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APPS - ATELIERS PRATIQUES DE PSYCHANALYSE SOCIALE [OFICINAS

PRÁTICAS DE PSICANÁLISE SOCIAL]

Hervé HUBERT - Psiquiatra, Psicanalista, Chefe de Serviço de um centro de consultas


psicanalíticas internacional em Paris. Em Paris, foi Diretor Médico no setor psiquiátrico durante
13 anos, Perito no Tribunal de Apelação durante 8 anos, Presidente da Comissão Médica de um
estabelecimento institucional durante 8 anos e responsável pela formação universitária durante
16 anos.

O QUE “O CAPITAL” TRAZ À PSICANÁLISE SOCIAL

Este é um texto derivado de uma palestra ministrada na Universidade Lomonosov em


Moscou no dia 20 de Maio de 2017 para debater os 150 anos de “O Capital”. Foi publicado em
5 de Maio de 2018 na revista eletrônica “Marximum” para o 200º aniversário do nascimento de
Marx, a fim de sublinhar a importância de Marx para um trabalho psicanalítico inovador e
necessário.
Cento e cinquenta anos após a sua publicação, gostaria de fazer uma proposta relativa à
leitura de “O Capital” que poderia aparecer em um primeiro tempo, insólita. Mantenho que o
principal trabalho de Marx é de importância fundamental e crucial para a psicanálise. Indo mais
longe, mantenho que Das Kapital é o ponto de base daquilo que chamamos “Psicanálise
Social”.
A psicanálise social, tal como a defini, difere da psicanálise clássica ao tomar como seu
objeto principal o social. O seu conceito fundamental é a transferência social (1). O campo de
intervenção da psicanálise social é, evidentemente, a análise dos processos sociais e políticos
mas, considerando o indivíduo como um ser social, seria um erro acreditar que a psicanálise
individual não está no seu campo.
Pelo contrário, trata-se de poder transformar as práticas e as teorias que atualmente
reinam no campo da chamada psicanálise individual, a fim de responder às necessidades atuais.
Esta referência ao social é baseada sobre o aporte fundamental de Marx: o ser humano é um ser
social. O desafio é, portanto, fazer uma revolução no mundo psicanalítico atual.
1. A importância da primeira seção do Livro I de “O Capital” para a psicanálise
social

A primeira seção do Livro I tem sem dúvida uma especificidade em “O Capital” e na


obra de Marx: ela é difícil, e Marx indica claramente esta característica no seu Prefácio. Isto
resultou durante muito tempo numa tendência para evitar a sua análise. Tem havido uma
tendência filosófica para ir à Seção II que trata mais diretamente da exploração capitalista e dos
seus mecanismos. Esta foi, por exemplo, a posição de Louis Althusser.
Pelo contrário, penso que é muito importante ter em conta o desejo inicial de Marx de
colocar esta seção “Mercadorias e Dinheiro” em primeiro lugar e indicar no seu Prefácio que
só ela nos permite compreender o que é a economia. Acrescentaria que o seu estudo torna
possível compreender como Marx na sua abordagem científica procedeu para analisar a
economia, os processos sociais e ainda mais as relações sociais entre indivíduos. Há um método
de Marx que é revelado na sua análise da realidade social. No seu prefácio escreve “A forma
do valor realizada sob a forma de dinheiro é algo muito simples. No entanto, a mente humana
há mais de dois mil anos procura em vão penetrar o seu segredo”. Trata-se de fato de perfurar
um segredo, o segredo do modo de produção: produzir, consumir, trocar o que é produzido.
Marx falará na Seção II sobre a transferência de valores, Wertübertragung, e isto está
intimamente relacionado com o método de análise do segredo, e este termo de transferência não
é “sem valor” em relação à questão psicanalítica.
Mais importante para os nossos propósitos, esta Seção I diz respeito à análise
fundamental da civilização, aquela em que vivemos hoje, a civilização capitalista. Neste
contexto preciso, citarei o historiador da filosofia François Châtelet: “A Seção I é uma teoria
da civilização (tal como elaborada por Rousseau e Freud)”, esta Seção I também lança “os
fundamentos de uma teoria revolucionária da civilização” (2).
Marx insiste efetivamente na forma de valor e na sua relação com o funcionamento da
sociedade, o funcionamento econômico e as relações sociais, as relações entre os seres
humanos. Nesta primeira seção, muitos pontos de análise são colocados numa posição de
homologia entre “relações de troca entre mercadorias” e “relações humanas”. Marx deixa isto
claro numa nota de rodapé do parágrafo sobre o conteúdo da forma do valor relativo: “Em
alguns aspectos, é o mesmo para o homem e para a mercadoria”.
O objeto da análise de Marx nesta primeira parte de “O Capital” é claramente a análise
das relações que os indivíduos tecem no social, as fontes que os tornam inteligíveis, e este é um
elemento crucial a ter em conta hoje para uma psicanálise que não está envolvida na
psicopatologia.

2. Contribuições e aporias da psicanálise clássica

Freud estabeleceu uma prática de encontros humanos específicos, instituindo, de acordo


com François Châtelet, uma revolução nas relações sociais, uma nova relação entre teoria e
prática. O seu instrumento consistia numa prática humana de “dizer no divã o que lhe vem à
cabeça e associar livremente as palavras”. Esta prática foi nomeada por Freud, transferência,
Übertragung. Este termo é frequentemente reduzido à questão do amor, amor de transferência,
amor endereçado ao saber e à sua suposição. Insisto da minha prática que esta transferência é
também uma transferência de palavras, de imagens e de sensações corporais que ocorrem no
que a repetição de encontros produz: o amor e o ódio. Insisto neste ponto porque existe de fato
no início uma análise freudiana que faz uma revolução em comparação com a abordagem
psicológica ou psiquiátrica. O filósofo Georges Politzer sublinha-o na sua obra fundamental
“Crítica dos Fundamentos da Psicologia” em 1928: a psicanálise freudiana traz uma nova
inspiração, a do concreto.
Politzer, que permanece atualmente o crítico inigualável da psicanálise freudiana, faz
uma observação crucial nesta fase: só as abordagens clássicas podem dar sentido ao
inconsciente. O inconsciente freudiano só pode fazer sentido a partir da psicologia clássica
abstrata, tal é o obstáculo que alimenta a aporia freudiana. Lacan criticará o inconsciente das
profundezas de Freud, metafísico, e dará uma definição materialista orientada para a questão
da relação entre o saber e sua negação, o insabido. O inconsciente se torna um saber insabido.
Lacan diz ter lido “O Capital” no metrô aos 20 anos de idade. Ele sublinhou o quanto a
obra de Marx tinha antecipado Freud e ele próprio em diferentes questões: o sintoma, o
fetichismo, o estádio do espelho, o valor. Ele utilizará o conceito de mais-valor para construir
o seu conceito fundamental de mais-de-gozar, numa posição de homologia, disse ele.
A importância de Lacan na psicanálise social é certa: ele coloca Marx no campo da
psicanálise, ou seja, no campo da prática psicanalítica. Penso que Lacan continuará famoso por
esta razão e nenhuma outra: por ter introduzido Marx! A razão da aporia de Jacques Lacan é
simples: ele permanece numa abordagem filosófica da psicanálise, em transcendência, tal como
Hegel permanece numa filosofia transcendental da História. Ele será hegeliano até ao fim do
seu ensino e falha na sua elaboração, a inversão feita por Marx em relação a Hegel. Isto traz
portanto a ele um limite e é necessário medir a periculosidade de se colocar como primado a
transformação da vida dos seres humanos em conceitos.

3. A importância do conceito de Wertübertagung

Freud a partir da transferência, Übertragung, trabalha sobre a questão do que não


queremos saber sobre o que faz a nossa vida psíquica funcionar. Marx a partir da transferência
de valores Wertübertragung trabalha sobre a questão de não querermos saber disso que faz a
nossa vida social funcionar.
Esta homologia que proponho associa diretamente a prática psicanalítica à prática
social. De modo algum acrescenta Marx à psicanálise ou Freud ao marxismo. Esta homologia
não é Freud-Marxista. A psicanálise social enfatiza antes a base social na fundação da
psicanálise, tomando como ponto de partida a proposta apresentada por Marx: o ser humano é
um ser social. Este ser social está envolvido nas relações sociais e estas relações são analisadas
de uma forma muito sútil na Seção I.
Extraio do trabalho de Marx o fato de que quando ele fala da relação entre mercadorias,
no quadro do modo de produção capitalista, ele também fala das relações entre os seres sociais.
Sublinho que isto é feito com a ferramenta conceitual específica desta seção sobre a mercadoria:
o conceito da forma-valor. Assim, quando evoca no capítulo sobre a forma-valor relativa que
“Graças à relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se assim a forma valor da
mercadoria A, ou ainda, o corpo da mercadoria B torna-se o espelho do valor da mercadoria
A”, ele especifica bem: “Em alguns aspectos, é o mesmo para o homem e para a mercadoria.
Como não vem ao mundo munido de um espelho, nem da fórmula do Eu fichtiniano, o homem
se olha primeiro no espelho de um outro homem” (3).
Os exemplos abundam, tornando possível tornar as homologias aplicáveis à prática
psicanalítica. Assim, na transferência de valores entre mercadorias A e B, Marx desliza para as
relações humanas: “Por detrás da sua alma bem abotoada, o linho reconheceu o seu belo
parente, a alma valor. O casaco, contudo, não pode representar um valor face ao linho, sem que
o valor para este último tome a forma de um casaco ao mesmo tempo. Assim, o indivíduo A
não pode relacionar-se com o indivíduo B como com uma Majestade, sem que a Majestade
tome ao mesmo tempo para A a forma corpórea de B, e assim mudando a forma do seu rosto,
do seu cabelo e muitas outras coisas, cada vez que se muda o bom pai do povo” (4).
A contribuição de Marx é crucial para a prática psicanalítica individual e coletiva. A
análise da relação entre mercadorias aplicada aos seres sociais diz respeito à relação de
igualdade baseada na relação de valor e, portanto, nas diferenças sociais. A transferência
psicanalítica diz respeito ao que engana, ao que está ocultado. A transferência de valor sobre
um produto na lógica capitalista também envolve engano: o que engana, o que está oculto na
relação de valor entre os seres humanos. Também aqui Marx é o precursor desta concepção de
transferência que será desenvolvida por Lacan.

4. O primado do valor de troca e as suas consequências na transferência de valores

A relação lógica entre as mercadorias implica estudar as relações entre a troca e o valor.
A troca implica o princípio da igualdade entre produtos, mesmo que estes produtos sejam
produtos de diferentes trabalhos. A troca induz o valor. No capítulo “O caráter fetiche da
mercadoria e o seu segredo” Marx multiplica as posições homólogas com a psicanálise. Fala de
segredo, de fantasmagoria, de transformação. O que alimenta aquilo a que chamei de
transferência social mas também a transferência psicanalítica é claramente descrito: o jogo de
suposição e atribuição, a relação com o oculto e com o não querer saber, o enganoso, o
desfrutador e o insabido. Vou simplesmente extrair esta frase:

Não é portanto porque os produtos do seu trabalho só lhes valem a pena como envelopes
materiais de um trabalho humano diferenciado que os homens estabelecem relações mútuas de
valor entre as coisas. É o inverso. É colocando em troca os seus diversos produtos como iguais
a título de valores que colocam os seus trabalhos diferentes como iguais entre si a título de
trabalho humano. Eles não o sabem mas o fazem praticamente. O valor, portanto, não traz escrito
na testa o que ele é. Pelo contrário, o valor transforma qualquer produto do trabalho num
hieróglifo social. Subsequentemente, os homens procuram decifrar o significado do hieróglifo
social, penetrar o segredo do seu próprio produto social, porque a determinação dos objetos de
uso como valores é a sua própria produção social, tal como a linguagem é (5).

É portanto a análise desta relação entre a troca, o valor e a igualdade que diz respeito ao
trabalho e, portanto, à relação de exploração, de homicídio, que se analisa o engano em que as
relações humanas e a sua violência são produzidas. Trata-se de insistir sobre a parte seguinte
da frase precedentemente citada para encontrar uma chave de interpretação:
“É colocando na troca seus diversos produtos como iguais a título de valores que eles
postulam os seus trabalhos diferentes como iguais entre si e a título de trabalho humano. Eles
não o sabem, mas eles o fazem praticamente”. É a relação de troca e de igualdade através do
valor e a sua relação que produz o hieróglifo social e a relação com o trabalho de interpretação.
A forma de valor tem um papel crucial nesta lógica. Ponto revolucionário para a questão
psicanalítica: o inconsciente, o não-saber está do lado do fazer: “Eles não o sabem mas eles o
fazem praticamente”.
O inconsciente está do lado do que fazemos, produzimos na vida social, e, o trabalho
psicanalítico, por sua vez, deve começar desse dado. Marx parte assim do concreto do gozo nas
relações sociais, do que elas produzem e dos seus efeitos nas relações entre seres humanos. Ele
dá a orientação crucial para analisar transferências singulares no que estabelece a relação de
troca e igualdade, da qual se pode tirar uma lição revolucionária na prática da interpretação.

5. As consequências da contribuição de Marx para a psicanálise social

Marx na primeira seção de “O Capital” fornece assim à análise dos fatos sociais, através
da forma valor, uma contribuição decisiva para a teoria e a prática da psicanálise. O que
acabamos de salientar é a forma lógica da matéria em jogo na lógica da Wertübertragung.
Marx estabelece um processo de objetivação do fato social. A transferência psicanalítica
é um fato social. Ao trabalhar as relações entre troca, igualdade, trabalho, valor e forma,
conseguimos separar a objetificação social do fantasmagórico em que o fenômeno religioso está
alojado. Este é um ponto de referência essencial na prática psicanalítica. É também uma bússola
importante para lançar luz sobre o fenômeno religioso na prática psicanalítica clássica e assim
modificar esta última.
Com o conceito de transferência de valores, de formas valores, é possível propor uma
análise das formas de valor contidas nas palavras, nas imagens e nas sensações corporais nos
seres sociais. Isto pode ser aplicado tanto no coletivo como no individual. A partir do trabalho
realizado pelo filósofo marxista Georges Politzer sobre o nazismo, pude analisar o engano
comportado pelos valores do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e o seu
funcionamento: valor “sangue” contra valor “ouro”.
Também fui capaz de fornecer uma lógica para o funcionamento do fenômeno
transidentitário. Ao substituir “casaco” por “casaco de mulher” e “linho” por “pele” no texto de
Marx já citado em “O Capital”, obtemos a lógica do fenômeno transidentitário: “O casaco,
contudo, não pode representar qualquer valor face ao linho, sem que o valor para esta última
tome ao mesmo tempo a forma de um casaco” (6), transforma-se em “O casaco de mulher,
contudo, não pode representar qualquer valor face à pele, sem que o valor para esta última tome
ao mesmo tempo a forma de um casaco de mulher” (7).
Esta lógica torna possível explicar e tornar inteligível o fenômeno transidentitário em
contraste com a psicanálise clássica que fala de doença mental num quadro muito retrógrado
sobre este assunto e dificulta o tratamento de transformação hormonal-cirúrgica que empurra
para a vida.
Com “O Capital”, aparece portanto evidente o papel emancipatório de Marx. O que é
ignorado por Lacan nas suas construções homólogas diz respeito a todas as consequências de
tomar em consideração o assassinato do proletário no fundamento do mais-valor, bem como o
conceito de sub-humano que lhe está ligado. Isto obstrui as perspectivas mais criativas e as mais
libertadoras.
As perspectivas de emancipação social são grandes com a psicanálise social, que
constrói uma nova relação antropológica ao assassinato e que, contra o conceito de alienação
mental, declara: “Não há doença mental mas sim um sofrimento do social psiquismo”, tomando
em relação à questão do sofrimento humano a orientação dada por Marx nos seus manuscritos
de 1844: “(...) entendido de uma forma humana, o sofrimento é um gozo que o homem tem de
si próprio” (6).

Dr. Hervé Hubert

Psiquiatra, Psicanalista

Moscou, 20 de maio de 2017.

(1) http://cocowikipedia.org/index.php?title=Transfert_social

(2) François Châtelet, Perfil de uma obra O Capital Marx, Hatier, Paris, 1975, p. 31 et 38

(3) Karl Marx, O Capital, PUF, Paris, 1993, p. 60

(4) idem, p. 57
(5) idem, p. 84-85

(6) idem, p 59

(7) Karl Marx, Os Manuscritos de 1844, Terceiro Manuscrito, Propriedade Privada e


Comunismo, em Marx, O Mundo da Filosofia, Flammarion, Paris, 2008, p.119

Tenho o prazer de acrescentar como anexo o argumento preliminar a esta conferência


“O que ‘O Capital’ traz à psicanálise social”. Este texto foi traduzido para o russo por Maria
Karzanova.
ENTRE A CONTRIBUIÇÃO E A APORIA DA CRÍTICA MARXISTA:
RETORNO SOBRE A CRÍTICA DE GEORGES POLITZER À PSICANÁLISE.
PERSPECTIVAS ATUAIS

Georges Politzer, filósofo marxista, expressou-se de forma muito importante sobre a psicanálise
freudiana entre 1928 e 1939.

Publico este artigo, que tem uma primeira versão também difundida em Setembro de
2010 no site Actuel Marx, a pedido de vários estudantes de psicanálise social. É a minha
intervenção na Universidade de Nanterre, Colóquio Internacional de Marx, estudos marxistas,
24 de Setembro de 2010. Este texto é um precursor do nascimento da APPS - Oficinas Práticas
de Psicanálise Social - em 2013, que utiliza a ferramenta Marx para analisar a transferência
social, a vida social individual e coletiva.
Desde que a evolução da minha crítica se tornou mais clara, e marcada, a aporia da
psicanálise clássica e a relevância da crítica de Politzer feita à Freud sobre seu retorno à
psicologia clássica abstrata através do conceito do inconsciente. Esta crítica também toca Lacan
pelo mesmo motivo de abstração especulativa. Assim, a referência a Politzer é essencial para a
prática e teoria, como testemunham os artigos “Crítica da religião psicanalítica clássica” neste
blog. Notas de rodapé, as referências bibliográficas podem ser consultadas no site atual
marx.parisnanterre.fr M16_Etmarx_Hubert.doc.

1. A psicanálise freudiana porta uma nova inspiração, orientada para o concreto

Politzer foi o primeiro autor da primeira grande tentativa de apresentar a obra de Freud
aos leitores franceses, como indicado na contracapa da edição de bolso do seu famoso livro
“Crítica dos fundamentos da psicologia”, que apareceu pela primeira vez em 1928. Ele
apresenta o projeto de uma “psicologia concreta”, e pensa que a psicanálise freudiana, na
Traumdeutung, traz uma “nova inspiração, contrária à da psicologia clássica”. Ele encontra
então uma oposição real entre a psicanálise e a psicologia oficial, uma oposição que qualifica
como “formas irredutíveis de psicologia: a psicologia abstrata e a psicologia concreta”. Há
claramente para Politzer um movimento fecundo que nasce com a psicanálise A psicologia
abstrata é a psicologia clássica e a psicologia concreta pode nascer com a psicanálise.

É aprofundando a forma como Freud coloca problemas e concebe o seu método que
conseguimos identificar as principais características da psicologia concreta, e uma vez na posse
das suas exigências, elas nos permite descobrir as abordagens fundamentais da psicologia
clássica, tais como o realismo, o formalismo e a abstração.

A psicanálise freudiana nos permite assim felizmente fazer uma linha de separação entre
as dimensões concreta e abstrata da psicologia na sua prática e teoria.

2. O obstáculo da psicanálise: dar sentido ao inconsciente

Politzer tece uma crítica a Freud:

Acontece que esta psicologia concreta, que vem da psicanálise, deve começar por se virar contra
esta última e servir de princípio para uma crítica interna: devemos, de fato, ter notado em Freud,
especialmente no momento da elaboração teórica dos fatos, um regresso franco à abstração. Este
retorno é muito claro e estabelecemos a sua existência, não só pelas nossas observações sobre
as noções que Freud introduz no Traumdeutung, mas sobretudo mostrando que só as abordagens
clássicas permitem dar sentido ao inconsciente. Encontrámos assim dentro da própria
psicanálise a oposição entre a psicologia concreta e a abstrata.

O obstáculo que nos leva de volta à psicologia abstrata é, portanto, “dar sentido” ao
inconsciente. Ele pensa então que os “erros freudianos” representam uma etapa necessária no
desenvolvimento da psicologia concreta, insiste no fato de que a psicologia concreta que resulta
da psicanálise já está viva hoje, e “que existe na própria psicanálise um certo número de noções
e explicações que, estando integralmente em conformidade com as exigências da psicologia
concreta, provam por este mesmo fato a sua vitalidade”.

3. “Drama, narrativa, significação”, um tríptico contra a metapsicologia

Politzer desenvolve a ideia original do drama humano como fundamento, um drama


humano iluminado pela narrativa do sujeito: “A narrativa em questão é essencialmente uma
narrativa significativa, e a psicologia só trata dela com precisão na medida em que ilumina o
drama”. Daí que a fórmula luminosa “o elemento verdadeiramente dramático (...) nada mais é
do que o significado”.
Fazendo um longo desenvolvimento sobre o Behaviorismo e Gestalt-teoria, conclui que
para ele, “o desenvolvimento da psicologia certamente traz grandes surpresas, porque a história
de uma ciência não pode ser adivinhada a priori” mas que

a psicologia nunca pode voltar ao realismo e à abstração: o problema coloca-se agora num
terreno completamente novo. E nunca poderá regressar nem à psicologia fisiológica nem à
psicologia introspectiva; há dois obstáculos no seu caminho: o comportamentalismo e a
psicanálise. Numa palavra, e independentemente da imprecisão das nossas fórmulas técnicas e
da ressonância desagradável de tais fórmulas: a metapsicologia tem vivido e a história da
psicologia começa.

Esta última fórmula condena antecipadamente o desenvolvimento de um lado teórico da


psicanálise: a metapsicologia freudiana. Politzer é portanto um leitor crítico de Freud, um Freud
que ele julgou em 1928 como o inventor de uma descoberta que poderia revolucionar a
abordagem psicológica humana. No entanto, nota importantes contradições que irá destacar no
primeiro número da sua revisão da Psicologia Concreta em 1929 com o artigo “Crise da
psicanálise”.

4. Uma essência fundamentalmente idealista e reacionária

Em Novembro de 1933, a análise de Georges Politzer era bastante diferente. No artigo


“Psicanálise e Marxismo, um falso contra-revolucionário”, ele é muito mais severo: “Nunca em
momento algum ele (Freud) ultrapassou os limites da cultura literária e médica burguesa, ao
contrário, por exemplo, de Marx e Engels. Assim, ele não tem a menor ideia do método
dialético”.
Ele indica ainda muito justamente: “Muito se tem dito, de fato, sobre a psicanálise, sobre
a dialética das tendências, e Jean Audard nos fala da “dialética do princípio do prazer e do
princípio da realidade”. Mas o “princípio do prazer” e o “princípio da realidade” são abstrações
que gostaríamos de colocar ao mesmo nível que os princípios fundamentais da ciência, tais
como o “princípio da inércia”, mas que são em realidade decorrentes do modelo de princípios
metafísicos, tais como o “princípio do bem” e o “princípio do mal”. Mas não é suficiente serem
apenas espancados uns pelos outros de princípios abstratos para ser um dialético. Assim
continua, em sociologia psicanalítica, a luta de classes é reduzida a um conflito ideal de
instâncias psicanalíticas, e segundo ele a porta da matéria está fechada à psicanálise. “(...) de
uma forma sistemática, os psicanalistas reduziram os conflitos reais e as lutas a conflitos
existentes apenas nas suas cabeças”. E Politzer condena Freud: “Ao construir por detrás do
mundo real o seu mundo ideal, Freud foi influenciado não pelas correntes científicas e
filosóficas mais avançadas, mas pelas correntes mais reacionárias”. Isto é o que escapa aos
Freud-Marxistas “Os admiradores de Freud dizem ‘Copérnico’. Os Freud-Marxistas repetem
servilmente ‘Copérnico’”.
Freud se serve da teoria reacionária da energia libidinal para explicar a problemática do
ser humano, retomando a “filosofia energética” de W. Ostwald que afirmava o movimento
concebível sem matéria. “A psicanálise, como teoria, está encerrada numa abordagem única:
para trazer tudo de volta à 'uma energia pura', ou seja, ideal, ou seja, idealista”,

(...) sair desta abordagem a psicanálise não o pode. É por isso que o seu desenvolvimento
consistiu apenas na repetição mecânica, abstrata e puramente especulativa desta abordagem, até
ao momento em que a sua aplicação à sociologia revelou a sua essência fundamentalmente
idealista e reacionária. A falsificação materialista funciona porque se trata da falsificação
energética da pulsão sexual, e ele pode afirmar "Toda a energia libidinosa da psicanálise é uma
invenção mitológica.

A manifestação é límpida:

O materialista marxista mostra por detrás da virtude dos burgueses “a ganância, a avareza, a
cobiça, a caça ao lucro e manobras na bolsa” - por detrás da filantropia do empregador, das
tentativas de corrupção. Mas o psicanalista reduz tudo isto à libido. E como ele também traz de
volta a avareza, a ganância, a caça ao lucro e as manobras da bolsa, o burguês é absolvido da
sua humilhação. E a única coisa que ainda o podia preocupar, e que de fato o preocupou nos
inícios da psicanálise, a recordação da genitália na libido, os psicanalistas suprimiram-na no
meio das contorções mais complicadas! Quantas vezes repetiram que “sexual” e “genital” não
devem ser confundidos, que “libido” não significa “erotismo genital” (...) Mas é evidente que
as contorções psicanalíticas se destinavam a acalmar a burguesia. Os psicanalistas que tanto
falam do medo diante da moralidade burguesa têm-se deflacionado diante dela,
lamentavelmente. A fim de acalmar o “idealismo” filisteu, eles castraram a libido e
transformaram-na na energia sexual dos eunucos. Através deste processo, eles acalmaram-no
efetivamente. A psicanálise já não causa mais escândalo.

Por detrás desta demonstração límpida e justa, perante a ausência total de crítica de
Freud ao capitalismo, reside no entanto a contradição transportada pelo gozo humano e a
dialética do desejo, a sua complexidade: “nem tudo” do humano é resolvido pela exploração
capitalista do humano pelo humano. Lacan será capaz de lançar alguma luz sobre esta
contradição com o conceito de gozo na última parte do seu ensino, à qual voltaremos. O outro
argumento utilizado é também correto: “Mas os psicanalistas ofereceram ao burguês outra
compensação. Eles dizem-lhes: ‘Nós ‘despojamos’ as vossas virtudes, mas não se preocupem;
fazemos o mesmo com o proletariado’”.
Assim, Georges Politzer pode concluir que

a sociologia psicanalítica é uma obra-prima da psicanálise em geral e da obra de Freud em


particular. Naturalmente, esta sociologia que traz de volta fatos sociais, que explica as
ideologias, pela energia da libido, é uma sociologia idealista (...) extremamente reacionária: as
aspirações do proletariado são trazidas de volta à energia libidinosa, da mesma forma que as
aspirações da burguesia. Em compensação da explicação libidinosa da religião, a psicanálise
oferece à burguesia a explicação libidinosa do socialismo. A revolução social já não terá bases
objetivas, mas apenas bases subjetivas libidinosas.

A observação de Politzer é importante: na atual necessidade de articular o singular e o


coletivo, a contribuição de Marx não pode ser ignorada, e Freud produz este impasse, o que
provocou Politzer a escrever: “A psicanálise enriqueceu inquestionavelmente o arsenal
ideológico da contra-revolução”. Como bússola, reteremos estas duas frases no final deste
artigo “Psicanálise e Marxismo”: “(...) temos o direito de cometer erros e todos nós cometemos
e podemos todos cometer erros teóricos e práticos” e “Trata-se de compreender os fatos à luz
deste materialismo”.

5. A decadência escolástica da psicanálise

Não nos surpreenderá que Georges Politzer tenha dado a Sigmund Freud um funeral de
primeira classe na altura da sua morte: “A morte de Sigmund Freud coloca à nossa frente o
espírito da psicanálise que, de fato, já pertence ao passado”.
Politzer caracteriza então a sua visão da história da psicanálise, descrevendo três
períodos sucessivos:
Um período de elaboração.
Um período de grandes controvérsias e de prestígio crescente.
O período de inserção na ciência oficial e na decadência escolástica.
De início, ele observa que a psicanálise é combatida pelos representantes da psiquiatria
universitária, estende-se ao chamado meio cultivado, que está no seu apogeu depois da Primeira
Guerra Mundial, e depois de a paixão ter cessado,
a resistência dos psiquiatras clássicos cai, a psicanálise por sua vez integra-se na ciência oficial,
enquanto entre os seus representantes “autênticos”, assume o aspecto de uma verdadeira
escolástica: libido, complexo, superego, etc., estes termos são transformados em muitos clichês,
e o trabalho psicanalítico anda em círculos, ruminando constantemente sobre os mesmos temas.

Para Politzer é certo que “(...) o método de Freud não justificava as grandes esperanças
que ele suscitava” e acha característico “que nas suas últimas obras Freud declarou, falando da
eficácia da psicanálise, que era, em comparação com outros métodos, apenas primus inter
pares”. Ele continua:

O fato é que os nossos meios de ação em psiquiatria permanecem, após a psicanálise, tão
insuficientes como antes. O problema que surge neste campo muito provavelmente ultrapassa o
quadro dos medicamentos psicológicos e fisiológicos tomados separadamente, bem como dos
métodos que apenas os combinam, ignorando as condições históricas objetivas no meio das
quais o homem psicopata se desenvolve como um fenômeno social e tem a necessidade de agir
sobre essas condições.

Este fato e este problema são o que conduz Politzer a arrematar: “No final, a psicanálise
é mais interessante como fato histórico do que como movimento científico, e é mais instrutiva
devido aos fatos sociais cujas reflexões contém do que devido ao conteúdo das teorias por meio
das quais nos queria instruir”.

6. Uma Psicologia profunda

A Psicologia profunda descreve o método de interpretação dos sonhos como a extração,


à luz dos materiais fornecidos pelo sujeito, do conteúdo latente do conteúdo manifesto. Esta
redução, escreve ele,

é apresentada como uma penetração no fundo da alma do sujeito, e é devido a este processo que
a psicanálise é considerada “psicologia profunda”. Esta distinção entre conteúdo manifesto e
latente foi posteriormente generalizada por Freud e aplicada não só à interpretação de sintomas
neuróticos, mas também a temas sociológicos e históricos. E é assim que ela foi aplicada à
história das ideias.

No problema da relação entre o indivíduo e a realidade que atua sobre ele e na qual ele
atua “Freud e os seus discípulos nunca chegaram a uma compreensão clara da relação entre o
indivíduo, entre a lei psicológica individual e a lei histórica”. É isso que está aqui em jogo.
Como salienta Politzer, a psicologia individual não pode ser separada da história concreta da
humanidade e sustenta que “Freud foi de fato levado a utilizar algumas fórmulas gerais para
todos os fins e a negligenciar o homem concreto na sua realidade histórica”.
Se Freud e os seus discípulos fazem numerosas alusões à influência da sociedade sobre
o indivíduo, Politzer continua, “(...) a psicanálise procura explicar a história através da
psicologia e não a psicologia através da história”. Desta orientação idealista da psicanálise, uma
tendência irracionalista, a psicologia profunda, deriva: [...] “Sabemos, de fato, que a psicanálise
foi proclamada “psicologia profunda” principalmente por causa das suas “revelações” sobre o
‘inconsciente’”.
Esta questão do inconsciente das profundezas faz Politzer escrever:

Aqui, mais uma vez, os psicanalistas encontraram-se com uma corrente ideológica reacionária.
O irracional, o inconsciente são, portanto, a lei da vida da alma. A passagem do ponto de vista
teórico ao normativo foi facilmente realizada: uma vez que, de fato, a vida mental se baseia no
inconsciente dinâmico, porquê lutar contra o inconsciente em vez de mergulhar nele? Assim, a
psicanálise - que inicialmente apareceu como dando explicações profanas aos místicos sagrados
e até foi acusada de ser profana - acabou por apoiar o misticismo em todas as suas formas. Os
múltiplos contatos estabelecidos entre religião e psicanálise, a frequência dos temas
psicanalíticos entre obscurantistas de todos os tipos, incluindo os nazis, são prova suficiente
disso.

Politzer concluiu que, do ponto de vista revolucionário, a psicanálise serviu de envelope


ao revisionismo, enquanto que o principal argumento para exaltar o caráter revolucionário da
psicanálise “consistia em dizer que a psicanálise ousava, finalmente, atribuir o verdadeiro lugar
à pulsão sexual, à libido, ao erotismo”.
Assim, foi estabelecido um certo paralelismo: “A sociologia científica criou as bases
teóricas para a supressão da exploração do homem pelo homem. A psicanálise quebrou as
cadeias do instinto sexual, uma doutrina de libertação em ambos os casos”.
Politzer considera absurdo estabelecer um paralelo entre o proletariado, ou seja, uma
classe social, e o instinto sexual, ou seja, na melhor das hipóteses, um conceito biológico. Cita
o grande utópico Fourier, que tinha feito análises brilhantes da hipocrisia, daquilo a que chamou
moral burguesa, hipocrisia neste campo que caracteriza a era da civilização, ou seja, a etapa
histórica que o capitalismo representa, e que “é a solução do ‘problema sexual’ que depende da
solução do problema social e não a solução do problema social da solução do 'problema sexual',
como os psicanalistas tendem a acreditar” (p. 2).
Esta última tendência, continua ele, “faz sobressair precisamente a característica de
abstração do meio da pequena burguesia. A observação dos fatos confirma plenamente esta
forma de ver as coisas. Não foram, de fato, as massas populares que proporcionaram à
psicanálise as suas bases sociais”.
Politzer evoca o que poderia ter sido uma ilusão na psicanálise: “(...) especialmente nos
seus primórdios, a psicanálise encontrou opositores violentos nos círculos conservadores. Esta
reação nos círculos conservadores estava ligada em particular às concepções religiosas”.
Politzer evoca dois fatos principais que possuem relação com o meio conservador: foram
estabelecidos contatos oficiais entre a religião e a psicanálise. A relação entre o nazismo e a
psicanálise.

7. A relação entre o nazismo, a psicanálise e a ciência

Este último ponto é muito atual. Politzer considera o efeito mediático do exílio de Freud
em Londres para olhar para trás em fatos concretos que revelam uma outra ligação.

É verdade que o exílio de Freud tem sido frequentemente mencionado nos círculos psicanalíticos
como um símbolo da condenação da psicanálise pelos nazis. É verdade que tem havido
declamações nazis contra a psicanálise. Não é menos verdade que a psicanálise e os psicanalistas
forneceram bastantes temas aos teóricos nazis, em primeiro lugar o do inconsciente. A atitude
prática dos nazis em relação à psicanálise foi essencialmente determinada por razões táticas. Ao
assumir a aparência de iconoclastas, os psicanalistas ofenderam profundamente os sentimentos
das massas de classe média. Esta é a especialidade histórica do anarquismo pequeno-burguês.
Para além da questão racial, foi para explorar este fato que o nazismo denunciou um pouco o
Freudismo, mas isto não o impediu de integrar os psicanalistas no pessoal nazi, nem o impediu
de emprestar temas da doutrina Freudiana.

Politzer fala de um ecletismo confuso sobre as bases teóricas da psicanálise e indica

Nestas condições, Freud estava mal equipado, no sentido literal da palavra, para analisar
corretamente os fatos novos ou relativamente os novos fatos que ele foi capaz de apontar. E,
efetivamente, quanto mais a psicanálise se desenvolvia, mais ela ficava sob a influência de
correntes ideológicas retrógradas.

Politzer nota contradições:

No entanto, é um fato que a psicologia clássica mal falava da sexualidade, que perdeu o interesse
no indivíduo concreto e no seu fundo histórico concreto, no seu ambiente vital. É também um
fato que a psicanálise tem chamado particularmente a atenção para estes temas “tabu”.
Há portanto oscilações concernentes à contribuição da psicanálise, especialmente na sua
relação com a ciência:

Mas falar de temas “proibidos” não é um título suficiente em matéria de ciência, e parece hoje
que a psicanálise fez pouco mais do que isso; não trouxe qualquer nova clareza aos problemas
colocados pelos fatos com que lidou. Os fatos que a psicanálise abordou devem ser retomados
para que possam ser corretamente compreendidos.

Se parece haver uma esperança de construir algo novo a partir da psicanálise, partindo
dos fatos tocados pela psicanálise, o fim parece-lhe provável: “É provável que hoje em dia a
psicanálise sofra um destino semelhante ao da frenologia e do hipnotismo. Tal como eles,
pertence ao passado”.
O diagnóstico é duro e ameaçador, mas Lacan nos anos 50 não era menos severo,
colocando a psicanálise num estado crítico avançado. O contexto em 1939 é sombrio e é um
fato histórico que os psicanalistas não combateram o nazismo que então produziu a sua sombra
mortal sobre a Europa e do qual Politzer foi uma das vítimas heroicas. Na sua condenação, para
além deste fato histórico, pesa também o peso da concepção da ciência, da relação com a
ciência, que conclui o seu texto da seguinte forma:

O caminho das descobertas reais e da ciência eficaz do homem não passa pelos sensacionais
“atalhos” da psicanálise. Passa pelo estudo preciso dos elementos fisiológicos e históricos, à luz
desta concepção, cuja solidez é garantida por todas as ciências naturais modernas.

Há presente nesta condenação, a noção de recurso à fisiologia, as ciências naturais


modernas, que eram então a referência histórica do marxismo, e cuja evolução estudamos no
nosso seminário “O defeito da civilização, a questão levantada por Stalin”. O que é digno de
nota, o que por vezes tem sido negligenciado e por isso esquecido nas críticas feitas a Politzer,
é que o seu trabalho parte sempre da análise dos fatos colocados na sua história, e não do
pressuposto teórico.
8. A orientação de Politzer: uma suspeita de materialismo histórico em relação à
psicanálise

Neste contexto histórico, face aos avatares psicanalíticos (a proximidade de certos temas
nazis e temas do inconsciente das profundezas, o desvio feito pela psicanálise contra o
marxismo e a revolução social e política, a promoção do indivíduo face ao coletivo, a ligação
entre a psicanálise e o capitalismo, etc.), a orientação dada por Politzer no debate foi muito
determinante na suspeita do materialismo histórico em relação à psicanálise. Isto chegou ao seu
apogeu na França com a edição de Junho de 1949 da La Nouvelle Critique, onde oito psiquiatras
comunistas publicaram La psychanalyse, idéologie réactionnaire [A psicanálise, ideologia
reacionária]. Eles retomaram os argumentos desenvolvidos por Georges Politzer na sua crítica
à ideologia psicanalítica, nomeadamente a sua degeneração extrema nos Estados Unidos da
América.
Lacan não dirá outra coisa, como já o salientamos, ao denunciar “a condição
psicológica”, a bastardização “de uma psicanálise que se tornou uma astrologia mais
decente...”. Muito mais tarde, em 1964, no seu artigo “Posição do inconsciente”, legitimou esta
suspeita e questionou os psicanalistas da parte que eles têm nesta suspeita: “Consideramos,
portanto, justificada a desconfiança que a psicanálise encontra no Oriente. Coube ao Oriente de
não a merecer (...)”.
A contribuição de Politzer parece-nos considerável na sua crítica da psicanálise de hoje,
legitimada por Lacan, e assim distanciamo-nos de certos estudos marxistas anteriores ou
contemporâneos.

9. Althusser contra Politzer

Com efeito, se a maioria destes últimos elogia Politzer é para sublinhar o seu aspecto
datado, especialmente após a chegada à cena de Lacan e Althusser. Assim Lucien Sève nota o
interesse do “retorno à Freud”, sob o signo da interpretação estrutural, e o fato de entre alguns
marxistas se estar a desenvolver uma nova atitude, fundamentalmente não-politzeriana, em
relação ao trabalho de Freud, considerado, em princípio, como cientificamente homólogo ao de
Marx. Lucien Sève cita Althusser:
Mas hoje podemos bem dizer que estes mesmos marxistas foram, à sua maneira, direta ou
indiretamente, as primeiras vítimas da ideologia que denunciaram, uma vez que a confundiram
com a descoberta revolucionária de Freud, aceitando de fato as posições do adversário, sofrendo
as suas próprias condições, e reconhecendo na imagem que lhes impôs a alegada realidade da
psicanálise. Toda a história passada da relação entre o marxismo e a psicanálise repousa, na sua
maior parte, sobre esta confusão e impostura.

Os fatos históricos passados e presentes mostram, como Lacan indica, em contraposição


a Althusser, que esta não era “uma pretendida realidade da psicanálise”, mas uma realidade
historicamente verificável da psicanálise! O retorno a Freud deve ser crítico em relação ao
próprio Freud, o que Lacan fez como um todo, exceto quanto ao ponto essencial da sacralização
do nome de Freud e das suas consequências. A nossa tese é, pelo contrário, que Lacan foi aluno
de Georges Politzer e que lhe está em dívida em muitos pontos.

10. Lacan aluno de Politzer

Lacan se alimenta de Politzer, cita-o em dois momentos do seu ensino: logo após o fim
da Segunda Guerra Mundial em 1946 e depois por volta de 1968, no período em que Marx se
tornou uma referência central no seu ensino. Lacan, no seu texto de 1946, “Formulações sobre
a Causalidade Psíquica”, dirigido ao psiquiatra francês Henri Ey, evoca Politzer e esta
“relatividade da realidade”:

(...) E do horizonte do seu círculo voltam a si considerações sobre a “relatividade da realidade”,


que o fazem não gostar da sua própria rubrica. É com tal sentimento, eu o sei, que o grande
espírito de Politzer abandonou a expressão teórica onde deixou a sua marca indelével, para se
dedicar a uma ação que o irá deliciar irremediavelmente. Pois não percamos de vista o fato, ao
exigirmos depois dele que se constitua uma psicologia concreta na ciência, que ainda estamos
apenas na fase das postulações formais. Quero dizer que ainda não fomos capazes de estabelecer
a mais pequena lei que regule a nossa eficiência.

Se Lacan evoca Politzer e de fato o elogia, não é para o enterrar como muitos o farão:
ele estabelece a exigência, depois de Politzer, de que uma psicologia concreta iniciada pela
psicanálise seja constituída como uma ciência e também considera depois dele que nenhuma
lei pode ser estabelecida que regule a eficácia de uma prática. Certamente, a posição de Lacan
irá evoluir no que respeita à relação entre a ciência e a psicanálise. Contudo, não cedeu à
necessidade de uma relação com a ciência e o seu primeiro texto de 9 de Outubro de 1967 sobre
a formação do psicanalista, este momento de passagem do psicanalista para o psicanalista na
cura, retoma os temas, provenientes de Politzer, da relação entre a psicanálise, o nazismo e a
ciência.

É o advento, correlativo à universalização do sujeito procedente da ciência, do fenômeno


fundamental cuja erupção o campo de concentração tem demonstrado. Quem não vê que o
nazismo tinha aqui apenas o valor de um reagente precursor. A ascensão de um mundo
organizado sobre todas as formas de segregação, é a isso que a psicanálise se mostrou ainda
mais sensível, ao não deixar um dos seus membros reconhecidos nos campos de extermínio.

Lacan fala nesta ocasião do “incrível obscurantismo” do público psicanalítico, onde teve
de afirmar em 1956 a situação da psicanálise. Na sua conferência no Instituto Francês de Milão
em 18 de Dezembro de 1967, “Da psicanálise em suas relações com a realidade”, Lacan
denuncia a assunção mística de um significado para além da realidade, de algum ser universal
que se manifesta em figuras, ou de experiência interior. Há também contiguidade entre a
realidade da psicanálise estadunidense e o nazismo:

(...) se vocês ouvirem falar da função de um eu autônomo, não se enganem: é apenas o tipo de
psicanalista que o espera na Quinta Avenida. Ele vos adaptará à realidade de seu consultório.
Nunca se saberá realmente o que Hitler deve à psicanálise, se não pelo analista de Goebbels.
Mas para o retorno que a psicanálise recebeu, ele está aqui.

No Natal de 1969, no seu prefácio ao livro de Anika Lemaire, Jacques Lacan, regressou
a este ponto:

Para a articulação segregativa da instituição psicanalítica, bastará recordar que o privilégio de


entrar nela após a guerra foi medido pelo fato de todos os analistas da Europa Central terem,
nos anos anteriores, sobrevivido nos países atlânticos, - de lá para o lote, para ser contido talvez
de um numerus clausus, que anunciava uma invasão russa a ser prevista. A sequência é mantida
pelo domínio estabelecido do discurso universitário na U. R. S. S. e a sua antipatia ao discurso
sectário, em contraste com o florescimento dos E.U.A. de ser o seu fundador.

Esta posição de Lacan é testemunha do ensino de Politzer. O nome deste último, aliás,
não é longo no texto. Aludindo ao que ele está para construir, os quatro discursos: histérico,
mestre, universitário e psicanalítico, Lacan comenta a propósito do discurso do mestre e do
discurso da universidade, os seus caminhos:

Os dois caminhos fundem-se quando acontece que algo é sentido no discurso que reprime, e
tanto mais que não está assegurado em lado nenhum. Foi o julgamento um dia de um Politzer
que acrescentou ao seu marxismo para ser uma alma sensível. Para reabrir o livro de bolso em
que esta "Crítica dos Fundamentos da Psicologia" reaparece contra toda a probabilidade de
consentimento do autor, não se pode imaginar as fórmulas, das quais ele se questiona "se os
pensamentos abandonados a si mesmos ainda são os atos do “Eu”?

De onde ele responde com o mesmo arremesso: “É impossível”. (p. 143 do utensílio). E
p. 151,

Os desejos inconscientes.... a consciência os percebe, mas em nenhum momento uma atividade


em primeira pessoa, um ato com forma humana e implicando o “eu” intervém. Mas o fato é que
este desejo está sujeito a transformações que já não são mais atos do “Eu”... Os sistemas
demasiado autônomos quebram a continuidade do “Eu” e o automatismo dos processos de
transformação e de elaboração exclui a sua atividade.

