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·Enciclopédia Einaudi

volume 20

I· Parentesco

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I

IMPRENSA NACIONAL· CASA DA MOEDA


íNDICE
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e;.,z,~ / <UG. ~
,11 Masculino/feminino (Françoise Hériticr)

I . 81 ,Fam11ia (Françoise Hériticr) -l..•..


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l.',,~~.l - 95· I nces to (Franço18C.


. H~'b' \
.•••.•cri'" '_.-"Q'~""'''&5 L-,S;
IC''"'''''' V,""'/<, "'.
- 125 Endogamialexogamia (,Françoise Héritier)
21 Parentesco
~ 140 Casamento (Françoise Htriticr) :of' . ... ~.'lk"'."' ...ll"""':)'\kH.J
{FraaçoiIe Hériticr).
/141 'Homemluulber ~ Godelicr)
,/165 Mulhcr (Fnnca otigaro Basaglia)
199 Casta (Valerio Valeri)
220 Totem (Alain Tcstart)

,241 Plano da obra


249 Gráfico

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DireClor
Ruggiero Romano

ConndlOru do projeclO
Alfredo Salsano, Giorgio Benoldi, A1essandro Fontana,
Jean Petitot, Massimo Piallelli Palmarini, Massimo Galuzzi,
Fernando Gil, Krzysztof Pomian, Giuseppe Geymonat,
Giuseppe Papagno, Gian Paolo Caprettini, Renato Betti,
Giulio Gioreno, Clemente Ancona.

EDlçAO PORTUGUESA

Coordtnodor-respomáwl
Fernando Gil

SureUlriado
Vasco Rosa, Leonor Rocha Vieira

OriIfItaFIJo gráfu:a
Gabinete Editorial da INCM

C 1989 Imprenn Nacional·Casa da Moeda

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NOTA DO EDITC1k

Na sua venlo original, esta Erteic/opldia dispOe-se alfabeticamente, de eÁbacoo a~


cZeroa, num 'total de 551 entradas em 14 volumes. A Erttic/opldia foi pomn COIICe-
bida tematicamente, DI forma de 79 conjuntos de entradas. No fim de cada um
dos volumes da presente ediçIo, o leitor eDCODtrIrio gdfic:o da obra, tal como ela
se distribui pelos conjuntos tem4ticos: os conceitos sublinhados - chamados por-
t4IIIti DI ediçIo italiana, quer dizer, «portadores. do conjunto - correspondem aos
títulos dos nossos volumes. Com efeito, DI ediçIo portuguesa os conjuntos foram
reagrupados, segundo um critério de proximidade conceptUlI1,num CDT/1IU de 41 volu·
mes. 8eguir·se-Ihes-lo dois outros que correspondem ao vol. 15 da ediçlo italiana
(Sútllftdtica). Neles se apuram as correlações internas e as grandes linhas de fundo
da BneiclopIdia.
ApóI cada artiao, um pequeno texto, da responaabilidade da redacçIo da Enci·
í
c/opIdia, deman:a problClÚtica global rapec:tiva; nesse texto, as palavras em itá-
lico 810 deIignaç(les de outras entradas da obra. Todos os artiaos propllem assim
itinedrioa de leitura - difemltcs em cada caso - atra~s do torpIU. NIo se trata,
naturalmente, de recomeDdlÇGesrfaidas de leitura mas tIo-só de indicaç(les, que suge-
rem 10 mesmo tempo os encadeamentos na base da Ertticlopidia; e convidam tam·
~ o leitor a CODltruiros seus próprios percursos. A circu1açlo dos conceitos está
ainda _",Iada por um sistema de ref~ cruzadas dentro das próprias entradas,

Os nomes de autores que figuram no texto dos artigos entre pmnteses rectos,
assim como as dataa entre puinteses rectos que se seguem aos nomes dos autores,
reeovWn aos dados bibliogdtIcos completos no fim de cada entrada. SIo indicadas
•• traduçaea portU&Ue8ISaiJtentcs. Estes dados bibliogrdficos refemn-ao unicamente
u obras citadas ou meDCioDadano corpo dos artiaos: nIo alo de modo ~ biblio-
grafias. Os títulos das obras em italiano, frances, ingles, espanhol, citadas no corpo
dos artiaos, alo indicados DI llngua original. Quanto u obras em alemlo, russo,
úabe, chines, ele., menciona-se no texto do artigo o título em portugUes, seguido
pelo título original entre pmnteses curvos, se 010 se reenvia aos dadoS bibliognfi·
cos; se po«m tal reenvio é feito, o título original achar-se-1Inesses dados. No que
se refere aos c1úsicos gregos e latinos limitamo-nos a dar o título em português no
corpo do artigo, com as indicaçOes necessárias para identificar os passos citados. As
palavras em hebreu, grego, úabe, etc. foram transliteradas.

, As datas entre pmnteses rectos nos dados bibliognficos alo as da composiçlo


da obra ou representam uma referência cronológica diversa da 1.. ediçIo (que figura,
com indicaçlo do autor e do lugar de publicaçlo, depois do título), por exemplo
no caso das obras póstumas.

TraduçiJa

Magda Bigone de Fipciredo (Cuamento, BudopmiaIexopmia,


Fam1Iia, Homem/mulher, MucuJiDolfemilllno,
Parentesco, Totem),
MarprIda Santos (Mulher),
. R.ui SIDWII Brito (Cata),
ToDIIZ Vez da snva (lDcato).
II

! I
••

MASCULINOIFEMININO

, A sociedade ocldeSltal, pI[Il,'qUC',pl a observa, caracteriza-se por uma clara


dominaçlo masculina. A subotdinaçio da mulher é evidente no domínio do
político, do cconómico, do simbólico. Hll poucas representantes femininas
no~ órgãos locais ou centrais de governação (executivos ou administrativos).
No plano económico, as mulheres estio a maior parte das vezes confinadas
l esfera doméstica, da qual, alills, n10 saem, nunca absolutamente: de facto,
as mulheres que exercem uma actividade remunerada (artesanal, coJnercial,
etc.) devem na prlltica coordenar as duas actividades. Quanto tem activida-
des fora do campo doméstico, é raro que as mulheres coniigam ascender
ao topo, aos cargos de responsabilidade, de direcçio, de prestígio, na sua
profisslo.
No plano do simbólico, orientado pela tradiçlo e pela educaçlo dada aos ,
filhos, as actividades valorizadas e apreciadas 810 as que os homens exer-
cem. Para além disto, um conjunto de juizos de valor põe em evidência
diferenças, apresentadas como naturais e irremedi4veis tanto quanto irrecu·
sllveis por este facto, no que respeita ao comportamento, ls acçOes,ls capa-
cidades, ls «qualidades» ou aos «defeitos», considerados como marcados por
uma importAncia tipicamente sexual: um discurso negativo mostra as mulhe-
res como criaturas irracionais e ilógicas, desprovidas de espírito crítico, curio-

