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Construção da fantasia:
O Homem do Impermeável

Um sujeito procurou-me há alguns anos, cansado, dizia, da incômoda mania


que tinha de eleger como objeto amoroso mulheres "já comprometidas", o que
lhe complicava a vida, consumindo-o em rivalidades e acrobacias que, vez por
outra, deixavam transparecer impulsos de agredir o outro com armas brancas,
pelas quais tinha paixão.
Essa rivalidade chegara até a levá-Io, no momento em que ia prestar o
exame final que o conduziria a exercer a mesma profissão que o pai, a
experimentar vômitos incompatíveis com o emprego que deveria ocupar. Nessa
rivalidade, ele queria, com certeza, que eu reconhecesse a homossexualidade
latente, que foi uma das revelações que a psicanálise veio trazer ao mundo.
Logo se comprovou que o que o preocupava, justamente, era que essa
homossexualidade inconsciente era muito consciente nele, na medida em que
fora seduzido, aos nove anos de idade, por um professor amigo de seus pais,
numa cena de paisagem campestre na qual, em algum lugar, estava presente um
machado, para cortar lenha, ao que parece. Essa sedução, que consistira em
masturbações recíprocas, esse encontro com um desejo, havia provocado no
ujeito uma resposta que se manifestava por umacompulsão a vestir o que até
então lhe tinha sido insuportável - um impermeável de plástico que a mãe
queria colocar-lhe ante a menor ameaça de chuva - e a se masturbar embaixo
dessa capa. Essa prática durava desde então e continuava a ser seu consolo, um
remédio universal contra as preocupações que a vida lhe impunha.
Ele não se queixava disso. Tínhamos, em resumo, uma fantasia bem
construída, e seria possível perguntar, portanto, como construí-Ia com ele.
Vejamos agora o que a psicanálise fez surgir, e que começou por um sonho
no qual, ante a intromissão de um olhar, ele respondeu com uma defecação. A
análise de sua relação com a limpeza e a sujeira revelou-lhe, então, uma

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lembrança encobridora: por volta dos quatro ou cinco anos, ele havia surpreen- IIIIIIIIS ssc a presença da faca: era, de fato, o resto do machado da cena de
dido a mãe ou a irmã - inclinava-se pela irmã - entreabrindo a cortina cio dllç o superpondo-se à verdadeira cena traumática, a descoberta da ausência
banheiro e aparecendo nua. Ali, ele percebera a castração feminina. Num canto di p nis na irmã. Foi necessário que ele fosse captado nesse momento de
I nrrmtro, no ato proibido de remexer nas saias da mãe, 'para que se separasse e
do aposento havia uma touca plástica de banho, do mesmo material do impcr-
I Inhorasse sua posição.
meável.
A partir daí gerou-se uma fase transferencial caracterizada por uma Três etapas, portanto, em sua relação com o Outro. Primeiro, ele chegou
agressividade manifesta. Uma dívida comigo deu ensejo aque ele se perguntas- 1111" trundo sua rivalidade com o homem, e com a idéia da faca sempre evocável

se, na sessão, por que estava fazendo tilintar daquela maneira o dinheiro que lU. bols . Segundo, na transferência, separou o que havia no bolso: de um lado,

tinha no bolso. Veio-lhe à lembrança uma canção, na qual um marinheiro fazi 'I u 111 'U, machado, que eram significantes com os quais se evocava o (-<p)que
a mesma coisa, e que terminava com o pagamento da dívida do marinheiro com " .!l1! I a estrutura, o corte sempre possível, o valor fálico, e de outro, sua
uma punhalada. Esse temo pensamento em relação a mim, ele o interpretou, lU I' 'ssidade de ter sempre no bolso as fezes necessárias para sujar a tela

primeiro, como significando que vinha às sessões essencialmente para me IlIIp xmcãvel que o Outro lhe apresentasse. E foi então, depois dessa bivalência

encher a paciência, ou seja, para reencher, ali Gomo em outros lugares, as Iluns ~srcncial, que apareceu a verdadeira significação de sua rivalidade com os
diferentes meias de seda que eram as toucas e~rrneá~eis que povoavam sua IUIIII ns, que era, com efeito, a degradação de sua vida amorosa, uma degrada-

vida. , 11 que consistia em constituir um Outro feminino, sempre tentando forçar-lhe


n l'onNcntimento, forçar-lhe o pudor em algum ponto, e poder alojar ali, nesse
Essa descoberta, de que estava vindo encher o Outro dessa maneira com
111011\ nto, a aposta pela qual ele constituía esse Outro feminino, seu dejeto.
seu ser, provocou nele um transtorno, inclusive corporal, que o levou a consultar
111I, ele vinha depositar o marco de sua fantasia na página em branco que
um médico. Com efeito, durante os quinze dias que se seguiram a esse pequeno
"11I, para ele, cada nova mulher que aparecia.
episódio, ele se mostrou preocupado com "defecações suspeitas". Tinha a
impressão de que suas evacuações continham uma matéria branca, como roi esse o ponto em que o trabalho da transferência - já que foi assim
esperma. Tranqüilizado o sujeito pela Universidade, esse sintoma desapareceu '1111 l.acan traduziu, certa vez, a Durcharbeitung freudiana - distinguiu o
rapidamente. I uuuto do Outro e do outro, distinguiu, de um lado, as acrobacias que ele era

