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Bianca Freire-Medeiros

Professora PPGS/USP 


ALATAS, Syed Hussein (2006) “The Autonomous, the Universal and the Future of Sociology”.
Current Sociology, Vol 54(1): 7–23

CONTEXTUALIZAÇÃO

Nascido em Bogor (Indonésia colonial), Syed Hussein Alatas (1928-2007) foi um intelectual de
origem islâmica (ascendência árabe), pioneiro nas Ciências Sociais do Sudeste Asiático. Em
paralelo à sua inserção na academia internacional (especialmente África e Índia), Alatas exerceu
funções públicas na Malásia, país onde cresceu até partir rumo à Holanda para realizar seus
estudos na Universidade de Amsterdã. Ele foi também ganhador da prestigiosa bolsa de
pesquisa do Woodrow Wilson International Center (Washington DC, 1982–3).

Sua obra mais conhecida, The Myth of the Lazy Native (London: Frank Cass, 1977), discute a
imagem produzida pelos colonizadores sobre os nativos da Malásia, Filipinas e Java entre os
século 16 e 19. Partindo dos conceitos de ideologia e capitalismo colonial, o sociólogo foi um
dos primeiros a denunciar o imperialismo das mentes, tema a ser também explorado por Edward
Said e outros representantes do postcolonial studies. Ao longo de sua obra — que inclui
Intellectuals in Developing Societies (London: Frank Cass, 1977) e Corruption: Its Nature, Causes
and Functions (Aldershot: Gower, 1990), além de inúmeros artigos —, Hussein Alatas fez severas
criticas à pretensão de exclusividade da sociologia ocidental na produção de conceitos
universais. Isso não o impediu de tecer duras críticas aos intelectuais afro-asiáticos, tanto por
suas práticas de imitação acrítica dos modelos externos, quanto pelas tentativas de conduzir a
uma “islamização do conhecimento”.

À época de publicação do artigo, Hussein Alatas era professor do Institute of the Malay World and
Civilization, National University of Malaysia (onde foi vice-reitor entre 1988 a 1991). Antes, ele
havia trabalhado como professor e chefe do Departamento de Estudos da Malásia na National
University of Singapure.

(Ver Maia, J. M. & Caruso, G. “Uma trajetória intelectual periférica: Hussein Alatas e a sociologia
autônoma”, Perspectivas, v. 41, p. 53-77, jan./jun. 2012).

No artigo tem-se uma versão revista do keynote speech com que Hussein Alatas abriu o
seminário internacional Global Challenges and Local Responses: Trends and Developments in
Society and Sociology in Asia and Beyond, organizado pelo Departamento de Sociologia da
National University of Singapore em parceria com a ISA em março de 2004. Os demais artigos
que compõem o dossiê, organizado pelo sociólogo Syed Farid Alatas (filho de Syed Hussein
Alatas e professor da National University of Singapure), também problematizam a falta de
autonomia e de uma abordagem multicultural na sociologia.

Tradução livre do abstract:


Os conceitos universais da sociologia são aqueles que constituem o fundamento básico da
disciplina, encontrados em todas as sociedades humanas e válidos para todos os tempos.
Exemplos: sanção, classe, estratificação social, mobilidade social, grupo, cultura, valores,
religião, costume e outros. Esses conceitos são universalmente válidos no sentido geral e
abstrato, mas suas manifestações históricas e concretas são condicionadas por estruturas
temporais, espaciais e culturais. É nos estudos desses fenômenos históricos únicos que a
tradição autônoma tem suas raízes. O que falta no mundo não ocidental é uma tradição
autônoma de ciências sociais, gerada e desenvolvida por estudiosos locais, orientada pela
seleção de problemas que lhe são pertinentes a partir de um conceito de relevância
independente a ser aplicado na coleta e acúmulo de dados de pesquisa, assim como na atenção
comparativa a problemas externos ao país ou à região.

