano. E, finalmente, a única morte real da tragédia é o que ocorre com numerosas falas em que o confidente, com

é a morte mandada, é o assassinato. Quando Hermione decreta palavras inocentes, indica o mal íntimo" -, ou então o discurso
é mal-intencionado, sua intenção é diretamente maligna: essa
43. O suicídio tem um equivalente retórico, a epítrope, figura pela qual se provoca ironi- espécie de distância calma entre a polidez da palavra e a von-
camente um inimigo para que ele faça o mal.
44. ...Ma présence aux enftrs vous filt-elle odiei/se,
Düt aprês le trepas uiure uotre COl/rrOI/X, 45. Por exemplo: Doris diz a Erifila, sobre sua rival:
lnhumaine, je vais y descendre aprês VOI/S. L'aimable Ipbigénie
VóllS Y uerrez toujours l'objet de uotre haine; D'une amitié sincêre auec VOltS est unie. (If II, I.)
Et toujours mes soupirs uous rediront ma peine [A adorável Ifigênia ! Está unida a vós por amizade sincera.]
Ou paur uous ndouctr ou pour vaus tourmenter,
ou ainda, diante da frieza de Agamenon:
Et VOtlS ne pounez plus mourir pOlir m'éuiter. (Teb. última cena.)
[... Por mais que minha presença no inferno vos seja odiosa,! Que depois da morte con- N'osez-uous sans rougir être pêre un moment? (li, 2.)
tinue viva a vossa cólera, / Desumana, ali descerei atrás de vós. / Vereis para sempre o [Não ousais sem rubor ser pai um momento?]
objeto de vosso ódio; ! E sempre meus suspiros vos falarão de minhas penas! Para vos ~videntemente, é em Pedra que o nome (Hipólito) é onipotente em sua própria subs-
abrandar Oll vos atormentar, / E já não podereis morrer para me evitar.] tancra. (I, 3.)

40 41
I Sobre Rncine I I O Homem raciniano I

ta de de ferir define toda a crueldade raciniana, que é a frieza do "psicologia" raciniana - é o fato de essa relação ocorrer não só
carrasco". O mecanismo de todos esses ataques, evidentemen- fora de qualquer sociedade, mas também fora de qualquer so-
te, é a humilhação: sempre se trata de introduzir a desordem cialidade. O par raciniano (constituído pelo carrasco e pela ví-
no outro, de desjàzê-lo e, por conseguinte, restaurar a imobili- tima) luta num universo desolado, despovoado. É provavel-
dade da relação de força, restabelecer a maior distância possível mente essa abstração que legitimou a lenda de um teatro da
entre o poder do tirano e a sujeição da vítima. O sinal dessa pura paixão; Napoleão não gostava de Racine porque via nele
imobilidade restabelecida é o triunfo; esta palavra não está tão apenas um insípido escritor de amor. Para medir a solidão do
distante de seu sentido antigo: a recompensa do vencedor é par raciniano, basta pensar em Corneille (retomando um pa-
contemplar seu parceiro desfeito, reduzido ao estado de objeto, ralelo inesgotável); em Corneille, o mundo (no sentido de uma
de coisa exposta diante dos olhos, pois, em termos racinianos, realidade mais ampla e difusa que a sociedade), o mundo cir-
. . . ,-
os olhos são os órgãos mais possessIvos que existem . cunda o par de maneira viva: ele é obstáculo ou recompensa,
enfim é valor. Em Racine, a relação não tem eco, estabelece-se
no artifício da pura independência: é surda; cada um só é to-
A gente
cado pelo outro - ou seja, por si mesmo. A cegueira do herói
raciniano em relação aos outros é quase maníaca: tudo, no
O que constitui a singularidade da relação de autoridade
mundo, parece vir procurá-lo pessoalmente, tudo se deforma
_ e talvez tenha autorizado o desenvolvimento mítico de uma
para ser apenas um alimento narcísico: Fedra acha que Hipó-

46. Por exemplo, Cliremnesrra diz a Erifila, desconfiando que ela seduziu Aquiles:
lito está apaixonado pelo mundo inteiro, exceto por ela; Aman
Je ne VOI/Spresse point, Mndame, de nous suiure; vê todos os homens curvados em torno de si, exceto Mardo-
En de plus cbêres mnins ma retraiu VOI/Slivre. (lf lI, 4.) .
[Senhora, não vos insto a seguir-nos; I E minha saída vos entrega a mãos mais caras.]
queu; Orestes acha que Pino vai se casar com Hermione ex-
47. \iów ueniez de mon front obseruer Ia pãleur; pressamente para privá-lo dela; Agripina está convicta de que
POlir aller dans ses bras rire de ma douleur. (Andr. IV, 5.)
Nero pune precisamente aqueles que ela apóia; Erifila acredita
Q}/el surcroit de vengeanee et de lIouCfur nouvelle
De le montrer bientõt pllle et mort deuant elle, que os deuses favorecem Ifigênia unicamente para atormentá-Ia.
De uoir sur cet objet ses regards arrêtés
Me payer les plaisirs que je leur ai prêtés' (Ba). IV, 5.) Portanto, em relação ao herói, o mundo é uma massa mais
Je ueux uoir son désordre, et [onir de sa honte. tBa]. IV, 6.) . . ou menos indiferenciada: gregos, romanos, janízaros, ances-
[Vindes observar a palidez de minha fronte, I Para irdes em seus braços nr de minha dor.]
Que vingança extrema e prazer novo I Mostrá-Ia logo pálido e mono .~,ante dela, I Ver trais, Roma, o Estado, o povo, a posteridade, essas coletividades
nesse objeto seu olhar fixado I Pagar-me os prazeres que Ihes empresteI.
Quero ver sua confusão e gozar de sua vergonha.} não têm nenhuma realidade política, são objetos que só ser-

42 43
o Homem raciniano
I Sobre Racine I
eles, cada um) que lembram o tempo todo, com nuances infi-
vem para intimidar ou justificar, episodicamente e de acordo
nitas, que o herói raciniano está sozinho num mundo hostil
com as necessidades da causa; ou, mais exatamente: justificam
que lhe parece indiferente nomear: o on envolve, sufoca sem
que se ceda a uma intimidação. O mundo raciniano tem função nunca se declarar, é o signo gramatical de uma agressividade
de julgamento: ele observa o herói e ameaça o tempo todo cen- que o herói não pode ou não quer localizar. Além disso, é por
surá-lo, de tal modo que esse herói vive o pânico do o-que-di- meio do on que muitas vezes o herói acusa seu parceiro, con-
rão-os-outros. Quase todos sucumbem: Tito, Agamenon, Nero; ferindo à censura a caução e a segurança do anonimato. A conju-
só Pirro, o mais emancipado dos heróis racinianos, resiste. gação raciniana comporta inflexões notáveis: o eu só existe
O mundo, para eles, é terror, não-valor eleito, é uma conde- numa forma inflada que beira a explosão, a divisão (no monó-
nação difusa que os cerca e frustra, é um fantasma moral e o logo, por exemplo); o tu é a pessoa da agressão sofrida e devol-
medo que lhes inspira não exclui o fato de utilizá-lo (é o que vida (Pérfido!); o ele, a pessoa da decepção, momento em que
faz Tiro para dispensar Berenice), e, aliás, é essa duplicidade se pode falar do ser amado como de um objeto falsamente dis-
que constitui o essencia 'c' ..
I d a ma-re racrruana 48
. E m suma, par a tante, antes de voltar-se contra ele (o ingrato); o vós é a pes-
o herói raciniano, o mundo é uma opinião pública, ao mes- soa do decoro, da confissão e do ataque mascarado(Senhora);
mo tempo terror e ãlibi". o on ou o eles designam, como vimos, uma agressão difusa'",

Por isso, o anonimato do mundo, sua indistinção e sua rea- Há uma pessoa que falta na conjugação raciniana: é o nós: o

lidade cuidadosamente seletiva (ele é apenas uma voz) encontram mundo raciniano é dividido de maneira inexpiável: o prono-
me da mediação lhe é desconhecido.
sua melhor expressão em todas as formas gramaticai~ indefini-
das, pronomes alrernadamente disponíveis e ameaçadores ( "on'",