dota~
~discretas,
de espírito
faladoras,
inventivo,
incapazes
poucodecriativas
guardar especialmente
um segredo, rotineiras,
nas actividades
pouco
de tipO"intelectual ou estético, medrosas e cobardes, escravas do seu corpo
e, dos seus sentimentos, pouco aptas para dominar e controlar as suas pai.
xões., inconsequentes, hist&icu, inconstantes, pouco dignas de confiança e
até mesmo traidoras, manhosas, ciumentas, invejosas, incapazes de serem
boas camaradas entre si,' indisciplinadas, desobedientes, impúdicas, volúveis,
perversas. .. Eva, Dalila, Galateia, Afrodite. •. Existe um outro género de
discurso aparentemente menos negativo. Frllgeis, caseiras, pouco dotadas
tanto para a aventura intelectual como para a aventura física, doces, emoti·
vas, amantes da paz, da estabilidade e do conforto do lar, fugindo das res~
ponsabilidades, incapazes quer de espírito de decisão quer de espírito de
continuidade, crédulas, intuitivas, sensíveis, ternas e pudicas, passivas, as
mulheres têm por natureza necessidade de ser submetidas, dirigidas e con·
troladas por uin homem.
\,
MASCUUNOIFBMININO 12 13 MASCUUNOIPBMINlNO
., f~~::j.. , .
Em ambos os casos, e sem DOSpreocuparmos com as contradiçties papel importante e aetivo, afastado dos clDones da nossa pnSpria c:u1tura.
(a mulher ardente, a mulher fria; a mulher inconstante, a mulher flel, anjo Também DIo est4 excluído que uma peuetnçIo maciça no mundo dai mulhe-
do lar; a mulher pura, a mulher corrupta e impura, ele.), este disculso aim- res, levada a cabo por antropólogas e feministas, nIo faça aparecer c:enu
b6Jico remete para uma naturaa feminina, morfológica, biológica, psicoló- desvantagens suplementares aU aqui ignoradas. POI'outro lado, um traba-
gica. As Kries de qualidades enumeradas têm um sinal negativo. ou depre- lho receote [Whyte 1978] sobre correlaçGes estatísticas entre variáveis rela-
, i ciativo, ao passo que as .mes qualitativas masculinas correspondentes têm tivas 1 posiçIo das mulheres e ao sexo do observador - num estudo de
II DOYCDta e ~ popu1aç(ies- mostra que este último dado tem uma inci-
sinal positivo ou valorativo. Exiate um sexo principal e um sexo ~-
rio, um sexo «ÍOl'tCte um sexo cfraco», um espírito «ÍOl'tCte um espírito dência sem importAncia. O autor conclui que os relatórios masculinos nIo
«fraco». Esta fraqueza natural, co~nita, das mulheres implica e le8itima do necesaariamente exaustivos e seguros, mas que nIo existe distorçlo sis-
a sua sujeiçlo, at~ a do pnSprio corpo. '." telÚtÍCa na apresentaçlo da condiçlo feminina como anormalmente baixa.
Nlo se ponl aqui a questlo de saber se esta re1açIo Dlo igualitária. elos > "', U••• maior quantidade de documentos fornecidos por observadores de sexo