palavras-chave: tradição autônoma ✦ dados de pesquisa ✦ valores

RESUMO

Como o título antecipa, o artigo revolve em torno do par autônomo-universal, cuja relação de
antinomia e complementaridade atravessa a sociologia. Universal seria “tudo aquilo que é válido
para toda a sociedade humana”, enquanto autônomo refere-se “ao fenômeno social particular
válido apenas em uma área específica ou compartilhado entre certas sociedades”. Assim como
no caso de toda e qualquer ciência, à sociologia cabe produzir um arcabouço conceitual que
gere conhecimento universalmente válido. É necessário, contudo, que a aplicação desse
arcabouço conceitual na análise de casos empíricos particulares — a tradição autônoma — não
seja um exercício de simples emulação. Tampouco se deve confundir autonomia com
“indigenização”: se uma sociologia autônoma teria como fim produzir, a partir de experiências
empíricas específicas, conceitos a ser incorporados ao repertório teórico geral, uma sociologia
indigenizada, por negar a possibilidade de conhecimento universal, estaria condenada a um
nativismo ingênuo.

Hussein Alatas argumenta que, no contexto de derrocada da dominação colonial em seu sentido
estrito, teóricos e planejadores das ex-coloniais teriam assumido um “pensamento imitativo”,
limitado e excessivamente dependente “da contribuição intelectual ocidental nos vários campos
do conhecimento” (p.7). No caso específico da sociologia, essa constatação assume tom de
maior gravidade se pensarmos, conduzidos pelo autor, que foi com o muçulmano Ibn Khaldun
(1332, Tunísia-1406, Egito) que a sociologia, como ciência voltada ao estudo da sociedade
humana, emergiu pela primeira vez1 . Ainda que não discuta em detalhes a contribuição de Ibn
Khaldun, o autor o evoca para sustentar a ideia de que, exatamente como no caso da sociologia
que se consagrou no mundo ocidental, a sociologia que nasce no Oriente também se constituiu

1 Historiador, juiz e diplomata, Ibn Khaldun propunha uma “ciência da sociedade humana” de caráter não normativo,
baseada no estudo do que ele considerava elementos fundamentais da sociedade (as instituições econômicas, o
Estado, a solidariedade entre outros). Tais elementos estariam presentes em todos os tipos de sociedade, nômades ou
sedentárias, muçulmanas ou não. Ele propunha, como método privilegiado, a demonstração (burhan), já largamente
utilizado pelos filósofos muçulmanos. Ao ser empregado no estudo da história, tal método permitiria ao interessado no
estudo das sociedades humanas diferenciar o que teria caráter essencial (estrutural e de longa duração) do puramente
acidental nos fenômenos sob observação (ver Alatas, Farid. “Ibn Khaldun”. In Alatas, S. F.; Sinha, V. (orgs) Sociological
Theory Beyond the Canon. Palgrave Macmillan, 2017). Hussein Alatas sublinha que foi a tradição europeia de
pensamento social que reavivou o interesse por Ibn Khaldun como pioneiro na criação não só da sociologia, mas
também da historiografia.

com pretensões de universalidade. Daí sua proposta de inclusão de Ibn Khaldun entre os pais
fundadores da sociologia, “assim como a ciência política e algumas outras disciplinas voltaram a
Aristóteles” (15). Incluir Ibn Khaldun no panteão dos “clássicos” significa, para Hussein Alatas,
menos do que um acerto de contas, por assim dizer, entre Oriente e Ocidente em relação às
origens da sociologia, e mais a possibilidade de usufruir de reflexões significativas sobre
questões — “a corrupção, decadência e instabilidade de governos que, no exercício do poder,
são geralmente hostis à democracia e à justiça social” (p.15) — que nos concernem no tempo
presente.