É aqui que a alegada crítica volta à exigência dos postulados considerados como sendo
os mais retrógrados mesmo onde persistem, nomeadamente na psicologia universitária, não
importa o que ela queira. Não é a partir do recurso ao autor, a partir do qual o discurso
universitário procederia, que explicarei como, precisamente ao promover a “narrativa” como a
própria coisa que envolve a experiência analítica, ela emerge, fantasma, por nunca ter olhado
para ela.
É no nominalismo que é essencial para a universidade moderna, ou seja, o nominalismo
com que o capitalismo fuma, que vou ler o fracasso escandaloso desta crítica. Este é o discurso
em que só nós podemos envolver cada vez mais, mesmo e acima de tudo, em amaldiçoá-lo.
(Como é risível uma operação após o fato). Os meus L's escapam com uma fanfarra da qual
perseguem esta “primeira pessoa” para fora do inconsciente. Eles sabem muito bem como este
inconsciente, eu fodo-o, como eles desejam. É “em pessoa”, dizem-nos eles, que é melhor
engoli-la.
No entanto, poderiam ter-se lembrado que eu faço dizer a verdade “eu falo”, e que se eu
afirmar que nenhum discurso é emitido de qualquer lugar, exceto devolvendo a mensagem de
forma invertida, não é para dizer que a verdade é que o Outro ilumina quem mata e quem está
sob o teto com ele.
Para Politzer, eu teria proposto a imagem do Eu incontável , definido pela única relação
de unidade que é a recorrência. Quem sabe? Eu tê-lo-ia dado ao transfinito.
Lacan comenta o colóquio de Bonneval onde os dois L, Laplanche e Leclaire, estudantes
que o traíram e participaram na sua exclusão da associação psicanalítica internacional dominada
pelos Estados Unidos, desenvolvem a tese contrária a Lacan: o inconsciente é a condição da
linguagem. Laplanche fará troça da tese de Politzer sobre a necessária continuidade do Eu.
Enquanto critica a posição de Politzer, de forma respeitosa, Lacan compreenderá que aquilo
que Politzer denuncia na sua obra de 1928, ele volta a ela ao ser envolvido no discurso
universitário e não no discurso psicanalítico. Este é o ponto essencial da questão.
As observações de Lacan foram esclarecidas em 21 de Janeiro de 1970 no Seminário
“O avesso da psicanálise”, na sessão intitulada por Jacques-Alain Miller, “Verdade, irmã do
gozo”. Lacan, então define pela primeira vez diante do seu auditório os quatro discursos, insiste
no discurso universitário e retorna a Georges Politzer. Ele dará uma chave mais clara para a
aporia de Politzer. Depois de ter evocado o sentido e o non sens [não-sentido], Wittgenstein,
Freud e o Unglauben da psicose. Lacan insistirá no ponto de “não querer saber nada do canto
de onde está a verdade”. E aí vêm os elogios, e também as críticas que nos permitem
compreender a aporia de Politzer.
Citamos Lacan:

Isto é tão patético para o universitário que o discurso de Politzer, intitulado


‘Fundamentos da Psicologia concreta’, para o qual a abordagem de análise o levou, é um
exemplo fascinante. Faz tudo parte deste esforço para sair do discurso universitário que o
moldou do princípio ao fim. Ele sente que existe algum tipo de rampa através da qual poderia
sair dela. É preciso ler este pequeno livro, reeditado em brochura sem nada, tanto quanto sei,
para provar que o próprio autor teria aprovado esta reedição, quando todos conhecem o drama
que foi para ele o fardo das flores sob as quais foi coberto o que a princípio soa como um grito
de revolta. As suas páginas devastadoras sobre a psicologia, especialmente a universitária, são
estranhamente seguidas por uma abordagem que de alguma forma o traz de volta a ela. Mas o
que o fez compreender onde havia esperança para ele emergir desta psicologia, é que ele colocou
a ênfase nisto - o que ninguém tinha feito no seu tempo -, que a essência do método freudiano
para abordar o que é sobre as formações do inconsciente, é confiar na narrativa. A ênfase é
colocada neste fato da linguagem, do qual tudo, de fato, poderia ter começado.
Estava fora de questão na altura - isso é uma pequena história - que qualquer pessoa,
mesmo na Escola Normal Superior, teria a mínima ideia do que é a linguística, mas é no entanto
singular que se tenha aproximado de tal forma que é a fonte que dá esperança do que ele
estranhamente chama psicologia concreta. Tem de ler este pequeno livro, e se o tivesse aqui,
tê-lo-ia lido com vocês. Talvez um dia o tenha aqui como tema para a nossa discussão, mas
tenho bastante coisas para dizer para não ter de me deter em algo que cada um entre vocês possa
ver a estranheza significativa - se é para sair do discurso universitário, ou se é para entrar, ou se
é para entrar implacavelmente. Isto segue-se um passo de cada vez.
O que fará ele como objeção às declarações, refiro-me à terminologia, aos mecanismos
que Freud apresenta no seu progresso teórico? - Para além de afirmar em torno de fatos isoláveis
de abstração formal, como se expressa de forma confusa, Freud deixa escapar o que é para ele
o essencial do que é necessário em psicologia, a saber que qualquer fato psíquico só pode ser
enunciado para preservar aquilo a que ele chama o ato do eu, e melhor ainda, a sua continuidade.
Isto está escrito - a continuidade do Eu.
Este termo foi sem dúvida o que permitiu ao relator de que falei anteriormente brilhar à
custa de Politzer, a quem introduziu uma pequena referência, para, por assim dizer, suavizar o
que então poderia ter tido como audiência. Que boa oportunidade para produzir um universitário
que, além disso, provou ser um herói. É sempre bom ter um de vez em quando, mas não é
suficiente, se se tirar partido dele sem ser capaz de demonstrar a irredutibilidade do discurso
universitário em relação à análise. No entanto, é de uma luta singular que este livro testemunha,
porque Politzer não pode deixar de sentir quão próxima está, de fato, a prática analítica do que
ele extrai idealmente tão completamente fora do campo de tudo o que tem sido feito até agora
como psicologia. Mas ele não pode deixar de retroceder na exigência do Eu.
Não, evidentemente, que eu próprio vejo nele algo irredutível. O relator em questão
livra-se dela com demasiada facilidade dizendo que o inconsciente não se articula na primeira
pessoa, e se arma para este fim com tais e tais das minhas declarações, sobre o fato de a sua
mensagem ser recebida Outro pelo sujeito na sua forma invertida.
Esta não é certamente uma razão suficiente. Noutro lugar, eu disse que a verdade fala
Eu. Eu, a verdade, falo. Contudo, o que não me ocorre, nem do autor em questão nem de Politzer,
é que o “eu” em questão é talvez inumerável, que não há necessidade da continuidade do “eu”
para que ele multiplique os seus atos. Este não é o ponto essencial.

Lacan elogia assim mais uma vez Politzer, que, ignorando a linguística, foi o único a
sublinhar em 1928 o fator determinante da psicanálise: “a parte essencial do método freudiano
para abordar o que é sobre as formações do inconsciente, é confiar na narrativa. A ênfase é
colocada neste fato de linguagem (...)”.
Isto é muito importante e justifica o nosso título “Lacan, aluno de Politzer”: a tese que
faz a originalidade do retorno a Freud no ensino de Lacan, e que eventualmente dará a fórmula
“o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, é bem inaugurada por Politzer em
1928. O “estruturado como” não é naturalmente politzeriano mas sim althusseriano. Contudo,
os últimos anos do ensino de Lacan são marcados pela ruptura com a psicanálise e o
estruturalismo freudiano. A ideia que submeto e trago ao trabalho é que esta última parte do
ensino de Lacan, que pode ser chamada “a orientação do real”, não é alheia à orientação
concreta.
Lacan dá assim também uma chave relativa a uma primeira aporia de Politzer.
Compreendemos por aporia o fato de se privar do caminho que permite sair da contradição, de
encontrar uma saída para a mesma. Do que se trata? Politzer critica a psicologia universitária,
a que ele chama psicologia clássica, desmantelando os seus avatares iniciados pela psicanálise.
Por tudo isso, Politzer não pode sair do discurso universitário. Lacan insiste para dizer que há
um irredutível entre o discurso universitário descoberto neste preciso momento do seu ensino e
da sua psicanálise e sublinha que Politzer está então muito próximo da solução.
Politzer esteve muito próximo da construção da psicologia concreta e do tríptico “drama,
narrativa, significação” da solução que permitiria sair do discurso universitário que é uma das
aporias da psicanálise. No discurso universitário, que deve ser diferenciado do saber produzido
pelos universitários em particular, o saber científico está ao leme e responde ao discurso do
mestre. Onde está a solução? Na prática, insiste Lacan, é portanto a prática da transferência. A
prática da transferência torna possível sair da aporia do discurso universitário. Politzer não tinha
esta prática.
Politzer atual

Politzer atual! Poderíamos dizer no final deste breve percurso. A crítica de Politzer à
psicanálise é ainda muito atual e o catálogo de observações que fez no início do seu trabalho
sobre a psicologia universitária de 1928 vale a pena repetir para a psicologia e a psicanálise de
hoje. O saber crítico que ele produziu posteriormente a partir de Marx é confirmado por fatos
históricos e retomado por Lacan: a psicanálise não combateu o nazismo (Freud era deste ponto
de vista um político reacionário), conhecia o caminho para o American way of life [estilo de
vida americano, logo, ao nosso ver, estadunidense] de uma forma caricatural e depois larvar,
apesar dos esforços de Lacan. O liberalismo tinha claramente um aliado objetivo através da
psicanálise. Isto ainda hoje está na sua maioria bem fundamentado, mesmo que as críticas
psicanalíticas, na sua maioria abstratas e idealistas, do capitalismo estejam a tornar-se mais
numerosas.
Com o conceito de drama que liga a ação, o olhar, o corpo, a narrativa que coloca o
humano feito de linguagem, a significação que pressupõe um saber, Politzer delineou uma
orientação para uma revolução na psicanálise. Lacan foi inspirado por ela, citou-a como a força
motriz do seu trabalho.
Contudo, houve uma aporia em Politzer: contradições relativas à psicanálise freudiana
que não encontraram o seu caminho e levaram a uma condenação da psicanálise. Estas
contradições estavam presentes na análise de 1928 mas levaram a um impasse devido à
impossibilidade de abandonar o discurso universitário e de entrar no discurso psicanalítico. O
que lhe faltava era esta ausência de referência à prática da transferência. Esta é a chave para a
aporia.
Isto é claro para a abordagem de Politzer, que estava, segundo Lacan, muito próxima da
solução, trata-se portanto de ter em conta este instrumento de transferência e a suposição na
relação com o saber, que está relacionada com ele. Com este instrumento, que lhe faltava, as
teses de Politzer parecem-me cada vez mais atuais e relevantes para sair de certas aporias: um
certo atolamento psicanalítico, ruminar constantemente temas repetitivos que andam em
círculos, uma articulação do singular e do coletivo envolvida em abstração especulativa.
Os psicanalistas que trabalham nas situações concretas de angústia social e da loucura
produzem, transmitem um saber e o seu reverso pelo próprio fato do encontro e transferência
com aquilo de que se trata no conflito social subjetivo e objetivo. Trabalhando a partir das
estruturas públicas herdadas da influência comunista na psiquiatria francesa entre 1960 e 1970,
estes trabalhadores da Saúde Mental têm como referência uma base social diferente para a
psicanálise e uma relação diferente com a transferência.
Lacan também fornece outro instrumento através do conceito de gozo que muda de
estatuto no seu ensino após 1968 com o termo mais-de-gozar, tomado como homólogo ao mais-
valor de Marx. O gozo do humano não se resume ao conceito de exploração. Também aqui, a
abordagem do concreto promovida pela Politzer me parece extremamente promissora, na
condição, porém, de poder fazer um retorno a Lacan a partir da Politzer! De fato, toda uma
seção do ensino de Lacan deve ser reconsiderada à luz da crítica da abstração, do formalismo
ou da especulação. É esta parte que alimentou as teses pensadas por Lacan, no sentido elevado
do termo “remendado” e não pejorativo, partindo de Lévi-Strauss, Saussure, estruturalismo, e
que dará às fórmulas “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, “o significante é o
simbólico” etc....
Acontece que é esta referência que é tomada quando se faz o estudo do que mais se pode
desfrutar. O recente livro de Pierre Bruno, Lacan, passeur de Marx [Lacan, transportador de
Marx] é uma testemunha perfeita. Esta obra, que também é bastante interessante, não tem em
conta a orientação do real, a foraclusão do sentido, que Lacan identificou em 1976 e que não
estão, portanto, sem ligação com a psicologia concreta e o obstáculo de “dar um sentido ao
inconsciente” promovido por Politzer. É significativo que na obra Lacan, passeur de Marx o
nome de Politzer apareça apenas duas vezes numa perspectiva completamente anedótica.
Na minha tese de doutoramento em Psicanálise em 2003, Transsexualisme, une logique
de retranchement [Transsexualismo, uma lógica de entrincheiramento], identifiquei a ruptura
epistemológica fundamental no ensino de Lacan, que declarou em 8 de Dezembro de 1971 no
seu seminário que “o significante é o gozo”: cai a abstração especulativa de “o significante é o
simbólico”. O significante como gozo funciona como motérialité [moterialidade],
materialidade concreta tomada numa lógica.
Isto dá uma dimensão concreta à lógica humana individual e coletiva. Registrei no
seminário “A falha da civilização no século XX, a questão levantada por Hitler – a leitura do
inconsciente” a função do mais-de-gozar de Hitler na articulação do singular e do coletivo.
Voltei a retomar sucintamente num artigo “Perda da nacionalidade e mais-de-gozar”.
Trata-se portanto de tomar a direção do trabalho na prática e na teoria a partir de Lacan
e Politzer, com a transferência enquanto uma ferramenta funcional, aproveitando ao máximo
“o indivíduo concreto e o seu meio histórico concreto”.
A aporia de Politzer pode ser transformada numa alavanca para avançar na aporia
psicanalítica de hoje. Os potenciais parecem-me consideráveis com contribuições sobre o
avesso da situação inicial: aproveitar o potencial subversivo, senão mesmo revolucionário, da
psicanálise para transformar a relação social.
A ferramenta psicanalítica da transferência e o campo da experiência da psicanálise me
permite com efeito apresentar a tese de que se a essência do homem está nas relações sociais,
como afirma Marx, nós podemos acrescentar que a relação social é uma transferência. A relação
social funciona como uma transferência, na orientação psicanalítica do termo. Esta tese, que
formulei pela primeira vez na introdução ao 1º Colóquio Internacional realizado em Havana,
cujo o título foi “Trans-Identidade, Gênero e Cultura”, em 10 de Junho de 2010, pode
desenvolver o seu potencial em histórias singulares, bem como no estudo da História. Tal é a
aposta resultante do estudo de uma aporia.

Nanterre, 24 de Setembro de 2010

Hervé Hubert, Psiquiatra, Psicanalista


Doutor em Psicanálise (Université Paris 8), Doutor em Psicologia (Université de Rennes 2)
Antigo perito no Tribunal de Recurso de Rennes
Chefe de departamento de um centro de consultas psicanalíticas gratuitas em línguas
estrangeiras em Paris
Ensinou psicanálise no Departamento de Psicanálise, Paris 8 de 2000 a 2007.
Diretor dos Seminários de Psicanálise no Instituto Paul Sivadon, Paris
PENSAR A FALHA DA CIVILIZAÇÃO CAPITALISTA HOJE COM
GEORGES POLITZER

Artigo publicado no site Le Grand Soir em 07 de Abril de 2014.

O lançamento do livro de Michel Politzer “Les trois morts de Georges Politzer” (Os três
mortos de Georges Politzer) e uma reimpressão de alguns dos seus escritos sob o título “Contre
Bergson et quelques autres” (Contra Bergson e alguns outros) pelas Edições Flammarion,
celebram de forma muito bonita o centésimo e décimo aniversário do nascimento do herói
comunista da Resistência, Georges Politzer. Este acontecimento provocado por Michel faz com
que o seu pai ganhe vida, e longe de fazer dele um ícone, permite-nos olhar para trás de uma
forma animada sobre esta força deslumbrante e revolucionária do pensamento de Georges
Politzer.
Uma força viva e deslumbrante do pensamento desde que morreu muito jovem, aos 39
anos de idade. Resistente desde a primeira hora contra o nazismo, participou na criação da
primeira rede universitária da Resistência com Jacques Decour e Jacques Solomon, publicada
nas revistas clandestinas “L’Université Libre” (A Universidade Livre) e “La Pensée Libre” (O
pensamento livre). A sua crítica ao discurso do ideólogo do Partido Nazi, Alfred Rosenberg,
proferido neste quadro, será um marco histórico. As suas ações heroicas valer-lhe-ão a pena de
ser fuzilado no dia 23 de Maio de 1942 em Mont-Valérien.

Freud e Marx

Georges Politzer nasceu em Nagyvarad, Hungria, em 1903. Como observa Michel


Politzer na contracapa da biografia dedicada ao seu pai, “(...) Georges, um estudante rebelde do
liceu que, aos 16 anos de idade, participou com um fuzil na mão da Revolução do Conselho
Húngaro de 1919 (...)” tornou-se “um jovem filósofo brilhante agregado de filosofia
impulsionado ao centro da vida intelectual em Paris apenas alguns anos após a sua partida de
uma Hungria devastada”.
Esta partida teve lugar em 1921, após o bacharelado em Budapeste. “A caminho da
Terra de Diderot, com Jacques Le Fataliste (O fatalista) perto do seu coração”, salienta Michel
Politzer, encontra-se Viena, onde ficará durante algumas semanas e descobrirá Freud. Isto
constituirá uma primeira Prägung (relevo) que fará dele o autor da primeira grande tentativa de
apresentar a obra de Freud aos leitores franceses, como indicado na contracapa da edição de
bolso da sua famosa obra “Crítica dos fundamentos da psicologia”, publicada pela primeira vez
em 1928.
O segundo Prägung foi o de Marx, para o qual desliza cada um do grupo de jovens
filósofos frequentado por Georges Politzer, nomeadamente Paul Nizan, Pierre Morhange, Henri
Lefebvre, por volta de 1928. Georges Politzer tornou-se membro do Partido Comunista Francês
em 1930. Ministrou fabulosos cursos sobre materialismo dialético na Universidade Operária de
Paris, e publicou numerosos artigos sobre Descartes, a questão da raça, nação e povo, sobre a
abstração de Bergson, sobre a mistificação de certas filosofias e o seu obscurantismo, sobre a
ideologia nazi, etc...
O que poderia ser mais estimulante do que estar no coração intelectual e militante das
duas grandes teorias da libertação, as de Freud e Marx? A riqueza de pensamento de Georges
Politzer não se limita a estas duas impressões, e há muito trabalho a fazer sobre os conceitos
essenciais de “concreto”, de “eu” e de “pensamento” que o caracterizam e que fazem a ponte
entre os dois momentos, o de um apoio da sua parte à Revolução produzida por Freud, e o de
uma militância prática e teórica orientada por Marx e Lênin, o compromisso com a Revolução
de Marx e depois com a inspirada por ela, a Revolução de Outubro e a fundação da União
Soviética. Aqui gostaria de dar alguns pontos de referência do seu pensamento a fim de iluminar
a luta contra a falha da civilização capitalista que conhecemos atualmente.

O homem concreto vivendo a sua vida única a nível humano

Para avançar rapidamente, gostaria de salientar que o termo “concreto” surge no início
de 1926 no contexto do estudo da filosofia elaborada por Georges Politzer.

(...) desde que a filosofia existe, as reflexões sobre o homem têm incidido sobre o gênero
“Homem”. Ou seja, estas reflexões movem-se num plano abstrato em que há um abismo que
separa o Homem concreto de sua vida única a nível humano. Pensamos, por exemplo sobre a
liberdade do homem, mas esta liberdade é a liberdade de todos e de ninguém. [1]
Não será este um marco importante para trabalhar sobre a falha da civilização capitalista
de hoje? Falar do Homem, um conceito abstrato, é uma operação puramente intelectual,
metafísica, enquanto que a fórmula o Homem concreto vivendo a sua vida única a nível humano
apela imediatamente ao movimento, à vida real, à vida transferencial. Que oportunidades são
dadas aos “homens concretos que vivem a sua vida única a nível humano” em países onde as
necessidades básicas de alimentação, abrigo, trabalho, saúde, educação, cultura não estão
simplesmente asseguradas por causa dos lucros bilionários obtidos por alguns?
Quem vive a sua vida única quando é destruída, assassinada por guerras e
bombardeamentos para uma chamada defesa dos Direitos Humanos organizada e selecionada
para os mesmos lucros bilionários? Quem vive a sua vida única a nível humano quando é
destroçada por violações, ameaças, torturas, assassinatos em países onde reina a ditadura da
Máfia financeira? Como psiquiatra e psicanalista, encarregado de um serviço que recebe
refugiados, sou confrontado no aspecto concreto da minha prática com os efeitos do recuo da
civilização que conhecemos hoje.
Ao examinar a falha de civilização, ao examinar a vida contemporânea no mundo, é a
partir do concreto da vida que se deve orientar e analisar as contradições humanas e as suas
aporias. Isto parece óbvio e simples, mas existe uma tendência humana para mudar a
problemática concreta do sofrimento, especialmente o sofrimento moral, para uma
problemática metafísica, que Marx formulou tão bem na sua famosa frase na “Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel”: “A miséria religiosa é tanto uma expressão da miséria real como
um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um
mundo sem coração, tal como é o espírito de um estado de coisas em que não há espírito. Ela é
o ópio do povo”.
A miséria concreta do homem concreto que vive a sua vida única a nível humano é a
bússola que explica a orientação, o deslocamento para outra miséria, a miséria religiosa. Este é
um ponto muito importante. Não se trata de colocar a luta contra a Religião na frente do palco,
mas de analisar a contradição humana. A religião é, ao mesmo tempo, a expressão do que se
refere ao declínio concreto de um ser humano e protesto contra esta verdadeira miséria concreta,
que não é sem evocar a fórmula do psiquiatra comunista Lucien Bonnafé para designar o que
se chama loucura: “avatar infeliz de um protesto justo do espírito contra uma restrição injusta”.
O tríptico: narrativa, drama, significação para uma psicologia concreta

Politzer escolheu também este termo de concretude para saudar a invenção freudiana, a
psicanálise, na sua obra publicada em 1928 “Crítica dos fundamentos da psicologia”, dizendo
que era o primeiro caminho para o que ele queria: a psicologia concreta. Este texto é
simultaneamente um elogio e uma crítica à descoberta de Freud que depois de deixar a
psicologia clássica recai nela por meio da abstração, transformando assim a psicologia concreta
numa nova metafísica, a metapsicologia. Também aqui se faz uma análise concreta da realidade.
É diferente conhecer uma pessoa levando-a a uma abstração, a um “eu desordenado de um isso
e de um supereu” ou mesmo “um sujeito que luta com um Outro (obscurantista à vontade)” ou
mesmo “uma estrutura psicopatológica”, e conhecer uma pessoa que sofre, que quer falar deste
sofrimento, e poder escutá-la com base no magnífico tríptico forjado por Georges Politzer em
1928: “drama, narrativa e significação”.
Lacan sublinhará a precocidade de Politzer em captar o nervo vivo da psicanálise
freudiana, a narrativa. Na experiência psicanalítica, trata-se de relatar um drama a fim de
produzir novos significações e de avançar para uma transformação da vida no concreto. Esta é
a base da transferência e do trabalho de encontro, longe do preconceito das famosas estruturas,
rótulos de um pseudo-saber ao serviço de um mestre e das instituições segregativas.
Esta noção de drama é importante: uma pessoa vive um drama e é através da narrativa
deste drama que um significado pessoal será colocado numa transferência. Esta é uma
orientação desalienística da psicologia, psiquiatria ou psicanálise que não parte do preconceito
do diagnóstico mas sim da relação humana.
As críticas da Politzer a 1928 são muito positivas e frutuosas. Ele critica o inconsciente
freudiano para o qual cada sonho teria um conteúdo latente, e este conteúdo latente teria um
significado inconsciente. Sublinha que o conteúdo latente é uma tradução muito pessoal de
Freud. É de notar mais tarde que esta tradução original será feita religião e que no seu retorno
a Freud, Lacan não validará o inconsciente freudiano.
Reverter a sua sentença da psicanálise de ontem para uma contribuição psicanalítica de
hoje

A partir de 1933, a posição de Politzer muda: perante o aumento do racismo e do


fascismo, ele critica radicalmente Freud e a psicanálise. Ele critica muitos pontos mas insiste
em dois deles que serão polêmicos e que dizem respeito à luta de classes e ao nazismo. Em
primeiro lugar, ele observa que a teoria da libido freudiana remete à relação de sempre existente
entre o burguês e o proletário. “Toda a energia libidinosa da psicanálise é uma invenção
mitológica”[2]. A demonstração é límpida: “O materialista marxista mostra por detrás da
virtude dos burgueses a luxúria, a ganância, a avareza, avareza, a caça ao lucro e as manobras
bolsistas” – por detrás da filantropia dos patrões, das tentativas de corrupção. Mas o psicanalista
reduz tudo isto à libido. E como ele também traz de volta a avareza, a ganância, a caça ao lucro
e as manobras da bolsa, o burguês é absolvido da sua humilhação.
Ele também insiste que “a psicanálise e os psicanalistas forneceram uma série de temas
para os teóricos nazis, em primeiro lugar o do inconsciente” ou sempre evocando o nazismo
“(...) isto nunca o impediu de integrar os psicanalistas entre o pessoal nazi, nem de tomar
emprestado temas da doutrina freudiana”.
Ao contrário da opinião de muitos psicanalistas ou filósofos, penso que Georges Politzer
está certo. Freud criticou e por vezes ironizou sobre o comunismo e o bolchevismo na União
Soviética, mas nunca fez uma crítica ao capitalismo ou ao fascismo. Houve uma passividade
por parte dos psicanalistas durante a Segunda Guerra Mundial, e esta passividade, cumplicidade
tácita, neutralidade benevolente, foi renovada durante a ditadura na Argentina ou hoje com a
ditadura financeira na Grécia. Este estado repetido de neutralidade benevolente da psicanálise
está neste contexto homólogo à neutralidade do Estado suíço.
Estas questões e os fatos históricos e políticos que lhes dão origem precisam de ser
examinados com seriedade. O Instituto Goering de Psicoterapia foi integrado na Associação
Psicanalítica Internacional com a aprovação tácita de Freud, e Edward Bernays, sobrinho de
Freud utilizou a psicanálise do seu tio para construir a propaganda da “religião do desejo” da
sociedade capitalista de consumo que ainda estamos a viver ao nível das mentalidades.
Goebbels se servirá da obra capitalista de Bernays “Propaganda” para estabelecer a sua política
de propaganda hitleriana. Assim, o papel de Bernays foi, em geral, sinistro.
Estes são elementos históricos que devem ser tomados em consideração, que é o que o
psicanalista Jacques Lacan fará, aliás. Na sua palestra no Instituto Francês de Milão, em 18 de
Dezembro de 1967, denunciou a assunção mística de um sentido para além da realidade, de
algum ser universal que se manifesta em números, ou de experiência interior. Ele faz
contiguidade entre a realidade da psicanálise americana e o nazismo:

(...) se vocês ouvem falar da função de um eu autônomo, não se enganem: é apenas o tipo de
psicanalista que o espera na Quinta Avenida. Ele irá adaptá-lo à realidade de seu consultório.
Nunca se saberá realmente isso que Hitler deve à psicanálise, se não pelo analista de Goebbels.
Mas para o retorno que a psicanálise recebeu, ele está aqui. [3]

Lacan será aluno dos escritos de Politzer sobre psicanálise e cita-o, elogiando-o em
1949: “(...) não percamos de vista o fato de, ao exigirmos depois dele que se constitua uma
psicologia concreta na ciência, que estamos ainda apenas na fase das postulações formais.
Quero dizer que ainda não fomos capazes de estabelecer a mínima lei que regule a nossa
eficiência”. Lacan retoma assim este termo de psicologia concreta e espera que ele seja
constituído como uma ciência. Muito mais tarde, em 1964, no seu artigo “Posição do
Inconsciente”, legitimou a suspeita dos marxistas em relação à psicanálise e questionou os
psicanalistas da parte que eles têm nesta suspeita: “Consideramos, portanto, justificada a
prevenção que a psicanálise encontra no Oriente. Coube-lhe não a merecer (...)”[4].
Georges Politzer nesta tragédia da barbárie nazi[5] que então se aproxima coloca os
verdadeiros problemas, e são problemas concretos que é importante resolver a fim de contrariar
a falha de civilização que hoje se anuncia. Não há nenhuma condenação ou reserva a fazer em
relação à análise de Georges Politzer sobre o estado da psicanálise em 1939, bem pelo contrário,
e cabe aos psicanalistas apreender o que ele traz na sua crítica para trabalhar sobre o estado
atual da psicanálise. Politzer carrega a força analítica das contradições do movimento histórico
vivo. Que perspectiva vívida de psicanálise nos dá ele pelo contrário! É uma questão de ter em
conta o conteúdo destas observações:

Os fatos os quais a psicanálise abordou devem ser retomados para que sejam corretamente
compreendidos. A própria psicanálise deveu o seu sucesso não aos novos meios que nos
proporcionou para conhecer um aspecto do real e para agir sobre ele, mas à sua adequação às
preocupações e à situação de certos meios sociais [6].

O que diz Georges Politzer? A psicanálise tocou os fatos de uma forma específica e dá-
nos os meios de conhecer um aspecto do real e para agir sobre ele. Este é o novo ponto e a
contribuição da psicanálise para a civilização. Qual é o obstáculo? A centralização dos
psicanalistas nas questões burguesas e pequeno-burguesas e a propaganda capitalista que na
altura tinha uma visão positiva desta ideologia da libido e do desejo, tanto na sua deriva
comercial como na sua oposição à luta de classes. Para que a prática psicanalítica seja
verdadeiramente emancipatória, individualmente e coletivamente, é necessário que seja
orientada pela questão social na perspectiva que Marx desenvolve. É primordial não ficar
satisfeito com a relação social estabelecida pela exploração capitalista e com o estado miserável
de demanda que ela produz num menosprezo do humano.
Volto do estado miserável da exigência sobre o ponto de vista de Marx sobre o ópio do
povo, que mencionei anteriormente. Isto diz respeito ao psicanalista que recebe um pedido
apanhado num sofrimento que leva sempre de volta a um estado miserável. O que diz Marx?
Na real miséria humana concreta, há uma mudança para a miséria religiosa e isto diz respeito
ao ponto central da decadência humana. Este é o nó onde podemos aprender mais sobre a
contradição: “A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto
contra a miséria real”. Freud irá para o primado da deslocação como conceito fundamental da
psicanálise e ignorando Hegel e Marx colocará um tabu sobre a contradição, “o inconsciente
não conhece a contradição”. Para uma verdadeira mudança na prática da transferência, para a
emancipação, é necessário cruzar o conceito de deslocação com o de revolução.
Isto é o que de certa forma Lacan abordará. Introduzindo Marx no campo da teoria
psicanalítica, ele será extremamente crítico do capitalismo. Isto produzirá efeito na França, mas
também em certos países da América Latina, de que muitos psicanalistas que seguem as suas
palavras irão criticar o capitalismo. Além disso, muitos psicanalistas trabalham no setor público
e têm, portanto, uma prática com outra classe social. Portanto, há uma mudança sua em
comparação com o seu período anterior à Segunda Guerra Mundial. No entanto, Lacan
permanecerá a maior parte do tempo em abstração e o que será transmitido após a sua morte
será impregnado pelas correntes que dominam os avatares escolásticos, dogmáticos e
segregativos.
Para sair da atual aporia da psicanálise, parece-me importante compreender o que
desenvolvi como conceito de transferência social num artigo anterior “Hugo Chavez, uma
transferência histórica!” [7]. A transferência é principalmente social e a transferência
psicanalítica é secundária a ela. A dialética que se desenvolve entre os dois é altamente
instrutiva.
A contribuição luminosa de Georges Politzer no seu estudo da ideologia nazi

Volto à contribuição de Georges Politzer sobre a questão da falha da civilização. Se


Politzer, para usar o termo de Lacan para ele, tomou a sociologia freudiana em aversão,
continuará o seu trabalho sobre ideologia de uma forma luminosa e estudará a ideologia nazi
numa publicação clandestina de Janeiro-Fevereiro de 1941, “Revolução e Contra-Revolução no
século XX”[8].
Cito aqui a minha palestra na Fundação Ludwig em Havana [9]. Politzer analisa o
discurso feito na Câmara dos Deputados em Paris em 1940 por Alfred Rosenberg, um discurso
publicado sob o título “Acertar contas com as ideias de 1789”. Um resumo do discurso de
Rosenberg, que é um representante do Führer [Líder], foi publicado sob o título “Sangue e
Ouro”, ou “O Ouro vencido pelo Sangue”. Politzer, passo a passo, demonstra a distorção dos
fatos que faria pensar que Hitler atacaria o Ouro do capitalismo numa "luta pela hierarquia de
valores". Ele mostra a ligação óbvia entre o nazismo e o capitalismo: como esta luta pela
hierarquia de valores cobre a luta pela partilha do mundo, como a propaganda nazi tem como
paradigma fundador o discurso da publicidade comercial capitalista.
A este respeito, Georges Politzer observa que em “Mein Kampf” [Minha luta], o Sr.
Hitler faz uma comparação entre propaganda política e a publicidade: “O que se diria,” escreve
ele, “sobre um cartaz concebido para anunciar um novo sabonete e o que diria se também
existem outros sabonetes bons? Sacudir-se-ia a cabeça. É exatamente o mesmo com a
publicidade política”. O próprio Sr. Hitler mostra que vê a propaganda política como
publicidade política, conduzida de acordo com os princípios da publicidade comercial. Ele
argumenta que a verdadeira propaganda é, como a verdadeira publicidade, propaganda de
sucesso, e que a propaganda “não tem de procurar a verdade objetiva na medida em que é
favorável aos outros... e depois expô-la com sinceridade doutrinária às massas”. Politzer conclui
que para Hitler e Rosenberg, para o nazismo, a história está subordinada à propaganda, que é
propaganda que é concebida como publicidade comercial. Isto está muito de acordo com a
posição de Edward Bernays, sobrinho de Freud.
Note-se novamente que “Esta contra-revolução destrói a democracia burguesa a fim de
estabelecer a ditadura terrorista. Isto significa que o capitalismo já não pode ser sustentado
pelos velhos métodos de dominação”. Indica também que a “luta de raças” está a substituir a
“luta de classes” como uma explicação da história.
É sobre este ponto da raça e do racismo que irei me deter por algum tempo, devido à
sua atualidade no Ocidente. Vamos estudar com Politzer o discurso de Alfred Rosenberg sobre
a Revolução: “A Revolução Francesa foi a legítima revolta do povo francês contra o espírito da
Inquisição clerical e contra a bastardização da era dinástica”. O problema não era esta revolta
legítima, mas a aceitação das ideias de 1789, e em particular a inversão da era dinástica. É
portanto o vínculo da dominação, do poder em relação a uma linhagem familiar durante várias
gerações, em relação ao sagrado, ao divino, ao poder do Além.
Esquematicamente, o que descobrimos do nazismo com a análise de Politzer pode ser
resumido da seguinte forma: o nazismo está diretamente ligado ao capitalismo, funciona
propondo na sua propaganda uma hierarquia de valores, ou seja, um eixo vertical onde um
valor, e antes de mais nada um valor racial, funciona para a massa. Este eixo vertical é também
o da dinastia real que a Revolução Francesa aboliu num momento de fraqueza, produzindo um
buraco neste eixo vertical. Trata-se portanto de restabelecer o funcionamento de um valor
relativo, a Meta grega, μετα o valor do além. Tudo isto é posto em vigor pelo método da
publicidade comercial capitalista. A raça vem antes no eixo vertical como um valor referente
ao mistério da origem. Substitui como poder cativante para as massas a origem feudal dinástica
em ligação com o sagrado e o divino que era garantido na crença.

A transferência como ferramenta revolucionária

Ao contrário de Althusser, eu penso na psicanálise como uma prática social. Eu teorizei


as transferências, tanto a social como a psicanalítica, como uma relação social em relação à
produção. Graças a uma reunião com Maxime Vivas em Setembro de 2009 tive a oportunidade
de trabalhar sobre falha civilizacional específico que diz respeito à abordagem da
transexualidade com Mariela Castro [11]. Para além desta experiência, que me ensinou os
avanços cubanos sem equivalente no domínio, também vivi e vi de forma concreta os efeitos
desta transferência social em dialética com a relação social cubana, e isto me orientou muito na
teorização da minha prática psicanalítica.
A transferência social, o militante revolucionário orientado por Marx, é necessariamente
inspirado por ela de uma forma concreta sem a saber por vezes, sem a nomear como tal. Para
Georges Politzer isto é óbvio e o encontro planejado com Michel, seu filho, organizado pela
TRIP no dia 8 de Abril, deverá esclarecer-nos sobre este assunto [12].
A relação entre Marx e a psicanálise tem por vezes dado origem a muita confusão, como
aponta Georges Politzer. Um psicanalista que se inspirou em Georges Politzer, chamado
Jacques Lacan, tirou as consequências. Ele coloca Karl Marx como responsável pela invenção
do sintoma, perante Freud, mas também como o inventor do fetichismo na sua relação com a
mistificação, precursor da fase do espelho, inventor da teoria revolucionária do mais-valor sobre
a qual Lacan construiria o seu conceito de mais-de-gozar. São muitas as invenções de Marx. E
eu acrescento: Karl Marx, analista da transferência, e teórico de uma prática do dizer, a poesia,
na sua relação com a ciência, com a economia.
Foi isto que pude expressar na Faculdade de Psicologia em Havana, em Outubro de
2012, numa conferência “O que Marx proporciona à prática psicanalítica”, onde salientei que,
a propósito do sofrimento psíquico Marx falou da alienação humana nos Manuscritos
parisienses em 1844, escreveu esta declaração que me guia em minha prática: “[...] entendido
no sentido humano, o sofrimento é um gozo que o homem tem de si próprio”[13].
Também fiquei feliz por ser o primeiro a descobrir o uso da relação entre “Psicologia”
e “concreto” nos manuscritos parisienses de Marx de 1844. Estes Manuscritos foram publicados
em 1932 em alemão, e em 1927 parcialmente em russo.

Vemos como a história da indústria e a existência objetiva constituída pela indústria são o livro
aberto das forças humanas essenciais, a psicologia do homem concretamente presente, que até
agora não foi concebida na sua conexão com a essência do homem, mas sempre apenas do ponto
de vista de alguma relação útil, porque – ao movermo-nos para o interior da alienação – só
podíamos conceber, como uma realidade das suas forças essenciais e como uma atividade
humana genérica, a existência universal do homem, da religião, ou da história na sua essência
universal abstrata (...)[14].

Concluamos com Georges Politzer sobre a falha da civilização capitalista: “Torna-se


assim claro, não só através da análise teórica, mas através dos próprios fatos, que é de fato o
capitalismo que é responsável pelo caráter estreito e corrupção da democracia burguesa
(...)”[15].

Palavras-chave: Politzer; Georges Politzer; Marx; Comunismo; Filosofia; Transferência


social.
[1] POLITZER G, Introduction, publiée dans L’Esprit, premier cahier, 1926 et repris dans «
Contre Bergson et quelques autres », Champs essais Flammarion, 2013

[2] HUBERT H, Entre apport et aporie de la critique marxiste : retour sur la critique de
Georges Politzer faite à la psychanalyse. Perspectives actuelles. Congrès Marx International
VI, septembre2010, Section Etudes Marxistes 1, site web Actuel Marx

[3] LACAN J, De la psychanalyse dans ses rapports avec la réalité in Scilicet, Le Seuil, 1968

[4] LACAN J, Ecrits, Le Seuil, Paris 1966, p. 833, Position de l’inconscient

[5] « Pour tous les hommes civilisés, fascisme est désormais synonyme de barbarie »
POLITZER G, Race, Nation, Peuple, publié dans Commune n°70, juin 1939

[6] HUBERT H, opus cité

[7] Le Grand Soir, 28 mars 2013

[8]Publié in POLITZER G, Ecrits I, La Philosophie et les mythes, Editions sociales, Paris,


1973

[9] Conférence « Réflexion psychanalytiques et marxistes sur la conversion d’Hitler à l’anti-


communisme et à l’anti-sémitisme », Conférence faite à la Fondation Ludwig à l’initiative de
Mariela Castro, La Havane, octobre 2010

[10]P. 342

[11] Le Grand Soir, Maxime VIVAS, Hervé HUBERT, le 3 mai 2010

[12] Rencontre-Débat avec Michel Politzer autour de son livre « Les trois morts de Georges
Politzer » le 8 avril, 92 bis bd du Montparnasse, à 19h voir Agenda Le Grand Soir

[13] K. MARX, Manuscrits de 1844, p. 91, Editions Sociales, Paris, 1972

[14] K.MARX pp. 94-95

[15] Révolution et Contre-révolution au XXème siècle, in POLITZER G, Ecrits 1, La


Philosophie et les Mythes, Editions Sociales, Paris, 1973,. 387
PERTINÊNCIAS E IMPERTINÊNCIAS DA PSICANÁLISE SOCIAL

O fundamento da psicanálise social parte da base concreta do ser humano: os seres


humanos são seres sociais. O mais importante a considerar na psicanálise social é o mundo real
em que as pessoas vivem e torná-lo o primado da prática. Isto é portanto diferente de uma base
que parte de um texto prévio e da sua interpretação muitas vezes religiosa, a religião de um
texto. A relevância da psicanálise social a partir desta base social é separar-se da teologia
filosófica.
Com efeito, a referência indispensável para a análise da vida social passa
necessariamente pela “ferramenta Marx”, é o que por várias razões nos afasta de uma
transferência religiosa. O principal é que se Marx pode ser qualificado como precursor de
ferramentas essenciais para a psicanálise contemporânea, ele não era um psicanalista. Portanto,
uma transferência com o “psicanalista Marx” não pode funcionar e fazer religião para os
psicanalistas, embora a transferência religiosa é óbvia para Freud e Lacan, por exemplo. No
quadro do marxismo a perspectiva é obviamente diferente, se a transferência religiosa é
claramente atenuada pela função universal das teorias de Marx, para a psicanálise clássica, cujo
fundamento é da ordem de seita, a religião floresce.
A pertinência de uma transferência não-religiosa é indispensável para se avançar rumo
a um verdadeiro trabalho relacionado com a alienação individual, coletiva e a liberdade. Este
ponto está diretamente conectado com a relevância do materialismo histórico. É impressionante
ver como o debate que se tece entre neurociência e psicanálise, por exemplo, é muitas vezes
deslocado para um debate entre idealismo e materialismo: a psicanálise estaria do lado do
idealismo e a neurociência do lado do materialismo através do cérebro. Esta base de reflexão é
obsoleta e a orientação da psicanálise social oferece outra análise digna do século XXI. É
verdade que Lacan tinha falado de motérialisme histórico, mas este jogo de palavras não deu
origem ao desenvolvimento e ao pensamento lacaniano, ele ainda permanece enraizado num
tríptico: o simbólico reacionário de Lévi-Strauss, a representação significante numa estrutura
transcendental pré-estabelecida e a propriedade privada da carta querida ao dit-parlêtre [dito-
falasser].
O materialismo histórico que descobri na minha prática permitiu a criação do conceito
de transferência de valores: valores das palavras, valores das imagens, valor das sensações
corporais, e isto foi-se estabelecendo pouco a pouco nos meus encontros com as pessoas
transidentitárias em particular. Esta transferência de valores coloca em evidência um concreto
que escapa a qualquer categorização e tem a vantagem de propor ferramentas de inteligibilidade
para a discussão ao enfatizar o conceito de valor, notadamente na atribuição dos gêneros, um
conceito de valor que permite a partilha a partilha do saber entre todos sem discriminação.
Enunciar que o fundamento da psicanálise social parte da base concreta do ser humano
pode parecer simples, demasiado simples, e no entanto, sob esta aparência, uma complexidade
do concreto está em ação. Trata-se de uma outra pertinência: a da lógica das contradições, dos
impulsos contrários. Se isto foi assinalado por Freud, pensamos que a lógica da transferência
social no comum dá uma outra significação que nos permite sair do conceito de inconsciente
das profundezas ou do inconsciente estruturado. A pertinência de introduzir a primazia da
transferência do social na psiquê, de se preocupar com o que é sociável entre o campo da
produção e o da troca permite-nos avançar para a definição de inconsciente do fazer.
Esta é a forma de deixar de ter como referência a psicopatologia e as doenças mentais
do século XIX, psicose, neurose, perversão e as suas diferentes categorizações. Ter como
referência o discurso da histérica ou o do mestre, a estrutura histérica ou psicótica, continua a
ser uma abordagem isolada dos fatos psíquicos colocados na sua história. O aforismo da
psicanálise social “Não há doença mental mas sim uma problemática do social no psiquismo”
implica uma pertinência que responde às necessidades atuais, às da realidade histórica atual.
Tomar esta orientação nos permitirá responder às preocupações das pessoas que sofrem
de seus psiquismos. Permitirá igualmente que as pessoas se apercebam do fosso crescente que
existe entre as suas práticas e as suas referências teóricas abstratas, que ao final são
essencialmente filosóficas. Georges Politzer disse-o desta forma: “Freud foi levado, de fato, a
usar algumas fórmulas gerais de captura e a negligenciar o homem concreto na sua realidade
histórica”. Marx na sua “Contribuição à crítica da economia política – Introdução aos
Grundrisse (manuscritos de 1858)” afirma:
“A produção do indivíduo singular singularizado fora da sociedade (...) é tão absurda
como o desenvolvimento da linguagem sem que os indivíduos vivam juntos e falem juntos”. A
pertinência da psicanálise social é certamente esta consideração primária da convivência e do
falar juntos.
PSICANÁLISE CONCRETA

O preliminar a qualquer possibilidade de prática psicanalítica concreta reside na análise


das relações sociais. Há muitas questões que se colocam no mundo de hoje, mas a principal
questão que deve servir de referência é a da liberdade de viver e, portanto, das liberdades
concretas dos indivíduos que estão sempre envolvidos numa relação social e política. Derivadas
desta questão surgem as da livre disposição de si, e portanto a análise das alienações múltiplas
e finalmente a da relação autoritária, repressiva e tutelar que atualmente predomina na
organização das relações humanas.
A liberdade, a livre disposição de si e a relação não tutelar com o outro são aspirações
dignas do século XXI. O nosso mundo social está num ponto de viragem na sua existência. Há
uma escolha política neste período em que outras vias são possíveis: os avanços tecnológicos
tornam possível lidar de forma diferente com as questões enunciadas anteriormente, as da
liberdade, da livre disposição de si, da alienação e da coerção tutelar. Da mesma forma, os
meios de produção de saberes, de saber-fazer, de partilha de saberes e de práticas são
catalisadores dialéticos para possíveis florescimentos de potenciais que têm sido injustamente
inibidos até agora.
Estas questões dizem respeito a muitos campos sociais: à questão da relação com o
trabalho, da relação com a propriedade, da relação com a igualdade social, da relação com a
hierarquia social, da relação com todas as formas de segregações e discriminações – sobre o
gênero e o sexo, sobre a origem através do racismo –, da relação com o colonialismo, ao modo
de produção econômico capitalista, da relação com o que é estranhamente chamado de “doença
mental”. A lista está incompleta porque o desenvolvimento dos potenciais humanos – poder-
fazer no coletivo – está atualmente obstruído por uma perspectiva destrutiva.
O concreto da vida social, das condições sociais da vida, dos meios de produção e
reprodução da vida são decisivos no trabalho psicanalítico fundamentado no primado da prática
e, portanto, numa relação social. A transferência social implica que somos, ao mesmo tempo,
agentes, efeitos e produtos das relações sociais que vivemos. Se uma prática psicanalítica
implica trabalhar sobre uma responsabilidade social individual e coletiva, sobre os efeitos da
culpabilidade e sobre a relação com a culpa, é essencial poder seguir o conselho de Volodia:
“Fazer uma análise concreta da situação concreta” e privilegiar “a contradição da realidade
vivente”.
Esta expressão, a vivente contradição da realidade vivente, é uma bússola essencial. Ela
indica o alcance decisivo dos impulsos contrários no movimento do ser social vivo, isso que
empurra de um lado é o que empurra do outro. Permite-nos identificar a lógica insinuante e
inconsciente no trabalho da vida humana. É com isso que vamos prosseguir nestes artigos
dedicados ao curso de formação “Formação para se tornar psicanalista com as Oficinas Práticas
de Psicanálise Social” a fim de avançar na análise das condições singulares do gozo e do seu
inconsciente, sempre contraditórias. Artau le Mo-Mo ensina sobre um dos aspectos das
contradições em obra no ser humano: a linguagem e a história etimológica das palavras.
O princípio humano são as relações sociais e, portanto, o problema fundamental da
segregação social, ou seja, o da separação dentro do grupo. Esta foi a raiz das tragédias do
século XX ligadas às crises capitalistas - duas guerras mundiais - e à inauguração pelo poder
capitalista de uma nova forma de segregação assassina: a barbárie nazi. Esta é uma base
indispensável a ser tomada em consideração para qualquer análise concreta dos seres humanos
que ainda vivem em sociedade e, portanto, para qualquer análise das dores psíquicas nos dias
de hoje.
Falemos então de psicanálise social e comecemos pelo socius. Socius na sua etimologia
refere-se a outro, um companheiro. Vamos citar Alain Rey no Dicionário Histórico da Língua
Francesa: “Socius, companheiro, associado (em particular num assunto comercial) e aliado.
Socius, tal como o Védico sakhâ, companheiro, remonta provavelmente a uma palavra indo-
europeia designando o companheiro na guerra”. É interessante notar um aspecto transferencial,
o estabelecimento de uma relação: “A palavra mais antiga da série de socius aparece com o
significado de comunicação, relação com pessoas que têm algo em comum”.
É assim relevante perceber o que se transmite a partir deste aspecto etimológico do
socius, à saber, uma divisão entre o conflito (guerra) entre humanos e o comum entre humanos,
sabendo que é também do comum que surge o conflito e não apenas as diferenças, e que o
resultado de um conflito tem a possibilidade de se unir no que é comum. A divisão está assim
inscrita na história etimológica da palavra socius e introduz a relação humana que funda e
produz grupos sociais. Esta divisão entre o conflito e o comum testemunha os impulsos
contrários, as contradições viventes, e coloca na problemática analítica o fundamento da relação
com o homicídio e, portanto, da negação: preliminar a qualquer possibilidade de prática
psicanalítica concreta.
O PRIMADO DA TRANSFERÊNCIA