48. O próprio Racine parece ter vivenciado o mundo (exceto em seus últimos anos) como 50. Na súplica de Andrômaca a Hermione (lU, 4), vemos em poucos versos o funciona-
opinião: ele só se fez sob o olhar dos Grandes e. explicitalnentc, só escreveu para obter mento de todo um jogo sutil de pronomes:
esse olhar. O" ji'yez-votlS, Madame? [Para onde estais fugindo, Senhorar]: cerimônia e mor-
49. Em Corneille, o mundo - tão presente, valor tão alto - nunca é uma opinião pública. dacidade.
Basta comparar o tom do Tiro corneliano ao tom do Tiro raciuiano: La uetrue d'Hecior. [A viúva de Heitor]: Andrômaca se objetiva para satisfazer
Hermione.
Ma gloire Ia plus haute esr celle d'être à vous... . . Un coeur qui se rendo [Um coração que se rende]: ela faz de Pirro um objeto neutro,
Et soit de Rome esc/ave et maitre qui uoudra! (Tlto e Berenice, Ill, 5.)
distante, separado dela.
[Minha glória suprema é pertencer-vos ... I E de Roma seja escravo e senhor quem quiser'] Notre amour: [Nosso amor]: apelo tático à cumplicidade universal das mães .
.., Esse pronome neutro é intraduzível em português. En:' termos ~e uso, p~de-se consi- On ueut nous l'ôter: [Querem rirá-I o de nós]: os gregos, o mundo de forma inde-
derar que há alguma equivalência entre ela e o se apass,vador ou indererrninanre. pode terminada.
ser representada por "a gente". (N. da T.)

45
44
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

A divisão Isso porque o herói se sente sempre sob a ação de uma força ex-
terior a si mesmo, de um além longínquo e terrível, do qual se
Cabe lembrar aqui que a divisão é a estrutura fundamen- sente o joguete, que pode até dividir o tempo de sua pessoa, de-
tal do universo trágico. Chega a ser sua marca e privilégio. Por sapossá-lo de sua própria memória" e é suficientemente forte
exemplo, somente o herói trágico é dividido; confidentes e fa- para revirá-Ia, fazê-lo passar, por exemplo, do amor ao ódio".
miliares nunca debatem; avaliam ações diversas, mas não alter- Cabe acrescentar que a divisão é o estado normal do herói ra-
nativas. A divisão raciniana é rigorosamente binária, o possível
ciniano; sua unidade só é encontrada em momentos extáticos,
nada mais é que' o contrário. Essa, partição elementar decerto
no exato momento em que, paradoxalmente, ele está fora de si:
reproduz uma idéia cristã": mas no Racine profano não há
a cólera solidifica deliciosamente esse eu dilacerado".
maniqueísmo, a divisão é uma forma pura: é a função dual que
Naturalmente, a divisão não atinge apenas o eu, mas a fi-
conta, e não seus termos. O homem raciniano não se debate en-
gura, no sentido mítico com que já definimos esse termo; o tea-
tre o bem e o mal: ele se debate, só isso; seu problema está no
tro raciniano está cheio de duplos, que continuamente levam
nível da estrutura, não da pessoa".
Em sua forma mais explícita, a cisão atinge primeiramente a divisão ao nível do espetáculo: Eteocles e Polinice, Taxiles e
o eu, que se sente em perpétua luta consigo mesmo. O amor é aí Cleófila, Heitor e Pirro", Burrhus e Narciso, Tito e Antíoco,
uma espécie de poder catalítico que acelera a cristalização das Xifares e Farnaces, Nero e Britânico etc. Como se verá em breve,
duas partes. O monólogo é a expressão própria da divisão. O mo- a divisão, qualquer que seja seu sofrimento, permite que o he-
nólogo raciniano articula-se obrigatoriamente em dois membros rói resolva bem ou mal seu problema essencial, a fidelidade:
contrários (Mais non ... [Mas não], Hé quoi ... [Mas o que], etc.);
é consciência falada da divisão, e não deliberação verdadeira". 54. Hermione esquece que ela mesma mandou Orestes assassinar Pirro. (V, 5.)

55. Por exemplo:


Ah! Je l'ai trop aimé pour ne le point batr. (Andr. 11, I.)
51. Ver, por exemplo, o cântico de São Paulo traduzido por Racine:
[Ah! Eu o amei demais para não o odiar.]
Mon Dieu, quelle guerre cruelle!
Je trouue deux hommes en moi ... (Cantique spiritue/, n? 3.)
56. Ah! je vous reconnais; et ce [uste courroux,
Ainsi qu'à tous les Grecs, seigneur, vous rend à uous. (Andr. 11, 5.)
[Meu Deus, que guerra cruel! / Sinto dois homens em mim ..]
Ma colêre revient, et je me reconnais. (Mitr. IV, 5.)
52. É preciso lembrar que a cisão é a primeira car.acterísrica de ~m estado neu.rótico:_o e~
de cada neurótico está cindido e, por conseguinte, suas relaçoes com a realidade sao li- [Ah! Eu vos reconheço; e essa justa cólera, / Assim como a todos os gregos, senhor, vos
mitadas. (Nunberg, Principesdc psychanalyse, PUF, 1957.) devolve a vós mesmo.
Minha cólera retoma, e eu me reconheço.]
53. À deliberação estéril do herói raciniano cabe opor a deliberação real do velho rei Dâ-
nao, em As suplicantes de Ésquilo. É verdade que Dânao precisa decidir entre a paz ou 57. Apesar do desdém com que essa interpretação foi acolhida, estou convencido de que
a guerra, e Ésquilo é um poeta considerado arcaico! há uma ambivalência entre Heitor e Pino na visão de Andrôrnaca.

46 47
I O Homem raciniano I
I Sobre Racine I

mente numa problemática da fidelidade. O Pai é o passado. E,


dividido, O ser raciniano é de algum modo deportado para lon-
como sua definição vem muitíssimo antes de seus atributos
ge de seu passado pessoal, rumo a um passado exterior que ele
(sangue, autoridade, idade, sexo), ele é realmente e sempre um
não fez. Seu mal é ser infiel a si mesmo e fiel demais ao outro.
Seria possível dizer que ele fixa em si mesmo a cisão que ele não Pai total; para além da natureza, ele é um fato primordial, irre-

tem coragem de impor a seu parceiro: amarrada a seu carrasco, versível: o que foi é, esse é o estatuto do tempo raciniano'": para

a vítima se desliga parcialmente de si mesma. Por esse motivo a Racine, naturalmente essa identidade é a própria desdita do

divisão também lhe permite viver: ela é o preço pago para man- mundo, que está fadado ao indelével, ao inexpiável. É nesse sen-

