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A GUERRA DO PACÍFICO
PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 68 · DEZEMBRO 2021
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Campanha válida até 6/01/2022 na versão impressa, salvo erro de digitação.
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DE UMA PUBLICAÇÃO
À ESCOLHA
A GUERRA DO PACÍFICO
PERIODICIDADE BIMESTRAL
N.º 68 · DEZEMBRO 2021
CONTINENTE – €5,00
Cronologia Império
do Sol Nascente 6
Guerra O Mikado
Expansionismo
A invasão da China 22
Díli O governador de Timor, Ferreira de Carvalho (à esquerda), recebe o comandante Pearl Harbor O 'Dia da Infâmia' 26
das tropas australianas cerca de três semanas após a rendição japonesa
Mapa O ataque 34
Portugueses envolvidos
A luta por Hong Kong 36
uando se completam 80 anos sobre a data em que as forças aeronavais Timor As duas invasões 50
Q
do Império do Japão desferiram, de surpresa, o seu famoso, fulminante
Prisioneiros Portugueses
e devastador ataque contra Pearl Harbor, a principal base da esquadra
nos campos nipónicos 56
dos Estados Unidos no Pacífico, a VISÃO História volta a debruçar-se
sobre a Segunda Guerra Mundial. Depois de termos dedicado números Diplomacia As manobras
à Batalha do Atlântico, à Frente Leste, aos primórdios do conflito e às de Salazar 60
vicissitudes vividas por Portugal entre 1939 e 1945, decidimos agora abordar o tema
fazendo incidir a tónica numa vertente algo esquecida, embora nos diga direta- Grandes batalhas
mente respeito: o pesadelo vivido nas colónias portuguesas de Macau e de Timor, Porta-aviões ao fundo! 64
apanhadas pela força centrípeta do furacão da guerra. Timor chegou mesmo a sofrer
Código samurai Os 'kamikaze' 70
a ocupação de um exército do Eixo, sendo o único território sob administração por-
tuguesa em que tal sucedeu. Mas o que nestas páginas se conta é a história de todo Aliados O êxito dos submarinos 72
o conflito conhecido na Ásia Oriental por Guerra do Pacífico e que, dotado embora
de individualidade própria, faz parte, em virtude dos tratados assinados pelo Japão EUA Japoneses enclausurados 74
com a Alemanha nazi e a Itália fascista, do todo que foi a Segunda Guerra Mundial.
Prostituição forçada
Contudo, acentue-se, é apenas do tantas vezes injustamente secundarizado teatro de
As escravas de conforto 76
operações oriental que aqui tratamos. Para tal, recuamos aos primórdios do Japão
como potência industrializada, no século XIX, contamos as primeiras guerras em Bombas atómicas
que o Império do Sol Nascente se envolveu na era moderna e fazemos o balanço do Furacão de fogo 80
grande conflito que pôs fim ao seu projeto militarista. Um conjunto de evocação tanto
mais oportuno quanto, atualmente, o centro estratégico e económico do mundo se Esquecidos na selva
deslocou do Atlântico para o Pacífico. Combateram 30 anos 82
Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação, assim como a escolha das imagens e a sua legendagem
Foto da capa: Pictures From History/AKG Images/Fotobanco
VISÃO H I S T Ó R I A 3
Ma r d e B e r i n g ALASCA
Forças japonesas Entre 1942 e 1945, muitos navios Impasse Diplomático Seattle
ocupam metade mercantes japoneses O fim das conversações Balões incendiários
transportando prisioneiros japoneses caem
de Sacalina (URSS),
de guerra e populações
entre os EUA e o Japão, EUA
as Curilas russas em novembro de 1941, sobre florestas (ESTADOS UNIDOS
e algumas das ilhas deslocadas são atacados conduzirá ao ataque do noroeste dos EUA
e afundados pelos Aliados, DA AMÉRICA)
Aleutas (EUA) nipónico a Pearl Harbour
que ignoram qual é a sua «carga»
Batalha
de Okinawa
Batalha de Midway
(4 a 7 de junho de 1942) Os EUA obtêm
Ataque a Pearl Harbor São Francisco
(1 de abril a 21 de a primeira grande vitória sobre o Japão (7 de dezembro de 1941)
junho de 1945) na maior batalha aeronaval de sempre O Japão ataca de surpresa a base Los Angeles
Os americanos aeronaval e inflige pesadas baixas
vencem a maior Submarinos
batalha anfíbia à Esquadra americana do Pacífico
MIDWAY japoneses
da história desferem alguns
ataques contra MÉXICO
Batalha de Iwo Jima a costa oeste dos EUA
(19 de fevereiro a 26 de março de 1945)
Os japoneses defendem encarniçadamente esta Honolulu
pequena ilha, que os americanos acabam por tomar PEARL
HARBOR Havai
(EUA) O C E A N O PAC Í F I C O
1854
1863 defesa com um país europeu: o 1931 1940
15-17 AGO Em resposta a Reino Unido. 18 SET A pretexto do 10 MAI Winston Churchill passa a
um incidente, no ano anterior, autofabricado «Incidente de chefiar o governo britânico.
em que cidadãos britânicos 8 FEV Com o ataque a Porto Artur Manchúria» (explosão numa linha
foram atacados, a Royal (hoje Lüshunkou, na Manchúria, férrea propriedade de japoneses), o 22 JUN A França rende-se à
Navy bombardeia a cidade China), começa a Guerra Russo- Japão invade esta região da China. Alemanha; posteriormente, o Reino
de Kagoshima. Neste ano e -Japonesa. Unido continuará a guerra sozinho.
no seguinte, forças inglesas, 1932
francesas, americanas e 1905 18 FEV O Japão proclama o 22 SET Tropas japonesas
holandesas envolvem-se em 5 SET Termina a Guerra Russo- estado-fantoche de Manchuko, na iniciam a ocupação da Indochina
combates contra o xogunato -Japonesa, com a – surpreendente Manchúria, colocando no trono o francesa (atuais Vietname, Laos e
Tokugawa, em Shomoneseki. para o mundo inteiro – vitória nipónica. último imperador chinês, derrubado Cambodja).
pela revolução republicana de
1867 1912 1911-12.
3 FEV Inaugura-se o reinado 30 JUL Sobe ao trono o imperador
do imperador Mutsuhito (ou Yoshihito (Thaisho). 5 JUL Em Portugal, Salazar
Meiji), durante o qual o Japão se toma posse como presidente do
modernizará. 1914 Conselho.
28 JUL
1868-1869 Começa, 1933
Trava-se a Guerra Boshin, entre na Europa, 30 JAN Adolf Hitler torna-se
forças do xogunato Tokugawa o grande chanceler da Alemanha (no
tardio e tropas favoráveis à conflito ano seguinte adotará o título de
restauração do poder imperial; que mais Führer). 27 SET O Japão assina, com a
vencem as segundas. O imperador tarde ficará Alemanha nazi e a Itália fascista,
muda a residência e a capital de conhecido o Pacto Tripartido, ou Pacto do
Quioto para Tóquio. por Primeira Eixo.
Guerra
1871 Mundial. 1941
27 JUN É adotado 17 OUT Toma posse um novo
o iene como 27 AGO-7 NOV Depois de ter governo japonês, favorável ao
moeda nacional declarado guerra à Alemanha, confronto direto com os EUA no
japonesa. o Japão, aliado do Reino Unido, Pacífico.
6 VISÃO H I S T Ó R I A
Durante um século, o Japão viveu uma aventura,
afundados por aviões bombardeiros 21 DEZ O Japão e a Tailândia 15 JAN Termina, após mais de
e torpedos japoneses ao tentarem assinam um tratado e combaterão 20 dias de combate, a batalha de
intercetar a força nipónica que se lado a lado, designadamente na Changsha, na China, que envolve
dirige para a Malásia; morrem 840 Birmânia centenas de milhares de soldados
tripulantes. e marca o primeiro grande desaire
japonês na guerra; segundo fontes
14 DEZ Os japoneses invadem a chinesas, perdem a vida pouco
possessão britânica da Birmânia mais de 29 mil chineses e 56 mil
(atual Myanmar). japoneses.
1942
mortos e destruindo ou danificando acumula a 25 DEZ No dia de Natal, os único, general Óscar Carmona, é
oito couraçados, três cruzadores, Presidência do Conselho com a britânicos que defendem a colónia reeleito Presidente da República.
três contratorpedeiros e 343 pasta dos Negócios Estrangeiros) de Hong Kong, no sul da China,
aviões; os porta-aviões da esquadra insurge-se contra a ocupação de entregam-se aos japoneses. 15 FEV Naquela que os ingleses
americana do Pacífico não são Timor pelos Aliados, violadora da É respeitada a neutralidade consideram a sua pior derrota de
atingidos por não se encontrarem neutralidade lusa. Em Londres, o do vizinho Macau, território sempre, Singapura, a «Gibraltar do
no porto na ocasião do ataque. No embaixador Armindo Monteiro administrado por Portugal Oriente», rende-se aos japoneses,
mesmo dia, os japoneses invadem manifesta discordância com desde o século XVI, mas quase que a atacam a partir de terra;
a Malásia e a Tailândia e atacam Salazar e alega que é tempo de três centenas de milhares de a cidade, dotada de um enorme
as Filipinas, Singapura, Hong Portugal alinhar com os Aliados; refugiados de Hong Kong acolhem- porto e armada de poderosos
Kong e Xangai. O Canadá declara Monteiro é personna grata dos -se ali; sem espaço nem condições canhões, era considerada
guerra ao Japão e logo depois britânicos, que chegam a encarar para os receber, a possessão inexpugnável a partir do mar.
fá-lo-ão os EUA, o Reino Unido e o a hipótese de fomentar um golpe portuguesa começa a viver os
restante do seu império e a China. militar em Portugal para depor seus dias mais difíceis, com
Por sua vez, a Alemanha, a Itália Salazar e colocá-lo a ele na chefia racionamento alimentar e fome; os
e a Hungria declararão guerra aos do Governo. refugiados apinham-se nas ruas,
EUA. O conflito adquire proporções dormindo ao relento e morrendo
mundiais. 20 DEZ Churchill e Roosevelt em grande número.
encontram-se em Washington,
8 DEZ Forças japonesas desen- numa conferência com o nome de 1942
cadeiam a invasão das Filipinas código de ARCADIA, e definem os 1 JAN A expressão
(defendidas pelos americanos rumos da guerra conjunta contra «Nações Unidas» é usada
comandados pelo general Douglas o Eixo, na qual já vêm colaborando pela primeira vez numa 19 FEV Após bombardeamentos,
MacArthur), desembarcando tropas não oficialmente. declaração contra o Eixo os japoneses desembarcam no
na ilha de Bataan. Seguir-se-ão subscrita por 26 países. Timor Português, que ocupam.
outros desembarques no golfo de Ao ter conhecimento do sucedido,
Lingayen e em Mindanau. A maioria 11 JAN No dia em que as suas em pleno oceano Índico, a força
das forças aliadas render-se-á ou tropas capturam Kuala Lumpur, que partira de Moçambique
será expulsa. capital da Federação Malaia, o altera o rumo e aporta à Índia
Japão declara guerra aos Países Portuguesa. Em Timor, forças
10 DEZ O couraçado Prince of Baixos e desencadeia a invasão das australianas recuam para as
Wales e o cruzador Repulse, Índias Orientais Holandesas, atual montanhas e alimentam uma
da Marinha Real Britânica, são Indonésia. guerrilha contra os nipónicos.
VISÃO H I S T Ó R I A 7
GUERRA DO PACÍFICO
1 2 3
O governador português continua 6 MAI Nas Filipinas, os americanos «Verdun do Pacífico», que durará
a viver no palácio e a ter as rendem-se aos japoneses; até fevereiro do ano seguinte
honras inerentes ao cargo, mas é MacArthur, expulso, promete e terminará com a vitória
destituído de qualquer poder. Nos regressar. Por esta altura, os americana, impeditiva do uso
meses imediatos, a população japoneses e os tailandeses pelos japoneses desta ilha do
suspeita de colaborar com a concluem a ocupação da Birmânia. arquipélago das Salomão como
guerrilha australiana e que escapa base para atacar as linhas de
à ação das «colunas negras» 4-7 JUN Trava-se a Batalha de abastecimento e as rotas de
assassinas é internada em campos Midway, o maior recontro aeronaval comunicação entre os EUA, a
de concentração, onde sofre de de sempre, cujo desfecho é uma Austrália e a Nova Zelândia; os
maus tratos e padece de fome. 14 ABR Uma força de 16 crucial vitória dos EUA sobre o prolongados combates envolvem
Os japoneses bombardeiam bombardeiros B-25 Japão, marcando o ponto de viragem 60 mil americanos e 32 mil
Darwin, mas nunca conseguirão americanos, comandada pelo no conflito; os japoneses perdem japoneses.
desembarcar na Austrália. tenente-coronel James Doolittle quatro porta-aviões (Kaga, Akagi,
(que também planeara a operação), Hiryu e Soryu), dois cruzadores e 1 NOV Em Portugal, a lista única
23 FEV-1 MAR Uma força naval levanta voo do porta-aviões Hornet 275 aviões, além de 4800 homens, da União Nacional é «eleita»
dos Aliados (americanos, ingleses, e bombardeia durante breves dos quais 200 são pilotos navais, para preencher os lugares da
australianos e holandeses) sofre instantes Tóquio e outras cidades Assembleia Nacional.
uma pesada derrota, face à japonesas, num raide sobretudo
marinha japonesa, na batalha do simbólico que faz levantar o moral 21 DEZ Tropas indianas do
mar de Java, travada ao largo das dos EUA e obriga os japoneses a Império Britânico lançam uma
1942
costas da atual Indonésia; contam- transferirem para o seu território na frustrada tentativa de invadir contraofensiva na Birmânia, mas
-se 2300 mortos entre os Aliados, metropolitano aviões e armas e ocupar o atol de Midway; a sua acabarão por ser travadas pelos
do nipónicos.
contra 36 dos que poderiam ser usados noutros capacidade de combate no mar soldados ocupantes japoneses.
teatros de operações; sem e no ar fica permanentemente
31 MAR O Governo combustível para regressar ao comprometida e veem-se 1943
de Salazar
Salaz protesta, Hornet, os aviões aterram na China despojados da capacidade de tomar 9 FEV As forças japonesas de
Londr contra
em Londres, e na URSS e têm sortes diversas. a iniciativa militar ao longo do resto Guadalcanal abandonam a ilha,
b
o bloqueio da guerra; os EUA ficam sem o consumando-se a vitória americana
e
económico 18 ABR O general americano porta-aviões Yorktown. No Japão, a ao fim de múltiplos combates
i
imposto a Douglas MacArthur assume o destruição da esquadra é ocultada terrestres, aéreos e navais. Por
Portugal comando da área do sudoeste do ao público e ao próprio exército, para esta altura, na Birmânia, as tropas
pelos Pacífico. evitar a desmoralização. especiais britânicas conhecidas por
Aliados. chindits, comandadas por Owen
29 ABR Os japoneses cortam 18 JUN Os EUA lançam o Projeto Wingate, lançam na retaguarda das
2 ABR Os japoneses a Estrada da Birmânia, uma Manhattan, destinado a produzir a forças de ocupação nipónicas ações
desembarcam na Nova Guiné rodovia estratégica que permitia bomba atómica. que, não sendo particularmente
administrada pela Austrália (atual o abastecimento por terra, a bem sucedidas, são aproveitadas
Papua). partir da Índia Britânica, da China 25 JUN Num discurso, Salazar pela propaganda.
não ocupada e das forças da critica os regimes liberais britânico
5 ABR A marinha nipónica lança resistência chinesa. e norte-americano e a sua aliança 2-4 MAR Os americanos
ataques a Ceilão (atual Sri Lanka), com a URSS na guerra. enfrentam e derrotam os
a grande ilha englobada na Índia 4-8 MAI Na batalha do mar de japoneses na Batalha do Mar de
Britânica. Coral, travada a sueste da Nova 7 AGO Começa a travar-se a Bismark.
Guiné, os Aliados obtêm pela batalha de Guadalcanal, a
9 ABR Cerca de 75 mil primeira vez algum sucesso 3 ABR Os japoneses atacam com
soldados americanos e filipinos contra os nipónicos, apesar de, êxito as tropas indianas do Império
rendem-se aos japoneses tecnicamente, o embate dever Britânico na Birmânia.
depois da derrota de Bataan e considerar-se como «empatado».
são conduzidos até campos de Diversos navios são afundados ou 18 ABR O avião em que segue o
prisioneiros numa dramática danificados, cerca de centena e meia almirante Yamamoto (arquiteto
«marcha da morte» em que de aviões de ambos os lados são do ataque a Pearl Harbor) é
perderão a vida cerca de 10 mil abatidos e morrem 966 japoneses e abatido pelos americanos, prévios
filipinos e 650 americanos. 656 americanos e australianos. conhecedores da sua rota.
8 VISÃO H I S T Ó R I A
1 Samurais, 1880
2 Propaganda japonesa
3 Propaganda
norte-americana
4 Porta-aviões japonês
Shokaku
5 Família Hirano mostra, no
campo de «realocação»
onde se encontra detida,
RUHWUDWRGHXPGRVõOKRV
que se alistou nas forças
4 5 armadas dos EUA
1956
1944 aguardarão o fim do conflito em revela a posse da bomba atómica, 1946
MAR Durante este mês, os águas territoriais; Registam-se mas o líder soviético Estaline não 3 MAI São abertas as sessões
chindits de Wingate lançam pela primeira vez os ataques se mostra impressionado. do Tribunal Militar Internacional
novas operações na Birmânia, suicidas dos aviões kamikaze. para o Extremo Oriente, mais
de apoio ao avanço das tropas conhecido por Julgamento de
chinesas comandadas pelo 1945 Tóquio.
general americano Joseph 16 JAN O Centro de Aviação
Stilwell, ajudante de campo de Naval de Maceu, onde está 1947
Chiang Kai-Chek; um importante depositado combustível destinado 3 MAI O Japão aprova a nova
objetivo dos Aliados é permitir que aos japoneses, é bombardeado Constituição, pacifista e definindo
a República da China continue a por uma esquadrilha de aviões as bases de um sistema político
ser reabastecida a partir da Índia, americanos; tropas portuguesas democrático.
através da Estrada da Birmânia. resistem e há feridos. 6 e 9 AGO Os americanos lançam
bombas atómicas sobre as 1948
17 ABR Os primeiros soldados 28 FEV Os americanos dão por cidades japonesas de Hiroxima 4 NOV Sete dos réus do
americanos desembarcam nas concluída a reconquista das e Nagasáqui, arrasando-as e Julgamento de Tóquio são
Filipinas, dando cumprimento à Filipinas, entre cuja população matando pelo menos 200 mil condenados à forca, 16 a prisão
promessa de MacArthur de que se regista mais de um milhão pessoas; os efeitos das radiações perpétua, um a 20 anos de prisão e
FOTO DO FATO KAMIKAZE: RAA/MUSEU DE ANGRA DO HEROÍSMO
regressaria; seguem-se longos e de mortos durante a ocupação far-se-ão sentir durante anos. outro a sete.
intensos combates. japonesa, muitos deles durante o
chamado Massacre de Manila. 15 AGO O imperador Hirohito 1951
23-26 OUT Nas águas das anuncia pela rádio a rendição 8 SET É assinado por 49 países,
Filipinas, os americanos e os 3 MAR Concluindo uma do Japão; é a primeira vez que em São Francisco, o Tratado de
australianos vencem os japoneses campanha que se arrasta no milhões de súbditos ouvem a voz Paz com o Japão.
na Batalha do Golfo de Leyte, o tempo, os Aliados (Reino Unido, do soberano.
maior recontro aeronaval da guerra Índia Britânica, EUA e China) 1952
e da história contemporânea; os expulsam os japoneses e os 28 AGO Começa a ocupação 28 ABR Entra em vigor o Tratado
Aliados fazem alinhar mais de 300 tailandeses da Birmânia; ao do Japão pelas tropas de Paz de São Francisco e termina
navios, incluindo 34 porta-aviões, lado destes últimos combate o (americanas, britânicas, a ocupação aliada do Japão.
12 couraçados, 24 cruzadores e Exército Nacional Indiano, pró- australianas e neozelandesas)
166 contratorpedeiros, para além -independência do subcontinente do general MacArthur, que 1956
de 1500 aviões; os japoneses indostânico relativamente ao detém o título de Comandante 12 DEZ O Japão é aceite como
mobilizam quatro porta-aviões, Reino Unido. Supremo das Forças Aliadas. membro da ONU.
VISÃO H I S T Ó R I A 9
O NASCIMENTO
DO JAPÃO MODERNO
Para entendermos as guerras em que o Japão se envolveu temos
de recuar à segunda metade do século XIX, quando o país optou pela ambiciosa tarefa
de se equiparar às potências mais avançadas do Ocidente e às suas tecnologias
por VPedro
10 ISÃO H ISTÓRIA
Caldeira Rodrigues
Um líder militar Satsuma
e os seus homens
(c. 1866-67)
Este clã desempenhou papel
importante durante a guerra
que opôs os conservadores
partidários do xogunato
aos inovadores, vindo
a deter cargos importantes
sob o imperador Meiji.
A foto é da autoria
do ítalo-inglês Felice Beato,
que à epoca passou
muito tempo no Japão
e fixou imagens
imperecíveis dessa época
GETTY IMAGES
VISÃO H I S T Ó R I A 11
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO
O
reinado do imperador Meiji xogunato), caracterizado pelos fracos po- Os novos líderes políticos vão deparar-se
(1868-1912) foi o período da his- deres atribuídos ao soberano. com formidáveis desafios. Tinham de abolir
tória japonesa mais profícuo em Em 1854, o bakufu assinará um tratado a velha ordem feudal Tokugawa e estabele-
mudanças através de uma deli- preliminar em que aceita relações diretas, cer um governo centralizado. E, para além
berada modernização. Seguiu-se mas não comerciais, com os Estados Unidos, da restauração do poder imperial, impor
isso à abertura do arquipélago ao mas quatro anos depois é concluído um tra- uma profunda reestruturação da socieda-
comércio mundial exigida pela dissuasora tado de amizade, comércio e navegação após de e instituições. O processo foi cauteloso,
esquadra do comodoro norte-americano árduas negociações. Garantias similares serão com a primeira preocupação centrada em
Matthew Perry, no verão de 1853, quando de seguida assinadas com os Países Baixos e impedir que a nação seguisse o destino de
fundeou na baía de Tóquio. outras potências europeias. outros países asiáticos já controladas pelas
Perry levava uma carta do presidente O Japão iniciava uma lenta mas controlada potências ocidentais, através do lema «Nação
Millard Fillmore dirigida ao imperador metamorfose. Com a «Revolução de 1863», o rica, exército forte».
japonês em que pedia o estabelecimen- país assistirá à restauração da autoridade do No início desta era de transformação, os
to de relações comerciais e diplomáticas, imperador e a um processo de modernização principais conselheiros eram membros da
apesar de ainda prevalecer no arquipélago (no sentido de ocidentalização) nos domínios antiga nobreza, mas depressa foram suplan-
o tradicional sistema feudal do bakufu (ou político, militar, económico, social e cultural. tados por um setor dos samurais de origem
Início da era Meiji, Criação do iéne. Serviço militar Promulgação Primeira Guerra Guerra Russo- Anexação
que põe termo Estabelecimento obrigatório. da Constituição Sino-Japonesa, -Japonesa, japonesa
à ascendência de prefeituras O Japão adota Meiji com triunfo com vitória da Coreia
samurai. que substituem o calendário nipónico nipónica
Restauração do os domínios ocidental
poder imperial feudais
12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
social média, com os «três grandes» a domi- Visitou também a Inglaterra, e no regresso
nar esta corrente: Okubo Toshimichi (que acabará por substituir o Conselho de Estado
será assassinado), Kido Tadayoshi e Saigo por um sistema de governo de tipo ocidental.