sexos na sociedade ocidental pode e deve mudar e, no caso afirmativo, em t ' feminino daria uma YÍ;do mais pormenorizada e, por consequência, mais
',' 'íuata do papel desempenhado pelas mulheres, mas nIo indicaria forçosamente
I que modalidades,
B passtvel masesta
dizer que colocar-se-Io
dominaçlo duas questlies
masculina totalmente
~ universal? Se diferentes.
aim. onde que a parte delas fosse melhor do que aquela geralmente admitida. a ver-
I se situa a origem, a explicaçlo desta desigualdade inata entre os sexos? dade, por exemplo, que Phyllis Kaberry [1939] rectificou a imagem, dada
NIo ~ de maneira nenhuma certo que se disponha de um recenseamento por Malinowski sobre os arborfgenes australianos, de mulheres humildes,
exaustivo das sociedades humanas existentes ou que tenham existido, e ~ diferentes perante o homem, esmagadas, mantidas 1distincia. Mas esta nova
indubitável que todas as sociedades conhecidas Dlo 810, por esse motivo, imagem Dlo chega para inverter o sentido geral da sua história.
necessariamente descritas. E, quando o do, Dlo ~ fOlÇOSlmentede uma Uma outra crítica, geralmente feita 1afirmaçIo da píobabilidade estatís-
maneira que ponha em evidência a natureza da re1açlo entre os homens e tica da universalidade da dominação masculina (baseada no exame de
as mulheres. Feitas estas reservas, que implicam a ausência de provas cien- documentos antropológicos), ~ a de que da nIo toma a história suficiente-
tíficas absolutas, hi uma forte probabilidade estatística da universalidade da mente em conta. Bate argumento ~.apresentado de duas maneiras diferen-
supremacia masculina que decorre do exame da literatura antropológica sobre tes. Nas grandes sociedades actuais existiria um nivelamento cujo eixo cen-
o assunto. tral ~ uma dominaçlo de tipo patriarcal que priva as mulheres de direitos
Uma das críticas feitas a esta afinnaçIo, de um ponto de vista feminista, ou de situaçGes privilegiadas que elas detinham anteriormente, por influên-
~. a de que a maior parte dos estudos antropológicos foi elaborada por cia de fac:tores VÚÍOI: as religiOes reveladas, a judaico-cristi, a isl4mica;
homens. AU se acrescenta que, quando 810 orientados por mulheres, estas o desenvolvimento do com&cio e da ind\1stria que privilegiam ·actividades
participam necessariamente da ideologia dominante da sua própria sociedade de tipo novo e que por essa razlo perturbam as situaç(les adquiridas; a inci-
que valoriza a masculinidade, e por consequência prestam mais atençlo ao dência do colonialismo que' promove e agrava estes dois !actores nas regiões
onde grasaou. Pode retorquir-se que se Dlo vê muito bem como ~ que reli-
mais acessível. Um duplo desvio, etnocêntrico e androcêntrico, faz co que gilies reveladas que privilegiam o papel do homem podem ter..nascido e
mundo
se dos homens,
observem considerado·
outras sociedades commais interessante
olhos e de qualqseira
da nossa sociedade e mais p '- desenvolver-se num sentido absolutamente inverso ao da ideologia dominante;
cularmente com os olhos do homem que na nossa domina. do mesmo modo, Dlo se percebe muito bem por que razlo as mulheres,
Por último, sendo o mundo das mulheres particularmente secreto e se tivessem sido dominantes politicaJbente, economicamente, ideolOgicamente,
fechado para um antropólogo, ainda por cima do sexo masculino, recorre- teriam sido incapazes de se adaptar ~ U'8DSformaçOessociaisprovoéadas pela
-se, no que lhes diz respeito, à vislo que os homens têm da sua ~iedade. alteraçio da ordem económica ou pela colonização. Em qualquer dos casos,
As mulheres das sociedades estudadll seriam desta maneira consideradas este nivelamento ~ o do agravame~t() de um estatuto, nIo da sUli inversão
aeaundo um critmo duplamente masculino, o que explicaria que Prevaleça
na .literatura antropológica a imagem da sua condiçlo humilhada, propsiva. I'
E verdade que muitas situaç~ ae confundiram e se modifit:8ram pelo
Nlo ~ possível refutar totalmente este argumento, mas ~ con~eniente desenvolvimento da economia m~til e pelo colonialismo. Deste modo,
atenuar-lhe o alcance,. por variadas razlies: admitindo que as antrP~logas sociedades matrilineares, ou seja, .ociedades em que o poder ecdnómico e
participam da ideologia dominante da sua pnSpria sociedade, ~ cobtraditó- político está na posse de homens qtH: pertencem a grupos definidos social-
rio pensar que noutras sociedades as mulheres possam ter uma rq1resenta-
tividade radicalmente diferente da dos homens. A tendência natural de qual- mente porlentamente
passaram uma regra adeformas
filiaçlobiliJieares
q~e passaou exclusivamente pelas mulheres,
mesmo patrilineares, enquanto
quer antropólogo ~ a de se interessar pelos aspectos exóticos e mais diferentes a inversa nunca se verifICa (porqu~, aliú, ~ impossível por razOes estrutu-
da sua pnSpria cultura, nIo sendo pois evidente que os homens sejam inca- rais). Na TanzAnia, por exemplo, os homens começaram a criar plantações
pazes de ver e de notar os casos em que as mulheres desempenham um nas terras colcetivas dos grupos matrilineares, para responder à procura curo-
MASCULINOIPEMININO 14 IS . MASCULINOIPEMININO
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. - ··.•il •••
I :
peia. Passou-se então, lentamente, da grande fanúlia, que cultivava cereais (do igualmente elas que redistribuem o produto da ta masculina), o que
e outras plantas alimentícias em terrenos de propriedade comum, para a tiuní- é posstve1se tivermos em conta a estrutura social matrilinear favontve1 por_
lia individual centrali7Jldanum homem que ganhava dinheiro, depois da indi· que a actividade fundamental das mulheres, a agricultura de ~, nIo
vidualizaçlo da propriedade das te;rras. Tal nIo significa, todavia, que na é incompatível com a possibilidade de tomar conta dos filhos. Segundo a
sociedade matrilinear inicial as mulheroll e a sociedade não estivessem sob m~ autora, e d~ modo muito interessante, existem apenas três tipos de
controlo masculino. ~ económicas que permitem esta acumu1açlo de tarefas: a colheita,
No que respeita ao segundo modo do apresentar a argumentação baseada a agricfütura de enxada e o comércio tradicional (o que não significa que
todas &fi sociedades que pratiquem estas formas de actividade ofereçam às
primitivo, derivada de Bachofen [1861 , segundo o qual teria havido um m~erp situações privüesiadas). Acresce ainda que não é indiferente que
estado
na inicialtrata-se
história, da humanidade marcado a bem
da teoria evoluciO~'.ta, ignorância da paternidade
conhecida, fisio-
domatriarcado seJ~ ~ matronas a gozar de um alto estatuto no caso dos Iroqueses. Mais
lógica no culto das deusas-mães e pela' 40minaçlo feminina - polí*a, eco- adiantei ~ol,caremosa este palItO.
nómica e ideológica - sobre os homcQI. Não é este o lugar para fazer a . A PfOCWll de ~ verdede'oriIinal tenta apoiar-se no estudo das socie-
dades qde ConsiderImóe DÍak.primitivas (se' bem que elas próprias tenham
i
o termo fmatriarcado', que implica a eia de poder feminino, foi e conti- uma hÃlJt6ria),ou lleja, a dos caçadores-recolectores, essas populações qu~
nua a ser
crítica dasfrequentemente utilizado
teorias evolucionistas da em ....ferência dir-se-ll
h~'lanidade; a situaçl5esreais de matri-
simplesmente que não conhecem nem a agricultura nem a criaçlo de gado e que vivem da .'
linearismo; em que os direitos eminent!=Ssão os dos homens nascidos nos apanha ~ta dos frotos da natureza, através da caça, da pesca, da criaçlo
grupos de .filiaçãodefinidos pelas mulheres ou em refedncia a situaçOesmíti- de insectos e de pequenos animais, da apanha de b88ll8, frotos e gram{neas
cas como'a das Amazonas. selvagens.
A sociedade humana, que, do ponto de vista da antropologia, parece ter Aetualmente existem trinta e duas sociedaes de caçadores-recol~res
estado mais próxima da definição do matriarcado, é a dos Iroqueses [Brown que nIo oferecem aquela visão comum das relações homem/mulher que ~
1970b], estudada por numerosos autores, depois do jesuíta Lafitau [1724] supõe serem uma sobrevivEncia de um l1nico modelo arcaico. Todas mani-
e do relato da vida de Mary Jemison por Seaver [1824]. Nas seis naç(ieI festam a existência de uma supremacia masculina, mas com enormes dife-
iroquesas, as mulheres não eram tratadas com uma deferEncia ou com aten- renças que vlo da quase-igualdade dos dois sexos entre os Anasbpi, índios
ções especiais, e é possível que, segundo Morgan, os homens se consideras- pescadores, até àquase-escravatura das mulheres ezistente entre os Ona da
sem superiores, consagrando todas as suas actividades à caça a grande dis- Terra do Fogo. "
tãncia (uma campanha podia durar um ano) ou à guerra. Mas as mulherea, a verdade que em· certas sociedades de caçadores-recolectores da Aus-
ou pelo menos algumas delas, gozavam de direitos e de poderes raramente tntlia e de Africa as mulheres gozam de uma grande autonomia. Maurlce
igualados. . GodeUerexplica isto pelo facto de não haver diferença entre economia dolJ1&.
A regra de filiação passava pelas mulheres, e a residência era matriloca1. tic~ e econo~ pl1blica, pela .ausência de propriedade privada e porque a
As mulheres que pertenciam à mesma linhagem viviam na mesma grande e familiar não é exclUSivamente conjugal. Os homens Rio exercem
casa, com os seus maridos e fllhos, sob a tutela de «IIllltroDUll,as quais aí con~ imentos ~ísicos; os trajectos de um grupo que se desloca 810
não sabemos, infelizmente, com exaetidão, como eram escolhidas. As matro- escolhld para comb1D8ruma boa caçada e uma boa colheita· as mulheres
nas, que comandavam e dirigiam a vida das grandes casas, dirigiam igual- do livres dos seus movimentos e de disporem de si mesma's.
mente o trabalho feminino agrícola, apanágio das mulheres, realizado em , Mas estas viatlea«idílicasllnIo devem fazer esquecer a existEnciade outros
comum nas terras colectivas que eram propriedade das mulheres da famí- grupos que pertencem ao mesmo tipo de economia dos caçadores-recolectores
lia. As próprias matronas procediam à redistribuição da alimentação cozida, e. em q~e as re1açfteados homens e das mulheres são marcadas pela violEn-
Cl8. Anne Chapman, no seu livro sobre os Ona [1982], descreve uma socie-
por
nas lar, juntorepresentadas,
estavam dos hóspedes se
e junto dosGrande
não no membros do Conselho.
Conselho das SeisEstas mapo-
Naçõeslro- dade onde as mulheres não tEm qualquer direito, onde os maridos podem
quesas, pelo menos no Conselho dos Al)ciãos de cada nação, através de um bater, ferir e até matar a mulher sem qualquer sanção,' onde as mulheres
representante masculino que falava em nome delas e fazia ouvir as suas vozes. desp~ Rio conhecem diariamente seRlo a brutalidade na sujeição e,
Esta voz não era, de facto, negligenciável, dado que as matronas dispunham penodicamente, ~urante as sessl5esda sociedade de iniciação masculina que
de um direito de veto no que respeitava à guerra, se o projecto bélico lhes podem durar .v4rios meses, o terror e a violEncia infligidos pelas máscaras.
não agradava, e podiam, de qualquer maneira, impedir a realização de um Neste caso é mteressante notar que um mito de origem explica este estado
projecto de guerra impedindo simplesmente as mulheres de fornecerem aos de dependEncia.
guerreiros a provisão de alimentos secos ou concentrados que lhes era neces- . Na origem, ~lica Anne Chapman, os homens postos em abjecta sub-
sário levar consigo. Para Judith Brown, as matronas iroquesas devem este mlssã~ eram obngados a fazer todos 01 trabalhos, incluindo os domésticos,
estatuto elevado ao facto de controlarem a organização económica da tribo e BerVlamas suas esposas, reclusas na grande casa das mulheres de onde
