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Roswitha Scholz
O Sexo do Capitalismo
HORLEMANN
edition krisis
ISBN 3-89502-100-8
© 2000 Horlemann
Umschlaggestaltung
Gedruckt in Deutschland
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27/02/2019 Roswitha Scholz - O Sexo do Capitalismo [Excertos]
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ÍNDICE
Introdução:
Sobre o problema da culturalização do social desde os anos oitenta
Primeira Parte:
Sobre os conceitos de valor e de dissociação-valor
Segunda Parte:
Abordagens teóricas feministas
I. Mulheres e desclassificação à escala universal? (R. Becker-Schmidt)
Forma da mercadoria e forma do pensamento * Troca de mulheres e lógica da identidade *
O androcentrismo como fenómeno infra-estrutural psicogenético
II. O sexo no patriarcado produtor de mercadorias
1. Profissão e trabalho doméstico em E. Beck-Gernsheim/I. Ostner
Hipóteses de base sociológica * A construção da (dupla) sexualidade, o inconsciente social
androcêntrico e a relativa legitimidade dos princípios de Beck-Gernsheim/Ostner * Valor de uso /
Valor de troca, masculinidade e feminilidade.
2. A relação entre os sexos como conexão da estrutura social em R. Becker-Schmidt/G.-A.
Knapp e U. Beer
a) O sexo como categoria social estrutural em R. Becker-Schmidt/G.-A. Knapp
Dupla socialização e sexo como "categoria social estrutural" * Dupla socialização como
resistência? * A crítica da lógica da identidade como "método" e a essência do patriarcado
produtor de mercadorias * O todo social e a relação entre os sexos * Troca, trabalho, dinheiro e
sexo.
b) História, estrutura e sexo em U. Beer
3. Relações entre os sexos como relações de produção em F. Haug
O patriarcado capitalista como modelo de civilização * Trabalho remunerado / trabalho doméstico
e a metafísica do trabalho em F. Haug * A lógica de poupar tempo e a lógica de gastar tempo * A
ordem simbólica do patriarcado capitalista
III. Notas a concluir sobre as diversas abordagens teóricas
Terceira Parte:
A teoria da dissociação-valor modificada
Quarta Parte:
Relações entre os sexos e pós-modernidade à escala universal – O asselvajamento do
patriarcado produtor de mercadorias na era da globalização
I. A "pequena trabalhadora autonónoma" (I. Schultz)
II. "Juchitan" – um caso especial do patriarcado produtor de mercadorias? Uma
alternativa ao patriarcado produtor de mercadorias? (V. Bennholdt-Thomsen & Co.)
III. Adeus ao patriarcado, aliás, adeus à heterossexualidade? (C. Dormagen)
IV. Globalização e concepções feministas da acção
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Bibliografia
Introdução:
Sobre o problema da culturalização do social desde os anos oitenta
A teoria de Marx não desempenha qualquer papel de relevo no feminismo, pelo menos desde a
queda do bloco de Leste. Parecem pertencer ao passado questões que até meados dos anos
oitenta ainda marcavam a discussão (por exemplo: como se pode ligar organicamente com a
concepção de Marx a “questão da mulher”, a relação assimétrica entre os sexos? Como pode ser
rompida a neutralidade sexual das categorias marxianas? Que desenvolvimentos teóricos são
para isso necessários?). Precisamente numa época em que grandes crises sociais, económicas e
ecológicas literalmente abalam o mundo, em que inúmeras guerras civis marcam o quotidiano
global e a situação social se agudiza cada vez mais, em que os fundamentalismos étnicos e os
nacionalismos há muito tempo vêm dando que falar, em que prossegue a destruição das bases
naturais pela lógica dos custos da economia empresarial e espreita a ameaça dum crash
financeiro, precisamente nesta época, caíram em descrédito as grandes teorias que poderiam
aclarar conceptualmente a situação de crise global.
A partir da decadência do “socialismo realmente existente” tira-se frequentemente a conclusão
ilusória de que a construção teórica de Marx já está toda quase no fim. Os anos noventa foram
marcados por uma “culturalização do social” que – seguindo as novas tendências bárbaras – se
exprime, por exemplo, na re-etnicização e também na moda das abordagens (des)construtivistas;
e não é apenas no feminismo.
Mesmo entre não poucos dos restos de oposição, em vez de se procurar um novo entendimento
da totalidade, mais frutífero que o do velho marxismo e bem necessário para abordar os novos
desenvolvimentos da crise no one world, volta-se a agarrar os modelos culturalistas que
constituíram uma importante tendência na elaboração teórica na década de noventa.
É o que acontece, por exemplo, não apenas nos meios feministas e pós-modernos, mas também
nas posições de esquerda influenciadas pelo pós-estruturalismo, que contrapõem ao ponto de
vista desconstrutivista uma (neo)construção de “identidades”, como é o caso da “identidade
étnica”. Deste modo se procura fazer face à nova barbárie, que radica numa reaccionária
ideologia comunitária, recorrendo à diferença, à particularidade do individual etc.
Certamente que as intenções são boas. Apesar disso, as pessoas movimentam-se na mesma
base e no mesmo plano (teóricos) que os próprios fenómenos, situações e ideologias objecto de
censura, a saber, no plano cultural. Para mais, não se reconhece aqui a dialéctica entre a
individualização amplamente desenvolvida na pós-modernidade, que corresponde à teoria e
prática neoliberais (mesmo que seja na variante social-democrata), e a orientação para a
comunidade simultaneamente manifestada; pois recorrendo repetidamente ao diferente, ao
individual, ao particular, contra a nação, a etnia, entre outros, luta-se de facto pelo neoliberalismo,
mesmo que isso não seja subjectivamente pretendido. Em certo sentido, assim procura-se
fatalmente combater a situação dada com os seus próprios meios. Mesmo entre os discursos
marxistas marginais dos anos noventa conquistaram um lugar central “marxistas culturais” como
Gramsci ou Althusser.
Só mais recentemente se têm feito ouvir de novo os apelos no sentido de que devia ser tida em
maior consideração a dimensão da teoria social – até mesmo entre as teóricas pós-modernas (cf.
Knapp, 1998 a, p. 66). E também no discurso (feminista) sobre a globalização a teoria de Marx
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desempenha novamente um certo papel, ainda que na maior parte das vezes servindo apenas
como pano de fundo em versão domesticada pela teoria da regulação e/ou pelo keynesianismo.
Esta reconscientização tem provavelmente algo a ver com a viragem para verde vermelho, que já
se anunciava há alguns anos nas sondagens eleitorais. Há muito que é evidente, contudo, que
não se pretende com esta mudança voltar atrás da viragem neoliberal, mas se procura na melhor
das hipóteses voltar a introduzir na garrafa o génio neoliberal com base naquilo que lhe é
essencial. É na armadilha desta contradição que se enreda actualmente o governo verde
vermelho.
Ora, certamente não se trata de ignorar sem mais as objecções pós-modernas. Nos últimos 30
anos, na senda de uma generalizada computerização, mediatização e comercialização, ocorreu
uma mudança social que é habitualmente descrita com concepções sociológicas como
“individualização”, “libertação dos papéis (sexuais) tradicionais”, “flexibilização de curricula”,
“pluralização dos universos e dos estilos de vida”. As “diferenças” – sejam elas individuais,
“étnicas” ou sexuais – ganharam cada vez mais importância, mediadas neste contexto com a
dimensão estética dos símbolos culturais. As concepções pós-modernas e pós-estruturalistas,
porém, não reflectem este desenvolvimento criticamente (como seria necessário, a meu ver), mas
de forma acentuadamente positiva. Contudo nos anos noventa, abalados pela crise, já ficou claro
onde pode levar esta orientação pela diferença, numa situação de aguda concorrência a nível
mundial: (etno)fundamentalismo, nacionalismo, racismo e anti-semitismo.
Do meu ponto de vista, nem os sujeitos modernos com as suas identidades (sexuais) fixas nem
os indivíduos flexíveis pós-modernos podem ser contrapostos uns aos outros, como de algum
modo melhores ou piores; sendo formas de sujeito patriarcalmente estruturadas na forma da
mercadoria, nem uns nem outros podem deixar de ser denunciados. O novo sujeito forçosamente
flexível, inapelavelmente exigido pelo capitalismo de casino pós-moderno, não é senão a
continuação do sujeito moderno numa forma fragmentada, exigindo uma superação emancipatória
tal como antes.
Como é sabido, o marxismo tradicional mainstream ignorava por princípio o plano dos símbolos
culturais e as dimensões conexas da realidade social. Nesta crítica sem dúvida que os pós-
modernos têm razão. Mas a hipostasiação do “cultural” desde os anos oitenta, em estreita
conexão com as tendências de individualização pós-modernas, apoia os actuais
desenvolvimentos bárbaros e há muito vem impossibilitando a abordagem dos desenvolvimentos
económico-sociais, a meu ver amargamente necessária justamente na era da globalização.
