Você está na página 1de 11

A pandemia e os entregadores por aplicativo:

algumas considerações sobre a precarização do trabalho

MATHEUS FERNANDES DE CASTRO*

Resumo: Pretende-se apresentar uma discussão sobre o trabalho de entrega por


aplicativos que, apesar de ser uma atividade recente, reúne novidades e antigas
questões do mundo do trabalho. Dá-se destaque ao fenômeno da precarização
do trabalho e seus impactos para os entregadores, mostrando o agravamento de
antigas questões a partir do desencadeamento da Pandemia da COVID-19. De
forma alguma pretende-se esgotar a discussão, mas levantar alguns pontos para
o debate.
Palavras-chave: Uberização; Trabalho Precário; Motoboy.
Pandemic and delivery couriers by app: some considerations about the job
insecurity
Abstract: We intend to present a discussion about application delivery work
which, despite being a recent activity, brings together news and old issues from
the world of work. Emphasis is placed on the phenomenon of precarious work
and its impacts on deliverers, showing the worsening of old issues from the
onset of the Covid-19 Pandemic. In no way it is intended to exhaust the
discussion, but to raise some points to the debate.
Key words: Uberization; Precarius Work; Motorcycler-using courier.

*
MATHEUS FERNANDES DE CASTRO é Doutor em Psicologia Social e do Trabalho
pela Universidade de São Paulo (USP); professor e chefe e do Departamento de Psicologia Experimental
e do Trabalho da Unesp de Assis.

70
Novas e antigas conformações do que poderíamos alocar no circuito
trabalho na cidade: os entregadores superior, devido às suas características:
por App. ele é marcado por sua proximidade com
as informações globais que tentam
Durante a Pandemia da COVID-19, conformar o território, sendo imitativo
tem-se vivenciado diferentes graus de destas e representado por grandes
isolamento social e os entregadores, empresas dos setores produtivo
assim como outros tantos trabalhadores, moderno, serviços modernos, de
estão na linha de frente para a comércio moderno, exportação,
sustentação de uma parte do estilo de financeiro e de alta tecnologia, ou seja,
vida da sociedade atual. Eles entregam empresas de capital intensivo.
comida, remédios, livros, presentes,
documentos, dentre uma infinidade de
Enquanto isso, o circuito inferior se
coisas solicitadas através do telefone e,
caracteriza pelo senso de oportunidade
principalmente, através dos ambientes
dos agentes frente às contingências:
virtuais que costumamos chamar de
caracteriza-se pela criatividade, pela sua
redes sociais e aplicativos. O que se
grande vinculação com o lugar e pelo
compra no conforto do lar com apenas
trabalho intensivo, ou seja, usa uma
um click é, na maioria das vezes, o
grande quantidade de mão de obra.
início de uma cadeia de acontecimentos
Como nos mostra Castro (2020), os
que vai culminar na atividade de
motoboys, trabalhadores que também
entrega. Com a impossibilidade, pelo
realizam entregas por aplicativo nas
menos oficial, de promover
cidades brasileiras, pertencem ao
aglomerações e com a necessidade de
circuito inferior da economia, fazendo a
manter distanciamento social, em menor
conexão entre os dois circuitos descritos
ou maior grau, dependendo dos índices
por Santos (2004) e deflagrando, nas
de contaminação, os ambientes virtuais
ruas das cidades, com seu grande
parecem ter assumido um protagonismo
contingente de trabalhadores, a
na manutenção do consumo, do
dinâmica totalizante do espaço. Os
trabalho, do lazer, da cultura, do contato
entregadores também se apresentam em
entre pessoas, dentre outros.
grande número no espaço urbano, pois
As atividades desenvolvidas também funcionam sob a forma de
diariamente pelos entregadores que trabalho intensivo, principal aspecto,
trabalham por aplicativo garantem o que caracterizaria as atividades do
funcionamento de um complexo sistema circuito inferior.
produtivo e comercial que vem sendo
desenhado e desenvolvido ao longo de Novas e antigas conformações e,
décadas, nos mais diversos territórios, também, novos e antigos processos
no Brasil e no mundo. Milton Santos revelam-se através da presença dos
(1994, 2005) denominou esses sistemas entregadores como uma atividade
que impulsionam uma nova essencial para o funcionamento da
urbanização, de meio técnico científico cidade. Eles expõem as necessidades de
informacional, que se apresenta nas uma integração, altamente complexa, de
cidades do terceiro mundo como um nosso sistema produtivo, pautado nas
espaço dividido (Santos, 2004), onde tecnologias de informação, e o estilo de
encontramos um circuito superior e um vida de nossa sociedade, pautado no
circuito inferior da economia. Tais consumo. E este último, cada vez mais
aplicativos são um fenômeno recente virtual, mas também, cada vez mais