MASCUUNOIPBMININO 16 17 MASCUUNOIPIMININO
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saiam OS rugidos de mMcaras aterrOrizantes. A,Lua dirigia as mulheres. Isto explicitamente que.tqUllquer cultura, qUllquer sociedade, se ~ na desi-
durou aÚ ao dia em que o Sol, homem entre todos os homens, que, trazia gualdade sexual e que esta desigualdade 6 uma violêIIcia. a DeCCllfriopor
I I
caça para junto da cubata inici4tica para alimentar as mulheres, surpreende isso acreditar em verdadeiros aetos inteneiooais de violeacia iDicial, como
I' a troÇa das jovens sobre a credulidade dos homens e compreende que as aeto8 fundadores da ordem social? Pode por isao lCl'editar-se numa perda
mMcaras nlo alo a emanaçlo de forças sobrenaturais aterradom, dirigidas hiatcSricade poder, ou tratar-se-ll simplesmente do discurao justificativo que
contra os homens, mas apenas um subterfdgio utilizado pelas mulheres para a sociedade pronuncia sobre si própria para dar conta de uma situaçAopro.
os manter em estado de dependencia. Os homens estrangUlaram entlo todas duzida por Um conjunto de causas Dlo intencionais, objectivas? Adiante vol-
as mulheres, à excepçlo de tres jovenzinhas, e inverteram os papéis. A Lua taremos a este ponto fundamental.
voltou para o ~, onde continua sempre a tentar vingar-se (os eclipses do O mito legitima a ordem social estabelecida, dissemos. No entanto, nem
Sol alo disso a prova). As mulheres alo mantidas na ignodncla da situaçlo todas as sociedades e1a,borarammitologias propriamente ditas para d'undar»
original (o mito só é transmitido aos homens durante os períodos de inicia- • dominaçlo masculina, para lhe dar um sentido. Mas todas têm um dis-
çIo); tanto elas como os homens veetn na Lua e nos seres que lhe ado curso ideológico, um corpo de peJ*Jnento simbólico que tem essa mesma
associados inimigos do género humano, na medida em que os sabem boItis funçlo de justificar a supremacia do homem aos olhos de todos os mem-
aos llCUS irmIos, filhos, maridos. bros da sociedade, tanto aos das mulheres quanto aos dos homens, porque
, Magnífico exemplo da natureza mftica, ou seja, puramente ideológica, do quer uns quer outros participam iJbr definiçlo da mesma ideologia, incul.
tema do matriarcado primitivo, cujo objectivo é legitimar a dominaçlo mas- cada desde a infIncia. ,
culina, numa sociedade .primitiva», de tipo patriarcal. NIo é um exemplo Bates discursos simbcSlicosalo Cbnstruídos sobre um sistema de Clteso-
isolado. Entre os Bemya da Nova Guiné, que nIo alo caçadores-recolectores, riu binúias, de pares dualistas, qUe ~ frente a frente séries como Sol
mas sim horticultores que também praticam as inici~ masculinas, ensina-se e Lua, alto e baixo, direita e esquerda, noite e dia, claro e escuro, lumi.
aos homens, no decurso desses períodos inici4ticos, que foram as mulheres JlOIOe sombrio, leve e pesado, frente e costas, quente e frio, seco e hl1mido,
quem na origem inventou o arco e as flautas cerimoniais. Os homens ma&CU1iDo e feminino, IUperior e ihferior. Aí se reconhece a estrUtura sim-
roubaram-lhos ao penetrarem na cabana menstrual onde esses objectos esta- bcSIicado pensamento filoIcSfiooe 1nédico grego, tal como o encontramos
vam escondidos. Desde aí, só eles sabem servir-se deles (a flauta é· O' meio em Aristóteles, Anaxjmandro, Hi~rates, onde o equiUbrio do mundo e
de comunicaçio com o mundo sobrenatural dos espíritos), o que lhes con- dos elementos como também o dó corpo humano e dos seus, hUmores se
fere toda a supremacia [Godelier 1976]. Entre os Dogon da África Ociden- fundam numa harmonioaa combinaçlo destes contrários, e, por consequên-
tal, cereaIicultores, o mito narra uma aúloga privaçlo do poder das mulhe- cia, qualquer excesso num dos ~pos causa desordem e/ou doença. No
res sobre o mundo do sagrado, tendo-lhes os homens roubado as' saias das
DWcuas feitas de fibras pintadas de encarnado. Em todos estes casos trata- pen-memo
e do hdmido,grego, as categorias
que estio directamebte do as do1quente
~trais associadas e do frib, do
masculinida~,(o seco
quente
:.sede sociedades com um nítido poder masculino, que se referem a Um estado e o seco) e • feminilidade (o frio e'leihl1mido) e, de maneira apaÍtntemente
inexplic:dvel, veem-se afectados de',valores, positivo por um ladd, negativo
fun, sociedades matrilineares, onde também o poder é detido peloS il , por outro, embora haja uma ccrtallmbivalência do seco e do hWnido, que
mítico
evocammatrlarca1 original.
nos seus mitos um Mas,
estadonas sociedades
original lacustres
inverso, da ~o
baseado, aqui;:' Mar-
insti·
, tuiç6es patrilineares. O Rio exise ao grupo o sacrifício de uma cribça antes nIo c:ontêmem
18lIOCiados, emdiVCl'108
~ mesmos valores:aJx>si~vosou
contextos. negativos,
assun que, na ordem domas ~•. assumem,
corpo, o quente
de se deixar atravessar. A mulher do chefe recusa oferecer o seu fiUio;a irmI e o hdmido estio do lado da vida, da alegria, do conforto, portanto do posi-
do chefe dá o dela, a fim de salvar o irmIo e o grupo todo. E o ch"'e decide tiw; o seco e o frio estio lado IaM da morte, do negativo por consequência
entlo que a partir desse momento a transmisdo dos poderes e dOa bens se (01 mortol têm sede). Mas na ordem das estações, o seco esU dO'lado posi-
passa a fazer nIo ao fJ1hodo homem'h- ao filho da irmI, 10 IObtinho ate-
rino. Mas aqui, nenhuma violeDclafeminina é exercida sobre os hGlbena por tivo com o quente
Se pauarmos do Vedo,
• ordem sexual,e as
o h1Írl1ido
do corpos
niUlheres, negativo frio d~ Inverno.
comeoportanto
vivos quentes
lhes terem tomado o poder. Duu mulheres: a mulher, a irmI; dua atitudes e hdmidOl que arrefecem e se aq\ll:cem com as perdas menstrUais, deve-
femininas sentidas como d.iametralmente opoIt8S e a partir da. q. o chefe riam por essa mesma razIo ser ma\s,secas do que ,os homens. oni, o macho
decreta a nova lei de filiaçlo: o egoísmo da eapou-estl'lJlPÍ1'l, o ~truílmo é seco e quente, associado ao fogo e 10 valor positivo; a tàea é fril, hWnida,
e a dedicaçlo da irmI-consaDgUínea. Mas j' o chefe é macho e .0 estatuto associada • que e ao valor negativ~ (Bmpédocles, Aristóteles, lnpcScrates).
do chefe permanece com o macho. . Trata-se, segundo Aristóteles, de Uma diferença de IIQturua na tipacidade
O facto é que o mitonlo fala da história: transmite uma mensagem. em tICOZe1'lI o sangue para a partir üele se constnúrem os humores do corpo
A sua funçlo é a de legitimar a ordem social existente. Os exemplos ona, próprios a cada um dos sexos: a inenstruaçIo na mulher é a forma inaca-
baruya, dogon explicam que a ordem social, encarnada na preeminencia do bada e imperfeita do esperma. O esperma, rarefacçlo e depuraçlo do san-
mIscu1ino, assenta numa violência original feita •• mulheres. O mito declara gue através de uma cocçio intensa, é a subst4ncia mais pura, que atingiu
MASCUUNOIFEMlNINO 18
19 ~LlNOIFBMININO
t~~
o dItimo grau de elaboraçio. A relação perfeiçiorunperfeiçlo, purezafunpu- mente, noutras culturas, outros sistemas binúios diferentes daquele que se
reza que é a do esperma e dos mênstruos, consequentemente do masculino baseia no calor e no frio podem designar as mesmas pnlticas ou entlo,' como
e do feminino, remete por isso para uma diferença fundamental, natural, nos Intuit, um sistema binmo baseado no calor e no frio pode inverter total-
biológica, na aptidão para a cocçlo: é porque o homem é à partida quente mente ou parcialmente a série das associações conexas. De faeto, Dio existe
e seco que conseguiu perfeitamente aqllilo que a mulher, porque é natural- nesta escolha uma racionalidade fundada na apreenslo objeetiva de um dado
mente fria e h11mida,só consegue imPJrleitamente, nos seus momentos de natural, nem mesmo quando eles parecem legítimos. a preciso considerar
maior calor, sob a forma de leite. estas oposições binárias como sinais culturais e Dlo' como portadoras de um
Este discurso fllosófico-médico, qU(ldá uma roupagem às crenças popu- sentido universal - o sentido reside na própria existência destas oposiç&ls
,,
lares é como o mito, um discurso p~isamente
, ideológico. As correlações e nIo no seu contel1do -; é a liDguagem do, jogo soCial e do poder.
das o~çôes binárias entre si Dlo tê~ qualquer re1açIo com qualquer rea- Q dtscurso da ideologia t~ eempre em toda a parte toda a apareneia
lidade, mas apenas com os valores pbtitivos ou negativos atribuídos desde da razão. O DOS8O ~rio diIc:uno cultural, herdado de Aristóteles, baseia
o início aos próprios termos. Tal comi? o mito, este discurso tem por fun- tambéJQek,em ~ ~, de uma pretensa natureza eterna, uma
çllo legitimar a ordem do mundo e a prdem social. Assim, num todo per- re1açIo aoc:ialin8titUrda. Deste ponto de vista, é interessante considerar o
feito, q,,~ une o mito, a classificação 41>& vegetais e a r;1açI~ ideológica dos discurso científico e médico do s6culo XIX, tal como ele se exprime por
sexos, Detienne [1977] explica (a ParW das lendas nutológtcas da concep- exemplo nos escritos de Julien Virey [ci. ICnibiehler 1976]. Através de evo-
çlo de Ares e de Juvenca' sua irmll; ~camente por Hera) por que razlo luções sucessivas, ele passa de uma caraeterizáçlo dos sexos de tiw binário
a alface~:legume- frio e h\lmido, é co~umida pelas mulheres: é excelente à justificaçlo da dominaçlo de. um sexo sobre o outro, a coberto da argu-
para favprecer a menstruaçio e o boDl;defluxo de sangue, mas o seu corol'· mentaçlo científica mais moderna, objectiva, racional, baseada na observa.
rio é a ftustraçio do prazer. a por esta ~ que os ho~ nunca a comem~ çlo de um dado biológico.' No entanto, nada mais nos é dado para além
com medo da impotência e de serem· pnvados do deselo e do prazer (f01 da reconstituiçlo do discurso de Aristóteles, ou dos esquimós Intuit, ou do
a alface ~ue tornou Adónis impotente), Porque o prazer sexual pertence por dos Baruya da Nova Guiné [Godelier 1976]. Para Virey, o casal ideal é um
direito aos homens, devendo as mulheres contentar-se em conceber e «macho moreno, peludo, HCO, qrunu e impetuoso (que) acha o outro sexo
preparar-se para tal através do cons~o dos alimentos adequados. delicado, hrlmido, liso e branco, tímido e pudico •. :aa energia do esperma
O pensamento grego condicionou a hossa cultura ocidental, como se verá. que confere a segurança e a coragem às mulheres casadas: cé certo que o
Mas como explicar, a Dlo ser por copstantes próprias do trabalho simbó· esperma masculino impregna o organismo da mulher e que ele lhe aviva
lico, com base no mesmo material, Í8Jo é, na relaçio social entre os sexos, todas a funçoes e as aquece». A mulher possui uma sensibilidade «requin.
que esta mesma lógica dos contrários, das oposições binárias com valores tada» devida aos seus tegw,nentos elásticos e finos e à sua ramificaçlo, mais '
positivo e negativo, se encontre nas sociedades onde a influência do pensa- intensa do que no homem, dos nervos e dos vasos sanguíneos sob a pele.
mento grego Dlo se fez de modo algum sentir? Esta sensibilidade requintada dá-lhe uma aptidão particular para o prazer,
a o caso do pensamento taoísta oQde o yin e o yang são dois princípios uma inflamaçIo fdcil das paixões e, portanto, um tendência grande Para o
consti~tivos do universo, euja existêllcia harmoniosa está baseada na unilo impudor, a depravaçio, mas também a impossibilidade de se concentrar e
cllll'lUDCflte
percebida dos contrários. Yin é o feminino, a terra, o frio, a som- de reflec:tir, aetos que 810 por si sós eminentemente e naturalmente mas-
bra, o Norte, a chuva, o inferior; yang é o masculino, o céu, o calor, a luz culinos. Esta mesma sensibilidade, que atribui por natureza à mulher o cui.