Nestas circunstâncias, tratar-se-á de assumir na elaboração teórica os momentos pertinentes de
negação determinada da argumentação culturalista, não enfática nem espectacularmente, pelo
contrário, abandonando certa gritaria de mercado culturalista pós-moderna que se ouve por vezes
repetidamente em círculos da esquerda pós-moderna contra a “velha esquerda” e o “velho
feminismo”.
Portanto, não se pode homenagear a identidade moderna, nem a não-identidade ou as
diferenças pós-modernas; nem a grande teoria, nem o registo científico e/ou pós-moderno das
diferenças, o espectáculo do individual/particular (porventura com muros subterrâneos pós-
estruturalistas). Trata-se, sim, de aguentar a tensão entre ambos e torná-la teoricamente frutuosa,
situação em que também a localização histórica de determinadas questões (por exemplo, a
questão das diferenças na pós-modernidade no quadro duma reflexão crítica) poderia ser
conseguida num metaplano de “grande teoria”. Trata-se, portanto, duma elaboração teórica que
não se esquiva à “grande narrativa”, nem a aceitar uma “essência” social, que no marxismo
tradicional é vista na troca ou no valor (mais-valia). Neste contexto, também devem ser tidas em
conta as tendências da globalização dos últimos anos, incluindo as estratégias imanentes de
pseudo-solução que lhe estão associadas; quer se trate, no caso, de redespertadas ilusões
neokeynesianas, de planos de acção da sociedade civil / internacionalistas, ou até de visões
regressivas de subsistência / de trabalho autónomo.
Perante o pano de fundo deste breve esboço do problema, gostaria agora de tentar relacionar a
temática da relação hierárquica entre os sexos na sua multidimensionalidade teórica com as
hipóteses fundamentais da crítica do valor, ou seja, ter teoricamente em consideração tanto o
plano material como o dos símbolos culturais e o da psicologia social. Aqui está no centro das
minhas reflexões a “tese da dissociação-valor” estabelecida já em artigos anteriores (vd. sobre o
assunto sobretudo Scholz, 1992). Na sequência da minha argumentação posterior, será
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a crítica, ela será feita sem hesitações; onde houver afinidades, serão postas à vista. Pois, como
se pode perceber, o estímulo para a tese da dissociação não partiu dos homens marxistas que
representam a “crítica do valor fundamental” (cujos autores e actuais suportes continuam a ser em
primeira linha homens). Pelo contrário, a perspectiva da dissociação-valor só a custo se conseguiu
fazer ouvir junto deles.
Na terceira parte tiro então uma espécie de conclusões e saliento novamente, ponto por ponto,
que novos aspectos e desenvolvimentos resultaram para a tese da dissociação-valor da minha
passagem pelas teorias, na tensão entre a crítica e o recurso às diversas concepções teóricas.
Naturalmente que com isto não fica dita a última palavra, pelo contrário, apenas é formulado um
programa de pesquisa a elaborar em projectos posteriores.
Na quarta parte entro na relação de género na pós-modernidade / na era da globalização à
escala mundial, construindo sobre as minhas anteriores reflexões e resultados, recorrendo às
investigações / trabalhos de Irmgard Schultz, Veronika Bennholdt-Thomsen entre outras e
sobretudo de Christel Dormagen. Até ao início dos anos noventa, tanto quanto me é dado ver, foi
Irmgard Schultz que pela primeira vez pôs em dia exaustivamente a discussão feminista com o
tema da “globalização”. Uma vez que as publicações sobre este tema entretanto surgidas aos
montes confirmam no essencial as suas exposições, limito-me apenas a completá-las com os
mais recentes resultados na segunda parte dos anos noventa.
Tem de se dar a esta temática um espaço maior não em último lugar também pelas seguintes
razões: por um lado, já foi frequentemente objectado à posição da dissociação-valor que ela
apenas poderia referir-se à relação de género moderna; mostrarei, pelo contrário, que esta
perspectiva teórica reúne muito bem forças para dar resposta às questões da relação de género
pós-moderna. Por outro lado, parece-me que a avaliação da relação entre sexo e pós-
modernidade/globalização no feminismo apresenta geralmente particulares dificuldades. As
posições movem-se entre dois pólos: o “apesar de todas as mudanças nos últimos trinta anos
nada mudou no fundamental” e a festa do “fim do patriarcado” (como em Libreria delle donne di
Milano, 1996). Diferentemente destas posições, defendo a tese de um asselvajamento do
patriarcado produtor de mercadorias na última fase da pós-modernidade. As reflexões de Schultz
e de outras peritas em globalização que refiro sugerem tal conclusão; ainda que estas autoras não
a retirem.
Outra tese central que igualmente obtive (recorrendo entre outras a Schultz) afirma que na pós-
modernidade neoliberal são exigidas identidades flexíveis compulsivas que continuam a ter como
antes a marca da especificação e da hierarquização sexuais. Nesta perspectiva, não são só os
conceitos “essencialistas” da “nova feminilidade” que apoiam a má realidade patriarcal, mas
também as abordagens “antiessencialistas” que criticam as ideias sexuais rígidas e as identidades
sexuais tradicionais, por exemplo, com intuito desconstrutivista.
A fechar a quarta parte reporto-me ainda a diferentes concepções de acção que procuram dar
respostas à problemática da globalização e se baseiam sobretudo na ideia de aliança ou de rede.
Aqui gostaria sobretudo de demonstrar que nem as ideias keynesianas / de Estado nacional, nem
as ideias de sociedade civil / internacionalistas, nem sequer as ideias de “trabalho autónomo” ou
de subsistência contrapuseram algo de realmente substancial ao asselvajamento do patriarcado
produtor de mercadorias, com as suas identidades flexíveis compulsivas sexualmente
especificadas. Isto não se aplica apenas estritamente à relação entre os sexos, mas a todo o
sistema patriarcal-capitalista entretanto solitário, cujos limites económicos, sociais e ecológicos há
muito se tornaram ostensivamente evidentes.
Para concluir mesmo, volto a entrar explicitamente no meu procedimento anterior. Já antes, mas
particularmente nestas teses conclusivas (anti)metódicas, devo deixar claro novamente –
demarcando-me, entre outras, das posições do feminismo teórico que “usam” o método de Adorno
em primeiro lugar no plano superficial da sociologia e por isso a meu ver de modo positivista – que
a posição da dissociação-valor deve libertar-se de tal procedimento, sem que por isso tenha que
cair numa fanfarronice inconsistente.
No fundo, apenas nas teses conclusivas (anti)metódicas ficará completamente claro no que
convergem as minhas reflexões. É preciso aconselhar o leitor / a leitora a estudar o meu texto do
princípio ao fim. Gostaria também de desiludir desde já as esperanças dos que anseiam por uma
concepção “perfeita”, que consiga juntar sistemática e rigorosamente a dimensão material, a
cultural-simbólica e a psicossocial sob a cobertura da dissociação-valor – se possível ainda
escalonada de acordo com hierarquias de concreção: em certa medida boa e prática ao quadrado.
Pelo contrário, o objectivo da crítica da dissociação e do valor, que já se reconhece sempre como
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preliminar e limitada, é precisamente, de acordo com o seu próprio conteúdo, frustrar tal tipo de
impertinência (sem perder a perspectiva da totalidade, como já foi dito), mesmo que isso possa
desassossegar alguns leitores e leitoras.
Uma arquitectura teórica assim complexa, que considero necessária, exige obviamente também
um estilo a condizer. A quem repugnam as frases longas; para quem são insuportáveis meandros
e circunvoluções, numa argumentação conclusivamente inconclusiva ou inconclusivamente
conclusiva; quem pensa que a uma pergunta se deve seguir a resposta logo na frase seguinte,
sem conseguir esperar pacientemente pelo seu desenvolvimento; para quem a ideia é: “se não
consegues exprimir a tua opinião em três frases, esquece”; quem pretende “engolir” ensaios
teóricos sem os digerir e estudar; quem gostaria de ler o meu texto na praia; em resumo, quem
gostaria de um “hamburger de teoria” é melhor pôr o livro já de lado, senão vai sofrer uma
desilusão.
Também não posso nem quero renunciar aos caprichos da expressão e considero perfeitamente
toleráveis as rupturas estilísticas ou os rodeios na argumentação. Também isso corresponde ao
conteúdo da tese da dissociação-valor, que torna claro que nem tudo se enquadra com a “lógica
da identidade” (Adorno) no valor, no conceito, na estrutura. Não sou nenhum “alfaiate mé-mé-mé,
sujeito ao girar do moinho da publicação formal” (2), onde tem de se escamotear tudo o que
sobressai e não corresponde ao estilo geral dado. Também neste ponto forma e conteúdo são
inseparáveis. Uma construção de frase descomplicada, resumos apetecíveis mais curtos sempre
por dentro da coisa e a consigna virada para o mercado de “pensar sempre no leitor” (é quando se
desiste de “factos, factos, factos” que acaba por se interiorizar de algum modo a crítica do
positivismo de Adorno) foram-me sugeridas após a leitura da primeira versão deste texto, apesar
da complexidade do tema, e não foi só por candidatos à carreira universitária perturbados pelo
trabalho de doutoramento.