A formação “Se formar para se tornar um psicanalista social” organizado pelas Ateliers
Pratiques de Psychanalyse Sociale [Oficinas Práticas de Psicanálise Social] (APPS) encerra a
sua primeira parte no final deste ano. A formação tem lugar na seguinte cronologia: trabalho
sobre a questão da transferência, depois a do inconsciente e finalmente a do “fazer” e portanto
do ato psicanalítico.
A orientação da APPS está ligada à psicanálise, no sentido em que liga a prática da
transferência ao inconsciente. Esta ligação entre a prática da transferência e o inconsciente é
talvez o ponto comum entre todas as orientações psicanalíticas existentes. As diferenças surgem
de variações conceituais relativas à transferência e ao inconsciente, por um lado, e da sua
articulação prática e teórica, por outro.
As Oficinas Práticas de Psicanálise Social partem de outra base que não a da psicanálise
clássica, freudiana, lacaniana ou outra psicanálise. Parte da relação com a vida social. A
transferência é – inclusive na análise individual sobre o divã ou no face a face – a transferência
social, quanto ao inconsciente, é o inconsciente do fazer, o não sabido do fazer.
Este primeiro período de formação, que assim começa com a transferência, foi evocado
em dois artigos anteriores publicados neste blog [https://www.apps-psychanalyse-
sociale.com/]: “Psicanálise concreta” e “Recomeçar pelo começo... a partir de uma outra base”.
Insisto aqui num ponto essencial: há na prática e em teoria na orientação que nós propomos
para esta nova psicanálise um primado da transferência. Este primado da transferência assinala
o primado da vida e das suas condições históricas e sociais. Não é o mesmo analisar a
transferência considerando que a vida social de uma pessoa é transferencial como é analisar
considerando que um significante representa um sujeito para um outro significante.
Este é um ponto fundamental e Georges Politzer já sublinhava em 1928, aos 25 anos, na
sua formidável “Crítica dos fundamentos da Psicologia”: “É indiscutível que o quadro teórico
da psicanálise seja repleto de elementos emprestados da velha psicologia do Vorstellung”. Esta
Vorstellung é portanto a representação do ponto arquitetônico freudiano do qual Lacan não
pôde se desembaraçar, mesmo definindo, a partir de 1971, de uma forma obscura: o gozo.
Uma análise que considera o psiquismo de uma pessoa como uma realidade psíquica
composta de representações psíquicas é diferente de uma análise que considera que há uma
transferência de questões sociais para o psiquismo de uma pessoa. Isto é importante porque a
questão da representação psíquica tem como corolário uma posição de saber dominante e
transcendental na relação de transferência. Há uma acumulação insidiosa de um saber
transcendental sobre o outro.
Isto anda de mãos dadas com o conceito de estrutura. As estruturas de neurose, psicose
e perversão existentes em Freud persistem em Lacan, apesar da sua tentativa do “sinthoma” em
1976. Esta tentativa mantém, através do conceito de suplência, a referência da psicose, uma
doença mental bem conhecida inventada pelo higienista vienense Barão Von Feuchtersleben
em 1845, retomada pelo psiquiatra alienista alemão Emil Kraepelin no século XIX e depois por
Freud. A psicanálise clássica ainda se baseia nesta concepção mais alienante e mesmo que por
vezes se disfarce com os novos termos de suplência, psicose ordinária ou mesmo “desabonados
do inconsciente”.
Demos um salto na APPS através da transferência social para sairmos destes marcos
“has-been” [já desaparecidos] que confinam sempre as pessoas à psicopatologia estrutural. A
estrutura do RSI – Real, Simbólico e Imaginário – permanece dominada em segundo plano pelo
estruturalismo de Lévi-Strauss, que reduz o segredo da vida social a uma ilusão ideológica
distanciada da ação, tal como o exprime nos seus dois livros “O Pensamento Selvagem” e
“Antropologia Estrutural”.
Dar primazia à transferência neste contexto decompõe qualquer referência à estrutura.
Também permite não cair no primado do sintoma, primado amplamente partilhado em todas as
correntes psicanalíticas, que tão facilmente se apega à estrutura e à existência de doenças
mentais. É evidente que esta transferência, sempre social, não tem como base fundamental o
amor ou ódio ou mesmo a mistificação edipiana, que apenas conduzem no trabalho individual
ou coletivo a becos sem saída perigosos e a alienações múltiplas. A nossa base fundamental é
a da relação com o outro na sua conjugação com o homicídio social.
RECOMEÇAR PELO COMEÇO... A PARTIR DE UMA OUTRA BASE

No início é a transferência. No começo da vida, enquanto ela é troca com os outros, se


produz uma transferência. Esta fórmula é tão evidente como é vivida por cada ser humano na
sua relação com o mundo, na sua relação com os outros. Este fenômeno histórico e social de
transferência produziu, num dado momento histórico, a experiência psicanalítica inventada por
Freud e a palavra transferência caracterizou a relação entre o psicanalista e aquele que está
deitado sobre o divã.
Hoje em dia, fora do mundo psicanalítico, a palavra transferência evoca antes a
transferência de fundos financeiros ou a transferência de jogadores de futebol. Transferência de
valores de mercadorias, portanto. Para os psicanalistas, a palavra “transferência” evoca
classicamente “o campo onde se joga a problemática de uma cura psicanalítica, a sua instalação,
as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução” para retomar a definição acadêmica
do “Vocabulário de Psicanálise” de Laplanche e Pontalis.
Vamos mais longe. Freud levou algum tempo para isolar o fenômeno da transferência,
disse Lacan no seu Seminário I em Julho de 1954 porque, de acordo com as próprias palavras
de Freud, ele temia-o e este é um ponto de referência muito importante para a prática atual sobre
o “que fazer?”, face ao amor de transferência nesta experiência humana em que o íntimo é
confiado. O que fazer nesses momentos transferenciais da vida quotidiana onde as significações
se deslocam, onde os impulsos transbordam, onde os fenômenos humanos de engano e
dissimulação levam a significações que atribuem intenções aos outros, ao socius, com quem se
estabelecem relações sociais. O que pode ser feito a partir da experiência de transferência onde
o fenômeno fundamental da angústia do encontro humano, da produção de efeitos humanos em
encontros repetidos, e notadamente a ocorrência de amor e ódio, se manifesta? Freud confiou
no seu conceito de inconsciente para responder a esta pergunta, e esta permaneceu como a
principal característica da psicanálise.
Se Georges Politzer em 1928 saúda o possível caminho para uma psicologia concreta
proposta por Freud, critica imediatamente este conceito de inconsciente, indicando que só a
psicologia clássica, abstrata e reacionária o pode explicar. O trabalho de Freud é apanhado em
muitas contradições, contrariedades, e Politzer continua ainda a ser o melhor crítico destas
contradições.
Lacan, de fato, no seu retorno a Freud parte estranhamente de uma leitura hegeliana de
Freud, enquanto este último considerava o sistema hegeliano uma loucura! Continuará
empenhado em produzir uma filosofia de psicanálise, como aponta Louis Althusser, tal como
outros produzem filosofias hegelianas da história, sem qualquer influência sobre a vida e a
transferência que a produz. Lacan permanecerá hegeliano até ao fim, e isto marca
definitivamente o seu limite.
Trata-se portanto, a partir da vida social que é sempre transferencial, de propor e
construir uma outra prática e uma outra teoria numa dialética de contradições humanas, uma
dialética de propósitos contrários. É aqui que se trata de retomar esta abordagem ao fenômeno
transferencial iniciado pela psicanálise clássica, e a contribuição de Marx para a história das
contradições da vida social e da história humana é uma base essencial e incontornável. É neste
contexto que a transferência social, transferência de valores, Wertübertragung, apareceu na
nossa fábrica de ferramentas analíticas.
O trabalho com a psicanálise social e as Oficinas Práticas de Psicanálise Social [APPS]
se baseiam portanto numa concepção de transferência diferente das de Freud e Lacan, e portanto
numa outra prática de transferência. Não há aqui continuidade teórica nem prática entre a
psicanálise social e a psicanálise clássica. Não se trata de modo algum de acrescentar uma
análise das contradições da vida social à psicanálise existente. A formulação “Partir de outra
base” exclui-a.
Isto corresponde a outra prática face às segregações humanas. Os debates recentes sobre
os PMA [Pays les Moins Avancés – Países Menos Avançados] atestam isto: o Complexo de
Édipo, a ordem simbólica e a ordem do Nome-do-Pai estão ao serviço de uma privação de
liberdades, uma privação estúpida e cruel. Estas concepções testemunham uma relação com o
saber sobre a vida humana que exclui o saber das pessoas em questão sobre as suas próprias
vidas.
Como isso é fabricado? Primeiramente, em nome do princípio de que há outros saberes
contidos no discurso da pessoa e que a pessoa não tem consciência disso... Que há uma
ignorância nos nossos dizeres e nas nossas ações, naquilo que produzimos na nossa vida, e isso
também é evidente. Se o analista assume a tarefa de interpretar esta cegueira de um texto
sagrado, o de Freud ou o de Lacan, é outra questão. O que se lê, assim chamado no outro, já
está na mente do psicanalista clássico. Dois outros avatares são acrescentados a esta forma
religiosa de considerar a interpretação psicanalítica: o fato de tomar o inconsciente como uma
entidade, uma instância, em primeiro lugar, ou como uma estrutura (o inconsciente estruturado
como uma linguagem).
Os anos 60-70 são frequentemente considerados como libertadores a nível intelectual.
Existem naturalmente contribuições contraditórias, mas é apropriado hoje em dia perceber que
a estrutura e o objeto tomaram a dianteira no que foi produzido durante este período histórico.
Assim, com esta transformação da vida social em conceitos psicanalíticos, sócio-filosóficos ou
antropológicos, o reinado do objeto foi afirmado: a pessoa viva é nele enterrada. Seja com Lévi-
Strauss, Foucault ou Lacan, não há mais história. O desenvolvimento conceitual, os
instrumentos utilizados, provêm de uma concepção anti-histórica e metafísica do ser humano.
Politzer salientou o perigo: não é a história concreta, viva e contraditória que é o
fermento da psicanálise, mas a interpretação metafísica feita a partir de conceitos psicológicos
ou psicanalíticos produzidos por um período histórico dado, neste caso uma ordem capitalista,
patriarcal e religiosa. Os conceitos psicopatológicos utilizados pelos psicanalistas clássicos são
fundamentalmente e dramaticamente anti-históricos, desde o conceito de histeria, passando
pelo de perversão, até à aberração do de uma entidade “psicótica”. Isto está de acordo com a
concepção anti-histórica do famoso complexo de Édipo.
Não é o que acontece no psiquismo o que explica a história social, mas sim a história
social que é transferida para o psiquismo. A transferência como transferência social e a
transferência de valores torna possível partir da história, tanto individual como coletiva, e do
modo de produção correspondente. É então a ferramenta que permite à pessoa em questão
participar na descoberta do que lhe acontece na sua vida. O não sabido, o que é inconsciente,
está então do lado do “fazer” e não do lado do primado transcendental da “ler”. A libertação
que está na base da nossa prática em psicanálise social é a libertação que diz respeito aos seres
humanos, ao nível das práticas individuais e coletivas, das suas relações práticas com os meios
que utilizam para produzir as suas vidas e das suas relações práticas com os seus produtos.
O PENSAMENTO HUMANO VIVE NUMA RELAÇÃO

Optei por publicar um comentário feito durante a nossa formação sobre a contribuição
de Marx para a psicanálise social, a fim de desenvolver a já conhecida fórmula “Há uma
transferência do social no psiquismo”. É o comentário da tese II do texto de Marx “Ad
Feuerbach” (1845). O texto da Tese II é o seguinte:

A questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria,
mas uma questão prática. É na prática que o homem tem de fazer a prova da verdade, ou seja, a
realidade e o poder do pensamento, a prova de que ele é deste mundo. O debate sobre a realidade
ou a irrealidade do pensamento isolado da prática - é uma questão puramente escolástica. (1)

É um ponto essencial para qualquer praticante que acolhe a dor, o sofrimento no


psiquismo de uma pessoa, perguntar a si próprio o que essa pessoa está a pensar, como se fabrica
esse pensamento. É por isso que considero este texto particularmente interessante porque ele
coloca em tensão o pensamento, a verdade e a prática numa relação com o objetivável.
O que está em jogo para Marx pode ser filosófico, mas isso não importa! O que é
importante aqui é introduzir a ferramenta Marx para avançar na análise da transferência social,
isso que se transfere nas relações sociais, das relações humanas para o psiquismo, o
pensamento. Acentuo, portanto, em parte, esta tese II em direção à tese VI que afirma que “a
essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular” mas “na sua realidade
efetiva, ela é a totalidade das relações sociais”.
Vamos para esta questão do pensamento, do psiquismo, colocar em tensão com as
relações sociais, as relações com o socius, o outro. O que penso eu, o que pensa outro, o que
pensam os outros? Estas são questões banais da vida quotidiana que podem constituir um drama
ou uma tragédia na vida humana. Como podemos saber se este pensamento tomado numa
relação com os outros é verdadeiro e como podemos objetivar esta verdade? No texto de Marx,
tratar-se-ia, portanto, de atribuir uma verdade objetiva a um pensamento.
Retornemos ao texto em alemão:

Die Frage, ob dem menschlichen Denken gegenständliche Wahrheit zukomme - ist keine Frage
der Theorie, sondern eine praktische Frage. In der Praxis muss der Mensch die Wahrheit, i.e.
Wirklichkeit und Macht, Diesseitigkeit seines Denken beweisen. Der Streit über die
Wirklichkeit oder Nichtwirklichkeit des Denkens - das von der Praxis isoliert ist - ist eine rein
scholastische Frage1 (2)

O verbo Zukommen relie Denken (pensamento) e gegenständliche Wahrheit (verdade


objetiva). Ele assinala um movimento no sentido, o movimento entre o pensamento e a verdade
objetiva. A atribuição e o ter estão por vir. E é na prática que esta atribuição é feita. Faz-se
assim: "É na prática que o homem tem de fazer prova de verdade, ou seja, da realidade e da
potência do pensamento, a prova de que ela é deste mundo.
As palavras Wahrheit, Wirklichkeit, Macht, Diesseitigkeit – Verdade, Realidade,
Potência, deste mundo são assim determinantes e ligados pela sua relação com a Práxis -
Prática. Wirklichkeit é o real efetivo da vida social e da transferência social, a potência designa
a força material do pensamento e Diesseitigkeit sublinha o caráter terreno (deste mundo) do
pensamento. Este último termo parece-me importante. Georges Labica no seu estudo “As teses
sobre Feuerbach” insiste nesta palavra “emprestada à língua do quotidiano, o nível do solo
ordinário” (3). Isto refere-se à crítica de Marx à filosofia alemã na ideologia alemã:

Em contraste com a filosofia alemã que desce do céu para a terra, é da terra para o céu que se
sobe aqui. Por outras palavras, não se parte do que as pessoas dizem, imaginam, representam a
si próprias, nem do que são nas palavras, pensamentos, imaginação e representação dos outros,
para em seguida resultar nas pessoas de carne e osso; não, parte-se de pessoas na sua atividade
real, é do seu processo de vida real que se representa também o desenvolvimento das reflexões
e ecos ideológicos deste processo vital. E mesmo as fantasmagorias no cérebro humano são
sublimações necessariamente resultantes do processo da sua vida material que se pode constatar
empiricamente e que se baseia em fundamentos materiais. Como resultado, a moralidade, a
religião, a metafísica e todo o resto da ideologia, bem como as formas de consciência que lhes
correspondem, perdem imediatamente toda a aparência de autonomia. Eles não têm história, não
têm desenvolvimento; pelo contrário, são os homens que, desenvolvendo a sua produção
material e as suas relações materiais, transformam a sua própria realidade, os seus pensamentos
e os produtos dos seus pensamentos. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida
que determina a consciência. Na primeira forma de considerar as coisas, parte-se da consciência
como o indivíduo vivo, na segunda forma, que corresponde à vida real, parte-se do próprio
indivíduo real e vivo e considera-se a consciência apenas como a sua consciência. (4)

Será necessário compreender todo o alcance deste excerto num artigo posterior, mas a
importância das últimas frases deve ser realçada:

... é pelo contrário os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações
materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos

1
A questão de saber se o pensamento humano tem direito à verdade objetiva - não é uma questão de teoria, mas
uma questão prática. Na prática, o homem deve provar a verdade, ou seja, a realidade e o poder, esta faceta do seu
pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento - que é isolada da prática - é uma questão
puramente escolástica (tradução independente). (2)
do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a
consciência. Na primeira forma de considerar as coisas, parte-se da consciência como o
indivíduo vivo, na segunda forma, que corresponde à vida real, parte-se dos indivíduos reais e
vivos e considera-se a consciência apenas como a sua consciência.

Partindo da consciência, do pensamento e da mente como base é um impasse e trata-se


de se introduzir as condições da vida social que produzem os pensamentos, as condições da
transferência social que nos permitem trabalhar a lógica da “consciência unicamente como a
consciência dos indivíduos com uma atividade prática”, uma variante da versão do texto citado
de Marx. A produção do pensamento parte destes dados sociais vivos e a inversão Céu/Terra é
parte do trabalho de “retificação subjetiva” em psicanálise social. A palavra Diesseitigkeit
ilustra isto, e este termo deve ser contrastado com o transcendental, como aponta Cyril Smith:
“A estranha palavra Diesseitigkeit pode ter um pouco mais de peso do que por vezes é
imaginado. É escolhido como o oposto de “Jenseitigkeit”, “o outro-mundo” ou transcendência,
o que é muito mais comum” (5). O trabalho sobre o real efetivo da transferência social começa
por tomar outra base que não a transcendental e a questão do primado do outro mundo.
Isto pressagia aqui um trabalho sobre as mistificações das abstrações freudianas onde
por detrás da narrativa do paciente, existiria um outro texto, um conteúdo latente ao sonho ou
à vida social, à história, um para além do μετα da metapsicologia ou dos Jenseits do
Lustprinzips, para além do princípio do prazer, que Politzer denunciará com razão (6). A
abordagem contida na tese II de Marx permitir-nos-ia analisar em detalhe as contradições da
psicanálise clássica, que se refere sempre a uma “vida após a morte”.
A frase de Hegel retomada por Lacan sobre o discurso da bela alma encontra a sua
verdadeira crítica neste contexto. Hegel faz da bela alma uma das figuras de consciência em A
Fenomenologia do Espírito. Esta figura acredita ser perfeitamente pura e queixa-se do mundo
que é mal feito e fabrica o seu próprio infortúnio. Certamente o trabalho de enunciação permite-
nos avançar na parte que regressa à bela alma na desordem do mundo que denuncia como
propõe Lacan, mas é de fato com a dimensão do Diesseitigkeit, o oposto da transcendência da
psicanálise clássica, que devemos avançar.
Marx propõe colocar no centro da questão da transferência social a atribuição do
pensamento, a questão da relação do pensamento com a verdade prática, o que se revela
verdadeiro na prática social. Tomar a relação com o pensamento ou a ideia como uma questão
prática social é profundamente inovador para qualquer um que deseje lidar com a dor, o
sofrimento no psiquismo.
Trata-se primeiramente de não construir o mundo real a partir da ideia, o que Lenine
censura ao Dühring quando evoca as sensações e os complexos de sensações: “A concepção do
senhor Dühring é idealista, coloca a coisa inteiramente sobre a cabeça e constrói o mundo real
a partir da ideia” (7). Isto é muito importante para a prática na transferência social. A crença no
domínio do pensamento deve ser posta em prática na análise concreta da situação concreta,
individual e coletiva.
Em suma, o âmbito desta tese II, que coloca em relação pensamento, prática e verdade
objetiva, é considerável. Faz uma revolução em vários pontos, mas vou me centrar no campo
da psicanálise social. Ligando-a à tese VI, rompemos com a clássica divisão sujeito/objeto e
revolucionamos a abordagem psicanalítica, o que explica o título da minha exposição: O
pensamento humano vive numa relação social. Este é um primeiro ponto extremamente
importante no que diz respeito à abordagem da questão humana. O segundo ponto diz respeito
à questão da atribuição social, que organiza uma boa parte das dores e do sofrimento no
psiquismo. A questão da atribuição social é de fato fundamental para o ser humano que é um
ser social, um ser que tem uma relação com o trabalho, e nesta relação com a atribuição social,
há a atribuição de uma significação social.
Que significado tem uma palavra em relação a outra, aos outros, que valor tem no meu
pensamento, o meu pensamento, o pensamento de um outro, o pensamento dos outros? Da
mesma forma para um gesto do corpo, um sentimento corporal, um olhar, uma imagem? O que
este valor atribuído indica na transferência com o outro, na relação com o outro? Qual
significação vai ser atribuída? Será isto verdade? Como isso pode ser objetivado? O que fazer
com estas transferências linguageiras de palavras, estas transferências visuais de imagens e de
olhares, estas transferências de emoções corporais no pensamento?
A revolução da ruptura com a divisão sujeito/objeto tem implicações para o segundo, o
da atribuição social. Isto também está provado na relação social produzida com os outros e esta
prova dará origem a construções ascendem e descendem no psiquismo: atribuições de
significações, atribuições de intenções, possibilidades de fazer. É uma questão de destacar cada
vez mais as condições sociais da produção do pensar. O pensamento humano vive numa relação
social prática. Nesta tese II começa uma nova prática: o pensamento é da ordem da prática. Tal
como não existe tal coisa como um indivíduo sozinho, não existe tal coisa como pensar sem
prática. É uma questão de pensar sobre homens reais, a vida social real, a história real, o mundo
real, a ciência real na análise da transferência social sempre em ligação com a atividade prática.
Talvez consigamos ouvir o grito de Antonin Artaud desta forma? “Sofro de uma terrível
doença do espírito. Os meus pensamentos abandonam-me em todos os graus. Desde o simples
fato de pensar até ao fato externo da sua materialização em palavras”.

(1) Karl Marx, Friedrich Engels, L’Idéologie allemande, Editions sociales, 1976, traduction
Gilbert Badia.
(2) in Georges Labica, Karl Marx, les thèses sur Feuerbach, Syllepse, 2014, p. 23.
(3) idem, p. 57.
(4) opus cité, p. 20-21.
(5) Cyril Smith, Karl Marx and the future of the human, 2004.
(6) Georges Politzer, Critique des fondements de la psychologie, 1928.
(7) Lénine, OC 14, p. 40, Editions sociales, 1962.
OS ANÉIS DE LÊNIN E A TRANSFERÊNCIA SOCIAL

Artigo publicado em l'Humanité em inglês em 25 de Maio de 2020, traduzido por Stephen


Chalk.

Parte 1

Trata-se de uma reformulação de um texto, colocando a ênfase na transferência social,


que foi originalmente publicado em 22 de Abril, por ocasião do 150º aniversário do nascimento
de Lênin. Faz parte do tríptico “Os anéis de Lênin e a transferência social”. Escolhi um pequeno
texto de Lênin, um parágrafo retirado do artigo “As Tarefas Imediatas do Governo Soviético”
publicado em Abril de 1918, a fim de sublinhar a contribuição de Lênin para aquilo a que foi
dado o nome de “transferência social” pela nossa associação APPS (Ateliers Pratiques de
Psychanalyse Sociale [“Oficinas Práticas de Psicanálise Social”] em 2013. A contribuição de
Lênin para a psicanálise social está longe de se confinar a esta passagem, e vamos elaborar uma
série de artigos a nível da nossa associação, trabalhando sobre este aspecto bastante pouco
conhecido das obras de Lênin. Trata-se, portanto, de uma introdução a um trabalho mais
substancial. Por que a escolha deste pequeno texto de 1918? Considero este parágrafo essencial,
pois diz respeito à própria base do que constitui a especificidade da psicanálise social: a
transferência social.

Transferência Social

A transferência social pode ser simplesmente definida como sendo aquela que é
transferida, deslocada, transportada, por vezes sem o nosso conhecimento, nas relações sociais,
na vida social. Esta transferência diz respeito ao indivíduo e ao coletivo. Como seres humanos,
somos ao mesmo tempo agentes, efeitos e produtos das relações sociais numa dada sociedade,
num dado momento histórico. O trabalho de análise prática da transferência social diz respeito
ao que é transferido, transportado do social para o que é psíquico, para o pensamento. Diz
respeito tanto ao individual como ao coletivo. Esta análise da transferência do conflito social
para a mente é feita através de dois instrumentos bem conhecidos na psicanálise clássica: a
transferência e o inconsciente. No entanto, a psicanálise social funciona numa base diferente da
psicanálise clássica freudiana ou lacaniana, e transformou os instrumentos iniciais. A
transferência é assim “transferência social” e o inconsciente é “o inconsciente do fazer”.

Transferência de valores

A base da psicanálise social é a vida social e o primeiro analista da vida social na


civilização capitalista é inquestionavelmente Marx: o indivíduo é um ser social. Na primeira
seção do Capital Volume 1, ele analisa as relações que os indivíduos estabelecem na vida social,
o funcionamento oculto que permite torná-las inteligíveis, e é sobre o valor que ele traz à luz a
sua reflexão. Resumi a contribuição de Marx para a psicanálise social numa palestra dada na
Universidade Lomonosov em Moscou, em Maio de 2017, para o 150º aniversário da publicação
da Capital (2). Tomo esta simples frase do capital analisando as relações sociais: “Quando,
portanto, Galiani diz: o valor é uma relação entre duas pessoas [...] ele deveria ter acrescentado:
uma relação escondida sob a concha material das coisas”. Esta função de valor nas relações
sociais induziu-me a tomar o termo Wertübertragung, a transferência de valores, de Marx, para
explicar o que é transferido nas relações sociais entre seres humanos, o que é transportado, o
que é deslocado, o que é escondido, o que engana, o que atribui uma intenção e o que tem
consequências.
Esta análise da transferência de valores é combinada com a análise do que está fora da
nossa consciência, ou seja, do inconsciente: o que não se quer saber, ver, sobre o que é
transferido, como seres humanos ao mesmo tempo agentes, efeitos e produtos das relações
sociais de produção numa dada sociedade, num dado momento histórico. Este inconsciente,
portanto, não diz respeito nem ao inconsciente interior de Freud nem ao inconsciente estrutural
de Lacan, mas sim ao inconsciente do fazer, o verbo preferido de Lênin, fazer.
Análise do texto “As Tarefas Imediatas do Governo Soviético”

Quero acima de tudo tratar da transferência, da transferência social, com base neste texto
de Lênin e proponho-me, portanto, analisá-lo por etapas. A primeira fase do trabalho consiste
em fornecer o texto “As Tarefas Imediatas do Governo Soviético”, que é um instrumento
prático para assegurar o sucesso dos soviéticos na Revolução de Outubro, iniciada seis meses
antes. Proponho-me trabalhar com base nas versões publicadas nos trabalhos completos. Em
francês, vou referir-me às Obras Completas publicadas em 1961. [Em inglês, “Coleta de
Trabalhos” publicados em 1965 C.W., Volume 27, Fevereiro-Julho 1918, Editora Progresso,
Moscou (1965)] escrito em Março-Abril 1918, Publicado em 28 de Abril, no Pravda Número,
83. O título do artigo é o seguinte: “As Tarefas Imediatas do Governo Soviético” (pp. 235 a
277) O trecho que estou a pôr a trabalhar faz parte do capítulo “O Desenvolvimento da
Organização Soviética” (pp. 272 à 275). O pequeno trecho está na p. 274.

Não basta ser um revolucionário e um adepto do socialismo ou um comunista em geral. Deve


ser capaz de encontrar em cada momento particular o elo particular da cadeia que deve agarrar
com todas as suas forças a fim de segurar toda a cadeia e de se preparar firmemente para a
transição para o elo seguinte; a ordem dos elos, a sua forma, o modo como estão ligados entre
si, a forma como diferem uns dos outros na cadeia histórica dos acontecimentos, não são tão
simples e não tão insignificantes como os de uma cadeia vulgar feita por um ferreiro.

A versão russa escolhida está também nos trabalhos completos publicados em Moscou
em 1962 pelo Instituto do Marxismo-Leninismo. O título do artigo é: очередные задачи
советской власти [tarefas regulares do governo soviético]. O trecho provém do capítulo:
развитие советской органнзации [desenvolvimento organizacional soviético]. Está na p.
205.

недостаточно быть революционером и сторонником социализма или коммунистом


вообще. Надо уметь найти в каждый особый момент то особое звено цепи, за которое
надо всеми силами ухватиться, чтобы удержать всю цепь, и подготовить прочно
переход к следующему звену, причем порядок звеньев, их форма, их сцепление, их отличие
друг от друга в исторической цепи событий не так просты и не так глупы, как в
обыкновенной кузнецом сделанной цепи2.

2
Não basta ser um revolucionário e um defensor do socialismo ou um comunista em geral. É necessário ser capaz
de encontrar em cada momento especial aquele elo especial da cadeia, que se tem de agarrar por todos os meios
para se agarrar a toda a cadeia, e preparar firmemente a transição para o elo seguinte, e a ordem dos elos, a sua
forma, a sua embraiagem, a sua diferença uns dos outros na cadeia histórica dos acontecimentos não é tão simples
e não tão estúpida como numa cadeia feita por um ferreiro comum [tradução independente].
A primeira frase “Não basta ser um revolucionário e aderente do socialismo ou um
comunista em geral” pode ser interpretada da seguinte forma. Nas tarefas imediatas a realizar
para implementar e estabelecer a revolução social, não basta apelar a um Estado ou a uma
nomeação. Não é suficiente ser ou dizer que se é comunista, ou revolucionário. Chamar-se um
nome não é suficiente, chamar-se a si próprio revolucionário ou comunista não é suficiente. O
nome não é suficiente. O importante, claro, é o fim da frase “em geral”. Isto relaciona-se com
o impasse comum de que a abstração especulativa é o veículo. Marx indicou o perigo desta
abstração particular que se desenvolve com o capitalismo. É uma questão de colocar a primeira
importância sobre a prática do concreto, que é para todo esse complexo e não deve ser
confundido com empirismo.
Esta prática do concreto de fazer vem na seguinte frase: “Deve ser capaz de encontrar
em cada momento particular o elo particular na cadeia que deve agarrar com todas as suas forças
para segurar toda a cadeia e preparar-se firmemente para a transição para o elo seguinte”. Há a
implementação de um trabalho político que tem uma dimensão de cadeia, de algo que forma
uma cadeia, e que deve ser firme. No entanto, deve ser feita uma correção a este texto de
referência padrão. A palavra звено [ligação] está traduzida como “elo”. Na linguagem corrente
é mais preciso traduzi-la como “anel” e isto dá origem a grandes mudanças nas consequências
e perspectivas. Do mesmo modo особое [especial] é traduzido como “preciso” [“preciso”]
enquanto que peculiar [“especial”] seria apropriado*.
Contudo, insistirei na introdução do termo “particular” na tradução de особое [especial].
No seu significado principal, a palavra “peculiar” [“especial”] refere-se a “particular, específica
de uma pessoa ou de uma coisa**”. No contexto de oposição a “em geral”, “particular” parece
bastante apropriado, com a conotação de “peculiar”.
As questões envolvidas neste debate linguístico são, portanto, diretamente relevantes
para a prática. Ser um revolucionário em geral não é suficiente, mas encontrar o particular, o
peculiar para o fazer, para agir. A função do particular peculiar é de primordial importância no
ato a realizar, tanto no que diz respeito à temporalidade – o momento – como à ferramenta
elementar – o anel. Do mesmo modo, o uso da palavra “anel” não tem o mesmo significado
que “ligação”. O “anel” proporciona muitas mais aberturas e possibilidades como ferramenta.
“Link” [ligação] é muito mais mecânico e limitado na sua função. O texto torna-se “Deve ser
capaz de encontrar em cada momento particular o anel (peculiar) particular na cadeia que deve
agarrar com todas as suas forças a fim de segurar toda a cadeia e de se preparar firmemente
para a transição para o anel seguinte”.
A palavra звено [ligação] indica algo que está ligado, que forma uma cadeia: neste
contexto há sempre dois outros anéis que estão ligados, há sempre duas outras partes. Um anel
peculiar mantém a cadeia unida e permite uma passagem, uma transição переход [cruzamento]
para um anel seguinte. Isto é assim capaz de funcionar de uma forma firme. Esta passagem é
um passeio, o ход [movimento] em переход [cruzamento] relaciona-se com o verbo ходить
[Ir], para caminhar, para colocar um pé à frente do outro. Este funcionamento em anéis como
movimento corresponde ao que encontramos na nossa teorização da transferência social: a
transferência de valores funciona sob a forma de nó. A colocação de anéis em vez de nós é
interessante e cheia de novas potencialidades para uma abordagem mais eficaz da lógica
individual e coletiva através da transferência social.
Lênin mostra que, na prática, é necessário encontrar o anel a que se deve agarrar para
manter toda a cadeia, por um lado, e para preparar a transferência para outro anel. Para traduzir
a transferência em russo de um ponto de vista psicanalítico existe a palavra
Психоаналитический трансфер [Transferência psicanalítica] que é traduzida literalmente a
partir do termo académico inglês transferência psicanalítica. Com este texto de Lênin, o termo
académico escolástico já não é válido e, portanto, proporciona uma oportunidade de nos fazer
avançar no que diz respeito ao verdadeiro funcionamento transferencial. O fato de se salientar
“a ordem dos anéis, a sua forma, a maneira como estão ligados entre si, a forma como diferem
uns dos outros” irá orientar-nos para um trabalho muito preciso sobre o particular, tanto
individual como coletivamente.
De fato, isto define a transferência real como uma cadeia dinâmica, uma cadeia dinâmica
de anéis. Vale então a pena introduzir a transferência de valores retirados de Marx, a fim de
compreender uma cadeia de valores, uma cadeia de anéis de valores. Este valor está de fato
muito em jogo na primeira frase do texto. Não se trata de ser um revolucionário em geral. A
fim de induzir a ação revolucionária a palavra em geral, a nomeação em geral não dá valor
suficiente. É uma questão de poder fazer funcionar um valor revolucionário no grupo social, na
transferência social e na cadeia de valores dos anéis, deslizando assim. É necessário tomar não
a generalidade mas sim o particular. Em cada dado momento é preciso encontrar algo peculiar
(particular), особое [especial] e isto é decisivo.
O que precisa de encontrar? Um anel, звено [ligação]. É essencial, complexo e não
mecânico, ao contrário do papel que seria desempenhado por um elo e por uma corrente forjada
por um ferreiro. Isto lança luz sobre a lógica transferencial de uma nova forma, na dinâmica,
na ligação entre eles os acontecimentos históricos não são tão simples e estúpidos como uma
cadeia de elos.
Plenamente consciente da introdução da transferência de valores, na sua obra de 1899
“O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia” (C.W. vol. 3) Lênin enfatizou a descoberta
fundamental de Marx sobre o efeito da divisão social do trabalho. Lênin enfatiza a seguinte
passagem: “O mercado para estas mercadorias desenvolve-se através da divisão social do
trabalho; a divisão do trabalho produtivo transforma mutuamente os seus respectivos produtos
em mercadorias, em equivalentes um para o outro, fazendo-os servir mutuamente de
mercados***”. (C. W., vol. 3, p. 38).
Esta troca leva-nos de volta à transferência de valores que dá origem a uma alienação.
Na frase que precede o trecho escolhido Lênin assinala que as mercadorias são produtos que se
tornam valores de uso apenas pela sua transformação em valores de troca (dinheiro), pela sua
alienação. Falando aqui de alienação, volta-se à frase de Marx relativa à transferência entre
mercadorias no Capital: “De certa forma, é tanto com o homem como com as mercadorias”. A
alienação é, portanto, claramente descrita como um efeito de divisão social.
Neste contexto, o clássico Психоаналитический трансфер, transferência
psicanalítica, parece um tanto ridículo, apertado na sua alma abotoada para usar a metáfora de
Marx, novamente no volume 1 do Capital. Assim, no próprio texto, a manifestação de
Психоаналитический трансфер apela переход [cruzamento]: passagem, transição. A
transferência psicanalítica clássica, está muitas vezes preocupada com перевод [cruzamento],
tradução. No texto de Lênin, está claramente implícita uma palavra que não está escrita перенос
[porto], transporte.
Estes três termos трансфер [transferência], переход [cruzamento], перенос [porto] são
tantos elementos constitutivos concretos da transferência social, da transferência de valores
lidos por Lênin que vamos empregar ao mesmo tempo que reelaboramos a lógica dos anéis na
problemática individual e coletiva da transferência social, que serão os próximos dois artigos
do tríptico “Os Anéis de Lênin e a Transferência Social”.

(1)http://hubertherve75.over-blog.com/2020/04/les-anneaux-de-lenine-et-la-psychanalyse-
sociale-triptyque.html

(2) http://hubertherve75.over-blog.com/2020/05/marx-202-ans-aujourd-hui-ce-que-le-capital-
apporte-a-la-psychanalyse-sociale.html *As traduções em francês e inglês de звено são
equivalentes: “anel” e “ligação” respectivamente. No texto em inglês особое é traduzido
como “particular”. Cf. Lênin, Obras completas, tomo 27, fevereiro-julho, 1918, Edições
Sociais, Paris, Edições em línguas estrangeiras, Moscou, 1961, p. 284. **“Peculiar” é definido
como: “1. (…) que pertence ou pertence a, ou caracteriza, uma pessoa individual, lugar ou coisa,
ou grupo de pessoas ou coisas, como distinto de outros. 3. Distinguido na natureza, carácter, ou
atributos de outros; particular, especial. 4. Ter um caráter exclusivamente próprio, sui generis,
ao contrário de outros, singular (...).” (OED, 1971) ***A edição francesa aqui apresentada
“fazê-los servir mutuamente como artigos de troca”. (O. C., Tomo 3, p. 28).
CRÍTICA DA RELIGIÃO PSICANALÍTICA CLÁSSICA: A RELIGIÃO DO
DESEJO ( I )

Projetada para nossa formação sobre a prática da transferência social, nesta crônica
“Crítica da religião psicanalítica clássica”, eu tinha assinalado “duas coisas religiosas que
duram” na psicanálise, a religião da estrutura e a do Desejo. Depois da religião da estrutura no
mês passado, trata-se agora de descer à religião do Desejo. Penso que vou sobrepor a questão
várias vezes porque é tão crucial, mas difícil devido às próprias contradições que carrega na sua
abstração.
A questão do desejo está de fato no fundamento da psicanálise. Freud em 1900 construiu
a sua teoria psicanalítica sobre sonhos, com a publicação da sua obra fundamental
Traumdeutung, a interpretação dos sonhos. Ele recorda-nos novamente em 1922 num artigo
sobre o conceito de inconsciente: “A psicanálise baseia-se na teoria dos sonhos; a teoria
psicanalítica dos sonhos representa a parte mais completa desta jovem ciência”. O postulado
desta teoria é muito claro: “O sonho é a realização de um desejo”. Freud dá ao sonho o caráter
de um “fato psicológico” e, portanto, também ao desejo, a sua realização. A abordagem de
Freud tem antes de mais nada um lado concreto deste assunto: ele liga o sonho à pessoa que o
produz e não considera o sonho como um simples produto do órgão cerebral. O sonho tem
assim um significado ligado a um desejo e o sonho é uma produção individual concreta.
Como Politzer salienta, “Poder-se-ia personificar o desejo e torná-lo Desejo (...) Obter-
se-ia então uma teoria geral e abstrata do desejo do sonho”. Politzer continua

... parece então que a imaginação transpõe o pensamento para um cenário de desejo, mas no
cenário de qualquer desejo, desde que seja um, porque, acrescentaria ao título de axioma, o
Desejo procura ser realizado...Poder-se-ia então elaborar um simbolismo onde a imaginação
captaria pensamentos do ponto de vista de um possível desejo...

Freud não caiu nesta abstração teórica onde o desejo seria o trabalho de um jogo livre
da imaginação ao serviço do Desejo, insiste Politzer ( 1 ). Este não é o caso de Lacan e dos seus
discípulos onde a abstração do Desejo se multiplicará. É tão frequente na prática da afirmação
teórica que este deslizamento em direção ao possível desejo abstrato se torna ‘natural’. Este é
o primeiro ponto de referência para a religião psicanalítica do Desejo.
Freud escapou deste equívoco, porém um outro deslizamento teórico nasceu dele. Ele
interpreta o conteúdo manifesto do sonho para obter êxito frente ao conteúdo latente do sonho
e acredita poder afirmar: o desejo é tanto o conteúdo como o motivo do sonho. Freud dá
primazia ao conteúdo latente e, portanto, ao inconsciente: “(...) o sonho é sempre a realização
do desejo, porque provém do sistema inconsciente que não tem outro objetivo que não a
realização do desejo, e que não tem outra força que não a do desejo”. Devaneio justificado
indicará Politzer!
Portanto, aqui estão dois pontos que fazem uma ligação fácil entre a religião do Desejo
e as da abstração e do inconsciente, religiões que já foram discutidas por nós. A Religião do
Desejo facilita objetivos abstratos ao serviço da exigência moderna: a hipótese da vida interior
que dá sempre a ilusão da vida e do progresso espiritual na civilização da abstração capitalista.
Contra a evidência intransponível do “natural”, vou portanto afirmar: a vida interior não existe,
o pensamento vive numa relação social.