l'
do Sol, o Sul, a impetuosidade, o su~rior. Entre os Inuit do Arctico Cen- , dado da crianças, dos doentes, dos velhos, gera também sentimentos peri_
traI [Saladin d'Anglure 1978], onde Lua é do ~ masculino e onde o Sol I gosos e essa é a razlo pela qual o homem tem a obrlgaçlo de a controlar
de perto. Diz Virey em De l'éducatWn (1802) que, se a mulher é fraca por
constituição, a natureza quis portanto torná-Ia submissa e dependente na uniIo
dos
o calor,
termos
o cozido
em presença,
e a cultura
o frito,
do olado
cru da
e amulher,
naturezaoes~o
nuto do
dalad~
ongem
do hOflem,
Dlo faz sexual; ela nasceu portanto para a doçura, a ternura e até para a paciência,
das mulheres nada mais para além de «homens rachados»: foi de um homem a docilidade; deve portanto suportar sem queixume o jugo da dominaçio para
éque
suanasceu
irmã, aonde, ao contrário
primeira mulher, dose a exemplos gregos e chineses
mulher procriadora é apenaspara
umalguns
saco, t manter a concórdia na família através da submissão.
um recipiente que abriga temporariamente uma vida humana gerada pelo Contrariamente ao que pensa Yvonne Knibiehler, nlo se trata de um
homem. Sempre confmada aos espaço doméstico, ela só pode sair da ordem ponto de vista individual «ingenuamente- falocrata influenciado por estereó-
masculina onde se encontra através de uma evasão no sentido real da pala- tipos da época, mas sim de uma exposição constiuída, sob a forma douta,
vra que a conduz à morte por esgotamento. com arquétipos universais. Este texto justifica, de maneira pensada, os juí-
Muitos outros exemplos, africanos, indonésios, americanos, ele., se pode- zos de valor populares do tipo daqueles que foram enumerados no início
riam enumerar [cf. Héritier 1978; Ingham 1970]. Em todos os casos, con- deste artigo. Ele esd no prolongamento do pensamento de Aristóteles, que
juntos de reduçocs simbólicas conferem sentido às práticas sociais. Natural- elaborava ele próprio racionalmente arquétipos muito anteriores, e prefi-
21 MASCUUNOIPIMININO
20· (
. ~...
p. . ..
gora O diacuÍ10 dos m6dicos alienistas e higienistas do ~ XIX,e&pe- Existe, DO entanto, um tipo particular de mulheres que Dlo se compocwn
cialmente no que respeita à histeria feminina, e em particuJar o disc:urao com a reserva e a modátia do seu sexo, maa com qreasividade, arro"neia
de Freud sobre a inveja do pénis (P",imeitl): a mulher DIo tem esperma e aud4cia. NIo t~ contenslo nas palavras nem nos aetos (algumas urinam
nem capacidade natural para o produzir. publicamente como homens, cantam cantos de homens, intervem nas con-
O discurso simbólico legitima sempre, como vimos, o poder muc:u1ino, versas masculinas). Este comportamento existe pari panu com um domínio
quer seja em virtude das viol!nclas iniciais que as mulheres teDham feito perfeito das tarefas tanto masculinas como femininas que elas executam.
sofrer os homens e, por conseq\lêDda, de uma m4 utilizaçlo do poder quaDdo Fazem tudo mais depressa e melhor do que as outras. Orientam os seus
elas o detinham nas suas mIos (mito ona da Terra do Fogo), quer seja em próprios assuntos sem 'o apoio dos homens e por vezes at~ nem deixam que
.virtude da impossibilidade cnaturaP, bio16gica, .na qual se encontram, de o marido empreenda seja o que for sem o seu consentimento. Pensa-se que
aceder ao grau superior, o do homem. Em todos os casos, o homem 6 a sejam activas sexualmente e Dlo convencionais no amor, mas elas próprias
medida de todas as coisas: ele cria a ordem social. Os Baruya da Nem ~, apiram a uma maiot virtude do que as outras mulheres. NIo temem, em
sesundo Godelier, exprimem direc:tamente este mesmo conceito: as mu1he- . caso de adult&io, ser arrastadas na praça pl1bliea porque as acusam de estar
res representam a desordem; sIo certamente nWs criativas do que os homens, prontas a defender-se através de feitiçaria. Não temem tamh6m. as conse-
maa de forma trapalhona, deaordenada, impetuosa, irret1ecIida. Deste modo, quencias místicas dos seus aetos. Finalmente, têm direito, tal como os
no princípio dos tempos, foram elas que inventaram as tlautas e o arco que homens, a organizar danças do Sol e a participar nas ordálias. Elas tem a
os homens depois roubaram e que do o almbolo do poder masculino. Mas t1ÍOI'Ç8II.
elas tinham montado o arco ao contrúio e matavam às cegas, de maneira O que ~ que entlo é preciso para se ser reconhecida como mulher com
andrquica, l sua volta. Os homens, depois de o terem roubado, montaram coraçlo de homem entre os PieganiOscar Lewis indica que é pRclso a com-
o arco correctamente: desde entlo, o arco mata como deve ser. Onde as binIçIo de duas características: ~ pteeiso ser-se rica e ter uma pdsÍçAosocial
mulheres criativas trazem a desordem, o homem traz a ordem, a medida elevada; ~m dessa, ~ preciso ser tasada. Tambl!m ~ melhor ter mostrado
razoável das coisas. Assim falam o mito e os discursos· simbóliCoS. na idncia sinais precursores, ter ,lido uma filha preferida com um dote
Como explicar entlo o estatuto DIo particular, entre outros ttxemplos,
das matronas iroquesas? Iudith Brown [1970aJ declara que as fontes anti- tender
de cavalos.
comportar-se
Uma mulher
comopobre
uma mulher
senlespancada
de coraçAode
ou metida
homem.
a ri~o
Cerfas mulhe-
se pre-
gas Dlo permitem saber o modo de designaçlo das «matronas», dhefes das res SÓ se tomam tICOraçIode homb. depois de muitos casamentos e viu-
grandes casas. Mas, ela própria, seguindo as pisadas dê outros abtores, as vezes sucesaivasem que herdaram Jma parte dos bens dos ~ defuntos.
desiana segundo o termo de decanas de uma certa idade (,lderlj he4ds of Uma vez tomadas «coraçio de hotnem-, casam (esquema mascUlino) com
houuIwlds). Daí concluímos que se tratava provavelmente de mUlhefes de maridos mais novos do que elas (dtlco a vinte e seis anos, segundo as esta-
idade avançada, e, se o seu turno à frente da casa DIo se efectuavt automa- tfstic:as de Oscar Lewis) que elas dominam sob todos os pontQi de vista.
ticamente por simples sucessAo,tratar-se-ia de mulheres de idade ~ pode- O casamento ~, pois, uma necessidade absoluta para se ser «coraçlo de
1'0888 do que outras, em earácter, em força de Animo, em autoridade. Deve homem» e 6 dele que prov~m riqu~za e estatuto elevado. a, aliú~ lamentá-
pois postular-se que o termo «matronas., utilizado pelos antigos autores, vel que Dlo saibamos mais nada ~bre o sistema de pensamento dos Pie-
designa mulheres de idade, ou seja, para dizer as coisas de· uma outra gan, maa ~ muito possível que as liideiasaristotélicas do tipo da .que Virey
maneira, segundo a sua verdade fisiológica, mulheres que ultrapaasaram ou desenvolveu em D, Ia f,mm, (1823) (a mulher casada tem qualquer coisa
. atioairam a idade da menopausa.:
A menopausa DIo 6 um assunto sobre o qual se possam encontrar. mui- mais viril, ~ masculina, mais iegura, mais audaciosa do qut a tímida
tas info~ na literatura antropológica; assunto sobre o q" DIo se quando se casam,. como se a ene , do esperma imprimisse lI1jÜsrigidez
pel18l, assunto incómodo, assunto C1tnsurado, se Dlo mesmo tabl1~Fala-se ee secura li
delicada ~suas fi~raS)
... Vêem-se raE próximas
fossem muto muitodasgordas perdeta
suas. O homóm,gordura
a qua-
do avanço da idade, da· velhice, como estádio da vida, maa nIo.tlo limiar lidade do esperma do homem, fatIa mulher. a qualidade da mulher.
em que tudo se torna irreversfirel. No entanto, sobressai de mod~ ~ nos a necessário que uma condiçãO[~plementar seja preenchida para se ser
relatórios antropológicos, quando se trata de mulheres, que o estatuto indi- uma mulher «com coraçlo de ho~. Ela DIo faz explicitament~ parte das
vidual delas tem tendência para se modificar na velhice, isto é, quando che- condições enumeradas pelos info.dores, o que nfo nos deve. surpreen-
garam à menopausa ou, no caso de serem estéreis, nas situaçõeS em que der, pois se trata da condição ~ flUI non: é preciso ter uma idade avan-
as mulheres nIo doou já nIo do capazes de conceber. çada. Nas cento e nove mulheres tasadas da amostragem de Oscar Lewis,
Um artigo muito interessante de Oscar Lewis [1941J fala daquelhs a quem catorze do do tipo lCCOraçlO de hdlnem». Uma tem quarenta e cinco anos,
ostndios Piegan canadianos chamam as mulheres com «coraçio de homem». outra tem quarenta e nove, as outras têm entre cinquenta e dois e oitenta
Nesta sociedade, descrita como perfeitamente patriarcal, o comportamento anos. Uma 11nicatem trinta e dois anos. Oscar 1..ewis, por consequência,
feminino ideal é feito de submisslo, reserva, doçura, pudor e humildade. junta aos dois critérios anteriores o da maturidade. Mas a palavra é certa-
22
MASCULlNOIPEMINlNO 23 • ~UNOIPEMININO
Í'~~
mente demasiado fraca. Para a maior parte da amostragem, trata-se de estéril Dio é ou j4 Dio é propriamente uma mulher. De maneira positiva
mulheres fora do período de fecundidade, na menopausa. Sobre nenhuma ou negativa. Mulher falhada ou homem falhado, ~ estll mais próxima do
"