Takamori. Para além destes, diversos homens A Constituição de 1889 concede ao im-
experientes de Choshu e Satsuma, e alguns perador os direitos de soberania, mas que
aristocratas da corte imperial, compunham terão de ser exercidos de acordo com o texto
o círculo da nova elite no poder, com o jura- constitucional, a perspetiva defendida por
mento da Carta de Cinco Artigos a determinar Hirobumi, que em 1909 será assassinado na
que o conhecimento deveria ser transmitido China, por um nacionalista coreano. O rígido
para «revigorar os fundamentos do poder sistema de classes foi outro campo da ordem
imperial». feudal alterado.
A primeira prioridade foi a alteração da Posteriormente, as autoridades do Mei-
ordem política, com a eliminação dos domí- ji (no Japão designam-se os períodos pelo
nios feudais ainda existentes (han) e onde nome do imperador) decidem adotar um
os chefes de clã ainda detinham autoridade sistema legal de tipo ocidental baseado no
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administrativa. Os novos líderes convencem modelo francês. Nas décadas de 1880 e 1890
diversos chefes de clã a cederem voluntaria- são adotados um código penal, um código de
mente os seus domínios ao imperador, o que procedimento criminal, com código comer-
sucede em março de 1869. Em 1870 todos os cial e um código civil. Foi ainda estabelecido
270 domínios han estavam sob controlo do um sistema nacional de polícia na sequência
poder imperial e o governo decretará a sua da ampla reforma militar de 1873 que impôs o
abolição um ano depois, tornando-os em pro- recrutamento universal assente no modelo do
víncias (prefeituras), com os seus governos a exército prussiano, que acabava de derrotar a
serem designados pelo poder central. França na Guerra Franco-Prussiana.
A abolição dos han privou os samurais
dos seus recursos. Alguns juntam-se ao novo O início da industrialização
exército, tornam-se polícias, professores ou O Japão entra num período de reconstru-
funcionários, mas muitos outros são uma po- ção económica, com novos impostos para
tencial fonte de oposição à nova ordem. Saigo os proprietários agrícolas, desenvolvimento
Takamori (1828-1877), um antigo apoiante da capacidade industrial (de início têxteis e
da Restauração Meiji, irá liderar a rebelião produção alimentar), modernização do sis-
Satsuma de 1877, esmagada pelo exército. tema de transportes (caminhos-de-ferro) e
comunicações.
Regime constitucional Uma característica da política económica
Em 1881, na fase final da época das contesta- do governo foi o início da estreita aliança
ções, em particular com o declínio samurai, o entre o poder e empresários privados. Os
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VISÃO H I S T Ó R I A 13
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO
Prioridade à educação
A Restauração Meiji também dedicou parti-
cular atenção à educação. Em 1872 foi esta-
belecida a instrução primária obrigatória. Em
1880, a inicial abordagem pragmática e liberal
da educação começou a ser contestada pelos
defensores do nacionalismo cultural. Insistiam
estes na introdução de valores tradicionais e
da história nacional nos currículos, com ênfase
no xintoísmo e no confucionismo: lealdade
ao imperador, patriotismo, dever, devoção
familiar aos idosos, propriedade e obediência.
Em 1883 introduz-se um sistema estatal
de certificação dos conteúdos escolares e em
1903 o governo assume a publicação de todos
GEORGE RINHART/GETTY IMAGES
14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Contra a China
O Japão superpovoado e dependente de
matérias-primas, que ambicionava instalar-se
no continente asiático, aproveitou o pretexto de
tumultos na Coreia, vassala da China e situada
entre os dois países, para intervir e declarar
guerra em agosto de 1894. Com o arquipélago
já envolvido na era industrial, o poderoso
exército japonês ocupa Seul e de seguida Porto
Artur (hoje Lüshun, na China) enquanto a frota
chinesa será aniquilada em Weihaiwei (1895).
A China imperial da dinastia dos Qing é forçada
a assinar o Tratado de Shimonoseki (abril
de 1895), que consagra o fim desta Primeira
Guerra Sino-Japonesa e a total expulsão do
ORTI//GETTY IMAGES
Os partidos apoiaram o governo durante Os primeiros socialistas Entre os principais ativistas incluía-se
a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) mas Último primeiro-ministro da clique dos Kotoku Shusui (1871-1911), que durante a
não conseguiram chegar ao poder. Com a genro, o influente Ito Hirobumi acabou por sua permanência nos Estados Unidos tinha
oligarquia a aproveitar-se das divisões inter- resignar mas manterá a chefia do conselho mantido contactos com meios anarquistas. No
partidárias, os líderes dos partidos decidem consultivo do imperador (Sumitsu-in). Os regresso ao Japão, tornou-se líder informal
unir-se e em junho de 1898 anunciam o Par- seus sucessores, Kastura Taro (1847-1913) e desta corrente, onde se destacou a militante
tido Constitucional. Saionji Kimmochi (1849-1940), vão dirigir o Kanno Sugako (1881-1911), figura central da
Nesse ano, um líder partidário, Okuma gxecutivo alternadamente durante 12 anos, alegada conspiração para assassinar o im-
Shigenobu (1838-1922), ascende pela pri- num período em que o movimento socialista perador. Apesar de não estar diretamente
meira vez ao cargo de primeiro-ministro, começa a emergir, também dividido entre envolvido, Kokotu foi acusado de alta traição.
prenunciando o fim do governo Meiji. moderados e radicais. O Partido Social Demo- A conspiração, conhecida por Grande Trai-
Apesar de o seu governo ter durado apenas crata é anunciado em 1901, mas de imediato ção, implicou 32 detenções, com 12 execu-
quatro meses, os partidos vão tornar-se a dissolvido pelo governo. tados, incluindo Kotoku e Kanno. Este inci-
base da vida política interna, e um desafio dente afetou temporariamente o movimento
para os genro. socialista, com o reforço da repressão.
Hirobumi (1841-1909, ano em que foi as- O imperador Meiji morre em 1912, pondo
sassinado), definido como «moderado» e
Com a oligarquia termo a uma era que assistiu à transformação
fundador do partido Rikken Seiyukai, que se a aproveitar-se das de uma sociedade feudal fechada num Estado
torna a principal formação do governo, tinha «moderno», mas com a prevalência das tradi-
cooperado com Yamagata Aritomo (1838-
divisões, os líderes ções do antigo Japão. Os princípios verticais
-1922) na liderança do Executivo desde a partidários uniram-se de estatuto e hierarquia vão continuar a domi-
partida de Okubo, Kido e Saigo, os três líderes nar todas as relações – profissionais, pessoais,
da Restauração Meiji. Ambos se alternaram
e fundaram o Partido industriais, políticas – independentemente
no poder, até divergirem em definitivo. Constitucional do ambiente político que as envolve.
VISÃO H I S T Ó R I A 15
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO
Tropas japonesas
na península de
Liaodong, em 1904
As forças do Mikado
preparam-se para
cercar Porto Artur,
que estava nas mãos
dos russos
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três fases. Uma primeira zona foi, efetiva-
humilha o Czar
Na Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, pela primeira
lizaram a execução da segunda fase de eva-
cuação. O facto é que o almirante Alekseyev,
comandante da esquadra russa do Extremo
Oriente, foi nomeado vice-rei da região. Fo-
vez uma potência europeia foi derrotada em toda ram então enviados reforços para a zona e,
inclusivamente, violadas fronteiras, quando,
a linha por um dinâmico poder asiático emergente
a pretexto de explorar os recursos florestais,
por Luís Almeida Martins cossacos disfarçados de lenhadores penetra-
ram na Coreia, ao longo do rio Ialu.
A
s condições de paz que se se- Os japoneses não perdoaram aos russos a
guiram à guerra entre o Japão sua intervenção, e muito menos a sua insta- Ataque de surpresa
e a China de 1894-95 deixa- lação em Porto Artur, concretizada em 1898. O governo de Tóquio encetou negociações
ram a Rússia inquieta. É que E, a partir de 1901, começaram a encarar a que em nada resultaram, e no dia 5 de fe-
os nipónicos, obtido o domí- hipótese de uma guerra contra a gigantesca vereiro de 1904 acabou por cortar relações
nio sobre a Coreia, a Formosa potência euro-asiática. diplomáticas com o de São Petersburgo (en-
(Taiwan), a península de Liaodong e as ilhas O Japão obtivera da Rússia o reconhe- tão a capital russa). E no dia 8 à tardinha,
Pescadores, ascendiam ao estatuto de potên- cimento do seu ascendente económico na sem declaração de guerra, navios torpedeiros
cia regional. Perante isso, o governo do czar, Coreia, mas na Manchúria o predomínio era japoneses entraram nas águas de Porto Ar-
fazendo coro com a França e a Alemanha, russo. Tinha até sido construída uma linha tur e destruíram uma considerável parte da
exigiu a Tóquio o abandono da península de férrea de ligação ao Transiberiano, e a pro- esquadra russa.
Liaodong. Na extremidade desta situava-se víncia do decadente império chinês estava Os russos, que até então pensavam que o
o porto de Lüshun (Porto Artur), cobiçado ocupada por tropas do czar. Japão estava a fazer bluff, viram que, afinal,
por não gelar no inverno, o que era essencial Os japoneses tanto protestaram que, em era a sério. Mesmo assim, a sua convicção
para a Rússia, lançada na expansão para o abril de 1902, a Rússia comprometeu-se a era de que poderiam vencer a guerra com
Extremo Oriente. evacuar a Manchúria segundo um plano em facilidade. E a generalidade do mundo pen-
16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
sava o mesmo. Porém, a realidade era outra.
O russos possuíam apenas 80 mil soldados
no Extremo Oriente, contra 250 mil do Ja-
pão. É certo que a poderosa esquadra russa
podia fazer alinhar o número esmagador de
60 couraçados, mas, destes, apenas 28 se
encontravam no Extremo Oriente. Ora, o
surpreendente Japão possuía 48 e estavam
todos naquelas águas, o que fazia dele senhor
dos mares orientais – pelo menos enquanto a
esquadra russa do mar Báltico não conseguis-
se chegar ao distante teatro das operações.
Tirando proveito desta sua superioridade
naval e em efetivos humanos, os japoneses
cercaram Porto Artur, que tomaram em
dezembro de 1904, e penetraram no sul da
Manchúria. Aí, detiveram uma contraofensiva
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russa na batalha de Cha-Ho, que se prolongou
por três dias, de 9 a 12 de outubro. Uma outra
batalha ainda maior – a de Mukden – que se
arrastou por quinze dias, em março de 1905, Soldados japoneses na Manchúria Uma cozinha de campanha perto do rio Cha-Ho
permitiu-lhes expulsar os russos da Manchúria
meridional. Estes combates de novo tipo im- to espanhol e em declarar guerra à Rússia. decidiu arriscar a passagem pelo estreito da
pressionaram muito o mundo. Estava-se longe O quiproquó acabaria por se resolver graças Coreia, rumo a Vladivostoque. E no dia 27
das batalhas campais fulgurantes, travadas à mediação da França: a esquadra do czar desse mês, nas águas de Tsuxima, a frota japo-
num único dia, que tinham sido características pôde seguir viagem e aceitou a instalação de nesa do almirante Togo aniquilou a esquadra
da forma de fazer a guerra no passado. Pre- uma comissão de inquérito. russa, menos moderna e esgotada pela longa
nunciava-se já o pesadelo tático dos campos Nesta quase meia volta mundo, os navios viagem. Dos 37 navios que a compunham, 19
de trincheiras da Primeira Guerra Mundial. russos tiveram de se reabastecer de carvão foram afundados e cinco capturados.
Uma vez que a linha do Transiberiano, ain- por diversas vezes e, entre outros pontos de Os japoneses, que, por razões financei-
da inconcluída, não permitia o rápido envio escala, tocaram na Baía dos Tigres, na colónia ras, não desejavam prolongar a guerra na
de reforços terrestres, a única esperança da portuguesa de Angola. Em maio de 1905, Manchúria, solicitaram então a mediação
Rússia residia em conseguir reapossar-se do com escassez de combustível, Rojestvensky do presidente dos Estados Unidos, Theo-
domínio do mar e cortar as linhas de abas- dore Roosevelt. A Rússia, a braços com a
tecimento nipónicas. Assim, em outubro de revolução de 1905, prenúncio dos grandes
1904, a esquadra do Báltico, comandada pelo acontecimentos sociais de 1917, resignou-se,
almirante Rojestvensky, recebeu ordem para e um tratado foi assinado em 5 de setembro
rumar ao Extremo Oriente. Mas teria de con- de 1905 em Portsmouth, nos EUA.
tornar a África para evitar a passagem no canal Segundo os termos acordados, o Japão ob-
de Suez, controlado pelos britânicos, aliados tinha a metade sul da ilha Sakalina, o usufruto
dos japoneses embora neutrais no conflito. de Porto Artur, o controlo do caminho de
ferro Sul-Manchuriano e liberdade de ação
Choque de esquadras na Coreia, sobre a qual estabeleceu logo um
Um caricato incidente ficou a assinalar a
A esquadra russa protetorado e que anexou em 1910. Do lado
passagem da esquadra pelo mar do Norte. do Báltico deu quase da Rússia, a derrota destruiu o prestígio do re-
Na noite de 21 para 22 de outubro de 1904, gime czarista e enfraqueceu a imagem do seu
o comandante de um dos navios, que estava
a volta ao mundo para poderio militar, abrindo caminho à revolução
embriagado, julgou ver uma frota japone- chegar ao teatro que se anunciava no horizonte. Pela primeira
sa e deu ordem de bombardear… barcos de vez na História, uma potência europeia era
pesca ingleses. A frota aportou a Vigo e os
de operações, derrotada por um país não-europeu. O século
ingleses pensaram em bloqueá-la nesse por- no Extremo Oriente XX começava efetivamente.
VISÃO H I S T Ó R I A 17
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO
A emergência
dos militares
Após a I Guerra Mundial, o Japão prossegue
na senda do desenvolvimento e do reforço de uma
democracia mitigada, que termina abruptamente
com tentativas de golpistas e crimes políticos
por Pedro Caldeira Rodrigues
O
imperador Taisho (1879-1926), seus interesses no sul da Manchúria. Com
que sucedeu ao imperador Meiji apreensão por parte dos Estados Unidos, a
em 1912, manteve-se no trono China acabou por ceder.
do Japão até à sua morte, mas As relações EUA-Japão tinham sido rela-
devido a uma saúde débil vai tivamente estáveis no era Meiji. Washington
ceder em 1921 os deveres impe- apoiou os japoneses na guerra contra a Rús-
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riais ao filho Hirohito, que assume a regên- sia e aceitou o controlo da Coreia. Agora, o
cia. No governo, o príncipe-general Katsura principal contencioso residia na imigração
Taro e o aristocrata Saionji Kinmochi alter- nipónica para os EUA. Em 1900, eram 61 mil
navam-se como primeiros-ministros desde os japoneses instalados no Hawai e 24 mil
1901 até 1913. na Califórnia, números sempre a aumentar. das possessões alemãs na península chinesa
Os maiores problemas do país centravam- Este fator fomentou um fervoroso senti- de Shandung e em ilhas do Pacífico, mas
-se na área financeira, com as crescentes exi- mento antijaponês, em particular na Califór- não garantiu uma posição de paridade na
gências do Exército e da Marinha para um nia. A imprensa referia-se ao «perigo amare- emergente Sociedade das Nações (SdN). Após
aumento dos investimentos. Em 1914, Okuma lo» e associações propunham a exclusão dos estas partilhas, as relações do Japão com as
Shigenobu, da oligarquia Meiji, tornou-se imigrantes asiáticos. Em 1906 foi adotado principais potências permanecerão relativa-
primeiro-ministro, mas confrontou-se com o em São Francisco um plano para segregar mente tranquilas, apesar das inquietações
início da Grande Guerra. De imediato, o Ja- as crianças japonesas das escolas públicas, suscitadas pela presença militar nipónica na
pão colocou-se ao lado das potências aliadas. à semelhança do adotado para as de origem Sibéria após a Revolução Russa.
A Aliança Anglo-Japonesa, de 1902, justifica- chinesa. E até 1924 serão aprovadas novas leis Os responsáveis pela política externa, como
va esta posição, mas o verdadeiro motivo era estaduais e federais anti-imigrantes. Shidehara Kijuro, promovem uma política de
apoderar-se das possessões alemãs na China cooperação internacional. Em 1921-22 o Ja-
e em ilhas do Pacífico. Em 1915, Tóquio exige Tempos de cooperação pão participa na Conferência de Washington,
à China a transferência dos domínios alemães No rescaldo da Grande Guerra, a Conferência com a conclusão do Tratado das Quatro Po-
na Ásia para o Japão e o reconhecimento dos de Versalhes legitimou o controlo japonês tências do Pacífico (EUA, França, Reino Uni-
18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
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Paradas militares e navais Navios com
rodas nas ruas de Tóquio, no 25º aniversário
da vitória de Tsuxima alcançada sobre
os russos (em cima) e o imperador Hirohito
recebendo uma mensagem das mãos
do ministro da Guerra (à esquerda)
do e Japão) e o Tratado das Cinco Potências, nopólios industriais e financeiros Mitsui e nação e resistiu à implementação do sufrá-
um acordo naval que também inclui a Itália Mitsubishi. Em 1918, Yamagata Aritomo, gio universal, exclusivo para os homens. Pe-
e garante a manutenção do status quo nas da elite dos genro com acesso ao palácio rante uma crescente e reivindicativa massa
fortificações e bases navais no Pacífico. Nesta real, concede o cargo de primeiro-ministro operária, restringiu as ações dos sindicatos
conferência também foi concluído o Tratado a Hara Takashi, líder do Seiyukai. e perseguiu grupos de esquerda. Em 1921
das Nove Potências (as cinco anteriores e ain- O novo dirigente conservador aderiu à foi morto por um jovem revolucionário,
da China, Bélgica, Países Baixos e Portugal). política do «enriquecimento e reforço» da tornando-se o primeiro, mas não o último,
Os signatários comprometem-se a respeitar chefe de governo a ser assassinado.
«a soberania, independência e integridade A tarefa de designar o primeiro-ministro
territorial e administrava da China», para será atribuída a Saionji Kinmochi em 1922, na
além de assegurarem iguais oportunidades sequência da morte de Aritomo. Com estatuto
comerciais na China para todas as potências. de príncipe desde 1920, tornava-se o último
A política de cooperação internacional genro, e conselheiro chefe do imperador. De
prossegue até finais da década de 1920 e o 1924 a 1932, sete governos provenientes de
governo direitista do general Tanaka Giichi partidos maioritários na Dieta (o poder le-
assina o Pacto Kellog-Briand, que exclui o re- gislativo bicamarário) sucedem-se no poder.
curso à guerra, apesar da crescente repressão
a nível interno e na Coreia ocupada. ‘Pensamentos perigosos’
e radicalização
Os partidos do sistema Mas será o grande terramoto que atingiu a
Com o fim da era Meiji, os velhos oligarcas Um ativista coreano região de Kanto, a Grande Tóquio, no dia 1
deixaram de estar diretamente envolvidos de setembro de 1923 que servirá de pretexto
nos assuntos de Estado e os partidos polí-
lançou uma bomba para novas e perigosas derivas.
ticos tornaram-se parte integrante do siste- contra a carruagem Um rumor que atribuiu a responsabi-
ma, em particular o Seiyukai e o Kenseito, lidade dos incêndios e outros crimes aos
sucessores do Partido Liberal e do Partido
em que seguia Hirohito, residentes coreanos originou uma histeria
Progressivo e com estreitas ligações aos mo- em 9 de janeiro de 1932 coletiva, com centenas de coreanos mortos.
VISÃO H I S T Ó R I A 19
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO Greve dos têxteis
Operários e empregados
de uma fábrica de Tóquio
reúnem-se em frente
da sede do sindicato
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Praia de Yuigahama, 1930 Mulheres jovens escutam discos num gramofone
Nesta atmosfera, as autoridades detiveram incluindo greves, foi ainda bloqueado pelos estendeu-se às universidades, com a prisão
e executaram sumariamente socialistas e interesses empresariais, apesar da permissão de estudantes e a demissão de professores.
líderes sindicais, entre eles o destacado limitada de atividades sindicais.
militante anarquista Osugi Sakae, e a re- A designação do general Tanaka Giichi, Sedução ocidental
volucionária feminista Ito Noe. líder do Seiyukai, como primeiro-ministro, e industrialização
Na sequência desta repressão, o jovem significará o início do ultra-radicalismo em Os anos Taisho também foram assinalados por
Namba Taisuke, influenciado pelo sindica- detrimento da «democracia Taisho». Apesar uma viragem em direção ao «modernismo»
lismo e anarquismo, tentou assassinar, sem de ser chefe de um partido de governo que nas áreas urbanas. Registou-se forte interesse
sucesso, o regente imperial Hirohito. Foi se mantém formalmente no poder até 1932, pelos costumes e a cultura popular do Ocidente,
preso e executado. Este incidente reforçou as suas ideias coincidiam com as dos mili- que seduzem parte importante da juventude,
a vigilância contra os «pensamentos peri- tantes nacionalistas de extrema-direita em enquanto as modernas tecnologias transfor-
gosos» e o ministro da Justiça e futuro pri- ascensão. Torturas, espancamentos e mor- mam os centros urbanos. Proliferam livrarias,
meiro-ministro Hiranuma Kiichi fundou o tes na prisão atingem centenas de pessoas, jornais, iniciativas culturais, que acentuam o
ultraconservador Kokuhonsha (Sociedade incluindo membros de associações feminis- fosso entre os mundos urbano e rural, e surgem
do Fundamento Nacional), destinado a pro- tas, prática que se prolonga pela década de escritores como Yasunari Kawabata (1899-
mover o «espírito nacional». 1930. A purga dos «perigosos pensadores» -1972), Prémio Nobel da Literatura em 1968.
Em 1924, ano em que é banido o Partido
Comunista, as principais forças rivais que
garantiram maioria na Dieta vão cooperar Imperador Taisho
Im
com Kato Komei, líder do efémero parti- O 123º
1 soberano
do Kenseikai, no primeiro e efetivo governo do Japão reinou
entre 1912 e 1926
ent
partidário. A prática de designar um dos dois
maiores partidos para formar o executivo
manteve-se até 1932. Em 1925, Komei tinha
já estabelecido o sufrágio universal, mas só
para os homens com mais de 25 anos. Imperador Hirohito
to
Em paralelo, impôs-se a Lei da Preservação O 124º da lista
ta
da Paz dirigida contra os «pensamentos peri- se
tradicional sentou-se
no trono em 1926,6,
gosos» atribuídos a comunistas, anarquistas
te
mas já era regente
e outras forças revolucionárias. O plano do desde 192121
governo para proteger os direitos laborais,
20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Terramoto na Grande
Tóquio O sismo
de 1 de setembro de 1923
fez 100 mil mortos
e 500 mil feridos
e destruiu 700 mil casas
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declinar, mas ainda representava Terminava o período dos
51,5% do total em 1930. partidos governamentais.