I IptlZ de organizar, reservando um palco para a entediação do mestre, e de outro,


Aqui se vê como o momento transferencial- o êxtase posterior à fase
11 ',) uslrução subterrânea dessa fantasia.
inicial de alienação subjetiva em que ele recuperou a lembrança encobridora
-, essa transferência-êxtase foi, ao mesmo tempo, o momento em que apareceu Pois houve construção da fantasia nessa análise. Como considerar isso,
sua aposta, sua aposta-objeto, sob a forma anal. I1 I I" li, na medida em que ele chegou com uma fantasia totalmente constituída
Depois disso, por um momento, sem compreender por quê, todas as vezes 11I 'o a manifestou na análise, onde bastava extraí-Ia pedra por pedra? A partir

que evocava a lembrança encobridora do banheiro, ele via passar no meio da ,li lU ,afinal, podemos fazer essa afirmação?
cena, dizia, uma faca, a mesma que evocava como devendo estar sempre I2ssa construção se fez pelo emprego da transferência, posta em jogo
presente em seu bolso, para a eventualidade de uma briga. ,li 11' princípio pelo algoritmo da possibilidade, mas que vimos, como
Um sonho deu-lhe a solução: ele estava na casa de sua tia e via os lugares h'l\ IIICIIO, girar em tomo da agressividade imaginária. Não se tratava de o
com a precisão alucinante que pode implicar o efeito de real no sonho. Mas, ali 11I \lista "introduzir-se nas fantasias do paciente", como diz, agradavelmente, o

como em outras situações, não era da realidade que se tratava, tal como na luz 1'11111 iiador italiano das obras de Melanie Klein nessa língua, mas de jogar com
do sonho "Pai, não vês que estou queimando?". Nesse sonho, na casa da tia, do 11 'lu Lacan chama de "margem de exteriorização do objeto a". Essa margem

outro lado da parede, num outro aposento, ele sabia que havia três mulheres til I riorização era, em suma, a aposta que ele podia fazer ao constituir seu
presentes: sua mulher, sua tia e sua irmã. Ele remexia - o que era proibido- plll(' iro analista. Ele fazia tilintar o dinheiro sonante no bolso, realizando a

um baú cheio de roupas femininas, e dele retirava a mão cheia de sangue. qulvul ncia talleyrandiana entre o dinheiro e o dejeto, mas isso era apenas
hlll'~ini'Íl'io.A estrutura subjacente era a de constituir esse analista, esse parceiro,
O paciente analisou cuidadosamente esse sonho, selecionando o que
correspondia à lembrança do encontro com a castração. E finalmente descobriu 111ímn nt através dessa aposta. Longe de estar originalmente no relato da
llllltll,'ill, ela s6 apareceu depois de se haverem separado, de um lado, o que
por que não conseguia mais evocar essa lembrança encobridora sem que se

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provinha da castração, e de outro, o que dependia do objeto, ao passo que, no 1111111 -, através do qual ele constitui o Outro analista e, ao mesmo tempo, o
início, a fantasia evocada de um Outro, que surgia no momento em que ele se ( )ulr'O scxual- a mulher de seus anseias.
masturbava sob a tela protetora do plástico, mantinha unidos e confundia, num ponto em que estamos na análise é conseguir que o analista saia do
mesmo momento, o valor da castração - que vale na relação com o Outro - I Ip l que tem a seus pés, que é a garantia desse Outro.
e o objeto, a mancha que ele produzia na tela. Mantinha, no começo, o valor Pois, se existe ato analítico, é apenas no que ele revela, não um Outro de
que ele havia representado - o que ele descobrira com a sedução do profes or IIIIIIl arantia - o Outro de uma garantia universal, sonhado por Descartes em
-, o valor fálico que tinha para a mãe. Daí o fato de que esse mesm I \I!TI mento de vacilação, sonhado por esse paciente como lugar onde pudesse
impermeável, que antes se apresentara como objeto de mal-estar e de rebeldia, IIH'I' ver sua aposta com toda a tranqüilidade -, mas um Outro que não tem
ele o vestisse mais tarde, ao contrário, com êxtase, assim testemunhando ser o 11\111'1\ consistência senão a lógica, e que seria a única maneira de o sujeito e sua

falo da mãe. I 11 utura como descontinuidade no real poderem advir.