71
atual1. Ou seja, o que visualizamos com próprio ambiente virtual, que abriga
o consumo por aplicativo corrobora também os aplicativos que têm
com a complementaridade entre os dois contribuído para a precarização do
circuitos, integrando a modernização trabalho. Como nos mostram alguns
digital e o capital intensivo dos serviços estudos da Psicologia Social (SATO,
modernos ao trabalho intensivo dos 2002, 2009, 2012; BERNARDO, 2009;
entregadores. CASTRO, 2020), resistir é uma das
poucas possibilidades frente a uma
Segundo Castells (2003), as tecnologias
contingência nefasta, em um mundo
de informação assumiram um papel
onde o trabalho é central, mas a
central nos sistemas produtivos atuais,
deixando de ser apenas uma ferramenta assimetria de poder entre seus diversos
atores é enorme.
que os compõem, para se tornar a
própria base onde eles se assentam. Para Uberização: um processo em curso
Srnicek (2018), as novas tecnologia
permitiram o surgimento de uma Como nos mostram Alves (2000, 2011,
economia digital, ou capitalismo de 2013, 2018) e Antunes (1999, 2018,
plataforma, que se tornou o grande farol 2019), já há muitos anos temos
para o sistema produtivo como um todo, observado a precarização do trabalho e
organizando a economia mundial como as dificuldades vividas pela classe que
um modelo hegemônico, atingindo as vive do trabalho, bem como os
cidades, as empresas, as instituições e a impactos dessas questões na vida e na
vida cotidiana. A centralidade dos saúde, tanto física como mental, das
meios digitais, se evidencia de pessoas que trabalham. Um dos temas
diferentes formas, contudo a centrais na última década tem sido a
sociabilidade mediada pelas redes Uberização, descrita por Slee (2017),
sociais e o consumo por aplicativos também, como uma nova onda de
ficaram bastante destacados em nosso trabalho precarizado. Para este autor,
dia a dia durante esta pandemia, mesmo algumas, dentre as grandes corporações,
para aqueles que tinham dificuldades se valeram do entusiasmo gerado com
em reconhecer esse fenômeno. as novas possibilidades de uma
economia de compartilhamento (Gig
É também por meio das redes sociais Economy), através da internet, e
que muitos entregadores têm subverteram a solidariedade e a
denunciado os aplicativos durante a cooperação em intensificação da
Pandemia, por não lhes fornecer exploração. Elas precarizaram o
equipamentos básicos de proteção, para trabalho e a vida das pessoas, já que um
que se previnam e não se contaminem, dos principais pontos destacados pelo
como máscaras e álcool em gel. O autor é a desresponsabilização
sofrimento, a obstinação, o ambiental destas corporações, devido ao
empreendedorismo e as dificuldades modelo de negócio realizado através
para sobreviver deste tipo de trabalho se dos aplicativos.
evidenciam aí, de uma só vez, nessa
expressão de resistência, feita no Para Abílio (2019), a uberização do
trabalho se apoiaria em dois pilares
fundamentais: os aplicativos
1
Forma como Levy (1994) optou por chamar “a (assentados sobre as novas Tecnologias
nossa realidade física”, ou melhor o mundo off-
line, em contraposição ao mundo virtual
de Informação e a Inteligência
possibilitados pelas novas tecnologias de Artificial) e os princípios neoliberais
informação. que norteiam a economia e as relações