O almirante Saiko Makoto,
A emergência da direita da direita radical e militaristas, apesar de o apontado como novo chefe do governo, ce-
militarista seu paradigma ser diverso dos movimentos derá à exigência dos militares para a retirada
Os dois anos do governo Tanaka Giichi similares que também se impunham em di- da SdN, em 1933, e o prosseguimento da
(1927-29) podem ser definidos como o fim versos países da Europa. ofensiva na China. Será substituído por outro
de uma democracia nascente e o início do A sacralidade do sistema imperial é almirante, Okada Keisuke. O novo primei-
percurso para o militarismo e a guerra. profundamente enfatizada. Para além de ro-ministro cede às exigências de expansão
Em paralelo, a Grande Depressão origi- diversos ideólogos «fascizantes» que se naval e desvincula-se dos tratados navais de
nava uma queda abrupta nas exportações insurgiam contra os privilégios das elites e Washington e Londres num período em que
japonesas: cerca de 50% entre 1929 e 1931. os zaibatsu (as grandes empresas), grupos se confrontam duas fações militares, o que
Para além da crise económica, o primei- de oficiais também se tinham organizado explica o sangrento e fracassado golpe de Es-
ro-ministro Hamaguchi Osachi também desde a década de 1920. O seu objetivo era tado ultranacionalista de fevereiro de 1936.
se confrontava com crescente pressão dos a instauração de um regime militar e o afas- A glorificação do sistema imperial estava
setores da direita radical, devido à sua po- tamento dos «políticos corruptos». em marcha. Em 1937, o Ministério da Edu-
lítica de cooperação internacional. Estas formações de civis e militares ul- cação divulgará os Fundamentos da Nossa
No início de 1930, as potências reúnem-se tranacionalistas coincidiam na necessida- Política Nacional, que considerava o im-
em Londres, para negociar novas reduções perador descendente de Amaterasu, deusa
dos navios de guerra, mas com a oposição dos xintoísta do Sol. A liberdade de expressão e
líderes da Armada nipónica e do Seiyukai. pensamento estava aniquilada.
Os responsáveis navais que apoiaram o acor-
O período 1927-29 No ano anterior, o governo do diplomata
do de Londres são apontados como alvos a marca o fim da Koki Hirota assinara com a Alemanha nazi
abater. A primeira vítima será Hamaguchi, o Pacto Anti-Comintern, ao qual se juntaria
gravemente ferido a tiro no final de 1930.
democracia nascente a Itália. Um prenúncio da Aliança do Eixo,
Demite-se e morre pouco depois. e o início do caminho que será firmada em setembro de 1940 com
O Japão entra então numa década em que a estes dois países pelo príncipe Fumimaro
evolução política interna e dos assuntos exter-
em direção ao Konoe, que a partir de 1938 tinha reforçado as
nos será determinada por ultranacionalistas militarismo e à guerra tendências ditatoriais do regime nipónico.
VISÃO H I S T Ó R I A 21
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO
Invasão
e resistência na China
A invasão japonesa da Manchúria, em 1931, deu início
à «Guerra dos Quinze Anos», como veio a ser conhecida
no Japão. O conflito devastou não só a China
como boa parte da Ásia e, no final, o próprio Japão
por Helena F. S. Lopes*
P
ara o imperialismo japonês na jacentes, incluindo o seu policiamento, mas
China, 18 de setembro de 1931 operava também uma série de setores como
foi um ponto de viragem deter- os das indústrias mineira e química, educa-
minante. Nesse dia, soldados do ção ou investigação científica. De veículo de
Kanto-gun (exército de Guan- «imperialismo informal», veio a tornar-se um
dong), a guarnição do exército pilar de uma ocupação colonial megalómana.
imperial japonês estacionada ao longo da
linha férrea da Manchúria do Sul, no nor- Entusiasmo expansionista
deste chinês, simularam um ataque chinês Num contexto de depressão económica, de
por forma a desencadear uma resposta re- alarme perante uma possível ameaça soviéti- GETTY IMAGES
pressiva. A operação, planeada pelo então ca e de medo face à ascensão dos nacionalistas
coronel Ishiwara Kanji e pelo futuro minis- de Chiang Kai-shek, que chegaram ao poder
tro da Guerra, general Itagaki Seishiro, foi na China em 1927, o incidente de setembro de
o pretexto para ocupar toda a Manchúria, 1931 depressa criou um momentum de fervor
região que engloba as províncias chinesas imperialista no Japão, alimentado por dife- Manchúria foi «sonhada» como a solução
de Jilin, Liaoning e Heilongjiang. Não fora rentes atores, estatais e não-governamentais. para vários problemas internos do Japão,
a primeira tentativa do Kanto-gun para Meios de comunicação, como a imprensa ou num cruzamento de interesses militares,
provocar um incidente do género. Em 1928, a rádio, indústrias privadas e grupos de civis, económicos, sociais e culturais.
tinham assassinado o «senhor da guerra» até com interesses contraditórios, confluíram Claro que a Manchúria não estava de modo
local, Zhang Zuolin, embora o atentado não num entusiasmo febril pelas possibilidades algum desabitada. Aliás, havia aqui um enor-
tivesse escalado para uma ocupação. da «expansão» para a China. A Manchúria foi me fluxo migratório interno. Entre as popula-
Região fronteiriça da Rússia, a Manchúria imaginada como um espaço «vazio» pronto ções locais, as respostas imediatas à ocupação
era um território entre impérios. Os inte- a ser ocupado e «civilizado» por japoneses, foram diversas, desde a resistência armada
resses czaristas na região haviam sido pra- fossem eles militares para garantir a à resignação. Na comunidade internacional,
ticamente desmantelados aquando da «segurança nacional», camponeses o governo chinês contestou vigorosamente
derrota na guerra russo-japonesa de pobres ou profissionais qualificados a ocupação. A questão foi discutida na So-
1904-1905. Um deles era uma linha em busca de emprego. Como obser- ciedade das Nações, onde a «crise da Man-
férrea que ficou sob controlo japonês, vou a historiadora Louise Young, a chúria» demonstrou o «fracasso» da SdN
gerida desde 1906 pela South Man- no prenúncio da Segunda Guerra Mundial.
churia Railway Company. A Comissão Lytton, em 1933, não reconheceu
A Mantetsu (abreviatura a ocupação japonesa como legítima. O Japão
do nome japonês, como Chiang Kai-shek saiu da SdN e ficou na Manchúria.
esta companhia públi- Os nacionalistas Ainda o Japão não se tinha retirado da SdN,
por ele liderados
co-privada era conheci- e já continuava o seu avanço na China. Em
chegaram ao poder
da) controlava não só o na China em 1927 janeiro de 1932, aviões japoneses bombardea-
transporte rodoviário ram civis em Xangai, numa resposta militar
como as povoações ad- a boicotes e outros protestos chineses. Meses
22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Prisioneiros
de guerra Dois
chineses cativos de
soldados japoneses
na Manchúria, em
1931, numa imagem
dos primeiros
tempos do longo
conflito que duraria
até 1945. Em
baixo: O protocolo
assinado em
15 de setembro
de 1932 entre o
Japão e o Estado-
-fantoche de
Manchukuo
depois, a ocupação do nordeste deu lugar a mais liberdade do que no Japão atéé
um estado «fantoche»: Manchukuo. Numa aos anos finais da guerra. A região o
época de crescente ativismo anticolonial, a conheceu também atrocidades, como o
Manchúria não se tornou colónia, mas um as horrendas experiências médicas em m
estado supostamente independente. Puyi, chineses e outros na Unidade 731, queue
o último imperador da China, da dinastia oficialmente se dedicava à prevenção ão
Qing, originária da Manchúria, foi elevado a de epidemias, mas na realidade testava
ava
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soberano, mas o território que «governava» armas biológicas em humanos.
servia os interesses japoneses. Assim, em 1931, uma operação dee al-
A economia de Manchukuo foi planea- guns militares agindo por conta própria – e, defendiam uma resposta mais musculada à
da para formar um bloco com o Japão, com inicialmente, sem o apoio entusiástico do ocupação. De início, a resistência não se fez
investimento na monocultura de soja e em governo japonês civil – depressa veio a ser pelas armas, porque Chiang sabia que a China
indústria pesada, com bastante trabalho for- tratada como fait accompli e o primeiro passo não estava ainda preparada para uma guerra
çado de chineses e coreanos. Obras públicas para uma vasta e dispendiosa ocupação de contra um inimigo mais poderoso.
e muitos negócios privados cimentaram a territórios chineses. Entre 1931 e 1937, forças No final de 1936, Zhang Xueliang – filho
presença japonesa. A imigração de colonos japonesas foram controlando uma extensão e sucessor de Zhang Zuolin – raptou Chiang
japoneses foi incentivada e 250 mil estabele- cada vez maior do norte da China. No Japão, para o convencer a criar uma nova Frente
ceram-se em Manchukuo, encorajados pela vozes críticas foram sendo silenciadas num Unida com os rivais comunistas. Convenci-
propaganda que os considerava superiores clima de crescente militarismo. do de que Estaline apoiaria a China, Chiang
aos restantes habitantes. Como outros es- concordou. Um reforço da capacidade militar
paços coloniais, Manchukuo tinha as suas Rumo ao conflito mundial chinesa (exército e força aérea) já estava em
contradições. Por exemplo, alguns intelec- Os nacionalistas chineses, por seu turno, marcha, tendo sido importantes as parcerias
tuais japoneses de esquerda encontraram ali enfrentaram duras críticas internas. Muitos com a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos
VISÃO H I S T Ó R I A 23
GUERRA DO PACÍFICO // JAPÃO
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território chinês nos anos 1920 e 1930.
Em julho de 1937, perante um novo in-
cidente, na Ponte Marco Polo, em Pequim,
Chiang decidiu finalmente que não suportaria Blindados invasores Forças japonesas entram em Huaiyin-Hsien, em março de 1939
mais avanços japoneses. Começou uma guerra
aberta, inicialmente não declarada. sistema de escravatura sexual: as chama- advogando mesmo a «erradicação» dos na-
Em agosto, abriu-se uma segunda frente das «estações de conforto» onde milhares cionalistas insubmissos. A repressão inter-
em Xangai, e aqui as forças chineses resis- de mulheres – muitas delas coreanas e na no Japão também endureceu, enquanto
tiram até novembro, contrariando todas chinesas, enganadas ou raptadas – eram se promovia uma «nova ordem na Ásia de
as previsões. O regresso das atrocidades regularmente abusadas por soldados. Leste» e se contemplava capturar territórios
de uma guerra moderna à cidade mais A ofensiva militar japonesa seguiu pela sob domínio colonial europeu na Ásia do
cosmopolita da China chocou observadores costa leste até ao sul, ocupando a maioria das Sueste. Os recursos destes eram vistos como
estrangeiros e foi determinante para mu- grandes cidades chinesas, incluindo Cantão, essenciais para o esforço de guerra japonês,
dar a opinião pública mundial a favor da tomada em outubro de 1938. No Japão, o perante a oposição americana e britânica em
China. Após a queda de Xangai, as forças governo do primeiro-ministro Konoe Fu- facilitar a subjugação da China.
japonesas seguiram para Nanjing (Nan- minaro não pôs fim às atrocidades e rejeitou A ocupação representou uma oportunida-
quim), a capital dos nacionalistas. O apa- mediação alemã para uma potencial trégua, de, também, para muitos civis. Em Xangai,
relho governativo foi largamente retirado a população japonesa, já então a maior co-
nas vésperas do ataque, mas a ocupação munidade estrangeira, cresceu exponencial-
não foi pacífica. Mesmo sem enfrentarem mente durante a guerra, chegando a quase
grande resistência, as tropas japonesas Apesar da sua violência, 100 mil pessoas após 1941. Mas, incapazes
demoraram-se num massacre de seis se- de assegurar o domínio total do país ou se-
manas. Os números oficiais chineses são
a invasão japonesa não quer das áreas em torno das cidades que
de 300 mil mortos. Violações de mulheres fez vergar o propósito de controlavam – onde a resistência continuava
estimam-se em 20 mil. Subsequentemen- sob forma de guerrilha –, as forças japone-
te, para satisfazer supostas «carências»
«resistência até ao fim» ses recorreram a colaboracionistas, inter-
dos militares japoneses, foi montado um do governo de Chiang mediários encarregados da administração
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A marioneta
e os bonecreiros
Wang Jingwei posa
com oficiais japoneses
na sua residência-fortaleza,
em Xangai
tes, o contributo chinês para a vitória aliada EUA ofereceram à Europa. Tentativas das japonês era profunda.
e a devastação humana, material e ambiental autoridades chinesas de julgar criminosos * Helena F. S. Lopes é investigadora no Departamento
sofrida pelo país continuaram subvalori- de guerra japoneses e colaboracionistas fo- de História da Universidade de Bristol
VISÃO H I S T Ó R I A 25
GUERRA DO PACÍFICO // PEARL HARBOR
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26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
O ‘DIA DA INFÂMIA’
Foi assim que o presidente dos EUA, Franklin Roosevelt,
se referiu ao ataque lançado de surpresa pelo Japão,
em 7 de dezembro de 1941, à base de Pearl Harbor.
Para os norte-americanos começava a guerra que haveria
de terminar, 45 meses depois, com a derrota total dos nipónicos
por Ricardo Silva
Destruição
Numa das imagens
mais icónicas do ataque
a Pearl Harbor veem-se
os couraçados West
Virginia e Tennessee
a serem pasto das
chamas
VISÃO H I S T Ó R I A 27
GUERRA DO PACÍFICO // PEARL HARBOR
Couraçados atingidos
Alvejados pela aviação
japonesa, observam-se,
da esquerda para a
direita, o West Virginia
(severamente danificado),
o Tennessee (danificado)
e o Arizona (afundado)
D
urante décadas o Ocidente assis- o encerramento de todas as comunicações impostas e preparar-se para a entrada do
tiu à ascensão do Japão com um entre a Indochina e a China, além do envio seu exército. A uma hora do fim do prazo o
misto de temor e de espanto. A sua de uma «equipa de inspeção» para a colónia governador cedeu, mas nem assim se evitou
inesperada vitória sobre a Rússia francesa. A 22, a França assinava a rendição a violência. Uma divisão japonesa atravessou
esteve longe de ser celebrada nas em Compiègne, e o Império do Sol Nascente a fronteira e envolveu-se numa troca de tiros
chancelarias europeias, e foi com reivindicou o encerramento total da fronteira com a guarnição de Dong Dang. Entretan-
relutância que os Aliados aceitaram a anexa- com a China e o direito a ancorar navios de to, a marinha nipónica desceu pelo golfo de
ção das colónias alemãs. Contudo, seriam as guerra no porto de Guangzhouwan. A 3 de Tonquim e lançou ataques ao longo da costa,
contínuas agressões à China que causariam julho, nova exigência: a entrega de bases aé- desembarcando uma força em Dong Tac.
uma crescente animosidade face ao seu ex- reas em Hanói e o direito de passagem para A 26, a operação estava concluída e o nor-
pansionismo. Com a invasão da China, em o exército imperial. A França de Vichy pouco te da Indochina em mãos nipónicas, com a
1937, o exército japonês revelou a sua eficácia podia fazer para se opor ao ultimato nipónico, anuência forçada da França. No dia seguinte,
militar, mas também a impiedade com que só lhe restando prolongar as negociações e o Japão assinou o Pacto Tripartido com a Ale-
tratava os prisioneiros e os civis, e o absoluto esperar que a pressão diplomática dos EUA manha nazi e a Itália fascista, reconhecendo
desprezo pela vida dos chineses. fosse suficiente para impedir o pior. os direitos destas ao domínio na Europa a
O início da guerra na Europa, em 1939, Enquanto os diplomatas debatiam nos troco de um reconhecimento similar na Ásia
tornou a situação ainda mais tensa. As vi- salões, os soldados no terreno tomavam a oriental. O 2º artigo do Pacto era esclarece-
tórias da Alemanha despertavam a inveja iniciativa. No dia 6 de setembro, um batalhão dor: «A Alemanha e a Itália reconhecem e
da Itália, desejosa de construir um império japonês atravessou a fronteira junto ao forte respeitam a liderança do Japão no estabeleci-
no Mediterrâneo à custa das colónias dos em Dong Dang, o que levou os franceses a mento de uma nova ordem no Grande Leste
Aliados, e o Japão viu uma oportunidade se- responder com a suspensão das negociações. Asiático.» A nova ordem na Ásia só poderia
melhante no Pacífico. A 19 de junho de 1940, Longe de ser demovido, o general Nishimura ocorrer à custa das potências ocidentais, e
quando a França estava a apenas três dias lançou um ultimato ao governador francês: a Indochina era o primeiro exemplo dessa
de capitular perante os nazis, o Japão exigiu tinha até ao dia 22 para aceitar as condições política. Outros se seguiriam.
28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
BIBLIOTECA DO CONGRESSO
YAMAMOTO
O ‘Napoleão
dos mares’
Descendente de uma linhagem de
samurais, Isoruku foi adotado pela
família Yamamoto por falta de um
herdeiro natural e logo em criança
foi destinado à vida militar. Em 1904,
concluiu os estudos na Academia
Naval e passou a servir no cruzador
Nisshin, onde perdeu dois dedos da
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mão esquerda quando o navio foi
BIBLIOTECA DO CONGRESSO
VISÃO H I S T Ó R I A 29
GUERRA DO PACÍFICO // PEARL HARBOR
Inferno no paraíso
A violência do ataque
e as grandes explosões
contrariaram a ideia de
placidez normalmente
associada às ilhas
do Hawai
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A ‘Kido Buntai’ marinheiros e tinha a admiração do corpo de
Enquanto os governos dos Estados Unidos NAGUMO oficiais, acabando por conseguir fazer valer
e do Japão prosseguiam as negociações, o
Estado-Maior da Marinha Imperial Japonesa Do apogeu as suas ideias. A guerra na Europa também
ajudou a confirmar a validade da sua teoria.
debatia qual a estratégia a seguir em caso de ao ‘hara-kiri’ Na noite de 11 para 12 de novembro de 1940,
conflito. A maioria das altas patentes seguia o um único porta-aviões britânico lançara 21
De mentalidade conservadora e
pensamento clássico e acreditava numa bata- com uma carreira feita em navios biplanos Swordfish que atacaram de surpresa
lha decisiva entre as frotas de couraçados das de linha, Chuichi Nagumo tinha a base italiana de Taranto e deixaram três
duas marinhas. Não havia muito de original uma experiência limitada no couraçados fora de combate.
nessa abordagem, semelhante à que dera a que toca a aviação naval e uma Para vencer a marinha americana, Yama-
vitória ao Japão sobre a Rússia na batalha de cautela excessiva que se refletiu moto idealizou um ataque semelhante, mas
Tsushima, em 1905, concedendo a primazia em decisões catastróficas para a numa escala bem superior, e para afinar o
marinha japonesa. Em Pearl Harbor
aos couraçados e aos cruzadores de batalha. seu plano contou com dois oficiais de grande
opôs-se ao lançamento de um
Contudo, havia uma voz dissonante. segundo ataque, o que salvou as capacidade técnica. O comandante Minoru
O almirante Isoruku Yamamoto, coman- instalações portuárias e a base de Genda desenvolveu o plano tático, definindo
dante da Frota Combinada, defendia que só submarinos; em Midway, as suas a rota e os meios navais a utilizar, as direções e
através de um golpe radical seria possível der- ordens contraditórias selaram os tempos do ataque aéreo, e toda uma infini-
rotar a marinha dos EUA de forma decisiva, o destino da Kido Butai com o dade de questões logísticas. Por fim, coube ao
quebrar a moral do povo norte-americano e afundamento de quatro porta- capitão Mitsuo Fuchida ocupar-se do treino
-aviões. Destacado para servir na
obrigar a Casa Branca a uma paz negociada. das tripulações e do desenvolvimento de novas
ilha de Saipan, em 1944, viveu os
Crente na superioridade dos porta-aviões e da seus últimos dias numa caverna técnicas de ataque. Os torpedos foram equi-
sua aviação, Yamamoto delineou um ataque enquanto lá fora os seus homens pados com alhetas de madeira para evitar que
aeronaval contra Pearl Harbor, a principal eram aniquilados. No dia 3 de julho, batessem no fundo das águas pouco profundas
base americana no Pacífico, com o objetivo de suicidou-se
suicidou se ccom
o um tiro na cabeça. do porto, sendo também criadas bombas a
surpreender o adversário em casa e aniquilar partir de granadas de artilharia de 800 quilos,
a sua principal frota. Depois disso seria ne- capazes de perfurar a espessa blindagem dos
cessário ocupar rapidamente as Filipinas e as couraçados e explodir no seu interior.
Índias Orientais Holandesas, para garantir as Na madrugada de 26 de novembro, a Kido
matérias-primas fundamentais para manter Butai – Força Móvel partiu da baía de Hi-
uma economia de guerra, e lançar uma série tokappu rumo ao seu destino. A viagem seguiu
de golpes que forçasse os EUA a aceitar a paz. uma rota muito a norte, onde eram raros os
Era um plano audaz e não foi fácil conven- navios mercantes, e a meteorologia adver-
cer os restantes membros do Estado-Maior, sa ajudava a manter a discrição. No dia 2 de
mas Yamamoto era reverenciado entre os dezembro receberam por rádio a mensagem
30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Asas cortadas
A maioria
dos aviões
americanos que
se encontravam
em Pearl Harbor
foi destruída em
terra Charles Braga Jr..
O lusodescendente e
perderia a vida no
o
decorrer do ataquee
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«Escale o Monte Niitaka 1208». Era a pa- Pennsylvania, e poucos imaginariam a história atacantes, e o porto tornou-se cenário de um
lavra-chave para lançar o ataque ao Hawai, feita de tragédia e resiliência que se escondia mortífero espetáculo de acrobacias e pirotec-
e por volta das seis e um quarto do dia 7 de atrás do seu rosto afável. Filho de açorianos, nia. Entretanto, prosseguia o massacre. Os
dezembro de 1941, o capitão Mitsuo Fuchida ficou órfão aos 3 anos quando a mãe, Rosário, caças Zero metralhavam os aviões americanos
acelerou a fundo o motor do seu Kate e sentiu faleceu; sete anos mais tarde perdeu o irmão perfeitamente alinhados nas pistas, enquanto
a força da gravidade ao descolar do porta- mais velho, vítima de uma hemorragia cere- os Kate largavam os seus torpedos especiais.
-aviões Akagi. Ao ganhar altitude olhou em bral. Apesar de tudo, Charles era um jovem Um deles era pilotado pelo tenente Jinichi
redor e viu a mais potente força aeronaval do cheio de sonhos e esperança. Em outubro tinha Goto, que recordou anos mais tarde a cena
planeta. Junto ao Akagi estava o Kaga, e à completado uma série de testes para ser acei- mais intensa da sua vida. «Eu estava cerca
sua volta encontravam-se o Hiryu, o Soryu, o te no curso de piloto naval e os últimos dias de 20 metros acima da água quando soltei o
Shokaku e o Zuikaku, escoltados por couraça- tinham sido passados no paraíso havaiano. meu torpedo (...) quando o meu avião subiu
dos, cruzadores e contratorpedeiros. A bordo Agora estava prestes a descobrir o que era a após ter largado o torpedo, eu vi que estava
dos seis porta-aviões encontrava-se a fina-flor guerra e ainda não eram 8 da manhã quando abaixo do cesto do grande couraçado.» Era o
da aviação embarcada japonesa, 411 aviões ouviu a primeira explosão: um torpedo tinha USS Oklahoma, que não tardou a ser atingido
divididos entre caças Zero, bombardeiros Val e acabado de rebentar contra o casco do cruza- pelo primeiro de cinco torpedos e a afundar-se
torpedeiros Kate. Os seus tripulantes eram os dor USS Raleigh. Passados alguns minutos, o com a perda de 429 marinheiros.
mais bem treinados do mundo, muitos deles couraçado entrou em ebulição, com todas as Por volta das 8h50 chega a segunda vaga de
veteranos da guerra na China e a maioria com armas disponíveis a disparar na direção dos ataque, com o tenente-comandante Takashige
largas centenas de horas de voo. Liderando os Egusa a surgir aos comandos de um Val e a
187 aviões da primeira vaga na viagem até à ser seguido por outros 170 aviões. Desta vez
ilha de Oahu, Fuchida percebeu que a surpresa a aviação americana, ou o que sobrava dela,
tinha sido conseguida quando vislumbrou a não deixou de reagir. Três caças P-40 levanta-
frota ao longe, perfeitamente alinhada, e o céu ram voo e intercetaram um grupo de Vals que
livre de caças inimigos. Tinham conseguido o se dedicava a metralhar alvos em terra, e foi
mais difícil e não perdeu tempo para ordenar nessa altura que o tenente Taylor se colocou
o ataque; de seguida transmitiu a mensagem no encalço do Val pilotado por Koreyoshi So-
mais aguardada no Akagi: «Tora! Tora! Tora!»