Dito isto, gostaria agora, na primeira parte, de repetir como pressuposto os aspectos fulcrais da
tese da dissociação-valor já expostos em artigos anteriores, para de seguida poder consolidá-los
melhor e ao mesmo tempo desenvolvê-los.
Marx, sem ser capaz de rebentar teoricamente a prisão das categorias do moderno sistema
produtor de mercadorias (em todas as suas formações historicamente não simultâneas) na
sociedade concreta, em sentido económico e social. Para a "crítica do valor fundamental", pelo
contrário, o importante é pôr à vista este núcleo escondido da crítica da economia política e tornar
consciente o carácter de fetiche negativo da forma aparentemente natural do valor, para chegar a
uma reformulação da crítica social radical: "Como mercadorias, os produtos são coisas-valor
abstractas, sem qualidades sensíveis e só são transmitidas socialmente nesta estranha figura. No
contexto da crítica da economia política de Marx, este valor económico é determinado de modo
puramente negativo, como forma de representação coisificada, fetichista, desligada de qualquer
conteúdo sensível concreto, abstracta e morta do trabalho social passado nos produtos, que se
desenvolve num movimento permanente da forma das relações de troca, até ao dinheiro, a ‘coisa
abstracta’" (Kurz, 1991, p. 16 s.).
No entanto este fetichismo específico da forma da mercadoria, como princípio geral e dominante
da socialização, encontra-se apenas no moderno sistema produtor de mercadorias. Só o
capitalismo moderno é que criou uma forma de mercadoria orientada para mercados anónimos,
desligada e autonomizada do resto da vida e das outras formas de relacionamento, e que
simultaneamente domina o processo da vida social. Antes produzia-se primeiramente para uso,
não só nos contextos agrários, mas também nas corporações regidas por leis corporativas
especiais. Mesmo o conceito de uma "totalidade" social só pôde surgir com esta garra realmente
totalitária da forma da mercadoria e do dinheiro sobre a sociedade. A produção de mercadorias,
as relações monetárias e a "economia de mercado", como contexto sistémico geral, só nasceram
porque o valor, e com ele a sua forma de manifestação, o dinheiro, se transformaram, de um
simples meio que mediava produtores realmente independentes (economia familiar, etc.), num fim
em si social universal: o dinheiro foi reacoplado a si mesmo como capital, para se "valorizar", ou
seja, para fazer do dinheiro "mais dinheiro" (mais-valia) num processo imparável.
Há duas condições constitutivas desta "valorização do valor" produtiva no capitalismo que
distinguem tal modo de produção capitalista de qualquer produção de mercadorias pré-moderna.
Em primeiro lugar, a produção de bens de uso, que nas condições pré-capitalistas era ainda o
sentido óbvio da produção, torna-se agora um mero suporte da abstracção valor, e com isso a
satisfação das necessidades humanas torna-se um mero “subproduto” da acumulação de capital-
dinheiro. Dá-se, portanto, uma inversão entre fim e meio: "O fetichismo tornou-se auto-reflexivo e
assim constitui o trabalho abstracto como máquina de fim em si. Ele agora já não ‘acaba’ no valor
de uso, mas apresenta-se como automovimento do dinheiro, como transformação de um quantum
de trabalho morto e abstracto noutro quantum maior de trabalho morto e abstracto (mais-valia), e
assim como movimento de reprodução e auto-reflexão tautológicos do dinheiro, o qual apenas
nesta forma se torna capital, ou seja, moderno" (Kurz, 1991, p. 18).
Em segundo lugar, a própria força de trabalho humana tem de se tornar uma mercadoria.
Expropriada de qualquer acesso autónomo e voluntário aos recursos, uma parte cada vez maior
da sociedade foi sendo submetida ao jugo dos "mercados de trabalho", ficando a capacidade
humana de produção fundamentalmente heterodeterminada. Só nestas condições a actividade
produtiva se tornou “trabalho abstracto”, que mais não é que a forma de actividade específica do
fim em si abstracto do aumento do dinheiro no espaço funcional da "economia empresarial"
capitalista, ou seja, separado do contexto da vida e das necessidades dos próprios produtores.
Com o desenvolvimento do capitalismo, toda a vida individual e social sobre a terra foi
impregnada pelo automovimento do dinheiro, em que "o trabalho vivo já só (aparece) como
expressão do trabalho morto autonomizado" e em que o trabalho (abstracto), nascido apenas no
capitalismo, é agora considerado a-historicamente como um princípio ontológico (Kurz, 1991, p.
18 s.).
A perspectiva truncada do marxismo do movimento operário tradicional sobre este contexto
sistémico consistia em criticar a "mais-valia" num sentido meramente superficial e sociológico,
designadamente a sua "apropriação" pela "classe dos capitalistas". O motivo de escândalo não
era a forma do valor, reacoplado a si mesmo de modo fetichista, mas apenas a sua "distribuição
desigual". Precisamente por isso, segundo os representantes da "crítica do valor fundamental",
este "marxismo do trabalho" permaneceu confinado à ideologia duma simples "justiça distributiva".
O problema é o fim em si absurdo da forma totalitária da mercadoria e do dinheiro, sendo que a
"distribuição justa" no interior desta forma permanece submetida às leis do sistema e às restrições
delas decorrentes, logo uma pura ilusão. Uma simples redistribuição na forma da mercadoria, do
valor e do dinheiro, seja qual for a modalidade, não pode evitar as crises, nem acabar com a
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pobreza global engendrada pelo capitalismo. O problema decisivo não é como sacar a riqueza
abstracta na forma insuperada do dinheiro, mas é essa mesma forma.
Por isso o velho movimento operário, com a sua "crítica do capitalismo" truncada, nas categorias
não suplantadas do próprio capitalismo, só pôde conseguir melhorias e consolações efémeras,
imanentes ao sistema, que hoje são outra vez aniquiladas passo a passo, na crise do sistema
produtor de mercadorias. O marxismo tradicional e a esquerda política em geral apropriaram-se
de todas as categorias fundamentais da socialização capitalista, particularmente do "trabalho"
abstracto, do valor, como suposto princípio geral trans-histórico, e por conseguinte também da
forma da mercadoria e do dinheiro, como forma de relacionamento geral, e do mercado anónimo
universal, como esfera da mediação social fetichista etc., enquanto a miséria e a alienação que
acompanham o contexto sistémico destas categorias deveriam ser remediadas com intervenções
políticas externas – uma ilusão repetidamente requentada, ainda hoje novamente e sempre na
diluição do keynesianismo (de esquerda).
Apenas nas sociedades retardatárias, na não simultaneidade histórica da moderna produção de
mercadorias, pôde surgir, no interior da história da imposição do capitalismo, um sistema de
transição relativamente autónomo fundado na legitimação desta ideologia; a saber, aquela
"modernização atrasada" [nachholende Modernisierung] em formas de capitalismo de Estado que
foi (mal) interpretada como "contra-sistema socialista", apesar de em lado nenhum ter surgido da
crise de amadurecimento de um capitalismo desenvolvido, tendo-se este paradigma tornado
dominante, pelo contrário, apenas durante algumas décadas nas sociedades "subdesenvolvidas"
do ponto de vista capitalista da periferia do mercado mundial (Rússia, China, Terceiro Mundo).
Como nestas sociedades também havia um sistema produtor de mercadorias, ainda que
"atrasado", nelas vigorava necessariamente a dinâmica capitalista mercadoria-dinheiro da
mediação do mercado anónimo (que já inclui sempre o princípio da concorrência), ainda que de
maneira diferente do Ocidente, uma vez que aqui era o próprio Estado a assumir o papel de
empresário colectivo.
E afinal foi também esta dinâmica da forma do valor abstracto, também nos Estados do bloco de
Leste reacoplada a si mesma, que fez cair – por meio dos processos do mercado mundial e da
corrida do desenvolvimento das forças produtivas – o "socialismo realmente existente" (aliás,
capitalismo de Estado) e levou aos cenários de crise e guerra civil dos anos noventa por todo o
mundo. Com o colapso da "modernização atrasada", seguramente não se abriram quaisquer
"perspectivas de reforma", com a passagem à "economia de mercado e democracia" (como
entretanto é conhecido o capitalismo originário ocidental, até no jargão da esquerda conformista),
mas, a ser mantido o sistema produtor de mercadorias e seus critérios, apenas e ainda as
"perspectivas" da barbárie.
Desde os anos oitenta, dissiparam-se também no "Terceiro Mundo" as esperanças de melhores
condições de vida. A perspectiva do chamado "desenvolvimento", pensado desde sempre de
modo fetichista na forma da mercadoria, que ainda tinha marcado o espírito do tempo até meados
dos anos setenta (ligado a uma euforia de modernização), pareceu temporariamente solucionável
através do crédito. Mas, nos anos oitenta, colapsou também este conceito limitado ao quadro do
sistema mundial capitalista e muitos países do Terceiro Mundo caíram na miséria, sob a pressão
neoliberal, que levou por exemplo a um endividamento junto do FMI e do Banco Mundial. A
pretexto do reembolso do crédito junto destas instituições chegou-se aos eufemisticamente
chamados "processos de reajustamento estrutural" e à degradação da situação social da maior
parte da população. Entretanto é previsível que estas precárias condições de vida se vão
expandir, até nas mais industrializadas das nações industriais ocidentais. O valor, o trabalho
abstracto, a mediação da forma da mercadoria na base do fim em si capitalista tornam-se
completamente obsoletos; o "colapso da modernização" (Kurz, 1991) mostra-se cada vez mais
evidente.