72
de trabalho. Eles permitiriam que Tais fatos são importantes e merecem
grandes empresas que operam por ser sublinhados, pois atualmente
plataformas explorem os trabalhadores observamos uma proliferação desse
no mundo todo, sem nenhuma, ou quase fenômeno entre os trabalhadores por
nenhuma proteção trabalhista. Tais fatos aplicativo em larga escala, atingindo
representam a materialização de uma série de pessoas que antes estavam
décadas de transformações políticas que mais afastadas dessa realidade.
atravessam, de forma geral, o mundo do
trabalho. De acordo com Antunes Mas, em realidade, a uberização
abarca diversas ocupações,
(2020), as mudanças nas formas de
atravessando o mercado de trabalho
organização, gerenciamento e controle de alto a baixo, seja no presente,
do trabalho, trazidas pelo fenômeno da seja desenhando-se como um futuro
uberização, que transferem para os próximo e possível. (ABÍLIO,
trabalhadores os riscos da atividade, são 2020, p. 111)
o resultado de um longo processo em
curso no mundo. Estes problemas têm se intensificado
frente à última grande crise do capital
Castro (2004, 2020), ao pesquisar que teve seu início em 2008 (ALVES,
mototaxistas de uma cidade do interior 2018). A partir daí temos assistido, no
do estado de São Paulo e motoboys da mundo todo, inclusive nos países
cidade de São Paulo, respectivamente, centrais, o surgimento de uma nova
mostra a transferência da posse dos categoria dentro do mundo do trabalho:
meios de produção e dos riscos da o precariado. Segundo Alves (2013), o
atividade para os trabalhadores, muito precariado é uma parcela dos
antes da existência dos aplicativos de trabalhadores que enfrenta inúmeras
entrega. Além disso, encontramos tanto precarizações oriundas das mais
entre os mototaxistas, como entre os recentes crises do sistemas de
motoboys, extensas jornadas de trabalho acumulação do capital. Eles realizam
que ultrapassavam as 8 horas diárias, atividades de trabalho sem vínculo
chegando mesmo a mais de 12 horas e, empregatício e com contratos de
em alguns casos, principalmente entre trabalho flexíveis, representando a
os mototaxistas, elas se estendiam materialização do tempo justo de
durante os 7 dias da semana. Também, trabalho (just in time do toyotismo) e
dentre estes últimos, pôde verificar que têm um grave comprometimento
longos períodos de espera entre uma quanto às perspectivas de futuro
chamada e outra, ou seja, tempo de profissional, em um mundo do trabalho
trabalho não remunerado, pois cuja a tônica tem sido a informalidade e
ganhavam por viagem feita, ou por o desemprego.
peça, como se diz atualmente sobre o Para Santos e Muñoz (2017) os jovens
trabalho uberizado. Um fato de
são os principais afetados pelas atuais
destaque e que merece a atenção, é que
configurações políticas e econômicas
nessas pesquisas foram entrevistados
que interferem na dinâmica do mundo
trabalhadores com formação
do trabalho. Tais transformações têm
universitária realizando essas atividades
colocado as pessoas frente a uma
informais e consideradas precárias,
grande dificuldade para encontrar suas
como forma de sobrevivência, ou seja,
primeiras possibilidades de inserção no
como tentativa de sobrepujar o
mercado de trabalho, submetendo-os a
desemprego.
uma enorme falta de expectativa. Esta

73
última tem imposto aos jovens a estavam sofrendo com a destruição
realização de uma série de trabalhos de suas próprias condições de
gratuitos, na esperança que esse sobrevivência ultraprecárias.
despojamento e comprometimento (ANTUNES, 2020, p. 12)
sejam reconhecidos pelo sistema Na realidade, a mídia tem
meritocrático, manipulador e mentiroso constantemente noticiado tais impactos
que tenta esconder, assim, os reais e revelado dados sobre o aumento do
problemas do emprego, nos tempos desemprego. Segundo Souza (2020), há
atuais. uma correlação visível entre a pandemia
Segundo Manzano e Klein (2020), no e a precarização do trabalho no país, o
Brasil, a questão do desemprego, após que leva a impactos negativos na vida e
passar por um período de retrocesso na saúde mental de várias categorias de
entre 2012 e 2016, passa a se acentuar trabalho, principalmente aquelas que
com as Reformas Liberais e as políticas são consideradas essenciais na
de austeridade como o Teto de Gastos Pandemia. Dentre elas, ele destaca os
(em 2016), a Reforma Trabalhista (em entregadores.
2017) e a Reforma da Previdência (em Os entregadores
2019). Medidas que não contribuíram
para a diminuição do desemprego, mas De acordo com Antunes (2020) a
que intensificaram a precarização do pandemia não deve ser vista como o
trabalho, no país. Neste cenário, motivo principal da crise econômica
pudemos observar o grande aumento do atual, que tende a se agravar nos
número de pessoas que buscaram nos próximos meses e talvez anos. Ao longo
aplicativos uma saída para sua situação. desta última década, o sistema
Ainda segundo os autores supracitados, produtivo vem se deparando com uma
ao analisarem os dados da PNAD série de limites – enquanto modelo de
Contínua, eles mostram que as desenvolvimento –, em várias áreas,
atividades de transporte por aplicativos mas principalmente no âmbito social,
por meio de carros, táxis e econômico e ambiental. Tais impactos
caminhonetes cresceu 41,9%, enquanto se revelam claramente no mundo do
a dos condutores de motocicletas trabalho, através da crescente
39,2%, entre o primeiro trimestre de informalização e precarização das
2016 e o primeiro trimestre de 2020. atividades laborais, com grandes
impactos para a saúde mental dos
Soma-se a tudo isso uma Pandemia que trabalhadores.
atingiu gravemente a economia mundial
e não fica difícil imaginar a piora do Segundo Souza (2020), os trabalhadores
quadro. informais, que sempre representaram
uma grande parcela da população
Dados preliminares apresentados economicamente ativa do Brasil, foram
pela OIT projetavam a perda de muito atingidos pelo agravamento de
195 milhões de empregos em uma crise econômica na Pandemia. Ou
tempo integral já no segundo
seja, a crise, de acordo com o autor, é
trimestre de 2020 (veremos que de
fato serão efetivamente muitos
anterior à Pandemia, mas se intensificou
mais, dada a invisibilidade odiosa e impactou severamente a vida
que caracteriza o mundo do cotidiana. No caso específico dos
trabalho em nosso tempo), sendo entregadores, que se encontram dentro
que 1,6 bilhão de pessoas, que da parcela de trabalhadores informais,
viviam na informalidade, já vimos, de acordo com reportagem