Os caças ‘Zero’ toyama e despachou o bombardeiro japonês
metralhavam os aviões com uma rajada bem colocada. Entretanto, o
Uma manhã de infâmia marinheiro Braga e os seus camaradas conti-
Longe de imaginar o que o esperava, Charles
americanos alinhados nuavam a lutar com tudo o que tinham. O USS
Braga Júnior iniciou aquele domingo fatídico na pista, enquanto os Pennsylvania tinha escapado incólume aos
bem cedo, após uma longa noite a dançar no torpedeiros por se encontrar em doca seca, mas
salão da Legião Americana. O marinheiro
‘Kate’ lançavam os seus a sua sorte chegou ao fim quando um grupo de
de 22 anos servia a bordo do couraçado USS torpedos especiais nove bombardeiros Val começou a mergulhar
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GUERRA DO PACÍFICO // PEARL HARBOR
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nham sido destruídos e 2335 homens tinham
perdido a vida. O preço tinha sido de saldo: 29
aviões e cinco «submarinos anões». A bordo
do Akagi a euforia era contagiante. Contudo, Manchete da imprensa Americanos acorrem a comprar os jornais com a notícia do ataque
os porta-aviões americanos não estavam no
porto e grande parte das instalações permane- ofensiva nipónica. Eram duas e meia da ma- uma ocupação que iria prolongar-se até ao
ciam intactas, e por isso tanto Fuchida como drugada em Manila, quando uma mensagem verão de 1944. Em Wake o cenário foi bem
os restantes oficiais queriam voltar para aca- urgente dava conta do ataque contra Pearl diferente. Os bombardeamentos causaram
bar de vez com a marinha americana. A sua Harbor. Incrivelmente, quando amanheceu extensos estragos em terra e a frota japonesa
pretensão chocou, porém, com o chefe da Kido nas Filipinas as formações de bombardeiros e aproximou-se confiante para desembarcar os
Butai. O almirante Nagumo estava satisfeito caças japoneses voaram sem grande oposição soldados, mas na ilha os marines aguarda-
com os resultados e não queria arriscar uma até alcançarem os aeródromos norte-ameri- ram pacientemente a sua aproximação até
emboscada pelos porta-aviões americanos; canos, onde espalharam o caos. Destruíram ficarem ao alcance das suas armas e nessa
afinal de contas, os couraçados tinham sido mais de uma centena de aviões com a perda altura abriram fogo com tudo o que tinham.
postos fora de combate e a aviação fora des- de apenas sete caças Zero e – o mais impor- O contratorpedeiro Hayate foi atingido nos
truída nas pistas. O seu espírito conservador tante – tinham ganho a iniciativa estratégica. paióis e explodiu, sendo o primeiro navio
e cauteloso sobrepôs-se ao entusiasmo dos Nesse mesmo dia as forças imperais ata- japonês a tombar na Segunda Guerra Mun-
seus subordinados e a frota acabou por dar caram outros dois territórios administrados dial; de seguida foram atacados por quatro
meia volta e regressar ao Japão. pelos EUA. Em Guam, a manhã trouxe os caças Wildcat que tinham sobrevivido aos
inevitáveis bombardeamentos aéreos para os bombardeamentos e, contra todas as expeta-
O assalto imparável quais praticamente não havia defesas; dois tivas, o Wildcat pilotado pelo capitão Henry
Pearl Harbor era apenas o início da grande dias mais tarde ocorreu a invasão e começou Elrod conseguiu atingir o contratorpedeiro
Kisaragi com uma única bomba que fez de-
flagrar as suas cargas de profundidade e o
KIMMEL afundou. Incrédulos perante o sucedido, os
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Roosevelt no Congresso O presidente dos EUA pediu que fosse declarada guerra ao Japão. A proposta foi aprovada com apenas
um voto contra – da pacifista Jeanette Rankin, eleita pelo Montana
VISÃO H I S T Ó R I A 33
Dos 94 navios de guerra americanos que
i a w de se encontravam no porto, 18 (entre os quais
Wabeira
a
Ri
Raleigh Pearl
Cruzador
Lago
do Meio Utah Ilha Ford Harbor
Navio escola
Curtiss
Cargueiro Nevada
Arizona Couraçado
Couraçado
Vestal Ri
Tenesse Navio oficina oH
Couraçado ala
West Virginia wa
Couraçado
Maryland
Pearl Base Couraçado
Oklahoma
aeronaval Couraçado
Harbor de Pearl Harbor California Lago
Couraçado Sudoeste
Helena
Cruzador Lago da
Cratera
Oglala Aliamano
Navio
mineiro Depósitos
New Orleans Cruzador de combustível
Península San Francisco Cruzador
de Waipi’O St Louis Cruzador
Honolulu
Shaw Pennsylvania Cruzador
Contratorpedeiro Couraçado
Downes Depósitos
Contratorpedeiro Cassin de combustível
Cabo
do Hospital Contratorpedeiro
Depósitos
de combustível
Hickam Field
Navios norteamericanos
atingidos
Cabo Destruídos
Waipi’O
Severamente danificados
Danificados
Helm Trajetos dos aviões japoneses
Cruzador
1ª vaga de assalto
(7h50 às 8h11)
2ª vaga de assalto
Cabo (8h48 às 9h20)
Hiroquois
500 m
C
onhecida como a Pérola do Orien- o Club Lusitano e o Club de Recreio, que
te, Hong Kong era um dos símbo- ajudaram a fomentar os seus círculos sociais.
los do outrora poderoso Império Além de britânicos, portugueses e chine-
Britânico; uma colónia cosmopo- ses, Hong Kong também possuía minorias
lita, um poderoso centro finan- das mais diversas proveniências, culturas e
ceiro, uma ponte entre o Oriente religiões: os judeus asquenazes e sefarditas
e o Ocidente que deu origem a uma cultura vindos de Cantão e de Macau; os enigmáticos
única e plena de contradições. parses da Índia, descendentes de iranianos
A sua história como colónia britânica co- e seguidores do profeta Zaratustra; sikhs
meçou em 1841, quando, em plena Primeira do Punjab, hindus do Gujarat e jainistas do
Guerra do Ópio, o imperador chinês foi forçado Rajastão, entre tantos outros povos que da-
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a ceder a ilha ao Reino Unido, que dali em vam a Hong Kong um colorido multiétnico e
diante a utilizaria como entreposto comer- multicultural. Contudo, e apesar do relativo
cial. Mas o seu relacionamento com Portugal sucesso, ser «português» em Hong Kong
começara três séculos antes, em 1514, quando não implicava igualdade de oportunidades.
Jorge Álvares – o primeiro europeu a navegar Aos olhos dos britânicos tratava-se de uma e apesar de estar privado de direitos, a vida
nas suas águas – estabeleceu um posto de co- raça intermédia, uma mestiçagem tolerável, era suficientemente agradável. Mas não ple-
mércio em Tamão, uma ilha que faz parte do uma comunidade útil para ajudar a gerir uma namente Na composição da população, eu
atual território de Hong Kong. Sete anos mais base constituída por centenas de milhares estava etnicamente ensanduichado entre
tarde, a dinastia Ming expulsa os portugueses de chineses e servir uma elite composta por a minoria privilegiada de caucasianos, que
da região, mas a história dos nossos compa- alguns milhares de britânicos. Uma realidade detinha o poder, e a maioria dos cidadãos
triotas em Hong Kong estava apenas no início. patente no testemunho de Horatio Ozorio. chineses, que eram oprimidos.»
Logo nos primeiros anos de tutela britâ- «Desde que eu não fosse muito ambicioso, Enquanto a sociedade de Hong Kong con-
nica, em meados do século XIX, surgem as desde que pudesse aceitar o sistema de go- tinua a evoluir com as suas constantes meta-
primeiras famílias com apelidos lusitanos, verno, desde que ‘conhecesse o meu lugar’, morfoses, o território não cessa de aumentar
membros da comunidade luso-chinesa ma- com a constante pressão imperial. Em 1856,
caense em busca de oportunidades numa a dinastia Qing volta a ser derrotada pelos
terra onde o comércio do ópio e do chá geram impérios ocidentais, na Segunda Guerra do
riqueza e emprego. Os portugueses integram- Ópio, e cede novas terras aos britânicos, com a
-se rapidamente no funcionalismo público colónia a ser alargada ao território continental
como escriturários e contabilistas, no setor após anexar a cidade costeira de Kowloon.
privado são fiéis de armazém, bancários e ti- Em 1898, nova expansão, com a cedência dos
pógrafos, posições intermédias que garantiam «Novos Territórios» por um prazo de 99 anos.
alguma estabilidade financeira, sabendo que Há meses que o exército
as posições de topo estavam reservadas aos Ventos do Japão
britânicos. Integrados mas isolados, manti-
japonês preparava a Ficava assim definido o território da colónia,
veram vivas a língua e as tradições, enviando invasão, concentrando que entra no século XX com a confiança de um
os filhos para escolas católicas e mantendo futuro próspero e seguro, até que a ameaça de
os casamentos entre os membros da comu-
tropas em redor da um império emergente vai alterar a relação de
nidade. Também criaram instituições como vizinha Shenzhen forças na Ásia e colocar em risco a sua integri-
36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Legenda arranque Legenda texto Obis il ipit qui is ut queSimusam
dade territorial. O Japão começa por travar Reich na Europa e no norte de África não lhe 'Banzai!' Soltando o seu grito
guerras contra a China e a Rússia, dois impé- permitiu o envio de grandes reforços, e por de guerra, a infantaria japonesa
lança-se ao assalto da colónia
rios fragilizados que consegue derrotar com isso Hong Kong teria de se defender com uma britânica, em dezembro de 1941
relativa facilidade. Durante a Primeira Guerra guarnição pequena, mas aguerrida, composta
Mundial (1914-1918) aproveita o isolamento por seis batalhões de infantaria. Os escoceses
da Alemanha para conquistar as possessões do 2nd Royal Scots e os ingleses do 1st Mid-
germânicas no Pacífico. O seu oportunismo dlesex, indianos do 5º batalhão do 7º Rajputs o exército japonês preparava a invasão de
fomenta a apetência pelo risco e gera uma e do 2º batalhão do 14º Punjabis, além dos Hong Kong, estacionando forças em redor
sensação de impunidade que aumenta com canadianos do Royal Rifles of Canada e dos da vila de Shenzhen, então pouco mais do
cada sucesso militar. Em 1931, simula um Granadeiros de Winnipeg, que seriam apoia- que um apeadeiro entre Cantão e Kowloon,
incidente para ocupar a Manchúria e instaurar dos por diversas unidades de artilharia e um e deslocando esquadrões de caças e bombar-
ali um regime fantoche. Em 1937, um novo Corpo de Defesa de Voluntários de Hong Kong deiros para Cantão. A 38ª divisão do general
incidente serve de desculpa para escalar a (CDVHK). Os voluntários foram organiza- Sano Tadayoshi, com os regimentos 228, 229
tensão e iniciar a Segunda Guerra Sino-Ja- dos por companhias que refletiam o caldo e 230, iria liderar o ataque com o apoio de
ponesa, que se revelará trágica para o povo de culturas e nacionalidades da colónia: a 2ª um vasto parque de artilharia e da aviação
chinês. Pequim é ocupada em finais de julho, companhia era escocesa, a 3.ª euro-asiática, nipónica, enquanto o mar era dominado por
cinco meses mais tarde os japoneses entram a 4ª chinesa; a 5ª e a 6ª eram portuguesas e uma esquadra composta pelo cruzador Isuzu,
em Nanquim e dão início ao massacre de nela serviam oficiais como o capitão Henrique cinco contratorpedeiros e outros 20 navios.
mais de 200 mil homens, mulheres e crianças. Botelho e o tenente Joaquim Guterres, além Na noite de 7 para 8 de dezembro desse
O seu avanço é constante e em outubro do de dezenas de sargentos, cabos e soldados ano de 1941, a tensão era alta no QG britâni-
ano seguinte começa a batalha por Cantão. com apelidos lusitanos. co. Por volta das 4h45, o major Charles Bo-
que levou centenas de milhares de refugiados xer (que era fluente em japonês) ouviu uma
a procurar abrigo em Hong Kong. Crónica de uma derrota comunicação de Tóquio através da rádio a
Apesar de o Reino Unido estar consciente A apreensão vivida durante o verão de 1941 alertar os cidadãos nipónicos para a iminên-
do grave perigo na Ásia, a guerra contra o III era plenamente justificada. Há meses que cia da guerra; seguiu-se uma madrugada a
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GUERRA DO PACÍFICO // HONG KONG
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de forma descuidada, caiu na emboscada
preparada pelos punjabis e sofreu cerca de
uma centena de baixas; numa das pontes
armadilhadas, os engenheiros viram um Rumo ao cativeiro Prisioneiros britânicos são conduzidos a um campo de concentração
soldado temerário mostrar o seu valor ao
correr sozinho pelo tabuleiro, até desapa-
recer numa nuvem de fumo e destroços
quando os explosivos foram detonados.
A defesa do território continental era
virtualmente impossível e por isso os bri-
tânicos realizaram uma retirada controlada
para atrasar os japoneses, resistindo durante
quatro dias até se dar a retirada geral. Num
ambiente de medo e de pânico, as águas entre
Kowloon e a ilha de Hong Kong tornaram-se
em palco de uma corrida contra o tempo, com
lanchas carregadas de soldados e civis a esca-
parem sob o fogo da artilharia nipónica. Nes-
sa noite os soldados japoneses espalharam-se
pelas ruas de Kowloon para comemorar a sua
vitória, e a escuridão não abafou os gritos de
terror das mulheres que eram violadas sem
que alguém pudesse acudir-lhes.
Na manhã do dia seguinte, um barco com
dois oficiais japoneses a bordo atravessou as
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águas entre Kowloon e Hong Kong para exi-
gir a rendição dos britânicos, prontamente
recusada, começando então um bombardea- Festa da vitória Soldados nipónicos festejam a tomada de uma posição da artilharia britânica
mento intenso que se prolongou durante uma
semana. As baterias de artilharia e as posições
defensivas dos britânicos foram duramente muito treino para isso – exceto o Sequeira. Um meçado a batalha final. Os japoneses tinham
batidas pelos japoneses e acabaram por co- pedaço de bomba atingiu-o sob o queixo e saiu desembarcado nas docas de Tai Koo a cober-
brar as primeiras vítimas portuguesas. Pelas acima da sua têmpora esquerda.» to da noite e milhares de soldados estavam
8 horas da manhã do dia 15, um pelotão da 5ª a caminho da ilha em ferries e lanchas. As
Companhia de voluntários patrulhava o monte O assalto final posições defendidas pelos soldados indianos
Davis. Um desses portugueses era o soldado Era apenas uma questão de tempo até os são rapidamente submergidas e não tardou
Luiz Romano Sequeira, e talvez não tenha es- japoneses atravessarem o canal que separa muito até os artilheiros da 4ª bateria terem
tado muito atento quando um avião nipónico Kowloon da ilha, e essa espera acabou na de lutar corpo-a-corpo, com António João
largou a sua carga mortífera. Foi um momento noite de 18 para 19 de dezembro. Por volta das Rocha e Henry Maria Campos a perderem a
de terror que o soldado Gomes recordaria 8 da noite, os artilheiros da 4ª e 5ª baterias vida nos combates. Momentos mais tarde foi a
anos mais tarde: «Ouvimos a bomba a cair e do CDVHK ouvem um tiroteio nas posições vez de o artilheiro Manuel Heleodoro Ozorio,
todos mergulharam no chão – não era preciso do batalhão Rajput e percebem que tinha co- da 5ª, sofrer o mesmo destino, com os seus
38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Entre Victoria
e Kowloon, lanchas O massacre da Força Z
carregadas de soldados No verão de 1941, quando a paz no pónicas) com 94 aparelhos dirigiam-se
Pacífico parecia ter os dias contados, o à Força Z, que às 10h15 foi avistada por
e de civis tentavam Gabinete de Guerra britânico decidiu um avião de reconhecimento. O ataque
escapar ao fogo reforçar as suas forças no Oriente e for- começou uma hora mais tarde, com os
mar uma poderosa esquadra, a Força Z, Nell do Mihoro Kokutai a largarem as
da artilharia nipónica com o couraçado HMS Prince of Wales, suas bombas a três mil metros de altitu-
o cruzador de batalha HMS Repulse e de, enquanto os Nell e Betty do Genzan
quatro contratorpedeiros. A chegada e Konoro Kokutai voavam a apenas
últimos momentos a serem de puro horror. da Força Z a Singapura não passou des- 35 metros do mar para lançar os seus
Os japoneses do 229º Regimento tomaram percebida aos serviços de inteligência torpedos. Atacados por todos os lados,
a sua posição de assalto e capturaram 20 japoneses, assim como a sua saída, a os navios britânicos ziguezagueavam de
prisioneiros, que não hesitaram em assassinar 8 de dezembro, para intercetar os forma desesperada enquanto os canhões
a golpes de baioneta. desembarques nipónicos na Malásia. No antiaéreos disparavam sem parar, mas
O avanço nipónico continua oculto pela dia seguinte, a Força Z navegava rumo nada podia evitar o massacre. O HMS
escuridão até alcançar o desfiladeiro de Wong ao golfo de Sião sem saber que tinha sido Repulse foi atingido por uma bomba e
Nai Chung, e enquanto o 230º regimento é detetada por um submarino inimigo e cinco torpedos, afundando-se às 12h32,
lançado através da brecha aberta na defesa e que os japoneses preparavam um ataque com a perda de 508 tripulantes; o HMS
segue para sul, os homens do 228º continuam aéreo massivo que se revelaria fatal. Prince of Wales sofreu o impacto de
a eliminar as bolsas de resistência junto à Ao clarear o dia 10 de dezembro, os céus uma bomba de meia tonelada e quatro
praia e acabam por entrar no emaranhado de Saigão encheram-se com dezenas torpedos, indo ao fundo às 13h23 com
urbano, onde se repetem os episódios de de ruidosos bombardeiros Mitsubishi 327 homens.
crueldade vividos em Kowloon. Zaza Hsieh G3M2 Nell e G4M1 Betty levantando A derrota revelou-se catastrófica para o
era uma estudante universitária e recordou a voo. Três Kokutai (forças aeronavais ni- exército britânico na Malásia e reforçou o
decisão de, juntamente com familiares, irem que Pearl Harbor já tinha demonstrado: a
para a casa da avó em busca de segurança, era dos couraçados tinha chegado ao fim e
mas «na pressa de lá chegar, passámos por a aviação era a nova rainha dos mares.
cima de muitos corpos. Foram baleadas pes-
soas nas ruas, em carros e em camiões, e até
em ambulâncias». Ao chegarem, apercebe-
ram-se de que a restante família tinha tido
toda a mesma ideia e a casa estava repleta
de gente aterrorizada pelos sons que lhes
chegavam do exterior. Era uma questão de
tempo até acontecer o inevitável. A meio da a
noite ouviram-se pancadas fortes na por--
ta, três soldados armados com espingardass
e baionetas entraram na casa para roubar, r,
mas «eles também procuravam mulheres. s.
Quando um soldado se aproximou da mi- i-
nha irmã mais velha, que estava sentada no
chão a segurar no seu bebé de 2 anos, ela la
rapidamente beliscou o bebé e ele começou ou
a chorar. Foi distração suficiente para o queue
o soldado voltasse a sua atenção para outro tro
lugar. Então eles levaram três mulheres paraara Afundamento do 'Repulse' A tripulação
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VISÃO H I S T Ó R I A 39
GUERRA DO PACÍFICO // HONG KONG
Henrique Botelho
O capitão português
que comandava
a 6ª Companhia e a sua
ficha no campo
de prisioneiros japonês
onde foi internado
D.R.
acabam por participar nos confusos combates tónio Marques e o soldado Henrique Alberto quase quatro anos. A maioria dos militares foi
daquela noite e sofrem uma baixa, quando a Alves. Apesar de uma resistência obstinada, transportada em lanchas para Kowloon e dali
explosão de uma granada matou o soldado o 230º regimento continuou a avançar para encaminhados para o campo de Sham Shui
Francisco António Noronha. sul até cortar a ilha em dois, e as elevadas Po, onde as duras condições de vida fizeram
Ao amanhecer, os britânicos contra-ata- baixas sofridas nos dias seguintes ditam um da morte uma constante.
cam, com os canadianos dos Granadeiros de fim que se sabia inevitável. Às 15h30 de 25 Em 1942, o tenente Joaquim Guterres e o
Winnipeg, os ingleses do 1st Middlessex e os de dezembro, a bandeira branca foi içada e soldado Eduardo Ribeiro perderam a vida,
voluntários de Hong Kong a tentarem conter Hong Kong rendeu-se. iniciando uma lista de mortos que só termi-
a avalancha nipónica. Conseguem desacelerar naria a 8 de julho de 1945, com a perda do
o seu avanço para oeste, mas o preço a pagar Um longo cativeiro soldado Ambrósio Silva, numa altura em que
é elevado: meio milhar de soldados aliados Terminada a batalha, milhares de prisioneiros faltava pouco mais de um mês para o fim
perde a vida, incluindo dois portugueses da foram conduzidos para campos de concentra- da guerra. Em Hong Kong foi montado um
6ª Companhia do CDVHK, o cabo Carlos An- ção onde começou um cativeiro que iria durar campo de prisioneiros na península de Stan-
ley, maioritariamente para civis, e ali morreu
George Henriques, em 1942, e Euxico Maria
Desastre em Singapura Ozoria, no ano seguinte. Contudo, nem todos
ficaram nesses campos até ao fim da guerra.