O paradoxo da situação pós-moderna está em que o capitalismo, por um lado, torna-se incapaz
de assegurar a reprodução da humanidade (mesmo segundo os seus próprios critérios, em todo o
caso inaceitáveis); por outro lado, porém, os paradigmas habituais duma "crítica do capitalismo"
truncada, categorialmente presa às formas do sistema produtor de mercadorias (seja essa crítica
proveniente do velho marxismo do movimento operário, do keynesianismo ou do anti-imperialismo
da "revolução-nacional") simplesmente não levam a nada. As disparidades sociais não
desapareceram, pelo contrário, agravaram-se dramaticamente; mas já não podem ser
representadas nos conceitos da "mais-valia usurpada", ou seja, no sentido de um entendimento
meramente sociológico das "relações de classe" ou das “relações de dependência nacional”.
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Esta visão da "crítica do valor fundamental", por mais lógica que se apresente e por mais
plausível que seja a sua explicação de muitos fenómenos da presente crise mundial, permanece
contudo, nesta sua lógica, indiferente face à relação entre os sexos. Percebe-se de imediato que
aqui só o valor e o "trabalho abstracto" deste contexto ascendem, de modo sexualmente neutro,
às honras da teoria, mesmo que apenas como objecto de uma crítica radical. Continua a não se
ter em conta que no sistema produtor de mercadorias também tem de ser feita a lida da casa, tem
de se educar os filhos, cuidar dos doentes e incapazes etc., tarefas que habitualmente são
atribuídas às mulheres (mesmo se elas têm actividade remunerada) e não podem ser, pelo menos
exclusivamente, tratadas de modo profissional (ver sobre o que segue Kurz, 1992, p. 135 sg. e
155 sg; Scholz, 1992).
O conjunto do relacionamento social no capitalismo, contudo, não se determina somente pelo
automovimento fetichista do dinheiro e pelo carácter de fim em si do trabalho abstracto. Pelo
contrário, verifica-se uma "dissociação" especificada sexualmente, mediada dialecticamente com
o valor. O dissociado não é nenhum simples "sub-sistema" desta forma (como por exemplo o
comércio externo, o sistema jurídico ou até a política), mas é essencial e constitutivo da relação
social total. Quer dizer que não há nenhuma "relação de derivação" lógica imanente entre o valor
e a dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido no outro,
sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os momentos centrais essenciais da mesma relação
social em si contraditória e fragmentária, que devem ser compreendidos ao mesmo alto nível de
abstracção.
O que não pode ser compreendido no valor, que é portanto por ele dissociado, já desmente a
pretensão de totalidade da forma do valor; ele representa o oculto da própria teoria e por isso não
pode ser compreendido com o instrumental da crítica do valor. As actividades femininas de
reprodução, uma vez que representam o reverso do trabalho abstracto, não podem ser
simplesmente cobertas com o conceito abstracto de trabalho, como faz frequentemente o
feminismo, que em grande medida tomou do marxismo do movimento operário a categoria
positiva trabalho. Nas actividades dissociadas, que não em último lugar compreendem também o
afecto, a assistência e os cuidados aos doentes e incapazes, bem como o erotismo, a sexualidade
e o "amor", incluem-se ainda os sentimentos, as emoções e as posturas que são contrapostos à
racionalidade da "economia empresarial" no domínio do trabalho abstracto, e que se opõem à
categoria trabalho, mesmo se não estão completamente livres dos momentos da racionalidade de
objectivo nem das normas protestantes.
Na modernidade patriarcal são delegadas n’ “a mulher”, ou seja, são-lhe atribuídas e projectadas
nela não só determinadas actividades, mas também sentimentos e qualidades (sensualidade,
emotividade, fraqueza de entendimento e de carácter etc.). O sujeito masculino esclarecido que,
como socialmente determinante, representa entre outras a força de se impor (na concorrência), o
intelecto (relativamente às formas de reflexão capitalista), a força de carácter (na adaptação aos
desaforos capitalistas) e o qual ainda constituiu (inconscientemente), por exemplo, o mecânico de
precisão masculino disciplinado da fase fordista na fábrica, está ele próprio essencialmente
estruturado sobre esta "dissociação". Neste sentido, a dissociação-valor tem também um lado
cultural-simbólico e uma dimensão psicossocial, que a meu ver só podem ser abordados com um
instrumental psicanalítico.
Segundo a tese da dissociação-valor, as esferas privada e pública, por igual dialecticamente
mediadas, são idealmente concebidas como feminina e masculina respectivamente. Contudo, a
relação de género claramente não "assenta", objectivada, nos domínios da esfera privada e da
esfera pública, como poderiam supor certas conjecturas estereotipadas. Sempre houve mulheres
também na esfera pública, sobretudo na esfera da actividade capitalista remunerada; mas a
dissociação simplesmente prossegue, até no interior da esfera pública.
Mesmo na pós-modernidade, em que a actividade profissional das mulheres aumentou cada vez
mais, as suas qualificações igualaram as dos homens e a "confusão dos sexos" se tornou um
tema querido dos média, salta à vista que a hierarquia sexual e a preterição das mulheres de
modo nenhum desapareceram no fundamental. As mulheres são sempre mais responsáveis pelos
filhos e pelo trabalho doméstico na esfera privada, são mais mal pagas na esfera da actividade
remunerada, é raro encontrá-las em posições públicas de direcção etc., o que sem dúvida radica
nas atribuições e classificações modernas "clássicas" sexualmente especificadas e nas
correspondentes responsabilidades reais das mulheres pelos cuidados da reprodução privada, e
continua a fazer-se sentir mesmo nos tempos pós-fordistas.
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Esta crítica do conceito de valor pensado de modo androcêntrico, tal como ela é formulada pela
teoria da dissociação-valor como conceito abrangente, tem consequências não apenas para a
"crítica do valor fundamental", mas também para outras abordagens, que já no passado se
debateram (ainda que na maior parte dos casos inconsequentemente) com a abstracção do valor
e com o fetiche da mercadoria. É o caso particularmente do conceito de "valor de uso", que se
pode encontrar na esquerda e em muitas concepções feministas, colocado de modo enfático e em
princípio positivo, porque pensado como exemplo do "feminino" que como tal já guardaria em si
supostas potencialidades de resistência. Pois na correspondência valor de uso = feminino, valor
de troca = masculino, ao mesmo tempo que se salvaguarda a subordinação do valor de uso ao
valor de troca, as disparidades sexualmente especificadas continuam a ser simplesmente
derivadas de uma forma de mercadoria sexualmente neutra. A análise continua ainda à maneira
androcêntrica, limitada ao espaço interior da mercadoria.
Segundo Kornelia Hafner, pelo contrário, já em Marx se conclui "que os próprios valores de uso
aparecem como criaturas do capital", e que a aceitação duma "utilidade pura" abstracta do valor
de uso só aparece de forma generalizada depois de a forma de mercadoria se ter generalizado
por toda a parte através da relação de capital (Hafner, cit. in Kurz, 1992). Para a "crítica do valor
fundamental" de que aqui se fala, segue-se daí que a mercadoria só é "valor de uso" no processo
de circulação, como objecto do mercado, e nessa medida também o valor de uso não passa de
uma simples categoria do fetiche económico abstracto. Ele não designa a utilidade concreta do
uso sensível-material, mas apenas o "usar puro e simples", como valor de uso de um valor de
troca. Do ponto de vista da dissociação-valor, o conceito de valor de uso é portanto, ele próprio,
de certo modo parte do universo androcêntrico abstracto das mercadorias.
Ora, à esfera que cai mesmo fora do contexto da forma económica pertence o consumo, com as
actividades que lhe estão ligadas, a montante e a jusante; por isso, o acesso ao "dissociado" da
forma do valor deve ser procurado em primeiro lugar aqui. É apenas no consumo que as
mercadorias são usadas e desfrutadas de modo realmente sensível-material. Com isso, o produto
criado em forma de mercadoria subtrai-se à forma da mercadoria, ao ser “degustado” no
consumo. Não se menciona que o facto de os bens caírem fora do contexto da forma económica
não constitui por si "simples" consumo imediato, mas que o consumo é mediado por uma esfera
de actividades de reprodução, que se cruzam com actividades, momentos e relações só
parcialmente mediadas, ou até a priori não mediadas com a forma da mercadoria.