74
publicada pelo site da BBC News aquisição de trabalho e renda para
Brasil, em São Paulo2, que o número de muitas pessoas, mas principalmente
cadastros na Rappi (aplicativo de para os jovens. Rapidamente, esse
entregas), de pessoas querendo se tornar quadro chamou a atenção da sociedade
entregadores, aumentou 300%, em para essas pessoas que desenvolviam a
Março de 2020. atividade e que, momentaneamente,
passaram a ser vistos, por alguns, como
Mesmo a crise sendo anterior ao vírus,
heróis – assim como outros
durante a pandemia muitos empregos
trabalhadores de atividades
foram perdidos e muitos negócios foram
consideradas essenciais para a
fechados. Diante deste contexto (crise
econômica, perda de empregos e manutenção do isolamento social.
ocupações, o grande aumento de O vírus se espalha pelo contato entre as
pessoas em desalento, proibição de pessoas, portanto a proximidade entre
aglomerações, dentre outros), ficou elas deve ser evitada e a atividade de
evidente o aumento das dificuldades entrega se vê diante de alguns impasses:
para se encontrar uma nova colocação como manter a distância em uma
no mercado de trabalho, seja ela formal, atividade que depende exatamente de
ou mesmo informal. Talvez, isso nos sua capacidade de fazer contato com as
jogue alguma luz sobre os motivos do pessoas, para lhes entregar coisas?;
aumento no cadastro dos aplicativos, como viver o medo e os riscos reais de
por parte de pessoas que procuraram contaminação em uma profissão que foi
uma alternativa em meio à pandemia. considerada essencial para a sociedade,
Para Manzano e Klein (2020), a mas que ao mesmo tempo é mal
atividade de entrega se apresenta como remunerada e não fornece nenhum tipo
uma das principais formas de ingresso de proteção em suas relações
no mercado de trabalho, principalmente, trabalhistas, principalmente quando se
durante a pandemia. Eles destacam que trata dos trabalhos por aplicativo?
isso se dá de forma ainda mais evidente Diante do aumento do desemprego, do
entre os jovens: no Brasil, em maio de aumento no número de trabalhadores se
2020, o total de pessoas de até 29 anos cadastrando nos aplicativos, procurando
que se encontravam ocupadas era de uma ocupação, e dos riscos atuais de se
25,5%, enquanto entre os entregadores, executar uma atividade como esta, não
no mesmo momento, era de 40%. fica difícil imaginar as consequências
Obviamente, essa alternativa não se destes dados para estes trabalhadores.
apresenta como algo livre de problemas,
ou seja, de contradições. Contudo, por As dificuldades para trabalhar nessa
ser considerada como uma atividade situação foram denunciadas pelos
essencial, no período de quarentena, e entregadores em dois grandes
por não necessitar de diplomas, ou movimentos de abrangência nacional e
outras qualificações que demandem mesmo internacional, com importantes
tempo e impeçam o ingresso imediato, repercussões e apoios dentro e fora do
se tornou uma saída possível para Brasil. Eles ganharam as redes sociais e
a grande mídia, de formas diferentes. O
primeiro movimento aconteceu no dia 1
2
Ver a reportagem “Coronavírus: entregadores de julho e o segundo, no dia 25 de julho
de aplicativos trabalham mais e ganham menos
na Pandemia, diz pesquisa”, em:
– ambos em 2020. Contudo, graças à
https://www.bbc.com/portuguese/brasil- internet e às redes sociais, as denúncias
52564246 dos trabalhadores – feitas diretamente