No mesmo dia em que a guarnição de pior desastre e a maior capitulação da Com a mobilização de milhões de japo-
Hong Kong começava a sua defesa, o im- história militar britânica». neses para manter o esforço de guerra, o
pério do Sol Nascente lançava um ataque Concluída a conquista da Malásia e de governo de Tóquio decidiu transferir pri-
generalizado pelo Pacífico que incluiu o Singapura, as forças japonesas inicia-
sioneiros para a metrópole, de modo a com-
desembarque de uma força japonesa na ram a Kakyo Shukusei – a purga dos
pensar a mão-de-obra perdida. Embarcados
Malásia. Era a vanguarda do 25º Exérci- chineses de além-mar, matando dezenas
to do general Yamashita Tomoyuki, que de milhares de malaios de etnia chinesa, nos porões de navios mercantes como car-
numa «blitzkrieg à japonesa» avançou num genocídio que seria replicado na ga humana, os cativos tinham de suportar
rapidamente para sul aniquilando toda a Birmânia e na Tailândia contra indianos condições atrozes que faziam sucumbir os
resistência que encontrou pelo caminho. de etnia tâmil e que levou ao massacre de de saúde mais frágil. Também tinham de
A 31 de janeiro de 1942, as forças britâni- pelo menos 150 mil homens, mulheres e enfrentar os mares infestados de submarinos
cas sobreviventes tinham recuado para crianças. Os combates também pros- norte-americanos, sempre prontos a atacar
Singapura e preparavam-se para viver seguiram com violência na Birmânia, qualquer navio que arvorasse a bandeira
um destino similar ao da ilha de Hong com os aliados a abandonar Rangum a
do Sol Nascente. Quase 20 mil prisioneiros
Kong. Na semana seguinte os japoneses 7 de março e os japoneses a avançarem
morreram quando os navios em que seguiam
começaram a invasão e no dia 15 de na direção da Índia. Acabaram por ser
fevereiro os britânicos renderam-se, com travados junto à fronteira após uma série foram afundados pelos submarinos, e os pri-
cerca de 80 mil homens capturados. de combates ferozes que degeneraram sioneiros de Hong Kong não escaparam a
A importância da derrota não escapou numa longa campanha de atrito que se esse trágico destino. Em setembro de 1942,
a Churchill, que a classificou como «o prolongou até 1945. o Lisbon Maru partiu de Hong Kong com
700 soldados japoneses nos seus conveses
40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
D.R.
superiores, enquanto 1816 prisioneiros eram Nagaoka, Mito, Hachioki e Toyama, onde cores incomuns: era o que restava dos ho-
amontados em camarotes onde a diarreia de os portugueses testemunharam um cenário mens, mulheres e crianças que em desespero
centenas de homens não permitia a menor verdadeiramente apocalíptico. Após uma tinham saltado para um rio que fervia com o
higiene. Era uma viagem destinada a acabar vaga ininterrupta de explosões, um mar de calor do incêndio. Cinco dias mais tarde, Hi-
mal, e no dia 1 de outubro, o USS Grouper fogo devastou a cidade e chegou perto da roxima foi arrasada por uma bomba atómica
torpedeou o Lisbon Maru. Os 700 soldados fábrica onde trabalhavam. No dia seguinte e no dia 9 foi a vez de Nagasáqui sofrer um
japoneses foram rapidamente retirados, mas predominava um cheiro a queimado e no rio destino similar. Ameaçado com a destruição
os prisioneiros foram mantidos a bordo en- Jinzu boiavam uns «troncos» com formas e total, o Japão acabou por aceitar a rendição
quanto se tentava salvar o navio e mais de incondicional. Era o ansiado final da guerra,
800 foram ao fundo quando este se afundou. mas nem todos os prisioneiros sobreviveram
Pelo menos uma centena de portugueses e no cemitério de Yokohama são recordados
conseguiu sobreviver à viagem até ao Japão. dois soldados do campo de Sendai: Eduardo
Ali, foram distribuídos por vários campos de Alberto Fernandes, que faleceu a 18 de de-
prisioneiros onde foram sujeitos a trabalhos zembro de 1944, e Eduardo Miguel Franco,
forçados e à violência indiscriminada dos morto a 29 de janeiro de 1945.
guardas. Um grupo de 67 foi destinado ao Duas semanas após a rendição do Japão,
Campo de Sendai, na prefeitura de Fukushi- uma vasta armada britânica de 55 navios
ma, sendo utilizados nas minas da Furukawa, Indianos do 5º batalhão ancorou à vista de Hong Kong para reto-
uma empresa especializada na mineração de
carvão e cobre. Outros 18 portugueses foram
do 7º Rajputs e do mar o controlo da colónia. Tal manifestação
de força destinava-se a passar a mensagem
enviados para um campo nos arredores de 2º batalhão do 14º Punjabis de que os britânicos estavam de volta para
Toyama, uma cidade costeira a cerca de 250
quilómetros de Tóquio com uma vasta indús-
participavam na defesa ficar. Hong Kong retomou a dinâmica eco-
nómica e tornou-se um dos «tigres asiáticos»,
tria metalúrgica. Os 300 prisioneiros nesse do território mas o tempo dos impérios chegaria ao fim
campo tinham sido capturados em Hong e o território foi restituído à China em 1997.
Kong e eram usados no fabrico de caldeiras Mas para a comunidade portuguesa o final
a vapor, um trabalho árduo para homens chegara mais cedo: a II Guerra Mundial foi
debilitados pela fome e por doenças como o o canto do cisne, com muitos a optarem por
beribéri, a disenteria e a sarna. Isolados no buscar refúgio em Macau durante o conflito.
campo e sem contacto com o mundo exterior, Mais tarde começou a grande migração em
a sua rotina de fome e trabalho foi interrom- busca de novas oportunidades em destinos
pida na noite de 1 para 2 de agosto de 1945, como a Austrália, o Brasil, o Canadá, os EUA,
quando o silêncio foi quebrado pelo ruído Portugal e a Venezuela. Em 1961, restavam
GETTY MAGES
de motores no céu e de sirenes na cidade. 9388 portugueses, número que nas décadas
Centenas de bombardeiros B-29 largavam seguintes se reduziria de forma considerável,
a sua carga mortífera sobre as cidades de sendo hoje residual.
VISÃO H I S T Ó R I A 41
GUERRA DO PACÍFICO // MACAU
Presença japonesa
Acompanhado por oficiais
portugueses, o almirante
Soyeshima passa revista
à guarda de honra em
Macau, em meados de
junho de 1941
Quando
o mundo
desabou
em Macau
Na sua longa história, foram
muitas as provações por que
passou o antigo enclave português
encrustado na costa chinesa.
Mas foi durante a Guerra
do Pacífico que o território viveu
o seu período mais dramático
por Hugo Pinto
Q
uatro anos. Foi o tempo durante A começar pela neutralidade oficialmente que a sua vontade fosse cumprida no terri-
o qual Macau esteve isolado do declarada, mas que, na realidade quotidiana tório. Bastava seguir o exemplo ditado pelos
mundo, enquanto decorria um de um território sitiado, se revelava porosa e chineses durante séculos: exercer o poder
conflito que ficou em suspenso permissiva de todas as vontades dos nipóni- de bloquear e libertar a entrada de bens es-
no pequeno território. Numa cos, cujo poderio militar tinha sido deixado senciais. Foi este o cerco que moldou a vida
neutralidade que pouco tinha ao alcance de um passo apenas. Ali, no outro da colónia durante quatro longos anos de
de paz e sossego. lado da fronteira. Pronto para usar. ligações cortadas com o exterior.
Nesta situação-limite, com um mundo em Acima de tudo, a política de neutralida- Esta contagem, que só terminará com a
guerra à porta, ficou exposta como nunca a de do Estado Novo era uma conveniência. rendição japonesa, em agosto de 1945, co-
natureza ambígua de Macau, as suas con- Numa demonstração das peculiaridades meça a 8 de dezembro de 1941. Menos de 24
tradições e contrastes. Porto de abrigo para que faziam desta nesga de terra um lugar de horas depois do ataque a Pearl Harbour, os
milhares de refugiados que fizeram duplicar vocação universal, a alegada imparcialidade japoneses invadem Hong Kong para impedir
a população, conspirava-se, colaborava-se, acomodava todas as partes. a passagem de bens estratégicos para a Chi-
resistia-se. Sobrevivia-se. Era tudo ou nada. Para os japoneses, a preservação dos laços na. A resistência é insuficiente para deter os
Enquanto uns lucravam a vender os bens diplomáticos com Portugal significava pode- nipónicos, que, no dia 12, ocupam os Novos
escassos que todos procuravam, outros mor- rem furar um isolamento profundo, manten- Territórios e a península de Kowloon. Seis
ARQUIVO DA FAMÍLIA ANDRADE E SILVA
riam à fome na rua. E não faltaram cenas do o precioso posto de escuta em Lisboa, de dias depois, alcançam a ilha que dá nome à
de canibalismo. onde podiam seguir os passos dos Aliados; em então colónia britânica. A 25 de dezembro
Na colónia portuguesa, onde funcionavam Macau, estavam à vontade para observar de o governador, Sir Mark Young, rende-se ao
consulados do Japão e do Reino Unido e perto a resistência que lhes opunha o Governo Império do Sol Nascente.
se escondiam agentes chineses e america- Nacionalista da China Livre. Para Macau, as consequências são imedia-
nos, estava montado um teatro de sombras. Nem era preciso ocupar Macau. Os japo- tas. A partir daquele momento, assume uma
Nem sempre as coisas eram o que pareciam. neses não tinham de recorrer à força para posição única numa imensa região assolada
42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Legenda
Legenda
pela guerra: terra de paz. É por isso que ali a providenciar acerca da sua subsistência, não forem resolvidos», mas a resposta não
acorrem milhares de refugiados de Hong o que deu causa a consideráveis despesas era animadora: «Impossível evitar embarque
Kong, muitos com raízes portuguesas em imprevistas». A «inquietação» apoderava- [do] último contingente de refugiados visto
Macau. Vão juntar-se a outros milhares que -se da população, avisava o ministro, que estarem [as] passagens pagas.»
já tinham procurado a cidade quando os ja- sublinhava como os apostadores se tinham Um dia depois deste telegrama, a 7 de se-
poneses invadiram a China, em julho de 1937. afastado das lotarias e das casas de jogos, tembro de 1937, o jornal A Voz de Macau fazia
Foi logo então que o tormento se iniciou. grande fonte de receitas da Administração. manchete com «O conflito sino-japonês em
Machado citava um telegrama do gover- Shanghai», dando conta dos ataques que a
O perigo mora ao lado nador de Macau, Artur Tamagnini Barbosa, aviação nipónica levava a cabo, e de como
No dia 18 de outubro de 1937, o ministro no qual se falava de uma «crise única [na] «todas as fronteiras» dos invasores «foram
das Colónias, Francisco Machado, escreve história [da] colónia». O governador tinha consideravelmente aumentadas».
ao presidente do Conselho e ministro dos mesmo pedido ao cônsul português em Era um avanço implacável rumo ao sul,
Negócios Estrangeiros, António de Olivei- Xangai para «não enviar mais refugiados a Cantão, o principal entreposto comercial
ra Salazar, expressando «preocupações e enquanto [os] assuntos [de] financiamento chinês, na vizinhança de Macau. A aproxi-
apreensões quanto à situação financeira mação do conflito representava uma cres-
de Macau, acrescidas de outras derivadas cente e palpável ameaça. Dali em diante, a
do aspeto político da colónia em face [do] Para o Japão, os laços guerra sino-japonesa vai afetar «grande-
conflito» sino-japonês. A Macau, explica mente a marcha dos negócios públicos de
Machado, «têm afluído, de Cantão e Xangai,
diplomáticos com Macau», como resume, num relatório de
algumas centenas, se não milhares, de re- Portugal permitiam 1952, Joaquim Marques Esparteiro, gover-
fugiados, quer de nacionalidade portuguesa nador de Macau.
quer chineses, quase todos em precárias cir-
manter o valioso posto Dirigindo-se ao ministro do Ultramar, Es-
cunstâncias, obrigando o governo da colónia de escuta de Lisboa parteiro recorda como, «em agosto de 1937, a
VISÃO H I S T Ó R I A 43
GUERRA DO PACÍFICO // MACAU Bombas sobre Macau
O bombardeamento
americano a instalações
portuárias que serviam
os japoneses, conforme
reportado no jornal
A Voz de Macau
de 16 de janeiro de 1945
ANTT
Com efeito, no início de 1938 sentiram-se políticas entre Macau e estas autoridades
no território português «os primeiros bom- sofriam, pelas incompreensões e incoerências Fim da guerra O alívio
sentido em Macau, numa
bardeamentos na vizinha ilha da Lapa, o que que inevitavelmente suscitavam». notícia de O Século
deu início ao êxodo de grandes massas de de 6 de setembro de 1945
fugitivos para Macau», incluindo dezenas ‘Hábeis enredos mascarados
de escolas de Cantão que transferiram as de ameaças’ los conta como eram constantes as ameaças
suas atividades. Um vívido retrato das complicações de então japonesas de bloqueio caso as autoridades
Os japoneses acabam por dominar o sul da foi deixado por uma figura que, não tendo o portuguesas não colaborassem no plano de
China em outubro de 1938, quando tomam protagonismo de um governador, assumiu «instituir uma nova ordem na Ásia, proibindo
4 VISÃO H I S T Ó R I A
44
Desfile militar Desde
a invasão da China
pelo Japão que Macau
vivia no receio de uma
intervenção nipónica
VISÃO H I S T Ó R I A 45
45
GUERRA DO PACÍFICO // MACAU
Anuir aos japoneses e proibir a circulação pois era por intermédio daquela cidade que
do dinheiro do governo de Chiang Kai-shek se fazia quase todo o comércio de Macau»,
significava boicotar as principais fontes de explicava Teixeira. Apesar do aperto, a cidade
receitas, o ópio e o jogo, indústrias que depen- não fechava as portas. Dizia o governador:
diam, por sua vez, dos chineses que se deslo- «Dividiremos o que tivermos. Se não hou-
cavam a Macau. «Quanto ao bloqueio, com ver comida, pelo menos daremos a todos a
todo o seu cortejo de horrores, esse dar-se-á tranquilidade que buscam, sem perigo de
sempre, quer acedamos quer não», alertava sentirem as baionetas nipónicas nas costas!»
o gerente do BNU. «Se anuirmos, será feito Mas se não se sentiam as armas japonesas,
pelos chinas, que não deixarão passar os ví- nem por isso se notava a sua ausência. Todas
veres necessários ao sustento da população. as entradas e saídas eram vigiadas pelos ni-
Se não acedermos, far-no-lo-ão os japoneses, pónicos, que, além de impedirem os pescado-
como já disseram, desembarcando aqui perto, res chineses de saírem para o mar, taxavam
cercando-nos, portanto, por terra e por mar. pesadamente os bens que chegavam a Macau.
Melindrosa e difícil se nos afigura a situação Para obter bens essenciais, o governo de
por qualquer lado que a encaremos.» Macau chegou a vender aos japoneses peças
de aviões, barcos, ferro e armas, incluindo os
‘Dividiremos o que tivermos’ históricos canhões que defenderam o terri-
O tempo não demorou a dar razão a Carlos tório do alto das fortalezas.
Eugénio de Vasconcelos. Com a ocupação de Os alimentos eram racionados e havia for-
Hong Kong, no final de 1941, agravou-se o tes restrições ao consumo de água e energia.
isolamento de Macau, uma vez que os canais Especulava-se. Antes da guerra, o arroz, base
de navegação, as ligações terrestres e as co- da alimentação da população chinesa, custava
municações ficavam nas mãos dos japoneses. oito patacas por pico (cerca de 60 kg); em
Com o êxodo dos refugiados de Hong Kong 1943, o preço atingia 320 patacas. «O merca-
e de chineses, de súbito, a população de Ma- do negro medrava à grande», conta Manuel vido ao bloqueio, «os alimentos deixaram de
cau cresce de 250 mil para 450 mil pessoas. Teixeira, padre que viveu este período e foi o chegar a Macau» e «o arroz (...) quase desa-
«Os juncos, em viagens constantes, levavam primeiro a publicar, em 1981, o testemunho pareceu das lojas». Na falta de vinho, conta
para a nossa colónia, todos os dias, milhares em livro, Macau Durante a Guerra. Barros, muitas pessoas começaram a beber
e milhares de chineses que fugiam ao invasor Leonel Barros, macaense que também vi- aguardente chinesa, com um nível de álcool
– alguns com haveres, mas a maior parte, a veu os tempos do conflito, regista nas suas superior a 95 por cento. «Em pouco tempo,
quase totalidade, sem quaisquer recursos», Memórias do Oriente em Guerra como, de- os consumidores deste vinho tornavam-se
contaria, numa entrevista ao jornal O Século, cegos.» O desespero alastrava e «as famílias
em 1946, Gabriel Teixeira, o governador com mais carenciadas viam-se obrigadas a vender
que Macau atravessou a Guerra do Pacífico. os seus filhos e filhas para sobreviver».
Para albergar os refugiados, tudo servia: Entre os refugiados havia mais de 20 mil
armazéns, escolas, teatros, bibliotecas. Até crianças. Quatro mil eram ou ficaram órfãs.
um barco foi convertido em asilo. No geral, «Nos asilos, onde as internámos, era horrível,
as condições eram más ou, simplesmente, emocionante, trágico, o espetáculo que essas
inexistentes. Não havia cozinhas, sanitários, crianças ofereciam», recordou o ex-governa-
ventilação, iluminação, água quente. Entre dor Gabriel Teixeira. «Nem um movimento,
a população que se acanhava na cidade com nem um arremedo de alegria. A fome cravara
a maior densidade populacional do mundo, as suas garras nos pequenos seres.» Só meta-
grassavam doenças como a malária e a cólera.
'Pairava uma atmosfera de sobreviveu a este negro período.
O Hospital de São Januário não chegava para de espionagem e Segundo Gabriel Teixeira, no primeiro
os doentes que precisavam de tratamento, ano da guerra morreram 27 mil pessoas em
nem o pessoal médico, nem os fármacos.
contraespionagem', Macau. Na década anterior, a mortalidade
O principal problema, contudo, era a ali- escreve o cônsul John tinha oscilado entre as 3 mil e as 4 mil anuais.
mentação. Ou a sua falta. «A ocupação de Naquele fatídico ano, mais de 3 mil por mês
Hong Kong afetava profundamente o proble-
P. Reeves no livro sucumbiam à miséria. Os mortos eram tantos
ma da alimentação normal dos habitantes, The Lone Flag que era preciso abrir valas comuns.
46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Exercícios militares
A guerra foi aproveitada pelas
autoridades portuguesas de
Macau para renovarem a antiga
pretensão de soberania sobre
as vizinhas ilhas da Lapa,
da Montanha e de D. João
Sorte de uns
Fazendo jus à essência paradoxal de uma
cidade nascida nas margens, entre dois im-
périos, em Macau as histórias de horror e
miséria conviviam com o que pareciam au-
tênticos contos de fadas.
Na sua neutralidade comprometida que
VISÃO H I S T Ó R I A 47
GUERRA DO PACÍFICO // MACAU
Natal de 1941
A família Andrade
e Silva em Macau,
quando a vizinha
Hong Kong era
atacada e ocupada
pelos japoneses
da ‘avó espiã’
De uma família portuguesa que viveu em Macau durante
Também Estive em Macau Durante a Guerra
é a extensão do livro do marido, António An-
drade e Silva, Eu Estive em Macau Durante
a Guerra, editado em 1991 pela mão do filho
(pai de Sofia), também cerca de três décadas
a Guerra do Pacífico saíram dois livros de memórias após a morte do autor, que foi o Capitão dos
publicados sobre este conturbado período Portos de Macau naquela tempestuosa época.
por Hugo Pinto Mas se o relato de António Andrade e
Silva, feito ainda na ditadura salazarista, se
‘N
inguém pode dizer com verdade diz Maria Clementina, «e que combinei com pautava pelo cuidado em evitar melindres
que conhece alguém. No fundo o meu marido banir para sempre da nossa – passando por cima de certas ocorrências
de cada um há recantos insus- memória». Durante muito tempo, assim e alterando nomes de algumas personali-
peitados. (...) Convive-se anos e foi. «Nunca mais falámos desses assuntos. dades –, já a versão de Maria Clementina,
anos com alguém e há sempre Era como se nunca tivessem existido. De escrita pouco depois do 25 de Abril de 1974,
coisas que ficam lá dentro, tal- começo, por prudência. Era assunto tabu. é «movida pelo irreprimível desejo de com-
vez esquecidas, talvez escondidas. Nem nós Enterrámo-lo, bem fundo, no nosso ínti- pletar a obra inacabada do marido há muito
próprios sabemos do que somos capazes.» mo.» Lá ficou, mas não para sempre. desaparecido, sem receio de ver o seu escrito
É assim que Maria Clementina de An- Quase três décadas depois dos aconte- censurado ou de ferir a suscetibilidade fosse
drade e Silva começa o relato das suas me- cimentos que viveu numa Macau sitiada de quem fosse», como observa Ricardo Pinto
mórias sobre os cinco anos que passou em pela guerra, «a avó fechou-se num quarto na nota de editor do livro.
Macau, de 1941 a 1946, escrito três décadas durante três dias», conta à VISÃO História «Provavelmente, o meu avô foi escreven-
depois de o marido ter igualmente registado Sofia Norton, neta de Maria Clementina. do com cuidados que a minha avó não teve»,
o seu testemunho. Um período repleto de «Quando saiu, disse: ‘Está aqui. Uma his- admite Sofia Norton, destacando o «registo
«factos que não podia contar a ninguém», tória que nunca contei’». mais direto» que atravessa a narrativa da
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Testemunhos do
avó. Mais desprendida, Maria Clementina inferno O livro de Maria
não se contém nas descrições e impres- Clementina completa
sões que aponta sem pruridos, em nítido o relato do falecido
contraste também com a realidade que vai marido, publicado ainda
antes do 25 de Abril e,
expondo numa Macau onde chegou em 1941 portanto, condicionado
acompanhada do marido e dos dois filhos pela censura da ditadura
menores, já a guerra estava em curso. «A
nossa vida era um constante receio depois
de os japoneses tomarem Hong Kong»,
confidencia Maria Clementina. «Conta-
vam-se factos horríveis passados por lá.
Abusavam das mulheres à vista dos pais e
dos maridos, a quem amarravam primeiro. Eram dúvidas justificadas face à proximi- da polícia, pois essas extremidades de mem-
Puro sadismo, de enlouquecer.» dade do perigo e da morte, como quando o bros «estavam a aparecer pelas sarjetas».
filho do casal foi apanhado num raide que a
O ‘Estoril’ dos japoneses aviação americana fez sobre Macau para des- Lutas de ‘gangsters’
Macau não estava ocupada porque os japo- truir os depósitos de combustíveis utilizados Depois, havia também os gangsters que se
neses «não quiseram», mas sentia-se igual- pelos japoneses. «Esteve debaixo de fogo dos matavam nas ruas «com precisão diabólica» –
mente o jugo nipónico: «Faziam tudo o que aviões», lembra Sofia sobre o pai. «Dizia que tiros nas costas direitos ao coração. «Ninguém
queriam e davam as suas ordens.» Num clima nunca correu tanto na vida.» parava quando o homem caía. Ninguém via,
de «quase terror», a então colónia portugue- O modo de torrente com que as memórias de ninguém ouvia. Todos seguiam com as suas
sa «estava cheia de japoneses, arrogantes e Maria Clementina foram vertidas para o papel vidas, como se uma lata, e não um homem,
dominadores. No momento em que quises- sente-se igualmente no ritmo intenso a que os tivesse caído ao chão.»
sem tomar-nos, seria fácil, mas Macau era o acontecimentos, personagens e sensações se Se o mal e a miséria se faziam corriqueiros,
Estoril deles», comenta Maria Clementina. sucedem. De um episódio sobre problemas de o que antes era comum tornava-se excecional.