ter-se: o cisma é aí expressão ambígua do mal e do remédio. tido que o Pai é imortal: sua imortalidade é marcada muito mais
pelo retorno do que pela sobrevida: Mitrídates, Teseu e Amurat
l
I (sob os traços do negro Orcan) voltam da morte, lembram ao
o Pai filho (ou ao irmão mais novo, é a mesma coisa) que nunca se
pode matar o Pai. Dizer que o Pai é imortal quer dizer que o An-
Quem é esse outro de quem o herói não pode se separar? terior é imóvel: quando o Pai falta (provisoriamente), tudo se
Em primeiro lugar - ou seja, da maneira mais explícita - é o desfaz; quando volta, tudo se aliena: a ausência do Pai constitui
Pai. Não há tragédia na qual ele não esteja, real ou virtualmente, a desordem; o retorno do Pai institui a culpa.
presente". O que o constitui não é obrigatoriamente o sangue O sangue, que ocupa lugar eminente na metafísica raci-
nem o sexo", nem mesmo o poder; seu ser é sua anterioridade: niana, é um substituto estendido do Pai. Tanto num caso
o que vem depois dele originou-se dele, implicado inelutavel- como noutro, não se trata de uma realidade biológica, mas es-
sencialmente de uma forma: o Sangue é uma anterioridade
58. Os pais do teatro raciniano: A Tebaida: Édipo (Sangue). - Alexandre: Alexandre (Pai- mais difusa e mais terrível, portanto, que o Pai: é um Ser trans-
deus). _ Andrômaea: Os gregos, a Lei (Herrnione, Menelau). - Britânico: Agripina. - Be-
renice: Roma (Vespasiano). - Bajaeet: Amurat, irmão mais velho (delegado a Roxana).
temporal que persiste, à maneira de uma árvore: persiste, ou
_ Muridates: Mirrídares. - Ifigênia: Os gregos, os deuses (Agamenon). - Fedra: Teseu. - Es- seja, resiste e dura como um só bloco e possui, retém, envisca.
ter: Mardoqueu. - Atalia: Joade (Deus).
59. Sem falar de Agripina, Mitrídares e Mardoqueu são expressamente pai e mãe ao mes- Portanto, o Sangue é, literalmente, uma Lei, o que quer dizer
mo cempo: um vínculo e uma legalidade. O único movimento permitido
Mais moi, qui des l'enfonee é/evé dans son sein ... (Mitlu: IV, 2.)
ao filho é romper, e não desligar-se. Encontra-se aí o impasse
Mais lui, voytlnt en moi la fille de son fere,
Me tint lieu, chêre Élise, et de pêre et de mêre. (Est. I, 1.)
[Mas eu, desde a infância criado em seu seio ...
60. Sobre o tempo raciniano, ver G. Pouler, Ét/ldes sur le temps humain.
Mas ele, vendo em mim a filha de seu irmão, I Serviu-me, cara Elisa, de pai e de mâe.]
I
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I
I O Homem raciniano I
I Sobre Racine I
racinianos são construídos com base num modelo único, o do
constitutivo da relação autoritária, a alternativa catastrófica do
par formado por Jeová e seu povo: nos dois casos, a relação é
teatro raciniano: ou o filho mata o Pai, ou o Pai destrói o fi-
feita de uma alienação recíproca: o ser onipotente liga-se pes-
lho: em Racine, os infanticídios são tão numerosos quanto s
soalmente a seu súdito, protege-o e castiga-o caprichosamen-
parricídios" .
te, mantém-no com repetidos golpes na situação de termo
A luta inexpiável entre Pai e filho é a luta entre Deus e a
eleito de um par indissolúvel (a eleição divina e a eleição trá-
criatura. Deus ou os deuses? Sabe-se que, no teatro raciniano,
gica são ambas terríveis); por sua vez, o súdito nutre pelo amo
as duas fábulas existem, a antiga e a judaica. Mas, na verdade,
um sentimento pânico de apego e terror, de ardil também: em
dos deuses pagãos Racine fica só com a natureza opressiva e
suma, filho e Pai, escravo e amo, vítima e tirano, amado e
gratuita: com a maldição que atribuem ao Sangue, os deuses
amada, criatura e divindade estão ligados por um diálogo sem
apenas garantem o caráter inexpiável do passado; seu plural
saída e sem mediação. Em todos os casos, trata-se de uma re-
abrange uma função única, que é a mesma do Deus judeu,
lação imediata, à qual se negam a fuga, a transcendência, o per-
vingança e paga, mas uma paga que sempre excede a falta", de
dão e até a vitória. A linguagem que o herói raciniano fala ao
tal modo que se trata de um Deus, por assim dizer, anterior à Céu é, sempre uma linguagem de combate, de combate pes-
lei restritiva do talião. O único e verdadeiro Deus raciniano soal. E: ou a ironia (Voilà de cesgrands Dieux Ia suprême justi-
não é grego nem cristão, é o Deus do Antigo Testamento, em ce! [Eis desses grandes Deuses a suprema justiça!]), ou a cavi-
sua forma literal e como que épica: é Jeová. Todos os conflitos lação (Un oracle dit-il tout ce qu'il semble dire? [Um oráculo
dirá tudo o que parece dizer?]), ou a blasfêmia (Dieu des Juifi,
61. No século XVII, a palavra parrictdio é entendida como qualquer atentado à autorida- tu l'emportes! [Deus dos judeus, venceste!]). O Deus raciniano
de (o Pai, o Soberano, o Estado, os Deuses). Quanto aos infanticídios, há praticamente
um por peça: existe proporcionalmente à sua malignidade; devorador de ho-
Édipo fadando seus filhos a um ódio assassino.
Hermione (os gregos, o Passado) mandando matar Pirro. mens, como a mais arcaica das divindades", seus atributos ha-
Agripina asfixiando Nero.
Vespasiano (Roma) frustrando Tito.
Mirrídates e seus filhos. 63. Et te sang d'un béros, auprês des Immortels,
Agamenon e Ifigênia. Vaut seul plus que alui de mille criminels. (Teb. III, 3.)
Teseu e Hipólito. J'ai mendié la mort cbez des peuples cruels
Atalia e Joás. Qui n'apaisent leurs Dieux que du sang des mortels. (Andr. lI, 2.)
Ademais, há em Racine duas maldições de mãe para filho: Agripina e Nero (V, 7.), Aralia
[E o sangue de um herói, perante os Imortais, I Sozinho vale mais que o de mil criminosos.
e Joás (V, 6.).
Mend~guei a morte entre povos cruéis I Que 56 aplacam seus Deuses com o sangue dos
62. Sa baine ua touiours plus loin que son amour. (Mitr I, 5.) rnorrais.]
[Seu ódio vai sempre mais longe do que seu arnor.]

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

bituais são a injustiça, a frustração". a contradição". Mas seu Deus derruba ou eleva, esse é o movimento monótono da cria-
Ser é a Maldade. ção. De tais inversões são inúmeros os exemplos. Parece até
que Racine constrói todo o seu teatro com base na forma que,
etimologicamente falando, é a peripécia e nela investe retros-
A reviravolta pectivamente aquilo que se chama de "psicologia". É evidente
que se trata de um tema muito antigo, o da cativa coroada ou do
Cabe lembrar aqui que o mecanismo da tragédia-espetá- tirano rebaixado, mas em Racine esse tema não é uma "história",
culo é o mesmo de toda metafísica providencial: a reviravolta. não tem espessura épica; é realmente uma forma, uma imagem
Converter todas as coisas em seu contrário é ao mesmo tempo a obsessiva que se adapta a conteúdos variados. O que a reviravol-
66
fórmula do poder divino e a própria receita da tragédia • A re- ta capta é uma totalidade: o herói tem a sensação de que tudo é
viravolta é, efetivamente, a figura fundamental de todo o tea- arrebatado nesse movimento de virada: o mundo inteiro vacila,
tro raciniano, seja no nível das situações miúdas, seja no nível não há negociação na pesagem do Destino, porque, justamente,
de uma peça inteira (Ester, por exemplo). Encontra-se mais o Destino sempre se apodera de uma situação já organizada, pro-
uma vez aí a obsessão por um universo de duas dimensões: o vida de um sentido, de uma figura (de uma foce) 67; a reviravol-
mundo é feito de contrários puros, nunca mediados por nada. ta se abate sobre um universo já criado por uma inteligência.
O sentido da reviravolta é sempre depressivo (salvo nas tragédias
64. (O Céu.) sacras): ela põe as coisas de alto a baixo, a queda é sua imagern'"
Mais, hélas! quand sa main semble me secourir;
C'est alors qu'il sapprête à me foire périr. tTeb. Ill, 3.)
(há, provavelmente, em Racine uma imaginação descensional,
[Mas, ai! Quando sua mão parece socorrer-me, I Na verdade ele se prepara para dar-me que o Cântico espiritual n? 3 possibilita adivinhar": lembremos a
a rnorre.]
65. Voilà de ces grands Dieux Ia suprime justice!
[usques au bord du crime ils conduisent nos pas; 67. Essa soLidificarão da sicuação vivida se expressa em fórmulas como: contra mim tudo se
lls naus le font commettre et ne l'excusent pas. C Teb. !lI, 2.) une; tudo mudou de face etc.
[É essa de tais Deuses a suprema justiça! I Até a beira do crime eles conduzem nossos
68. A teoria da queda é dada pela mulher de Amã, Zarés:
passos; I Fazem-nos cometê-Ia e não o desculpam.]
0,1 tendez uous plus haut? Je frémis quand je voi
66. A teoria da reviravolta trágica data de Aristóteles. Um historiador recente tentou ~e-
Les abimes profonds qui s'offrent devant moi:
preender sua significação sociológica: o sentido da reviravolta (converter todas as coisas
La chute désormais ne peut être qu'borrible. (Est. Ill, I.)
em seu contrário. segundo palavras de PIarão) seria a expressão de uma socl.edade cujos
[Para que altura rendeis? Fremo quando vejo I Os abismos profundos que se abrem
valores estão desorganizados e subvertidos pela passagem brutal do feudahsm~ para o
diante de mim: I A queda agora só pode ser horrível.]
'1' . ar uma brusca promoção do dinheiro (Grécia do seculo V,
mercann isrno, ou seja, p , 'd'
Inglaterra elisabetana). Essa expli~ação não. p~de referir-se, com :ssa for~a: a trage ra 69. (Os dois homens, que estão no eu)
francesa, a não ser que passe pela intermediaçâo de uma exphcaçao ideológica. como a Lun tout esprit, et tout céleste,
dada por L Goldmann. (Ver G. Thomson, Marxism and Poetry.) Véut qu'au Ciel sans cesse attaché,