75
nas redes, ou através de entrevistas, pandemia, poucos foram tão precisos e
documentários, lives e etc. – não foram abrangentes ao tratar das relações de
negligenciadas e foi possível que parte trabalho dos entregadores na pandemia,
da população ouvisse seus protestos. como Abílio et al. (2020). Os
pesquisadores fizeram um trabalho de
Dentre as reclamações, afirmavam: que
abrangência nacional, levantando e
não puderam contar com um auxílio
analisando a situação dos entregadores
efetivo dos Aplicativos, no que se refere
por aplicativo de quatro empresas do
ao provimento de EPI’s (equipamentos
setor, através de um questionário online
de proteção individual), como álcool em
aplicado em 298 trabalhadores, em 29
gel e máscaras; que solicitaram o
pagamento de licenças remuneradas grandes cidades do país, entre 13 e 27
de abril de 2020. Houve uma
para os trabalhadores que se
contaminaram, ou que se quantidade maior de respostas em São
Paulo, Recife, Belo Horizonte e
contaminassem com o novo vírus e que,
por isso, ficassem impedidos de Curitiba que, juntas, concentraram
82,9% dos questionários respondidos
continuar trabalhando, mas que, muitas
vezes, não foram atendidos ou pior, Segundo Abílio et al. (2020), apesar de
foram bloqueados, por não estarem um aumento de 30% dos pedidos de
disponíveis para a realização do entrega durante a pandemia, 58,9% dos
trabalho. Além disso, acusaram os entregadores dizem sentir uma queda
aplicativos de reduzir as taxas de em suas remunerações. Após uma
entrega, bem como de executar cortes3 análise dos rendimentos semanais
de trabalhadores sem motivo aparente e divididos por faixas salariais,
não fornecer nenhuma explicação. constataram que houve uma diminuição
Também denunciaram a displicência, ou significativa da renda entre os
mesmo falta de consideração de alguns entregadores que eram melhor
clientes que não usavam máscaras e remunerados (faixas de rendimentos
nem álcool gel durante a efetivação da acima de R$ 520,00), quando
entrega. comparados aos números antes da
Dentro do mundo acadêmico, muitas pandemia, e um grande aumento (quase
publicações chamaram a atenção para o o dobro) de trabalhadores na faixa com
formato do trabalho mediado por menor remuneração (R$ 260,00), em
plataformas (VAAN DOORN, 2017) e comparação com os dados que
seus impactos na vida dos trabalhadores representam o período imediatamente
durante a Pandemia (ANTUNES, 2020; anterior à pandemia. Ainda olhando
ABILIO et al. 2020; MANZANO E para os dados fornecidos pelos
KLEIN, 2020; SOUZA, 2020). pesquisadores, vemos que entre os
Contudo, dentre os trabalhos que entregadores que aumentaram sua carga
levantamos e revisamos no período da horária de trabalho, 52% deles, não
puderam observar um aumento
3
Quando o trabalhador é impedido, pelo
correspondente de sua remuneração,
aplicativo, de continuar realizando suas bem como, 50% do universo total de
atividades, pois ele é bloqueado e não recebe respondentes, apontaram quedas nos
mais trabalho. Esse bloqueio geralmente é bônus que recebiam das empresas
temporário, mas, segundo os entregadores, sua durante a pandemia. Dentre os
aplicação não é clara em suas regras, nem
quanto ao tempo que o bloqueio pode durar,
respondentes, 50% dos 129
nem mesmo quanto aos motivos que levam a entregadores, que mantiveram sua carga
ele. horária de trabalho inalterada (relação