A operação sobre a fantasia, nesse paciente, foi paralela aos avanços Foi assim que Lacan pôde apresentar a transferência como tempo da
obtidos em relação ao sintoma. Ele se deu conta de que seu sintoma consistia I p riência no Seminário I, como conceito mesmo da análise, retomando a

em que, no momento em que deveria tornar-se como o pai, ele passara a IllIlIIula hegeliana "o conceito é o tempo", para Jazer dela o próprio algoritrno
experimentar o incômodo de ser mar-mãe: Essa operação, eu gostaria de dll xpcriência analítica. Foi nesse sentido que ele deu um novo valor a essa
relacioná-Ia com o que Colette Soler iêlembrou.acerca-da certeza obtida do ato IIlIllsf rência, tempo da experiência: toda a experiência mesma está compreen-
analítico. Apelarei para um texto formidável de Jacques Lacan, surgido em dida nesse algoritrno. Mas, se ela tem um fim, é também, como ele indicou,
1969, "Resenhas do ato psicanalítico";' esclarecido este ano pelo curso de JllllqUCessa transferência torna-se o momento da espera: espera do advento
Jacques-Alain Miller. dI ser, no lugar medido da falha do Outro em que aparece o desejo do.
111 disla. .
O que Lacan indica nesse texto é que toda psicanálise revela que o gozo
fálico "se oferece a partir de um ato proibido". Nesse paciente, tratava-se do is aí uma falha que é preciso medir, pois é a falha do sujeito suposto
remexer embaixo das saias da mãe. Para abordar esse aspecto do gozo fálico "li r; que quer dizer isso? Não é uma falha do próprio saber, embora se possa
11111 inar que um final de análise leve a um ponto em que o sujeito ficaria
como ato proibido, era preciso que caísse o véu impermeável da capa plástica
em que ele sustentava sua identificação fálica. Era necessário que caísse, para IIlIpl smente enojado de todo saber, preferindo acima de tudo a verdade, ou o
1111, r simplesmente alusivo, evocado.
ele, esse ponto pelo qual ele se convertera em paixão do significante. Diante do
vazio, todo o seu ser consistia em se reduzir a ser o falo, o "meio-termo" que A falha do sujeito suposto saber que se percebe aí é que existe um saber
I 111 sujeito. Isso é o que percebe o sujeito captado na experiência analítica
só comprovaria, se existisse, a relação sexual. Comprovação no sentido recen-
temente esclarecido, em seu curso, por Jacques-Alain Miller, que voltou a qunndo ela é completa, ou seja, quando o artifício instalado do sujeito suposto
I li tivamente se destitui; quando já não há relação de transferência de trabalho
utilizar a dimensão que Lacan soube dar ao termo resposta em seu ensino.
111111 'sse saber. E é aí que o trabalho da transferência pode ou não fazer com
Esse sujeito reduzia seu ser a comprovar a existência da relação sexual.
'I11l' 111 iuém termine sua análise continuando seu trabalho na psicanálise, em
Conseguir que ele fizesse cair o véu daquilo a que reduzia seu ser - ser o falo
1'1, ti ficar simplesmente enojado de tudo.
-, "o benefício é claro para o neurótico, pois resolve o que era representado
(I af, com efeito, que ele deve encontrar sua certeza, e colocar a pressa
como paixão". Só que, prossegue Lacan, "ocorre então a alguém o gozo
l(lll \ instalou em seu lugar fundante.
considerado perverso ser realmente permitido, pois a psicanálise converte-se
Bm "Função e campo da palavra e da linguagem", Lacan indicou que o
em sua chave".
"1111111 111 faz de sua ação um objeto para dar a ela seu lugar fundador". Trata-se
Que quer dizer isso? O que o ato analítico revela é que esse gozo não é di I 111 nder como essa ação, à qual ele dará seu estatuto pleno na psicanálise
obtido, não se comprova pelo falo, que é um falso meio-termo, mas pelo termo 111 111 instauração do ato psicanalítico, pode chegar, para um sujeito, a encontrar
único que é o objeto, o objeto que ele aposta - no caso do paciente, o objeto 11 II II zn no próprio ato que ele percebe, depois de tê-Ia atravessado.

(! isso que faz com que, antes de Lacan, uma psicanálise se chamasse
* Mal de mére, homófono de náusea, enjôo, que em francês se diz mal de mero (N.T.) " di 11 '(I quando o sujeito alcançava uma certeza sobre a existência de seu
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inconsciente. Lacan mudou essa afirmação: o inconsciente é certo, mas não dá


certeza.
A certeza só é alcançada a partir do ponto em que se atravessa um ato:
um ato executado sem Deus.

NOTA
1. "Resefias dei Acto Psicoanalítico", in Jacques Lacan, Reseiias de Enseiianza, Buenos
Aires, Editorial Hacia el Tercer Encuentro dei Campo Freudiano, 1984.

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