Com a guerra em pano de fundo, o livro tradução a propósito de umas blusas no alfaia- Como uma dona de casa convertida em agente
serve também de retrato de uma vida co- te, por exemplo, passa-se para as perturbantes secreta. Foi o que aconteceu com Maria Cle-
lonial marcada por intrigas palacianas (o descrições sobre a fome e a galeria de misérias mentina, quando o governador de Macau pe-
governador, Gabriel Teixeira, é apresentado humanas patente na cidade, como as pessoas diu ao Capitão dos Portos que falasse à esposa
como «um vendido, tal como o seu secretário que iam à procura de alimentos mal digeridos de uma missão delicada: estabelecer contacto
e o comandante da polícia», que «faziam nas fezes largadas nos esgotos. com os chineses fornecedores de arroz, pois os
tudo por dinheiro»), relações complexas entre Um dos casos mais impressionantes é o de japoneses ameaçavam cortar o abastecimento
classes e etnias, costumes e culturas que se uma rapariga «apavorada» que revelou à po- deixando a população sem o seu alimento
intrometiam nas relações humanas e sociais lícia ter fugido de uma casa na qual as autori- essencial. A ideia era aproveitar o facto de
como diferenças irreconciliáveis. dades encontraram caldeirões onde «crianças uma figura importante entre os japoneses,
Há ainda uma dimensão íntima. com as estavam sendo cozinhadas». Segundo Maria Hashimoto, ter um fraquinho por Clementina
angústias de Maria Clementina a assumirem Clementina, «só não aproveitavam os pés e as e não lhe fazer mal se ela fosse apanhada.
primeiro plano: não apenas em relação à mãos», o que vinha a confirmar as suspeitas As descrições destes episódios são talvez os
guerra e suas devastadoras consequências, melhores momentos do livro e fazem de Maria
mas também sobre o papel de mãe e esposa. Clementina a protagonista de cenas dignas de
«Os pequenos cresciam num ambiente de thriller. Surpreendentes, sobretudo, para a
insegurança e fazíamos tudo para os fazer família, que só ficou a saber destas histórias,
desembaraçados, sem pieguices. Sabíamos segundo Sofia Norton, depois de a avó ter
perfeitamente que, de um momento para
Uma rapariga fugiu escrito o livro. «Passámos a chamar-lhe, entre
o outro, poderiam matar-nos e eles teriam de uma casa onde eram nós, ‘a avó espiã’», afirma a neta, reconhecendo
de saber desembaraçar-se sozinhos. Doía- «a emoção de pensar como a avó conseguiu
-me a alma vê-los tão afetuosos e ter de os
cozinhadas crianças, transmitir as mensagens» que terão salvo
endurecer, para bem deles. Se a Miuska me cujos pés e mãos, Macau de situações ainda mais dramáticas.
vinha abraçar e beijar, eu afastava-a», con- Era inevitável, diz Sofia Norton, que as his-
fessa Maria Clementina, questionando que
não «aproveitados», tórias da guerra em Macau tivessem acompa-
tipo de pessoas estaria a criar. apareciam nas sarjetas nhado a família «sempre, até hoje».
VISÃO H I S T Ó R I A 49
GUERRA DO PACÍFICO // TIMOR
A guerra passou
de ideologia anarquista ou comunista. Com o
tempo foram-se integrando e criando raízes,
mergulhados nas suas profissões ou gerindo a
por Timor
mão-de-obra timorense que era forçada a tra-
balhar em obras públicas, contacto estreito de
que surgiram matrimónios e famílias de que
era preciso cuidar, realidades que deixavam
A ocupada e martirizada ilha foi o único território ficar para trás uma juventude revolucionária.
sob administração portuguesa a ter estado diretamente Apesar da sua fama, Timor não era ape-
envolvido na Segunda Guerra Mundial. Lances nas uma colónia penal ou um depósito para
funcionários ostracizados. Embora estando
dramáticos de uma história pouco conhecida
longe de ser o destino desejado pela maioria
por Ricardo Silva dos europeus que lá viviam, nem todos esta-
E
vam em Timor por decreto ou por falta de
ra a colónia mais distante e exótica e, acima de tudo, a pátria de um povo que alternativa: alguns foram por opção. O juiz
do vasto império português, um vivia do que a terra lhe dava, obstinado em José dos Santos escolheu a comarca de Díli
posto onde os militares contavam manter costumes e tradições que a passagem após ouvir histórias sobre a ilha e sentir-se
os dias até voltar à metrópole, uma do tempo não fazia desaparecer. tentado a embarcar numa viagem para um
colocação para funcionários que há Timor também era uma prisão sem muros mundo tão diferente do seu. Com ele seguiram
muito tinham deixado de contá-los. para um elevado número de deportados «so- a mulher e a filha mais nova, enquanto os dois
Durante séculos, o Timor Português (hoje ciais», homens condenados pelo crime de lu- filhos mais velhos ficaram em Portugal por
Timor-Leste) foi destino de missionários tar pela liberdade quando esta era ameaçada. não haver liceu em Díli, e foi por essa razão
em busca de almas para evangelizar e sal- Começaram a chegar durante a Monarquia que João e José Afonso dos Santos, o futuro
var, além de purgatório para as «almas per- Constitucional, ainda que a maioria tenha vin- cantor Zeca Afonso, escaparam ao terrível
didas» de Portugal, degredados por crimes do em 1927 e 1931, após serem esmagadas as cativeiro a que a sua família seria sujeita (ler
violentos com penas longas para cumprir e revoltas do Reviralho que combateram o golpe texto mais adiante, nesta revista).
poucas hipóteses de voltar. Era uma terra de militar que levaria ao Estado Novo. Eram
oportunidades para árabes e chineses que ali homens simples de convicções fortes, estuca- O fim da ilusão
montavam os seus pequenos comércios, para dores e marceneiros, pintores e serralheiros, Foi a um Timor ainda adormecido pelo iso-
negociantes em busca de sândalo e de café, uns «apenas» republicanos, outros (muitos) lamento que chegou a notícia de uma guerra
50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AUSTRALIAN WAR MEMORIAL/P01439.011
AUSTRALIAN WAR MEMORIAL/127991
Em ruínas Na zona costeira de Díli, dezenas de edifícios foram destruídos pelos bombardeamentos
distante na Europa. Corria o ano de 1939 e a tomar face à nova situação no terreno. parqueados em Penfui e abatendo outros dois
na China já se lutava há dois anos, mas tudo O avanço nipónico pelas Filipinas e pela Ma- no ar. Em fevereiro a situação era crítica, com
aquilo parecia ser um cenário longínquo que lásia era fulgurante e não tardaria muito até os japoneses a desembarcar em Samatra e
em nada alterava a rotina da colónia. Dois Timor ficar ao seu alcance. A importância da a ameaçar Java, levando os Aliados a enviar
anos mais tarde a guerra ficou mais próxima, ilha era óbvia, pois constituía a última barreira um comboio naval com o cruzador pesado
quando o Japão atacou Pearl Harbor, mas Por- de defesa da Austrália e os seus aeródromos USS Houston em vanguarda destinado a du-
tugal continuava a declarar a sua neutralidade eram fundamentais para manter a ligação com plicar a guarnição de Timor. Era demasiado
e o Hawai ficava a milhares de quilómetros. Java, que seria o último grande reduto dos alia- tarde: no dia 15, duas vagas de bombardeiros
A guerra em Timor só começa a ser uma dos nas Índias Orientais Holandesas (atual In- atacaram o comboio e forçaram-no a voltar
realidade a 17 de dezembro de 1941, quan- donésia). Razões mais do que suficientes para a Darwin, a base no norte da Austrália que
do uma força de australianos e holandeses a marinha japonesa aparecer na região. No servia de apoio a Timor.
vinda do Timor Holandês (Timor Ociden- dia 20 de janeiro de 1942, o submarino I-124
tal) atravessa a fronteira e ocupa posições tentou torpedear o petroleiro USS Trinity no A invasão japonesa
em Díli. A diminuta guarnição portuguesa, mar de Timor, mas acabou por ser perseguido No início de fevereiro, as ilhas Celebes e Mo-
composta por apenas duas companhias com e afundado por corvetas australianas. Seis dias lucas tombavam após um curto combate e
pouco equipamento, nada poderia fazer para mais tarde os temidos caças Zero fizeram a sua Timor apresentava-se como o próximo alvo.
se opor. Portugal reage como pode, esboçando primeira aparição, destruindo vários aviões Contudo, a marinha imperial do Japão es-
fortes protestos públicos e desenvolvendo
diligências diplomáticas com vista a alterar
a situação. A solução passava pelo envio de Mapa José Eduardo Silva
um contingente militar que garantisse aos Marques, ex-comandante
do posto de Hatu-Udo,
Aliados que Portugal teria condições para
e um oficial da 2/2ª
defender a sua colónia, mas as negociações
941943
Companhia Independente
eram feitas via Reino Unido, devido à ausência australiana, que combateu
AUSTRALIAN WAR MEMORIAL/3
VISÃO H I S T Ó R I A 51
GUERRA DO PACÍFICO // TIMOR
52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AUSTRALIAN WAR MEMORIAL/119618
Bandeira lusa Aspeto da receção popular à comitiva australiana enviada a Díli, a 24 setembro de 1945
selha» o governo português a mandar os seus postos de concelho e ao administrador de a ameaça de represálias. Os que se recusavam
navios de volta e a Salazar não resta outra Aileu que fizessem voltar a Díli as prostitutas colaborar ou tentavam protegê-las eram exe-
opção exceto acatar o «conselho». que tinham fugido para o interior. A con- cutados para servir de exemplo.
troversa decisão não agradou a muita gente, A preferência dos japoneses recaía sobre
Vida sob ocupação mas durante algum tempo a situação parecia mulheres extremamente jovens, adolescentes
A fama dos soldados japoneses levou uma ter acalmado e aos poucos voltava-se a uma e até crianças, de preferência virgens, que
boa parte da população de Díli a abandonar normalidade aparente. Foi sol de pouca dura, eram levadas das suas aldeias para bordéis
a cidade e procurar refúgio em Aileu, Ermera já que decorridos alguns meses os japoneses improvisados nas cidades, onde eram viola-
e Liquiçá. Era um temor plenamente justifi- pediram mais mulheres, mas desta vez as das e forçadas a aceitar a sua nova vida de
cado. Várias mulheres chinesas e timorenses autoridades portuguesas não colaboraram e escravas sexuais. Inês de Jesus foi uma delas.
foram violadas por soldados nipónicos que os militares tomaram o assunto nas suas mãos. Sequestrada pelos japoneses em Bobonaro,
vagueavam pela cidade, e a impunidade foi Destacamentos de soldados foram enviados a sua experiência reflete a realidade sofrida
total, ou quase. Numa situação que chegou às aldeias para parlamentar com os chefes, a por inúmeras timorenses às mãos do exército
ao conhecimento do governador refere-se quem ordenavam a entrega de mulheres sob japonês: «Eu ainda era uma criança naquele
o seguinte: «Dois soldados japoneses ten- tempo e os meus seios ainda não se tinham
taram abusar de duas mestiças, filhas de desenvolvido, mas à noite, entre quatro e
um velho colono, mas não o chegaram a oito soldados vinham por turnos ao meu
fazer, pois foram ambos mortos, um por quarto. Eu tinha de fornecer sexo a todos.
um irmão das raparigas e o outro por um Depois disso eu não conseguia sequer ficar
criado indígena. E o castigo foi aplicado de pé, muito menos trabalhar. Só conseguia
com tal limpeza que nunca mais apareceram dormir como se estivesse morta.»
nem os corpos dos soldados nem as armas,
as bicicletas em que iam ou qualquer coisa Os Aliados contra-atacaram, A resistência
que lhes pertencesse, apesar de os japoneses Apesar da facilidade com que os japoneses
terem procurado, por toda a parte e durante
mas bastaram alguns dias ocuparam Timor, controlar o interior da ilha
muitos dias, encontrar qualquer rasto dos para os japoneses dominarem revelou-se uma tarefa inesperadamente dura
dois soldados desaparecidos.» quando as forças australianas sobreviventes
Temendo pelo futuro das mulheres euro-
os aeródromos se refugiaram nas montanhas e deram início
peias, o governador ordenou aos chefes dos e as cidades de Timor a uma guerra de guerrilha. Uma série de
VISÃO H I S T Ó R I A 53
GUERRA DO PACÍFICO // TIMOR
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
AANTT
Refugiados A 15 de fevereiro de 1946, desembarcaram em Lisboa 685 passageiros vindos de Timor no navio Angola.
Mais de 170 homens, mulheres e crianças, algumas delas órfãs, foram acolhidas na antiga FNAT (hoje INATEL) da Costa da Caparica
A 7 de agosto de 1942, os norte-americanos ção aliada. A 2 de novembro, bombardeiros implacável. A 7 de dezembro de 1944, um
desembarcaram em Guadalcanal e iniciaram B-26 atacam posições em Díli, repetindo a comboio com dois mercantes escoltados por
uma brutal campanha que alterou por com- missão no dia seguinte. Em janeiro de 1943, um pequeno navio de patrulha parte de Sura-
pleto a estratégia japonesa. A expansão tinha é a vez de os quadrimotores B-24 fazerem baia, na ilha de Java, com destino a Lautém.
chegado ao fim e a prioridade era defender o a sua aparição sobre Díli. Três meses mais Na semana seguinte navegava ao largo de
território conquistado. Timor era a primeira tarde, Vila Salazar é atacada e não haveria Timor, quando foi atacado por bombardeiros
linha de defesa das Índias Orientais Holande- mais descanso para os japoneses, que olhavam B-25 tripulados por holandeses que deixaram
sas de onde obtinham o petróleo fundamental para o céu com temor crescente. o Genmei Maru em chamas e à deriva. Dois
para se manterem na guerra, e por isso era dias mais tarde é a vez do Wakatsu Maru
fundamental eliminar a guerrilha australiana Sob as bombas dos Aliados explodir após ser alvo de Beaufighters aus-
e reforçar as defesas na ilha. A guerra também se fazia no mar, com os tralianos e o comboio desintegrar-se-á. Cada
Para cumprir essa missão foi decidido en- aviões e os submarinos a atacarem de forma vez mais isolada, em 1945 a força japonesa
viar a 48ª divisão, e no dia 5 de setembro o em Timor já não constituía qualquer peri-
47º Regimento do Exército Imperial desem- go para a Austrália. A aviação dos Aliados
barcou em Díli. Também conhecido como o atacava com relativa impunidade, e com a
Regimento Oita, era uma unidade com um rendição nipónica chegou finalmente a força
longo e controverso currículo militar que in- portuguesa que aguardava em Moçambique
cluía a participação na conquista de Nanquim, pela oportunidade de reclamar a soberania
cidade chinesa que se tornaria palco de um portuguesa de Timor Oriental. Terminava
dos maiores crimes contra a humanidade nos a guerra com um pesado tributo do povo
anos 1930. Confrontados com a chegada de timorense: entre 40 e 70 mil tinham per-
reforços e com uma renovada ofensiva das dido a vida, representando mais de 10% da
colunas negras, a maioria dos guerrilheiros Os japoneses fomentaram população. Infelizmente, não tinha sido a
australianos foi forçada a retirar e os portu- última invasão que aquele povo mártir teria
gueses acabaram por ser concentrados num
a rebelião dos timorenses de sofrer no século XX, uma vez que décadas
campo cercado de arame farpado, em Liquiçá. contra «o homem branco», mais tarde um novo invasor, a Indonésia, ocu-
Mas isso não significou o fim dos combates paria Timor-Leste com um rol de massacres
em Timor. Doravante a pressão seria mantida
aliciando-os a lutar contra e opressão que só terminaria em 2002, com
com bombardeamentos constantes pela avia- os portugueses a independência do país.
VISÃO H I S T Ó R I A 55
GUERRA DO PACÍFICO // TIMOR
ARQUIVO DE MARIA AFONSO DOS SANTOS
LUÍS BARRA
Ermera, 1939 Mariazinha (montada no cavalo Liquiçá) com os pais, na casa de férias,
antes da invasão japonesa
S
obre os prisioneiros «pairava a som- Mundial. Pior augúrio era impossível. Mas o renço Marques (hoje Maputo). É aqui que
bra de um simples cabo, um mise- magistrado nunca terá imaginado que viveria, concorre a juiz, sendo aprovado para as fun-
rável de nome Kato, um bandido com a mulher e a filha, entre novembro de ções. E, das comarcas disponíveis, escolheu
de face quadrada e sorriso bestial, 1942 e agosto de 1945, o inferno de um campo Díli, pela curiosidade que aquelas paragens
que foi, por anos, o nosso carrasco de concentração japonês. Mas sobreviveram lhe suscitavam. Mas até um incréu diria que
e não faria má figura em Dachau». e o juiz deixou o memorial a que pertencem essa foi uma hora do Diabo. A ida para Díli
Todos os requintes lhe serviam «para torturar excertos atrás transcritos. obrigava a uma separação da família, que sem-
os portugueses e os levar lentamente à (…) Licenciado em Direito, José Nepomuceno pre acompanhara o patriarca nas andanças
morte». Chegava a pendurar prisioneiros du- seguiu a carreira judicial ultramarina. A uma africanas. Tristes e chorosos, João, 11 anos,
rante horas «por uma corda apenas atada aos progressão mais rápida aliava-se o espírito de e Zeca, 9, partiram de Lourenço Marques,
polegares!» O juiz José Nepomuceno Afonso aventura do pai de João, Zeca (Afonso, esse a 12 de julho de 1939, no vapor João Belo, a
dos Santos, a mulher, Maria das Dores, ambos mesmo, o cantor e compositor que se tornaria caminho da metrópole e ao encontro, respe-
com 38 anos, e a filha do casal, Mariazinha, um ícone da música popular portuguesa) e de tivamente, da beata Avrilete (em Coimbra) e
com 7, desembarcaram no porto de Díli a Mariazinha. Como delegado do procurador da do salazarista João Filomeno (em Belmonte),
1 de setembro de 1939, o dia em que a Alema- República, fez comissões de seis anos (1930-36) tios paternos, enquanto o pai, a mãe e a irmã
nha invadiu a Polónia e começou a II Guerra em Angola e de dois anos (1937-39) em Lou- viajavam para o longínquo Timor.
56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ARQUIVO DE MARIA AFONSO DOS SANTOS
Recordações Mariazinha na
atualidade, a casa onde viviam
no campo de concentração e os
salvo-condutos de pai, mãe e filha
O afável ‘japonês alto’ debandada geral e caótica dos habitantes para uma Lewis e 48 Kropatchek, com 7200 car-
Na irrequietude dos seus 7 anos, Mariazinha as montanhas, sabedores de que não haveria tuchos demasiado velhos.
depressa se adaptou ao novo poiso familiar. resistência dos militares da colónia, pouco Mas quando japoneses se preparavam para
E ficaria maravilhada com o cavalo que o ad- mais de 200 homens, quase todos indígenas saquear a casa de José Nepomuceno e da fa-
ministrador de Díli, Sousa Santos, lhe ofereceu. armados com duas metralhadoras Vickers, mília, em Lahane, a três quilómetros de Díli,
«Até ia nele para a escola», conta hoje, aos 89 surgiu um oficial que acalmou os subordina-
anos. E em Ermera, na montanha, na casa de dos e lhes deu ordem para se dispersarem. Ma-
férias do juiz, acompanhava os pais em passeios O comerciante riazinha reconheceu naquele oficial o mesmo
a cavalo. Mas o nome do equídeo era já uma iro- «japonês alto» que, com simpatia, a abordara
nia do destino infernal que aguardava a família
José Paulo Nogueira antes da invasão «numa festa na Sociedade
e centenas de portugueses: chamava-se Liquiçá. foi o primeiro a morrer Agrícola Pátria e Trabalho [SAPT]» e que,
Aos primeiros minutos de 20 de fevereiro depois, lhe oferecera uma boneca que passou a
de 1942, os japoneses desembarcaram em
de fome no campo de adorar. Para perceber a transformação do afá-
Díli, que saquearam sem piedade. Houve uma concentração de Liquiçá vel «japonês alto» civil em oficial do exército
invasor há que recorrer ao livro Funo – Guerra
em Timor, de Carlos Cal Brandão, publicado
em 1946. Militante antifascista, Cal Brandão
foi deportado para aquela colónia no início dos
ARQUIVO DE MARIA AFONSO DOS SANTOS
VISÃO H I S T Ó R I A 57
GUERRA DO PACÍFICO // TIMOR
Governador às aranhas
É naquele cenário que, a 17 de dezembro de
1941, tropas australianas e holandesas desem-
barcam em Díli, sem resistência portuguesa.
Os dois comandantes, australiano e holandês,
ANTT
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Cais de Alcântara,
15 de fevereiro de 1946
Uma multidão acolhe
os regressados de Timor
no navio Angola
Avô-herói
terior, estavam em Timor. João e Zeca logo
encontraram os nomes do pai, da mãe e da
irmã. Mas essa era uma prova de vida falível.
No seu memorial, José Nepomuceno relata
que esses foram os piores tempos vividos em A aventura de José Miranda Relvas evocada
Liquiçá: «Em setembro-outubro de 1944,
os japoneses cortaram-nos completamente
pelo neto, o ex-ministro Miguel Relvas
os víveres.» Os prisioneiros passaram então Em 2012, aproveitando uma visita ofi- e foi colocado no serviço civil (embora
meses sustentados apenas por 200 g de «ar- cial a Timor-Leste, o então ministro dos continuasse a ser militar), como chefe
roz infecto», cozido em água e sal, por dia e Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, de posto. Na primeira licença graciosa na
por cabeça. «Comiam-se pontas de abóbora, saiu uma vez às 4 da manhã do hotel em metrópole, casou-se na terra natal, Por-
folhas de papaeira, ervas que brotavam no Díli para percorrer 30 quilómetros em talegre, com a conterrânea Maria Inês.
campo quando adregava chover, e certa fo- duas horas. Destino: Maubara, onde o avô O casal teria quatro filhos, três dos quais
lha, a ‘couve maluca’, um vegetal tóxico que paterno, José Miranda Relvas, segundo (entre eles João, pai de Miguel Relvas)
faz adormecer.» Os japoneses, conclui o juiz, sargento e administrador da zona, sobre- nascidos em Díli.
«queriam exterminar-nos». vivera a quase três anos de prisão num Quando eclodiu a guerra, em 1939, a
Quando, a 6 e 9 de agosto de 1945, caíram campo de concentração japonês, entre família acolheu-se a Portalegre e José
as bombas atómicas sobre Hiroshima e Na- novembro de 1942 e agosto de 1945. Em- ficou sozinho em Timor. E, quando o Ja-
gasaki (a 2 de setembro o Japão rendeu-se), bora a paisagem fosse vazia e desoladora pão invadiu a colónia, ao ver que o go-
os prisioneiros portugueses, já transferidos (mais de uma dezena de pequenas casas vernador permanecia no território, ele
para Lebo-Meo, na montanha, deixaram de de cimento abandonadas, excetuando decidiu também ficar, embora pudesse
ver militares invasores. Foi ali que receberam a duas, habitadas por famílias timorenses), ter fugido para a Austrália, como muitos
notícia do fim da guerra, com a devida euforia. Miguel Relvas diz que se emocionou ao portugueses. Nove meses depois, entrava
Balanço oficial: cerca de 90 portugueses recordar aquele avô que, desde a infância, no campo de concentração de Maubara.
perderam a vida. As vítimas nativas seriam viu como «uma pessoa austera e asceta». A 15 de fevereiro de 1946, no cais de
ignoradas, mas estimam-se entre 40 mil e José Miranda Relvas «liderava» os Alcântara, em Lisboa, Maria Inês e os
50 mil, perto de 10% da população. A 15 de presos de Maubara, procurando que os filhos viram sair do navio Angola um José
fevereiro de 1946, João, 18 anos, e Zeca, 16, japoneses lhes dessem mais do que «ape- Miranda Relvas irreconhecível – antes
ambos de capa e batina, estavam no cais de nas uma tigela de arroz para três dias». algo obeso, apresentava-se magríssimo.