O "dissociado" assim definido que, do ponto de vista do contexto androcêntrico da forma coberto
pelo valor, no limite leva ao consumo de certo modo no vazio, aparece por isso, na teoria social
masculina unidimensionalmente relacionada com a reflexão do valor, como a-histórico, uma
massa mole e informe, tal como o feminino em geral na sociedade ocidental cristã, ao qual não se
consegue aceder com a análise da forma do valor. Pelo contrário, o consumo de meios de
produção utilizados na economia empresarial, como máquinas, bens de investimento etc. não está
relacionado com a dissociação; esses mantêm-se espontaneamente no "universo masculino" do
valor.
Ora, é claro que, conceptualmente, o "dissociado" não se limita ao consumo e à preparação de
bens de uso comprados para consumo; ao seu núcleo central pertencem também o afecto, a
prestação de cuidados, a assistência, o "amor" etc., até à sexualidade e erotismo. Aqui é difícil
distinguir com exactidão entre o que é actividade obrigatória e manifestação existencial da vida. E
é precisamente isso que torna acabrunhantes as actividades de reprodução femininas, ao invés
da situação do "trabalhador abstracto".
A formação tanto do trabalho abstracto como da dissociação são, portanto, histórica e
logicamente, por igual fundamentalmente originárias; não se pode ver um como criador do outro,
nem inversamente. Cada um é pressuposto para a constituição do outro. Neste sentido, a relação
dissociação-valor representa de certo modo uma meta-estrutura, contra a hipótese reducionista de
que só o valor seria o princípio constitutivo, a essência da sociedade produtora de mercadorias.
O dissociado feminino é assim o Outro da forma da mercadoria, como o que está à parte; por
outro lado, porém, permanece dependente e menosprezado, precisamente porque se trata de um
momento dissociado no contexto de toda a produção social. Poder-se-ia então dizer: se à
mercadoria corresponde a forma abstracta, ao dissociado corresponde a ausência de forma
abstracta; no caso do dissociado, poder-se-ia falar paradoxalmente duma forma de ausência de
forma, em que esta – para mais uma vez o sublinhar – logicamente já não pode ser compreendida
pelas categorias do contexto interior à forma da mercadoria. A ciência e a teoria androcêntricas,
na forma da mercadoria, não conseguem ter em conta esta relação, uma vez que elas têm de
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catapultar para fora da sua teorização e dos seus aparelhos conceptuais, como "não lógico" e
"não conceptual", o que cai fora da forma da mercadoria.
A "sensibilidade" de que aqui se fala no contexto da “dissociação” é sem dúvida historicamente
constituída. Isto é válido não só para as actividades das mulheres na reprodução (preparação dos
bens para consumo, amor, cuidados, afecto etc.), que apenas surgiram no século XVIII com a
diferenciação entre um sector de trabalho pago capitalista, por um lado, e um sector de
reprodução privado doméstico, por outro (ver, por ex., Hausen, 1976), mas também para a
constituição da necessidade em geral (3).
Uma vez que se trata de uma unidade negativa entre forma da mercadoria e "dissociado", daí
resulta desde logo que, no contexto da forma da dissociação-valor, o "feminino" dissociado não é
de modo nenhum "melhor" que a "masculinidade" na forma da mercadoria. Daí resulta, ainda, que
também as mulheres que (apenas) têm actividade no sector da reprodução levam uma vida
limitada e alienada (uma definição que não tem de ser empiricamente válida para cada mulher),
que se comporta como um espelho da alienação do trabalho abstracto no espaço funcional da
economia empresarial do capital. O uso e a fruição sensíveis, tal como as actividades com isso
envolvidas e as qualidades atribuídas à mulher como momento dissociado, são portanto
imanentes à sociedade capitalista, ainda que não imanentes à forma do valor.
Segundo a tese da dissociação-valor, é preciso partir do princípio de que a moderna relação de
género (do mesmo modo que o valor), deve ser examinada no contexto do patriarcado produtor de
mercadorias, não como um dado trans-histórico "paralelo" às diferentes formações sociais. Isto
não quer dizer que não haja antecedentes. Mas a relação de género adquire na modernidade
produtora de mercadorias uma qualidade completamente nova, que é preciso ter em conta teórica
e analiticamente. Na pós-modernidade, pode-se constatar agora uma nova mudança na relação
de género. Contudo, como já se deu a entender, há que verificar a codificação fundamental, no
sentido da dissociação-valor, e a correspondente hierarquização sexual, tanto antes como depois,
em todas as suas fragmentações, diversificações, inversões de pólos, transformações e supra-
formações, reacoplagens e diferenciações pós-modernas; na existência da mulher de carreira ou
do homem doméstico, tal como no futebol feminino ou no striptease masculino, no casamento de
gays e lésbicas ou nos shows transsexuais hoje mediaticamente em alta, para dar apenas alguns
exemplos picantes.
Passaram já alguns anos após a publicação das definições de posição sobre a meta-estrutura
abrangente da dissociação-valor aqui resumidamente referidas e há algumas coisas a modificar e
precisar, como vou mostrar. Assim, por exemplo, ficou entretanto mais claro para onde tende o
desenvolvimento pós-moderno do patriarcado produtor de mercadorias: chega-se não só às
referidas transformações e supra-formações, reacoplagens e inversões de pólos, mas, na onda da
crise estruturalmente condicionada do sistema capitalista que cobre todo o mundo, também a um
asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias à escala global. Nas violentas rupturas
sociais da crise mundial, as mulheres (e hoje mesmo na sua imagem ideal, ao contrário do que
acontecia até à fase fordista) são responsabilizadas já não só pela esfera da reprodução, mas, ao
contrário dos homens, são responsabilizadas em igual medida pela lida da casa e pelo ganha-pão,
sendo que se mantém o seu menosprezo, apesar ou talvez por causa disso. Assim se cobrem de
ridículo aquelas apreciações optimistas que desde meados dos anos oitenta consideravam a
emancipação das mulheres já realizada, ou que continuam mesmo agora a afirmá-lo.
A posição da crítica da dissociação-valor opõe a estas tendências de asselvajamento o objectivo
da superação do valor, da forma da mercadoria, da economia de mercado, do trabalho abstracto e
da dissociação; uma perspectiva para a suplantação de toda a relação da produção de
mercadorias, que tem de abranger não só o ponto de vista material, mas também o ideal e o
psicossocial. Neste sentido radical, está em discussão a repartição destes planos e domínios em
geral, o que inclui uma crítica da família nuclear, hoje simplesmente em decomposição. Trata-se,
pois, da superação da "masculinidade" e da "feminilidade" no sentido até hoje vigente, e com elas
das respectivas sexualidades compulsivas.
Segue-se, a partir desta posição de crítica radical, uma confrontação com os mais importantes
conceitos do feminismo teórico. Em primeiro lugar e demarcando-me criticamente no fundamental
de um ensaio de Regina Becker-Schmidt, gostaria de esclarecer que a validade das estruturas,
mecanismos, fenomenologias etc. da dissociação-valor só pode ser invocada para o patriarcado
produtor de mercadorias, e que seria errado vê-los também em acção nas sociedades pré-
modernas, ou até possivelmente considerá-los como "próprios da espécie humana". Depois desta
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demarcação fundamental, vou agora debruçar-me sobre as abordagens que procuram analisar a
relação entre os sexos no patriarcado produtor de mercadorias.
De seguida, vamos expor o resultado das reflexões até aqui havidas. Que inovações advêm
para a teoria da dissociação-valor desta passagem em revista das teorias? O meu objectivo é
conseguir tornar perceptível o esboço de uma redacção da teoria da dissociação-valor obtida e
desenvolvida no campo de tensão entre a crítica e o recurso às abordagens teóricas discutidas.
Claro que isto não que dizer que eu dê assim por concluída a exposição teórica da “dissociação-
valor”. Pelo contrário, com os resultados que se seguem é formulado um programa que obriga a
posteriores investigações e desenvolvimentos (4); pois é óbvio que algumas das minhas reflexões
foram até agora demonstradas apenas de forma abreviada, como é o caso da relação entre lógica
da identidade e relações entre os sexos, ou também o caso do inconsciente social androcêntrico.
O reconhecimento dos limites da elaboração teórica em geral, que resulta precisamente das
exposições alargadas da teoria da dissociação-valor, não exclui obviamente um posterior
aperfeiçoamento e precisão desta teoria. Se assim não fosse seria possível abdicar à partida da
teoria em geral e numa imediatidade enganadora – numa simples inversão vitalista – contentar-se
com os dados positivos de modo igualmente positivista.
Neste contexto, já não aceito a concepção de Ostner sobre a separação entre “profissão e
trabalho doméstico” porque, por um lado, vejo esse princípio criticamente superado já em
abordagens anteriores (vd. Kurz, 1992, Scholz, 1992) e, por outro lado, descortino na definição de
“patriarcado capitalista como modelo de civilização” de Haug, ainda que numa variante do antigo
marxismo, um desenvolvimento dos pensamentos de Ostner, que em todo o caso tem de ser
corrigido do ponto de vista da teoria da dissociação-valor.
Não obstante, a concepção de Ostner foi tida em conta nas minhas reflexões porque, como já foi
dito, apesar da muita crítica que possa merecer, ela se aproxima em alguns momentos da “crítica
do valor fundamental” e da teoria da dissociação-valor, sem expor explicitamente este plano.