52 53
I O Homem raciniano I
I Sobre Racine I
(é O ipse latino, a essência da coisa)?'. Em suma, o mundo é re-
análise do tenebroso raciniano). Como ato puro, a reviravolta não
gido por uma malícia que sabe buscar na felicidade seu cerne
tem duração, é um ponto, um clarão (em linguagem clássica, é
negativo. A estrutura do mundo trágico é desenhada, de tal modo
chamada de coup [golpe)), seria possível dizer quase uma simul-
que o mundo está sendo sempre mergulhado de novo na imo-
taneidade70: o herói atingido mantém numa percepção dilaceran-
bilidade: a simetria é a própria plástica da imediação, do fra-
te o antigo estado do qual é despojado e o novO estado que lhe é
casso, da morte, da esterilidade".
designado. De fato, mais uma vez, tal como na divisão, a cons-
A maldade é sempre precisa, de modo que se pode dizer
ciência de vida nada mais é que a consciência de reviravolta: ser
~ue a ~ragédia raciniana é a arte da maldade: é por manejar a
é não só estar dividido, como também estar revirado.
Simetria que Deus funda um espetáculo", sua malignidade é
Ora, aquilo que constitui toda a especificidade da revira-
volta trágica é o fato de ser exata e como que medida. Seu dese-
71. A_conjunção do precisamente trágico é quando: e quando ... (enunciado do cúmulo ) en-
nho fundamental é a simetria. O Destino conduz todas as coisas tao (enunciado da queda)
o • A' E o cum ... tum ... Ianno,
. comp Iexo ao mesmo tempo adversa-
...
nvo ,e .temporal (simultâneo). Os exemplos são inúmeros, sob outras formas gramaticais:
para o seu contrário como se através de um espelho: invertido, Je n ai donc naversé tanr de mers, tant d'Étars,
o mundo continua, e só o sentido de seus elementos é permu- Que pour venir si loin préparer son rrépas, (Andr. V, 1.) erc.
[Atravessei
morre) etc.] pois tantos mares • tantos Estados , I S o. para Vir - Ionge preparar
. [ao sua
tado. É a consciência dessa simetria que aterroriza o herói atin-
gido; o que ele chama de cúmulo da mudança é a própria inte- Também na or~em das situações, os exemplos são muitos; enumero ao acaso' é reei-
Sllme~tefia Narciso que Br:tânico se confia; é precisamente quando conhece su~ o~gem
ligência que sempre parece conduzir a fortuna precisamente para que ri lia deve morrer; e prensamente quando Agamenon condena a filha que a filha
se al egra com sua bondade; é precisamente quando se imagina no ápice das h .
que Amã ., . onranas
seu lugar oposto; ele assiste com terror à submissão do universo a cal; e preclSamente quando quer salvar seu amante que Atalida o perde erc.

a um poder exato: a tragédia, para ele, é a arte do precisamente 72. Sem q~erer for~ar a comparação entre a ordem estética ou merafísica e a ordem bioló-
~Ica. nao cabera lembrar que aquilo que é sempre é por dissimerria?
Alguns ,elementos de simetria podem coexistir com certos fenômenos mas não sã
............................. necessários. Neces~ário é ~ue alguns elementos de simetria não existam'. É a dissim:~
Et des biens éternels toucbé, tna que cria o fenomeno. (Pierre Curie)
Je compte pour rien tout le reste
73. (Os deuses.)
Et l'autre P'" son poids fimeste
Me tient vers Ia terre penehé. (Cantique spirituel, n~ 3.) Prenne~t-ils .tlanc plaisir li faire des coupables,
[Um, todo espírito e todo celeste, I Quer que ao Céu sempre ligado, I E pelos bens Afin d en falTe aprês d'illustres misérables? (Teb. III, 2.)
eternos tocado, I Eu conte como nada todo o resto I E o outro, com seu peso funes- [Acaso sentem prazer em criar culpados, I Para depois fazer deles ilustres miseráveis?]
to, I Mantém-me para a terra inclinado.] E no prefácio de Ester:
70. A espécie de atempora/idade da reviravolta, evidentemente, é acentuada p~a r~gra de
...ie pourrais remplir tal/te mon action auec les seules scênes que Dieu lui-même po
unidade de tempo (o que prova mais uma vez até que ponto essas regras nao sao sim-
atnsi dire, a prépnrees. ' IIr
ples convenções, mas a expressão viva de uma ideologia completa):
[... eu poderia preencher toda a minha ação apenas com as cenas que Deus mesmo
Je me uois, dans le cours d'un« même journée ... (Brit. 11, 3.) por assim dizer, preparou.] ,
[Vejo-me no curso de um mesmo dia ... ]

55
54
I Sobre Racíne I
I O Homem raciniano ,

estética, ele apresenta um belo espetáculo ao homem, o espe-


contínua", e esse formalismo lhe permite ausentar pudicamen-
táculo da depressão. Aliás, esse jogo reversivo tem sua retórica:
te Deus, mas sem o abandonar.
a antítese, e sua figura versificada, a cadência (frappeF4 do ale-
xandrino (é certo que o alexandrino se presta admiravelmente
à organização dimórfica do mundo raciniano"), Como orga- A Culpa
nizador do espetáculo trágico, Deus se chama Destino. Agora
se entende o que é o Destino raciniano; não é exatamente Deus, Assim, a tragédia é essencialmente um processo movido
é um aquém de Deus, um modo de não nomear sua maldade. contra Deus, mas processo infinito, processo suspenso e revi-
O destino permite que o herói trágico fique parcialmente cego rado. Racine inteiro cabe nesse instante paradoxal em que o fi-
para a fonte de sua desdita, que situe sua inteligência original, lho, apesar de descobrir que o pai é malvado, quer continuar a
seu conteúdo plástico, esquivando-se de designar a responsa- ser s~u ?Iho. ~a~a essa contradição só existe uma saída (que é
bilidade por ela: é um ato pudicamente separado de sua causa. a propna t~agedla): o filho assumir a culpa do Pai, a culpabili-
Compreende-se muito bem essa espécie de abstração paradoxal dade da cnatura desonerar a divindade O Pai . .
. I esmaga injusta-

quando se pensa que o herói sabe fazer a dissociação entre a rea- mente: bastará que seus golpes sejam retroativamente merecidos
lidade do Destino e a essência do Destino: ele prevê essa reali- para se tornarem justos. O Sangue é, precisamente, o veículo
dade, ignora essa essência; ou melhor, prevê a própria irnpre- dessa retroação. Pode-se dizer que todo herói trá . .
aglco nasce mo-
visibilidade do Destino, vive-o realmente como uma forma, cente: ele se torna culpado para salvar Deus" . A teolooi
eo ogla raci-.
um mana, o lugar guardado da reviravolta", absorve-se espon-
77. Ver a correção significativa:
taneamente nessa forma, sente a si mesmo como forma pura e
je me livre en aueugie au desrin qui m'entraine. (Andr. I, I.)
[Entrego-me cego ao destino que me arrasta.]

74. Claudel a propósito de Racine: No lugar de:

Frapper é isso. Como se diz: frapper o champanhe [colocá-Ia no gelo moído], frapper je me livre en aveugle au transporr qui m'entraine.
[cunhar] uma moeda, um pensamento bem frappi [cunhado, formulado] ... algo que [Entrego-me cego ao arrebatamento que me arrasra.]
eu chamarei de detonação da evidência. (Cahiers Renaud-Barrault, VII!.)
78. Mon in~ocence enfin commence à me peser:
75. A antítese é velha como o mundo, e o alexandrino, comum a toda uma civilização. je ne sats de tout temps quell» injuste puissance
Sem dúvida: o número das formas é sempre finiro. Isso não impede que elas tenham Laisse le cnme en paix et poursuit L'innocence.
sentidos particulares. A crírica não pode se abster de examinar uma forma a pretex[Q de De que'~lIe part sur moi que je tourne lesyeux,
que ela tem caráter universal. Lamento não termos ainda uma "filosofia" do alexandri- [e ~~ VOIS que malheurs qui condamnent les Dieux.
no, uma sociologia da metáfora ou uma fenomenologia das figuras de retórica. Mentons leur courraux, justifions leur baine ... (Andr. lH, 1.)
[MInha Inocência enfim começa a pesar-me I N . '.
76. Destino é o nome de uma força que se aplica ao presente ou ao futuro. Quanto ao pas- . . unca ser que Injusto poder I Deixa o cri
sado, há outra palavra, pois aí o mana já recebeu um conteúdo: é a sina. :e~Ji::~: ~oe~~;~:~ ~~o~::~~ II ~a qualquer lad~lque eu volte o olhar, I Só vej~
. ereçamos sua co era, Justifiquemos seu ódio ...]