76
entre os período anterior e o posterior à algum tipo de medidas de proteção
pandemia), afirmaram que houve uma contra o vírus. No mesmo sentido vão
diminuição de sua renda. Diante disso, os dados que apontam uma alteração no
os autores citados, chegaram a comportamento destes trabalhadores,
conclusão de que as empresas têm quando 88% passaram a fazer uso de
aplicado, durante a pandemia, uma álcool gel, 74,8% de máscaras e 54,4%
diminuição das taxas pagas aos fazem entregas sem contato direto com
entregadores e que pode-se constatar os clientes.
um precarização das condições de
trabalho pelo rebaixamento da Mesmo amedrontados e assumindo
remuneração. novos comportamentos, Segundo
Manzano e Klein (2020), a porcentagem
De acordo com Manzano e Klein de entregadores que apresentaram, ao
(2020), quando analisam dados da menos, um sintoma de contaminação
PNAD Contínua e da PNAD Covid-19, pelo novo vírus foi maior que a média
a precariedade do trabalho na categoria geral de contaminação entre os
entregadores foi altamente intensificada trabalhadores que se mantiveram em
pela diminuição dos rendimentos destes atividade durante a pandemia, 15,7% e
profissionais. 13,8%, respectivamente. Ainda segundo
Para Abílio et al. (2020) a os mesmos autores, eles figuram entre
desresponsabilização trabalhista dos os que menos se afastaram do trabalho.
aplicativos em relação aos entregadores
Tal situação de precariedade nas
é um dos grandes aspectos que
condições de trabalho, enfrentadas
permitem verificar a precarização do
nesse momento de pandemia, apesar de
trabalho que envolve este grupo de
guardarem certa peculiaridade, nos
trabalhadores. Mostram que 57,7% dos
fazem lembrar de situações passadas
entregadores disseram não ter recebido
vividas pelos trabalhadores em geral.
nenhum tipo de apoio das empresas no
Gorz (2005) e Alencar (2007), ao
que tange à diminuição dos riscos de
tratarem dos impactos da reestruturação
contágios existentes na atividade.
produtivas da década de setenta, aliados
Apenas 42,3% disseram ter recebido
aos princípios neoliberais, afirmavam
insumos de proteção (máscaras e/ou
que diante do sistema produtivo vigente
álcool em gel), ou algum tipo de
e suas precarizações, os trabalhadores
orientação para a diminuição dos riscos
se encontravam abandonados à própria
de contágio, que existem na realização
sorte e que, portanto, deveriam assumir
das tarefas de entrega.
cotidianamente todas as
A falta de comprometimento dos responsabilidades sobre si e sobre a
aplicativos com os trabalhadores foi continuidade de execução de suas
apontada como um fator gerador de atividades, arcando, inclusive com
insegurança: 83,2% dos entregadores possíveis custos. Tudo isso sublinha que
afirmaram sentir medo durante a os processos de consolidação da grande
realização de suas atividades depois da exploração observada hoje e disfarçada
chegada da pandemia e por não terem sob o rótulo de auto empreendedorismo,
recebido apoio suficiente, disseram que já vem sendo construído há algum
passaram a agir por contra própria no tempo e combinam perfeitamente com
enfrentamento das condições de alguns valores sociais, já que eles vem
trabalho. Do universo total de respostas se mantendo e se fortalecendo em nossa
alcançadas, 96% disseram fazer uso de sociedade: a ideia da livre negociação,