delas é feita alusão aos fllhos que tedo podido dar à luz, o que é lamentá- homem. Deste modo, nio é o sexo mas a fecundidade que estabelece a dife-
vel porque teria sido interessante saber se a mulher de trinta e dois anos, rença real entre o masculino e o feminino, e a dominaçio masculina, que I I

considerada como mulher com «coraçIQde homem», esteve ou Dio grllvida. cony~ agora tentar compreender, é fundamentalmente o controlo, a apro-
De qualquer maneira, Oscar Lewis declara ele próprio que o desacordo entre priaçlo da fecundidade da mulher, no momento em que esta é fecunda.
as informaçOessobre o canleter «co~q de homem» desta ou daquela mulher O ~, as componentes psicológicas, as aptidOes particulares que compOem
apenas diz respeito às mais jovens. " os qulfdros da masculinidade e da feminilidade conforme as sociedades e
Menopausa e esterilidade suscitam imaginários, atitudes e instituições que .-o supostas justificar adominaçlo de um sexo sobre o outro, é um
extremaFente contrastados segundo .,'sociedades, e todavia explicáveis con- produ~ da educaçio, da ideokJIia, portanto: .Nlo se nasce mulher, torna-
soante ltIPesma lógica simbólica. Se a'modelo iroqu& ou piegan Dio é raro
no que respeita às mulheres de idadq, outras sociedades, africanas em par- -SC» (SlJnooc
tido em que de Baproir). Deste
este~CIlDteock modo, nIo ou
oanaaImente, existe
seja,instinto
em quematernal no sen-
a maternidade
ticular, fazem da mulher depois da lJlenopausa uma mulher perigosa, que seria algo puramente biológico e que, implicitamente, determinada pela sua
acumw-calor, e sobre quem há o n.co de pesar a acusaçlo de feitiçaria, natu~, a mulher tivesse vocaçlo para cuidar das crianças e, para al~
especiabnente se ela for pobre e vi\lva~e por consequ~ia sem «força»para cUsto, para cuidar da casa. A maternidade é tanto um facto social como um
reagir e Se defender. Não é pois o c'pntrllrlo do exemplo piegan, mesmo facto biológico (o mesmo acontece com a paternidade) e Dio há nada no
facto biológico em si que explique por que razIo a mulher deve ser ineluta-
se uma
de plhadela
hom.:m- que, rllpida o pudessesefazer
inversamente, ri Qassupor,
acusações de àqualquer
porque mulher de «coraçAo
ordem por- velmente ligada às tarefas domésticas e a um estatuto de subordinaçio.
que tem a .força» para responder imfunemente mediante a feitiçaria, tem Se nos basearmos nas an41ises antropológicas, 6 evidente que DIo pode-
de ser pca e casada. .. mos ~erizar as mulheres como universalmente esmapdas e dominadas
Na D1!ÚOr
parte das populaçOesdi~ primitivas, a esterilidade - feminina, pelo desejo daquilo que lhes falta: o falo. Segundo a teoria freudiana, a cona-
ci~ncia desta aus~ncia é que cria a inferioridade feminina. De facto, a teo-
nhecich(.•.. é dado
entend~-$e, a dominação
que a absoluta.
esterilida~AWsnem sempre.
masculina DioAssim, entre os Nuer
é geralmente reco- ria freudiana a este respeito é em si mesma um produto da ideologia domi-
da Afrij:a Oriental, uma mulher q~o é reconhecida estéril, isto é, depois nante, e o desejo de falo é um efeito secund4rio, e nIo a causa, do tipo
de ter lÍ~docasada e de ter permanec1CWsem filhos durante um ';Crto n~ de sujeiçlo femininil que se pode encontrar na nossa sociedade. Inversamente,
de anoll (possivelmente até à menopausa?) regressa à sua fam11iade ongem um certo ndmero de prllticas sociais ou mesmo corporais revelam um desejo
onde é a partir desse momento considerada como um homem: «irmIo» dos do macho em se apropriar do que constitui a superioridade fundamental
seus i.rmIos, «tio» paterno dos fdhos dos seus irmãos. Ela vai poder consti- do outro sexo: a fecundidade, a capacidade de se reproduzir. :a o caso dos
tuir um rebanho, como um homem, com a parte que lhe cabe enquanto ritos e comportamentos de «choco», em que é o marido que mima as dores
tio, ou com o gado entregue como preço da noiva para as suas sobrinhas. de parto, ou entlo se mete na cama, descansa, recebe os parabéns, as visi-
Com este rebanho e com o fruto da sua própria actividade pessoal, ela vai
tas e as prendas, se queixa do seu cansaço, enquanto a esposa, desembara-
poder por sua vez pagar o preço de uma noiva por uma ou duas esposas. çada, se ocupa dos seus afazeres habitUais, sem que o seu estado suscite
n enquanto marido que entra nestas relações matrimoniais institucionais.
As suas esposas servem-na, trabalham para ela, honram-na, testemunham-
masculinas, entre 08 Wogeo melanésios, que en periodicamente no mar,
-lhe o respeito devido a um marido. Ela recruta um servo de uma outra
etnia, Dinka na maior parte dos casos, a quem pede, entre outros serviços, fazem incisOesno pénis e deixam escorrer o sangue água [Guidieri 1975].
umaA atençlo particular
apropriaçAo atravésà do
sua corpo
volta. está
Ou destinada
ainda~. falsas regras menstrusis
o insucesso: Dio pode
o serviço sexual da sua ou das suas esposas. Os filhos nascidos destl\ rela-
nunca haver seDio simulacro. Ela passanl, pois, pelo controlo: apropriaçlo
ções são seus, chamam-lhe pai e tratam-na como é costume tratar um pai-
-homem. O genitor só desempenha um papel subalterno, ligado talvez efec- das próprias mulheres e dos produtos da sua fecundidade, repartiçAo das
mulheres entre os homens. As mulheres são fecundas, inventivas, criam a
tivamente aos seres que gerou, mas sem passar de um servo, como tal tratado
vida, mas o homem traz a ordem, a regulamentação, a ordem política. Este
pela mulher-marido, mas também pelas esposas e pelos filhos. Serll recom-
controlo é tornado possível através da desvantagem que acompanha a fecun-
pensado pelos seus serviços com uma vaca, «preço da procriação», de cada
didade: a mulher grllvida ou que amamenta tem uma menor aptidão para
vez que se casar uma das fdhas que tiver gerado.
Quer seja absoluta ou relativa, isto é, devida à idade, à menopausa, a este- a mobilidade do que o homem. Aasim, foi possível' demonstrar que, entre
rilidade e o corpo social das instituições e comportamentos que ela suscita os Bosquúnanos, caçadores-recolectores nómadas, sem animais domésticos
podem sempre ser explicados segundo os esquemas das representações sim- que lhes possam fornecer leite, um homem percorre entre cinco mil a seis
bólicas atrlls analisadas. O que sobressai, em todo o caso, é que a mulher mil quil6metros por ano e uma mulher entre dois mil e quinhentos e três mil.
I' MASCUUNOIPBMININO 24
) 25
••~I"
...
MASCUUNOIPBMINJNO