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II
I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

niana é uma redenção invertida: é o homem que resgata Deus. os amorosos: em Racine só existe uma relação, a relação entre
Percebe-se agora qual é a função do Sangue (ou do Destino): Deus e a criatura.
ele dá ao homem o direito de ser culpado. A culpa do herói é
uma necessidade funcional: se o homem é puro, Deus é impu-
ro, e o mundo se desfaz. Portanto, é necessário que o homem o "dogmatismo" do herói raciniano
assuma sua culpa, como seu bem mais precioso: e haverá meio
mais seguro de ser culpado do que tornar-se responsável por Essa aliança terrível é a fidelidade. O herói nurre pelo Pai
aquilo que está fora dele, antes dele? Deus, o Sangue, o Pai, a o horror do enviscamento: está preso à sua própria anteriori-
Lei, em suma, a Anterioridade torna-se, por essência, acusado- dade como a uma massa possessiva que o asfixia. Essa massa é
ra. Essa forma de culpa absoluta não deixa de lembrar aquilo feita de um acúmulo disforme de elos": cônjuges, pais, pátria,
que em política totalitária se chama de culpa obj~tiv~: ~ mun- filhos até, todas as figuras da legalidade são figuras de morte.
do é um tribunal: se o réu é inocente, culpado e o JUIZ; por- A fidelidade raciniana é fúnebre, desditosa. É o que sente Tiro,
tanto, o réu assume a culpa do juiz". por exemplo: quando o pai estava vivo, ele era livre; depois
Percebe-se agora a natureza exata da relação de autoridade. que o pai morreu, tornou-se prisioneiro. Portanto, é essencial-
A não é apenas poderoso e B, fraco. A é culpado, B é inocen- mente pela força de ruptura que se mede o herói raciniano: fa-
te. Mas, como é intolerável que o poder seja injusto, B assu- talmente, é a infidelidade que o emancipa. As figuras mais re-
me a culpa de A: a relação opressiva se transmuda em relação gressivas são as que permanecem presas ao Pai, envolvidas em
punitiva, mas sem que cesse jamais entre os dois parceiros sua substância (Hermione, Xifares, Ifigênia, Ester, joade): o
todo um jogo pessoal de blasfêmias, dissimulações, rupturas Passado é um direito que ela representa com soberba, ou seja,
e reconciliações. Pois a confissão de B não é uma oblação gene- com agressividade, ainda que essa agressividade seja civilizada
rosa: é o terror de abrir os olhos para o Pai culpado". Essa me- (em Xifares e Ifigênia). Outras figuras, embora permaneçam
cânica da culpa alimenta todos os conflitos racinianos, inclusive incondicionalmente submetidas ao Pai, vivem essa fidelidade
como uma ordem fúnebre e a toleram com lamentos indiretos
;;···~··~~~~~;;~~~·~a China antiga: "Só se dá vantagem a um estrangeiro quan~o ele ;~-
. mete uma falta; o elo de enfeudação resulta da falta que 'deve' ser cometida e o per ao
que essa falta tem a finalidade de obter" (Granet, Année sociologique, 1952, p. 22). 81. O cendres d'un époux! Ô Troyensl Ô mon pêre!
O mon fils, que ter [ours coütent cher à ta mêre! tAndr: IIl, 8.)
80. Diante do célebre complexo de Édipo, seria possível chamar esse ':t0vLmenco ~~~~~:
plexo de Noé: entre os filhos, um ri da nudez do Pai, e os outros esvrarn o [6 cinzas de um esposo! 6 troianos! 6 meu pai! / 6 meu filho, como teus dias custam
caro à tua rnãel]
cobrem.

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I O Homem raciniano I
I Sobre Racine I
10, O extremo mortal). O sofrimento do vínculo é uma verda-
(Andrômaca, Orestes, Antígona, Júnia, Antíoco, Mônima). Fi-
deira apnéia", e por isso provoca à ação; acuado, o herói raci-
nalmente outros - e são os verdadeiros heróis racinianos - viven-
niano quer precipitar-se para fora. Mas esse movimento mesmo
ciam plenamente o problema da infidelidade (Hêmon, Taxiles,
é suspenso pela tragédia: o homem raciniano é surpreendido em
Nero, Tiro, Farnaces, Aquiles, Fedra, Atalia e, o mais emanci-
seu desvencilhamento; ele é o homem do que jazer?, e não do
pado de todos, Pirro): sabem que querem romper, mas não
jazer; ele dama, invoca uma ação, não a realiza; propõe alter-
descobrem como; sabem que podem passar da infância à ma-
nativas, mas não as resolve; vive impelido ao ato, mas não se
turidade sem outro parto", que em geral é o crime, parricídio,
matricídio ou deicídio; são definidos pela recusa de herdar; por projeta nele; conhece dilemas, não problemas; ele é mais rejei-

isso, seria possível transpor para eles as palavras de Husserl e ção que projeção (exceto, novamente, Pirro); fazer, para ele, é

chamá-los de heróis dogmáticos; no vocabulário raciniano, são apenas mudar. Essa natureza suspensa da alternativa se expres-

os impacientes. Seu esforço de desvencilhamento é combatido sa em inúmeros discursos racinianos; sua articulação habitual
pela força inesgotável do Passado; essa força é uma verdadeira é: Ah, mais vale... , o que quer dizer: tudo, inclusive a morte,
Erínia", que vem impedir a fundação de uma nova Lei, na qual vale mais do que continuar assim.
tudo seria finalmente possível". O movimento liberatório do homem raciniano é puramen-
.?
Esse é o dilema. Como sair dele? Mas, antes, quan áo sair. te intransitivo, já é germe do fracasso: a ação não tem onde se
A fidelidade é um estado pânico, é vivida como um fechamen- aplicar, pois já de saída o mundo está afastado. A divisão ab-
to cuja ruptura constitui um abalo terrível. Esse abalo, porém, soluta do universo, oriunda do fechamento do par em si mes-
ocorre: é o intolerável (o é demais raciniano, ou também o cúmu- mo, exclui qualquer mediação; o mundo raciniano é um mundo
de dois termos, seu estatuto é paradoxal, não dialético: falta o

82. Burrhus é aquele que tema fazer nascer em Nero o Imperador do filho. Falando de ou-
terceiro termo. Nada marca melhor essa intransitividade do
tros conselheiros: que a expressão verbal do sentimento amoroso: o amor é um
Dans une longue enfonce ils l'auraient foit oieillir. tBrit. I, 2.)
estado gramaticalmente sem objeto: eu amo, eu amava, vós amais,
[Numa longa infância eles o teriam feito envelhecer.)
83. Em seu aspecto agressivo, vingador, erínico, a fidelidade seria uma noção, f~rcemente preciso amar enfim, parece que em Racine o verbo amar é por
judaica: "Mas, no seio do povo judeu, sempre surgiran: ~ome ...
ns que re~l~lfic:vam a
natureza intransitivo; o que é posto é uma força indiferente a
tradição enfraquecida e renovavam as admoestações e as mJun~oes>Jde Moisés, n~o des-
cansando enquanto as crenças perdidas não fossem restabelecLdas (Freud, MOlSe et te seu objeto e, em suma, uma essência do ato, como se o ato se
monothéisme).
84. Animé d'un regard. je puis tout entreprende [Animado por um olhar, posso empreender
tudo], diz Pirro a Andrômaca. Ou seja, se me ajudar a romper com a Erínia Herrruone, 85. O contrário de sofrer é respirar: "ter algum descanso depois de uma provação terrível".
consigo ter acesso à nova Lei.