Alcântara, em Lisboa, à espera que o navio Em 1917, quando os soldados do Corpo Trazia, embrulhada, uma bandeira na-
Angola atracasse. Encontrariam o pai envelhe- Expedicionário Português se aprestavam cional com buracos de balas (em 1996,
cido e muito magro, «mas não alquebrado», a partir para França, com a ilusão de a família doou-a à Sociedade Histórica
recordará João, a mãe doente (foi logo inter- que ainda conheceriam Paris antes de da Independência de Portugal). Refor-
nada numa clínica) e Mariazinha, com quase seguirem para as trincheiras da Grande mou-se logo depois, com promoção a
14 anos, «feita uma adolescente espigada». Guerra, José Miranda Relvas dera logo alferes, mas o casal receberia uma má
José Nepomuceno ainda teria de contestar um passo em frente quando o exército fez notícia do Ministério das Colónias: como
um insólito processo disciplinar que lhe foi saber que era preciso enviar um sargento o marido, afinal, estava vivo, Maria Inês
instaurado, por «abandono de posto», obvia- para o longínquo território de Timor, com tinha de devolver na totalidade a pensão
mente arquivado. E conseguiu que a comissão a tarefa de dominar conflitos tribais na mensal de subsistência que lhe fora paga
de serviço seguinte fosse na aprazível cidade fronteira com o Timor Holandês. Ao che- quando o destino de José Miranda Relvas
moçambicana de Inhambane. gar, os problemas haviam já terminado era uma incógnita.
VISÃO H I S T Ó R I A 59
GUERRA DO PACÍFICO // PORTUGAL
ANTT
Salazar com o embaixador Campbell As relações luso-britânicas estiveram tremidas após o desembarque de forças dos Aliados em Timor
O
desembarque dos australianos e tal não lho permitiam as instruções recebidas. sobre assuntos graves que tem tratado com o
dos holandeses em Timor caiu Na comunicação para Lisboa, o capitão Ma- governo britânico».
como um raio na política de neu- nuel de Abreu Ferreira de Carvalho acrescenta Iniciava-se assim um período turbulento de
tralidade portuguesa no conflito não ser possível uma resistência armada. algumas semanas, ao longo do qual pairou a
mundial e abalou o relaciona- Segundo o diplomata Carlos Teixeira da possibilidade de Lisboa cortar relações com o
mento luso-britânico. Quando Motta, no seu livro O Caso de Timor na II seu secular aliado. Num exercício de funam-
Salazar recebe o embaixador sir Ronald Hugh Guerra Mundial, Salazar registou num apon- bulismo diplomático, Salazar salvaguardou,
Campbell ao fim da tarde do próprio dia 17 tamento «o modo incomodado e ansioso» porém, os equilíbrios mínimos exigidos pela
de dezembro de 1941, «calmamente mas com como o embaixador apresentava desculpas política de neutralidade.
reprimida emoção» (palavras do diplomata), da precipitação que teria havido. E é «seca-
informa-o de que o governador de Timor, mente» que replica que o governo português A velha aliança treme
confrontado com o ultimato para autorizar o desejava «ser tratado com a seriedade que Desde os últimos meses de 1940 que a pres-
desembarque das forças aliadas, responde que punha em todas as negociações e conversações são nipónica em torno de Timor se vinha
60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
manifestando de forma crescente. suponho antes que foi também vítima
A colónia portuguesa é vista pelos dele, o que não quer dizer que agora
Aliados como a porta de entrada na não procure cobrir inteiramente as
Austrália, de cuja costa dista pouco responsabilidades locais.»
mais de 700 quilómetros. O tom das Necessidades é di-
A pedido de Camberra, Londres ela- ferente. Teixeira de Sampaio, faz
bora um relatório sobre Timor. A 4 de ARMINDO MONTEIRO notar a Campbell que «o ultimato
novembro de 1941, o ministro dos Es- O embaixador britânico de 1890 ainda não tinha
trangeiros inglês convoca o embaixador português em Londres sido esquecido». O embaixador ad-
Armindo Monteiro para lhe pedir escla- temia uma intervenção mite que, «se não se encontrar uma
da Austrália e dos
recimentos sobre a atitude de Lisboa Países Baixos sem ser ponte, o dr. Salazar pode ir até ao limite
em caso de ataque japonês à ilha. Quer sob o «chapéu» do do corte de relações connosco».
TEIXEIRA DE SAMPAIO
saber se se encararia a possibilidade de Reino Unido
O secretário-geral do Referindo-se ao embaixador Cam-
auxílio externo. MNE acentuou que só pbell, Carlos Teixeira da Motta fala
No início de dezembro, Salazar dá o seu seria pedido auxílio do «receio quase patológico de que dá
acordo a conversações de âmbito militar em aos Aliados em caso provas na sua correspondência para
de ataque efetivo
Singapura com ingleses e australianos sobre à colónia, e nunca Londres, do que supõe ser o espírito
Timor. Em Londres, o embaixador português preventivamente extremamente ardiloso do dr. Salazar».
e sir Ormet Sargent, subsecretário adjunto Tóquio, por sua vez, garante «a inal-
dos Negócios Estrangeiros, concordam em para Londres, Campbell diz que Portugal terabilidade da sua política de colaboração
que seria o Reino Unido a oferecer o auxílio, «tem muito receio» de ser envolvido numa com Portugal». Esperava, no entanto, que o
no entendimento de que esse auxílio seria guerra com a Alemanha e a Itália. Um receio governo português conseguisse a retirada das
efetuado por tropas australianas e holandeses. partilhado: «As potências do Eixo estão a tropas aliadas. Se assim não fosse, «ver-se-ia
Armindo Monteiro diz para Lisboa: «Con- olhar para o dr. Salazar como um gato olha obrigado a destruí-las».
fesso que me aterrava a ideia de ver holandeses para um rato, pronto a saltar se ele dá um
ou australianos, como tais, defender Timor, passo em falso.» Ataque japonês
quer a nosso pedido quer como aceitação de Num despacho de 18 de dezembro, Armin- Em Londres, a crise é levada ao Gabinete de
simples oferta. Receei que nessas condições do Monteiro procura pôr água na fervura: Guerra na presença de Winston Churchill,
nunca mais de lá saíssem.» «Não creio que o Foreign Office tenha tido enquanto se prefigura o envio de tropas por-
Numa reunião com o embaixador
mbaixador Cam- conhecimento prévio do incidente de Timor; tuguesas para Timor e a saída das tropas
pbell, o secretário-geral doo MNE, Luís Tei- aliadas. Para o primeiro-ministro britânico,
xeira de Sampaio, comunica-lhe
a-lhe que o pedido porém, «os portugueses não têm capacidade
de auxílio só será concretizado
zado em caso de para proteger a sua neutralidade e Timor é
«ataque efetivo à nossa parterte da ilha», o que um ponto-chave». Sendo assim, a chegada
excluía qualquer ação preventiva,
ntiva, sendo estas de tropas lusas a Timor não implicaria de
as instruções a enviar ao governador
ernador de Timor. forma automática a retirada de australia-
O ataque japonês a Pearl earl Harbor, em nos e holandeses. No entanto, foi decidido
7 de dezembro, seguido da ocupação de optar pelo «logo se verá», não levantando
Hong-Kong, vai deixar os Aliados em aler- a questão com Lisboa.
ta vermelho. A 15, é detetada
ada a presença de É neste quadro que a força portuguesa
submarinos nipónicos em águas de Timor larga de Lourenço Marques (atual Maputo)
e, a 17, tropas australianas e holandesas in- a 22 de janeiro de 1942. Só que a situação vai
vadem o território, a pretextoxto da ameaça de sofrer uma rotação de 180 graus, quando, a
um ataque japonês. 19 de fevereiro, o dia previsto para a chegada
Para Carlos Teixeira da Motta subsistem
O embaixador destas tropas, uma força japonesa desem-
dúvidas sobre o papel britânico no processo: Morishima Morito barcou em Timor, tanto na parte portuguesa
«O pragmatismo do Foreign Office não se como na parte holandesa.
apercebe, ou não se quer aperceber, da dife-
publicou um livro O embaixador nipónico em Lisboa, Mo-
rença de uma agressão iminente e a suspeita em que se refere rishima Morito, comunica que as forças ja-
de uma ameaça de agressão; ou também vero- ponesas se viram obrigadas em sua própria
similmente está o Foreign Office convencido
à atividade por si defesa a expulsar as forças anglo-holandesas.
da real iminência do ataque.» Em telegrama desenvolvida em Lisboa Ao mesmo tempo, garante a integridade do
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GUERRA DO PACÍFICO // PORTUGAL
D.R
VISÃO H I S T Ó R I A 63
PORTA-AVIÕES
AO FUNDO!
Nos meados do século XX foi moda o jogo
da batalha naval. A grande inspiração
para este «pacífico» entretenimento
tinham sido os grandes recontros
aeronavais da Guerra do Pacífico
– que não foram brincadeira nenhuma
Por Luís Almeida Martins
O 'Yorktown'
sob fogo japonês
Lançado à água em abril de
1936, este grande porta-
-aviões americano, padrinho
da classe com o seu nome,
chegou ao fim dos seus dias
em junho de 1942, na batalha
de Midway. Na foto das
horas de agonia, tirada a três
quartos, não se avalia bem a
dimensão do navio
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VISÃO H I S T Ó R I A 65
GUERRA DO PACÍFICO // BATALHAS
N
a primavera de 1942, a expansão
japonesa atingira uma tal ampli-
tude que parecia que nada conse-
guiria travá-la. Depois do ataque
a Pearl Harbor, em dezembro de
1941, e das fulgurantes anexações
nipónicas à custa das possessões britânicas
e holandesas no Oriente, os Estados Unidos
da América estavam desmoralizados, e as
vozes que internamente tinham defendido a
política de isolacionismo passaram a criticar
entredentes a opção pela guerra determinada
pelo corte do fornecimento de petróleo ao
Japão, causa direta do ataque-surpresa à base
aeronaval do arquipélago de Hawai.
Em abril, os porta-aviões japoneses do al-
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não encorajar o inimigo quer para não des-
moralizar a opinião pública interna.
A batalha de Midway
Já a segunda grande batalha, a de Midway,
travada um mês depois da do Mar de Coral,
marcou uma reviravolta na Guerra do Pacífico
e ditou, a prazo, a derrota japonesa.
No fim de maio, uma armada nipónica de
duas centenas de navios, incluindo 11 cou-
raçados, oito porta-aviões, 22 cruzadores e
65 contratorpedeiros e mobilizando mais
de 700 aviões largou do Japão e das Maria-
nas rumo ao atol de Midway, importante
base de reabastecimento dos EUA e escala
dos voos intercontinentais dos Clippers da
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PanAmerica. Essa frota japonesa estava repar-
tida por uma força de combate, constituída
pelos porta-aviões de Nagumo; por uma força
'Raide de Doolittle’ Um B-25 levanta voo do Hornet, com bombas para lançar sobre Tóquio de ocupação colocada sob as ordens do vice-
-almirante Nobutaka Kondo; pela força das
no dia seguinte, demasiado tarde para atacar batalha do Mar de Coral pode considerar-se Aleutas comandada pelo vice-almirante Boshi-
a esquadra nipónica de escolta, mas mesmo nulo. O comboio de navios nipónicos que ro Hosogaya; e pela força principal às ordens
assim a tempo de bombardear os navios da rumava a Port Moresby teve de voltar para do comandante-chefe da marinha imperial,
marinha imperial do Mikado ancorados ao trás e o desembarque foi cancelado, mas em o almirante Isoroku Yamamoto em pessoa.
largo da ilha. No dia 7, uma força de invasão contrapartida as perdas americanas – so- O plano de Yamamoto era simples. A 3 de
proveniente de Rabaul foi assinalada quando bretudo o Lexington, que foi tão atingido junho, Hosogaya deveria operar uma diversão
singrava rumo a Port Moresby. Os aviões ameri- que teve de ser afundado por um destroyer para as bandas das ilhas Aleutas, enquanto
canos atacaram-na prontamente e afundaram – foram grandes, embora não tanto quando o resto da frota convergiria para Midway. No
o porta-aviões ligeiro Shoho. Por seu turno, os imaginavam os japoneses. Aliás, a perda do dia 4, os aviões de Nagumo bombardeariam
aparelhos japoneses que andavam à procura Lexington foi mantida em segredo, quer para o atol e no dia seguinte Kondo ocupá-lo-ia.
de porta-aviões americanos depararam com
o contratorpedeiro Sims e com o petroleiro
Neosho, que afundaram no mesmo dia.
Mas, nessa primeira abordagem, nenhu-
ma das partes em confronto deparou com
o grosso da esquadra inimiga. Foi só no
dia 8 que um aparelho americano avistou
a força principal nipónica, acabando por
ser seriamente danificado o porta-aviões
Shokaku. O seu navio irmão, o Zuikaku,
escapou incólume, mas perdeu um grande
número de aviões, o que lhe reduziu a efi-
cácia. Entretanto, as aeronaves japonesas
tinham também localizado a posição das
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VISÃO H I S T Ó R I A 67
GUERRA DO PACÍFICO // BATALHAS
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Destroço flutuante Um avião japonês abatido permanece à deriva enquanto se desenrola a batalha do Mar de Coral
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O 'Shoho' em chamas Foram explosões de torpedos que selaram o destino deste porta-aviões japonês, no mar de Coral
canos não podiam rivalizar em eficácia com os contratorpedeiros japoneses tiveram de lhe A força de diversão japonesa apoderara-se,
rápidos e extremamente manobráveis Zeros desferir o golpe de misericórdia. entretanto, de Attu, Kiska e Adak, nas Aleu-
nipónicos de escolta, acabando os bombardei- Dois dias depois, o Yorktonw, muito da- tas, mas o balanço final da grande batalha
ros japoneses por conseguir alcançar o atol de nificado mas ainda à tona e escoltado pelo de Midway foi o maior desastre da história
Midway e bombardeá-lo. Só por milagre as contratorpedeiro Hamman, foi afundado, jun- naval japonesa. Yamamoto perdeu os seus
instalações essenciais – pistas de aterragem, tamente com este, por um submarino japonês. quatro melhores porta-aviões, os seus pilotos
radar e rádio – não foram atingidas, mas os Ao cabo de três dias e três noites de rijo com- de elite, um cruzador pesado, uns 275 aviões
Zeros derrubaram a maior parte dos aviões bate, durante os quais perdeu os seus porta-a- e mais de 4800 homens. Mas, de acordo com
americanos antes que estes pudesse alvejar, viões, Yamamoto abandonou a luta, ordenando a mentalidade japonesa, o mais penoso para o
uma vez que fosse, os navios inimigos. que a esquadra nipónica desse meia volta. comandante foi ter perdido a face deixando-
No dia 4, de manhã, as esquadras inimi- -se derrotar por uma frota de muito menores
gas localizaram-se mutuamente e largaram dimensões.
os respetivos aviões. Os americanos fizeram Quanto aos EUA, tinham perdido o
descolar primeiro 41 torpedeiros, mas 35 Yorktown, o Hamman, 150 aviões e 307
deles foram abatidos sem que um só torpedo homens, mas mantinham a posse do estra-
atingisse o alvo. Estes aparelhos atraíram, tégico atol de Midway. A ameaça nipónica
contudo, os caças japoneses, deixando o ca- ia-se desvanecendo e dentro em pouco as
minho livre aos bombardeiros do Enterprise, forças dos EUA tomariam a iniciativa das
que puderam assim alcançar a esquadra con- operações.
trária e meter no fundo dois porta-aviões – o O caminho até à vitória final americana
Kaga e o Soryu – enquanto os do Yorktown
Em 1943 o Japão seria ainda longo e difícil de trilhar, mas era
tornavam pasto das chamas o porta-aviões estava já relegado à quase certo que ela seria alcançada graças à
almirante de Nagumo, o Akagi. O último dos superioridade material e – a partir da batalha
porta-aviões de Nagumo, o Hiryu, lançou por
defensiva face a um de Midway – moral dos EUA. Em 1943 o Japão
sua vez os seus aparelhos contra o Yorktown, inimigo superiormente ver-se-ia relegado à defensiva, atitude que, face
que foi atingido por bombas e torpedos. Mas a um inimigo superiormente equipado e com
uma pronta resposta dos aviões do Enter-
equipado e com reservas quase inesgotáveis, não poderia deixar
prise pôs o Hiryu em tão mau estado que os reservas inesgotáveis de significar derrota a prazo.
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GUERRA DO PACÍFICO // BATALHAS
As últimas cerejeiras
do ‘kamikaze’
Na fase final do conflito, o Japão fez descolar milhares
de aviões carregados de explosivos destinados
a despenharem-se sobre navios de guerra inimigos.
Alguns dos pilotos suicidas eram adolescentes
por João Pacheco
A
s cerejeiras próximas da base Divino, quando a situação do Japão na
aérea já tinham deixado cair guerra já era tão desesperada que a invasão
todas as flores, quando Hayashi do país parecia quase inevitável. «O nome
70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
A arma terrível A colisão de dois
kamikaze contra o porta-aviões
Bunker Hill, em 11 de maio de 1945,
foi a causa da morte de 391 homens
(ao lado). Em baixo: Um aparelho
Yokosuka usado nos voos sem
regressso e um piloto kamikaze
colocando na cabeça a faixa ritual
Uma missão sem sentido
Ao contrário do que a propaganda militar ja-
ponesa defendia durante a guerra, era comum
os pilotos kamikaze sentirem que não tinham
escolha. «Quando, em 1944, a operação foi lan-
çada, nem um só dos oficiais que tinham sido
formados nas academias militares se ofereceu
como voluntário para sair como piloto; todos
sabiam que era uma missão sem sentido que
terminava na morte», escreve Emiko Ohnuki-
-Tierney no livro Diário dos Kamikaze: refle-
xões dos soldados-cadetes japoneses (2008).
«Dos cerca de 4 mil pilotos tokkotai, perto de
3 mil eram os chamados pilotos adolescentes,
escolhidos de entre soldados recentemente
recrutados e alistados que eram inscritos num
programa especial destinado a dar formação
a rapazes muito novos. À volta de mil eram
‘soldados-cadetes’, estudantes universitários
que o governo diplomava rapidamente para
os integrar nas fileiras.»
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VISÃO H I S T Ó R I A 71
GUERRA DO PACÍFICO // BATALHAS
submarinos
Mais de 5 milhões de toneladas de navios japoneses foram
do Gudgeon, e com o passar dos dias outros
afundamentos começaram a dar o alerta ao
Império do Sol Nascente: os Estados Uni-
dos estavam a ripostar e os seus submarinos
neutralizadas. Ao contrário da luta dos U-Boote alemães eram uma ameaça a ter em conta, ainda que,
no Atlântico, a guerra dos submarinos americanos naqueles primeiros tempos, fossem muitos
e de países aliados no Pacífico foi bem sucedida os problemas que diminuíam a sua eficácia.
Q
uando, em 7 de dezembro de tava intacta e de os tanques de combustível Coragem e frustração
1941, o último avião japonês se permaneciam cheios. Foi um golpe de sorte Um bom exemplo das dificuldades iniciais
afastou de Pearl Harbor, os caças rapidamente aproveitado. Os submarinos ocorreu com o USS Seawolf, um submarino
e os bombardeiros norte-ameri- eram a arma ideal para contra-atacar o Japão, da Frota Asiática que partiu de Cavite, nas
canos eram piras fumegantes e a pois podiam deslocar-se para qualquer ponto Filipinas, com ordens para causar o máximo
outrora poderosa frota de coura- do seu vasto império e afundar os navios de danos às frotas nipónicas que invadiam
çados estava encalhada nas águas do porto. mercantes que transportavam o petróleo e este arquipélago. Comandado por Frederick
É certo que os porta-aviões tinham sobrevi- as matérias-primas cruciais para a economia Warder, conhecido como «Freddie Destemi-
vido, mas eram poucos, estavam dispersos, nipónica. Além disso, eram exímios a embos- do», largou da sua base e navegou para norte,
e afrontar a força Kido Butai – que agrupava car os navios de guerra japoneses e a alertar onde os soldados do general Homma estavam
os poderosos porta-aviões japoneses – teria a marinha norte-americana, evitando assim a desembarcar. Ao aproximar-se de Aparri
sido um suicídio. novas surpresas como a de Pearl Harbor. viu um contratorpedeiro japonês a proteger a
Porém, quando a situação acalmou, o co- Quatro dias após o ataque, o USS Gudgeon entrada do porto, sinal de que o ancoradouro
mando norte-americano apercebeu-se de que partiu de Pearl Harbor rumo ao Japão e em não estaria vazio. Recorrendo ao seu sangue
nenhum dos quatros submarinos que estavam finais de dezembro de 1941 já navegava ao frio e experiência, Warder conseguiu iludir
no porto tinha sido danificado, de que a base largo de Kyushu, a terceira maior ilha do o contratorpedeiro e entrar no porto, onde
de apoio onde se guardavam os torpedos es- arquipélago nipónico. Em janeiro começou deu de caras com um enorme navio de apoio
a hidroaviões – um alvo prioritário que, anco-
rado, era praticamente impossível de falhar.
Warder calculou a solução de tiro e lançou
quatro dos modernos torpedos Mark XIV,
enquanto o submarino rodava para escapar
ao inevitável contra-ataque japonês. Warder
esperou e desesperou, mas nada aconteceu.
Enquanto se dirigia para a saída, lançou ou-
tros quatro torpedos e ficou a observar pelo
periscópio os resultados. Desta vez viu uma
ligeira pluma de água junto ao casco, mas
nenhuma explosão, tendo de conter a fúria
NAVAL HISTORY AND HERITAGE COMMAND
Pescadores portugueses
O episódio vivido por Warder esteve longe de
ser caso único. Dezenas de relatórios narra-
vam episódios semelhantes, mas o Estado-
Salvamento Prisioneiros britânicos e australianos são resgatados das águas do Pacífico -Maior culpou os comandantes e atribuiu o
depois de o submarino Sealion ter afundado os navios japoneses em que seguiam fenómeno a erros humanos. A situação só
72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Depois da rendição
Submarinos,
contratorpedeiros e outros
navios da Marinha japonesa
aguardam o abate atracados
em Kure, Hiroshima
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GUERRA DO PACÍFICO // EUA
DOROTHEA LANGE/B
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Campos de guerra
Depois de Pearl Harbor, 120 mil homens, mulheres
a diferença entre cidadãos leais e desleais
«olhando apenas para eles, ou para seu nome,
vendo a cor da sua pele ou ouvindo-os falar».