Cabe notar a ressalva feita pelo autor sobre o emprego do termo “Ocidente” e seus correlatos:
“Estou usando ocidental e não ocidental não em um sentido pejorativo ou polarizado, mas em um
sentido puramente descritivo e nominativo” (p.10). Enquanto no Ocidente (i.e. na Europa
Ocidental e nos EUA) foi possível estabelecer de fato uma relação de complementaridade entre
as aspirações de universalidade de uma sociologia geral e os estudos autônomos de assuntos
específicos, no mundo não ocidental essa autonomia teria se perdido. Isso não quer dizer,
sublinha Alatas, que a objetividade e a alta qualidade sejam características intrínsecas à
sociologia produzida no Ocidente. Mas lhe parece incontestável que o pensamento sociológico,
institucionalizado nas universidades ocidentais, cumpre o papel de “ponto de referência
definitivo” para uma sociologia autônoma e universal.

Para o autor, sem uma relação de complementaridade entre universalidade e autonomia, há


pouca esperança de se construir um futuro promissor para a sociologia nos dois hemisférios. O
espraiamento de tradições autônomas provocaria efeitos positivos em pelo menos duas frentes:
por um lado, novos olhares e atenções conceituais poderiam se dirigir a temas fora do raio de
pensamento vigente; por outro, teríamos a ampliação do nível de influência da sociologia no
desenvolvimento humano em todo o planeta. Ao ocupar outras latitudes, a sociologia teria
melhores condições de derrubar “obstruções sectárias à unificação do pensamento sociológico”,
que incluiriam desde o “sectarismo filosófico” até “perspectivas rigidamente sustentadas” que
polarizam, por exemplo, abordagens micro e macro, qualitativa e quantitativa (p. 21).

Por fim, Hussein Alatas advoga em favor de uma expansão das fronteiras epistêmicas rumo a
uma “sociologia multicultural”, ao mesmo mais suscetível à incorporação de contribuições
teóricas e conceituais dos campos da história e da filosofia, e mais desconfiada do conhecimento
dos “tolos”. Se uma das marcas definidoras do “tolo” como tipo sociológico é possuir um
pensamento descritivo, incapaz de abstrair e analizar, a vitória de uma sociologia autônoma, que
colabore ativamente na construção de categorias conceituais universalmente válidas, depende de
sua derrocada.

Apreciação crítica
Ao escolher o artigo de Hussein Alatas como uma das leituras de abertura da nossa disciplina,
minha intenção foi nos provocar a refletir sobre a pertinência de apostarmos, em nossa formação
como cientistas sociais, em uma “sociologia autônoma”. Quando o autor nos diz que o problema
não reside na incorporação do legado teórico-conceitual do Ocidente, mas sim na imitação
acrítica, historicamente míope e descontextualizada — portanto “tola” — que se faz de qualquer
tradição de pensamento, produzida em qualquer lugar do mundo, como essa afirmativa ecoa em
nós? Para o nosso curso, cuja pretensão é justamente costurar diversas epistemologias, menos
ou mais consagradas, parece-me valiosa a ideia de que não se trata de deletar a contribuição
ofertada pela sociologia canônica, mas de construir o repertório necessário para nos
apropriarmos, de maneira crítica e significativa, de tudo que guarda potência de fazer avançar o
“conhecimento universal”, nos termos de Hussein Alatas.

Ao mesmo tempo em que representa uma tomada de posição crítica em relação ao cânone
ocidental, a proposta de Hussein Alatas não deixa de ser uma via de legitimação das tradições
europeias. Esticando essa linha crítica, caberia indagar qual o papel reservado por ele à
sociologia latino-americana, a princípio invisível na sua organização do mundo, constituído por
um ocidente europeu/norte-americano e um oriente afro-asiático. Podemos especular que nossa
condição periférica no contexto da geopolítica do conhecimento nos localiza, segundo o modelo
de Hussein Alatas, no mundo não ocidental, mas não deve passar sem estranhamento o fato de
que não há, entre seus interlocutores e referências citadas, nenhum autor ou autora latino-
americanos. Tal ausência é especialmente problemática levando-se em conta a centralidade da
experiência colonial em sua grade analítica. Ademais, se uma “sociologia autônoma” depende da
ruptura com uma perspectiva eurocêntrica, o reconhecimento do bias androcêntrico, totalmente
ignorado no artigo, não deveria ser menos relevante a esse projeto de autonomia.

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