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

esgotasse fora de todo e qualquer termo". O amor é, já de.saída, Esboços de soluções


despegado de seu objetivo, ele é frustrado. Privado da realidade,
só pode repetir-se, e não se desenvolver. Por isso o fracasso do O tempo reiterativo é a tal ponto o tempo de Deus que
herói raciniano provém, afinal, da impotência para conceber o para Racine é o tempo da própria Natureza; de modo que rom-
tempo de outra maneira que não seja a repetição: a alternativa per com esse tempo é romper com a Natureza, é tender a uma
tende sempre à repetição, e a repetição, ao fracasso. A duração anti-Physis: por exemplo, é renegar de um modo ou de outro
raciniana nunca é maturativa. é circular, soma e traz de volta, a família, a filiação natural. Alguns heróis racinianos esboçam
sem nunca transformar nada (Berenice é o exemplo mais puro esse movimento libertador. Sempre se trata de aceitar um ter-
dessa rotação, de onde não sai nada, como disse tão bem Ra- ceiro termo para o conflito. Para Bajazet, por exemplo, é o tem-
cine). Preso por esse tempo imóvel, o ato tende ao rito. Por po: ele é o único herói trágico que segue uma conduta dilató-
isso, em certo sentido, nada é mais ilusório do que a noção de ria, que espera e, com isso, ameaça a tragédia em sua essência":
crise trágica: ela não desata, corta". Esse tempo-repetição, na- é Atalida que o leva de volta à tragédia, à morte, rejeitando
turalmente, é o tempo que define a vendera, o engendramen- toda e qualquer mediação para o seu amor: apesar da suavidade,
to infinito e como que imóvel dos crimes. De Irmãos inimigos ela é Erínia, ela resgata Bajazet. Para o Nero de Burrhus, esse
a Ata/ia, o fracasso de todos os heróis racinianos consiste em terceiro termo é o mundo, a tarefa real de um Imperador (esse
. I 88
serem eles remetidos inexoravelmente a esse tempo circu ar . Nero é progressivo); para o Nero de Narciso, é o crime erigi-
do em sistema, a tirania "pensada" (ele é regressivo em relação
86. Exemplo:
j'aimais, Seigneur, j'aimais: je voulais être aimée. (Ber. V, última cena.)
Maldição de Atalia a Joás:
[Eu amava, Senhor, amava: queria ser amada.]
Je me fiatte, j'espere
Outro verbo essencializado é temer:
Qu'indocile à ton joug, fotigllé de ta loi,
Qu'est-ce que uous craignez? Fidêle au sang d'Achab qu'il a re(lI de moi ...
- Je l'ignore moi-même, On vara de David l'héritier détestable
Mais je crains. (Brit. V, 1.) Abolir tes bonneurs, profaner ton autel
[O que terneis? I Nem eu sei, I Mas remo.] Et vengel' Athalie, Achab et [ézabel. (At. V, 6.)
87. Ao contrário, a tragédia esquiliana, por exemplo, não define, desata (Oréstia funda o [Tenho a esperança, espero I Que, indócil a teu jugo, cansado de tua lei, I Fiel ao san-
tribunal humano): Os elos se desatam, o remédio existe. (Êsquilo. Agamenon.l gue de Acabe que ele recebeu de mim ... 10 herdeiro detestável de Davi / Abolirá tuas
honrarias, profanará teu altar / E vingará Aralia, Acabe c Jezebel.]
88. Maldição de Agripina a Nero:
89. Versos amitrágicos:
Ta [ureur. s'irritant soi-même dans son cours, .
D'un sang toujours nouueau marquera tom tes l0tin. (Brit. V, 6.) , Peut-étre auec le temps j'oserai davantage.
[Teu furor, exacerbando-se em seu curso, I Com um sangue sempre novo marcara to- Ne précipitons rien ... (Ba). 11, 1.)

dos os teus dias.] [Talvez com o tempo eu ouse mais. / Não precipitemos nada ..

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I Sobre Racine I
I O Homem raciniano I

ao outro). Para Agamenon, é a falsa Ifigênia, astuciosamente in- crruanas, atinge eventualmente uma de suas figuras, confere-
ventada pelo Sacerdote. Para Pirro, é Astianax, a vida real da lhe uma linguagem moral; reina explicitamente nas quatro tra-
criança, a construção de um futuro aberto, novo, oposto à lei gédias "felizes" de Racine: Alexandre, Mitrídates, Ifigênia, Ester.
de vendeta representada pela Erínia Hermione. Nesse mundo Aqui, a tragédia é, de algum modo, fixada como um abscesso
atrozmente alternativo, a esperança consiste sempre em ter aces- numa personagem negra, aparentemente marginal, que serve
so a uma ordem terciária, em que o dueto formado por carrasco de vítima expiatória para o restante do grupo (Taxiles, Farnaces,
e vítima, Pai e filho, seja finalmente superado. Talvez seja esse Erifila, Aman). A personagem trágica é realmente expulsa como
o sentido optativo de todos os trios de amantes que atravessam um indesejável: depois de sua saída, as outras podem respirar,
a tragédia, menos como elementos clássicos do triângulo adúl- viver, abandonar a tragédia, ninguém mais está lá para olhá-Ias:
tero do que como imagem utópica de uma saída para a esteri- podem mentir juntas, celebrar o Pai como um Direito natural,
lidade do par original". gozar o triunfo de sua boa consciência. Na verdade, essa elisão
Mas a principal solução, a inventada por Racine (e já não da tragédia só pode ocorrer à custa de um último arranjo: é pre-
por algumas de suas figuras), é a má-fé: o herói se apazigua esqui- ciso desdobrar o Pai, extrair dele uma figura transcendente ge-
vando-se ao conflito sem o resolver, trasladando-se inteiramen- nerosa, um tanto afastada do Pai vingativo pela distância de
te para a sombra do Pai, associando o Pai ao Bem absoluto: é uma grande função moral ou social. Por isso, em todas essas
a solução conformista. Essa má-fé ronda todas as tragédias ra- tragédias, há ao mesmo tempo um Pai e um Rei, distintos um
do outro: Alexandre pode ser generoso, pois a lei de vendera
90. Hermione diz sobre Andrômaca e Pirro: está fixada em Poro; Mitrídates é duplo: como Pai, volta da
Nous te uerrions encor nous partager ses soins. (Andr. V, 3.)
morte, perturba, pune; como Rei, morre, perdoa; Agamenon
[Nós ainda o veríamos dedicar a nós os seus cuidados.]

Orestes, enlouquecendo: quer a morte da filha, e os gregos, a Igreja (Calcas) e o Estado


Réunissons trais coeurs qui nont pu s'accorder. (Andr. última cena.) (Ulisses) a salvam; Mardoqueu impõe o peso da Lei, possui Es-
[Reunamos [rês corações que não conseguiram enrender-se.]
ter, Assuero a eleva e satisfaz. Talvez não seja ilícito encontrar
J únia a Nero e Britânico:
Souffrez que de vos coeurs rapprochant les liens ... (Erit. Ill, 8.) nessa divisão astuciosa o próprio ato com que Racine nunca
[Aceitai que de vossos corações aproximando os laços ... ] deixou de dividir sua vida entre seu Rei (Luís XIV) e seu Pai
Tiro a Antíoco:
(Port-Royal). É Port-Royal que está no fundo de toda tragédia
Vous ne foites qu'un coeur et qu'une ãme auec nous. (Eer. 111, I.)
[Sois um só coração e uma só alma conosco.] raciniana, desenhando as figuras capitais da fidelidade e do
Aqui e ali há vestígios de um curioso dostoievskismo raciniano.
fracasso. Mas é Luís XIV, é a complacência para com o Pai-