(1 ) Georges Politzer, Critique des fondements de la psychologie, PUF, 1968, p 61-62, Paris.
CRÍTICA DA RELIGIÃO PSICANALÍTICA CLÁSSICA: A TRANSFERÊNCIA DA
ESTRUTURA

Estrutura? - Psicótico! “Legal! Escapou-me o diagnóstico de estrutura perversa”,


ironicamente disse um dissidente da questão do gênero.
Estrutura? - Perverso narcísico! “Pervertido, isso é apenas um jogo de palavras... O père-
version, a versão do pai, é bem conhecido”, disse um analisando no divã e “narcísico, quem não
o é?”, responde ao Eco.
Estrutura? - Neurose! “Eu tenho um velho truque que data... Uma neurose... Uma
história edipiana, ao que parece”.
Estrutura ? Algo que dura na psicanálise clássica e se enquadra na famosa psicopatologia
e nas suas classificações de doentes mentais. A estrutura do “caso” é um signo do abismo que
pode existir entre essa psicanálise e o acolhimento dado a outra, que se baseia na prática da
transferência para um camarada poeta em sofrimento, que toma como bússola a transferência
viva no social.
Como foi fabricada esta estrutura religiosa? Seria apropriado retomar em detalhe a
história do estruturalismo que tem obscurecido a psicanálise. Limitar-me-ei aqui a alguns
pontos de referência sucintos. Em primeiro lugar, o seu sucesso a partir dos anos 60 deve ser
salientado. O que poderia ser mais sedutor do que uma explicação onde o todo estrutural que
ligaria a parte e o todo dá tanto poder à mente? O que foi decisivo nesta captura da mente foi
certamente a isca linguística, a ciência da linguagem. A linguagem tornou-se o fato cultural por
excelência, distinguindo o homem do animal, e a linguística foi proclamada ciência – o peixe
piloto desta aventura.
Lacan apreendeu este ímpeto. É digno de nota um precursor, o filósofo marxista Georges
Politzer, que foi o primeiro e único no seu tempo, em 1928, a destacar o caráter linguístico da
descoberta freudiana. Lacan nota isto no seu seminário “O Avesso da Psicanálise” em 1969,
elogiando-o, indicando que tinha trazido à luz um fato: “o essencial do método freudiano para
abordar o que é sobre as formações do inconsciente, é confiar na narrativa. A ênfase é posta
neste fato de linguagem”. Politzer irá implementá-lo de uma forma bonita na sua preocupação
de construir uma psicologia concreta.
A inclinação transcendental lacaniana será mais atrativa nos anos 60 do que a inclinação
do concreto. Finalmente nascerá a transferência religiosa da estrutura via Lacan. A religião tem
várias facetas. A velha estrutura freudiana Neurose, Psicose e Perversão encontrou assim roupas
juvenis para poder conviver com os dançarinos.
A dialética Hegeliano-marxista tinha um jovem concorrente que parecia estar muito
mais ao vento da liberdade para fazer dançar juntos os diferentes campos das ciências sociais e
humanas. A história tornou-se uma articulação entre sincronia e diacronia onde tudo era
explicado como se estivesse num livro. É sobre este ponto preciso que, na prática como na
teoria, o hiato com os vivos foi organizado: a história não é um livro.
Esta história, grande ou pequena, escapa a qualquer estrutura na transferência ativa da
vida social, e isto é o que cada praticante aprende gradualmente com a cópia não muito
impressa. O postulado da estrutura move-se em direção à inclinação “anti-histórica”: a estrutura
já lá está e torna-se o aparelho de leitura de uma vida humana pré-estabelecida. Tudo já está
escrito com antecedência na estrutura. O que se desdobra no tempo é em si imóvel e “quanto
mais muda, mais é o mesmo” poderia ser dito das histórias que se enquadram no quadro da
estrutura.
A primazia da prática social e da história real estão na vanguarda do trabalho de Marx
quando ele derruba Hegel. O processo histórico é fundamental, interagindo com a transferência
de valores, o transporte de valores que ilumina a primeira seção do Capital. Isto tem muitas
implicações na relação com o Saber e cria assim outras condições de trabalho em comparação
com a psicanálise clássica, onde este saber tem um lugar de domínio.
A estrutura, por outro lado, encontra-se neste contexto hegeliano e permite explicar a
separação que ocorre entre a vida real e a relação com o saber. Em Michel Foucault isto está
muito claramente presente: as épocas históricas do saber que ele delimita estão, no final,
exclusivamente ligadas ao marco epistemológico. O saber é rei em “As palavras e as coisas”.
Nesta metodologia foucaultiana unidimensional, a relação com o trabalho ou a produção social
está longe de ser uma preocupação central, tal como se exclui o estudo dialético de contradições
e impulsos contrários e, no final, a questão da ordem, ordem natural ou ordem hierárquica, pode
dormir tranquilamente num sono de sedução paradoxal.
Com esta religião de estrutura não há qualquer hipótese de questionar algo fundamental.
A estrutura mantém uma ordem bem estabelecida. Substitui a metáfora da análise científica,
tudo se torna equivalente por palavras em movimento. Nada muda de fato. Esta religião de
estrutura apresenta um quadro que parece natural, de ordem natural. O fato da estrutura é
indicado pela primeira vez de uma forma muito reacionária por Claude Lévi-Strauss em “O
homem nu” quando terminou a sua série “Mitológicos” em 1971.
Os tempos mudaram muito. Os profissionais, ainda recentemente apaixonados por
estruturas, abandonaram gradualmente esta referência para avançarem rumo a problemas mais
concretos. É neste contexto do concreto que a dialética ternária iniciada por Marx na sua obra
poético-científica pode iluminar-nos e orientar-nos na prática, porque no fundamento social
vivo: existe a relação humana.
CRÍTICA DA RELIGIÃO PSICANALÍTICA CLÁSSICA: CRÍTICA DO
INCONSCIENTE

A psicanálise social parte de uma base diferente da psicanálise clássica, a partir da sua
própria nomeação: a psicanálise, certamente... Mas a psicanálise social. É óbvio que as
ambiguidades podem surgir do termo “psicanálise” porque evoca uma base freudiana. Estas
contradições alimentam a nossa prática e a nossa teoria na condição de serem esclarecidas e
analisadas, o que é feito em parte com esta série de artigos sobre a crítica da religião
psicanalítica clássica.
Ter escolhido esta palavra “psicanálise” é para mim um sinal de dois conceitos: a
transferência e o inconsciente. Insisti na transferência neste blog em dezembro passado com o
artigo “O primado da transferência”. E quanto ao inconsciente? Na psicanálise clássica o
inconsciente é regularmente apresentado, ao contrário do que defendemos na APPS. É o mesmo
ao nível do significado atual, popular, quanto ao significado das nossas ações, das nossas
declarações, da nossa história.
Um ato falho, um lapso da vida quotidiana, um chiste, para pegar no trio freudiano
significaria algo de “nosso” inconsciente... Insisto neste termo tão frequentemente usado “é o
inconsciente! ”. Insisto neste termo tão frequentemente utilizado “é o inconsciente”, o belo caso
que pode tornar possível ocultar a responsabilidade efetiva tanto no social como na religião.
Este termo do inconsciente na sua relação com a psique não nasceu com Freud, mas este
promoveu-o até à popularização de uma má interpretação do sentimento do íntimo ou do que
escapa à pessoa na sua vida social para os outros.
Georges Politzer na sua Crítica dos fundamentos da Psicologia em 1928 indica
claramente como a hipótese do inconsciente “apenas representa a medida da abstração que
sobrevive dentro da psicologia concreta”. É o maior obstáculo a uma verdadeira revolução na
abordagem da psique. A crítica da religião do inconsciente junta-se claramente aqui à crítica da
religião da abstração. É de fato através do desvio de exigências abstratas que se coloca o
inconsciente freudiano. Freud fala do inconsciente sobre o sonho e é aqui que se coloca o
pressuposto religioso freudiano: o sujeito sabe mais do que pensa saber.
O problema para seguir Freud é que o sonhador tem uma ignorância determinada,
ignorância de algo que o sonhador poderia e deveria saber: ignorância do conteúdo latente. Este
conteúdo latente é inventado por Freud e torna-se um princípio de determinação universal. Em
vez de se cingir ao significado de um sonho, para a psicanálise clássica, o inconsciente como
uma entidade abstrata assume o seu lugar. Os significados são assim convertidos em entidades
psíquicas, para utilizar os termos de Politzer. O inconsciente vem no lugar da psicopatologia
clássica, Neurose, Psicose e Perversão (NPP), que ainda hoje floresce na velha psicanálise para
lutar contra o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). NPP contra DSM,
Trágico, Cômico...
A religião do inconsciente freudiano e a transferência aponta para o princípio
fundamental de que existe distorção na transposição de um texto original. É de fato esta
transferência para o inconsciente da origem e do texto que está inconsciente no sentido de que
é excessivamente perigoso. As repercussões são obviamente políticas e Politzer será muito
severo a partir de 1933 sobre o tema do inconsciente que ele considera obscurantista e
reacionário, facilitando a escravidão humana em toda a contiguidade com a religião da
abstração, durante este período em que o céu foi lascado e as estrelas bolorentas, para usar a
metáfora de Paul Eluard no seu Poésie ininterrompue [Poesia ininterrupta].
Lacan, um leitor de Politzer, libertou-se das profundezas inconscientes de Freud.
Contudo, permanecerá um prisioneiro de abstrações, apanhado em contradições onde se
aproxima tanto de um inconsciente que se tornou não-sabido, ao mesmo tempo que decretou o
conceito muito deficitário de “desabonado do inconsciente” para nomear pessoas
escandalosamente chamadas psicóticas. Não haveria acesso ao inconsciente para aqueles que
são qualificados como psicóticos ainda hoje, quando não existe uma entidade objetivamente
psicótica. A crítica feita por Politzer a partir de 1933, o ano não é fortuito, é sempre correta. A
religião psicanalítica do inconsciente leva-nos inevitavelmente à religião psicanalítica do
desejo, do desejo inconsciente e da estrutura, da estrutura do inconsciente. Coisas religiosas que
duram.
CRÍTICA DA RELIGIÃO PSICANALÍTICA CLÁSSICA: A
TRANSFERÊNCIA DO HOMEM ABSTRATO

As notícias virais colocam-nos numa dimensão nunca vista desde a Segunda Guerra
Mundial e conduzem-nos à realidade concreta da nossa existência: a ameaça fundamental à vida
humana. Com esta recordação da concretude da vida, é ainda mais importante seriar os
problemas ligados àquilo a que chamei a religião do homem abstrato na psicanálise clássica.
Esta questão foi salientada muito cedo por Georges Politzer na sua “Crítica dos fundamentos
da Psicologia”, em 1928. Neste trabalho, Politzer, que ainda não é marxista, faz uma crítica à
psicanálise freudiana que permanece fundamental e inigualável. A sua opinião, então favorável
à expansão da descoberta freudiana, põe imediatamente o dedo na questão da relação entre o
concreto e o abstrato. Politzer apresentou o projeto de uma “psicologia concreta”, e pensou que
a psicanálise freudiana tinha uma “nova inspiração, contrária à da psicologia clássica”: a
psicologia abstrata é a psicologia clássica, e a psicologia concreta pode nascer com a
psicanálise. Há um movimento fecundo para ele que nasce com a psicanálise.
A partir desta fase, ele critica Freud: “Acontece, porém, que esta psicologia concreta,
que vem da psicanálise, deve começar por se virar contra esta última e servir de princípio para
uma crítica interna: devemos, de fato, ter notado em Freud, especialmente no momento da
elaboração teórica dos fatos, um regresso franco à abstração”. Ele não valida o inconsciente
freudiano como um conceito, indicando já em 1900 como a Traumdeutung: “só as abordagens
clássicas podem dar sentido ao inconsciente. Encontramos assim dentro da própria psicanálise
a oposição entre a psicologia concreta e a abstrata”.
A partir de 1933, com a adesão de Hitler ao poder e a catástrofe concreta que ameaça a
humanidade, as suas críticas vão ao cerne da questão, apontando para certos becos sem saída
reacionários na invenção freudiana. Isto diz respeito em particular ao papel da abstração
especulativa na análise social. Ele escreveu em Novembro de 1933 no artigo “Psicanálise e
Marxismo, Um Falso Contra-Revolucionário, Freud-Marxismo” que “o ‘princípio do prazer’ e
o ‘princípio da realidade’ são abstrações que gostaríamos de colocar ao mesmo nível que os
princípios fundamentais da ciência (...). Não basta ter princípios abstratos batidos uns contra os
outros para ser um dialético”. Esta última frase é um ponto de referência muito importante para
hoje, tanto na análise do individual como do coletivo. Diz respeito ao uso mais comum de
conceitos como o Isso, o Eu, o Supereu, o Simbólico, o Imaginário e o Real, a libido ou o
significante. Ele observa que na sociologia psicanalítica, a luta de classes é reduzida a um
conflito ideal de instâncias psicanalíticas, “(...) os psicanalistas reduziram os conflitos reais e
as lutas a conflitos existentes apenas nas suas cabeças”.
Construída sobre uma metafísica ultrapassada, a doutrina freudiana não encontrou a
riqueza da dialética forjada por Marx para escapar a esta religião do homem abstrato. Estranha
a Freud, que permaneceu em Feuerbach, a obra de Marx, por outro lado, deixou a sua marca
em Lacan e, através deste último, em alguns lacanianos. No entanto, no que diz respeito à
questão da abstração especulativa, Lacan não vai além de Freud. Lacan não faz certamente o
seu próprio inconsciente das profundezas que caracterizam Freud e que, segundo Politzer,
alimentava os temas nazis, mas favorece outra abstração, uma estruturalista, o inconsciente
estruturado como uma linguagem. Também aqui “não é suficiente ter princípios abstratos
batidos uns contra os outros para ser um dialético”. Mas é com o conceito de falo que a
transmissão de Freud para Lacan será a mais clara e mais prejudicial.
A abstração especulativa de 1923 declarada por Freud: “(...) para ambos os sexos,
apenas um órgão genital, o órgão masculino, desempenha um papel. Não existe portanto um
primado genital, mas o seu primado do falo” é repetido em 1927 no artigo “Fetichismo”, onde
o fetiche é definido como o substituto do falo da mãe... Isto será transposto em 1958 por Lacan
na sua teoria explicativa do que ainda hoje é chamado psicose pela famosa fórmula relativa ao
Presidente Schreber: “Não sendo o Falo que a mãe sente falta, ela tornar-se-á a Mulher que os
homens sentem falta”, que se tornará paradigmática para qualquer psicose e também para
qualquer transidentidade. Alguns lacanianos chegam ao ponto de colocar aquilo a que
continuam a chamar transexualismo como base de qualquer psicose! Quanto àqueles que
finalmente se abrem à questão sem estas marcas de referência do mestre, elogiam a filosofia do
vazio, efeito sem dúvida inconsciente do desaparecimento do conceito de falo como marca de
referência na religião psicanalítica. Judith Butler descreveu ironicamente os psicanalistas como
“discípulos do falo”, uma bela definição da religião da abstração.
Para a psicanálise social, trata-se de tomar como instrumento Marx que vê no
desenvolvimento do capitalismo a razão da primazia da abstração na vida que vivemos todos
os dias, nas nossas relações sociais. Isto pode ser explicado muito bem através da simples
função social do dinheiro.
Lacan não compreendeu a inversão essencial da dialética Hegeliana de Marx,
permanecendo, como Slavoj Zizek assinala, Hegeliano até ao fim. No posfácio da segunda
edição alemã de “O Capital”, Marx clarifica a sua relação com a dialética hegeliana:
O meu método dialético difere do método hegeliano não só na sua base, mas é exatamente o
oposto. Para Hegel, o movimento de pensamento, que ele personifica como a ideia, é o demiurgo
da realidade, que é apenas a forma fenomenal da ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento
do pensamento é apenas a transmissão e tradução do movimento real nas cabeças dos homens.

Isto deve ser colocado em correspondência com as nossas fórmulas: “há uma
transferência do problema social para a mente” ou “não há doença mental, mas uma
transferência do conflito social para o que é psíquico”. A leitura da “Introdução à Crítica da
Economia Política” em 1857 permite-nos regressar à vida real e à sua concretude apontada por
Politzer como um problema crucial para a psicanálise resolver. O concreto é, ao contrário das
aparências, complexo e Marx faz a diferença entre “o concreto do pensamento” e “o concreto
do real”. O hegelianismo fecha-se no misticismo lógico das categorias abstratas e confunde o
seu pensamento do real com o real, fazendo deste real o “produto do conceito que se gera a si
próprio”.
Já em 1843, em “Crítica do direito político hegeliano”, Marx enfatiza contra um método
que destaca a “polêmica com o seu objeto”, uma crítica que não mostra simplesmente as
contradições mas tem a função de as explicar. Temos trabalhado sobre estes impulsos contrários
na psicanálise social no nó de valores de gozo “palavras-imagens-corpo-sensação-privação”
que permite que uma lógica individual e coletiva funcione longe da mistificação conservadora
Hegeliano-Lacaniana que retorna sempre ao Um como conceito, ou seja, a negação que encobre
as contradições.
É com esta base que nos separamos da abstração psicanalítica especulativa que reina
predominantemente no seu campo, desligada das contradições da vida real, da vida social. É
sem dúvida esta característica fundamental que levou pelo menos uma escola de psicanálise
durante as eleições de 2017 a jogar os seus tenores e algumas outras na partitura: há um partido
de ódio! Tomar o ódio como uma bússola é perder o motor do capitalismo em decomposição e
a transferência assassina que o acompanha. Teremos a oportunidade de voltar a estes pontos
nos próximos artigos críticos sobre a religião transcendental do semblante.
CRÍTICA DA RELIGIÃO PSICANALÍTICA CLÁSSICA: A
TRANSFERÊNCIA DO HOMEM RELIGIOSO

As Oficinas Práticas de Psicanálise Social (Ateliers Pratiques de Psychanalyse Sociale


[APPS]) baseiam-se na vida social e no que é transferido do social para o que é psíquico, o que
os distingue, portanto, da base freudiana ou lacaniana. Numa série de pequenos artigos que
denominei “Crítica da religião psicanalítica clássica”, pretendo examinar isso que torna a
psicanálise clássica em religião, seja a freudiana ou a lacaniana. Não é apenas uma questão de
criticar a análise da religião feita na psicanálise clássica, mas de enfatizar a transformação da
psicanálise clássica em religião.
As Oficinas Práticas de Psicanálise Social têm duas ferramentas conceituais em comum
com a psicanálise clássica: a prática da transferência e a relação com o inconsciente. Mas para
a APPS, a prática da transferência diz respeito à transferência social, e o inconsciente, o
inconsciente do fazer. Por isso, estamos a usar a ferramenta Marx!
Marx é o primeiro analista crítico da transferência social. A sua base no seu trabalho
científico mais conhecido, “O Capital”, é o estudo das relações econômicas na civilização
capitalista com o objetivo de construir o estudo das relações sociais de produção que são
fabricadas nesta civilização, e assim analisar as relações entre indivíduos numa dada
transferência histórica, numa dada sociedade. Trata-se de analisar “as relações determinadas
em que os indivíduos entram no processo de produção da sua vida social” para usar a expressão
de Contribuições para a Economia Política (1857).
A minha leitura da obra de Marx, posta em relação com a minha prática psicanalítica e
a sua teorização, levou-me a escrever no primeiro artigo dedicado à crítica da religião
psicanalítica esta fórmula que considero central: “crítica não é tanto sobre o texto, mas sobre a
transferência histórica que o produz como verdade social”.
Seja para a história coletiva ou para a história individual, a crítica, e portanto a análise
do que é psíquico, deve concentrar-se na transferência transmitida pela imanência da história e
da sua narrativa, desde que consideremos que esta transferência histórica também produz esta
crítica como verdade social.
Este domínio dialético ternário “transferência – crítica – verdade social” torna possível
afastar-se do religioso e da primazia da interpretação de um texto. Trata-se de partir das
condições de transferência da história pessoal e não de uma transferência de um texto
psicanalítico pré-estabelecido, uma transferência religiosa de um texto para outro texto que
seria transportada pela pessoa ao seu insabido. Esta teoria religiosa do texto que interpreta o
homem que carrega um texto ao seu não-sabido pode causar uma devastação assassina. Assim,
o texto que procura o suposto “fenômeno elementar” da chamada psicose está associado à teoria
abstrata da foraclusão do Nome-do-Pai.
A questão sobre as diferenças de gênero que a transsidentidade traz está ligada a
perseguição do texto escrito por Lacan que a define como psicótica ao conectar a vida humana
às concepções psiquiátricas higienistas do século XIX. A pompa que vai para aqueles que
definem o que chamam transexualismo como a base estrutural de qualquer psicose! E é portanto
aconselhável nestes contextos responder ao imperativo de ir procurar este texto pressuposto no
discurso das pessoas em causa, na forma de uma investigação criminal, sendo o crime instruído
antes da investigação. Esta prisão do pensamento parece por vezes libertar-se destes dogmas
religiosos, mas isto é feito à custa de um elogio à vacuidade filosófica que se resolve sempre
após deliberação masturbatória sobre o primado do sintoma, enquanto que a psicanálise social
se repousa na transferência histórica e social, no movimento contraditório e não no estado psico-
patológico.
No entanto, esta corrente clássica afirma ser humanista, preocupada em favorecer o ser
humano como um ser de linguagem. É neste registro que Marx serve de bússola. A inversão
que produz em relação a Hegel é certamente essencial, mas a inversão que põe em prática em
relação a Ludwig Feuerbach é ainda mais atual.
Feuerbach foi o primeiro filósofo a derrubar Hegel, e Marx seguiu a sua lógica pela
primeira vez antes de romper com ela em 1845. Ele marca esta ruptura nas teses “Ad Feuerbach”
e “Ideologia Alemã”. Neste trabalho, escreveu: “Na medida em que é materialista, Feuerbach
nunca traz a história em jogo, e na medida em que traz a história em jogo, não é materialista.
Para ele, a história e o materialismo são completamente separados”.
Feuerbach, pouco lido hoje em dia, está bastante ao estilo das reflexões intelectuais
contemporâneas que correspondem à postura da “filosofia contemporânea do presente” descrita
no meu primeiro artigo. O que é que de fato escreve no seu “Manifesto Filosófico”? “A essência
do homem está contida apenas na comunidade, na unidade do homem com o homem, uma
unidade que repousa apenas sobre a realidade da distinção entre o eu e vós”. Marx respondeu
na sua 6ª tese:

Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma
abstração inerente ao indivíduo tomado à parte. Na sua realidade, é a totalidade das relações
sociais. Feuerbach, que não faz uma crítica a esta essência real, é portanto forçado a: ignorar o
curso histórico e fixar o sentimento religioso como um em si, pressupondo um indivíduo
humano abstrato – isolado. A essência só pode portanto ser apreendida como “gênero”,
universalidade interna, muda, ligação natural entre múltiplos indivíduos.

A transferência histórica deste período que vai de Hegel a Marx diz respeito à função
histórica do cristianismo na Alemanha, à função social e política de Deus, a obra do teólogo
David Friedrich Straus que publicou a “Vida de Jesus” em 1835, a de Ludwig Feuerbach e a
sua “Essência do Cristianismo” em 1841 são testemunho disso. Este trabalho transferencial de
contradições sociais do cristianismo permitirá a Marx deixar a filosofia em 1845-46 com
“Ideologia Alemã” e “A Sagrada Família”.
Feuerbach criou aquilo a que Engels chamará de uma “religião do homem”. E Freud
permanecerá numa crítica da religião que depende da tradição filosófica do Iluminismo e mais
particularmente do destino da filosofia de Feuerbach. Na sua carta a Silberstein de 7 de Março
de 1875, Freud escreveu a propósito deste último: “Ele é de todos os filósofos aquele que eu
mais venero e admiro”. Quanto a Lacan, estranhamente em seu retorno a Freud a partir de
Hegel, permanecerá hegeliano até ao fim. A crítica de Althusser a Lacan sobre o fato de ele ter
produzido uma filosofia da psicanálise é bastante correta.
A crítica de Marx à Feuerbach de “fazer abstração do curso da história e de fixar o
sentimento religioso como um em si, pressupondo um indivíduo humano abstrato – isolado”, é
inteiramente consistente com as teorias da psicanálise clássica. Trata-se, portanto, para nós, de
partir do seu avesso.
Marx não parte do conceito de homem – ele foi reduzido a um conjunto de
representações significativas – mas do primado do fato histórico. “O meu método analítico não
parte do homem mas do período social economicamente dado”, escreveu ele nas suas “Notas
Marginais sobre o Tratado de Economia Política” de Adolph Wagner em 1880. Vamos
continuar nesta direção de transferência social.
CRÍTICA DA RELIGIÃO PSICANALÍTICA CLÁSSICA: ARGUMENTOS DE
BASE

A ferramenta Marx foi escolhida para criar no trabalho das Oficinas Práticas de
Psicanálise Social uma psicanálise que corresponda aos desafios do século XXI. Esta
ferramenta é sobretudo uma aplicação prática da crítica proposta por Marx, a famosa “crítica
da crítica crítica” exposta na sua obra mais extravagante, colocada em folhas com o seu amigo
Engels: “A Sagrada Família”. Dois anos antes, em 1843, na sua Introdução à Crítica da Filosofia
do Direita de Hegel, Marx tinha esta fórmula: “(...) a crítica da religião é a condição de toda a
crítica. (...) A crítica do céu torna-se assim a crítica da terra, a crítica da religião torna-se a
crítica do direito, a crítica da teologia torna-se a crítica da política”.
Indicar que a crítica à religião é a condição de toda a crítica parece-me fundamental e
de extrema atualidade no exercício da vida humana socializada. É com este argumento de base
que desejo iniciar uma série de artigos sobre a crítica da religião psicanalítica clássica,
colocando assim Marx como trabalhador da transferência e do inconsciente na orientação
psicanalítica social nestes termos.
Com a fórmula: “(...) a crítica à religião é a condição de toda a crítica. (...) A crítica do
céu transforma-se assim na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito, a crítica da
teologia na crítica da política”, é esclarecido pelo aforismo das Oficinas Práticas de Psicanálise
Social “Mudemos as bases da prática psicanalítica, partamos de outra base”. Desde o início, a
crítica parte de uma base diferente, há uma inversão da base da crítica.
Isto é essencial porque o segundo texto de Marx em que estamos a trabalhar em grupo
em “Formar para se tornar um psicanalista social”, “A Ideologia Alemã”, surge de uma crítica
ao político que seria apenas uma crítica filosófica. Esta segunda alteração básica relativa ao
trabalho crítico é transferida da primeira alteração básica. Assim, uma crítica que só seria
filosófica seria um beco sem saída, uma ilusão, a de interpretar, enquanto que agora é uma
questão de transformação. Trata-se de deixar a posição do “contemporâneo filosófico do
presente” para usar a expressão de Marx na sua Introdução já citada e saltar para a 11ª Tese
dirigida em 1845 a Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo, o que importa é
transformá-lo”. Esta continua a ser uma bússola essencial hoje em dia, pois esta posição de
“contemporâneo filosófico do presente” ocupa um lugar importante na nossa sociedade.
O que é notável aqui com a ferramenta Marx é que a condição de toda a crítica é
transferencial e topológica, como expresso na fórmula “A crítica do céu é assim transformada
em crítica da terra”. Trata-se de uma transformação e não um simples deslocamento. Esta
condição de toda a crítica é transferencial e produz assim uma inversão da base na sua forma,
uma mudança radical da base, a da forma. E esta psicanálise clássica não consegue: não inverte
a transferência existente para o Divino ou para o Um. Voltarei a este assunto num artigo
seguinte de uma forma detalhada.
Marx derruba Hegel, o estado de Hegel, desta forma pelo movimento, o instrumento
transferencial da vida social, provocando deslocamentos que são derrubados, transformações
que dizem respeito ao real e não às representações, que é o ponto essencial. A base
transferencial de trabalho utilizada por Marx convoca duas questões principais relativas à
relação com o conhecimento que interessa a todos os campos do saber e mais particularmente
ao campo psicanalítico, que é sempre social. Estes dois desafios são: construir um saber crítico
transferencial do presente, construir um saber transferencial prático da história para uma pessoa
durante um encontro psicanalítico.
A questão da práxis segue de perto esta questão da relação com o saber no texto
Ideologia Alemã. Marx coloca-o na primazia. Primazia da prática da transferência no social,
portanto. Assim, partindo da crítica do presente, da história, da prática, considerando que esta
crítica tem um valor transferencial para uma pessoa em relação a outra, temos com a ferramenta
Marx uma análise da transferência que se coloca na imanência e não na transcendência, um
avatar infeliz na fundação da religião psicanalítica clássica, seja ela Freud ou Lacan. Marx por
uma utilização prática da transferência na sua construção filosófica que considera que a crítica
não é tanto do texto como da transferência histórica que o produz, mas sim da verdade social.
Nem Freud nem Lacan tomaram esta base essencial. Continuando o nosso trabalho, que
aqui começa com “o jovem Karl Marx”, para usar o título do filme de Raoul Peck,
conseguiremos compreender melhor o que torna uma religião de texto para a psicanálise
clássica e o seu impacto transcendental na prática, ao mesmo tempo que nos concentramos no
futuro: o que torna concreta a nossa prática na psicanálise social.
TORNAR-SE POÉTICO

Fui tocado simplesmente por palavras. Palavras de amigos, camaradas, estranhos,


parentes que nos seus valores expressivos me deram aquela sensação sensível de poder sentir o
meu corpo de forma diferente, como um despertar, naquele sentimento trágico que depois nos
submergiu como uma onda na mente. Os mesmos ou de outros apelavam à poesia coletiva
nestes tempos trágicos.
Lembrei-me das palavras de Paul Eluard cantadas pela minha mãe. A poesia vem do
corpo. Qual é o destino das imagens da infância, quais são os seus refúgios quebrados no
espelho dos valores das palavras que as fazem amálgama? Histórias para um outro mundo que
se vive no presente para tranquilizar o outro, para viver com os outros. Matamos uma criança,
matamos crianças, hoje e para amanhã. Matamos os poetas da infância. Os capitalistas matam.
Como mudar a vida? Rápido! E Marx então? Ele está confinado! Marx possivelmente
confinado nos seus escritos à sua brilhante e árdua análise do Capital? No entanto, numa carta
a Engels escrita em Julho de 1865, dois anos antes da publicação da sua grande obra, ele
confidencia: “Agora, no que diz respeito ao meu trabalho, vou dizer-vos a verdade. Quaisquer
que sejam as falhas, a vantagem dos meus escritos é que eles formam um todo artístico”.
A introdução da poesia e da arte na relação com o conhecimento científico é uma nova
forma de pensar que Marx prefigura e que ainda não aconteceu. O que fazer e como partir de
uma base diferente neste século XXI que oscila entre esperanças gigantescas e assassinatos em
massa mais ou menos mascarados? A poesia de Marx deixará Lacan melancólico: “Marx foi
um poeta que conseguiu fazer um movimento político”, afirma ele no final do seu ensino no
Seminário “O Tempo de Concluir”, em 1978.
Na sua etimologia Poesis refere-se em grego antigo à criação, a fábrica, à arte: a arte de
fazer, que se refere sempre a uma prática social concreta. Neste ponto preciso é o ponto de
ruptura necessário com Hegel: a análise de Marx parte de uma base diferente, aquela que deriva
da primazia que ele dá à prática, à prática social, ao contrário do filósofo da transcendência e
da abstração especulativa. É neste ponto que se situa o fracasso de Lacan em emergir de uma
filosofia de psicanálise.
Marx está em forma, em múltiplas formas. A introdução do valor da forma na primeira
seção decisiva do Livro I do Capital dá o verdadeiro alcance poético, aquilo que põe a vida
humana em movimento em relação ao concreto do conhecimento e da criação. Na sua
transferência para o seu trabalho científico, enfatiza a primazia da forma, aparência e sensação
naquilo que conduz à vida. Isto está ligado, através da imagem social, ao corpo e às palavras.
Este, parece-me, é o segredo da sua arte poética e feito para ele como um conjunto artístico.
Não se trata de uma abstração desligada da vida, nem de uma metáfora especulativa. Uma
metáfora é real, diz-nos Sarah Kane. O valor da forma é material e fala.
Como podemos analisar o que está a acontecer socialmente hoje em dia sem ter em conta
a transferência definida por Marx em “O Capital” quando analisa a relação de transferência
entre duas mercadorias, o linho e o casaco, e indica que é na frequência com outra mercadoria,
o casaco, que o linho fala e entrega os seus pensamentos na única língua que ele fala
fluentemente, a língua das mercadorias, e que esta língua diz a relação com o trabalho humano
e a igualdade no quadro da produção capitalista?
Como podemos falar entre os seres humanos sem ser na linguagem das mercadorias,
quando vivemos cruelmente e insidiosamente ao mesmo tempo os efeitos do imperialismo, a
fase suprema do capitalismo, brilhantemente descrita por Lênin nas suas fundações, e o
aumento da repressão de todos os tipos? Como podemos fazer o contrário e estabelecer uma
prática social diferente, concretamente? Isto requer o estabelecimento de uma nova relação
entre prática e teoria, o estabelecimento de novas relações sociais, a abordagem da questão
social a partir de uma base diferente. É, portanto, uma questão civilizacional crucial para a
prossecução de uma vida humana que vale a pena viver. O enorme potencial é definido pelos
avanços do saber humano e nas novas tecnologias, e bastaria mudar a base das práticas
econômicas e sociais para mudar a vida e as relações sociais de produção. Este esboço para o
futuro poético da humanidade será retomado no nosso blog, com várias vozes.
Vou terminar com um escrito de Lucien Bonnafé, um psiquiatra, e aqueles que tiveram
a sorte de o conhecer lembram-se da sua voz. Ele escreveu em Setembro de 1977 em Vivre
libres [Viver livres]! :

Assim é apropriado opor-se ao sentimento de pânico ou catástrofe da existência, mantido pelo


seu efeito desmobilizador, com um trágico sentimento de vida posto ao serviço de uma
mobilização incessante para ajudar as pessoas, com cada vez maior eficácia, a melhorar a sua
capacidade de resolverem elas próprias os seus problemas, de cuidarem das suas vidas, de terem
os seus direitos respeitados, de satisfazerem a sua necessidade de mudar as suas necessidades,
de se disporem cada vez mais livremente.
A TRANSFERÊNCIA – SEMPRE SOCIAL – PRODUZ A EMERGÊNCIA DA
LINGUAGEM

(....) o homem também tem “consciência”. Mas não é uma consciência que é, desde o início,
uma consciência “pura”. Desde o início, uma maldição pesa sobre o “espírito”, a de ser
“manchado” com a matéria, que aqui assume a forma de camadas de ar inquieto, de sons, numa
palavra sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga como a consciência, – a linguagem
é a consciência real, prática, existindo também para outros homens, existindo portanto só então
para mim também, e, tal como a consciência, a linguagem aparece apenas com necessidade, a
necessidade de comércio com outros homens,

indica Marx em A Ideologia Alemã em 1845.


Menciono aqui como texto de trabalho para a formação em transferência social realizada
pela APPS um texto publicado na revista virtual “corridorelefante” em Julho de 2018. O seu
título “OK? KO!” aponta para a importância da inversão na transferência social, que é sempre
uma transferência de valores: valores de palavras e valores de poder que ressoam com as forças
transferenciais do escárnio e do imperativo social.
OK? KO! “OK” diz na vida quotidiana de uma forma quase internacional, incluindo a
China. A questão que eu coloco é a seguinte: será esta frase habitual, de aspecto empático, o
sinal inconsciente da nossa servidão voluntária ao American Way of Life [estilo de vida
americano]? Tudo parece começar com uma alteração fantasiosa da língua que ocorreu na costa
leste dos Estados Unidos há 200 anos atrás, e a expressão tornou-se comum muito rapidamente.
“OK” significa simplesmente “Oll Korrect”, uma alteração de “All correct” sinônimo
de “All right [Muito bem]”, muito bem então! Por detrás do acento caprichoso e muitas vezes
consensual da aquiescência internacional “O Kay” esconde, portanto, um imperativo para o som
duro “Oll Korrect!”. “De quem é esta mentira”? A quem, a que atribui esta máscara servil-viril?
Poderia ser uma pura contingência histórica de encontros linguísticos na Costa Leste valores de
intercâmbio comercial?
Costa Leste, Nova Inglaterra, New England, Nova Terra dos Ângulos,... Como foi esta
bizarra aliança do “todo” proveniente do holos grego com o “correto” romano que designa a
conformidade com as regras decretadas, com o normal imposto? Tudo correto!...Totalmente
correto! O que foi que levou as pessoas na altura a corrigir e a deliciar-se com a “correção para
todos”, foi brutal? O que foi que desencadeou a entrada no imperativo de uma ordem de poder?
Esta Nova Inglaterra onde nasceu o “OK” tem um nome errado. Historicamente não
foram os ingleses que a povoaram, mas sim os holandeses, os homens dos Países Baixos, o que
significa “baixo, inferior”. Será o complexo de inferioridade que empurrou para a afirmação
linguística holandesa do “Oll Korrect” face à primazia do inglês que se foi impondo
gradualmente?
O que é que se insinua nesta rivalidade fraterna com uma base germânica? O que poderia
ter escorregado para a língua inglesa desta forma? Os ângulos dos Holstein germânicos têm
uma longa tradição de invasão e imposição da sua língua em território estrangeiro. Nos séculos
V e VI conquistaram as Ilhas Britânicas com os judeus da Jutlândia, agora Dinamarca, e os
saxões de Schleswig.
Foi a forma topológica do território onde era falada na Germânia que forjou a palavra
“inglês”? Tal é a atual hipótese linguística que registra uma forma de ângulo geográfico do
território original que se refere ao uncus latino: um crocodilo. Aqueles que vieram desta região
foram simplesmente chamados “ingleses”. Mostraram visivelmente as presas para se imporem
e darem primazia ao nome da língua que se tinha tornado nacional, uma língua de sangue misto,
claro, depois língua internacional e mundial. Por outro lado, os holandeses, também com uma
base germânica, falharam completamente a sua colonização a nível linguístico. Parte do
germânico francófono, esta língua é hoje falada por 30 milhões de pessoas em todo o mundo.
Está quase extinto, por isso...
Entre “um ângulo reto que brinca com as suas presas” e um idioma qualificado como
“baixo, inferior” não há foto! Mas os destinos linguísticos e humanos na sua relação de
dominação são ambíguos e complexos. Uma simples nuance verbal, se estiver ligada ao
domínio político de uma ordem econômica, pode influenciar os destinos à distância no tempo
de uma forma surpreendente.
Por exemplo, a palavra que produz uma identidade ainda hoje nos Estados Unidos é
“Yankee” A etimologia mais provável é estranhamente holandesa: os colonos holandeses da
costa oriental promoveram o nome Janke, um diminutivo de John para se diferenciarem dos
ingleses. O neerlandês “J” é pronunciado como “y”, ao contrário do inglês, John. A promoção
do J de Janke ocorreu quando os ingleses tomaram o poder definitivo na baía de Hudson,
dominando forçosamente os holandeses recém-chegados.
Esta transferência do nome que se tornaria a identidade nacional “Yankee” teria,
portanto, sido contrabandeada em relação à ordem anglo-saxônica. Isto deve ser mantido como
um fenômeno social, tanto mais que a outra hipótese etimológica da palavra Yankee vai a favor
de uma origem Cherokee: a palavra ameríndia “eankee” que significa “covarde” foi atribuída
aos colonos, quer fossem ingleses ou holandeses, independentemente.... Desrespeito aos
poderosos nos dois casos? Talvez, mas não é o importante para ver que o contrabando é
facilmente recuperado por aqueles que dirigem o Estado, mesmo nascente.
Assim, não há elogios aos trocadilhos que caracterizariam um inconsciente escondido
nas profundezas quando acabam por refletir uma impotência do “fazer” na política. Que bela
perna de pau para o povo destruído saber que palavras contrárias são deslizadas ao mestre
dominante, nisso que se faz uma nomeação! Mesmo que a fonte histórica da fábrica de OK ou
de Yankee seja interessante na produção social da linguagem e suas significações, não nos deve
fazer esquecer a importância de compreender que houve um "holocausto", a destruição de uma
civilização ternária ameríndia por um monoteísmo cristão.
Knocked-out [Nocauteado]! Esta civilização ameríndia foi nocauteada pelos Yankee em
nome de Jesus Cristo que mascarou o verdadeiro Deus americano, o Deus Dólar que nasceu
Táler. Fora! Raus! Knocked [Bateu]! KO! A palavra “Knock” é uma onomatopeia inglesa,
significa bater-lhe com um corpo em cima de outro, um golpe, um assassinato abafado e não
uma palavra ou mesmo um grito. OK? All Correct [Tudo Correto]!
PEQUENAS NOTAS SOBRE MARX E A PSICOLOGIA

Os escritos de Marx sobre psicologia poderiam ser descritos como raros e


irreconhecíveis. Contudo, em todo o seu trabalho, ele vira ou derruba a base para a análise das
relações sociais, das relações entre humanos, e como tal, abre outra base para a análise
psicológica, ou, desde a contribuição de Freud, para a psicanálise.
O ponto fundamental é que Marx inverte a relação entre aquilo a que ele chama “vida”
e “consciência” e isto é, portanto, de interesse para encolher de mais do que uma forma. Assim,
ele derruba o postulado que levou os homens a acreditar que a consciência determinava a vida.
Esta afirmação poderia ir ao encontro do ponto de vista psicanalítico: a consciência não
determina a vida.
No entanto, se evocamos ideias e não consciência em relação à determinação,
estabelece-se uma imprecisão, especialmente na assimilação relativamente comum entre
pensamento e linguagem. Da mesma forma, as ideias e a mente poderiam por vezes ser
consideradas como dominantes nas trocas humanas, incluindo o intercâmbio psi. Isto confronta
o ponto de vista de Marx: de acordo com as ideias que têm na cabeça, os seres sociais
organizariam as suas trocas, as suas relações econômicas, as suas relações com o poder, o seu
mundo material. É assim que funciona o preconceito que ainda hoje prevalece: as ideias
organizariam o mundo.
Marx mostra desde o início do seu trabalho que é o mundo material e social que produz
as ideias que os homens têm nas suas cabeças. A inversão produzida por Marx é simples mas
considerável: as ideias não fabricam condições materiais, são as condições materiais que
fabricam as ideias. Esta simples afirmação anula as atuais teorias psicológicas ou psicanalíticas,
tal como anulou as teorias da economia ou filosofia política clássica. Também aqui se trata da
destruição teórica de uma teoria antiga.
A palavra derrubar é forte apesar da sua possível ambiguidade. Foi utilizado por Marx
no seu posfácio de “O Capital” para qualificar a operação topológica que tinha infligido à
dialética de Hegel, esta: “está de cabeça para baixo. É necessário pô-la de cabeça para cima, a
fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico”, escreveu ele. Louis
Althusser e François Châtelet indicam o risco de deduzir que Marx teria substituído um uso
idealista do conceito, tomado como um reflexo do movimento de pensamento, por um uso
materialista, tomado como um reflexo do movimento real.
Este debate althusseriano, se diz respeito a certos desenvolvimentos filosóficos
marxistas, não tem em conta a verdadeira inversão produzida por Marx na sua formulação
contida em “A Ideologia alemã”: “Jovens e velhos hegelianos concordam em acreditar, no
mundo existente, no reino da religião, dos conceitos e do universal”. Não há primado do
conceito no uso da dialética por Marx, mas sim uma primazia da prática social. É a prática que
determina o conceito e a sua função, uma observação que está de acordo com o ponto de vista
de Bachelard: um conceito é feito para morrer.
Lição para uma certa psicanálise que se prende ao idealismo onde o conceito predefinido
já existe, antes de qualquer prática de encontro com o humano ou mesmo de ocultação das
práticas de encontro. Um exemplo simples e edificante irá ilustrar o meu ponto de vista. Durante
uma “apresentação de doentes” (sic), um especialista em homossexualidade terá a audácia de
afirmar após a libertação do impetuoso que o homem que tinha acabado de revelar a sua história
estava errado: certamente não era homossexual porque o que ele tinha dito não correspondia à
teoria de Lacan sobre homossexualidade. Assim, a ideia tinha de organizar o mundo, a ideia de
Lacan sobre homossexualidade e os seus conceitos tinham de organizar o mundo dos “doentes”
(sic)...
Nos Manuscritos de 1844, Karl Marx tem uma visão muito estimulante da psicologia:

Vemos que a história da indústria e a existência objetiva da indústria são o livro aberto das
forças essenciais do homem, a psicologia humana material que, até agora, não foi concebida na
sua ligação com a essência do homem, mas sempre apenas do ponto de vista de alguma relação
externa utilitária. Isto porque, movendo-se dentro da alienação, a realidade das forças essenciais
do homem e a sua atividade genérica foi reduzida à existência universal do homem, religião ou
história na sua essência universal abstrata: política, arte, literatura, etc., e a realidade das forças
essenciais do homem e a sua atividade genérica foi reduzida à existência universal do homem,
religião ou história na sua essência universal abstrata. Pode-se considerar a indústria material
atual como parte do movimento geral, tal como se pode considerar este movimento em si como
um aspecto particular da indústria, uma vez que toda a atividade humana tem sido, até agora,
trabalho, portanto indústria, uma atividade alienada de si mesma. Temos perante nós, sob a
forma de objetos concretos, estranhos, úteis, sob a forma de alienação, as forças essenciais do
homem objetivadas. Uma psicologia para a qual este livro, ou seja, precisamente a mais presente
materialmente, a parte mais acessível da história, permanece fechada, não pode tornar-se uma
verdadeira ciência verdadeiramente rica em conteúdo. O que se deve pensar, afinal de contas,
de uma ciência que, ao dar-se ares, ignora esta grande parte do trabalho humano e que não sente
as suas falhas enquanto toda esta riqueza da atividade humana nada lhe disser, exceto talvez o
que se possa dizer de uma única palavra: “necessidade”, “necessidade vulgar”.

Bela definição para partir de uma base que não a da psicologia contemporânea. Nesta
passagem, Karl-Heinrich, 26 anos, revela-se um precursor da psicologia do amanhã, aquela que
ainda não existe no início do século XXI, tanto se enganou até agora no que Georges
Canguilhem descreveu da sua função de polícia mental no seu famoso artigo “O que é a
psicologia?” em 1958. Vamos citar Canguilhem: “Quando se sai da Sorbonne pela rua Saint-
Jacques, pode-se subir ou descer; se se sobe, aproxima-se do Panteão, que é o Conservatório de
alguns grandes homens, mas se se desce, vai-se certamente para a Prefeitura da Polícia”.
Nessa altura, o Departamento de Psicologia estava localizado nesse local na Rua Saint-
Jacques, e por isso, ao sair dela, tinha-se a opção de subir para uma transferência dirigida para
a função do Pai Morto e do Pai Ideal, o Panteão, ou descer para a função da polícia do
pensamento, a Prefeitura da Polícia. E prossegue, mencionando os testes psicológicos infligidos
aos humanos, os “testados”: “A defesa dos testados é a repugnância de ser tratado como um
inseto, por um homem a quem não reconhece autoridade para lhe dizer quem é e o que deve
fazer”.
Marx é, portanto, um precursor do que ainda não aconteceu. Precursor? É no momento
em que começam os efeitos da transferência social do que será chamado a Revolução Industrial
que Marx indica assim claramente: “a história da indústria e a existência objetiva da indústria
são o livro aberto das forças essenciais do homem, a psicologia do homem concretamente
presente que, até agora, não se concebia na sua ligação com a essência do homem”.
Ele contrasta a sua análise com a redução clássica: “a realidade das forças essenciais do
homem e a sua atividade genérica foram reduzidas à existência universal do homem, religião
ou história na sua essência abstrata universal: política, arte, literatura, etc.”. Isto é novamente
de extrema importância para a situação da psicologia, também da psicanálise, hoje em dia. A
essência abstrata e universal é a sopa diária de sujeitos psicológicos ou sujeitos do inconsciente.
Esta abstração tem efeitos negativos para aqueles que se submetem a esta gaiola categórica,
tanto mais que é sempre combinada com a transcendência.
A potência do pensamento de Marx em termos do seu impacto na psicologia é
impressionante. Ele enfatiza o impasse que seria representado por uma psicologia baseada no
homem definida como um conceito universal abstrato. Ele reforça este ponto ligando-o à
transcendência: a sua crítica da religião é essencial e é aqui enfatizada na sua relação com uma
história tomada na sua essência universal abstrata e os seus efeitos na forma de tomar a política,
a arte, a literatura.
Então, o que se deve pensar desta ciência que se está a dar a si própria ares? “Ao fazer
do espírito de um pequeno universo à parte, separável e observável como com os dispositivos,
fazemos da mente uma coisa, ou seja, enterramo-la como espírito”, Canguilhem a propósito de
“A ciência psicológica”. A sentença de Marx evocando aqueles que ignoram o livro aberto das
forças essenciais do homem e, apaixonados, negam a sua deficiência, nomeando este livro do
concreto com a palavra “necessidade, necessidade vulgar”, que para eles é um sinal de
desvalorização. Isto antecipa um certo desdém por aqueles que não nascem com a teoria do
significante e do desejo e não podem passar por este desfile obrigatório para qualquer
psicanálise digna desta mundanização.
NÃO HÁ DOENÇA MENTAL!