Mas poucos lhe deram atenção.
e crianças de origem japonesa residentes nos EUA
foram detidos e enviados para campos de concentração, Cidadãos de ‘alto risco’
por razões de «segurança nacional» Escassas 24 horas após o ataque, cerca de
1500 membros da comunidade nipo-ame-
por Clara Teixeira
ricana foram considerados de «alto risco»
e levados de suas casas, sem qualquer expli-
N
ascida em 1939 na Califórnia, «internados» em campos de concentração, cação. As autoridades confiscaram rádios,
Jane Yanagi Diamond passou a por razões de «segurança nacional». Na al- câmaras e outros objetos que pudessem ser
maior parte dos anos da II Guer- tura, o encarceramento em massa da comu- utilizados para «ajudar» o inimigo. Muitos,
ra Mundial detida com a família nidade nipo-americana foi justificado pela em pânico, queimaram e destruíram tudo o
num campo de concentração no necessidade de proteger o país de eventuais que pudesse ligá-los ao Japão. O medo, aliado
Utah. Tinha 2 anos e meio quan- atos de «espionagem» e de «sabotagem.» a uma cultura ancestral de obediência e de
do viu os pais enfiarem, à pressa, uns quantos Depois de Pearl Harbor, os americanos respeito, levou-os a aceitar a ordem de en-
objetos pessoais em duas malas de viagem an- temeram que o Império do Sol Nascente carceramento praticamente sem contestação.
tes de serem forçados a partir, com três filhos, pudesse atacar e invadir a Costa Oeste dos Com pouco mais de uma semana de aviso,
para um dos dez campos de «realocação» – na EUA a qualquer momento, com o auxílio dos famílias inteiras viram-se forçadas a vender
terminologia oficial da época – erguidos em imigrantes de origem nipónica radicados nos os seus bens ao desbarato e a deixar para trás
áreas desérticas dos Estados Unidos. estados de Washington, Oregon, Califórnia e casas, lojas, colheitas e animais de estimação,
Dez semanas decorridas sobre o ataque sul do Arizona desde há várias décadas. Mes- levando consigo apenas o que conseguissem
a Pearl Harbor, Franklin D. Roosevelt, um mo sem evidências de que representassem transportar. A angústia foi exacerbada pelo
dos presidentes mais populares de sempre, uma ameaça real, o ataque inflamou e disse- facto de ninguém saber «para onde estava
assinou o decreto presidencial 9066. Esse minou um sentimento racista contra o povo a ser levado, nem por quanto tempo», nas
simples pedaço de papel, datado de 19 de japonês. Um sinal disso terá sido a rejeição palavras de Jane Yanagi Diamond.
fevereiro de 1942, constituiu a base legal para inicial à «realocação» das famílias por parte Com uma capacidade que podia ir de 7 a
que 120 mil homens, mulheres e crianças de do poderoso diretor do FBI, J. Edgar Hoover. 18 mil residentes, os dez campos, instalados
origem japonesa – 80 mil dos quais eram já A primeira-dama, Eleanor Roosevelt, tam- numa área que abrangia o leste da Califórnia,
cidadãos norte-americanos – tivessem sido bém se opôs à decisão de «internamento», Arizona, Utah, Idaho, Wyoming, Colorado
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DOROTHEA LANGE/BIBLIOTECA F. D. ROOSEVELT
DOROTHEA LANGE/ BIBLIOTECA F. D. ROOSEVELT
e Arkansas, consistiam em construções de houve revoltas, reprimidas por guardas que detenção foi anulada, permitindo o regresso a
madeira vigiadas por guardas armados e cer- atiravam a matar. Os registos oficiais indicam casa. Mas muitos já não tinham casa. Tinham
cadas com arame farpado. À medida que iam que dezenas de doentes foram diagnosticados sido confiscadas ou simplesmente ocupadas.
chegando, em comboios vigiados, as famílias com problemas psiquiátricos. O número de Só depois da guerra é que muitas famílias
eram alojadas em blocos habitacionais. Al- suicídios foi estimado em quatro vezes supe- puderam reunir-se. Mas, durante décadas,
gumas levaram mobílias e roupas, mas em rior ao do período de pré-encarceramento. pais, filhos e netos mantiveram o silêncio
muitas divisões havia apenas um fogão a As mortes por doença também registaram sobre a humilhação vivida nos campos de
carvão e uma lâmpada no teto. Cada bloco valores elevados, em consequência da má concentração. «Os meus pais e as pessoas da
tinha salas de refeições, balneário comum e nutrição e de doenças como a poliomielite. sua geração nunca falavam sobre o assunto»,
zona de recreio para 275 a 300 pessoas. Os admitiu Jane Yanagi Diamond no 75º ani-
campos tinham escolas, oficinas, pequenas O regresso versário do ataque. «Sentiam uma tremenda
fábricas e lojas. Os residentes participavam Só em 1944, perto do final da guerra, é que vergonha», disse ainda, acrescentando que
no «esforço de guerra», trabalhando na terra o Supremo Tribunal dos EUA proibiu a de- «a geração seguinte – a minha – também
e no fabrico de equipamentos militares, po- tenção de cidadãos «leais». Por essa altura, raramente falava sobre o assunto, a não ser
dendo ganhar um pequeno salário. passou a ser permitida a partida dos «resi- que as crianças perguntassem.» Mas, quando
A vivência nos campos afetou profunda- dentes». O governo federal comparticipou desfiavam memórias, recordavam o calor, o
mente as relações familiares tradicionais ja- as despesas do regresso com 25 dólares, uma frio, o vento, o pó e o isolamento dos campos.
ponesas. As crianças passavam mais tempo quantia que pagava apenas algumas refeições Com o fim da guerra, o drama dos «inter-
a socializar umas com as outras do que com e um bilhete de comboio. No final do ano, nados» foi quase esquecido. Os sobreviventes
a família. O homem deixou de ser o único mais de 40 mil prisioneiros tinham sido li- esperaram décadas por um pedido de des-
ganha-pão quando a mulher passou a ter bertados. A 2 de janeiro de 1945, a ordem de culpas do governo. Em 1983, o Congresso
também uma ocupação. A governação dos concluiu que a detenção de nipo-americanos
campos exigia o domínio do inglês e permi- foi motivada não por uma razão militar, mas
tia que apenas quem detinha a nacionali- sim pelo «preconceito racial, pela histeria de
dade americana participasse em conselhos
O medo, aliado a uma guerra e pelo fracasso da liderança política».
comunitários. Essas regras criaram tensões cultura de obediência, Cinco anos depois, o então presidente Ronald
intergeracionais, quando o jovem adulto Reagan decretou a atribuição de uma indem-
nisei bilingue, pertencente à segunda ge-
levou as famílias a nização de 20 mil dólares a cada sobrevivente.
ração já nascida nos EUA, começou a ter aceitarem a ordem de O presidente seguinte, George Bush, reconhe-
mais poder do que o ancião issei, da primeira ceu, por ocasião do 50º aniversário de Pearl
geração de imigrantes de língua japonesa.
encarceramento quase Harbor, a «grande injustiça» do tratamento
Nem todos lidaram bem com a situação e sem contestação dispensado à comunidade.
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GUERRA DO PACÍFICO // CATIVEIRO
Escolhidas Mulheres
e crianças são levadas
à força de Penão,
na Malásia, para as
recém-ocupadas ilhas
Andamão, no oceano
Índico, em 1942
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novas. Ficaram detidas três anos e meio, até
ao final da guerra.
Mas antes de a guerra acabar, todas as
prisioneiras que tinham entre 17 e 21 anos
de conforto
pareceram mais bonitas. Jan e as outras
nove raparigas escolhidas nunca tinham tido
relações sexuais. E foram levadas do campo
de Ambarawa para a cidade portuária de
A violação de mulheres de territórios ocupados foi Semarang, onde entraram ao serviço nes-
organizada sistematicamente pelo Exército Imperial sa noite, sendo logo violadas na estação de
Japonês. As prisioneiras ficavam à disposição nas conforto onde as instalaram. Logo de início,
chamadas estações de conforto, bordéis com vistorias Jan conseguiu cortar o cabelo para tentar
médicas periódicas, só para militares desinteressar os homens, mas o estratagema
não funcionou.
por João Pacheco
Passou a acumular memórias traumáticas.
Como a de um militar muito gordo que lhe
D
esde que a rebatizaram com o novo, como se conta no obituário publicado rasgou a roupa e lhe passou a espada pelo
nome de uma flor, Jan passou pelo jornal The New York Times. O medo de corpo todo como se a fosse cortar, antes de
a odiar flores para sempre. As médicos nasceu das inspeções periódicas que a violar.
escravas sexuais que viviam lhe faziam na estação de conforto. Nessas altu-
naquela estação de conforto ras, como se fizesse parte do processo, o médi- Uma rede secreta
perdiam o nome próprio, sen- co violava-a à frente de outros homens. Antes O termo «estação de conforto» terá que ver
do atribuído a cada mulher o nome de uma de verificar se Jan tinha doenças venéreas. com o conforto dos militares japoneses, e não
flor. Era mais uma entre várias formas de As violações sistemáticas aconteceram das mulheres, adolescentes e, nalguns casos,
lhes retirarem humanidade. durante os três meses que esta holandesa crianças que ali viviam e que eram escravas
A holandesa Jan Ruff-O’Herne morreu em nascida na Indonésia foi obrigada a servir sexuais disponíveis dia e noite.
2019 com 96 anos e com horror a camas, a como «mulher de conforto», um eufemismo Tratava-se de uma rede secreta e foi ad-
flores, a médicos e ao escuro. Jan relacionava distante da realidade traumática que viveu. mitida pelo Japão como um facto histórico
o anoitecer à certeza de que seria violada de Na prática, Jan foi escrava sexual ao servi- apenas no início dos anos 1990, quase 50
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Pesadelo As primeiras estações de conforto foram estabelecidas em 1932, pelo Exército Imperial Japonês na China
anos depois do final da guerra. Nessa altura, depois de décadas a esconderem a história
algumas mulheres coreanas, como a pioneira a familiares e a amigos. Por exemplo, com
Kim Hak-soon, começaram a denunciar o passar dos anos já tinham morrido os
os crimes, contando de forma pública as pais e as mães das antigas mulheres de
histórias dos seus cativeiros. Daí resultaram conforto, deixando de haver o perigo de
processos judiciais e discussões diplomáticas sofrerem com os relatos.
sobre pedidos de desculpas e indemnizações.
A história do cativeiro de Jan Ruff- Arma de guerra
-O’Herne é contada no livro de memórias Os militares japoneses não inventaram a
Fifty Years of Silence (1994), que decidiu prática da violação como arma de guerra,
escrever e publicar 50 anos depois des- nem foram sequer os únicos violadores em
tes crimes de guerra. O que nessa altura série da II Guerra Mundial. Por exemplo, na
a motivou a quebrar o silêncio foi o facto mesma guerra, o avanço das tropas soviéticas
de algumas antigas mulheres de conforto pela Alemanha até Berlim foi acompanhado
coreanas terem decidido começar a contar pela violação generalizada de mulheres ale-
o que lhes tinha sido feito. Jan achou que mãs, tolerado pelas chefias militares russas,
as autoridades japonesas não estavam a dar por considerarem inevitável e natural que
importância a estas denúncias por partirem os soldados violassem mulheres ao con-
de mulheres asiáticas. E pensou que talvez quistarem terreno. Antes, muitos soldados
o impacto internacional fosse diferente se da Alemanha nazi tinham feito o mesmo
aparecesse uma vítima com a pele clara. O A história da holandesa na Rússia, também na II Guerra Mundial.
impacto foi especial e Jan tornou-se uma E ao longo dos séculos têm sido recorrentes
ativista internacional na denúncia destes
Jan Ruff-O’Herne as situações em que combatentes violaram,
crimes, mas de qualquer modo nessa altura é contada no livro torturaram e mataram civis. Fossem ho-
já a bola de neve estava em movimento. As mens, mulheres ou crianças.
vítimas tinham sido muitas e já estavam
de memórias que O que torna especial o caso japonês é
numa idade em que pouco tinham a perder, publicou em 1994 o facto de o abuso sexual das chamadas
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GUERRA DO PACÍFICO // CATIVEIRO
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motivação às tropas e evitar que as violações
acontecessem de forma desorganizada, por ini-
ciativa própria dos soldados e à vista de todos,
por vezes durante as pilhagens que costuma- Libertada Perto do final da guerra, uma jovem chinesa obrigada a prostituir-se na antiga
vam acompanhar a conquista de território. Birmânia conta a sua história a um oficial inglês
Outra utilidade das estações de conforto
era diminuir o risco de os militares japoneses infetadas com uma doença venérea. Em Sobretudo a partir de 1937 e até à rendição
serem infetados por doenças venéreas. As caso de gravidez era feito um aborto. Nal- do Japão, em 1945, as estações de conforto
estações só podiam ser frequentadas por mi- guns casos, os bebés acabaram por nascer e espalharam-se por todos os territórios ocu-
litares, que por outro lado estavam proibidos terão ido para orfanatos. Muitas mulheres pados, escreve Chin Sung Chung no livro
de frequentar bordéis. Para tentar garantir a ficaram estéreis, por lesões e doenças con- True Stories of the Korean Comfort Women
saúde dos homens, as mulheres que ali esta- traídas no cativeiro. Em alguns casos, os (1995), organizado por Keith Howard.
vam eram sujeitas a inspeção médica regular problemas mentais foram outro resultado Houve uma maioria de vítimas coreanas,
por médicos militares, mesmo nos casos em da experiência sofrida. mas entre as mulheres de conforto também
que a gestão corrente da estação era confiada a
civis. E o uso de preservativos era obrigatório,
embora nem todos cumprissem essa regra.
Além da violência sexual, os espanca- Era impossível contá-los
mentos eram regra para quem resistisse ou
«Havia todo o tipo de homens e faltam- -nos. Nos fins-de-semana, apareciam
tentasse fugir. Quase sempre, as mulheres -me as palavras para descrever muito muito mais homens do que nos dias
nunca chegavam a ver nenhum do dinheiro do que me faziam», conta Yun Turi úteis. Quando tinha de servir tantos
que os militares pagavam pelos serviços. no livro True Stories of the Korean homens, ficava maluca. Os homens
A propósito, há relatos de preços diferentes Comfort Women. Aos 16 anos, a entravam no meu quarto um a seguir
para quem escolhia ter relações sexuais com operária coreana nascida em Pusan ao outro e era impossível contá-
escravas japonesas, coreanas ou chinesas. foi levada numa camioneta -los. Depois de servir um
por militares japoneses, soldado, descia do meu
E havia também preços diferentes consoante
numa tarde em que estava quarto para me lavar lá em
as patentes dos militares. a voltar a pé da fábrica onde baixo, com água misturada
Quase sempre, as escravas tinham roupas trabalhava. Passou a viver com creosol. Depois voltava,
miseráveis, mantinham-se ao serviço mes- numa estação de conforto para servir o próximo
mo durante a menstruação e era comum em Pusan. «Servia em média homem. Para reduzir nem
passarem fome. Há relatos de estações de 30 a 40 homens por dia. que fosse em um o número
conforto onde as mulheres eram obrigadas Eram sobretudo marinheiros de homens que servia,
e soldados aquartelados insistia em lavar-me depois
a aprender a tocar instrumentos e a cantar
em Pusan. Quando chegava da cada vez. E tentava
canções para entreter os militares. um navio ao porto, muitos prolongar o tempo que
Quase não havia cuidados médicos, com marinheiros vinham visitar- demorava a lavar-me.»
exceção de uma injeção caso estivessem
78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Memória
Escultura
evocativa do
cativeiro num
abrigo para antigas
ravas sexuais
escravas
na capital da
Coreia do Sul
GETTY IMAGES
Emoção e revolta
A sul-coreana
Essa nunca
Kim Hak-soon,
antiga mulher
mais voltava
de conforto,
não contém as
lágrimas ao
exigir um pedido Quando foi raptada de casa dos pais,
de desculpas na Coreia, Yi Okpun tinha 12 anos,
público durante embora parecesse mais velha. Eram
um protesto junto as férias de verão e estava cá fora a
da embaixada cantar e a saltar à corda com amigas.
japonesa em Seul Aproximaram-se dois homens e as
amigas fugiram. Os homens disseram-
GETTY IMAGES
-lhe que o pai a tinha chamado e ela
aceitou acompanhá-los até ao sítio
onde era suposto estar o pai. Um dos
raptores era japonês, o outro coreano.
existiram, por exemplo, chinesas, filipinas, No momento da rendição do Japão, mui- Acabaram por vendê-la como escrava
sexual, em Taiwan.
indonésias, holandesas e timorenses. E tam- tas mulheres de conforto foram obrigadas
Por ser muito nova, ficou encarregada
bém havia destas estações no próprio Japão. a suicidar-se ou foram executadas por sol- das limpezas numa estação de
dados japoneses, para que não contassem conforto. Tentou fugir, sem êxito.
Obrigadas a suicidar-se as suas histórias. Outras viram-se aban- Os anos foram passando e Yi Okpun
Os métodos de angariação de escravas fo- donadas nas estações de conforto, tendo tornou-se mulher de conforto.
ram vários. O rapto era comum, fosse ele percebido que o Japão perdera a guerra Instalaram-na numa escola primária
levado a cabo por militares ou por civis que por ouvirem através da rádio a declaração ocupada por militares e que tinha
as antigas salas de aula divididas
depois vendiam as raparigas aos gestores de rendição do imperador. Ou por verem
por tabiques de madeira. Passou
das estações de conforto. Noutros casos, que os soldados iam abandonando os ter- a chamar-se Haruko ou Kohana,
uma oferta de trabalho fictícia serviu para ritórios ocupados, de regresso ao Japão. conforme a preferência dos homens.
levar ao engano muitas raparigas e mulhe- Em muitos casos, as até então mulheres «Aos sábados, os soldados japoneses
res coreanas e de outras nacionalidades, que de conforto estavam deslocadas em territó- formavam longas filas fora da escola.
aceitavam viajar até outros territórios na rios ocupados pelos japoneses que ficavam Às vezes nem dava para ver o fim
ilusão de poderem conseguir um bom tra- muito longe das suas terras de origem. Para da fila», conta Yi Okpun no livro
True Stories of the Korean Comfort
balho. Apesar de algumas exceções, como evitarem ser mal recebidas no regresso,
Women. «Cada mulher tinha de
a da holandesa Jan (que era prisioneira de tornou-se comum omitirem que tinham servir 20 a 30 soldados por dia.
guerra), em geral, as escravas vinham de sido mulheres de conforto. Mas muitas não Já estávamos muito fracas. Mas
famílias com poucos recursos, de territórios conseguiram reintegrar-se nas sociedades quando começou a faltar comida,
ocupados pelas forças japonesas. Quase de onde tinham sido retiradas. E várias servir tantos homens por dia deixava
sempre, eram solteiras. marcas físicas e psicológicas do cativeiro algumas de nós meio mortas. Se
No final da guerra, parte dos documentos ficaram para sempre. alguma estava demasiado fraca para
trabalhar, a rececionista arrastava-a
secretos sobre esta rede de bordéis militares No caso de Jan Ruff-O’Herne, quebrar
para fora e punha uma mulher mais
foi destruída por ordem de militares de alta o silêncio só aconteceu 50 anos depois do saudável nesse cubículo. Por regra,
patente. Estariam preocupados com a pos- fim da guerra. O marido já sabia, era um três a cinco mulheres enfraquecidas
sibilidade de virem a ser responsabilizados antigo militar britânico que participou na eram deixadas num quarto das
por crimes de guerra. libertação do campo de concentração onde traseiras, sem comida. Se achassem
Jan estava detida com a mãe e as irmãs. que alguma dessas mulheres não
Mas quando Jan quis contar às filhas o que conseguiria ficar boa com tónicos de
ervas e medicamentos, carregavam-
Além da violência tinha sofrido cinco décadas antes, sentiu-se
-na para uma camioneta e levavam-na
incapaz de falar sobre o assunto. Escreveu
sexual, os espancamentos tudo num caderno e entregou-o a uma das
para a montanha. Essa nunca mais
voltava. As que morriam também
eram regra para filhas, que estava quase a embarcar para eram levadas para a montanha. Os
uma viagem de avião. A filha de Jan passou corpos ficavam para lá assim, meios
quem resistisse esse voo a ler e a chorar. A seguir, o caderno cobertos com erva.»
ou tentasse fugir deu origem ao livro de memórias da mãe.
VISÃO H I S T Ó R I A 79
GUERRA DO PACÍFICO // O FIM
AKG-IMAGES / FOTOBANCO
Douglas MacArthur e pelo almirante Ches-
ter Nimitz. A tática imposta pela geografia
consistiu na utilização de porta-aviões e em
manobras anfíbias. O avanço seria penoso,
pois a cada desembarque seguir-se-ia uma
Bomba atómica americana sobre Nagasáqui Esta segunda explosão nuclear, em 9 de agosto batalha em espaço reduzido.
de 1945, três dias depois da de Hiroxima, levou à imediata rendição do Japão Tudo foi posto em prática com grande pre-
cisão. No sul do Pacífico, as forças aliadas,
Furacão de fogo
Aos bombardeamentos sistemáticos do Japão
depois de se terem apoderado, em julho de
1944, das bases navais de Biak e de Sansapor,
atingiram em setembro as bases das Palaos e
foi daí que partiu o grande ataque às Filipi-
nas, que se prolongou de outubro desse ano
seguiu-se a explosão das bombas nucleares a fevereiro de 1945. No centro do Pacífico, o
e a inevitável rendição do Mikado. Pearl Harbor outro braço da tenaz saltava de ilha em ilha,
estava «vingada», mas o mundo já não era o mesmo das Gilbert às Marshall e depois às Maria-
por Luís Almeida Martins nas, onde, em Saipan, em julho de 1944, os
bombardeiros americanos dispunham já de
O
s japoneses – como se conta em pados. Nessa situação de semi-impotência, os aeródromos bem localizados.
texto anterior – viram o grosso da anglo-saxónicos empenharam-se em obter ou Mas as duas operações decisivas foram as
sua esquadra aniquilada em junho conservar, no sudoeste do enorme oceano, as de Okinawa, em janeiro de 1945, e de Iwo-
de 1942, na batalha de Midway, bases navais consideradas estrategicamente -Jima, em março seguinte. Estas ilhas ficam
um mês depois de, na do Mar de indispensáveis para manter acesa a chama da a uma distância do Japão que permitia já o
Coral, se terem visto forçados a luta. Foi neste contexto que a pequena baía de lançamento de ataques por bombardeiros
desistir das suas ambições sobre a Austrália e Guadalcanal, onde durou meses uma batalha B-29 (as «Fortalezas Voadoras»). A destruição
a abandonar a Nova Guiné aos americanos e renhida, assumiu uma importância aparente- sistemática da produção japonesa começou
aos australianos. Na Birmânia, foram travados mente desproporcionada. depois da ocupação de Saipan, em julho de
junto da fronteira da Índia, mas os Aliados não A aliada natural dos anglo-saxónicos era a 1944, e intensificou-se quando as bases de
achavam maneira de os expulsar das extensões China, que vinha resistindo desde 1937 aos Okinawa e Iwo-Jima puderam ser utilizadas.
asiáticas e dos arquipélagos do Pacífico ocu- invasores nipónicos. Mas os chineses estavam O que restava da Armada nipónica foi ani-
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Iwo Jima Marines
celebram a vitória na ilha
junto da bandeira dos EUA
desfraldada no topo de
uma colina
a prazo a nova arma contra a – por enquan- anos, a II Guerra Mundial terminou mesmo
to – aliada União Soviética, logo que ficasse
de súbditos ouviram pela e outra realidade de contornos ainda vagos
concluída a guerra contra o Japão. E, para a primeira vez o som da sua voz perfila-se no futuro.
VISÃO H I S T Ó R I A 81
GUERRA DO PACÍFICO // O FIM
Combateram 30 anos
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Alguns soldados japoneses só se renderam Publisher: Mafalda Anjos
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a Guerra do Pacífico só terminou onde foi criador de gado, mas acabou por Estatuto editorial disponível em www.visao.pt
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do Japão. E, mesmo assim, nessa Onoda não foi, contudo, o único comba- anunciantes e agências ou empresas publicitárias.
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fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios e
rior hierárquico, o major Yoshimi Taniguchi, render-se. Dezenas de retardatários perma- para quaisquer fins.
deslocar-se à ilha de Lubang, nas Filipinas, e neceram durante anos de armas aperradas
dar-lhe ordem para entregar a sua espingarda em zonas remotas da Ásia e do Pacífico, sem
Arisaka 99 (ainda em condições operacionais), admitirem a rendição do Mikado. Dois outros
500 cartuchos, uma adaga e diversas granadas casos dignos de Guinness merecem destaque.
defensivas. Onoda recusava-se a admitir que o Um deles, o sargento Shoichi Yukoi, só se ASSINATURAS
Japão se tivesse rendido em 1945 e continuava rendeu em 1972, na ilha de Guam. O terceiro, Ligue já
21 870 5050
a cumprir as ordens que recebera em 1944: um natural de Taiwan que adotou o nome Dias úteis – 9h às 19h
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fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para nipónico de Teruo Nakamura, foi mesmo o
dificultar ataques inimigos à ilha. último de todos a entregar as armas, o que
Regressou depois ao Japão, mas não gostou ocorreu em dezembro de 1974, na ilha indo-
do que viu: um país, no seu entender, sem os nésia de Morotai.
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A CULTURA
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