o entrave 1 mobilidade 010 implica por isso uma inferioridade das apti- só conhece comof ama a mie durante anos e continuará a dirigir-ae-lhe
d4lel ltaicas (nem, a fomori, das aptidoea intelectuais), no entanto, deve ter quando já 010 mamar, e isso tanto mais cnaturalmeotClt quanto o confina-
acarretado um certo tipo de repartiçlo de tarefas, no interior das socieda- mento social do papel de ama, de guarda e de maoutençlo tiver existido.
dea pn!-históricas de homens selvagens, caçadores-recolectores, que depen- A mie pode ser elevada muito alto, considerada com muita reverencia, mas
diam unicamente da natureza (sabe-se que a agricultura e a criaçIo de gado isto 010 es~ em contradiçlo com a noçlo mesma de poder masculino.
do invenções relativamente recentes da história da humanidade). Para os A apropriaçlo e o controlo da fecundidade das mulheres, o coofinamento
homens, a caça aos animais de grande porte e a protecçlo dos desarmados das mulheres no papel de amas facilitado pela dependência allioentar da
contra os predadores de toda a ordem; ls mulheres, a vigilAnciadas crian- criança, em suma, esta espécie de ~uestro, foram acompanhadas pela cria-
ças de peito e a colheita dos recursos alimentares de mais fácil acesso que çlo de capacidades técnicas especiàlizadas, ou seja, pela utilizaçlb exclusiva
a caça grossa (010 é fácil caçar com um bebé agarrado ls costas): repartiçlo por parte do sexo masculino de certas técnicas que necessitam de uma apren-
que nasce de limitações objectivas, e 010 de predisposições psicológjcu de dizagem real ou &lsamente sofisticada, mas às quais a mulher nIo tem acesso
um· ou de outro sexo para as tarefas que desse modo lhes do distribuídas, sem que nada na constituiçlo feminina explique a razlo disso. Os homens
nem de uma imposiçlo física feita por um dos sexos ao outro. Repardçio criaram um campo reservado, tal como havia um campo reservado, inaces-
que 010 comporta em si mesma qualquer princípio de valorizaçlo. sível, das mulheres: o da reprodu~o biológica. Deste modo, para retomar
O controlo social da fecundidadc das mulheres e a divido do trabalho um exemplo dos povos caçadores-recolectores, entre os Ona da Terra do
entre os sexos do provavelmente os dois ~ da dcsigualdadc sexual. Por- Fogo, a caça com arco é apan4gi(>dos homens, que aprendem a fabricar
tanto, convém entender os mecanismos que fazem desta dcsigualdadcuma o arco, U flechas e eventualmente o veneno. Desde a mais tenra idade que
relaçlo valorizada de domínio/submisslo. . eles aprendem a atirar com o arco, e esta aprendizagem é-lhes, exclusiva-
mente reservada. Anne Chapman ,'demonstra que, sem aprendÍiagem idó-
O parentesco é a matriz geral das relaçOes sociais. O homem d um ser oca, as mulheres 010 podem, no sêntido físico da palavra, servir-lIe daquele
que vive em sociedade; a sociedade só existe dividida em gruPOSl que se objecto. O domínio reservado de aptidões técnicas altamente es~ializadas,
baseiam no parentesco, e ultrapassam esta divido original através da coo- corolirio de uma repartiçlo sexual'prim4ria do trabalho e ba~ em limi-
peraçlo. taçGes objectivas, tem como efeito 'Uma nova limitaçlo das mulhetres a tare-
A instituiçlo prim4ria que d4 origem à solidariedade entre os grupos é fas que também requerem um conhecimento e uma capacidade técnica (nlo
o casamento. Um grupo que só contasse com as suas próprias forças inter- próprias de um sexo: os homens também podem efectuar as colheitas em
nas para se reproduzir biologicamente, que praticasse o incesto, e apenas tempo de pemtria), mas que nuo!:a f&rlo parte do domínio reservado aos
o incesto, estaria condenado à destruiçlo, indiscutivelmente. A troca das homens. O importante do é que· de tempos a tempos a1gumall mulheres
mulheres entre os grupos é a troca da vida, uma vez que as mulhcres for- consigam chegar ao domínio reserVado, é a própria razlo de ser,da existên-
necem os filhos e o seu poder de fecundidade a outrem que 010 aos seus cia do domínio reservado que est4 em causa. .
próximos. O nl1cleo fundamental da dominaçlo masculina, articulada com A isto vem juotar-se o trabalho 'intelectUal,a criação ideológiCa,quevimos
as restl'içOesecoDÓmicasda divido das tarefas, es~ certameote aí: na renl1n- em funcionamento nos simbolismo. expostos atrás: atribui-se wtl !valor desi-
cia ml1tua dos homens a beneficiar da fecuodidade da suas filhas e·das suas gual la tarefas desempenhadas. /I. ;parte das mulheres, no que respeita à
irmIs, das mulheres do seu grupo, em benefício de grupos estraogeir!Js. A lei colheita, atinge por vezes mais d,70 por cento dos recursoslÜimentares
da exogamia, na qual se baseiam todas as sociedades, deve ser ehtendida
como lei de troca das mulheres e do seu poder de fecuodidade entre,bpmens. docia:'
do grupos Da sociedades
o verdadeiro prestígio
de caçad~Jjes-recolectores,
es~ :IJ,gado1 funçlo do
mascaçador.
isso DIq•.
~!s-nos
~ impor-
con-
O que é no~ve1 é o facto de haver sempre, através de regras d' ~ fron~ o I1ltimo enigma. Ô. que é valorizado pelo hometn, do lado
e de aliança particulares, apropriaçlotinicial por parte dos homens ao poder do homem, é Certamente o facto 4e ele poder verter o seu saDg\le, arriscar
especttlco de reproduçlo das mulheres do seu grupo, bem como: das que a sua vida, tirar a vida dos outrost ·através da decido do seu livre-arbítrio;
lhes do dadas em troca das suas. :a só neste ponto que a viol~, a força a mulher «vê» correr o seu saoguee dá a vida sem necessariamente o que-
podem ser evocados como explicaçlo I1ltima. . rer ou poder impedi-Io. Nisto ~de talvez o motor fundamental de todo
A apropriaçlo do poder de fecuodidade das mulheres, vital plU1la cons- o trabalho simbólico exercido sobre a relação entre os sexos. [F. H.).
tituiçlo e a sobrevivência de qualquer sociedade, mediante a troca das·mulhe-
res, é acompanhada pelo coofmameoto das mulheres neste papel. Teremos
.a mie e a ama de leite. :a tanto mais fácil quanto a criança é amamentada
durante longos meses. Esta situaçio só termina, nas sociedades que 010 BachoCcn, J.
conhecem o aleitamento artificial nem as modernas técnicas de alimentaçlo 1861 Dtu Mllltm'lcht. EiM UIltmllt1nml ilNr dil GyMiMArcuie tÚr alun WI1, IIIIC" ih"r
dos bebés, por volta dos doia anoS e meio ou mesmo dos tres anos. A criança ~_ rmd rw:"tlie1mt NIIlIIr, KniI UDd Hoft"mann, Stuttprt.
MASCUUNOIFEMININO
26