Ostner também leva alguma vantagem em relação às abordagens mais recentes. A título de
exemplo poderia pelo menos em parte tornar-se claro, através de uma nova leitura crítica, porque
é que no desenvolvimento do patriarcado moderno os indivíduos em geral têm de se “constituir”
como homens e mulheres; e, em ligação com isso, porque é que pode ocorrer a mudança de
género das profissões. O desenvolvimento que no fundo aí reside, não em último lugar, de
trabalho profissional e “trabalho doméstico”, de domínio da reprodução e domínio da produção,
não desempenha qualquer papel, por exemplo, em Gildemeister/Wetterer, para as quais, no caso
da mudança de género das profissões e não só, se trata apenas da “construção da (dupla)
sexualidade”, e mais ainda: elas sentem-se obrigadas a fazer frente com toda a força a tal tipo de
argumentações (cf. Gildemeister/Wetterer, 1992). Por isso considero que não se justifica tomar a
abordagem de Ostner por globalmente acabada, como é costume desde os anos oitenta na
pesquisa sobre mulheres (estudos de género), ainda que seja seguramente certo que a tese da
“capacidade feminina de trabalho” não é sustentável e que esta abordagem é susceptível de
modificação em muitos aspectos.
Dito isto, gostaria agora de expor mais uma vez em grandes linhas, de certa maneira numa
“segunda ronda”, a teoria da dissociação-valor modificada, para deixar claro o respectivo esboço,
em linha com a passagem em revista crítica das abordagens teóricas feministas (de esquerda).
1. A investigação teórica da relação de género hierárquica deve ser limitada à modernidade. Não
são permitidas retroprojecções para sociedades não modernas. Isto não quer dizer que a moderna
relação de género não tenha uma pré-história, que de facto pode ser seguida até à antiguidade
grega. Contudo, a relação de género assume na modernidade uma qualidade completamente
nova, com a generalização da produção de mercadorias, quando o “trabalho abstracto” se torna
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2. Dito isto, não se pode ir ao ponto de definir o sexo em analogia com a “classe”, no plano
superficial meramente sociológico, como categoria social estrutural que consigna chances sociais,
como apregoa Becker-Schmidt. Esta perspectiva assumida por Becker-Schmidt revela que ela
toma simplesmente como critério da sua concepção o princípio imanente da justiça distributiva, no
sentido do antigo pensamento das classes. Em vez disso trata-se de, num plano perfeitamente
fundamental, ter em vista a dissociação-valor como princípio formal, no sentido de essência social
que no fundo estrutura a sociedade como um todo e como tal tem de ser criticado e posto em
causa. Só assim será possível definir teoricamente tanto as formas de identidade modernas, como
também as identidades flexíveis compulsivas pós-modernas sexualmente especificadas (a que
regressarei com mais detalhe) e submetê-las a uma revisão crítica.
Valor e dissociação estão assim numa relação dialéctica recíproca. Um não pode ser derivado
do outro, mas ambos provêm um do outro; a dissociação não está teoricamente subordinada ao
valor. Consequentemente as categorias da economia política não chegam para fazer jus à
dissociação-valor. Isto é válido também para o conceito de valor de uso que, como conceito
oposto ao de valor de troca, se mantém ele próprio ainda na esfera androcêntrica da economia,
contrariamente a uma interpretação frequente. Contrapostas a isso, as actividades das mulheres
agrupam-se na esfera da reprodução, à volta do consumo privado, no sentido do gozo sensível ou
do uso real (e das respectivas preparações), para lá da forma abstracta do valor. Neste ponto, a
dissociação-valor também pode ser concebida como lógica de ordem superior, que alcança para
lá das categorias internas à forma do valor. O consumo assim definido (as actividades femininas
da reprodução) e a forma do valor condicionam-se pois mutuamente e como tais são categorias
imanentes do patriarcado produtor de mercadorias – “imanentes” agora já não simplesmente no
sentido do valor, mas precisamente no sentido da dissociação-valor dialecticamente mediada,
como princípio constitutivo abrangente das sociedades patriarcais modernas. Daí que também se
deve pôr radicalmente em questão a dissociação-valor na totalidade; a “feminilidade” não deve em
caso nenhum ser (mal) interpretada como o melhor, merecedor de ser conservado e
transcendente, mas há que ultrapassar a relação no seu conjunto.
3. Parto do princípio de que o patriarcado produtor de mercadorias pode ser considerado como
modelo civilizacional abrangente. Tomo aqui de Haug as seguintes hipóteses: na ordem simbólica
do patriarcado produtor de mercadorias, a política e a economia estão agregadas ao homem; a
sexualidade masculina é definida como exemplo do individualista, do agressivo, do violento; as
mulheres, pelo contrário, apresentam-se como objecto, ou mesmo simples corpo. O homem é
visto como ser humano, como pessoa de espírito, que domina ou submete o corpo; a mulher, pelo
contrário, como não humana, como corpo. A guerra tem conotação masculina; as mulheres,
inversamente, são tidas como disponíveis para a paz, passivas, sem vontade, estúpidas. Os
homens têm de aspirar à fama, à coragem, às “obras imortais”.
4. Não é difícil reconhecer que a “psicologia da diferença sexual”, que Becker-Schmidt crê ter de
reconhecer ontológica, é em todo o caso uma questão da modernidade (ainda que as suas raízes
vão certamente até à antiguidade ocidental, como já foi dito; contudo o sistema dos “dois sexos”
foi construído apenas no contexto do capitalismo moderno). A moderna ilusão de vencer a morte,
bem como as dicotomias específicas de sujeito-objecto, espírito-natureza, dominação-submissão,
homem-mulher, que vêm de par tanto com a dominação da natureza como com a submissão das
mulheres a ela equiparadas, devem ser vistas como marcas distintivas típicas do patriarcado
produtor de mercadorias. É assim evidente que a dissociação/repressão/rebaixamento do
feminino constitui uma estrutura central do patriarcado produtor de mercadorias, também no
sentido de “inconsciente social”. Haug não retira a consequência de um inconsciente social
androcentricamente definido, se bem que esta ideia se imponha francamente à sua análise.
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5. Daqui não se pode concluir, segundo o tradicional esquema base-superstrutura, que a divisão
de funções sexualmente especificada na produção da vida e dos alimentos representa o plano
primário, ao qual se ligaram superficialmente significados culturais no decurso da história, como é
o ponto de vista de Haug. Em vez disso, o plano dos símbolos culturais, o da psicologia social e o
material devem ser estabelecidos nas suas relações recíprocas ao mesmo nível de relevância,
sem que nenhum tenha o primado. Assumo esta perspectiva de Becker-Schmidt. De facto, só
assim as relações entre os sexos são “uma espécie de trabalho em rede, (...) que não tem
nenhum lugar determinado, mas atravessam todos os lugares”, como diz a própria Haug.
A dimensão dos símbolos culturais desenvolve-se, por exemplo, nas análises do discurso em
ligação com Foucault (ver, por ex., Honegger, 1991; Landweer, 1990; Laqueur, 1996; e,
considerando a vida corporal, Duden, 1987); o lado psicológico na socialização do indivíduo do
patriarcado capitalista pode ser agarrado com um instrumental psicanalítico (cf. por exemplo
Chorodow, 1985) (5). O acesso ao plano material, ou seja, à divisão de funções sexualmente
especificada, à separação entre trabalho profissional e “trabalho doméstico”, é possível recorrendo
criticamente, por exemplo, a Ostner e Haug.
Em geral, trata-se tanto de indicar as limitações das diferentes abordagens (por exemplo, a
imagem no fundo behaviorista do ser humano, o seu procedimento positivista e a ontologia do
poder em Foucault e nas autoras a ele ligadas), como também de, simultaneamente, fazer jus às
justificações objectivas que têm na sociedade coisificada, díspar e fragmentada do patriarcado
produtor de mercadorias. Com isto não se pode chegar a um processo de derivação lógica, ainda
que as interdependências entre os diversos princípios e planos devam ser postas em destaque,
mas sim – na formulação acertada de Becker-Scmidt – trata-se de “sintetizar sem sistematizar
unidimensionalmente”, sem que devam ser equiparadas as diversas premissas epistemológicas.
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patriarcado produtor de mercadorias, pois esta relação dialéctica recíproca também é válida em
princípio em igual medida para todas as esferas (vistas em cada caso relativamente
independentes, com momentos de uma “lógica própria”) como a economia, a educação, a esfera
privada, o domínio da concorrência, a política etc., quando se abstrai de diferenças qualitativas
fundamentais.
Mas neste contexto é agora decisivo que a esfera privada, ao contrário de todas as outras
esferas que no seu conjunto se situam no espaço interno da esfera pública (definida na forma da
mercadoria), não pode ser deduzida da relação de valor, mas constitui justamente um domínio
igualmente dissociado de todas estas esferas ou momentos da esfera pública. Becker
Schmidt/Knapp não conseguem aperceber-se desta diferença qualitativa por causa do seu
entendimento sociologicamente limitado da totalidade. Daí que também só de modo meramente
formal e descritivo consigam, por exemplo, registar a relação hierárquica entre a esfera da
concorrência e a esfera privada e apresentá-la em conexão com a relação assimétrica entre os
sexos.