77
entre patrões e empregados, tem sido produtivo, o que tem levado, em muitos
gestada há séculos no seio do casos, ao adoecimento e à morte.
liberalismo econômico e se encontra
presente em nossa última Reforma Diante de tudo isso, fica evidente que
Trabalhista, em 2017. há em curso, uma desfiguração do
sentido ontológico do trabalho que leva
Diante de trabalhadores envoltos por tal ao adoecimento e à auto culpabilização.
grau de tensão, ansiedade e medo, bem Assim, o agravamento da crise
como pelo desamparo, enquanto econômica, que, como vimos acima,
trabalhador e sujeito social, salta aos vem se desenvolvendo desde muito
olhos a necessidade de olhar mais antes da pandemia, ganha destaque com
atentamente para a saúde destas a crise sanitária pelo agravamento do
pessoas, já que a precarização do desemprego e pela consequente
trabalho, há muito, vem sendo estudada precarização do trabalho. Vimos que os
como um fator de agravo à saúde do trabalhadores do setor de entrega, por
trabalhador. Principalmente a partir da vários dos motivos expostos, são, hoje,
década de noventa do século passado, uma das figuras mais atingidas por
sob publicações seminais, como da processos desencadeados há muito
autora brasileira Edith Seligmann Silva tempo, mas que se intensificaram com a
(1994), as condições e a organização do pandemia. Sendo assim, cabe um
trabalho vem sendo apontadas como grande esforço por parte da Psicologia
desencadeantes de desgaste mental. Social e do Trabalho e de outras áreas
Mais recentemente, Franco, Druck e afins, no sentido de compreender as
Seligmann-Silva (2010) apontam a dimensões sociais e humanas deste
precarização como fator gerador de contexto, bem como, suas implicações
importantes danos à saúde dos para o desenvolvimento de uma vida
trabalhadores. mais sustentável, em seu significado
mais amplo.
Ao se referir à atividade de entrega por
aplicativos, Souza (2020) afirma que a Não podemos perder de vista que a
“precarização desse tipo de organização discussão dentro do campo da saúde do
do trabalho fica especialmente visível trabalhador, há muito é vista como uma
na dimensão da saúde dos questão social e não unicamente
trabalhadores, sobretudo pela individual, com grandes impactos na
extenuação devido às longas jornadas, dinâmica do espaço – especificamente
exponenciada pela desproteção [..].” (p. na dinâmica das cidades –, entendido
7) aqui, não como um palco, mas sim
como uma instância social. Então o que
O autor sublinha as dificuldades vimos durante a pandemia foi a
enfrentadas por algumas categorias de intensificação de uma exploração do
trabalhadores durante a atual pandemia, trabalho que o precariza, bem como
onde destaca os entregadores como um precariza as condições de vida dos
dos grupos mais atingidos. Para Alves entregadores e da sociedade como um
(2011), Casulo et al. (2018) e Castro e todo, por mais que ela não “concorde”
Casulo (2020), a precarização do com isso. Devido a uma série de
trabalho se apresenta como algo que discussões sobre o trabalho advindas da
impacta o trabalhador tanto objetiva, polarização partidária, o caráter
quanto subjetivamente, expondo–o cada equívoco do trabalho vem sendo
vez mais ao controle do sistema amplamente negado, ou pelo menos,

78
mal compreendido. Não se trata de Referência
negar o trabalho como fonte de saúde e ABILIO, L. C. Uberização: do
bem estar, mas de compreender as empreendedorismo para o autogerenciamento
complexas relações que se estabelecem subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p.
entre o homem e o trabalho que, 1-11, 2019. Disponível em:
https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_ar
dependendo de suas condições e da ttext&pid=S0718-69242019000300041 Acesso
forma como este se organiza, pode em: 12.11.2020
adoecer e até matar. Trata-se também de
_____. Uberização: a era do trabalhador just-in-
entender que as causas disso não
time? Estudos Avançados, v. 34, n. 98, p. 111-
recaem exclusivamente sobre o 126, 2000.
trabalhador, mas sim sobre muitos
fatores que envolvem o trabalho. ABÍLIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM,
H.; CARDOSO, A. C. M.; FONSECA, V. P.;
A grande precarização da atividade de KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condições de
entrega por aplicativo, principalmente trabalho de entregadores via plataforma digital
durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho
durante a pandemia, revelaram uma e Desenvolvimento Humano, Campinas,
dinâmica que desresponsabiliza EDIÇÃO ESPECIAL – DOSSIÊ COVID-19, p.
ambientalmente as empresas de entrega, 1-21, 2020.
pois sua falta de cuidado com os ALENCAR, M. M. T. O apoio às pequenas
entregadores mostra uma falta de unidades produtivas no Brasil: alternativa ao
cuidado mais ampla, com a sociedade desemprego ou (des)construção do trabalho
como um todo. Os trabalhadores assalariado no Brasil?. In: FRANCISCO, E. M.
abandonados à própria sorte, como V.; ALMEIDA, C. C. L. Trabalho, território e
cultura. São Paulo: Cortez, 2007.
ilustram as pesquisas supracitadas,
representam um maior risco de ALVES, G. O novo (e precário) mundo do
contaminação não só dentro do grupo trabalho: reestruturação produtiva e crise do
que desempenha esta atividade, mas capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
também para todos. Face ao exposto, ______. Trabalho e subjetividade: o espírito
fica evidente a necessidade de rever as do toyotismo na era do capitalismo
regulamentações que desobrigam os manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
aplicativos a observar certas relações de ______. Dimensões da precarização do
trabalho, não para inviabilizar a trabalho: ensaios de sociologia do trabalho.
atividade, mas para não inviabilizar a Bauru: Canal 6, 2013.
sociedade, através de uma extrema ______. O Duplo Negativo do Capital. Bauru:
precarização da vida. Projeto editorial Praxis, 2018.
ANTUNES, R. Adeus ao trabalho?: ensaio
sobre as metamorfoses e a centralidade do
trabalho. São Paulo: Cortez, 1999.
______. O privilégio da servidão: o novo
proletariado de serviços na era digital. São
Paulo: Boitempo, 2018.
______. Proletariado digital, serviços e valor.
In: ANTUNES, R. (org.) Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo,
2019.
______. Coronavírus: o trabalho sob fogo
cruzado. São Paulo: Boitempo, 2020.
BERNARDO, M. E. Trabalho duro, discurso
flexível: uma análise das contradições do