Este enunciado intimamente pessoal ressoa como um relâmpago no céu sereno da Saúde
Mental. Como psiquiatra, psicanalista, antigo chefe de setor dos hospitais psiquiátricos, esta
frase poderia ser considerada paradoxal, mesmo antagônica se não provocadora ou idiota. Eu
acrescentaria que, pelo contrário, é o princípio abstrato da doença mental que hoje, como no
passado, está em desacordo com diferentes contextos históricos e econômicos porque não
satisfaz as necessidades das pessoas afetadas por uma dor referente ao psíquico, uma dor
concreta vivida na mente. Esta declaração poderia ser tomada como uma posição “anti-
psiquiátrica”. É certo que deve ser entendida como uma necessidade imperiosa de passar a
práticas radicalmente diferentes relativas ao sofrimento psíquico, por muito grave que seja na
sua forma de expressão; contudo, considero que a psiquiatria é um ramo da medicina que lida
expressamente com esta dor na mente e que a sua função deve ser a de compreender e ajudar
as pessoas afetadas por este sofrimento. Não tem o direito exclusivo de o fazer, e deve ser
possível remover as máscaras de especialistas que nos protegem de encontros humanos
autênticos e assim permitir os potenciais prestadores de cuidados contidos em todos sob certas
condições. Dizer “Não existe tal coisa como doença mental!” implica portanto que as práticas
psiquiátricas atuais devem mudar a sua base.
Dizer “Não há doença mental” é possível, enquanto que dizer “Não há dor psíquica” ou
“Não há sofrimento psíquico” não faz sentido na prática. Comecemos por estas três palavras e
pelos conhecimentos contidos nas suas etimologias históricas, seguindo as lições do meu único
mestre em psiquiatria, Antonin Artaud.
A “doença” aparece por volta de 1150 e refere-se a uma alteração na saúde,
especialmente uma condição específica. A “dor” aparece em 1050 e expressa sofrimento físico
ou moral, especialmente na retórica “emoção, faculdade de patético”. O “sofrimento” aparece
em 1170 e refere-se primeiro à ação de “apoiar” e depois à função de “trégua, parar, fazer
parar”, antes de passar ao significado de “atraso, descanso”. Ao mesmo tempo, a palavra
“sofrimento” assume o valor de “paciência, tolerar, permitir”. É especialmente em francês
médio (1492) que o termo significa “dor, física ou moral” e “estado de uma pessoa que sofre”.
Qual é o interesse desta história linguística sob a forma de um tríptico? Muito
simplesmente: compreender que a utilização das palavras “dor” ou “sofrimento” torna mais
difícil o exercício e o domínio do poder burocrático que rege as políticas de saúde longe dos
problemas humanos, disso que acontece na mente e na vida social concreta.
Os poderes burocráticos evoluem de acordo com as condições históricas que os
determinam, e é evidente que, no período atual, a regressão progride a grandes passos! Este
“progresso da regressão” deve ser analisado como uma escolha política num período em que
existem outras possibilidades: avanços tecnológicos que nos permitem lidar de forma diferente
com questões de liberdade, de livre auto disposição, de alienação, de tutela. Os meios de
produção de saberes, de savoir-faire e partilha de saberes e práticas oferecem esta possibilidade.
Isto toca, portanto, diretamente a questão social e política. Neste contexto, a prática
social prevalece de forma consciente e inconsciente. É este aspecto que desenvolvemos nas
nossas Oficinas Práticas de Psicanálise Social. Fazemo-lo com referência tanto ao coletivo
como ao individual. A nossa vida social é uma experiência transferencial no sentido
psicanalítico do termo. Somos apanhados numa transferência social, ou seja, somos ao mesmo
tempo agentes, efeitos e produtos das relações sociais que vivemos.
Esta base é fundamental e altera consideravelmente a situação das pessoas com dores
psíquicas. Também muda a base da transferência psicanalítica, a relação com o saber
psicanalítico, a relação com as práticas de transferência. Isto implica que se há sofrimento
psíquico para as pessoas na vida concreta, indica ao mesmo tempo que as relações sociais não
são adequadas à questão que estas pessoas colocam. Esta é uma visão fundamental. Há questões
levantadas por pessoas que sofrem na sociedade pelas formulações que fazem, e é uma questão
de estudar com elas o que se exprime na relação social. É isto que Antonin Artaud explica em
sua obra com a sua lucidez.
As respostas dadas às suas questões precisam de ser alteradas porque as respostas
atualmente dominantes são da ordem da repressão social. O termo “doença mental” refere-se a
pelo menos dois pontos que precisam de ser alterados na prática: primeiro, a relação com o
outro, que é no princípio dominante atual uma relação de observação. Depois vem a forma de
um saber que completa esta relação de subordinação e coloca as pessoas na prisão de
categorização psicopatológica.
Em termos concretos, isto corresponde à prisão do pensamento e da condenação social.
Libertar os potenciais inibidos, que depois empurram a pessoa para a vida na sua relação com
os outros, favorecendo a criação da vida ao considerar o ser humano como um artista em
partição com os outros, dar outras perspectivas aos seres humanos dilacerados em seus
sofrimentos, do que classificá-los como esquizofrênicos, paranoicos ou histéricos, ou assinalar
caixas para fazer um diagnóstico de distúrbios mentais como o DSM. Estas categorizações
fazem parte do arsenal burocrático e correspondem em seus fundamentos – por vezes ao nosso
não-sabido – a lógicas colonizadoras.
Partindo da experiência concreta da história familiar e social, desde o nascimento de
uma criança, permite-nos lançar luz sobre os resultados emancipatórios para as pessoas que
sofrem. Estamos então no campo da imanência que nos permite identificar os obstáculos ligados
ao campo da transcendência que faz funcionar os princípios que são ao mesmo tempo a fonte
de todas as explicações e realidades superiores.
Georges Canguilhem, médico, filósofo e combatente da resistência contra a barbárie
nazi, sublinha um ponto que ecoa diretamente o problema da transferência social com esta frase:

Por uma lenta alteração do significado dos seus objetivos, a medicina, de responder a um
chamado que era primitivo, transformou a obediência em uma exigência (...) Assim, a medicina
que é primitivamente uma resposta a um chamado que emana de uma pessoa singular se viu
desviada por aquilo que da obediência se tornou exigência de normas e protocolos.

Esta declaração de Georges Canguilhem tem implicações em todos os campos da prática


médica. Diz respeito à psiquiatria, mas também a outros campos relacionados com o sofrimento
psíquico: psicologia e psicanálise clássica em suas obediências às exigências transcendentais.
O sofrimento ou a dor tem uma função de chamado e isto ocorre sempre no contexto de uma
relação social. O socius é o outro, o companheiro, o camarada. A afirmação “Não há doença
mental” só pode assumir o seu significado como complemento de “Há um problema social no
psiquismo”. Há uma transferência de problemas sociais, problemas do que é social no
psiquismo.
O termo “Psicanálise Social” afirma o desejo de analisar esta transferência, que é sempre
social, e de descobrir os seus não-saberes, as suas singulares condições históricas. Partindo de
outra base – a da vida social concreta e das transferências que agem, que têm efeitos, que
produzem – permite inverter os impulsos destrutivos, ponto de referência fundamental para
apreender as fixações de gozo que se agarram ao sofrimento.
Como Marx salientou nos seus manuscritos parisienses de 1844, “O sofrimento humano
– entendido humanamente – é um prazer humano”. Com esta outra base, a dimensão poética do
saber que se manifesta na prática psicanalítica tornará possível destacar outra relação humana,
e o que pode ser permitido de agora em diante: as condições de liberdade e de dispor de si
próprio cada vez mais livremente.
PAIXÃO POÉTICA NA FORMA DE UMA CRIANÇA

Não há doença mental, mas sim um sofrimento humano no social que não é conhecido
por nosso psiquismo. Esta é a máxima que me proponho trabalhar atualmente no mundo
psiquiátrico, psicanalítico e mais radicalmente humano. Penso por experiência dos encontros
humanos que este sofrimento humano nasce na infância mais precoce. Mesmo que a criança
não fale, dá testemunho de um sofrimento e, portanto, de uma paixão. Em francês Paixão vem
do verbo “Pâtir”, que dentre as suas definições tem o significado de “sofrer”. Qual é o destino
deste infans? Ninguém pode saber, porque jamais houve uma filosofia da história.
O que se pode saber na experiência humana é que o infans anula a racionalização mental,
anula uma ordem estabelecida nas relações do casal, da família, da creche, da escola. O in-fans
é aquele que não fala e este fato confere-lhe um enorme poder e, portanto, também uma ameaça:
ameaça à ordem do casal, da família, ameaça que é derrubada também no medo fantasioso da
sua morte, do seu assassinato. Aprendi muito cedo, como qualquer ser humano, que acreditar
que a prática da fala por si só resolveria conflitos seria ilusório. Predomina o ato, a ação, o
“fazer”. Este infans ensina-nos que o seu corpo impulsivo toma conta do seu mundo, depois
que a sua forma de imagem reconhecida no espelho do seu semelhante liberta a sua poesia para
dizer algo sobre ele. Esta é uma experiência fundamental para aquele que se torna uma criança.
Os furos no corpo através dos quais o ar, a comida, a merda, o mijo, o barulho e a voz
passam encontram outra socialização, uma racionalização. O fato social de dizer está ligado às
sensações do corpo através da imagem e é através da sua relação com o seu semelhante que a
criança se refere a si própria como uma criança. E é assim que se desenvolve o seu potencial
poético. A poesia é criação, uma fabricação cuja fundação é através da voz. E é aí que a paixão
começa. Na paixão, estamos numa relação com a agitação, com a desorientação. A paixão
retorna, revira. O fato de suportar, de sofrer, de experimentar, transforma a passividade em
atividade. “O sofrimento humano – entendido humanamente – é um prazer humano”, diz Marx
no seu Manuscritos parisienses de 1844. A relação com o olhar, com a imagem e com a voz
torna-se inflamada. O objeto sonoro torna-se musical, o objeto escópico transforma-se numa
fotografia, o gesto corporal torna-se pictórico. A paixão abala a prisão das racionalizações,
empurra para “dar asas errantes à razão”, para citar a linha de Paul Eluard.
Isto não é facilmente tolerado e esta intolerância começa com a forma de rejeitar a poesia
que dá à luz a criança da paixão. Esta poesia infantil é fabulosa, maravilhosa, descoberta,
invenção, e também a acho enterrada no que por vezes é um simples bloqueio do potencial de
sofrimento de uma criança e que poderia assumir a aparência de uma categoria mental, uma
doença mental de acordo com a ordem patriarcal que nos governa. Esta poesia da criança é
constitutiva de uma relação com o saber e este é o ponto dramático da humanidade de hoje. O
desenvolvimento dos saberes humanos no final deste quarto de século permite imaginar
infinitas possibilidades de criações, de desenvolvimentos de potenciais humanos para satisfazer
necessidades e desejos humanos no quadro de uma ética coletiva.
Contudo, será que as necessidades vitais serão satisfeitas se o planeta Terra for
consumido, se a lógica do assassínio em massa continuar, sob várias formas, em nome do lucro
sagrado e da propriedade privada de Sua Majestade? O problema torna-se crucial para todas as
pessoas vivas; o desastre é tão gritante que cega os olhos, será que o silêncio mortificado torna
o ouvido surdo? Trata-se de fazer uma revolução que mude completamente a base social, sob
pena de assassinato total.
Voltemos à poesia da criança que é a criadora de um saber novo, de uma nova forma de
ser. Existe um fosso entre o que poderia ser a vida de uma criança livre e o que lhe é hoje
imposto muito cedo, esta passagem pelo moinho das repressões utilitaristas; ouçamos o
gaguejar poético da criança que descobre e vive socialmente as suas invenções. Não se trata
para mim de tomar esta poesia da criança como uma visão idealista do mundo, como uma visão
utópica de um mundo idílico da infância. Pelo contrário, insisto que o seu momento poético é
a emergência de uma nova relação social para ela e para os outros que a rodeiam e que isto deve
produzir um direito à diversidade.
Ouço esta poesia da criança como o psiquiatra Lucien Bonnafé, este a escreveu em anos
em que a transformação do mundo podia parecer próxima, no ano de 1977. Sublinhando a
impressionante distância que existia entre a expressão da capacidade das pessoas para cuidar
das suas vidas e o que poderia ser, escreveu: “Para avaliar esta distância, é necessário e
suficiente olhar e ouvir aquele que a nossa sociedade está a dedicar um destino de POETA
ASSASSINADO, a criança”. Porque o poeta que está em cada criança está morto?
A resposta está na sua solução: a revolução necessária nas relações sociais que
produzimos. Eluard aponta-a à sua maneira:

É de esperar que a própria obra poética encontre a sua solução na resolução de problemas
sociais. O esforço dos poetas tenderá em breve apenas para libertar imagens, para suavizar as
formas que são escravas do espírito limitado dos mestres. Chegará o momento em que toda a
inteligência humana despertará (...) Todos os homens encontrarão de novo a prática da
linguagem espontânea, fácil, o dom da criação.
Criemos as condições de poder social que nos permitirão tornar a nossa vida quotidiana
poética e assim fazer uma revolução concreta. Criemos as condições do poder social para dar
vida ao poeta em cada criança.

Palavras-chave: Criança; Psicanálise Social; Social; Transferência social


“FINDING PHONG”, A TRANSIDENTIDADE É UMA QUESTÃO SOCIAL
UNIVERSAL

No início era a imagem que dá sentido ao som que ressoa no corpo. O olhar do
espectador capta um movimento vertical descendente da câmara que mostra olhos, um nariz,
uma boca, para formar um rosto. Uma voz que diz “Mama” fazendo matriz de uma mensagem
universal, fabrica um drama humano no sofrimento dos gritos que vêm do corpo. Mostra-se
assim muito rapidamente o que caracteriza cada ser humano: um nó material entre as palavras,
as imagens e as sensações do corpo, um nó material que é o fundamento da identidade.
O filme começa desta forma e toma a forma de um diário filmado em frente de uma
câmara. Esta câmara torna-se o instrumento que inicia o jogo de espelhos entre Phong – dividido
em dois mesmo no significado social do seu primeiro nome, que evoca ambos os gêneros – a
sua família, os seus amigos, os seus colegas de trabalho, os diferentes camaradas humanos que
encontra, para usar o belo termo “camarada humano” que pedi emprestado ao psiquiatra e
antipsiquiatra americano, Thomas Szasz.
Depois vem uma frase espantosa dirigida à sua família: os seus pais - pai e mãe - os seus
irmãos e irmã: “Fiz este filme para manter uma bela imagem de mim mesma, mas choro o
tempo todo”, “Espero que nenhum de vós veja este filme. Este é o meu diário filmado. Não
olhes para ele. Quem me dera que nunca olhassem para mim”.
A base da proposta da imagem filmada é assim apanhada nas suas contradições: trata-
se de manter uma bela imagem pessoal antes de se avançar para uma transição, uma
feminização. Que valor deve ser dado a este choro? Pode assumir-se que esta imagem se refere
à sua infância, o belo menino da sua mãe, mas que não corresponde ao seu verdadeiro ser, sendo
uma menina. Manter uma bela imagem com um destino ambíguo permanece íntimo no amor
de si próprio, de sua mãe, de sua família, é um diário íntimo de onde este imperativo ligado ao
subjetivo do subjuntivo: “Espero que nenhum de vós veja este filme. Este é o meu diário
filmado. Não olhes para ele. Espero que nunca olhem para mim”.
Em algumas imagens e palavras, ressonâncias do visual e da voz no corpo, na minha
opinião, surge a questão essencial: o nó material entre a sensação do corpo, da pele e a imagem
da pessoa e o que é dito pelos outros e, em primeiro lugar, a família – o primeiro grupo social
encontrado – não funciona. O chamado nó social natural não funciona. O “rapaz” não se
enquadra nesta sensação corporal e no seu rosto – olhos, nariz, boca. O resultado é o mal-estar,
a falta, a privação, e isto divide, cria conflito nas relações com os outros. Deve ser dito em
termos sociais: “tens um pênis, és um rapaz”. Este desconforto é primeiro íntimo e depois deve
passar num momento, não determinado com antecedência, ao público, não sem medo legítimo,
daí a mensagem aparentemente contraditória do discurso.
Uma passagem difícil da intimidade para o público, que na sequência está associada à
passagem de um ano para o outro com o espetáculo da festa do Tê, fogos de artifício que
ressoam na privação de ser eu próprio e na impossibilidade de se ligar ao grupo, de se juntar ao
grupo de raparigas para celebrar. “Tenho vergonha de falar sobre o meu segredo”, diz ele,
usando o gênero masculino. Depois vem a afirmação: “Eu quero ser eu, mesmo que a morte
seja o preço”. O que está em jogo na transição é uma morte, um confronto com a morte, e a
minha experiência diz-me que é a morte de um valor numa operação, neste caso o valor
“masculino”, e que esta morte de um valor não é praticada, eficaz, produzida num sistema
unilinear mas multilinear. É assim que o filme se desenrola na sua segunda parte, com
intersecções de diferentes e múltiplas relações sociais: relação com a família, relação com os
amigos, pessoas trans, relação no trabalho.
Porque falar da segunda parte? A utilização da câmara muda no filme. No início, a
câmara faz, no seu enquadramento, um diário, expressão de uma voz ou uma imagem frontal
para o espectador. As palavras são dirigidas, acima de tudo, à mãe. Ele expressa as suas dúvidas
sobre a transição devido à tristeza da mãe para esta perspectiva “Vais ficar triste mãe!”. Quando
chega a Hanói [Capital do Vietnã], onde trabalha, assinala a sua solidão, diz que sente falta da
sua mãe. Ele chora porque tinha visto a sua mãe escondida para não mostrar as lágrimas
maternas ao vê-lo partindo. Aqui a questão do amor à sua imagem é jogada no olhar da mãe,
que poderia ser um baluarte, um obstáculo à transformação. A direção decisiva é dada na
sequência seguinte do filme onde Phong analisa os padrões cirúrgicos da transição e a
transformação do pênis em clitóris.
Ele deixou o lamento, o sofrimento ligado ao amor. Como um cirurgião que tem de
operar sem que o seu ato seja contaminado pelo efeito, ele pode dizer: “É carne cortada como
carne”. A função do amor no seu questionamento da identidade mudou. Ele fala novamente de
sofrimento, evoca o fato de a sua família ter medo de que ele esteja a sofrer. Ele pede perdão
mas indica imediatamente que não se devem preocupar: de repente sofrerá, mas terá uma vida
inteira de felicidade.
Ele foi além do amor que está preso na repetição do sofrimento, ele foi além da face do
prazer ligado à expressão do sofrimento. Coloca-se então a questão da passagem do íntimo para
o público, mas acaba de a resolver, já começou, está separado. Esta separação diz respeito à
coisa mais valiosa da sua vida, a felicidade. Na primeira parte do filme ele afirma muito
rapidamente em frente da câmara “Nunca conhecerei a felicidade a não ser em família”. A
família – pai, mãe, irmãos, irmã – são para ele semelhantes no amor presente no primeiro grupo
social que o ser humano encontra, a família. Um desnudamento ocorreu na sua mudança de
posição perante o valor amoroso, quando o visual da passagem do pênis para o clitóris apareceu,
e pode assumir o maior valor portado pelo gênero feminino.
O encontro com o cirurgião na Tailândia fará uma pausa na utilização da câmara, que já
não foca exclusivamente o rosto e a fala de Phong, mas mostra os seus encontros na esfera
social: a transição está em curso. Ele, cujo trabalho consiste na reparação de bonecos de teatro
para os tornar bonitos, alterará a função social da máscara para si próprio. Antes de ser obrigado
a fazer a feminilidade funcionar como uma máscara privada; depois é o pênis que é engolido
até à função de máscara no social, ele pode ser removido. Este é o resultado de uma progressão
límpida e óbvia onde a feminilidade se afirma a si própria. O medo de que o cirurgião faça
zombaria dele, da sua feminilidade, é um elemento importante. O imperativo social de
conformidade com o gênero definido pela anatomia e o escárnio social da ambiguidade
transportada pela pessoa são duas fontes que alimentam o sofrimento. A terapia hormonal
reforça esta passagem para a vida, a vida feminina, ele torna-se ela.
O nó entre ter sensações corporais femininas, uma imagem feminina e poder ser
chamada de “garota” leva a uma vida que vale a pena viver. Nos seus encontros com mulheres,
mulheres trans, prostitutas, homens e também com os seus irmãos e irmãs que a acompanharão
na última fase da transição em Bangkok, estabelece-se toda uma dialética filmada. O que é
dialético é o que assinala nas reações dos outros um valor feminino que funciona na esfera
social. Isto conduz a um valor mais feminino nas trocas com outros e que constituirá a base de
novas relações sociais, uma revolução nas relações sociais em comparação com a situação
anterior. E a bela palavra para Phong será um sinal deste valor acrescido de uma forma
constante, quaisquer que sejam os interlocutores.
A transidentidade abala uma ordem, sempre e acima de tudo a ordem familiar. Para o
pai, parece simples. A sua ordem de pensamento traz a transidentidade de Phong para o seu
próprio mundo, o mundo do desenvolvimento científico e revolucionário. Assim, a ciência torna
possível encontrar uma solução para as pessoas trans que outrora estavam presas num corpo
que não conseguia chegar a um acordo consigo mesmo. Neste contexto, Phong, ao carregar o
valor de “filha” no mundo social, continuará a ser a sua filha amada que servirá à Revolução e
à luta do heroico povo vietnamita. Para a mãe, a coisa é mais complexa. É no âmbito de uma
discussão de grupo entre Phong, os seus irmãos e ela que ela retorna a sua posição de recusa
para a aceitação. Isso gira em torno do que a palavra “filha” atribuída a Phong no grupo familiar
transporta.
O que funciona no grupo é simples: um valor funciona em relação a outro valor. O valor
de uma palavra funciona para uma pessoa em relação ao valor de outra palavra. O mesmo se
aplica a uma imagem ou a uma sensação corporal. Este conjunto de valores que são levados a
cabo funciona em relação ao social e à privação que este social provoca. O que vai funcionar
neste momento de encontro do grupo familiar Phong / Irmãos / Irmã / Mãe é o binário Garota /
Bela, aquele que Phong coloca no seu ser no mundo como uma dinâmica de maior valor. Este
jogo de valores encontra o jogo dos sinais, do que é feito um sinal para um valor, sinal-valor e
como funciona sem o conhecimento das pessoas do grupo quanto à aceitação ou rejeição.
Aqui entra um ternário. O que acontece na reviravolta maternal? Os dois irmãos dizem
cada um à sua maneira que Phong / Filha / Bela não serve: ela não é uma garota ou se for uma
garota não é bonita. É este nó no discurso filial que faz com que a mãe deixe de se recusar a
perder o seu belo menino para aceitar ganhar uma menina que é bela. Tudo depende do valor
da palavra bela em relação ao valor da palavra menina e o que é que ela sinaliza? A mãe
percebeu a palavra bela – mais valor em troca com os homens por Phong – como um
menosprezo: com esta palavra Phong torna-se para a mãe uma mulher fácil, uma mulher leve
que se entrega aos homens para ser reconhecida como uma mulher. Mas ela acha-a bela, ela
acha Phong bela, ao contrário do que dizem os seus filhos. A inversão é feita. Tornou-se Ela
para a mãe. Houve uma transferência de valores e há um inconsciente nesta produção, um
inconsciente social que é também um inconsciente singularizado.
Que mais posso dizer, exceto que temos de ver “Finding Phong” e vê-lo novamente.
Finding não equivale apenas no francês ao verbo “trouver” [encontrar]. Dependendo do
contexto social, pode significar “attirer” [atrair], “reconnaître” [reconhecer], “chercher”
[procurar], “découvrir” [descobrir], “conclure” [concluir], “résulter” [resultar], “juger”
[julgar], tudo isto são significados que as pessoas com a questão trans encontram nas suas vidas.
Uma pessoa da FTM disse-me que os médicos masculinos deveriam ter um estágio de
feminilidade durante os seus anos de faculdade de medicina. Na ausência de um estágio, este
filme ensina a vida de uma transição de uma forma muito pedagógica e bela ao mesmo tempo.
Este filme dá vida à transidentidade no Vietnã como uma questão social universal para a raça
humana. Quem não poderia argumentar, depois de ver que a transidentidade não é uma doença
mas uma questão social e que a psiquiatria desta questão é um atentado à dignidade humana?
ARTAUD, A PALAVRA-PALAVRA E OS SUICÍDIOS DA SOCIEDADE

“Toda verdadeira linguagem é incompreensível”, escreveu Antonin Artaud em 1947 em


“Aqui jaz”, derrotando o senso comum que se espalha sob as mais diversas penas das teorias
“psicologisantes” da comunicação humana. A lógica das máscaras humanas não é da ordem da
compreensão. Não podemos captar o significado das palavras em conjunto nem podemos captar
pensamentos em conjunto, só na ilusão produzida pelo estado de amor. Toda a linguagem
verdadeira é incompreensível e este “sem sentido” é o pivô da psicanálise humana que não é
ordenada, como é hoje nas suas correntes dominantes, pelos “psicopata-logias” que Antonin
Artaud teve de frequentar de forma imperativa e ordenada por uma sociedade baseada no
princípio da culpa moral.
Artaud não passou a sua vida para compreender, mas para viver e criar. “Nunca estudei
nada, mas vivi tudo e isso ensinou-me algo”, escreveu ele. A experiência da transferência entre
humanos, a transferência social, é, ao nosso não-sabido, tanto o motor da nossa vida criativa
como o seu obstáculo. Há uma série de humanos que passam o seu tempo a observar as palavras
proferidas por outros humanos. A palavra tomada como objeto não coincide com a palavra do
locutor, e esta lacuna entre palavras pode ser hematoma porque na lacuna entre palavras existe
a possibilidade de uma palavra morrer, de uma palavra já não funcionar para outra palavra no
seu nó ao corpo e à imagem. É precisamente isto que está subjacente à função da máscara social
e que Artaud nos transmite em “Van Gogh, o Suicídio da Sociedade”. Ele tinha indicado
anteriormente um caminho revolucionário na função do Teatro: a transformação do corpo e da
sua imagem em palco, o que implica transformar estes corpos e imagens na sua relação com as
palavras, com as relações sociais, transformando a vida e abolindo uma ordem social baseada
na culpa moral.
REFLEXÕES SOBRE O LUGAR DO PSIQUIATRA NO PERCURSO
“TRANS”

O lugar do psiquiatra no processo de transição permanece na França de importância


decisiva para aqueles que estão preocupados com a questão da transcendência. O que se pode
dizer sobre o assunto?

1. A primazia da prática do encontro humano

Neste problema humano que é a transidentidade, desejo usar a minha experiência para
tentar transmitir o que aprendi com a minha prática como psiquiatra e psicanalista. A primazia
da prática está numa relação dialética com a sua teorização, uma bússola essencial para qualquer
problema humano. Esta prática se baseia no encontro humano, o encontro de histórias humanas
e intervenções nestas histórias humanas.
A minha experiência relativamente ao lugar do psiquiatra na sociedade está
correlacionada com a minha formação profissional. Antes de me dedicar ao meu trabalho como
psicanalista, tive importantes responsabilidades no campo do serviço de saúde pública, tendo
sido Diretor Médico no setor psiquiátrico durante 13 anos, Perito no Tribunal de Apelação
durante 8 anos, Presidente da Comissão Médica de um estabelecimento institucional durante 8
anos, responsável pela formação universitária durante 16 anos. Neste quadro de
responsabilidade, tenho tentado, com outros, pensar e construir, desde que assumi o meu cargo
de Médico Hospitalar em 1985, um tipo diferente de psiquiatria, tendo em consideração o fato
de a psiquiatria ser construída sobre uma ordem moral, social e política e que esta base assim
definida tem consequências na forma como os problemas de sofrimento psíquico são tidos em
conta.
2. Indicações iniciais

Neste contexto de trabalho, o encontro com pessoas que lidam com a questão
transidentitária, iniciado em 1995, teve uma influência considerável nas minhas concepções:
houve uma inversão, uma reviravolta. Em relação à minha prática, indicarei dois períodos
principais: 1995 -2005 e depois de 2010 até aos dias de hoje. Em 1995, tendo o meu trabalho
hospitalar sido transferido para a Província na altura, a minha primeira experiência com a
questão trans – uma reunião do MTF – fez-me compreender isso que impulsiona para a vida de
uma forma radical na demanda trans. Este impulso de vida orientou-me decisivamente para a
necessidade agora óbvia e simples de responder ao pedido que tinha sido formulado. Seguiram-
se outros encontros, em número marginal em comparação com a minha prática hospitalar,
centrada em pessoas que sofrem de outra estigmatização psiquiátrica e social, e que são
rotuladas com o termo insanidade ou doença mental porque desenvolvem um pensamento
contrário, um comportamento contrário ao que o Estado estabeleceu como norma social.
A questão trans permaneceu para mim uma questão enigmática, mas o meu ponto de
certeza foi que o que foi transmitido a partir destes encontros pôs em causa a ordem psicanalítica
e em particular a ordem lacaniana, a corrente psicanalítica a que eu pertencia. Isto levou a um
forte questionamento teórico, que a partir de parcial, gradualmente se tornou geral e radical. A
ordem psicanalítica depende, em grande medida, da ordem psiquiátrica, que, portanto, diz
respeito a uma ordem social, política e moral.
A este respeito, fiquei incrivelmente surpreendido com vários aspectos da prática
psiquiátrica relativamente à questão dos transgêneros: a opacidade das respostas dadas às
pessoas em questão, a duração dos atrasos, a forma de considerar as pessoas, por vezes um
prazer malicioso de as nomear de acordo com o gênero relacionado com a anatomia, enquanto
que desde o primeiro dia aprendi com as pessoas transgênero a importância simplesmente
humana de as reconhecer de acordo com a identidade de gênero contrária à anatomia, e que era
apropriado que estas pessoas do seu ser, se dissessem de acordo com o seu gênero no social e
não de acordo com a sua anatomia de nascimento.
Isso me ensinou muito sobre a questão da humilhação social produzida por um sistema,
uma ordem. Esta ordem tem portanto a ver com a ordem moral e a memória do meu colega
psiquiatra que me declarou do nada na véspera do ano 2000: “um homem que quer se tornar
lésbica, não está pensando seriamente nisso, meu caro colega...”. Outro exemplo de pensamento
discriminatório é a seguinte recordação: num anfiteatro de um hospital parisiense alguns anos
mais tarde, uma psicanalista muito metódica, casada com um advogado também muito
metódico, fez-me a seguinte pergunta: “Você faz certificados para transformar um homem
numa mulher, você também os faz se alguém te pedir para ser transformado num cão?”. Ela
estava a mostrar toda a delicadeza do seu inconsciente no seu relatório ao seu marido, mas um
fato que eu lamentei foi que uma boa parte do anfiteatro tomou o seu lado.

3. Partir de uma base outra

Menciono esta experiência para dizer que se a questão é colocada sobre o lugar do
psiquiatra, já não convém colocar a questão não somente a qual ideia de psiquiatria se tem mas
a qual prática psiquiátrica? O ponto essencial que está ligado ao anterior é que a reflexão sobre
o possível lugar do psiquiatra no processo de transição deve partir de uma base diferente da que
existe hoje, de uma forma radical, na prática e, portanto, em teoria.
É aqui que entra o meu percurso pessoal de transição como psiquiatra guiado pela
psicanálise e pela sua dimensão social e política. O efeito da fase iniciada em 2010,
nomeadamente o encontro com Pierre-Axel Léotard, que era então Presidente da Associação
Inter-Trans, foi decisivo. A organização conjunta com ele de várias reuniões e colóquios sobre
a questão dos transgêneros em ligação com a equipa do Cenesex (Centro Nacional de Educación
Sexual) liderada por Mariela Castro em Havana modificou o meu trabalho teórico sobre a
questão da segregação em psiquiatria e psicanálise da qual os transgêneros são vítimas.
Também levou a um aumento da minha prática de encontros com pessoas com a questão
transgênero, e esta primazia da prática abalou o meu trabalho teórico psicanalítico anterior,
revelando-me como a clínica psicanalítica se baseava na ordem psiquiátrica de uma forma
muito mais séria do que eu pensava e que isto pode ter obscurecido a minha teoria.
Descobri o quanto esses nós que se destacavam, na minha teorização sobre as questões
trans, entre palavras, imagens, corpos, estavam sendo empurrados para as suas lógicas e que
estas lógicas eram muito mais marcadas pela diversidade do que eu mesmo pensava. Isto
ensinou-me que era necessário, não só ser crítico ou oposto ao sistema, mas também partir de
uma base outra, radicalmente diferente do que a psicanálise e, claro, a psiquiatria propunham,
e lançar as bases desta base outra para uma prática outra.
4. A transidentidade não é uma doença mas uma questão social

A primeira coisa a partir de uma base outra da existente é que não deve haver obrigação, como
defendido pelo Parlamento Europeu na sua resolução de Abril de 2015, de submeter a um
parecer psiquiátrico um processo de transição. Cito:

As pessoas transgênero estão também particularmente em risco de discriminação


múltipla. O fato de a situação das pessoas transgênero ser considerada uma doença pelos
manuais de diagnóstico internacionais é um ataque à sua dignidade humana e um obstáculo
adicional à sua integração social.
As violações dos direitos fundamentais, incluindo o direito à privacidade e integridade
física, são sofridas por pessoas transgênero quando procuram o reconhecimento legal do seu
gênero; de fato, os requisitos dos procedimentos relevantes incluem frequentemente a
esterilização, o divórcio, um diagnóstico de doença mental, cirurgia e outros tratamentos
médicos. Além disso, os encargos administrativos e requisitos adicionais, tais como um período
de “experiência de vida” no gênero escolhido, normalmente tornam os procedimentos de
reconhecimento do gênero pesados.
Vários estados membros do Conselho da Europa alteraram recentemente a sua
legislação sobre reconhecimento legal do gênero ou estão em vias de o fazer. Algumas
disposições baseiam-se no princípio da autodeterminação e não exigem procedimentos longos
e complexos ou o envolvimento de psiquiatras ou outros médicos.

Os elementos essenciais estão, portanto, contidos nesta resolução de uma forma


simplesmente humana, o que lhe confere um valor revolucionário. A última frase da resolução
estende a questão da construção de uma base alternativa a todos os “outros médicos” e isto é
muito importante. Não se trata apenas de excluir a relação com o que se chama insanidade ou
psicose ou doença mental, mas de perguntar a toda a profissão médica o que implica o princípio
legítimo da autodeterminação. Esta é, portanto, uma questão crucial para a medicina e os
médicos.
Gostaria de recordar o importante trabalho do filósofo Georges Canguilhem sobre
questões médicas. Ele sublinha um ponto que ecoa diretamente na problemática transidentitária
com esta frase: “Por uma lenta alteração do sentido dos seus objetivos, a medicina, de resposta
a um apelo que era primitivo, tornou-se obediente a uma exigência”. “Assim, a medicina que é
primitivamente uma resposta a um apelo emanando de uma pessoa singular foi desviada pelo
que se tornou obediência à exigência de normas e protocolos”. O que Georges Canguilhem
afirmou diz respeito a todos os campos da medicina e tem consequências que podem ser
catastróficas para a saúde dos indivíduos nos vários campos da prática médica.
Qual é o apelo das pessoas trans à medicina? O apelo é o de serem ajudados num
processo de transição, um processo de transição que é o sinal específico do seu saber sobre o
que constitui o seu nó de identidade entre as palavras, as imagens e os corpos. Nesta ajuda estão
endocrinologistas e cirurgiões, naturalmente, dermatologistas ou foniatras, paramédicos como
ortofonistas porque estes especialistas abordam a questão do corpo e da sua funcionalidade.
Estes últimos especialistas são indispensáveis para o processo de transformação no concreto,
que o psiquiatra não é de forma alguma. Os psiquiatras só devem aparecer quando pessoas
transgênero pedem ajuda. Do mesmo modo, a ajuda de psiquiatras junto aos endocrinologistas
e cirurgiões em caso de sofrimento psíquico poderia ser validada.
Estas são questões médicas a serem discutidas com as próprias pessoas transgênero. O
saber transgênero ou transexual é crucial e a contribuição de Georges Canghuillem neste caso
deve ser sublinhada mais uma vez. Ele diz: “É porque há homens que se sentem doentes que há
uma medicina, e não porque há médicos, que os homens aprendem sobre as suas doenças com
eles”. Isto pode ser alargado ao fato social de que é porque existem transidentidades que os
médicos que as encontram aprendem com elas sobre as transidentidades e este é um princípio
a ser defendido em todos os casos como primordial.
É, portanto, muito importante formular que não deve haver obrigação de entrar num
processo de transição através da psiquiatria, um processo que se torna um processo de
psiquiatrização de seres humanos por outros seres humanos. A necessidade de começar um
percurso de transição através de aconselhamento psiquiátrico deve ser abolida. As pessoas trans
são hoje vítimas de uma psiquiatria baseada em diferenças, e são um paradigma de uma
psiquiatria de diferenças na identidade humana entre seres humanos. Isto ensina-nos sobre
outros problemas humanos e sobre as práticas autoritárias a eles associadas.
Precisamos avançar para o direito comum. Na França, qualquer Pequim-lambda pode
recorrer a um médico, um psiquiatra para um mal-estar psíquico, para resolver um problema
psíquico que é sempre um problema social. É porque há pessoas que se sentem de um tipo que
não corresponde à sua anatomia que existe um saber sobre a transidentidade, que os humanos
aprendem com eles a lógica plural das suas passagens.
Aprendi que após um momento na vida de uma pessoa transgênero, produz-se um tempo
lógico: não faz sentido continuar uma vida social no gênero determinado pelas convenções
sociais, é um tempo de afirmação lógica para a pessoa e começa o tempo de transição social.
Portanto, é isto que posso testemunhar ao emitir um atestado indispensável no sistema atual.
Na minha prática atual, para além deste ponto de atestado testemunhal, a minha função
como psiquiatra-psicanalista é trabalhar com a pessoa que me consulta a partir do chamado que
ele ou ela formula. Algumas pessoas querem ter a certeza que estão determinadas, outras vêm
por causa de dificuldades sociais, e o primeiro grupo social é a família. Neste contexto, a
questão dos jovens transgêneros, especialmente os menores, é um fator determinante sob a
forma de novas descobertas de saberes para os pais, os jovens e para mim próprio.
Jean-Paul Sartre indicou que as crianças educam os seus pais. O que os adultos
consideram ser determinado de uma vez por todas, a criança em cada família o coloca em
questão e dá aos pais a oportunidade de ver o mundo sob uma luz diferente e de experimentar
a relação com o mundo de forma diferente. Os jovens transgêneros se interrogam mais sobre a
sua relação com o mundo social. Podem ser criados grupos de discussão nestas perspectivas.
Do mesmo modo, os caminhos de transição social nos meios profissionais para jovens e menos
jovens podem dar forma a novos saberes sobre as relações sociais e a função do trabalho.
Etimologicamente, a palavra “Diagnóstico” refere-se a uma partilha de saberes. Tal partilha,
que pode ser construída em comum, é a possível função de trabalhar num encontro com um
psiquiatra.
Partindo de uma base diferente, aquela que parte do fato de que não deve haver
obrigação, como recomendado pelo Parlamento Europeu na sua resolução de Abril de 2015, de
submeter a um parecer psiquiátrico, um processo de transição tem muitas consequências
práticas e humanas. Existe uma diferença fundamental entre as duas orientações. Na orientação
que se baseia no fato de a transidentidade não ser uma doença mas uma questão social, o lugar
do psiquiatra e de outros médicos é o de estar numa função de ajuda. No quadro de um princípio
obrigatório, é criado um processo de psiquiatrização, por vezes sem o conhecimento do povo.
Pedir ajuda a um psiquiatra num processo de transição obviamente nada tem a ver com
psiquiatrização forçada, que pode transformar-se numa obrigação para as pessoas transgêneros
fornecerem provas do seu verdadeiro gênero através de um período de “experiência de vida”
no gênero escolhido. Esta experiência de vida torna-se então experimentação, tendo lugar antes
de qualquer reconhecimento médico, ou simplesmente reconhecimento humano da sua
identidade no espelho sonoro que esperam ouvir da profissão médica. Esta obrigação de viver
de acordo com os códigos sociais decretados de “como um homem ou rapaz se deve comportar
socialmente, vestido, etc.; como uma mulher ou menina se deve comportar socialmente, etc”,
ocorre antes de qualquer ingestão hormonal. O fato de o aspirante transgênero dever responder
a esta coerção autoritária não pode ser compatível com a medicina do século XXI, como a
resolução do Parlamento Europeu subentende.
Procurar ajuda de um psiquiatra num quadro que não seja uma obrigação primária não
deveria obviamente ter nada a ver com outra experimentação frequente n psiquiatrização, que
é a prática de testes psicológicos que têm sempre a possibilidade de congelar o futuro de um
indivíduo sob o aspecto científico. Isto também evitaria a utilização de coortes para projetos de
investigação psiquiátrica e, portanto, protocolos suplementares.
Pelo contrário, na perspectiva da libertação, do nascimento, o encontro com um
psiquiatra dá a possibilidade a cada pessoa de contar a sua história, os seus nós e des-nós, os
momentos de aparecimento e desaparecimento de constrangimentos, disso que impulsiona para
a vida apesar dos constrangimentos individuais e sociais, do que também inibe a vida. Trata-se
de encontrar em conjunto uma lógica na vida da identidade de gênero, que é sempre uma
identidade social.

5. Conclusão

Em conclusão, gostaria de salientar que a transidentidade é uma questão dirigida a toda


a medicina e aos seus praticantes, espero tê-lo salientado suficientemente, mas também uma
questão dirigida ao Estado. A transidentidade rompe com um sistema binário de pensamento e
prática e mostra a importância em todas as circunstâncias da prática humana de viver
“recusando qualquer princípio que seja imediatamente assumido como soberano”, como o
indicou o filósofo François Châtelet, que numa palestra intitulada “De l'anarchie” [Da
anarquia], com o subtítulo “Parce qu'on ne sait jamais” [Porque nunca se sabe], coloca o
problema fundamental:

Em resumo, porque não pensar seriamente em questionar este princípio da armadilha - o


patrimônio da teologia - da sacralidade do Estado? O poder do Estado é hoje tanto mais terrível
quanto tem à sua disposição meios científicos de coerção e de incitamento. E o significado
original de anarquia não significa outra coisa senão isto: tentemos conceber a organização de
outra forma e imaginar esta organização como o produto sempre em mutação, sempre previsível,
dos desejos e vontades daqueles que constituem a fonte de todo o poder: indivíduos, todos
diferentes e todos tão igualmente humanos. 1

Tentemos organizar de forma diferente o lugar dos psiquiatras e médicos nesta base que
Georges Canguilhem pressentia: responder a um apelo no quadro do saber partilhado e não às
exigências de normas e protocolos.

Palavras-chave : Psicanálise Social; Transidentidade; Trans; Terceiro gênero; Reflexões


políticas
Le 5 février 2017

1 F. Châtelet, “De Anarchia”, in Porque nunca se sabe : una indagacion critica de los espacios,
tiempos y actitudes del poder, sous la dir. de J - A Gonzalez Sainz et Ignacio de Llorens. Ed.
Laia Barcelona, 1985, p. 19. Traduction de Tomas Gubitsch et Ivan Chaumeille, publiée le 11
décembre 2016 dans le Webmagazine L’Airétiq.
REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE AS PRÁTICAS DE TRANSFERÊNCIA
COM OS CHAMADOS PSICÓTICOS

A invenção freudiana produziu uma revolução na abordagem prática do sofrimento no


psiquismo e na sua teorização. Georges Politzer salientou a força do concreto que Freud traz
em relação à psicologia clássica, mas sublinha muito rapidamente o risco de aporia em 1928:

Acontece, porém, que esta psicologia concreta, que deriva da psicanálise, deve começar por se
virar contra esta última e servir de princípio para uma crítica interna: devemos, de fato, ter
notado em Freud, especialmente no momento da elaboração teórica dos fatos, um franco retorno
à abstração. Este retorno é muito claro e estabelecemos a sua existência, não só pelas nossas
observações sobre as noções que Freud introduz no Traumdeutung, mas sobretudo mostrando
que só as abordagens clássicas permitem dar sentido ao inconsciente. Redescobrimos assim
dentro da própria psicanálise a oposição entre a psicologia concreta e a abstrata [1].

Isto levará a uma crítica mais radical, especialmente durante o estabelecimento de uma
evidente escolástica psicanalítica pelo próprio Freud, depois a uma condenação de 1933,
quando Hitler e os nazis tomaram o poder na Alemanha. Politzer agarra certamente uma
impotência – no mínimo – da psicanálise freudiana para combater, ainda que apenas
teoricamente, a barbárie que se avizinha. Tomemos alguns excertos que sublinham o fosso entre
o ponto de vista psicanalítico e a vida social humana. “Se Freud e os seus seguidores fazem
numerosas alusões à influência da sociedade sobre o indivíduo”, Politzer continua, “(...) a
psicanálise procura explicar a história através da psicologia e não a psicologia através da
história” [2]. Desta orientação idealista da psicanálise, surge uma tendência irracionalista, a
psicologia profunda: “Sabemos, de fato, que a psicanálise foi proclamada ‘psicologia profunda’
principalmente devido às suas ‘revelações’ sobre o ‘inconsciente’” [3].
Esta questão do inconsciente das profundezas faz Politzer escrever:

Aqui, mais uma vez, os psicanalistas encontraram-se com uma corrente ideológica reacionária.
O irracional, o inconsciente são, portanto, a lei da vida da alma. A passagem do ponto de vista
teórico ao normativo foi facilmente realizada: uma vez que, de fato, a vida mental se baseia no
inconsciente dinâmico, porquê lutar contra o inconsciente em vez de mergulhar nele? Assim, a
psicanálise - que inicialmente apareceu como dando explicações profanas aos místicos sagrados
e foi até acusada de ser profana - acabou por apoiar o misticismo em todas as suas formas. Os
múltiplos contatos estabelecidos entre religião e psicanálise, a frequência dos temas
psicanalíticos entre obscurantistas de todos os tipos, incluindo os nazis, provam-no
suficientemente [4].
François Châtelet observou uma contradição semelhante em 1973:

Considerando o destino histórico da psicanálise, podemos medir o destino prodigioso do dano.


Construída sobre uma metafísica em ruínas, sobre a medicina positivista e sobre a estética
tradicional, a doutrina freudiana produziu ao mesmo tempo uma concepção revolucionária das
relações sociais, uma renovação fundamental da relação teoria-prática, uma instituição
repressiva articulada sobre a ordem psiquiátrica e uma técnica de normalização social. Freud,
tal como Galileu, nunca teve de negar as suas invenções. [5]

Estes dois filósofos são orientados – de forma diferente – por Marx. Parece-me essencial
ouvir que é de fato a partir do trabalho de contradições psicanalíticas que os potenciais
transportados pela invenção freudiana poderão viver social, individual e coletivamente. Colocar
Marx no quadro muda a situação de uma forma fundamental e isto será certamente o que pode
ser retido do ensino de Lacan: ter colocado Marx no campo da psicanálise.
É aqui que tem lugar aquilo a que chamamos psicanálise social [6], tomando como base
psicanalítica o social e não o stricto-sensu freudiano ou lacaniano inconsciente. Com o social
como base, tomar Marx como instrumento se torna óbvio e isto muda toda a prática psicanalítica
e a sua teorização. Toda a clínica psicanalítica repousa sobre uma antiga ideologia alemã que
Marx criticou em 1846; é portanto urgente sair dela. Marx é o precursor da psicanálise e tem a
vantagem sobre Lacan de se ter afastado rapidamente da filosofia de Hegel e das suas
categorizações.
Então que dinamismo pode ser proposto para avançar sobre o que está a ser fabricado
nas práticas de transferência com os chamados psicóticos? É uma questão de questionar de
forma diferente do ponto de vista da psicanálise social, de formular de forma diferente: “a
resposta à pergunta está na formulação da pergunta” indicou Marx.
Interrogar o contrário é, por exemplo, captar uma frase de François Châtelet:

Desde 1900, as coisas não têm corrido bem. Os grandes princípios que têm servido para a
ascensão dos estados modernos (capitalistas, burgueses, parlamentares), no preciso momento
em que encontram o seu maior sucesso, são severamente questionados. O Presidente Schreber
está gravemente doente [7].

O chamado psicótico Schreber está no seu sofrimento psíquico correlacionado com a


doença do estado capitalista. Isto não é alheio à análise da Engels em “A origem da família, da
propriedade privada e do Estado” publicada em 1884, um ano após a morte de Marx. Engels dá
ferramentas em relação à transferência social, trabalho sobre a família, a parentalidade. Em
particular, indica que um elemento determinante na história é o ciúme: “o ciúme como elemento
social determinante” [8].
Ele o liga ao rascunho da célula monogâmica. Muito antes de Freud, neste trabalho,
questionava a questão do direito materno, do desejo materno, da relação do patriarcado com o
direito materno. Eis outra forma de ler Schreber ou de ouvir Antonin Artaud. Isto está de acordo
com o que proponho para a psicanálise social, uma nova relação com o inconsciente, o
desconhecimento da relação entre o gozo e o seu sofrimento: “Não há doença mental mas sim
um sofrimento humano no social que nos questiona a partir do não-saber deste último”, para
ser colocado em tensão com a formulação de Marx em 1844 nos seus manuscritos parisienses:
“O sofrimento humano é um gozo que o homem tem de si próprio”. O termo “psicótico” é uma
categorização discriminatória e pejorativa no seu valor social, que não se baseia em nenhuma
entidade. Desde 2010, tenho vindo a propor começar pelo termo “camarada humano” que foi
proposto por Thomas Szasz e pelo seu possível sofrimento psíquico que diz sempre respeito à
questão do social, do gozo social.
Esta dinâmica permite ter em conta a vida real da pessoa e a sua história sem aplicar
previamente uma conceitualização, uma prisão de pensamento, uma abstração do humano,
como proposto pelas teorias lacanianas da chamada psicose. É um estranho destino da primeira
paixão de Lacan pela chamada paranoia e de seu concreto transferencial de se fechar numa
filosofia hegeliana da história, uma filosofia de proprietários, portanto, proprietários da carta e
do significante, para explicar o que acontece na vida dos outros. A transcendência que toca
tanto a filosofia de Freud como a de Lacan produz avatares inevitáveis para o ser humano: a
teoria psicanalítica nas suas correntes dominantes transforma a vida em conceitos. Para a
maioria dos teóricos lacanianos, isto é indescritível, a teocracia do objeto obrigou.
Marx na sua Introdução Geral à Crítica Economia Política fustiga, opõe-se
categoricamente aos economistas clássicos que trabalham com o abstrato. Trata-se assim de
fazer uma revolução na psicanálise, de fustigar a psicanálise bernesa [9], voltando à crítica de
Politzer e partindo do “concreto do pensamento” que Marx propõe na sua Introdução.
As práticas de transferência psicanalítica são diversas. Concordo – numa base diferente
– com o ponto de vista de François Roustang expresso no seu livro “…Elle ne le lâche plus
[...Ela não o deixa mais]” [10], sobre o possível impasse psicanalítico relativo à transferência.
Ele escreve:

(...) Não é certo que a teoria lacaniana não conduza a um beco sem saída semelhante ao que
Freud experimentou (...): o jogo da liberdade de expressão não consegue desfazer a força da
transferência que já era a da hipnose, ou seja, aquela que nasce da relação entre o ideal do eu e
a subjugação ou desubjetivação [11].