O patriarcado produtor de mercadorias não pode existir sem que determinadas actividades e
formas de comportamento, como o “amor”, o criar, o cuidar etc. sejam “expulsos” para áreas que
são contrapostas à lógica do valor, com a sua moral de concorrência, lucro, rendimento etc. –
portanto, para a área da reprodução, para a esfera privada, para a família, e para certas pessoas
a isso alocadas, as mulheres, que possuem estas qualidades opostas ao valor, ou a quem elas
são atribuídas.
É a partir desta relação entre esfera privada e esfera pública que se esclarece também a
existência de “associações masculinas” assentes num sentimento barato contra o “feminino”.
Também o Estado e a política no seu conjunto são constituídos desde o século XVIII à maneira de
associação masculina sobre os princípios de “liberdade, igualdade, fraternidade” e mais ou menos
correspondentemente movidos pelos interesses.
7. Assim, é proibido qualquer procedimento na lógica da identidade, tanto o que diz respeito à
transferência de mecanismos, estruturas e marcas do patriarcado produtor de mercadorias para
sociedades não produtoras de mercadorias, como também o que diz respeito a uma unificação
dos diversos planos, esferas e domínios no próprio patriarcado produtor de mercadorias que
abstraia das diferenças qualitativas. Na minha opinião, poderia extrair-se uma crítica da lógica da
identidade tanto a partir do entendimento negativo do valor na “crítica do valor fundamental”, como
a partir do conceito truncado de troca em Adorno. Mas esta crítica, que ignora a relação entre os
sexos, teria de permanecer ela própria na lógica formal. Pois o decisivo não é apenas que o
terceiro comum – abstraindo das qualidades –, o tempo de trabalho social médio, é trabalho
abstracto, que está de certo modo atrás da forma de equivalência do dinheiro, mas que esta, por
sua vez, tenha ainda precisado de excluir e de considerar inferior o que é conotado como
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feminino, a saber, o “trabalho doméstico”, o sensível, o emocional, o não analítico, o não unívoco,
o não claramente compreensível e localizável com os meios da ciência.
Contudo, a dissociação do feminino de modo nenhum coincide com o “não idêntico” de Adorno;
ela representa, pelo contrário, o reverso oculto do valor. Com isto, no entanto, a dissociação é
uma pré-condição para que o mundo da vida, o contingente, o não analítico, mas também
conceptualmente não compreensível, tenha sido desprezado e tenha ficado na penumbra por
muito tempo na modernidade, nos domínios da ciência, da economia e da política dominados pelo
homem. Importante tornou-se um pensar classificador, que não pode examinar a qualidade
particular, a “própria coisa”, e não consegue perceber as diferenças, as ambivalências etc. que
vêm com ela ou, em todo o caso, não consegue suportá-las.
Inversamente, isto significa sem dúvida para a “sociedade socializada” do patriarcado produtor
de mercadorias exactamente que os ditos momentos, planos e domínios não apenas têm de ser
irredutivelmente referidos uns aos outros como “reais”, mas também devem ser considerados na
sua união objectiva e “intrínseca” ao plano fundamental da dissociação-valor, como pano de fundo
da totalidade social, pelo qual é constituída “a sociedade” em geral como essência (no sentido de
meta-estrutura universal), e como cuja manifestação aqueles momentos e domínios específicos se
apresentam “realmente”.
Não se trata, assim, de modo simplista, de uma síntese interdisciplinar de tipo ecléctico, mas os
diversos momentos têm de ser referidos uns aos outros “essencialmente” desde o princípio, no
sentido da dissociação-valor enquanto totalidade, situação em que a categoria da dissociação-
valor – ao contrário do conceito de troca em Adorno e ao contrário do conceito negativo de valor
na “crítica do valor fundamental” – à partida já sabe sempre da sua limitação, com isso não se
colocando também de certo modo como absoluta em nome do plano abrangente, e nessa medida
sabendo reconhecer a verdade própria dos planos e domínios “particulares”.
8. Precisamente porque deve ser admitida a qualidade própria dos diferentes domínios, planos e
esferas, do objecto particular, do questionamento concreto e do respectivo contexto (histórico),
hoje, no contexto específico da pós-modernidade avançada, que tende a hipostasiar o cultural,
tem de ser salientado o significado do plano material, que é essencial no patriarcado produtor de
mercadorias.
construídas culturalmente e só depois se pôde seguir uma divisão sexual de funções. Tais
posições já não conseguem explicar que sentido tem em geral o porquê de os indivíduos terem de
se constituir propriamente como homens e mulheres no contexto específico do patriarcado
produtor de mercadorias. A questão quanto a este sentido, quanto a este “porquê”, remete para o
princípio abrangente da forma da dissociação-valor.
O valor, o trabalho abstracto, “a lógica de poupar tempo” e o mercado, que funcionam segundo o
ponto de vista da rentabilidade, da concorrência e do lucro, precisam do seu Outro, o “trabalho
doméstico”, no caso do qual se trata de gastar tempo, e das mulheres, às quais são atribuídas
qualidades opostas às dos homens. A construção da masculinidade e da feminilidade em sentido
moderno e a constituição do trabalho abstracto e do “trabalho doméstico” condicionam-se assim
necessariamente uma à outra. Não faz sentido perguntar qual é o primeiro, se o ovo ou a galinha.
Este contexto é evidente em Haug para o “patriarcado capitalista” num plano macroestrutural,
ainda que ela acabe por hipostasiar o plano material a partir das suas premissas. O facto de, no
contexto específico do patriarcado produtor de mercadorias, também haver mudança de género
das profissões e não se poder partir duma correspondência linear entre o conteúdo profissional,
por um lado, e as actividades domésticas, as qualidades atribuídas às mulheres etc., por outro
lado, não afecta minimamente a definição da essência da relação de género no sentido da
dissociação-valor.
Trata-se, sim, de aguentar a tensão entre essência (dissociação-valor) e aparência (as mulheres
também desempenham actividades profissionais não correspondentes a actividades específicas
das mulheres) e torná-la frutuosa na pesquisa do inconsciente social androcêntrico; só assim se
tornará claro porque são as mulheres consideradas “particulares, menores, outras” seja qual for o
conteúdo da sua actividade, e porque é que domínios antes conotados como masculinos sofrem
uma desvalorização quando acabam por ser codificados como femininos.
10. A dissociação-valor tem portanto de ser vista globalmente, como princípio formal do
patriarcado produtor de mercadorias, mesmo considerando que o desenvolvimento na forma da
mercadoria e patriarcal não ocorreu de modo uniforme nas diversas regiões do mundo (cf., por
exemplo, Hasenjürgen/Preuss, 1993), até às sociedades (outrora) sexualmente simétricas, nas
quais as noções modernas ocidentais de sexo até hoje não foram assumidas, ou não foram
totalmente assumidas (cf., por exemplo, Weiss, 1995). Há que ter em conta também que a relação
de género e as noções de masculino e feminino nem sempre se apresentam iguais, mesmo no
interior do desenvolvimento moderno ocidental. Só no século XVIII se constituiu o “sistema da
dupla sexualidade” e se chegou à “polarização do carácter sexual”; antes disso as mulheres eram
consideradas de certo modo simplesmente uma outra variante do ser homem. Daí que nas
ciências sociais e históricas se parta novamente também da instituição de um “modelo unisexo”
nos tempos pré-burgueses. Assim se viu, por exemplo, na vagina um pénis virado para dentro
(Laqueur, 1996).
Ainda que as mulheres também então fossem consideradas inferiores, elas bem que ainda
tinham muitas possibilidades de influenciar por vias informais, uma vez que ainda não se tinha
constituído uma esfera pública de grande dimensão como na modernidade. Nas sociedades pré-
modernas o homem teria uma primazia sobretudo simbólica, com escrevem Heintz/Honegger
(1981). As mulheres ainda não tinham sido definidas exclusivamente como donas de casa e
mães, como aconteceu a partir do século XVIII, complementarmente às atribuições dos homens,
que então tiveram de se tornar competentes na hipertrofiada esfera pública construída de novo.
Nas sociedades agrárias a contribuição feminina para a reprodução material era considerada tão
importante como a do homem (Heintz/Honegger, 1981, p. 15 sgs).
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processo. Também não deve ser concebida como estática e sempre a mesma. Na pós-
modernidade, ela assume mais uma vez uma nova face. As mulheres são agora “duplamente
socializadas”, como assinala Becker-Schmidt, o que significa que elas são por igual responsáveis
pela família e pela profissão. A novidade no caso não é, porém, apenas este simples facto, como
já foi assinalado muitas vezes – grande parte das mulheres já antes era duplamente socializada,
particularmente as mulheres da camada inferior – mas sim que esta factualidade e as
contradições estruturais que a acompanham dêem nas vistas.