79
toyotismo a partir da vivencia de trabalhadores. rtigos_2020/A_pandemia_e_os_motoristas_e_e
São Paulo: Expressão Popular, 2009. ntregadores_por_aplicativo_MANZANO_M_K
REIN_A_2020_.pdf Acesso em: 15 jul. 2020.
CASULO, A. C.; SILVEIRA, C.; ALVES, G.;
VASQUEZ, P. (orgs.) Precarização do SANTOS, M. Técnica, Espaço, Tempo. São
trabalho e saúde mental: o Brasil da era Paulo: Editora Hucitec, 1994.
neoliberal. Bauru: Canal 6 (Projeto Editora
______. O espaço dividido: os dois circuitos da
Práxis), 2018.
economia urbana dos países desenvolvidos. São
CASTELLS, M.; A Galáxia da Internet. Jorge Paulo: EDUSP, 2004.
Zahar Editor Ltda. Rio de Janeiro, RJ, Edição
______. A urbanização brasileira. São Paulo:
brasileira: 2003.
EDUSP, 2005.
CASTRO, M. F. Os motoboys de São Paulo e
SATO, L. Prevenção dos agravos à saúde dos
a produção de táticas e estratégias na
trabalhadores: replanejando o trabalho através
realização das práticas cotidianas. São Paulo:
das negociações cotidianas. Cadernos de
FiloCzar, 2020.
Saúde Pública, 18 (5): 1144- 1166, 2002.
______. Asas do trabalho: um estudo do
______. Trabalho: sofrer? constituir-se?
sofrimento no trabalho dos mototaxistas. 2004.
resistir? Psicologia em Revista, 15 (3): 189-
99 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia do
199, 2009.
Trabalho) – Departamento de Psicologia
Experimental e do Trabalho, Universidade do ______. Feira livre: organização, trabalho e
Estado de São Paulo, Assis, 2004. sociabilidade. São Paulo: EDUSP, 2012.
CASTRO, M. F.; CASULO, A. C. Pandemia do SELIGMANN - SILVA, E. Desgaste mental
novo coronavírus e trabalho informal: breves no trabalho dominado. Rio de Janeiro: Editora
elementos conceituais sobre precariado e UFRJ; Cortez Editora, 1994.
subjetividade. Revista da RET – Rede de
Estudos do Trabalho, Marília, Ano XIV, v. 25, SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho
2020. Disponível em: precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
http://www.estudosdotrabalho.org/RevistaRET2 SRNICEK, N. Capitalismo de plataforma.
5.htm . Acesso em 28.11.2020. Buenos aires: Caja Negra, 2018.
FRANCO, T; DRUCK, G; SELIGMANN- SOUZA, D. As dimensões da precarização do
SILVA, E. As novas relações de trabalho, o trabalho em face da pandemia de Covid-19.
desgaste mental do trabalhador e os transtornos Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. 1-15,
mentais no trabalho precarizado. Rev. bras. 2021. Disponível em:
saúde ocup., São Paulo, v. 35, n. 122, p. 229- https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-
248, dec. 2010. Disponível em 77462021000100501&script=sci_arttext
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artte Acesso em: 26.11.2020.
xt&pid=S0303-
76572010000200006&lng=en&nrm=iso Acesso VAN DOORN, N. Platform labor: On the
em: 28.11.2020. gendered and racialized exploitation of low-
income service work in the ‘on-demand’
GORZ, A. O trabalho imaterial. In: ______. O economy. Communication & Society, v. 6,
imaterial: conhecimento, valor e capital. São n.20, p. 898-914, 2017. Disponível em:
Paulo: Annablume, 2005, p. 15-27. https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/1
LEVY, P. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 369118X.2017.1294194?needAccess=true
34, 1996. Acesso em: 20.11.2020.

MANZANO, M.; KREIN, A. A pandemia e o


trabalho de motoristas e de entregadores por Recebido em 2020-12-18
aplicativos no Brasil. Campinas: Publicado em 2021-02-01
Cesit/Unicamp, 2020. Disponível
em:https://www.eco.unicamp.br/remir/images/A

80

Você também pode gostar