A questão da transferência e da relação com o saber insabido continua por formular de


forma diferente. Roustang escreve-o da seguinte forma:

(...) é suficientemente visível que a teorização lacaniana da transferência, que supostamente nos
salvaria das andanças de identificação idealizadora – ao princípio da hipnose – lhe dá, pelo
contrário, todos os desenvolvimentos possíveis, o que tem a vantagem de fazer aparecer essas
andanças em toda a sua crueza e mesmo crueldade. Portanto, estamos perante o mesmo
problema: a transferência não é apenas o local onde emerge o sadomasoquismo mais arcaico, é
a ocasião da sua reprodução; existe uma relação íntima de estrutura entre eles. A teoria lacaniana
pode muito bem restaurar a linguagem a um lugar de escolha na psicanálise, mas pode muito
bem nos livrar da indigência conceitual que é tão habitual neste campo, pode muito bem nos
conduzir ao esplendor do barroco; se desfizermos um pouco as construções sofisticadas e se
deixarmos de nos deslumbrar com as suas farpas, deparamo-nos com questões radicais não
resolvidas que serão muito difíceis de resolver. É pelo menos preferível percebê-los na sua
nudez, em vez de os esquecer, multiplicando os desvios; construindo desvios que nos trazem de
volta à dificuldade inicial sem a ter modificado, muito mais, que, tendo-nos feito esquecer, lhe
dão uma força renovada pela ignorância [12].

Lacan não leva em conta a contratransferência e a teoria lacaniana permanece impotente


face à chamada psicose, exceto para a considerar como deficiente. Winnicott lança mais luz
sobre este assunto. O seu trabalho em 1947 “O ódio na contratransferência” insiste na
possibilidade de apostar na capacidade humana de odiar na transferência sem destruir. Isto é
fundamental mesmo no que diz respeito à falha da civilização.
A questão da transferência e da relação com o saber insabido continua por formular de
forma diferente na psicanálise e é em torno do conceito de transferência social[13] que toma
como base a Wertübertragung de Marx que proponho avançar trabalhando sucessivamente nos
escritos de Antonin Artaud, Sarah Kane e Schreber.

Palavras-chave : Psicanálise Social; Psicologia; Psicótico; Análise; Transferência social;


Revolução; Social; Freud; Lacan.

15 de Janeiro de 2018

[1] POLITZER G, Critique des fondements de la psychologie , PUF, Quadrige, 2003, p. 240

[2] POLITZER G, Ecrits 2 les Fondements de la Psychologie, Editions Sociales, Paris, 1973,
p.297

[3] idem
[4] Idem, pp. 297-298

[5] François Châtelet, Histoire de la philosophie, tome VIII, Le Seuil, Paris, 1973 p. 338

[6] http://www.apps-psychanalyse-sociale.com/notes-dorientation-concernant-lapps

[7] CHATELET F, Histoire de la philosophie VIII, opus cité, p. 14

[8] ENGELS F, L’origine de la famille, de la propriété privée et de l’état , Editions Sociales,


1983, p. 101-104

[9] Pour une définition précise voir http://www.lairetiq.fr/Nuit-Debout-Un-acte-de-portee-


politique-45

[10] ROUSTANG F, « …Elle ne le lâche plus » Petite Bibliothèque Payot, Paris, 2009

[11] idem, p. 203

[12] idem, p. 210

[13] http://cocowikipedia.org/index.php?title=Transfert_social
“UM HOMEM SE SENTINDO MULHER” – EXTEMPORÂNEO DE UM TEXTO

“Um homem se sentindo mulher” faz parte da obra Psychopathia Sexualis de R. Von
Krafft Ebing. É uma das 447 observações que marcam o curso deste livro na edição francesa
de 1923. É certamente a observação mais espantosa; um homem, um médico de origem
húngara, partilha de uma auto-observação precisa, o estranho e enigmático fenômeno que o
atormenta desde a infância, nomeadamente, a sensação de ser do outro sexo. Descreve
rigorosamente este sentimento que o invade, o que lhe parece servir no início, depois contra o
qual luta, antes de finalmente concordar com ele. Esta narrativa é uma longa viagem através do
fluxo da feminilidade que se afirma no seu corpo e ganha a sua alma, ao preço de uma discórdia
com o corpo anatômico.
É nesta narrativa que escolhemos trabalhar na formação da APPS (Ateliers Pratiques de
Psychanalyse Sociale [Oficinas Práticas de Psicanálise Social]) “Conexões, desconexões,
transformações de valores na prática transferencial”. Referindo-se a uma narrativa feita em
1886 pode parecer paradoxal para uma formação sobre as ligações de valores transferenciais no
século XX; contudo, tomamos esta objeção virtual como um jogo no sentido em que Winnicott
a evocou em 1975 no seu livro “Jogo e realidade” quando recomendou que se prestasse atenção
à valorização dos paradoxos. Quais são os eixos pedagógicos que desenvolvemos neste
contexto? Em primeiro lugar, para indicar que com a orientação da transferência social não
falamos no nosso trabalho de “observação”. Não se trata de observar as pessoas, mas de partir
da narrativa que estas pessoas produzem a partir da sua história social. Trata-se de ter em
consideração uma narrativa que relaciona um drama humano, a fim de compreender com a
pessoa uma significação que questiona a sua relação social.
Portanto, aqui temos um texto escrito em 1886 e seria fácil para os nossos detratores
dizerem “partimos de um texto e não de um testemunho vivo e, além disso, este texto é datado
do ponto de vista de uma evolução da sociedade!”. Este argumento é verdadeiro e falso ao
mesmo tempo, e portanto paradoxal. A sua parte de verdade é o senso comum, assim como a
sua interpretação contrária. O senso comum ou a aparência natural não é a nossa bússola. A
nossa bússola é a ferramenta a qual chamamos de transferência social. Para trabalhar este texto
fazemos um jogo de leitura com várias pessoas a fim de contar as contradições levadas a cabo
pelos leitores que têm uma experiência diferente, um jogo de leitura de coisas sociais.
O que é inovador na nossa leitura é partir da transferência social que também é chamada
transferência de valores Wertübertagung, um conceito tirado de Marx em “O Capital” e que
nos serve para outro propósito: analisar as relações de valores que vivem entre as palavras, as
imagens e as sensações corporais.
E isto tem várias implicações tanto para destacar o que teorizamos como “valor de
gênero” na problemática transidentária atual, como para apreender o saber insabido na
etimologia histórica da linguagem como produto social. Estas múltiplas e singulares trocas,
tanto no trabalho de leituras com várias pessoas como no debate, levam-nos ao conhecido
aforismo chinês: “党群关系好比鱼水关系” “A relação da transferência de valores com o texto
lido como coisa social é como a relação do peixe com a água”. Uma narrativa transferencial de
um médico que escreve para um colega, Richard von Krafft-Ebing, conhecido por uma posição
de saber supostamente respeitosa das diferenças relativas à sexualidade no contexto de sua
época
Esta valorização dos paradoxos pedagógicos exige várias observações. Trata-se de
construir algo diferente do que foi produzido pela psicanálise clássica e a sua base que repousa
no trio freudiano “neurose, psicose e perversão” que foi a referência para os psiquiatras até à
dominação americana do DSM. Trata-se de mostrar que com esta abordagem do século XIX é
possível produzir algo mais do que a referência à psicose, um conceito derivado daquele da
higiene mental. O instrumento da transferência do social real para o psiquismo pode dizer com
o rigor científico necessário, a questão da saúde no psíquico. Consideramos esta abordagem
científica numa relação de teoria com a práxis poética, que também é transmitida a partir da
abordagem de Marx à ciência econômica, um campo fértil ainda inexplorado, mal fecundado.
Marx insistiu neste ponto quando escreveu a Engels em 1885 que os seus escritos eram uma
obra artística.
Neste contexto não é surpreendente ver como a nossa referência a Marx como
instrumento de transferência nada ali como um peixe na água: “nesta noite povoada por
palavras, imagens e sensações, a relação da transferência de valores com o texto lido como uma
coisa social é como a relação do peixe com a água”.
A base do real de Marx, Wirklichkeit, é a transferência de valores para a vida social e o
seu insabido, transferência prática do fazer. O corolário é que o inconsciente que não pode ser
uma entidade é o não-sabido do fazer. Como extemporâneo do texto podemos usar a tese 3 Ad
Feuerbach, a da auto-suficiência (Selbstveränderung): partindo desta tese, não se trata de opor
o “eu” às coerções da vida social como o bom senso comum psicológico o queria, mas de ir
além deste ponto de vista “egoísta” recordando que os seres humanos são atores das suas vidas,
“agentes, efeitos e produtos das relações sociais”. É neste contexto que temos insistido
extemporâneo nos termos do imperativo social e do escárnio social que são aparentes da
fabricação da infantaria, e não do Supereu.
Este imperativo social no texto autobiográfico é: “das schickt sich für einen Buben
nicht”, “isto não é para um rapazinho”. O uso da palavra supereu tenderia de fato a fazer
funcionar um conceito por si só: “É o supereu, nós reconhecemo-lo, ele está lá! ...”, uma
instância metafísica estrutural herdada do Complexo de Édipo, que explicaria os
comportamentos do eu através da angústia da castração, para não falar do papel do assassinato
do líder da horda social e do mito da interiorização... A metapsicologia freudiana carrega as
sementes da transformação da vida em conceitos que funcionariam por si mesmos
independentemente da vida social real.

Outras extemporaneidades do texto: a ordem, a origem e a culpa

Qual é a ordem de um texto, qual é o significado da palavra ordem, a sintaxe? A


transferência de valores não engolir o discurso pela linguagem. Um breve discurso é também
feito de imagens e gestos corporais. É assim que tomamos a ordem do discurso. Escrevi em
2017 na revista Nepcebook no artigo “Distortions et créations dans la poésie d' Antonin
Artaud” (Distorções e criações na poesia de Antonin Artaud):
“Na história da poesia, Antonin Artaud faz uma ruptura. Há neste campo, como noutros
campos da vida humana, a marca de uma ruptura radical gerada pelo trabalho de Artaud: um
antes e um depois de Antonin Artaud”. Este ato de travessia que ele realiza não se limita ao
registro do simples mecanismo de deslocamento – deslocamento de palavras, imagens,
sensações corporais. De fato, este mecanismo humano, tanto comum como essencial, não altera
por si só uma ordem.
O alcance da consequência do ato poético é muito mais amplo e diz respeito nada menos
que à anarquia, à rejeição de uma ordem pré-estabelecida baseada num princípio arbitrário.
Artaud deixa isto claro em Le théâtre et la peste [O teatro e a peste]: “a poesia é anárquica no
sentido de que questiona todas as relações e formas do objeto ao objeto e as suas significações”
(Le théâtre et la peste).

É aqui que se inscreve a intersecção entre vida social, poesia e anarquia, a questão da distorção
que é a força motriz em qualquer obra criativa. A que se refere a distorção? O significado da
palavra distorção refere-se historicamente à viragem, através do verbo Distordre [distorcer]:
“virar de um lado para o outro”. O início da anarquia numa ordem é para ser compreendido na
suposição nascida de uma ambiguidade que empurra de um lado e do outro, ambígua; depois
vem o tempo de torcer, Distorquere. É este Distorquere que dá força e poder ao famoso truque
sobre o qual se baseiam os mecanismos que podem fazer revolução e criação artística: viragem
e inversão na vida, na relação com os objetos, nas formas que nos acompanham. Distorção diz
respeito ao corpo e à forma: esta palavra foi introduzida em francês com o significado de “torção
de um corpo, de um membro”, depois desenvolvida para designar “uma deformação óptica,
sonora ou visual”. Tocar a tensão que existe nos impulsos do corpo entre o olho, a voz, o sexo,
a distorção é ao mesmo tempo agente, efeito e produto da criação artística e social através da
relação com as formas ópticas, sonoras e visuais. A poesia anárquica de Antonin Artaud liberta
de forma excepcional os “poderes para fazer” de outra base que não a do senso comum e da sua
ordem.

É com este conhecimento cruzado com esta citação que podemos também ler o texto de
“Um homem se sentindo mulher”. As distorções entre corpo e forma estarão no centro das
nossas preocupações. O valor da forma caro a Marx será ali articulado para trabalhar sobre o
que é uma ordem, a sua base nodosa. É a partir daí que iremos trabalhar, pelo contrário, na
prática da verdadeira vida social ligada às ambiguidades. A questão da origem e da culpa é
articulada neste ponto. A origem toma sempre o lugar de uma mistificação em resposta a uma
ameaça, todas as formas de racismo estão lá para o provar. A falha levanta a questão do erro
original. Sempre indiquei no mesmo artigo no Niepcebook a contribuição de Antonin Artaud
sobre este assunto:

A origem toma sempre o lugar de uma mistificação em resposta a uma ameaça, todas as formas
de racismo estão lá para o provar. Artaud decompõe isto e observa que no uso da palavra na
sociedade algo escapa. Não é a falta da qual alguns psicanalistas gostam, mas sim a ruptura entre
os humanos do lado das significações. É aqui que o esquecimento, as repressões e destruições,
as separações que levantam a questão da responsabilidade social: o que é que temos de responder
face a estas distorções nas significações? Artaud vê coisas que os outros não vêem,
nomeadamente distorções em relação à visão, audição e sensações corporais. Deste fato de
distorção decorrem as perturbações, as falhas que vêm em resposta à atribuição da
responsabilidade central na vida social: a da destruição. Esta viragem na atribuição de um erro
é uma questão importante para as civilizações. Artaud traz na sua história esta formulação social
de culpa, a sua psiquiatria é o seu testemunho.

É nestes múltiplos pontos de intersecção que poderemos trabalhar as ligações do século


XXI, por estranho que possa parecer. Voltaremos então a isso!
Palavras-chave: Um homem se sentindo mulher; Hervé Hubert; Psicanálise social.

1/ KRAFFT-EBING R. Psychopathia Sexualis, Payot, Paris, 1958

2/ Mao Ze Dong « la relation du parti avec le peuple c’est comme la relation du poisson avec
l’eau.» (en pinyin : Dǎng qún guān xì hǎo bǐ yú shuǐ guān xì)

3/ Voir marximum.net « Vous avez dit Marximum ? »https://www.marximum.net/our-story


CONEXÕES, DESCONEXÕES, TRANSFORMAÇÕES DE VALORES NA PRÁTICA
TRANSFERENCIAL HOJE

Estamos ligados, pessoas ligadas, ligadas a tudo e a qualquer coisa na web, na tela!
Desconectados? Desconectado da realidade! Transformado? A marca do poder! Aqui está a
nossa vida quotidiana que parece tão distante da teia do tecelão cara à Freud para interpretar os
sonhos ou a relação de troca entre o linho e o casaco descrita por Marx em “O Capital”. Tão
longe e tão perto ao mesmo tempo. Relacionado com Nexus, o nó, o latim “co nectere” une-se.
Amarrar juntos...
Esta é certamente a diferença com a teoria freudiana e o seu associacionismo, que
produz deslocações que não têm outra função que não seja a de conservar: deslocação do has
been [“já foi”]. Os elementos podem dar nó, desatar: o resto já lá está e continuará lá. Por outro
lado, a ação de juntar, de ter em consideração a “convivência” é a preocupação de Marx, que é,
portanto, uma das mais atuais.
Não é portanto por acaso que falamos da transferência de valores, um conceito do Livro
I de “O Capital” para o redirecionar e fabricar uma ferramenta prática para a transferência
social. Os valores materiais funcionam na transferência social da vida e estes são os valores
sonoros e de tropeço das palavras, os valores da captação desejosa ou nojenta de imagens, os
valores do corpo sensível como uma atividade prática. Os homens reais, materiais, vivos ligam-
se, desligam-se, transformam-se numa relação de privação: isso que é tomado. São estas
histórias transferenciais que vamos descobrir juntos.
PSICANÁLISE, ARTE E TRANSIDENTIDADE: ENTREVISTA COM O DR.
HUBERT HERVÉ

Por Christophe Gerbaud


https://christophegerbaud.com

Dr. Hubert, poderia expressar algumas ligações que considera convincentes entre:
transidentidade e a psicanálise hoje, em 2017. Dito de outra forma, de que forma a
psicanálise avançou a reflexão sobre a transidentidade, ou, de que forma a
transidentidade avançou em relação a psicanálise?

Penso que as correntes psicanalíticas dominantes provocaram uma rejeição assassina da


questão da transidentidade. O acaso - ou as suas aparências - trouxeram-me cara a cara com as
questões trazidas pelas pessoas transidentárias há mais de 20 anos. Este foi para mim um
fenômeno enigmático. Como lacaniano na altura, não sabia nada sobre o dogmatismo
desenfreado de Lacan nesta questão. Deixei-me ensinar ouvindo sem preconceitos as primeiras
pessoas que me explicaram muito bem o que lhes estava a acontecer, como o reconhecimento
da sua identidade era absolutamente vital para eles, como foram privados da vida. Por isso,
apoiei a transição desde o início. Esta posição concreta como psiquiatra e psicanalista tirou-me
das abstrações transcendentais, sejam elas freudianas ou lacanianas, e permitiu-me construir
uma psicanálise concreta e crítica. O que a transidentidade traz é assim quebrar uma ordem
psicanalítica construída sobre uma metafísica ultrapassada - quer se chame ordem edípica ou
ordem simbólica - e esta é uma contribuição fundamental para mudar as práticas psicanalíticas,
refutando uma lógica binária. Como psicanalista, penso que posso trazer à questão
transidentária, atos práticos e teóricos que têm em conta a transferência social, o nó e os seus
desatamentos, formas de movimento que ocorrem para as pessoas associadas entre as palavras,
as imagens e as sensações corporais que constituem a identidade na sua relação com a privação
social.
Para você Marx é um pensador que pode lançar luz sobre os nossos laços com a
psiquiatrização da sociedade? O filósofo era, à sua maneira, “anti-psiquiatra”?

Se Marx, tanto quanto sei, não abordou diretamente esta questão, trabalhou em conceitos
que lhe estão essencialmente ligados: o Estado, a alienação, as relações sociais de produção. A
psiquiatria é uma disciplina médica que interfere com dois elementos cruciais: a ordem social
definida do ponto de vista do Estado Hegeliano moderno e o conceito de doença mental que
pode perturbar esta ordem. Marx inverte estes dois pontos. Este último afirmando nos seus
manuscritos de 1844 que a psicologia baseada no homem definida como um conceito universal
abstrato seria um beco sem saída, assim como a psicologia que deixaria fechado o livro das
forças humanas ligadas à história da indústria, do trabalho humano, e das relações sociais. Ele
parte portanto de outra base, social, com esta formulação luminosa relativa ao gozo humano,
que para ele é sempre social: “Entendido no sentido humano, o sofrimento é um gozo que o
homem tem de si próprio”. O sofrimento no psiquismo é, portanto, a expressão de um problema
social no psiquismo. Também indica em “A Ideologia Alemã” como, a fim de concretizarem a
sua personalidade, os proletários devem derrubar o Estado burguês. Por conseguinte, ele pensa
que existe uma relação estreita entre a realização de personalidades e a necessidade de partir de
uma base diferente para transformar o Estado e depois experimentar a sua extinção.

Pensa que um dia a clínica psicanalítica irá ultrapassar a noção de psicose? Poderia a
clínica da transidentidade ser reapropriada pelas pessoas ligadas a um futuro clínico
diferente? Na sua opinião, será isto possível?

Há vários anos que dirijo uma oficina chamada “Práticas de transferência com os
chamados psicóticos”. Sou assim crítico desta clínica que se baseia na mistificação da existência
de uma entidade “psicótica”. O termo psicose foi cunhado por um médico vienense da primeira
parte do século XIX, Ernst von Feuchtersleben, sobre conceitos higiênicos e moralizantes e foi
retomado de forma abstrata pela clínica psiquiátrica alemã do século XIX e pela psicanálise.
Que unidade haveria entre fenômenos autistas, paranoicos, alucinógenos ou esquizofrênicos?
Estas últimas descrições também apontam para outra mistificação, a da doença mental. É
melhor partir antes do termo “camarada humano” que foi proposto por Thomas Szasz e o seu
possível sofrimento psíquico que diz sempre respeito à questão do social, do gozo social.
François Châtelet sublinha-o: é apropriado agarrar através do que é chamado de loucura, outras
formas de inteligências humanas. Também aqui, partir de outra base é indispensável e Marx é
extremamente útil quando deixa a filosofia de Hegel e as suas categorizações. Toda a clínica
psicanalítica é baseada numa antiga ideologia alemã que Marx criticou em 1846; é portanto
urgente sair dela.
Os questionadores trans lutaram através das suas associações contra uma clínica baseada
numa ordem segregativa e a psiquiatria de uma questão social através desta clínica segregativa.
Desde 2010, tenho organizado vários simpósios internacionais sobre transidentidade em estreita
colaboração com pessoas que se preocupam com esta questão. Isto mudou obviamente uma
forma de fazer e produzir. Isto contribuiu muito para o nascimento daquilo a que chamamos
psicanálise social onde já não se fala de uma clínica mas de trabalho psicanalítico com o socius,
a palavra clínica referindo-se a uma ordem antiga bem como a uma posição de domínio. Há
uma estreita ligação na minha construção teórica e prática entre as minhas duas formulações
“Transidentidade não é uma doença” / “Não há doença mental mas sim um problema do social
no psíquico”. Isto abre um campo criativo extraordinário.

Há anos você forma dezenas de clínicos através dos seus seminários, acha que existe um
possível legado do seu conceito de “transferência social”?

Comecei a falar de transferência social há pouco menos de 10 anos e utilizei-a num


artigo publicado em Agosto de 2010 pelo LeMonde.fr “Extinção da nacionalidade e mais-de-
gozar” [Déchéance de nationalité et plus de jouir]. Este conceito foi construído nos seminários
e oficinas que você mencionou e continua a ser construído numa relação com o coletivo. Em
Julho de 2013 concretizou-se com a criação de uma nova associação psicanalítica “Les Ateliers
Pratiques de Psychanalyse Sociale” [As Oficias Práticas de Psicanálise Social]. O termo
“Psicanálise Social” foi produzido neste pote de Oficinas, que tem a característica de carregar
diferenciais em vários domínios: cruzamento de diferentes culturas e línguas, diferentes
práticas, diferentes correntes de pensamento. Esta questão de trabalhar no diferencial é
importante e requer a análise das contradições a ele ligadas. A especificidade da associação é
trabalhar sobre este conceito de transferência social: a transferência é um fato social. Há,
portanto, um apelo a amplas contribuições, tomando como base para esta abordagem
psicanalítica – também no indivíduo – a base social. É dentro deste quadro que a contribuição
de Marx, o primeiro analista do engano social na civilização capitalista, é essencial e
promissora. A transferência social é Wertübertragung, transferência de valores. Este campo
inexplorado enquanto tal é susceptível de provocar múltiplas ligações que pretendemos pôr a
funcionar na APPS. Não se trata de criar mais uma escola, porque este termo escola é
inadequado para o campo psicanalítico e só produz professores. Trata-se, contudo, de ter uma
orientação precisa na nossa associação para produzir um trabalho que se mantenha na sua
prática e teoria e para formar psicanalistas.

A sua clínica é muito singular e revolucionária, em termos de artes e de poesia, quais têm
sido as suas influências?

A influência mais importante neste quadro artístico e poético é, desde a adolescência, a


de Karl Marx! Levo a sério a sua correspondência com Engels em Julho de 1865, quando lhe
confidenciou um segredo: “Quaisquer que sejam os defeitos, a vantagem dos meus escritos é
que formam um todo artístico”, sublinha Lacan no seu Seminário “O momento de concluir” em
1978: “Marx foi um poeta que conseguiu fazer um movimento político”. Tornar a criação
transferível nesta relação entre a poesia e a análise científica é uma novidade revolucionária
que me influenciou. Também fui muito influenciado por Shakespeare, esta relação com a
tragédia que é tão original na sua ligação com a vida: “A vida (...) é uma história contada por
um idiota, cheia de barulho e fúria. E é o que não significa nada”. Isto tem-me alimentado na
minha análise das significações sociais diferenciais. Próximo da civilização capitalista, Pier
Paolo Pasolini na sua poesia e no seu trabalho cinematográfico reforçou a minha análise do
Teorema trágico da vida. Antonin Artaud deu-me uma bússola na análise que deve ser tomada,
em consideração para qualquer camarada humano, da sua formulação relativa à sua psiquiatria:
“Não admito, nunca perdoarei ninguém, de ter sido capaz de ser um bastardo vivo durante toda
a minha existência”.
Na pintura, Rothko fez-me perceber que a arte era uma forma de ação social. Fiquei
impressionado com o fato de, na sua transição de figurativo para abstrato na altura da tragédia
da Segunda Guerra Mundial, ter pensado que a necessária superação da divisão do espaço entre
vertical e horizontal era necessária, e isto está hoje a ser atualizado. Egon Schiele pelo impulso
escópico, Eluard e Neruda por intermédio da voz assumiram valores diferenciais no que Marx
escreveu sobre o objeto tornar-se humano através da socialização da sensação do corpo. O
ouvido torna-se ouvido humano quando o objeto sonoro se torna musical, resumirá Deleuze e
o chamará de o verdadeiro materialismo histórico.
Finalmente, o centenário obriga, terminarei pela influência dos artistas da Revolução de
1917 na Rússia, esta agitação das relações humanas, das relações sociais, estes momentos de
uma criação extraordinária nas relações com o coletivo, esta transferência coletiva para a
criação a partir de outra base, e dois nomes destacaram-se então muito cedo para mim sempre
numa perspectiva diferencial: Maiakovski e Gorki.
VOCÊ DISSE MARXIMUM?

Marx foi um poeta e a sua obra pode ser qualificada como artística, tal é a afirmação
que me guia neste desejo por Marximum. Marx artista! Embora a maioria dos seus escritos se
limitem à sua brilhante e árdua análise de “O Capital”... No entanto, numa carta a Engels escrita
em Julho de 1865, dois anos antes da publicação da sua obra maior, confidenciou: “Agora, no
que diz respeito ao meu trabalho, vou dizer-vos a verdade. Quaisquer que sejam as falhas, a
vantagem dos meus escritos é que eles formam um todo artístico”.
Na sua transferência para o seu trabalho científico, enfatiza a primazia da forma,
aparência e sensação no que conduz à vida. Isto está ligado, através da imagem social, ao corpo
e às palavras. Este parece-me ser o segredo da sua arte poética. É nesta alegre afirmação que
nasceu o projeto Marximum: Marx no marximum [no máximo] da sua forma! A grande obra de
Karl Marx, Das Kapital, é também uma obra literária, sobre a carta, e aí reside todo o poder da
sua crítica já presente em A Sagrada Família.
O estilo é poético e deixará Lacan melancólico: “Marx foi um poeta que conseguiu fazer
um movimento político”, afirma ele no final do seu ensino no Seminário “O Tempo de
Concluir”, em 1978. Na sua etimologia Poesis refere-se em grego antigo à criação, a fábrica, à
arte: a arte de fazer, que se refere sempre a uma prática social concreta. Neste ponto preciso é
o ponto de ruptura com Hegel: a análise de Marx parte de uma base diferente, aquela que deriva
da primazia que ele dá à prática, à prática social, ao contrário do filósofo da transcendência.
É com esta bússola, que permitiu a Karl Heinrich produzir a sua análise crítica: crítica
da religião, incluindo a religião secular, crítica do lucro capitalista, crítica da abstração – sempre
reacionária – crítica da transcendência, que apresentarei, na minha produção textual, a primazia
da prática social. Trata-se de fato de partir da recusa determinada da prática social atual do
capitalismo, a fim de construir uma prática social a partir de outra base.
Como podemos analisar o que está a acontecer socialmente hoje em dia sem ter em conta
a transferência definida por Marx em “O Capital” quando analisa a relação de transferência
entre duas mercadorias, o linho e o casaco, e indica que é na frequência com outra mercadoria,
o casaco, que o linho fala e entrega os seus pensamentos na única língua que fala fluentemente,
a língua das mercadorias, e que esta língua diz a relação com o trabalho humano e a igualdade
no quadro da produção capitalista?
Como podemos falar entre os seres humanos de outra forma que não na língua das
mercadorias, quando vivemos a globalização do capitalismo e o aumento da repressão de todos
os tipos? Como podemos fazer o contrário e pôr em prática uma prática social diferente, em
termos concretos? Isto requer o estabelecimento de uma nova relação entre a prática e a teoria,
estabelecendo novas relações sociais, abordando a questão social a partir de uma base diferente.
Trata-se, portanto, de uma questão civilizacional crucial. O enorme potencial é definido pelos
avanços no conhecimento humano e nas novas tecnologias – a questão da revolução digital – e
bastaria mudar a base das práticas sociais para mudar a vida.
Como pode Marximum contribuir para os avanços nestas áreas? Antes de mais nada,
trabalhando nas formulações das perguntas. A resposta está no texto da pergunta, diz Marx. O
que pode ser feito e como podemos concretamente começar de uma base diferente neste século
XXI que oscila entre esperanças gigantescas e assassinatos em massa mais ou menos
mascarados? A introdução da poesia e da arte na relação com o saber científico é uma nova
forma de pensar que Marx prefigura e que ainda não se tornou Auguri [desejo] para tanto.
A leitura passo a passo de “O Capital” irá – espero – levar-nos a este novo saber. Uma
seção será, portanto, dedicada a este trabalho fundamental que analisa o segredo do gozo da
civilização capitalista. Outra seção terá a sua importância – igualmente importante! – aquilo
que tem em conta Os Outros Escritos de Marx. Estas, que começam com a “Crítica do
Fundamento do Direito de Hegel”, continuam com as teses sobre Feuerbach, “A Ideologia
Alemã” e os “Gründrisse”, são ainda de atualidade ardente. Da revista Books, que, em seu
dossiê de Janeiro-Fevereiro 2017 sobre Marx, questiona a sua profecia do presente até ao
próximo lançamento do filme “Der Junge Karl Marx”, o planeta Marx está a emergir de uma
fase de obscuridade complexa.
Duas outras colunas, uma muito curta, marcada por citações de Marx e outra, um pouco
mais longa, sobre um evento que está a chegar à linha da frente dos acontecimentos atuais. Da
citação, será tentador captar a força que se destaca da própria etimologia da palavra “citação”:
do latim citare, ela põe em movimento, excita, provoca, e através de um empurrão, produz. A
partir do evento atual que marca a vida social, será destacado um texto que exigirá uma resposta.
Para esta primeira edição do Marximum optei por tratar de um fato legislativo: as novas
modalidades de mudança de estatuto civil para pessoas transgênero promulgadas em outubro
de 2016 na Assembleia Nacional. A questão dos transexuais, através das reuniões regulares
com as pessoas que a usam, revolucionou a minha forma de pensar sobre o ser humano. O
ternário que é transmitido desta forma ecoa a filosofia de Marx que fez do corpo uma questão
decisiva: Marx era um artista.
O CAPITAL E SEUS SEGREDOS DE GOZO

Marximum é uma festa. Decidi celebrar o 150º aniversário da publicação de Das


Kapital, publicando esta seção “’O Capital’ e os seus Segredos de Gozo”, que será orientada
pela análise transferencial, a proposta pela Psicanálise Social. Marx é o primeiro analista da
transferência social, que ele chama “Wertübertragung”, “Transferência de valores”, e a leitura
de “O Capital” neste contexto guia os psicanalistas que optaram por subverter uma ordem
sectária e partir de uma base diferente da definida por Freud ou Lacan.
Então leia “O Capital”!
O que há de novo 150 anos mais tarde? A crítica de Marx à economia política não teve
origem no capitalismo do século XIX, na revolução industrial? O que podemos dizer sobre o
assunto na altura da revolução digital? O capital não é uma bíblia: não tem conteúdo doutrinário
– Marx indicou que não se considerava um marxista – e deve ser tomado mais como um início
de análise do que como um fim.
Na minha opinião, a atualidade de “O Capital” reside em alguns pontos essenciais: é
uma análise da transferência de valores no sistema capitalista e esta transferência é apanhada
nas relações sociais de dominação baseadas no lucro. Quando sabemos, a partir de um estudo
feito pela Oxfam International publicado há um ano, que 1% da população mundial tem mais
riqueza do que os restantes 99%, pode-se dizer que a segregação social baseada no lucro é ainda
mais florescente do que no século XIX, ajudada pelo desenvolvimento tecnológico.
O que fazer? Usar a famosa palavra do autor principal da Revolução de 1917. Sem
dúvida que podemos realizar “uma análise concreta da situação concreta” seguindo Volodia, e
para isso podemos partir de uma nova relação com o saber e com o saber-fazer. Aí reside o
segundo ponto atual de “O Capital”: Marx introduz uma nova relação com a ciência. Esta nova
relação acontece ao longo do trabalho de “O Capital”, onde a copulação entre a criação artística
linguageira e a ciência marca uma originalidade na transferência saber na sua própria realização.
Esta nova relação é também uma rejeição do postulado hegeliano que estabelece uma primazia
do teórico.
Este primado da teoria conduz ao estabelecimento de um saber que permitiria julgar
aqueles que não sabem. Esta falha pode facilmente deslizar para a acusação de uma culpa. Pelo
contrário, Marx cria uma nova relação entre teoria e prática a partir da afirmação de um primado
da prática social, fazendo assim uma ruptura epistemológica com Hegel. É estabelecida uma
base diferente que combate “aqueles que acreditam como real o jogo das aparências”[1]. A
ciência não é neutra, exceto para definir a neutralidade da Suíça e dos seus bancos. A ciência é
um ato social.
A última observação que farei nesta primeira parte da minha apresentação é que “O
Capital” é simultaneamente uma teoria da civilização e uma teoria da história.... Longe do
estereótipo habitual que o veste para os próximos Invernos no nosso mundo intelectualmente
devastado. Marx desempenha um papel decisivo na compreensão da inteligibilidade humana e
dos seus mecanismos, as transferências de valores, que são sempre presenças políticas a todos
os níveis, tanto no individual como no coletivo. “O Capital” no seu Livro I, é composto por 8
seções. Althusser tinha proposto saltar na leitura a primeira seção, “A Mercadoria e o seu
Dinheiro”, porque de acordo com o anúncio de Marx, que em si mesmo era considerado muito
difícil, era ir diretamente à seção 2, “A Transformação do Dinheiro em Capital”, que trata da
exploração capitalista.
Colocando a psicanálise social e a transferência social como instrumentos privilegiados
de leitura, passarei muito tempo a comentar a primeira seção que fala de perfurar um segredo,
o segredo do modo de produção capitalista. Além disso, a análise do fetichismo de mercadorias
– a joia deste texto – é bastante excitante para um psicanalista. Uma vez terminada a análise da
seção 1, em desobediência decidida ao Normalista Louis Althusser, passarei à última seção de
“O Capital”, seção 8.
Isto marcará a originalidade deste trabalho, seguindo François Châtelet [2], que dá esta
indicação: A primeira seção é uma verdadeira teoria da civilização, baseada no valor, enquanto
a 8ª é uma teoria da história, que nos permite compreender as coordenadas dos atos que
permitem a existência desta civilização, a civilização da mercadoria. Isto tornará possível
pensar nos significados diferenciais atuais e compreender as operações de poder de um grupo
social. Como assinala Châtelet, “Nada é certo para o capitalismo do século XX: a riqueza
prodigiosa que produz é imediatamente destruída”[3]. Este é o desafio hoje em dia ao ler
ativamente “O Capital”: partir de uma base outra para compreender as condições históricas que
permitirão uma abolição do que só pode funcionar através da destruição humana.

[1] François Chatelet, Profil d’une oeuvre, Le capital, Marx , Hatier, Paris, 1975, p. 11
[2] idem, p. 31
[3] idem, p. 68
O CAPITAL E SEUS SEGREDOS DE GOZO: AS PRELIMINARES

Porquê insistir na questão do gozo neste trabalho sobre a grande obra de Marx, O
Capital? Penso que é essencial tomar hoje esta dimensão quando o modo de gozo na vida social
adquiriu uma grande significação através das novas ferramentas dos meios de comunicação e
da revolução digital. Modo de gozar... Já no segundo parágrafo do Livro Um, esta é uma questão
mencionada. Se Marx define primeiro o início da sua investigação científica, analisando a
mercadoria enquanto esta parece ser a forma elementar de riqueza nas sociedades capitalistas,
ele volta-se imediatamente para a questão das necessidades humanas, Bedürfnis, aponta para o
problema do objeto de gozo, Gegenstand des Genusses.
Com a relação da mercadoria e a satisfação de uma necessidade, ele procura o concreto
da função social da mercadoria, tal como analisará o concreto da função social do dinheiro e do
dinheiro em seguida. Penso que é importante salientar dois pontos a este respeito: o primeiro é
que Marx utiliza a ferramenta da relação “função/valor”, e isto, na minha opinião, invalida a
tese da prevalência de um pensamento antecipado de uma fundação estrutural na sua análise. O
segundo ponto é que Marx está interessado na vida quotidiana, na prática social quotidiana, e
este é o principal ponto de ruptura com a filosofia hegeliana. E nesta prática social temos
relações diárias com as mercadorias e as relações sociais que as produzem.
Deduzo deste trabalho sobre os segredos do gozo do Capital, a fabricação de um novo
conceito de capital para a psicanálise e a vida social: a transferência de valores,
Wertübertragung. De fato, somos apanhados, como seres humanos, numa transferência da vida
quotidiana, a transferência que faz funcionar os bens na sociedade e esta transferência tem todas
as características do que é chamado transferência psicanalítica. Há um ponto chave que está
numa nota de rodapé: “Em alguns aspectos é tanto sobre o homem como sobre a mercadoria”
(1).
As mudanças que são feitas entre seres humanos e mercadorias são por vezes espantosas,
por isso no parágrafo A natureza fetiche da mercadoria e o seu sigilo, escreve ele:

À primeira vista, uma mercadoria parece ser uma coisa vulgar que se compreende a si própria.
Ao analisá-la, podemos ver que é uma coisa extremamente confusa, cheia de sutilezas
metafísicas e caprichos teológicos. Desde que tenha valor de uso, não há nada de misterioso
nele, quer eu o veja do ponto de vista das propriedades pelas quais satisfaz as necessidades
humanas, quer do ponto de vista do trabalho humano que o produz e assim lhe dá as suas
propriedades. (2)
E prossegue, dizendo:

É abrangido pelo significado de que o homem pela sua atividade modifica as formas de materiais
naturais de uma forma que lhe é útil. A forma da madeira, por exemplo, é alterada quando é
transformada numa mesa. A mesa, no entanto, ainda é de madeira, uma coisa sensível comum.
Mas assim que entra em cena como uma mercadoria, é transformada numa coisa suprassensível.
Já não se limita a ficar de pé com os pés no chão, mas fica de pé na cabeça, de frente para todos
os outros bens, e da sua pequena cabeça de madeira sai toda uma série de quimeras que nos
surpreendem ainda mais do que se, sem pedir nada a ninguém, começasse subitamente a dançar.
(3)

Marx fala regularmente sobre forma, e isto diz respeito a palavras, imagens, corpos: os
bens são coisas sociais. Neste texto de Marx para analisar o capitalismo, a análise do movimento
humano é essencial, forma essencial. O texto põe as coisas em movimento, as formas sociais,
que estão à superfície, acima, abaixo, e voltam-se para trás. Nasce assim uma topologia, uma
banda de Moebius, onde estas coisas sensíveis e hipersensíveis circulam numa transferência.
Nesta topologia, o conceito de inversão / reversão, Umkehrung /Verkherung, de uma forte
dinâmica, anima a passagem de uma forma para outra. Tal como no teatro de Shakespeare, a
passagem que está invertida mostra o que estava na superfície da aparência: o assassinato. Este
é um ponto de referência essencial para captar as histórias humanas, na sua relação com o
coletivo ou com o indivíduo.
Terminarei por uma outra ferramenta fornecida por Marx que nos permitirá abordar o
segredo do gozo: a função da linguagem. Vou assim dizer alguns dos males da palavra "capital".
Exatamente 300 anos antes da publicação do Capital, a palavra “capital” “assumiu um
significado especial pelo menos na língua francesa. O Dicionário histórico da língua francesa
anota:
“Desde 1567, um capital substancial de emprego masculino tem sido atestado em
economia e destinado – sem trocadilho – a fazer uma fortuna: ou nasceu diretamente em francês
ou foi emprestado, por meio de banqueiros italianos, da capital italiana “parte principal de um
ativo financeiro, em relação aos juros que produz” (século XIII). O capital corresponde primeiro
a “parte principal de uma dívida (em oposição aos juros) e depois a “de uma renda”; a palavra
expulsar o velho duplo popular “patrimônio” e “biens mobiliers en cheptel” (bens móveis de
gado).
Quais deslizamentos e reviravoltas produziram esta nova significação no social? Isso
que desliza é a significação primeira do capital: “o que se encontra na cabeça, domina”, o diktat
[ditado] do capitalismo. O que é regularmente objeto de inversão topológica é o que significa:
“que pode custar a cabeça, mortal”. Esta é a inversão através da Propaganda que nos Berneses
(4) ocorre graças tanto à Verleugnung, recusa sombria de saber sobre os assassinatos do
capitalismo, como à Verwerfung, rejeição, exclusão do desconhecido do capitalista, o
assassinato dos trabalhadores.

(1) Karl MARX, Le Capital, Livre I, PUF Quadrige, Paris, 1993, p. 60


(2)idem, p. 81
(3)idem,
(4) voir la définition de ce terme proposée par Ivan Chaumeille http://www.lairetiq.fr/Nuit-
Debout-Un-acte-de-portee-politique-45
OS SEGREDOS DA FORMA-VALOR

O conteúdo de “O Capital” e o seu objetivo são claramente afirmados por Marx: ele
propõe uma crítica ao modo de produção capitalista. O subtítulo é eloquente: “Crítica da
Economia Política” e insiste assim no caráter científico da tarefa, que pode ser entendida como
uma crítica da ciência que expressa as relações sociais e econômicas na sociedade capitalista.
Ele critica a economia política clássica e burguesa. François Châtelet indica como o trabalho
de Marx faz a destruição teórica da teoria clássica da economia política, e a mesma destruição
teórica da teoria filosófica clássica.
Marx muda a sua base e para a transferência no saber, a sua forma de mudar de
fundamento da suposição de saber se encontra na frase extraordinária escrita por Châtelet no
seu comentário de “O Capital”:

O capital é uma crítica à economia política. O termo “crítica” não deve ser entendido nem no
sentido kantiano nem no sentido voltairiano. A crítica é menos sobre o texto e os seus
argumentos do que sobre a realidade histórica que o produz como verdade, ou seja, como uma
máscara e um álibi (1).

O desafio da psicanálise social é saber se, a partir desta revolução na mudança de base
concernente a crítica da ciência, Marx pode nos ajudar a fazer uma destruição teórica da teoria
psicanalítica clássica, ou seja, a teoria de uma certa relação dominante entre o indivíduo e o
socius. Rapidamente emerge da leitura que o indivíduo é um produto social em que Marx está
interessado:

Uma palavra para evitar possíveis mal-entendidos. Não pinto a figura do capitalista e do
latifundiário de cor-de-rosa, longe disso. Mas estas pessoas apenas intervêm aqui como
personificações de categorias econômicas, como portadores de relações de classe e de interesses
determinados. Menos do que qualquer outra, a minha perspectiva, que consiste em apreender o
desenvolvimento da formação econômico-social como um processo histórico natural, não pode
tornar um único indivíduo responsável pelas relações e condições de que ele permanece
socialmente o produto, mesmo que subjetivamente alcance para além delas. No campo da
economia política, a investigação científica livre nem sempre se depara com o mesmo inimigo,
como é o caso em todos os outros campos. A natureza particular da matéria de que se ocupa faz
cair contra ela na arena as paixões mais violentas, mesquinhas e odiosas do coração humano, a
fúria desenfreada de interesse privado. (2)

“As fúrias desencadeadas dos interesses privados” é uma fórmula que poderia ser
utilizada para uma psicanálise social que analisa a violência das sociedades capitalistas e dos
indivíduos que delas fazem parte. A relação ao “Você pode saber” é obscurecida pelo fato de
que a desolação social faz suficientemente “(...) mover o véu para se adivinhar atrás dele a
silhueta da cabeça de uma Medusa” (3). A angústia e a ameaça invocam a relação com a verdade
e com a ocultação/engano da transferência social: “Perseu precisava de um capuz de nuvens
para perseguir os monstros. Puxamos este capuz sobre os nossos olhos e ouvidos, para
podermos fingir que os monstros não existiam” (4).
Para produzir a sua análise crítica Marx tem a sua bússola: ele concentra-se na forma de
mercadoria do produto do trabalho ou na forma-valor da mercadoria que é a forma econômica
celular. (5) Este é portanto o eixo analítico e o que deve ser tido em conta na psicanálise: a
forma-valor. Marx indica a relação obscura com o saber sobre este assunto:

A forma-valor, que tem como figura final a forma-moeda, é ao mesmo tempo simples e
desprovida de conteúdo. No entanto, o espírito humano tem se esforçado por revelar o seu
segredo há mais de 2.000 anos, ao mesmo tempo que tem conseguido, pelo menos
aproximadamente, analisar formas muito mais complexas com um conteúdo mais rico. Porque
é que isto acontece? Porque é mais fácil estudar o organismo desenvolvido do que a célula viva.

O segredo da forma-valor e da forma-mercadoria é um ponto crucial para a análise


marxista e a psicanálise social. Reaparece no magnífico capítulo sobre o fetichismo da
mercadoria e seu segredo. Vou terminar citando esta frase deste capítulo muito singular:

Não é portanto porque os produtos do seu trabalho valem apenas como envelopes materiais de
trabalho humano diferenciado que os homens estabelecem valiosas relações mútuas entre as
coisas. O oposto é verdade. É colocando em troca os seus vários produtos como iguais como
valores que eles postulam as suas diferentes obras como iguais entre si como trabalho humano.
Eles não o sabem mas o fazem praticamente. Portanto, o valor não traz escrito na testa o que ele
é. Pelo contrário, o valor transforma qualquer produto do trabalho num hieróglifo social.
Subsequentemente, os homens procuram decifrar o significado do hieróglifo social, penetrar o
segredo do seu próprio produto social, porque a determinação dos objetos de uso como valores
é a sua própria produção social, tal como a linguagem é (6).