Desde logo, por princípio, tem de se partir duma dialéctica entre os indivíduos e a sociedade –
por um lado, os indivíduos nunca são absorvidos nas estruturas objectivas nem nas
representações da ordem simbólica, por outro lado, contudo, também não se verifica a hipótese
inversa, de que estas estruturas e padrões de significação simbólica-cultural os defrontem de
modo meramente exterior; afinal os indivíduos sociais constituem eles próprios estas estruturas
culturais da sociedade, ainda que elas os defrontem depois como sistema autonomizado. Na
verdade as contradições da “dupla socialização” das mulheres, com uma diferenciação do papel
das mulheres, apenas na pós-modernidade dão plenamente nas vistas, como Ostner assinalou
acertadamente.
11. Na definição da relação de género pós-moderna, é decisivo insistir numa dialéctica entre
essência e aparência, e não se deixar arrastar pela factualidade empiricamente verificável da
“dupla socialização” para uma elaboração teórica das ciências sociais antecipadamente
sociologista, como aconteceu com Becker-Schmidt. Pelo contrário, a forma da dissociação-valor
abrangente e além disso constitutiva (jamais positivistamente superada) pode ser definida como
princípio formal da totalidade social na sua nova inflexão histórica que, por sua vez, para mais
uma vez o dizer, abrange por igual, mesmo na sua figura desenvolvida pós-moderna, as
dimensões material, psicossocial e cultural, e com elas também todos os domínios singulares da
sociedade. Correspondentemente, as próprias modificações da relação de género têm de ser
entendidas a partir dos mecanismos e estruturas da dissociação-valor.
12. Ora o objectivo da teoria da dissociação-valor é precisamente esta superação radical, isto é,
a suplantação real da masculinidade e da feminilidade sociais, tal como elas se apresentam na
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Não pode tratar-se, simplesmente, de “conter a motivação para exaltar o vencedor” que vem de
par com a repressão estrutural das mulheres nem, portanto, de conduzir o critério dominante a um
ordenamento supostamente novo, a partir de diversos domínios da forma não superada da
dissociação-valor, de modo que fosse possível um desenvolvimento pretensamente emancipatório
da sociedade humana (económico, social, ecológico) dando-lhes uma ensaboadela sem acabar
com eles. Tais ideias ainda partem sempre do ordenamento e dos princípios dados, que se trataria
apenas de deslocar, reduzir ou aumentar. Não saem dum reformismo há muito tempo tornado
fantasmaticamente irreal, meramente quantitativo, categorialmente acrítico e por isso mesmo hoje
anacrónico, longe de uma perspectiva radical, a única que de algum modo poderá dar resposta às
motivações e objectivos fundamentais da crítica social feminista.
Para isso teriam de ser superados os diversos domínios / pontos de vista / princípios imanentes,
e com eles também precisamente o domínio do “trabalho doméstico”, juntamente com a lógica
isolada de “gastar tempo” que lhe está associada (meramente complementar à lógica dominante
de “poupar tempo”). Pois se bem que Haug, por um lado, persiga uma perspectiva de igualdade e
ponha em causa o ser-assim da mulher doméstica, por outro lado, porém, tem-se a impressão de
que a lógica de gastar tempo correspondente a este domínio deveria ser apenas prolongada
linearmente, contraposta em princípio sem mudança, em luta com a lógica dominante de poupar
tempo, lutando e concorrendo “pela sua justa quota-parte” no todo social. Não ocorre a Haug a
ideia de que a lógica isolada de gastar tempo, na sua abstracção imanente, como simples
contrapolo da lógica de poupar tempo, tem de ser radicalmente questionada na sua existência
dissociada. Os correspondentes domínios, princípios etc. pretendem ter futuro no interior da forma
da dissociação-valor, apenas numa outra relação recíproca, pretensamente exonerada da
moderna referência discriminadora sexualmente especificada.
Segundo Becker-Schmidt, contra isto as mulheres desde sempre teriam feito este esforço de
integração social e individualmente, e por isso já teriam ultrapassado o sistema, no sentido do
protesto contra o papel que lhes é atribuído. De seguida será desenvolvido, mais claramente do
que até aqui, que isso não é assim. Paradoxalmente, a “dupla socialização” das mulheres é
plenamente “funcional” no patriarcado produtor de mercadorias em decadência. Ainda assim,
Becker-Schmidt enunciou algo de acertado de modo puramente descritivo: o caso é que as
mulheres são igualmente responsáveis “pelo dinheiro e pela (sobre)vida” (Irmgard Schultz),
mesmo à escala universal, mundial, ainda que tenham de ser tidas em conta particularidades
culturais. Se a “dupla socialização”, na sua forma pós-moderna nos Estados ocidentais
desenvolvidos, ainda esteve ligada a um acréscimo de igualdade, na senda do desenvolvimento
do Estado de bem-estar social (igualização das oportunidades de acesso ao ensino de homens e
mulheres, mais elevada actividade profissional também das mães etc.), e se isso significou o
abandono do papel da mulher tradicionalmente pensado apenas como de dona de casa, agora vê-
se claramente que, com a progressiva crise económica, com o esvaziar dos cofres públicos etc. a
“dupla socialização” das mulheres torna-se “vida de crise” – ela torna-se mesmo um momento da
desolada gestão da crise, gestão essa que já não funciona assim tão bem a partir de cima.
Agora se torna ainda mais claro que, em vez de uma superação do patriarcado produtor de
mercadorias com todas as suas implicações, ocorreu pelo contrário, na senda dos processos da
globalização, o seu “asselvajamento” em que, justamente desde 1989, a lógica de “salário, preço
e lucro” (Marx), ou seja, a forma fetichista do “valor”, está a determinar objectiva e normativamente
quase tudo, justamente na época em que se torna em definitivo obsoleta. As actividades de
reprodução das mulheres, necessárias tanto antes como depois, dissociadas como “desde
sempre”, tornam-se na circunstância perfeitamente marginais, com os correspondentes “efeitos
colaterais” para o moderno modelo de civilização, como Haug já tinha feito notar com razão. É
claro que aqui é decisiva a dissociação-valor como categoria real historicamente dinâmica, que
produz tais consequências na pós-modernidade globalizada. As vidas das mulheres do “Terceiro
Mundo” e do “Primeiro Mundo” estão a equiparar-se num prazo talvez não assim tão longo, pelo
menos no que diz respeito a grande parte das mulheres. Se a vida da mulher burguesa foi durante
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muito tempo o modelo para as mulheres faz-tudo [underdog] do Terceiro Mundo, agora, pelo
contrário, a vida de Terceiro Mundo destas torna-se a norma (real) para as mulheres do até aqui
“Centro”. Com isto abandono o plano de reflexão da “grande teoria” e viro-me para campos mais
próximos da empiria a fim de observar mais de perto a modificação pós-moderna da socialização
da dissociação-valor.
Beck, Ulrich/Beck-Gernsheim, Elisabeth: Das ganz normale Chaos der Liebe [O caos
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Scholz, Roswitha: Der Wert ist der Mann. Thesen zu Wertvergesellschaftung und
Geschlechterverhältnis [O valor é o homem. Teses sobre a socialização do valor e a relação entre
os sexos] In: Krisis. Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft 12 (1992), p. 19-52.
NOTAS
(1) [Em 2004 a autora fundou a revista EXIT! juntamente com outras redactoras e redactores com ela expulsos da
Krisis – N.Tr.]
(2) Adoptei esta formulação seguindo Barbara Duden, que uma vez, noutro contexto, escreveu: “Não sou nenhum
alfaiate mé-mé-mé sujeito ao girar do moinho da desconstrução” (Duden, 1993, p. 29) [A expressão “alfaiate mé-mé-
mé” parece referir-se à reacção do pacato alfaiate perante a travessura das duas crianças, na obra de Wilhelm Busch
Max und Moritz [Juca e Chico] – N.Tr.]
(3) Sem querer cair aqui numa postura construtivista vulgar, que não quer saber nada da relação natural, mesmo
mediada pela sociedade, é preciso dizer que qualquer pulsão já é sempre socio-culturalmente estruturada e nunca
surge simplesmente directamente da natureza.
(4) [A autora publicou em 2006 DIFFERENZEN DER KRISE – KRISE DER DIFFERENZEN [DIFERENÇAS DA
CRISE – CRISE DAS DIFERENÇAS] Horlemann-Verlag, ISBN 3-89502-195-4 (N. Tr.)]
(5) Em todo o caso pode-se concordar com Mechthild Rumpf, quando ela objecta a Chorodow (bem como a Jessica
Benjamin) que “os imperativos sistémicos, bem como as exigências de comportamento e desaforos socialmente
mediados, se explicam psicogeneticamente”. Com razão ela insiste, com Adorno, numa dialéctica entre o indivíduo e
a sociedade, em que esta se apresenta como um aparelho autonomizado face aos indivíduos. É pena que no
conjunto da argumentação dela – tal como no caso de Becker-Schmidt – se continue a concluir que as estruturas
objectivas e os indivíduos sociais se contrapõem apenas exteriormente (Rumpf, 1989, pag. 84).
http://obeco-online.org/
http://www.exit-online.org/
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