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

Rei, que inspira todas as soluções do impasse trágico: é sempre tar: sua insignificância autoriza a ubiqüidade. O primeiro re-
pelo Rei que a tragédia se deteriora, e, aliás, foi a todas essas sultado desse direito de sair é que, para ele, o universo deixa de
tragédias "retificadas" que Luís XIV deu sua aprovação mais ser absolutamente antinôrnico": constituída essencialmente por
calorosa. uma construção alternativa do mundo, a alienação cede tão
logo o mundo se torne múltiplo. O herói vive no universo das
formas, das alternâncias, dos signos; o confidente, no dos con-
o Confidente teúdos, das causalidades, dos acidentes. Sem dúvida ele é a voz
da razão (de uma razão bem tola, mas que ainda assim é um
Entre o fracasso e a má-fé, há, porém, uma saída possível: pouco a Razão) contra a voz da "paixão"; mas isso quer dizer,
a da dialética. A tragédia não ignora essa saída; mas só pôde principalmente, que ele fala do possível contra o impossível; o
admiti-la à força de banalizar sua figura funcional: o confiden- fracasso constitui o herói e lhe é transcendente; para o confi-
te. Na época de Racine, a moda desse papel está passando, o dente, o fracasso toca o herói e lhe é contingente. Donde o ca-
que talvez aumente seu significado. O confidente raciniano (e ráter dialético das soluções que ele propõe (sem sucesso) e que
isso está de acordo com sua origem) está ligado ao herói por sempre consistem em mediar a alternativa.
uma espécie de vínculo feudal, de devoção; essa ligação desig- Em relação ao herói, sua medicina é pois aperitivo, con-
na nele um verdadeiro duplo, provavelmente incumbido de as- siste em abrir o segredo, em definir no herói o ponto exato de
sumir toda a trivialidade do conflito e de sua solução, em suma, seu dilema; ele quer produzir um esclarecimento. Sua técnica
de fixar a parcela não trágica da tragédia numa zona lateral em parece grosseira, mas é comprovada: trata-se de provocar o he-
que a linguagem se desvaloriza, torna-se doméstica?', Como se rói aventando ingenuamente uma hipótese contrária a seu im-
sabe, ao dogmatismo do herói se opõe continuamente o em- pulso, em suma, de "cometer uma gafe"93(em geral, o herói "sen-
pirismo do confidente. Cabe lembrar aqui aquilo que já disse- te" o golpe, mas o encobre rapidamente sob uma torrente de
mos acerca do fechamento trágico: para o confidente, o mundo
existe; saindo da cena, ele pode entrar na realidade e dela vol- 92. "f, ~~me~te na existência social que antinomias tais como subjerivismo e objerivismo,
espiritualismo e materialismo, atividade c passividade perdem o caráter anrinômico ... "
(Marx, Manuscritos econômico-fiiosóficos.)

91. Fedra encarrega Enona de desvencilhá-Ia das tarefas do ato, de modo que ela fique, no- 93. Exemplo: Terâmenes diz a Hipólito que ele deve precisamente dar vazão a seu amor
bre e infantilmente. apenas com o resultado trágico: por Arícia:

Pour le fléchir enfin tente tous les moyens. (Fed. 111, I.) Quoi! uous-même, Seigne«); Ia persécutez-volIs) (Fed. I, I.)

[Para dobrá-Ia, enfim, tenta todos os meios.] [Como' Vós mesmo, Senhor, a perseguisr]

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

palavras justificativas). Quanto às condutas que ele recomen- em resumo, herói que se pretende livre de ser escravo, mas não
da diante do conflito, são todas dialéticas, ou seja, subordinam livre para ser livre. No confidente, ainda que desajeitado e mui-
o fim aos meios. Vejamos quais são as condutas mais comuns: tas vezes tolo, talvez já se esboce toda a linhagem de lacaios re-
fugir (que é a expressão não trágica da morte trágica); esperar
beldes que à regressão psicológica do amo e senhor oporão um
(o que equivale a opor ao tempo-repetição o ternpo-maruraçâo domínio maleável e feliz da realidade.
da realidade)": viver (vivei, palavra de todos os confidentes,
aponta diretamente para o dogmatismo trágico como vontade
de fracasso e morte: bastaria que o herói fizesse da vida um valor
o medo dos signos
e se salvaria). Sob suas três formas, a última das quais impera-
tiva, a viabilidade recomendada pelo confidente é realmente o
o herói está fechado. O confidente o cerca, mas não pene-
valor mais antitrágico que existe; o papel do confidente não é
tra nele; as linguagens de ambos são trocadas incessantemente,
apenas represenrá-lo, mas também de opor aos álibis com que
nunca coincidem. Isso porque o fechamento do herói é um
o herói encobre seu desejo de fracasso uma Ratio exterior à tra-
medo ao mesmo tempo profundo e imediato, alimentado na
gédia que, de algum modo, a explica: ele lamenta o herói, ou
própria superfície da comunicação humana: o herói vive num
seja, de certa maneira ele atenua sua responsabilidade: acredi-
mundo de signos, sabe-se afetado por eles, mas esses signos não
ta-o livre para salvar-se, mas não para fazer o mal, réu no fra-
são seguros. Não só o Destino nunca os confirma, como tam-
casso, mas disponível para sua solução; é exatamente o contrá-
bém aumenta a confusão deles ao aplicar um mesmo signo a
rio do herói trágico, que reivindica responsabilidade plena
realidades diferentes; tão logo o herói começa a confiar numa
quando se trata de assumir um erro ancestral que ele não co-
significação (diz-se então seflatter), algo sobrevém, desarticula o
meteu, mas se declara impotente quando se trata de superá-lo:
herói e o lança na perturbação e na decepção; por isso, o mun-
do se lhe mostra coberto de "cores", e essas cores são ciladas.
94. Cédez, mon frere, à ce bouillant transport:
Alexandre et le temps uous rendront le plus fort. (Alex. Ill, 3.) A fuga do objeto amado (ou seu sucedâneo oral, o silêncio), por
Laissez à ce torrent te soin de s'ecouler. (Ber. Ill, 4.) exemplo, é terrível, por ser uma ambigüidade no segundo grau;
Mais ce succês, Madame, est encore incertain.
nunca se tem certeza de que seja fuga: como o negativo pode
Attendez. (Baj. Ill, 3.)
[Cedei, meu irmão, a esse exaltado arrebatamento: I AJexandre e o tempo vos [Orna- produzir um signo, como o nada pode significar-se? No inferno
rão mais forte.
Deixai a essa torrente o trabalho de escoar-se. das significações, a fuga é o primeiro dos suplícios (o ódio dá ao
Mas esse sucesso, Senhora, é ainda incerto. / Esperai.]
herói uma segurança bem maior, pois, precisamente, é seguro).

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I Sobre Racine I o Homem raciniano I

Como o mundo está reduzido apenas à relação do par, é no surpreendido (uma carta, por exemplo): a infelicidade ga-

o Outro inteiro que é incessantemente interrogado; o herói rantida torna-se alegria que inunda, provoca finalmente a ação:

envida esforços imensos, dolorosos, para ler o parceiro ao qual é aquilo que Racine chama de tranqüilidade".
Talvez o último estado do paradoxo trágico seja o seguin-
está ligado. Sendo a boca o lugar dos falsos signos", o leitor se
te: todo sistema de significação é duplo, objeto de confiança
volta o tempo todo para o rosto: a carne é como que a esperan-
infinita e de suspeita infinita. Chegamos aqui ao cerne da de-
ça de uma significação objetiva: a fronte, que é uma espécie de
sorganização: a linguagem. A conduta do herói raciniano é es-
rosto liso, desnudo, onde se imprime claramente a comunicação sencialmente verbal; mas também, por um movimento de tro-
que ele recebeu", e principalmente os olhos, última instância ca, seu verbo apresenta-se o tempo todo como uma conduta,
da verdade", Mas o signo mais seguro, evidentemente, é o sig- de tal modo que o discurso do homem raciniano é feito de um
movimento imediato: ele é lançado diante de nós (obviamente,
95. Jattendais, pour VOllS croire, distingo cuidadosamente linguagem de escrita). Se, por exem-
QJte cette même boucbe, aprês mille serments
D'un amour qui devait unir tous nos moments, plo, dermos ao discurso raciniano um cunho prosaico, sem ne-
Cette boucbe, à mes yeux s'auouant infideIe, nhuma consideração pelo drapeado do tom, encontraremos
M'ordonnãt elle-même une absence éternelle. iBer. IV, 5.)
Ah! croyez-vous que, loin de le pensei; ) . uma agitação formada por movimentos, exclamações, provo-
Ma bouche seulement eüt pule prol1ol1cer. (BaJ. Ill, 4.)
cações, réplicas, indignações, em suma, a própria genética da
[Eu esperava para vos crer, I Que essa mesma boca, após mil juramentos I De um
amor que devia unir todos os nossos momentos, I que .essa boca, a meus olhos confes- linguagem, não a sua maturidade. O logos raciniano nunca se
sando-se infiel, I Me ordenasse, ela mesma, uma ausencia eterna. . ...
Ah! Acredirais que, longe estando de pensá-Ia, I Minha boca podena tê-lo sequer pro- desvincula de si mesmo; ele é expressão, não transitividade; ja-
nunciadoi] mais introduz ao manuseio de um objeto ou à modificação de
96. Exemplo:
um fato; fica sempre numa espécie de tautologia exaustiva, lin-
Je verrai le témoin de ma flamme adultere
Observer de quel front j'ose aborderson pere. (Fed. Ill, 3.) guagem da linguagem. É provável que ele possa ser reduzido a um
[Verei o testemunho de minha chama adúltera I Observar com que fronte ouso abor-

~~~ . .
Apesar do caráter supostamente convencional da língua clássica, não ac~edlto mUlt.~ n.a Le 110m d'amant peut-être offinse son courage;
esclerose de suas imagens. Ao contrário, acredito que essa líI;gua extrai s~a especi !CI- Mais il en o les yeux, s'i! n'en a le langage. (Fed ll, I.)
dade (e sua enorme beleza) do caráter ambíguo de suas meraforas, que sao ao mesmo
[O nome de amante talvez ofenda sua coragem; I Mas do amante ele rem os olhos, se
tempo conceito e objeto, signo e imagem.
não a linguagem.]
97. Ma bouche mille [ois lui jura te contraire.
98. Libre des soins cruels 011 j'allais mengnger;
Quand même jwque-Ià je pourrais me t:r.ah~r, .:
Mes yeux lui déftl1drol1t, Setgneur, de m'obéir: tBrit. 11, 3.) . , Ma tranquille fitreur na plus q1/0 se venger (Bflj. IV, 5.)
. h "
[Minha boca mil vezes jurou-I e o conrrano.
I M esmo que eu pudesse me trair ate esse [Livre dos cruéis cuidados nos quais ia me empenhar, I Meu tranqüilo furor só tem de
ponto, I Meus olhos o proibirão, Senhor, de obedecer-me.] se vingar.]

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

número finito de articulações ou cláusulas, de uma natureza permite que o herói justifique suas agressões ou fracassos e de-
inteiramente trivial: não porque os "sentimentos" são vulgares les extraia a ilusão de um acordo com o mundo; é uma moral,
(coisa em que acreditou deleitosamente a crítica vulgar, de Sar- autoriza a converter a paixão .em direito. A chave da tragédia
ceye Lemaitre"), mas porque a trivialidade é a forma própria raciniana talvez seja: falar é fazer, e o Logos assume as funções
da sublinguagem, do logos que nasce incessantemente e nunca da Práxis e a substitui: toda a decepção do mundo se recolhe e
se cumpre. Aliás, nisso reside o sucesso de Racine: sua escrita se redime na fala; o fazer se esvazia, a linguagem se enche. Não se
poética foi suficientemente transparente para deixar adivinhar trata de verbalismo, o teatro de Racine não é um teatro tagare-
o caráter quase vulgar da "cena": o substrato articulatório está la (em certo sentido, bem menos do que o de Corneille), é um
tão próximo que confere ao discurso raciniano uma espécie de teatro no qual agir e falar se perseguem e se alcançam apenas
respiração leve, de relaxamento e, eu diria, quase de "swing". para fugir um do outro logo depois. Seria possível dizer que nele
a fala não é ação, mas reação. Isso talvez explique por que Raci-
ne se submeteu tão facilmente à regra formal da unidade de tem-
Logos e Práxis po: para ele, o tempo falado não tem dificuldade em coincidir
com o tempo real, pois a realidade é a fala; explica também por
o que a tragédia raciniana traz à tona é uma verdadeira que ele fez de Berenice o modelo de sua dramaturgia: nela, a
universalidade da linguagem. Nela, a linguagem absorve, numa ação tende à nulidade, em proveito de uma fala desmesurada'?'.
espécie de promoção inebriada, todas as funções relegadas alhu- Portanto, a realidade fundamental da tragédia é essa fala-
res a outras condutas; quase seria possível dizer que é uma lin- ação. Sua função é evidente: mediar a Relação de Força. Num
guagem politécnica: ela é um órgão, pode fazer o papel da visão, mundo inexoravelmente dividido, os homens trágicos só se
como se os ouvidos enxergassern'"; é um sentimento, pois amar, comunicam pela linguagem da agressão: eles fozem sua lingua-
sofrer e morrer, nela é sempre falar; é uma substância, protege gem, falam sua divisão, é a realidade e o limite de seu estatuto.
(estar confuso é parar de falar, é ser descoberto); é uma ordem, O logos funciona como uma importante articulação entre a es-
perança e a decepção: oferece ao conflito original a saída de um
99. Para essa crítica, Racine, em Andrômaca, por exemplo, punha em cena o caso de uma terceiro termo (falar é durar), e é então, plenamente, um fazer;
viúva que, antes de se casar de novo, hesita entre o filho e a lembrança do marido.
(Citado por Adam, Histoire de ia liitérature françoise au XVII' siécle, tomo IV, p. 319.)
100. Le Sérail permet de foire de l'oreille un véritable organe de perception (Baj. I, I.) 101. "O herói e a heroína ... que com muita freqüência sofrem demais e fazem de menos"
[O Serralho possibilita fazer dos ouvidos um verdadeiro órgão de percepção.] (O' Aubignac, citado por Schérer, Dramaturyie française, p. 29).

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I Sobre Racine I I O Homem raciniano I

depois se retira, volta a ser linguagem, deixa novamente a re- Mas, como o conflito entre o ser e o fazer se resolve em
lação sem mediação e mergulha de novo o herói no fracasso fun- parecer, funda-se uma arte do espetáculo. É indubitável que a

damental que o protege. Esse logos trágico é a própria ilusão de tragédia raciniana é uma das tentativas mais inteligentes já fei-

uma dialética, é a forma da saída, mas apenas a forma: uma tas para conferir profundidade estética ao fracasso: ela é real-
mente a arte do fracasso, a construção admiravelmente tortuosa
porta falsa, contra a qual o herói vai bater o tempo todo, que
de um espetáculo do impossível. Nisso, parece combater o mito,
é alternadamente o desenho da porta e sua materialidade.
pois o mito parte de contradições e tende progressivamente a
Esse paradoxo explica o caráter desvairado do logos raci-
sua mediação!": a tragédia, ao contrário, imobiliza as contra-
niano: ele é ao mesmo tempo agitação das palavras e fascina-
dições, recusa a mediação, mantém o conflito aberto; é verda-
ção pelo silêncio, ilusão de poder e terror de parar. Confinados
de que toda vez que Racine se apodera de um mito para con-
na fala, os conflitos são, evidentemente, circulares, pois nada
vertê-lo em tragédia é sempre para, em certo sentido, recusá-lo,
impede o outro de continuar falando. A linguagem desenha o
paralisá-lo, fazer dele uma fábula em definitivo fechada. Mas, pre-
mundo delicioso e terrível das reviravoltas infinitas e infinita-
cisamente, quando submetido a uma reflexão estética profunda,
mente possíveis; por isso, é freqüente em Racine uma espécie
encerrado numa forma, sistematizado peça a peça de tal maneira
de preciosismo paciente da agressão: o herói se faz exagerada-
que se possa falar de uma verdadeira tragédia raciniana, reto-
mente tolo para manter a contenda, retardar o tempo atroz do
mado enfim por toda uma posteridade com admiração, essa
silêncio. Pois o silêncio é irrupção do fazer verdadeiro, é des-
mesma recusa do mito se torna mítica: a tragédia é o mito do fra-
moronamento de todo o aparato trágico: pôr fim à fala é en-
casso do mito: a tragédia tende afinal a uma função dialética: do
cetar um processo irreversível. É então que aparece a verdadeira
espetáculo do fracasso ela acredita poder fazer uma superação
utopia da tragédia raciniana: a utopia de um mundo no qual
do fracasso, e da paixão pelo imediato, uma mediação. Arrui-
a fala fosse solução; mas também seu verdadeiro limite: a im- nadas todas as coisas, a tragédia permanece como espetáculo,
probabilidade. A linguagem nunca é uma prova: o herói racinia- ou seja, como acordo com o mundo.
no nunca pode comprovar-se: nunca se sabe quem fala a quem!".
A tragédia é apenas um fracasso que se fala.

102. "Psicologicamente", o problema da autenticidade do herói raciniano é ins~lúvel.: é


impossível definir uma verdade dos sentimentos de Tiro em rela.ção a Ber~l11ce. Tiro
103. CL Lévi-Strauss, Anthropologie strucrurale, cap. Xl, Paris, Plon [Trad. bras, Antropologia
só se torna verdadeiro no momento em que se separa de Berenice, ou seja, quando
estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003].
passa do Lagos à Prdxis.

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