Aqui é realçada a cegueira de um fato social e esta implementação da cegueira no social,


e portanto nas relações sociais. Esta cegueira é definida pela frase “Eles não o sabem mas o
fazem praticamente” que é uma orientação decisiva no que diz respeito à definição do
inconsciente e à sua relação com a prática social. Aqui estão amarradas as problemáticas da
igualdade, um ponto crucial nas relações humanas individuais e coletivas onde se inscrevem
“as paixões mais violentas, mesquinhas e odiosas do coração humano, as fúrias desencadeadas
do interesse privado”. Este entrelaçamento do inconsciente, do fazer e da igualdade é de uma
importância que nunca foi afirmada como tal.
1 François CHATELET, Histoire de la philosophie V, p. 334
2 Karl MARX Préface à la première édition allemande, Karl MARX, Le Capital, Livre I, PUF,
Paris, 1993, p. 6
3 idem, p. 4
4 idem, p. 6
5 idem, P. 4
6 idem, p. 85
OUTROS ESCRITOS

O Capital é a obra principal de Marx, a obra de referência no nascimento do que será


chamado Materialismo Histórico. Ela pode, portanto, aparecer como fundamental, desde que
uma obra seja capturada numa topologia que não seja organizada por um centro mas sim por
uma forma de elipse. É nesta perspectiva que os outros escritos assumem valor.
Estes outros escritos começam com as obras poéticas de Marx. Karl tem 18 anos com
textos que já viram o mundo do avesso: “Se estás de cabeça para baixo, não estás de rabo para
cima” ou “Se Deus é um ponto, Ele não é um cilindro”. Esta inversão continuará na ruptura
com a inversão da filosofia-teológica de Hegel. Assim, a nível diretamente político, é com
artigos publicados no Rheinische Zeitung (A Gazeta Renana) já em 1842, que Marx, com 24
anos de idade, desdobra o que se tornará o tema principal da sua obra: a liberdade humana.
Publica assim nesta Gazeta os seus primeiros artigos sobre a liberdade de imprensa.
Foi por ocasião da proibição legal e da cessação da publicação da Gazeta Renana que
Marx escreveu a Arnold Ruge assim que a censura estatal foi anunciada:

É mau assegurar tarefas escravagistas, mesmo que seja em nome da liberdade, e lutar com
alfinetes e não com golpes de marreta. Estou cansado de hipocrisia, estupidez, autoridade brutal.
Estou cansado da nossa docilidade, das nossas banalidades, das nossas reticências, das nossas
brigas sobre as palavras. Não posso fazer nada na Alemanha. Aqui, falsifica-se a si próprio [1].

É esta recusa de uma vida humana que não valeria a pena viver socialmente que o
orientará para a análise do que os modos de produção ligados ao vampirismo do Capital
produzem. As questões das condições de vida concretas, desigualdades obscenas, a questão do
Estado fará o tecido dos seus outros escritos que se centrarão então na crítica da economia
política. É portanto uma crítica às aparências – as aparências da legalidade em primeiro lugar –
que alimenta o seu pensamento em diferentes registos filosóficos, econômicos e políticos.
Ele deixou assim a forma de pensar hegeliana no seu artigo “Sobre a questão judaica”
publicado em Paris na Primavera de 1844 nos Anais franco-alemães. Isto é evidenciado pelas
suas críticas ao esquerdista hegeliano Bauer, que explica: “os verdadeiros judeus através da
religião, em vez de explicar o mistério da religião judaica através dos verdadeiros judeus”. Isto
mostra a dimensão da primazia do concreto na vida política e uma análise que parte de uma
base que não a teológica, quer seja a abstração secular ou a abstração psicanalítica. Ele continua
esta inversão decisiva com a sua “Introdução à Crítica dos Fundamentos do Direito de Hegel”
na mesma edição dos Anais franco-alemães. No seu estilo, a poesia se mistura com o saber
científico. A frase que melhor ilustra isto é bem conhecida: “A religião é o suspiro da criatura
esmagada pelo infortúnio, a alma de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma era
sem espírito. É o ópio do povo”[2]. Marx foi o primeiro clínico da transferência social, tinha
tido o cuidado de assinalar previamente: “A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da
verdadeira miséria, e, por outro, o protesto contra a verdadeira miséria”[3].
Querer que o homem renuncie à religião é equivalente à vontade de renunciar a este
estado que precisa de ilusão: é uma questão de passar do imaginário à vivacidade. Assim ele
diz:

A crítica despojou as flores imaginárias que cobriam a corrente, não para que o homem usasse
a prosaica e desolada corrente, mas para que abanasse a corrente e colhesse a flor viva. A crítica
da religião desiludiu o homem, para que ele pensasse, agisse, formasse a sua realidade como um
homem desiludido, que se tinha tornado razoável, para que ele se movesse à sua volta e,
consequentemente, à volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que se move
ao redor do homem, desde que não se mova em torno de si mesmo [4].

A orientação ainda hoje é válida:

A história, portanto, tem a missão, uma vez que a vida futura da verdade se tenha desaparecido,
de estabelecer a verdade da vida presente. E a primeira tarefa da filosofia, que está ao serviço
da história, consiste, uma vez desmascarada a imagem sagrada que representava a renúncia do
homem a si próprio, em desmascarar essa renúncia nas suas formas profanas. A crítica do céu
transforma-se assim numa crítica da terra, a crítica da religião numa crítica do direito, a crítica
da teologia numa crítica da política [5].

Formidável o movimento da crítica que, em colaboração com Friedrich Engels,


originará a louca “Sagrada família – Crítica da crítica” em 1845, na qual metáforas e
metamorfoses se empurram para descrever o prazer humano concreto nas relações sociais. A
lista é demasiado longa para dizer quão interessantes são estes outros escritos. Concluirei
dizendo que nos “Fragmentos sobre as Máquinas” escritos nos Grundrisse em 1858, Marx
imagina que “o capitalismo desmorona porque não pode subsistir num mundo de saber
partilhado”. Será que isto antecipa a sociedade imaterial e uma possível estratégia para acabar
com o capitalismo no século XXI? Todas as apostas estão abertas. Esta possível antecipação,
que estaria na continuidade da bússola das relações de liberdades com as diferentes formas do
Estado que vou desenvolver, levará o sopro de outros escritos.

[1]Karl Marx, Lettre à Arnold Ruge du 25 janvier 1843, in Correspondance, tome 1, Paris,
Editions Sociales, 1978, p. 280
[2] Karl Marx, Contribution à la critique de la philosophie du droit de Hegel, Editions Allia,
Paris, 1998, p. 8
[3] idem
[4] idem, p. 9
[5] idem, p. 9 et 10
REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO TRANSGÊNERO

O artigo 56 II da Lei de 18 de Novembro de 2016 sobre a modernização da justiça no


século XXI [1] acrescentou ao Código Civil os artigos 61-5 ao 61-8, criando uma nova seção
“Da modificação da menção do sexo ao estatuto civil”. Isto é de considerável importância ao
abrigo da lei anterior para as pessoas com questões transgênero, facilitando o processo de
mudança do seu estatuto civil.
Mesmo que isto esteja muito abaixo das leis argentina (2012), dinamarquesa (2014),
maltesa (2015), irlandesa (2015) ou norueguesa (2016), que fundam a mudança de menção do
sexo sobre a autodeterminação da pessoa, trata-se, no entanto, de uma violação do princípio
supostamente inquebrável da indisponibilidade do estatuto das pessoas. Este será o tema de
uma reflexão mais aprofundada.
Descobri este princípio da indisponibilidade do estatuto das pessoas há pouco mais de
vinte anos, em 1995, quando comecei a descobrir as questões portadas pelas pessoas
transgêneros que encontrei na minha qualidade de psiquiatra. Confesso que, na altura, não
compreendi o que este princípio de indisponibilidade de estatuto significava simplesmente.
Qual é a condição de uma pessoa? Porque é que não está disponível? Provavelmente não percebi
tudo na altura por causa da abstração metafórica envolvida.
Rapidamente tomei partido pelo alcance dos sons que ouvia enquanto lia e tropeçava
psicanaliticamente em duas palavras: estatuto e indisponibilidade. Toda pesquisa sobre as
palavras começa pela etimologia histórica. De acordo com o Centro Nacional de Recursos
Textuais e Léxicos, o substantivo feminino indisponibilidade foi documentado pela primeira
vez em 1789. Isto não é sem interesse como ponto de referência para situar os momentos
históricos em que por vezes somos apanhados pelo nosso não saber.
A palavra “Disponibilidade” apareceu na língua francesa em 1492, durante o período
histórico de transição que é o Renascimento, e significa o “fato de estar disponível”, mas acima
de tudo indica, nos séculos XIX e XX, dois pontos que sublinharei: “posição de um funcionário
público colocado fora de serviço com a possibilidade de ser chamado” e “estatuto de uma
pessoa que não está forçada por nada”. Esta disponibilidade se refere assim à liberdade, um
estatuto de pessoa que nada obriga e ao paradoxo do funcionário público e, portanto, da função
do Estado.
Disponível é emprestado do latim disponibilis, “do qual se pode dispor” e assim aparece
no final do século XV com este significado. Na segunda metade do século XIX, a questão da
liberdade foi alargada para significar “quem é livre de se dedicar a qualquer atividade” e “cujo
o espírito é livre de qualquer compromisso”. Este trabalho epistemológico – vamos seguir a
lógica das palavras – confirmou a minha impressão inicial: trata-se de fato de uma relação entre
a liberdade humana e a privação, aqui a coerção imposta pelo Estado.
É em nome deste princípio abstrato imposto pelo Estado que as pessoas transgênero têm
sido regularmente recusadas para uma mudança de estatuto civil na França. Quando em 1995
conheci a primeira pessoa a abordar a questão trans, o que ela me ensinou em primeiro lugar e
acima de tudo foi a importância vital de se poder ser nomeado e de se ser gramaticalmente
formado de acordo com a identidade real de cada um e não aquela que o senso comum atribui
de acordo com a anatomia, a importância vital que une para um ser humano, as palavras, as
imagens, o corpo e, portanto, a forma de ser nomeado.
A questão dos transexuais na França traz consigo uma luta humana que diz intimamente
respeito à relação entre a liberdade humana e o princípio do Estado. O historiador de filosofia
François Châtelet trabalhou neste relatório indicando a importância de “recusar qualquer
princípio colocado desde o início como soberano”. Gilles Deleuze insiste no campo puro da
imanência em que a filosofia de Châtelet está estabelecida [2]. Recorda a simples definição de
toda a transcendência dada pelo historiador: “No jargão dos nossos filósofos, um princípio
colocado tanto como fonte de toda a explicação e como realidade superior, chamamos isso de
transcendência”.
Este princípio transcendente, tal como definido, corresponde bem ao que achei aberrante
no sintagma: “o princípio da indisponibilidade do estatuto das pessoas” que ressoou para mim
como um imperativo transcendente, fonte de toda a explicação e realidade superior. Este
princípio foi invocado pela primeira vez para justificar o veredicto da Corte de Cassação de 16
de Dezembro de 1975 que recusou alterar a menção do sexo no registo civil.
Este princípio nesse veredicto está correlacionado com a política pública:

Considerando que, depois de constatar, sem distorcer o relatório do perito, que Aubin se
submeteu deliberadamente a um tratamento hormonal e depois, fora de França, a uma operação
cirúrgica que resultou na modificação artificial dos atributos do seu sexo, o Tribunal de
Apelação decidiu, com razão, que o princípio da indisponibilidade do estatuto das pessoas, a
cuja observância a ordem pública se refere, proíbe que se tenham em consideração as
transformações corporais assim obtidas [4].

Isto criou uma jurisprudência e é interessante ouvir o que está escrito: “que não era
admissível que um indivíduo pudesse afirmar que tinha mudado de sexo através por artifícios
provocados por ele mesmo, o que violaria a regra da indisponibilidade do estatuto das pessoas”
[5]. A regra da transcendência se refere a uma ordem que pode ser violada. Isto indica o valor
da ordem moral quando se trata de mudar a menção do sexo.
Esta posição reacionária foi condenada pela Corte Europeia dos Direitos Humanos em
1992. Se a jurisprudência se modifica: “o princípio do respeito devido à vida privada justifica
que o estatuto civil de uma pessoa deve doravante indicar o sexo do qual ela tem a aparência”,
o princípio sacrossanto da indisponibilidade do estatuto das pessoas é salvaguardado: “o
princípio da indisponibilidade do estatuto das pessoas não faz obstáculo a tal mudança”. Como
assegurar esta salvaguarda? O chamado à ordem psiquiátrica chega. Isto será importante a notar
no estudo do que hoje se chama despsiquiatriazação.
Assim Gérard Cornu escreve:

Por consolo (ilusório ou não), o substrato clínico e a supervisão médica podem contudo ser
vistos como dados científicos, objetivos e externos ao paciente, que acreditarão precisamente
no caráter não voluntário (não puramente voluntário) da mudança de sexo. O sexo de chegada
é um sexo de convicção, enraizado na psique, não um sexo de escolha, conveniência, capricho
ou empréstimo. O transexualismo não atua, ele “atua”, ele sofre e é realmente por isso que, na
lógica desta visão, o transexualismo escapa ao princípio da indisponibilidade do estatuto das
pessoas. O princípio existe, mas é seguro. Não é ofendido [6].

Assim, há vários fatores na gênese da psiquiatrização de seres humanos por outros seres
humanos, que é a psiquiatrização de pessoas com questões transgênero. A “falha do sexo” foi
criminalizada pela religião católica e depois colocado do lado da insanidade e alguns psiquiatras
assumiram-no. Lacan terá um papel negativo sobre este assunto já em 1958, num artigo baseado
no seu novo conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. Neste artigo com o seu estilo autoritário,
dogmático e tacanho “ao nome do pai”, colocou a questão do lado do que chamou “psicose” e
isto ainda hoje marca os psicanalistas. A partir da condenação da França em 1992, a questão
dos direitos humanos foi coberta por uma psiquiatrização [7], e o saber psiquiátrico veio assim
tapar o furo, para preencher a falta que ameaçava o princípio abstrato e imposto da
indisponibilidade do estatuto das pessoas. O saber psiquiátrico veio substituir uma garantia de
manutenção de uma ordem mantida por um princípio transcendente. O saber psicanalítico, cuja
função preferiria ser testemunhar uma falta, assumiu o papel sublinhado por François Châtelet
em relação à doutrina freudiana, o de: “(...) uma instituição repressiva articulada sobre a ordem
psiquiátrica e uma técnica de normalização social” [8].
O furo começa a ser descoberto, e esta é uma das implicações do que eu chamo de
revolução transgênero, quando o Defensor dos Direitos recomenda ao governo a
implementação de um procedimento declarativo rápido e transparente como “o único
procedimento que respeita plenamente os direitos fundamentais das pessoas trans, tal como
garantidos em particular pelo artigo 8º da Corte Europeia dos Direitos Humanos”. O que é digno
de nota nesta recomendação é que a ruptura entre um princípio e o absoluto que lhe estava
ligado se torna concreta. De fato, é indicado:

No estatuto atual do direito, nada impede que um conservador civil altere o estatuto civil de uma
pessoa, uma vez que o princípio da indisponibilidade da pessoa - ou, mais concretamente, da
imutabilidade - não é um princípio absoluto do qual o legislador não possa derrogar.

Esta recomendação é feita numa decisão-quadro de 24 de Junho de 2016. É portanto


neste contexto que a Lei de 18 de Novembro de 2016 cria uma nova seção “Da modificação da
menção do sexo ao estatuto civil”. O que é muito importante na vida das pessoas trans é o
seguinte: “o fato de não se ter submetido a tratamentos médicos, uma operação cirúrgica ou
uma esterilização não pode ser motivo para negar a demanda”.
Diz-se portanto que o procedimento de alteração do estatuto civil é desmedicalizado e
permite assim dispensar uma opinião psiquiátrica. A nível jurídico, há a criação de um estatuto
de posse de gênero e o fato essencial de que este pode ser estabelecido com base num fato
social. Assim, há um caminho que começa a conduzir ao reconhecimento da transidentidade
através do social. O que resta do princípio absoluto da indisponibilidade da pessoa já não está,
portanto, do lado médico mas do lado judicial do procedimento.
A questão do princípio absoluto merece ser analisada. Hegel, o autor da fenomenologia
do Espírito, o pai do Estado moderno que hoje conhecemos no mundo acidental, liga o saber
absoluto e a política [9]. François Châtelet assinala que Napoleão tinha vislumbrado este Estado
moderno. O fato é que Hegel, ao ver Napoleão passar debaixo das suas janelas, escreve que
acabou de ver o Espírito a cavalo! Isto diz muito sobre o assassino que está escondido na
filosofia da história hegeliana e esta recusa suspeita de ver o assassinato no “saber absoluto”
transcendental, também conhecido como “princípio absoluto”. A Revolução Francesa para
Hegel reconcilia o espírito com o Divino, um programa que assim legitima todos os
assassinatos, sempre deplorados mas enterrados com transcendência: “Era necessário que assim
fosse” em nome do sentido da história, da filosofia da história, do Pai Ideal, do Pai Morto, que
constrói a Direito.
O confinamento prisional relativo à utilização do nome foi de fato posto em prática pela
França no período histórico pós-revolucionário. Basta comparar o decreto do 24 de brumário
do ano II (14 de Novembro de 1793), com o do 6 de frutidor do ano II (23 de Agosto de 1794)
e depois do 13 de nivoso do ano X (3 de Janeiro de 1802).
Para o Ano II da República, 24 de brumário, durante a Convenção de Montanha, o
decreto, relativo ao direito de todos os cidadãos se nomearem como entenderem, de acordo com
as formalidades prescritas por lei, declara:

Qualquer pessoa pode pedir ao escrivão que mude o seu nome próprio. O pedido é entregue ao
escrivão do local de residência ou do local onde a certidão de nascimento foi redigida. No caso
de um menor ou uma pessoa de idade completa sob tutela, o pedido é entregue pelo seu
representante legal. Pode também ser feito um pedido para a adoção, eliminação ou modificação
da ordem dos nomes próprios.

Para o ano II da República, o 6 de frutidor, alguns meses mais tarde durante a Convenção
Termidoriana, esta liberdade é abolida: “Nenhum cidadão pode ter um apelido ou um nome
próprio para além dos que estão expressos na sua certidão de nascimento: aqueles que os
deixaram serão obrigados a aceitá-los de volta”.
Para o ano X, dois anos após o golpe de Estado que levou Napoleão Bonaparte ao poder,
o decreto é o seguinte, tentando qualificar o anterior e introduzindo o poder judicial:

Os princípios em que se baseia o estado da humanidade opõem-se a qualquer retificação dos


registros que não seja o resultado de um julgamento provocado pelas partes interessadas em
solicitar ou contradizer a retificação; que estes princípios foram sempre respeitados como a
garantia mais firme da ordem social; que foram solenemente proclamados pelo decreto de 1667,
que revogou futuros inquéritos de exame; que acabam de ser consagrados no projeto da terceira
lei do Código Civil; que não podiam ser derrogados sem causar agitação nas famílias e
prejudicar os direitos adquiridos.

É de notar que a referência a uma possível desordem é a ordem social e não a ordem
pública, que se refere muito mais diretamente ao Estado, como no veredicto da Corte de
Cassação de 16 de Dezembro de 1975 já citado. O que me parece interessante é que uma
revolução tão forte como a Revolução Francesa derrubou no Brumário do ano II, uma ordem
de poder, de dominações e afetou a nomeação e o direito de nomeação. Destruiu a antiga ordem
proclamada em Saint-Germain-en-Laye em 1667 pelo Rei Louis XIV, que foi inscrita no
Código Louis.
Como podemos não ouvir o retorno da ordem feudal no Direito sobre esta questão da
nomeação alguns meses depois de uma legislação que a aboliu? Como não ouvir que os poderes
transcendentais do período pós-revolucionário tomaram o lugar do Deus Medieval e que eles
“[...] exercem com ferocidade crescente as suas tarefas de organização e de extermínio”[10].
Estas transcendências operam os princípios do saber absoluto, aqueles que dão origem ao
princípio da indisponibilidade do estatuto das pessoas.
É aqui que um retorno a Marx nos pode ajudar. Desde o início de seu trabalho filosófico,
ele partiu de uma base diferente da de Hegel. Ele tem a intuição da ilusão de Hegel que
transforma a vida em conceitos: “No sistema de Hegel, são as ideias, pensamentos, conceitos
que produziram, determinaram, dominaram a vida real dos homens, o seu mundo material, as
suas relações reais”[11], ou que o Estado é um mundo de pernas para o ar [12]. Marx parte da
prática social, da análise desta prática e do que para ela é transferido sem o conhecimento das
pessoas nas relações de dominação. A questão transgênero produz uma revolução em diferentes
registros, quebrando as ordens binárias e assim a ordem hegeliana construída sobre o saber
absoluto que produz o Estado erudito [13], o dos especialistas apaixonados que pensam ter um
saber sobre os outros humanos em nome da transformação da vida destes últimos em conceitos
que são somente as suas ideias.
Toda prática humana produz uma teorização e uma dialética é então estabelecida entre
a prática e a teoria. O conceito adquire assim um significado numa prática social que se refere
à vida social. Esta vida humana existe com valores concretos que a fazem funcionar
socialmente, e acontece regularmente que um valor deixa de funcionar e o conceito ligado a
este valor morre. Um conceito é feito para morrer, diz Gaston Bachelard.
Uma série de conceitos que mantêm uma ordem de dominação estão em via de extinção
graças à revolução transgênero e este é um ponto essencial: as pessoas que trazem as questões
trans carregam indagações paradigmáticas sobre o ser humano e são múltiplas. Escolhi aqui
uma delas, que é sobre o estatuto civil, a nomeação, e os poderes de dominação. Esta é uma
pergunta crucial que se refere à questão da propriedade no primeiro grupo social, a família, bem
como no Estado. Com os direitos relativos à nomeação, filiação, e disposição do próprio corpo,
abrem-se interrogações sobre a função social da propriedade nas civilizações. Isto diz respeito
tanto aos valores sociais do sangue, da raça, da herança e da força autoritária que a eles pode
estar ligada. Questões atuais então!

[1] Loi n° 2016-1547 du 18 novembre 2016

[2] Gilles Deleuze, Périclès et Verdi, Les Editions de Minuit, 1988, Paris, p. 7

[3] idem, p 7-8

[4] Cass. 1re civ, 16 décembre 1975, pourvoi n°73-10.615, Bull. civ. 1975, n°374, p. 312

[5] Cass. Ass. plén 11 décembre 1992, pourvoi n°91-11.900, Bull. civ. 1992, n°13, p. 27

[6] Gérard Cornu, Droit civil : introduction au droit, Paris, Montchrestien, 2007, p. 262
[7] Cela transparait clairement dans l’article de Cornu

[8] François Châtelet, Histoire de la philosophie, tome VIII, Hachette, 1973, p. 338.

[9] voir François Châtelet, Le savoir absolu et la politique, in L’apathie libérale avancée et
autres textes critiques, choisis et présentés par Ivan Chaumeille, Le Seuil, Paris, 2015, p. 230-
234

[10] François Châtelet, Les années de démolition, Hallier, Paris, 1976, p. 263

[11] Karl Marx, L’Idéologie allemande, Editions sociales, Paris, 1966, p. 15

[12] Karl Marx, Contribution à la critique de la philosophie du droit de Hegel - Introduction,


écrit fin 1843 - janvier 1844, paru dans les Annales franco-allemandes, Paris, 1844.

[13] Voir François Châtelet, « L’Etat…Le monstre le plus froid… » in L’apathie libérale
avancée, opus cité, p. 218
DIREITOS DE RESPOSTA: REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO
TRANSGÊNERO

“O homem aproximou-se da mulher ao meu lado para lhe dizer que achava o passeio
corajoso, que não sabia se teria tido a coragem de o fazer.... Naquele momento, eu sabia
exatamente o que ela pensava. Não se tratava de coragem, mas de sobrevivência”. Não há
coragem, não há mérito em ser transexual. Há apenas uma vontade de viver plenamente isso
que você é.
Se esta micro população (0,01 %) da qual encontramos vestígios desde a Suméria e ao
longo da história (algumas foram as vontades religiosas de a destruir) fez correr tanta tinta, e
foi objeto de tantas pesquisas, talvez não seja pela sua vontade de viver plenamente o que ela
é, mas pelo que ela representa e induz num sistema social dualista.
A transidentidade induz uma entidade que já não é mais o oposto da outra, mas uma
mistura das duas. É este terceiro elemento, este “impensável grão de areia” que vem questionar
uma “ordem” que, qualquer que seja a disciplina escolhida, se baseia num “equilíbrio binário”,
uma vez que a ordem das chamadas sociedades modernas também se baseia num “equilíbrio
binário”. A transidentidade é como o que a corrente anarquista era na política, uma evidência.
A integração desta população, a integração real, aquela que fará com que o simpatizante
deixe de ver coragem no óbvio, aquela que talvez leve ao reconhecimento no futuro do
genocídio que esta população sofreu em nome de um deus ou de um equilíbrio social ao longo
dos séculos, esta integração estará subjacente ao desaparecimento de um sistema binário, sobre
o qual repousa, entre outras coisas, não só o capitalismo, mas todas as políticas hierarquizando
as relações humanas.

Axel Léotard.
“EM PÉ A NOITE INTEIRA!” UM ATO DE EXPRESSÃO POLÍTICA NA
TRANSFERÊNCIA SOCIAL – REFLEXÕES DE PSICANÁLISE SOCIAL (PARTE 1)

Um novo ato político, primeiros indicadores.

Nuit Debout!3 [Em pé a noite inteira!] Um dos acontecimentos políticos mais


importantes na França no início do século XXI? Eu respondo: sim! Sem reservas. O seu alcance
tem o potencial de significar e prenunciar um tempo de transformação social radical, qualquer
que seja o resultado momentâneo ou sequencial do próprio movimento. Persisto, sabendo que
quando escrevi estas primeiras linhas, em 1 de Julho, o diário Le Figaro publicava um título:
“Nuit Debout!'est couché” [“Em pé a noite inteira!” adormeceu] [1].

A questão do começo e do ato

Em pé a noite inteira! Já voltou para a cama? Se a ocupação noturna da Place de la


République [Praça da República] cessou, e com ela as comissões-debates e outras atividades
políticas, parece-me importante colocar este evento em primeiro lugar do lado do ato e referir-
se sobre este ponto preciso que Jacques Lacan indica no seu seminário “O ato psicanalítico” de
10 de Janeiro de 1968 [2]: “Um ato está ligado à determinação do começo, e muito
especialmente onde há necessidade de o fazer um, porque, precisamente, não há nenhum”.
Lacan insiste na questão do começo: “Que haja, para o dizer sem rodeios, um ato, que seja
criativo, e que este seja o início”.
Ele indica precisamente que este é o horizonte de todo o funcionamento do ato e não faz
oposição entre a fórmula cristã joanina “No começo era o verbo” e a fórmula de Goethe “No
começo era a ação”. Ele insiste na proposta que apresenta neste ponto do seu percurso teórico:
“[...] não há ponto de ação que não se apresente com um ponto significativo antes de mais nada,

3
Nuit Debout! foi um movimento social ocorrido na França, composto maciçamente por jovens franceses, que
teve início no dia 31 de março de 2016 como forma de protestos às reformas trabalhistas, ao projeto de lei El
Khomri.
que é isto que caracteriza o ato, o seu ponto significativo, e que a sua eficiência de ato nada tem
a fazer com a eficiência de um fazer”.

A questão do ato revolucionário que suscita um novo desejo

Evocando a travessia ligada ao ato, Lacan evoca o Rubicão, a noite de 4 de Agosto, o


Jogo de Palmas, os Dias de Outubro... Sobre este último grande fato histórico para a história da
humanidade, ele afirma ainda:

Será o ato o momento em que Lênin dá tal ordem, ou o momento em que os significantes foram
desencadeados sobre o mundo, que dão a tal e tão preciso sucesso em estratégia o seu já traçado
sentido de começo? Algo onde a consequência de uma certa estratégia poderá tomar lugar, e
tomar aí o seu valor de signo. Afinal, a questão vale bem a pena de ser colocada aqui, num
determinado ponto de partida, porque há na forma com a qual vou proceder no terreno do ato,
também um certo atravessamento de evocar esta dimensão do ato revolucionário e fixá-lo a este
diferente de toda eficiência de guerra e que se chama suscitar um novo desejo.

Sem subscrever a ideia de que a eficiência de um ato nada tem a ver com a eficácia de
um ato, penso que é interessante evocar nas atuais circunstâncias, a dimensão de um ato
revolucionário na sua perspectiva de despertar um novo desejo. Despertar um novo desejo
caracteriza o evento “Em pé a noite inteira!”. Quem negará que, desde o seu ponto de partida,
esta feliz surpresa de fazer um furo na apatia liberal avançada [3] despertou um novo desejo.

A questão do primado da prática social

Se “Em pé a noite inteira!” for um ato político na nossa história, será necessário
questionar a prática social ligada a ele. De fato, esta história, qualquer que seja o seu regime de
gozo econômico, é sempre orientada pela prática da vida social. A prática da vida tem primazia.
No caso de “Em pé a noite inteira!” a prática social é sobretudo uma prática que diz respeito ao
discurso, ao discurso sobre questões sociais e políticas, e isto é de grande importância se
seguirmos Marx, que indica que a resposta está na formulação da questão.
No entanto, para além da prática do discurso, dos discursos, houve a afirmação de uma
recusa numa prática social: a de ir se deitar. Se o jornalista de Le Figaro brinca com as palavras
“debout/couché” [em pé/de pé], o objetivo é de fato marcar uma relação de dominação, e no
modo de produção capitalista a noite tem antes a função de reparar forças, a fim de as submeter
aos diferentes mecanismos de exploração. “Em pé a noite inteira!” desafia um certo Estado,
mesmo na etimologia da palavra Estado que significa “pôr-se de pé”. Ter em conta “Em pé a
noite inteira!” está em oposição com ter em conta o modo de produção capitalista de pé.

A questão de uma recusa, a recusa da “Falsa Esfera”

Outro fato importante, parece-me, é que este apelo a um novo desejo que tem por base
uma recusa. O que desenvolvo nesta primeira parte sob o termo “Recusa da Falsa Esfera”. É
neste quadro da vida social, no que é socialmente transferido, que desejo iniciar um debate e
tentar identificar certas questões. Desenvolverei a ferramenta psicanalítica da transferência
social na segunda parte, a fim de utilizar as perspectivas do evento “Em pé a noite inteira!” na
terceira parte. “Em pé a noite inteira!” pode assim ser qualificado como um ato, porque há um
antes e um depois, e este valor de ato pode ter efeitos e consequências em diferentes registos.
Os autores do ato quiseram significá-lo como tal, utilizando um novo calendário para se
orientarem no tempo, a partir desta data de 31 de Março de 2016. Isto faz lembrar o novo
calendário posto em prática após a Revolução Francesa. Mas aqui não se trata de substituir um
calendário, ocupando os mesmos espaços de tempo e nomeando-os de forma diferente. O
espaço-tempo que marca o mês foi quebrado e o 31 de Março tentar tomar outro lugar em
relação ao tempo e isto tem valor de signo quando sabemos que o tempo no nosso sistema de
vida econômica foi convertido em valor monetário durante demasiado tempo.
Vivemos na era das bolhas financeiras que nos ditam a “Falsa Esfera". Falsa esfera tem
a ordem de um sistema, falsa esfera para a ameaça social permanente, falsa esfera para o
terrorismo, falsa esfera para o estado de urgência, falsa esfera para 49.3, falsa esfera para a
chamada pulsão de morte.... Utilizo este significado “Falsa Esfera” como um conceito muito
preciso. Defini-o no âmbito de um Seminário-Oficina: “O trajeto do conceito de valor no ensino
de Lacan” [4].
Para retomar os elementos essenciais desta reflexão, que vieram da minha relação com
a prática transferencial com o socius, indicarei primeiramente que esta “Falsa Esfera” é uma
condição clínica frequente na vida quotidiana do século XXI. Assim, enoda pelo primeiro
significante “Falso” um imperativo social “é necessário” à questão da verdade
(falso/verdadeiro). E isto produz uma ordem que pode ser a do (T)erro(r)4. De fato, esta verdade
é o lugar de uma ambiguidade: Nietzsche define a verdade como valor, e Lacan como a irmã
mais nova do gozo.
Vivemos num mundo onde a questão do gozo humano tem precedência nas relações
sociais e questiona a circulação dos valores produzidos pelo modo de produção capitalista.
Lacan tinha previsto isto já em 1967 no seu Seminário “A Lógica do fantasma” onde, afastando-
se de qualquer romantismo ligado à palavra fantasia, introduziu o valor do gozo como criação
conceitual, numa posição homóloga ao valor de troca tal como é definida por Marx em “O
Capital”. Isto é fundamental para compreender o que está a acontecer no mundo de hoje. Este
gozo é de fato o do proprietário, da propriedade real ou fantasmática.
Esta ambiguidade da verdade, pesada com significações de valores pessoais ou coletivos
ligados ao modo de produção capitalista, tem efeitos impulsivos contraditórios, empurrados
muito reais para um lado, empurrados de modo muito real para um lado, empurrados de modo
muito real para o lado contrário quer para os indivíduos quer para os grupos. Numa situação de
crise ameaçadora, o impulso ganha para a veneração religiosa da verdade como entidade e como
absoluto. Outro nome para este impulso é o impulso para a segurança. E assim vem os fascismos
pessoais, de grupo, de massa.
O falso refere-se à falha e à culpa, o pecado, isto sobre o que Lacan insiste na fabricação
do seu conceito de Sinthoma em vez do de sintoma: este sinthoma começa com o pecado, o
pecado na língua inglesa. E esta dimensão da culpa vem para apertar o nó, o nó que faz o terrível
e cruel de certos prazeres humanos. Este nó, que nada tem a ver com a mistificação religiosa
do Real, do Simbólico e do Imaginário, é o nó das palavras com a imagem e os corpos. O
sinthoma social, portanto, e não lacaniano stricto-sensu, apanhado numa transferência social,
refere-se à questão da falha da civilização e ao tratamento crucial da culpa na dinâmica desta
transferência social. E num nó adicional a uma certa loucura científica do humano para com o
humano, vêm os nazistas e as suas barbaridades.

4
Trocadilho com a palavra em francês erreur, que pode significar, dentre as suas possíveis traduções, “erro”,
“engano”, “falha”, “equívoco”, “descuido”. No francês, a letra T combinada com a palavra erreur produz a palavra
terreur que pode significar terror.
Este Falso assim definido se enoda à Esfera: “Falsa Esfera”

A forma esférica, contrariamente ao que pensa o filósofo Peter Sloterdijk, não é o que
permite o homem produzir a si próprio. O pensamento filosófico de Platão a Aristóteles tornou
certamente a esfera na forma mais pura e perfeita. Lacan critica esta posição filosófica comum.
No seu Seminário sobre Transferência, ele fala de uma forma da esfera cuja adesão se deve à
rejeição da castração e, portanto, à sedução da imagem de totalidade e harmonia ou
reciprocidade. Ele desviar-se-á da esfera e falará da a-esfera para se abrir a outra topologia. No
entanto, é laço ao Seminário sobre o “L’insu que sait de l´une-bévue s’aile à mourre [O
malsabido de um fora se joga no amor]” de 1976-77 que será decisivo na implementação desta
nova topologia da superfície e do toro. Isto também me permitirá construir o conceito de Falsa-
Esfera, nomeadamente a partir do trocadilho produzido por Lacan entre “esfera” e “se fazer”
sobre uma ideia.
Voltando ao ato político criado “Em pé a noite inteira!” parece-me ser um sinal forte
que desperta um novo desejo na transferência social. É forte a afirmação de uma recusa que
emana de um coletivo: a de fazer com um sistema, de se habituar a um sistema. “Em pé a noite
inteira!” faz um buraco neste imperativo da propaganda em que vivemos todos os dias: Habitue-
se ao sistema! Esta recusa implica a invenção, a fabricação de uma “nova forma de fazer com”,
de fazer com a vida social, a prática social, a fábrica de novas relações sociais de produção.
“Em pé a noite inteira!” pode ser este teste de uma nova prática de mutualização numa
grande recusa de continuar com um sistema dito capitalista que se dirige para a sua punção,
para usar uma expressão de Lacan. Este último também indica por vezes que a psicanálise pode
fazer um furo neste sistema.
Seria portanto uma questão, se levarmos a sério esta declaração de Lacan, de a inscrever
numa prática social de fazer um furo, um hiato. A orientação de “Em pé a noite inteira!” vai
nesta direção e a articulação com a mobilização contra a lei do Trabalho reforça este ponto
apesar do surgimento do impasse político. Tudo isto é feito de uma forma plural, com
contradições e oscilações. É assim que toda a vida humana é feita, que nunca é individual mas
sempre coletiva e societal.
O primeiro ponto de referência do ponto de vista da psicanálise social é portanto a recusa
da Falsa Esfera ao sistema, a recusa da Falsa Esfera ao sistema. A Falsa Esfera é um ator e
agente do sistema, um produto do sistema igualmente. A Falsa Esfera vem de longe no tempo
e é tenaz, individual e coletivamente. Lacan no Seminário dá uma indicação clara – sempre no
Seminário “O malsabido de um fora se joga no amor”: “O sistema do mundo”, diz ele, até agora
tem sido sempre esferoidal. Talvez poderíamos mudar!” [5]
“Em pé a noite inteira!” pode anunciar potenciais verdadeiramente revolucionários. Este
evento pode ajudar, se a vontade política que acompanha este movimento o orientar desta
forma, a avançar em direção ao que François Châtelet diz sobre o que a leitura de “O Capital”
traz: “[...] para quebrar os círculos viciosos aos quais o presente se enreda, em que se entrega e
em que, também, se mascara” [6].
Trata-se de fato de quebrar uma ordem social e política de funcionamento, sob pena de
um furo. Há um ponto crucial a nível político que é bastante revelador da Falsa Esfera,
nomeadamente o conceito binário pós-feudal de “Direita-Esquerda” – o aparecimento do
impasse ligado ao triunfo da social-democracia na França desde 1983, triunfo do modo de
produção capitalista e das relações sociais a ele ligadas, faz um furo neste sistema esferoidal
“Esquerda-Direita”, a Falsa Esfera “Esquerda” faz realmente um furo e o seu valor significante,
o seu ponto significante, para usar a palavra de Lacan, já não funciona.
Este sistema binário é pós-feudal, e neste quadro permanece dependente da filosofia
transcendental e representativo da teologia republicana. Nascido num momento histórico
particular nas condições do desenvolvimento do capitalismo, este binário assim definido reforça
o modo de produção capitalista: que a direção de um partido comunista na França milita pelo
princípio do poder de compra ou está indignada com o destino reservado à Grécia ao defender
a ideia de que a Grécia é co-proprietária da Europa.
Também é significativo que o jornalista do Le Figaro, que se apressa na manchete “’Em
pé a noite inteira!’ adormeceu”, deixe entender que é provável que este movimento entre na
hierarquia política, na ordem política do parlamentarismo monárquico republicano, votando no
Sr. Mélenchon ou num candidato ecológico. Falsa Esfera ao sistema... A maioria dos cidadãos,
incluindo da “Esquerda”, pensam certamente a mesma coisa sobre a falsa necessidade deste
sistema binário. Mas uma brecha está aberta: “A longo prazo, ninguém pode prever o que irá
dar”, diz o jornalista sobre o movimento.
É necessário sublinhar a coragem e a perspicácia de análise de Alain Badiou para
defender o significado de “Comunismo” [7]. Neste contexto onde a Falsa Esfera fascina perante
os nossos olhos. Ele também introduz a questão crucial do Estado:

O Estado e a Revolução é o título de um dos textos mais famosos de Lênin. E se trata de fato do
Estado e do acontecimento. Contudo, Lênin, seguindo Marx sobre este ponto, tem muito cuidado
em dizer que o Estado que será discutido após a Revolução terá de ser o Estado do declínio do
Estado, o Estado como organizador da transição para o não-Estado [8].
A questão colocada por Nuit Debout! é diretamente a da questão do Estado. Como
indiquei no início desta primeira parte, Nuit Debout! faz um possível erro linguístico em relação
ao Estado em termos de etimologia, mas sobretudo, em virtude da sua existência social,
questiona o princípio concreto da produção capitalista e, portanto, das relações sociais. A forma
do Estado é posta à prova, a forma de organização coletiva é posta à prova. Esta é uma questão
crucial e decisiva numa altura em que o que François Châtelet formulava como hipótese está
em vias de acontecer:

o Estado fascista é o Estado liberal reduzido à sua essência: uma associação de proprietários
que, direta ou indiretamente, já não se dá ao trabalho de se esconder, ou já não pode esconder
as suas práticas fundamentalmente autoritárias devido às circunstâncias [9].
“EM PÉ A NOITE INTEIRA!” UM ATO DE EXPRESSÃO POLÍTICA NA
TRANSFERÊNCIA SOCIAL – REFLEXÕES DE PSICANÁLISE SOCIAL (PARTE 2)

A ferramenta psicanalítica da transferência social

O que pode um psicanalista dizer sobre fenômenos sociais e políticos? A única forma
séria de proceder, parece-me, é partir de uma prática e poder dizer sobre ela, com os perigos de
dizer o que é sociável, isso que faz socius [1]. Discordo totalmente de Slavoj Zizek sobre este
ponto: o primado da prática social expresso por Marx e Engels em A Ideologia Alemã é
absolutamente essencial para definir os desafios políticos e sociais de um ponto de vista
psicanalítico. É assim que Marx rompe com Hegel, um ponto fundamental para prever um
questionamento do Estado no século XX, o que nem Lacan nem Zizek fazem.
Para um psicanalista, a prática consiste numa prática de transferência e é, portanto, desta
experiência de transferência que se pode dizer que se trata de uma prática de transferência.
Considero com Georges Politzer e François Châtelet que a psicanálise é uma prática social.
Neste quadro, estabeleci, a partir da minha prática militante marxista e da minha prática
psicanalítica, um novo conceito teórico, a transferência social, que nos permite partir de uma
base diferente da psicanálise clássica, nomeadamente freudiana ou lacaniana. Esta outra base,
nomeei-a juntamente com outras de Psicanálise Social. Uma revolução para abolir e ter
realmente sucesso só pode começar a partir de base outra.
Vou tentar resumir o conceito de transferência social para poder usá-lo como uma
ferramenta no que penso ser necessário para analisar o fenômeno social e político Nuit Debout!
[Em pé a noite inteira!] e tentar partir de uma base que não seja a base capitalista para ajudar a
construir no coletivo não uma alternativa ao capitalismo, mas um projeto a-capitalista, que não
precisa de capitalismo. Este projeto não tem de estar do lado da alternativa ou do anti, tem de
partir de uma base outra, a que chamei “policomunismo”, a-capitalista e diferenciada [2].
O que é a transferência social? A transferência, Übertragung em alemão, é o termo que
Freud escolheu para definir o que se passa na relação entre um psicanalista e o seu ‘paciente’,
entre um psicanalista e um analisante para usar os termos introduzidos por Lacan. Atualmente,
quando a palavra transferência é utilizada em francês, refere-se antes à transferência de
jogadores de futebol ou à transferência de fundos financeiros. A questão do meio que permite
obter um gozo dos bens de consumo – o dinheiro – está em jogo. É isto que produz valor de
gozo [3], material no campo social, e produz esta forma de fazer as coisas na civilização
capitalista: comprar, vender, consumir, lucrar, esquecendo muito simplesmente a morte
concreta dos seres humanos que esta civilização impõe pelo próprio fato do seu funcionamento.
A transferência social diz diretamente respeito a esta questão do valor do gozo no
funcionamento social entre os indivíduos, as relações sociais. É necessário definir os seus
contornos teóricos. Optei por alargar o conceito de transferência ao campo social, tomando
como referência principal o livro de Freud de 1921, “Psicologia das massas e análise do eu”
[4]. Neste trabalho, Freud descreve a relação dos membros de um grupo uns com os outros,
bem como com uma pessoa em particular, o líder. Com base neste estudo de Freud, afirmo que
as características desta relação entram em vigor homologamente para a relação psicanalítica de
transferência individual. Neste texto onde se afirma que não há diferença entre a psicologia
individual e a psicologia social, Freud, retomando a famosa obra de Gustave Le Bon,
Psychologie des foules [Psicologia das massas] (1895), fala de angústia social e de pulsão
social. Optei, portanto, por inventar o conceito de transferência social a partir desta referência
freudiana fundamental, ao mesmo tempo que fiz a extensão capital a Marx através da
contribuição de Lacan para introduzir o autor de “O Capital” no campo concreto da psicanálise,
o da prática da transferência na sociedade.
Isto tem o efeito de tentar capturar certos movimentos de massas no campo político e
social que podem parecer identificados como irracionais enquanto uma lógica de transferência
coletiva está em ação. Na dinâmica coletiva das sociedades e civilizações há momentos em que
a ameaça, a angústia estão muito presentes coletivamente; há também, nesta perspectiva social
de massas, momentos de impasse, bloqueio, colapso, crises que provocam reações de balanço,
de reviravolta, para não mencionar conflitos, uma fonte de terrores e até mesmo de guerras. A
ferramenta da transferência social destina-se a ajudar a compreender as lógicas que ocorrem em
parte sem o conhecimento dos protagonistas, sendo os movimentos significativos nas relações
sociais ao mesmo tempo agentes, efeitos e produtos dos elementos transferenciais.
Retomarei de forma breve os elementos essenciais do conceito [5]. Um primeiro ponto
a notar é que a transferência psicanalítica diz respeito ao movimento: é o deslocamento. A
segunda é que este deslocamento diz respeito aos efeitos: a pessoa em psicanálise desloca sobre
o psicanalista sentimentos autênticos, as três paixões essenciais identificadas por Lacan a partir
de Aristóteles: o amor, o ódio, a ignorância. Nesta perspectiva, a transferência está também a
transbordar: o efeito transborda de forma pulsional e conduz a um deslocamento abrupto.
A transferência psicanalítica, e esta é a sua especificidade na prática daquilo a que ainda
se chama a cura, assenta sobretudo no fato de dizer tudo o que vem à mente, e é aí que palavras,
imagens, e sensações corporais se socializam [6] e se atam entre si. A ação e o ato do
psicanalista intervêm dentro deste quadro preciso e deste dispositivo particular. O psicanalista
produz um saber inconsciente pelo fato social do dizer no divã, associando livremente. Esta
produção circula no efeito, e o valor de gozo que dele resulta, vetoriza o processo. Isto realça o
nó inconsciente que organiza o movimento social de uma pessoa, o nó entre palavra-imagem-
sensação de corpo. Esta experiência sem precedentes que caracteriza o encontro psicanalítico
permite uma nova relação com o saber e uma nova forma de a pessoa lidar com a questão do
desejo e do gozar naquilo que a sociabiliza com os outros.
O ponto mais importante que concerne a história humana, seja individual ou coletiva,
porém, é o fato revolucionário de que esta experiência de transferência é simplesmente aquilo
a que chamamos realidade. O outro ponto indispensável para realizar “uma análise concreta de
situações concretas” a nível social e político é pensar que a transferência no coletivo é idêntica
à transferência psicanalítica. A diferença é a ausência muito óbvia do dispositivo da chamada
cura, ou seja, a ausência do enunciado numa posição reclinada e íntima para que haja o dizer
sobre isso que vem à mente, a possível ausência de um ato psicanalítico.
De qualquer modo, a experiência de transferência, ou seja, a realidade, tem a mesma
lógica que a transferência social. O conceito de ato psicanalítico pode assim alimentar a ação e
o ato político no coletivo. Lacan evoca o ato de Lênin no seu seminário sobre o ato psicanalítico
e o objetivo de traçar aqui os contornos do conceito de transferência social é compreender o
significado político de “Em pé a noite inteira!” no contexto nacional e internacional. Neste
contexto, será feita uma tentativa de pôr em funcionamento diferentes esquemas, o conceito de
transferência social implicando assim uma lógica de lugares, uma topologia, bem como uma
dinâmica, um movimento.