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oBthnohiatory.
,
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XVII, 3-4, pp. 1Sl-67.

Chal'9~ ~ Powcr ÍII o HIUIling SocWty. The Scl1c'rri1711


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L'H 01IllDe., XV ". 2 pp 103·19 • o estudo do parentesc~ é O domínio porexce1ência da antropologia.
He!ritier, !-,~,,,m_.ali ,1IJdCyAJ_ O temor reverencial que isso incute deriva um pouco paradoxalmente da
1978 F. Flctmdill" . -'__ " Cnu",,,
ntrilitt. La tradIIclÍOll d, cc' no/lOlUauno L_A "'"":"5"'- ••
ICimlifiqIMI, in E. Sullerot (org.), Le Foit {tmittin, Fayard, Pans, pp. 387-96.
ideia, comum aos Dio-especialistas, de que não é necessário ser um técnico
para -compreender e até para praticar o que releva das ciências sociais. Para
In8= JOn Muiam Folk MedicÍIII, in oAmerican Anthropologiab, LXXII, 1, pp. 76-87.
além disto, como já acontecia com 'família' e 'cRl18mento', o termo 'paron-
Kaberry, Ph. M.
1939 Aborifirral WOIII/JII, Sacred and Pro{_, Roudedge, London. tesco' tem uma aparência tão familiar e benévola que faz al10rnr em quem
Knibiehler, Y. ., m . oAnnalea., XXXI , 't.

o escuta ou lê experiências tão íntimas e naturais que ninguém julga igno-
1976 ta na"',., {tmÍIIÍIII /JII umps dII Codc eífIil,
rar do que se trata nem sequer nutrir a suspeita de que as suas experiên-
1724 J.-F.
Lafitau, Mcnrs de, ,_,u amkiqllaÍIIs, compariu ou _" . ump"
de, prtIIIII" Sa••_IR
•••••••• cias familiares e aparentemente inteligíveis Dlo sejam as mesmas para todos
l'afDe!, Paris. os povos do mundo - à excepção de certOs costumes exóticos conhecidos
Lewis, O.
1941 Ma~,alf,d _11 /J1IIOIIf . «A.mencan
111,North PiIgaII, ID . Anth ropo oglSb, XLIII , I' e invejados, como a poliginial A literatura antropológica sobre o parentesco
destrói cruelmente estas ilusões.
2, pp. 173·87. .
De. facto, estas (tuas ideias do radicalmente falsas. Entrar no domínio
Saladin d' Anglure, B. . 1IIIUCII1'
1978 . L 'h_ (tmpl), I, {tI, (imiq) " '" /IImílrf (q/JII).. GIl " cm:" dll poIIfIOIr. 11I do parentesco significa entrar numa esfera de estranheza: um velho chama
cha lu llIuit de l'Arcliqll, cilJl/r/JI, in oAnthropolOSlca., n. S., XX, 1-2, pp. 101-44.
a uma rapariga «tnAo; um homem que goza da consideração geral pode casar-
1824 J. AE.Narratiw
Scaver, o{ Ih, Li{, 0/ M" MO'Y,JIIfIÚDII, . eanan •••••••
Beamis, •.••:_-..
•• N Y -se com a ftlha do irmão da sua mie, mas é considerado o mais miserável
Whyte,
dos seres, expulso, talvez espancado, ou condenado à morte, se tiver rela-
1978 M.Crou-eultural
K. ., probhm,
,1IId~, o{ womm and lhe mah buu vlOr Seienc:e
_1>_1._'
m ••••••••
ções suspeitas com a fIlha do irmlio do seu pai, ou até com a neta do irmão
Research», XIII, 1, pp. 6S-80.
do seu avô paterno; uma mulher brinca livremente com o irmlio mais novo
do seu marido, injuriando-o com termos obscenos, mas baixa humildemente
os olhos perante o irmão mais velho, a quem serve de joelhos e a quem.
o A dominaçlo do 1wmemsobre a mW1Icr(eC. IIl'fIOIllnhor) m&;nifeata-se~m tal evidbIc:ia .na nem sequer dirige a palavra ...
,ociedade ocidental DOplano do simbólico (eC. ,€IIIbolo), do poUueo (eC. polflica) e do econóDUCO
(eC. «OIIOIIIia), que'parece um reaultado de uma inferioridade ~jectiva e natural ~cf. ~lIIs4o/intc-
Tudo isto não significa, no entanto, entrar no reino de um total arbí-
INf'O, na",,.,.a) da mulher relativamente ao ~omem. Toda!ta, embora a aMlise hllt6=
hislma) e antropo16gica (cf. anthropos) de SOCIedadeaaetu8IS e passadas,. nIo ~ . trio. Os conjuntos
funcionam de mododiferentes
equilibradodo(quando
nosso, ela~s por outras
estas sodêdades não sãosociedades,
perturba.
nada que altere easa vislo, tnta-lIe, na realidade, de um reaultado de viIlles ~~ (cf.
ideologia) do problema em queatlo. De Cacto, a inveatipçlo de uma «verdade onainal. (cf. ~~-
turalculturaI e origens) eCecruadaem sociedades ditas primitivas (cC.~rimitifIII,~CIfJI-
I das pela introdução das religiões reveladas e pela extensão selvagem da civi.
lização ocidental) e encontram intelectualmente justificação aos olhos dos
f
IWdo' caça/colheita poIlorltia), se por um lado manifeata como condiçlo de aistencia da sociedade seus próprios membros através da própria harmoIÚada sua adequação a todos
hu~a e da ~açlo da eapc!cie, o tabu do inculo e a otroea de mulheres» (cf. lfIdoga-
mial'XDf/Jlllia, {amQia, ca,a_lD, pal'lnluco), por outro, faz en~der esta t~ como
tado de uma spropriaçlo (cf. propriMl4dc) do poder (cf. podcrIlIIIIOI'idadc) ~ fecundidade da
0= os domínios da actividade social, económica, política, natural e simbólica.
Há já muito tempo, desde o livro de Morgan [1871] sobre sistemas de con-
por pane do homem (eC. hDlllllltlmldh,r)j lato tornou-se posslvd ~evldo • me~r diaponibUi- sanguinidade e afmidade da fam11iahumana, que os costumes de parentesco
dade da mulher na descoberta e produçio dos meios de subslateocl& (cC. domuncaç4D, rmmos, diferentes dos nossos Dio do considerados com um interesse folclorístico como
,xced,",,) devido ao seu empenho, bastante maior do que o do homem, DOproceaao reprodu-
tivo (cC.,'para aipos aspectos partlcularea, hillcria), pelo qu~ menos como produt~ ,e ~, costumes «selvagensllou «bárbarosll destituídos de sentido, mas que se pro-
com lodu as coDaequêoeias que daqui tenham podido advlr, ate! no plano das 1/I$/ItII1f1lu. curam compreender e e1ucidar segundo as suas leis de funcionamento.

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