A questão das potências do amor e da imagem face às desigualdades sociais

Freud trabalha a partir do texto de Le Bon sobre psicologia das massas, um movimento
do grupo, da massa para o líder, por um lado, um movimento entre os membros do grupo, da
massa, por outro. Qualifiquei estes dois movimentos numa perspectiva geométrica, como o eixo
vertical de transferência social e o eixo horizontal da transferência social.
Esquema 1 – Geometria da transferência

Este esquema é importante e deve ser confrontado com a Sexta Tese de Marx sobre
Feuerbach: “... a essência do homem não é uma abstração inerente ao indivíduo isolado. Na sua
realidade, é a totalidade das relações sociais” [7]. Com efeito, nestas relações sociais, estas
transferências sociais, Freud analisa a suposta relação entre a massa e o Líder (Führer) e
estabelece duas apostas: a do amor, o deslocamento do amor da massa para o Líder (Führer)
no eixo vertical, e a da igualdade no eixo horizontal. O amor que está presente na transferência
social é assim coordenado em ambos os eixos. “Cada indivíduo está libidinalmente ligado, por
um lado ao líder e, por outro, aos outros indivíduos da multidão”, observa Freud [8].
No eixo vertical, há um líder supremo que ama todos os indivíduos na multidão com
igual amor, e Freud faz a ligação com o fundamento concreto da civilização europeia, o
cristianismo:

Uma corrente democrática percorre a igreja, precisamente porque antes de Cristo todos são
iguais, todos têm uma parte igual no seu amor [9]. Todos querem ser amados igualmente pelo
Führer [10], um sinal transferencial de igualdade. No eixo horizontal reina "uma compulsão
para igualar outros [11].
O amor em relação ao eixo vertical tem um efeito decisivo sobre o eixo horizontal: é
necessário compreender como o amor que vem e vai do vertical tem um efeito sobre a coesão
da massa e o afeto que existe entre os membros do grupo (da massa) [12]. O amor e a suposição
do amor, “amar, querer ser amado”, são estímulos transferenciais fundamentais tanto no
indivíduo como no coletivo.
Freud observa: “Ainda hoje, os indivíduos na massa precisam da ilusão de serem amados
igual e justamente pelo líder, mas o líder não precisa de amar mais ninguém” [13]. Com a frase
crucial: “Na cegueira do amor torna-se um criminoso sem remorsos” [14]. Freud coloca a
função do amor em relação ao desejo de saber sobre a questão essencial para cada civilização
humana, a questão do assassinato. O amor cega, o aforismo é bem conhecido e a utilização da
ferramenta da transferência e a sua relação com o inconsciente, através do mecanismo de
recalque, permite-nos ir mais longe: é uma questão do saber que não se sabe, do inconsciente,
do gozo incessante, e de solicitar então Marx e Lacan, por meio de Freud.
A questão da abertura ou de encerramento em termos de vontade de saber sobre isso que
organiza a transferência social, as relações sociais, está muito relacionada com o amor e a sua
suposição, e isto está diretamente relacionado com a questão humana fundamental do
assassinato. É em torno do amor e da imagem que um lado inconsciente do gozo pode ser
analisado em relação ao problema do assassinato individual ou coletivo. Assim, é de notar que
Freud coloca “O Cristo” numa posição de liderança no eixo vertical, promovendo esta igualdade
no amor através do sacrifício de sangue e carne. Retomarei este tema na relação entre
transcendência e o apocalipse nas civilizações monoteístas.
Também notável na ligação do fenômeno da transferência e do fechamento do saber
humano o fato de que Le Bon insisti sobre o peso da imagem e do olhar, referindo-se à hipnose
para explicar a captura das massas por um líder. A encenação política de massas, auxiliada ou
não pela televisão ou pelo vídeo, utiliza este mecanismo e deve ser recordado a este respeito
que Hitler foi o primeiro a estabelecer a política e a encenação dirigida de uma forma científica
e que isto inspirou a política estadunidense de Hollywood: o Schau precedeu o Show Político.
Isto torna possível manipular para não querer saber nada sobre o conteúdo político e o horror
em jogo.
Os fatores de imagem e de amor que se combinam nos dois eixos têm uma importância
óbvia nas transferências sociais e políticas e são uma marca de poder, de moldar o
funcionamento dos valores, e durante os colapsos individuais ou coletivos, a conjunção da
imagem e do amor vem forjar a etapa subsequente que traz a este colapso: o retorno de um
possível poder. Estes fatores ligados ao nó do amor e da imagem trazem em jogo o binário de
poder/impotência e ameaça/colapso.
Estes fatores de imagem e de amor têm uma função social e política óbvia quanto ao
tratamento da segregação, às desigualdades. O esquema da transferência social marca com seus
dois eixos a dinâmica da segregação. Para Marx como para Freud ou Lacan, a questão do
conflito e da separação é uma questão com uma base permanente.

A origem e a diferença: a mistificação transcendental e o fetichismo

A questão do saber, da “forma de saber” é, portanto, obviamente, a questão crucial na


análise da prática de transferência, em particular do modo de produção da forma de saber na
relação transferencial. A transferência é simultaneamente um condutor de saber e um obstáculo
ao saber, tal como referido precedentemente.
Usei um texto anterior de Freud “Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905)
para indicar que o saber para a criança passa, por meio da questão do jogo social mas também
da ameaça social e do poder, através de uma primeira pergunta, a de origem: “De onde vêm as
crianças?”, esta pergunta tem prioridade sobre a segunda pergunta “Porque existem garotas e
garotos”, a questão da diferença sexual, ou seja, a questão das diferenças.

Esquema 2 – Da origem e da diferença


Com referência ao texto de Freud e com base na minha prática, coloquei a questão da
origem, supostamente primária e fundamental, numa orientação transferencial no eixo vertical
do esquema de transferência social. O lugar do líder se vetorializa em direção à origem ou
causalidade. Esta fixação pela origem tende a ligar-se com a questão do para além, a da
transcendência, onde as religiões, Deus, os misticismos, ou aquilo a que chamarei mistificação
transcendental, são colocados. O exemplo típico de como este eixo funciona a nível político é
Hitler, que jogou os mitos religiosos e místicos das origens com a origem biológica e falsamente
científica da raça, para instaurar a atração de um poder fetichista bárbaro. O eixo vertical do
líder é o eixo do poder, da força na transferência e, portanto, também o da ameaça, um ponto
fundamental da lógica transferencial.
O eixo horizontal é o eixo das lógicas diferenciais, das significações diferenciais e
portanto das rivalidades onde se desempenha no grupo o binarismo amor-ódio. Estas diferenças
expressas no eixo horizontal podem também ser da ordem de pertencer a uma raça, a um grupo
étnico. Há uma circulação transferencial entre o líder e os membros da massa.
Hitler foi capaz de fazer circular o valor “raça” tanto como vetor de poder para o Um
no seu laço ao mito de origem e à sua versão transcendental, como também como vetor de
rivalidade, de superioridade, de divisões que são fontes de apartheids assassinos. A questão da
origem e das diferenças presta-se ao movimento transferencial do gozo obscurantista. A
problemática da transferência das origens e das diferenças que mancham as falhas da
civilização, ou seja, a questão dos tratamentos das falhas nos grupos humanos, diz diretamente
respeito à prática psicanalítica e a sua teorização. A transcendência é de fato omnipresente
desde a ideia de interioridade ou a ideia de individualidade humana em Freud à ideologia do
desejo ou ao conceito hegeliano do Grande Outro em Lacan, O Outro, outro nome para o Grande
Manitou...
François Chatelet, que conseguiu identificar a contribuição revolucionária de Freud,
marca também o limite que ainda hoje se justifica: “[...] a doutrina freudiana produziu ao
mesmo tempo uma concepção revolucionária das relações sociais, uma renovação fundamental
da relação teoria-prática, uma instituição repressiva articulada sobre a ordem psiquiátrica e uma
técnica de normalização social” [15]. No que diz respeito à origem, a transcendência é a ordem
do dia para Freud com “o inconsciente das profundezas” criticado por Georges Politzer, mas
também com Lacan através dos conceitos de objeto causa do desejo, a causalidade psíquica, o
RSI da Santíssima Trindade ou o Outro, portanto.
A tarefa de levantar os gozos obscurantistas com o conceito de transferência social é
assim determinante na transformação concreta das vidas sociais dos analisantes. Lacan
observou com razão que a segregação e a questão da ordem da seita eram locais de construção
a serem postos a trabalhar por psicanalistas e que isto dizia respeito à própria psicanálise, à sua
prática.
Partindo, na análise dos fenômenos humanos, sejam eles quais forem, da questão da
segregação social me parece ser uma orientação a reter a fim de definir outra base de trabalho.
Assim, no campo da chamada saúde mental, entre muitos exemplos possíveis, é hoje evidente
que o mito segregador e reacionário da entidade psicose é defendido com unhas e dentes pelos
psicanalistas e que a transexualidade, muitas vezes ligada a ela pelos mesmos, é objeto de uma
psiquiatrização, a psiquiatria das diferenças humanas!
O trabalho sobre a segregação social passa pela perspectiva revolucionária de uma
transferência psicanalítica definida como prática social na orientação que Marx lhe dá em “A
Ideologia Alemã”. Aqui está outra base possível de trabalho para transformar a prática em
psicanálise ou no campo que diz respeito à mente e chegar a formular questões que dizem
respeito ao sofrimento no psiquismo a fim de colocar que não existe doença mental, quer seja
no campo do DSM, criado por psicanalistas americanos para satisfazer companhias de seguros,
ou do NPP (Neurose, Psicose, Perversão) que tranca humanos na prisão psicopatológica.
Afirmando que “não há doença mental, mas sim uma problemática social no psiquismo”, define
um caminho autenticamente revolucionário na transformação das relações sociais.
O desafio de Nuit Debout! é abrir um novo caminho, começar de uma nova base para
transformar as relações sociais de produção. O conceito de transferência social faz furo nas
relações de dominação que são atualmente produzidas e caracterizam o modo de produção
capitalista. Dizer “não há doença mental, mas uma problemática social no psiquismo” faz furo
e perturba as atuais relações dominantes, psiquiatra/“doente mental” mas também
psiquiatra/paciente e também psicanalista/“psicótico”, sem esquecer a relação
psicanalista/analisante, uma questão levantada por Louis Althusser.
Dos dois primeiros esquemas de transferência na análise da segregação social emerge a
existência de um vetor que faz funcionar o Um, o líder, Führer ou Duce [líder em italiano]; a
significação é a mesma. Transporta-se até um ponto por meio do fascínio. Assim, há uma
transferência que empurra para o eixo vertical que caracteriza uma determinada forma de poder.
No eixo vertical, no lugar do líder, diferentes instituições podem ser substituídas, e Freud
mencionou a Igreja ou o Exército em particular. A isto se pode acrescentar, o Pai, o Estado, o
Partido, o Capital, a Bolsa de Valores, diferentes formas possíveis e enganosas do Um.
É necessário questionar o que aparece neste esquema como uma transferência “natural”
e que valida todos os poderes autoritários. Trata-se de fazer furo nestes dois esquemas. É com
base no conceito de “furo” delineado por Lacan na sua relação com o valor de troca definido
por Marx que irei desenvolver os dois outros esquemas de transferência social que poderiam
ajudar a uma revolução transferencial.

[1] Socius : compagnon, associé, allié.

[2] Cf. Dimitra Athanasopoulou, « Η πολη που αλλαζει λιγο τερο απ’ ολες », αλλαξε δια
παντος » (« La ville qui change moins que toutes les autres a changé pour toujours »),
entretien avec Hervé Hubert, Hotdoc, n° 89, 26 novembre 2015.

[3] J’ai développé ce concept de valeur de jouissance dans un séminaire : « Le trajet du


concept de valeur chez Lacan » (Université Paris 7, année 2015-16), et vais poursuivre, dans
le cadre du séminaire 2016-17 de l’APPS, sur le thème de « la question de la valeur »
(http://www.apps-psychanalyse-sociale.com/).

[4] Sigmund Freud, « Psychologie des foules et analyse du moi », in Essais de


psychanalyse, Payot, 1988.

[5] On pourra à propos du transfert social se reporter à l’article de Cocowikipedia ; à


l’article de Wilfrid Magnier, « Plus-value, plus-de-jouir… », paru dans L’Humanité le
20 juin 2014 ; et au film de Didier Mauro, Psychanalyse et Révolution, une journée chez le
docteur Hervé Hubert, Éditions de l’Harmathan : DVD 1 — « Lier médecine et
révolution » (1h28) et DVD 2 — « Du transfert social » (2h28).

[6] Je reprends ce néologisme à Jacques Lacan dans son ouverture à la Section clinique de
Vincennes en janvier 1977.

[7] Les thèses sur Feuerbach sont accessibles en ligne sur marxists.org.

[8] Sigmund Freud, op. cit., p. 156.

[9] Ibid., p. 154.

[10] Ce texte de Freud écrit en 1921 traduit le mot « Meneur » par Führer. La signification
sociale et historique du mot allemand a été bouleversée à partir de 1933.

[11] Ibid., p. 143.

[12] Ibid., p. 152.

[13] Ibid., p. 191.

[14] Ibid., p. 178.

[15] François Châtelet, Histoire de la philosophie, tome VIII, Hachette, 1973, coll.
« Littérature », p. 338.
“EM PÉ A NOITE INTEIRA!” UM ATO DE EXPRESSÃO POLÍTICA NA
TRANSFERÊNCIA SOCIAL – REFLEXÕES DE PSICANÁLISE SOCIAL (PARTE 3)

O conceito de transferência social, ou seja, aquilo que é transferido como valores de


funcionamento psíquico no social, está intimamente relacionado com as relações sociais de
produção. Por meio da questão do valor, isso não é sem laço com a crítica da economia política,
voltarei a esta questão. Este conceito me permitiu destacar os dois esquemas fundamentais
relativos às civilizações e os seus hiatos. Foram delineados anteriormente.

A construção de uma transferência em conjunto, o gozo do proprietário e a Garantia

Estes dois esquemas fundamentais me parecem contribuir para a elucidação histórica do


funcionamento humano. O primeiro esquema (a geometria da transferência) destacou a força,
o poder da transferência de grupos humanos para o Um no eixo vertical. Esse poder é colocado
em tensão, por meio do amor (ou ódio), com a questão fundamental no que diz respeito à
segregação social: a da igualdade no eixo horizontal. Pode ser descrito como o padrão básico
de segregação social que interfere com a economia política. Permite compreender o que
organiza o fato de que, em caso de angústia social, de ameaça vital, o chamado para o Um é um
sinal de poder e um bastião. Isto desencadeia o mecanismo da “Falsa Esfera” [1].
O segundo esquema (a origem e a diferença) tem o interesse de destacar o que pode ser
objeto de manipulações pelo poder capitalista, especialmente estadunidense [2]: a questão das
diferenças e do transcendental. No eixo horizontal está a questão das diferenças entre os seres
humanos no grupo e, portanto, a questão dos direitos à diferença. Isto interfere com o poder do
misticismo e do transcendental no eixo vertical, nomeadamente a questão do poder atribuído a
Deus.
Estes dois padrões ajudam a fornecer uma inteligibilidade dos funcionamentos de massa
mas também do funcionamento da forma-Estado, de seu poder. A questão da forma de
segregação social é uma problemática fundamental, tal como a questão da igualdade e do
direito. Não é sem consequência, por exemplo, que no país dos Estados Unidos da América, a
justiça seja feita de acordo com a fórmula “In God We Trust” [Em Deus Confiamos] ou que o
presidente faça um juramento sobre a Bíblia durante a sua investidura, ao passo que este país é
alardeado pelos meios de comunicação social ocidentais como um ideal de democracia e
liberdade.
Um dos pontos importantes é também que existe uma tendência forte e lógica nas
relações sociais de que somos agentes, efeitos e produtos, para construir uma transferência
agrupada para o Um, base de todo o fascismo, seja ele individual ou coletivo. Esta tendência é
favorecida pelo sistema binário que está socialmente em vigor com a civilização de consumo
capitalista.
Um ponto muitas vezes deixado na sombra na articulação do poder transcendental e das
diferenças é a questão religiosa. Este ponto se tornou um tabu, excluído do debate sob o pretexto
do direito à diferença de crenças, sob o pretexto da liberdade. A questão é complexa, mas vale
a pena recordar as funções das religiões e as elucidações críticas fornecidas sobre este assunto
tanto por Marx como por Freud. Referir-me-ei a uma problemática concreta, histórica, a fim de
destacar o esquema da origem e diferenças.
O que está escondido neste para além que não existe? Sob o transcendentalismo e o
misticismo do Um funciona sempre o gozo do proprietário, o valor de gozo do proprietário.
Jacques Le Goff demonstrou-o de uma forma luminosa na sua análise do nascimento do
conceito de Purgatório na Igreja Católica [3]. A acumulação de dinheiro em capital, antes desta
invenção, era de fato considerada no coletivo cristão como uma culpa moral e mortal.
Para avançar ao gozo do capitalista, foi necessário remover na fábrica as ameaças
religiosas ao gozo humano, as de culpa mortal, o pecado mortal da capitalização do dinheiro.
O problema dificultou a transferência social naquele preciso momento histórico. O inferno do
pecado encontrou a sua solução de gozo através deste uso do transcendental na concretude da
imanência das diferenças. Este exemplo da relação entre o poder do “terrestre”, o gozo imanente
do proprietário e o gozo transcendental cristão funcionou como uma garantia na transição para
a economia capitalista. Isso tocou precisamente na relação entre a questão dos valores do gozo
e a culpa moral do gozar.
Este exemplo também destaca o fato de no eixo vertical orientado para a origem e o
transcendental ser construído, com as suas diferentes formas, um ponto de Garantia para os
indivíduos colocados no eixo horizontal da imanência das diferenças entre os humanos. Esta
questão da transferência para a Garantia é muito importante em momentos de crise. De fato,
esta Garantia se refere a duas funções essenciais da vida social: a verdade e o gozo.
O que garante que aquilo que acreditamos ser verdade? Existe alguma outra prova de
vida possível para além do gozar? Estas duas funções, que estão relacionadas segundo Lacan
[4], têm a consequência de levantar a questão do Direito e da Justiça. A questão do Purgatório
evoca bem o poder do Transcendental e do misticismo: a verdade divina é atribuída a um
representante de Deus na terra que tem o poder de mudar as regras econômicas do gozo
terrestre: ter o direito de gozar de um bem, de uma qualidade, de um capital.
Colocada sobre o eixo vertical, esta questão da Garantia ressoa e funciona com as
questões de igualdade e amor já descritas. Este lugar da Garantia no eixo vertical diz
diretamente respeito à questão do Estado, como mencionei em relação ao Nuit Debout! A
transferência para um Estado-Garantia permanece forte hoje em dia e deve ser questionada. De
acordo com a terminologia proposta por Marx, qual “forma-Estado” precisamos hoje adotar,
inventar?

A realidade, a suposição, o furo

As explicações dadas até agora nos comentários sobre os dois esquemas deixam uma
impressão de uma tendência para a inescapável à fixidez incontornável da transferência em
alinhamento para o Um, ao mesmo tempo que dão ferramentas para o combater, para agarrar
as apostas nas lutas necessariamente múltiplas. Estas explicações são insuficientes, contudo,
para fazer subversão, inversão, revolução, a menos que o modelo único do Exército seja
utilizado para atingir o objetivo. É portanto necessário ser capaz de pôr em prática conceitos
que nos permitam fazer um furo real e concreto na “Falsa Esfera do Capitalismo”. O
instrumento da transferência é o principal instrumento para um psicanalista na sua prática,
transferência de gozo, transferência de valor de gozo.
É necessário fazer um furo na transferência social organizada pelo capitalismo, um furo
nos valores de gozo do capitalismo, a fim de o subverter e o virar do avesso. Esta importante
asserção para produzir um movimento revolucionário diz respeito às relações sociais de
produção, à economia, às mentalidades. Há três componentes essenciais na afirmação que diz
respeito à possibilidade de construir uma base que não a do capitalismo: transferência social /
fazer furo / valor de gozo. Desenvolverei alguns pontos a este respeito. A transferência
psicanalítica como conceito é deslocamento e transbordamento de efeitos (amor-ódio-
ignorância), de palavras, de imagens, de sensações corporais.
Este deslocamento/transbordamento tem lugar no dispositivo psicanalítico do analisante
para o analista e põe em circulação valores pessoais de gozo através de palavras, imagens,
sensações do corpo na sua relação com a privação social. Lacan destacou uma função de “mais
de gozar” neste contexto para a pessoa em análise, inspirada no mais-valor de Marx. Indiquei
na minha análise da questão transidentária como este “mais de gozar” é atado num nó, atado
em torno de um furo [5].
A transferência social, rejeitando as posições clássicas e ortodoxas da psicanálise
aplicadas ao laço social que se limitam à dimensão reacionária do conceito de sintoma, permite
apreender as dinâmicas em jogo nos grupos humanos. Isto é feito graças à ferramenta fornecida
por Marx: a transferência é transferência de valores, é transferência de valores de gozo. É este
ponto que define a homologia entre a transferência psicanalítica e a transferência social. É este
ponto que deve ser trabalhado como uma prioridade e a análise do laço entre o capitalismo e o
nazismo ajudar-nos-á a fazê-lo. Chegarei a este ponto na quarta parte.
Quais instrumentos de reflexão e de prática, nomeadamente o de fazer furo [6], nos dá
a transferência? Começarei aqui, naturalmente, na utilização de conceitos, de um ponto de vista
psicanalítico e não filosófico, ou seja, a questão ligada ao conceito fundamental de significação
para uma pessoa humana é a que liga esta significação à narrativa de um drama [7] numa
transferência.
Um ponto muito importante apresentado por Lacan a partir de 1967 é que “a realidade
é a experiência da transferência”. Pode-se deduzir que a realidade social é a experiência da
transferência social. Aqui está uma proposta autenticamente revolucionária para partir de uma
base outra e construir outras relações sociais, para analisar a realidade de uma situação
individual ou coletiva. Isto é muito importante para o estudo das grandes transferências que têm
tido lugar na história.
A segunda referência importante retirada de Lacan data do mesmo ano. Ele apresenta o
que pode tornar-se uma ferramenta para a psicanálise social, a suposição [8], na sua fórmula:
“A transferência só pode ser concebida a partir do termo do sujeito suposto saber” [9]. Neste
tríptico que liga o sujeito, o saber e a suposição, Lacan insiste em indicar que aquele que tem
primado é o suposto, a suposição. Isto é importante em relação às orientações políticas que
colocam como primazia ou o assunto ou o saber. A suposição torna-se o pivô da transferência,
e portanto da realidade humana. A questão da dúvida, da ambiguidade e da incerteza nas
práticas relativas ao saber sobre a realidade humana fazem assim parte da transferência social
e um exame de suas condições de emergência nas histórias pode ser esclarecido,
particularmente na relação com a ciência, aos discursos científicos. A suposição na experiência
da transferência diz respeito à significação, o que implica a função do ato, que é o que Lacan
assume em relação ao ato de Lênin e à Revolução de Outubro, como mencionado na primeira
parte deste artigo.
Este primado da suposição é outra forma de tomar a questão do ato político em relação
à Garantia, e diz respeito à forma-estado. Na articulação da “forma-saber” à significação da
história individual ou coletiva, a primazia é a suposição, e isto faz um furo no absoluto da
Garantia, bem como na possibilidade de um saber absoluto.
O que funciona na transferência psicanalítica é a suposição de um x, e a partir daí, a
função psicanalítica pode ser definida como ternária [10]. A função deste x assumirá outro valor
no divã durante a prova de enunciação, o de “dizer tudo o que vem à mente” que faz emergir
um furo: nem tudo pode ser dito. O inconsciente faz furo. Aqui estão então alguns pontos que
podem lançar luz sobre o ato Nuit Debout! e as suas formas de debate.

A Transferência, a suposição, a atribuição e o engano

A Suposição refere-se nos seus significados a “falso, abaixo, substituição”, e


consequentemente à ambiguidade, aos impulsos contrários, às contradições da vida social. Esta
Suposição, que se refere ao falso, abaixo, à substituição, está altamente preocupada com os dois
seios bem conhecidos da transferência psicanalítica ou social: engano e ocultação. Esta
suposição, o pivô da realidade humana, é assim colocada em tensão com a Garantia que carrega
a articulação entre a verdade, o gozo e o direito. Esta Garantia, tomada na transferência social,
não é sem relação com a Segurança no grupo social ou ao Deus não enganador de Descartes. O
problema da Garantia é assim esboçado hoje através dos dois pilares da “Falsa Esfera”, a
Segurança de uma ordem social e a Religião de um Deus, uma religião que é necessariamente
feudal quando é investida de um poder político qualquer, a começar pelo da família.
As consequências da proposta devem então ser estudadas: “a realidade social é a
experiência da transferência social”. Se for feita uma suposição, que é pivô da transferência
social, ela tem o efeito de produzir uma atribuição. Esta atribuição diz respeito ao gozo:
atribuição de um gozo (abuso de gozo, privação de gozo) e está relacionada com a intenção,
atribuição de uma intenção. A incidência na lógica de transferência social que estou a empregar
conduzirá à suposição/atribuição binária e isto é fundamental na segregação social, na
suposição de um gozo social, na atribuição de um gozo social. Este binário deve, naturalmente,
ser colocado numa lógica ternária orientada pelo conceito de furo. A política e o seu ato fazem
parte da dialética que existe entre suposição e garantia. O valor de gozo social terá uma função
determinante no jogo dialético em questão.
De fato, isto aponta para várias perspectivas: a suposição, como acaba de ser definida,
fará furo no absoluto da Garantia que estava até então no eixo vertical, a garantia do líder e
depois do Um, isto é, o que funciona como Poder. A suposição faz furo no saber constituído e
na forma-poder. Trata-se de um furo na significação social. Este furo está em movimento, está
a vaguear, especialmente no eixo horizontal onde toma o lugar do hiato nas rivalidades. O furo
da suposição diz respeito, de fato, ao gozo. Este gozo deve ser entendido na forma de utilização,
de uso, sendo este último termo preferível devido à sua implicação na economia política: gozar
de um bem social, por exemplo, ou de uma qualidade ou de um instrumento de produção ou da
sua força de trabalho. Logicamente e de acordo com as condições históricas, isto pode tornar-
se um gozo legal do Direito [11], o direito de gozar de um bem social, por exemplo, ou de uma
qualidade ou de um instrumento de produção ou da sua força de trabalho...
Os dois eixos do Poder e da Igualdade são assim minados, bem como a Garantia pelo
furo da suposição com efeitos nas relações sociais. Assim, a privação social, um mecanismo
essencial na dinâmica da luta de classes e dos conflitos humanos, faz funcionar estes três
operadores: o furo, a suposição e a atribuição. A pessoa que é privada de uma função social
assumirá uma lógica a esta privação e acabará por atribuir um gozo a outra pessoa ou a um
grupo ou a uma instituição. O ponto importante é que os valores sociais circulam, funcionam
entre a suposição e a atribuição. Este mecanismo funciona tanto no eixo vertical de Poder como
no eixo horizontal de Igualdade.
No processo psicanalítico individual, esta colocação em função do tríptico “furo,
privação, suposição” na narrativa de um drama pessoal irá produzir efeitos de significação de
gozo: “um outro goza”, uma proposta a ser relacionada com “eu é um outro”. É o mesmo no
concreto da vida social coletiva, e o impacto de um furo produzirá efeitos de significação de
gozo social, de abuso do gozo ou de privação do gozo. As revoluções, bem como os fascismos,
partem desta base desde que se inclua outro ingrediente, o da descoberta de um engano social
concreto que afeta um grupo social importante que pode fazer uma massa. A atribuição de um
gozo a outro suscita as questões da igualdade e da equivalência.
O fundamento da suposição faz uma dobra em ambos os eixos. Os dois esquemas acima
descritos, que parecem a priori fixos, com o risco de se agruparem num único ponto, são abertos
pelo furo da suposição: o furo se desloca. Este furo errante mover-se-á, é um motor em conflito
e acima de tudo implementa a pulsão, é um motor pulsional. Isso impulsiona, é um
transbordamento do furo pulsional.
Esquema 3 - A privação e a suposição: o furo errante

Portanto, há um vazio feito pelo furo errante. Isto pode provocar um processo
revolucionário na conjunção dos dois eixos. A aposta fundamental é neste ponto preciso, utilizar
esta ferramenta do ternário que é o furo para sair da “Falsa Esfera” binária, do sistema esférico
do mundo [12] característico do mundo estadunidense. Um ponto importante é que o furo não
é apenas o da suposição, mesmo que as outras categorias de furo estejam necessariamente
ligadas e ligadas a ele.

O nó transferencial antroupológica

Esta ferramenta múltipla de furo é fundamental. Com efeito, toca o que constitui a
identidade humana, e fui capaz de desenvolver o conceito singular da antroupologia [13]. Irei
propor aqui alguns pontos de referência simples. O furo diz respeito tanto a palavras como a
imagens ou corpos, e eu aproximo-o neste quadro de hiato. Há um hiato entre os seres humanos,
separa-os, tanto do ponto de vista das palavras como do das imagens ou dos corpos. Por
palavras, o exemplo do mal-entendido, que é constante e fundamental entre os humanos, é
provavelmente o exemplo mais simples. O mal-entendido faz furo. No entanto, há um nó entre
as palavras, as imagens e os corpos à volta deste furo. A ferramenta do furo funciona com a
ferramenta de dar nó. Propus assim um nó entre quatro círculos: corpo, imagem, palavra,
privação, que é paradigmático do ser humano e é uma antroupologia. O furo diz respeito ao
furo do olhar [14] envolvido na atração sedutora, bem como na incitação para o nível de
resíduos.

Esquema 4 – O nó

Este esquema difere do nó sinthoma proposto por Lacan: ele suprime o RSI (Real,
Simbólico, Imaginário) transcendental. Deixa a função estática hegeliana do sinthoma, que
permanece marcada pelo “gozo do proprietário da carta e do significante” [15], uma fórmula
que resume na minha opinião a aporia de Lacan. Este esquema separa-se dele, colocando na
topologia, o motor da privação, um elemento essencial na dinâmica transferencial do gozo. A
privação do gozo faz furo, é o motor na transferência que prima sobre os outros: a transferência
de gozo. Os furos estão localizados tanto no eixo vertical como no eixo horizontal. Estão
também no fundamento do humano: neste ponto Lacan coloca os orifícios do corpo, os furos
do corpo em relação às suas bordas, a fim de captar as pulsões humanas.
Isto é importante: é de fato com a ajuda deste conceito, que toca o corpo, que as
captações pela imagem, pela voz, pelos ritmos musicais em eventos políticos de massa são
explicadas. É igualmente com o mesmo conceito que pode explicar a oferenda aos Deuses das
Trevas, para retomar uma citação de Lacan, e aqui mais precisamente a oferenda, o sacrifício
do corpo a nível social. Os valores humanos deslizam para os furos, são transformados nas suas
funções sociais através do amor, ódio, igualdade de gozo e o poder. Este tem sido o caso na
história dos valores da raça, do sangue, da virilidade, por exemplo. Transferências de valores
que dizem respeito às palavras, às imagens e às sensações corporais, transferência entre
membros do grupo, transferência de membros do grupo para o Um, o líder.
Estes furos nas suas diferentes acepções são, portanto, um importante instrumento
conceitual de transferência social e vou esboçar os pontos essenciais que nos permite analisar.
Na nova teoria que proponho sobre este assunto, relaciono o conceito de furo com o de valor.
Uma das funções de um furo é ser preenchido materialmente e é aí que o valor de gozo ocorre,
quer na ordem de uma passagem, quer na ordem de uma fixação. É a partir desta ferramenta
que uma dinâmica revolucionária pode desabrochar. Antes, trata-se de pôr em tensão o furo e
o valor, através do conceito de máscara e da função desta última no gozo social.

Esquema 5 – a máscara, o valor e o furo

O furo errante no funcionamento social é mais frequentemente mascarado, tapado. Isto


tem efeitos contraditórios e enganosos. A máscara no eixo vertical faz uma ordem, e portanto
necessariamente um nó. Sem esta ordem nodosa nada se pode manter ao nível do grupo social.
Isto é fundamental para a ordem social e política. Por outro lado, alimenta a função enganadora
da aparência social das ilusões e fornece ferramentas para a repressão social. François Châtelet
ligou a função da máscara à função do álibi, ou seja, a questão da defesa utilizada para justificar
a culpa, um grande problema das civilizações humanas.
O problema da relação entre o furo, o valor e a máscara é crucial e diz particularmente
respeito ao estado da forma-Estado. De fato, na ferramenta geométrica dos dois eixos da
transferência social, a vertical tem um impacto importante no funcionamento do grupo social
que se situa na horizontal: ela liga os membros do grupo num único ponto. Este único ponto, o
Um, usa uma máscara que cobre um furo fundamental. Se removermos o que mantém a vertical
unida, os elementos na horizontal desenrolar-se-ão. Todo o grupo social desagrega-se
transitoriamente em partículas separadas por furos. Produz-se um des-nó que faz desnodamento
transitório. Esta desnodamento diz respeito ao funcionamento de valores que as palavras, as
imagens, as sensações de corpo transportam. Um valor deixa de funcionar, morre na sua função
social, e a máscara que só pode funcionar animando este valor e organizando-o, cai. O órgão-
valor que faz a máscara deixa de ser um motor no eixo vertical, um outro órgão-valor que
empurrado na própria contradição do movimento fará outra máscara neste eixo.
É importante compreender a lógica de deslocamento da máscara que adorna o buraco.
É também importante ver como a função do furo e a máscara se articulam no processo de
inversão social. A mudança de máscara é feita após a queda de uma operação de viragem. Isto
é importante para compreender processos revolucionários ou contra-revolucionários nas suas
dinâmicas de inflexão e reversão em relação às relações sociais de produção. Trata-se da
questão da atribuição de culpa e da punição social e política nestes contextos de reviravolta e a
violência da punição pulsional.
Com a função da máscara pode também ser estudada a função do engodo da
equivalência política. Freud já tinha indicado que o mesmo mecanismo que fazia funcionar o
líder no eixo vertical estava envolvido na função da Igreja ou do Exército. E pode ser avançado
usando Lacan que é o lugar daquele que pode ser o lugar do Um, por sua vez, o lugar da Igreja,
do Exército, do Estado, do Pai, do Partido, do Capital, de qualquer instituição...
Todas estas instituições têm este mesmo lugar, este mesmo Topos no funcionamento
transferencial, mas isto não significa que sejam equivalentes. De fato, não têm a mesma função
social e política. Há aqui um ponto crucial: é possível na transferência para o mesmo lugar no
eixo que instituições que não têm a mesma função social sejam consideradas pelo socius e no
socius como equivalentes. Marx tinha notado no seu livro “O Capital” o fato de que a civilização
capitalista aumenta dois mecanismos que podem causar aberrações sociais: a abstração e a
equivalência. A função do valor de troca na loucura capitalista é responsável por isso.
Isto é extremamente importante para a questão social e política: tudo se torna
equivalente na sociedade, no mundo. Nas relações sociais de produção capitalista tudo é
equivalente através da função social do dinheiro na sociedade e nesta equivalência que se tornou
exponencial, a lei do lucro capitalista gera violência social e humana que cresce a partir desta
loucura exponencial. Isto diz respeito a pelo menos dois pontos: a equivalência não é igualdade
de uma parte e o mesmo não é a outra de outra parte. Lacan insiste no seu seminário sobre a
complexa questão do semblante sobre o mesmo e o outro: “Uma outra unidade é semelhante à
outra. Tudo isso que sustenta a diferença entre o mesmo e o outro é que o mesmo é
materialmente o mesmo. A noção de matéria é fundamental na medida em que funda o mesmo.
Qualquer coisa que não seja baseada na fralde matériel-ne-ment5” [16].

A mistificação do “mais-de-gozar” publicitária e midiática em política

Este crescente domínio da equivalência, a confusão do mesmo e do outro, permitirá todo


o tipo de manipulações grosseiras, mistificações políticas ou pseudo-filosóficas. Isto é óbvio
desde o final da década de 1970 no Ocidente e é este domínio da equivalência que irá assumir
ideologicamente o mundo ocidental. A publicação [17] do livro de Bernard-Henri Lévy em
1977, La Barbarie à visage humain [A barbárie com um rosto humano], é o signo anunciador
disto, e Gilles Deleuze aponta o verdadeiro problema ao negar ao autor do livro, muito pouco
tempo após a sua publicação, a qualidade de filósofo, apenas para o reduzir à categoria de
posição publicitária sob o rótulo de BHL [Bernard-Henri Lévy] [18].
Para além da persona BHL, o problema levantado por Deleuze é essencial e diz respeito
à política na sua atual inclinação para a catástrofe e destruição humana: o reinado da publicidade
como uma manipulação sórdida para assegurar o poder absoluto de alguns proprietários
capitalistas que são maxi-bilionários. Verdadeira catástrofe humana, verdadeira barbárie e não
de natureza publicitária, o filósofo Georges Politzer tinha analisado estes fenômenos, nas
circunstâncias verdadeiramente dramáticas dos seus atos como um combatente da resistência
comunista, “O próprio Sr. Hitler mostra que concebe propaganda política, conduzida de acordo
com os princípios da publicidade comercial. Ele argumenta que a verdadeira propaganda é,
como a verdadeira publicidade, aquela que tem êxito...” [19]. 19] Isto está de fato claro no
excerto do Mein Kampf [Minha Luta] [20]: “O que se diria, escreve ele, sobre um cartaz
publicitando um novo sabonete e dizendo que também existem outros sabonetes bons? Sacudir-
se-ia a cabeça. É exatamente o mesmo com a publicidade política”.

5
Trocadilho que envolve o jogo de palavras entre “material”, “não” e “mente”. Ao pé da letra podemos traduzir
por “material-não-mente”.
O problema hoje, e isto deve ser analisado na perspectiva de uma nova contribuição do
ato Nuit Debout! para a política, é que o princípio da publicidade está no comando dos estados
liberais (lembrando que o Estado fascista é o Estado liberal reduzido à sua essência) [21] com
os poderes exponencialmente crescentes, muito maiores do que os utilizados pelo Sr. Hitler.
Irei abordar esta questão mais especificamente com as críticas à política do American
Way of Life [Estilo de Vida Americano]. A partir destas poucas observações, fica claro como é
importante o valor de troca nas questões da política global de hoje. A transição global para a
função louca do valor de troca ocorreu na segunda metade da década de 1970. Esta mudança
alterou gradualmente as relações sociais de uma forma fundamental, com variações na forma,
nas máscaras e no tempo, em função do Estado.
O princípio reformista de que o lugar do Um no eixo vertical mantém uma certa ordem
social na horizontal. Este eixo horizontal, que também atua sobre a forma de poder do Um,
conduz à seguinte aporia: o poder fascista do Capital no eixo vertical reina no eixo horizontal,
onde o mais-valor, o mais-de-gozar ligados ao dinheiro, diferentes formas de rivalidade no eixo
da igualdade e diferenças. O dinheiro é de fato o principal valor que funciona na transferência
social do capitalismo. No entanto, no eixo vertical das origens, o capital e o valor bolsista
referem-se a uma origem cada vez mais difusa e fictícia, o que pode favorecer o ressurgimento
na sociedade de valores de aparência mais concreta, como a superioridade da raça, por exemplo,
ou o “retorno” das religiões e dos seus valores feudais.
Nos intervalos, nos hiatos, os valores pulsionais são engolfados. Assim, no eixo
horizontal, fabricam-se valores individuais de gozo, que se tornam, de uma forma louca, valores
de troca capitalista para todos. A questão da dinâmica do mais, “mais de gozar”, refere-se à
negação de uma divisão fundamental.
A construção de novas relações sociais de produção, partindo de outra base e de outra
prática, implica um exame sério destes dados de funcionamento dos valores capitalistas
individuais com base no valor de troca. Vou terminar provisoriamente com Lacan para
desenvolver orientações.
A elaboração de Lacan do conceito de furo é contemporânea com a de não-todo e estará
na origem da sua crítica ao texto de Freud sobre “a psicologia das massas”, uma crítica que
consiste em denunciar o absurdo do conceito de entidade, da entidade de massa, por exemplo.
Vou usá-lo para fazer uma crítica radical ao falso conceito de totalitarismo, o primeiro ponto
de orientação para construir algo mais do que uma democracia baseada neste binarismo
democracia/totalitarismo, a fraude intelectual fundamental da política na segunda metade do
século XX [22]. A fim de sair do binarismo democracia/totalitarismo e pôr imediatamente em
prática um policomunismo a-capitalista diferencial, a questão da função política da
equivalência social deve ser colocada em tensão com a da igualdade social. Isto irá alimentar a
quarta parte.

[1] Voir la première partie.

[2] J’utilise ce terme d’étasunien du fait de mon expérience de travail en Amérique Latine,
notamment à Cuba.

[3] Jacques Le Goff, La Naissance du Purgatoire, Gallimard, 1981.

[4] La vérité est petite sœur de la jouissance, indique Lacan dans le Séminaire XX.

[5] Cf. psychanalyse, psychiatrie, société, septembre 2015, [en ligne] http://www.revue-
pps.org/la-transformation-radicale-de-la-clinique-comme-produit-de-la-transmission-des-
rencontres-cliniques-avec-des-personnes-transexuelles/.

[6] Ainsi que cela a été évoqué dans la première partie de l’article.

[7] Hervé Hubert, « Entre apport et aporie de la critique marxiste : retour sur la critique de
Georges Politzer faite à la psychanalyse. Perspectives actuelles », Congrès Marx International,
2010, Paris.

[8] Jacques Lacan, « Proposition du 9 octobre 1967 » (1re version), Analytica, n°8, 1978.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

[11] Sur la question du passage de la jouissance d’utilisation à la jouissance du Droit, voir la


Revue Niepcebook, n°2, Éditions Corridorelephant, 2016.

[12] Expression utilisée par Lacan dans son Séminaire le 17 mai 1977, inédit.

[13] Outre le jeu de mot incluant le trou au fondement de l’humain, j’insiste également sur le
troupeau qui renvoie à l’étymologie de la ségrégation : « En troupeau-logie », « En troupeau-
logos ».

[14] Hervé Hubert-Klein, « Transfert pictural et drame de peindre », in Art, Psychoanalysis


and Revolution, Londres, 2011.

[15] Caractéristique constante de l’enseignement de Lacan depuis le début de son retour


hégélien à Freud jusqu’à sa fin.

[16] Jacques Lacan, séminaire XXIV, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, 1976-
1977, séance du 14 décembre 1976 (inédit).
[17] Jeu de mot fait par Lacan pour signifier les publications.

[18] Voir l’art. « Bernard-Henri Lévy » in Wikipedia.

[19] Georges Politzer, « Révolution et contre-révolution au XXe siècle », janvier-février


1941, publication clandestine, publié dans Écrits I, Éditions Sociales, 1973, p. 318.

[20] Cité par Politzer dans sa comparaison entre la propagande et la réclame, « Révolution et
contre-révolution au XXe siècle », op. cit., p. 317.

[21] Voir Première partie, citation de François Châtelet.

[22] Cette remarque ne concerne bien évidemment pas Pasolini qui, lorsqu’il indique que le
seul totalitarisme dans l’Histoire est la civilisation de consommation capitaliste, est un repère
essentiel que je reprendrai dans ma critique.
“EM PÉ A NOITE INTEIRA!” UM ATO DE EXPRESSÃO POLÍTICA NA
TRANSFERÊNCIA SOCIAL – REFLEXÕES DE PSICANÁLISE SOCIAL (PARTE 4)

Porque deixamos que o capitalismo podre nos mate? Porque consentimos uma vida de
matança? Uma característica essencial do fenômeno “Nuit Debout!” [“Em pé a noite inteira!”]
consiste na expressão da recusa de um sistema político. Tal como em 1968, e de momento a
comparação pára aí, exprime-se algo mais do que exigências parciais. Do significado deste ato,
e qualquer que seja o resultado do movimento Nuit Debout! que está agora adormecido, é uma
questão de construção, é a esperança de encontrar nele, em qualquer caso, uma base política
diferente da que nos é apresentada como um sistema natural e inescapável: parlamentar,
neoliberal ou capitalista, de esquerda ou de direita, pouco importa o rótulo; como “fazer bonito”
deste sistema sendo este por outro lado todo o problema.
Considero esta recusa essencial porque a ameaça representada pelo sistema do
capitalismo que se tornou uma máfia é extremamente grave para a humanidade. Por enquanto,
esta ameaça mortal ao planeta e aos seus habitantes não provoca a mobilização política de
massas que seria de esperar. Os movimentos continuam fracos, parciais em relação à única
prática social que conta e poderia ser decisiva: a expressão de uma recusa política de massas a
nível internacional e global. Neste quadro, a revolução digital poderia ser uma ferramenta
preciosa, terei a oportunidade de voltar a este assunto na contribuição do conceito de
transferência social para a transformação revolucionária.
Somos mortos pelas relações sociais de produção impostas por este sistema que utiliza
a “Falsa Esfera”, civilmente e militarmente. O que nos falta para viver de pé e não ajoelhar ou
se prostrar? O que nos impede de reagir de forma maciça? As respostas são certamente
múltiplas, a serem tomadas a vários níveis, pelo que seria muito importante de fazer um trabalho
coletivo de formulação de questões, foi seguindo neste ponto também que Marx indica
claramente que as respostas estão nas formulações das perguntas.
Ao nível de uma análise da transferência social, pode se dizer com evidência, e isto não
é uma novidade em si, que existe uma passividade social face às catástrofes que estão
ocorrendo. Esta passividade afeta a vida quotidiana e as nossas vidas em geral. Porque nos
deixamos matar pelo ar poluído, pela água envenenada com pesticidas, por alimentos
cancerígenos, por condições de trabalho que são também cancerígenas, estressantes e por vezes
estúpidas no seu propósito social? Porque é que aceitamos valores hierárquicos do tipo
machista-feudal-capitalista? Porque gastamos tanto tempo para obter dinheiro sem termos
tempo para viver múltiplas criações, num coletivo humano com uma verdadeira função social?
Porque é que os chamados retiros individualistas se tornam tão pobremente o único horizonte
nas mentalidades desiguais do Ocidente em via de globalização? Porquê aceitar a apropriação
do domínio arbitrário dos seres humanos sobre os outros seres humanos? Porquê aceitar guerras
capitalistas e as suas barbáries? Porquê aceitar uma civilização onde a liberdade humana é
reduzida à de poder comprar? Porquê aceitar a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico
Norte), o TAFTA (Transatlantic Free Trade Agreement [Acordo de Parceria Transatlântica de
Comércio e Investimento]), o CETA (Comprehensive Economic and Trade Agreement
[Acordo Econômico e Comercial Global]), e uma série de outras siglas, dependendo das siglas
que Viktor Klemperer no seu magnífico estudo LTI, A Língua do Terceiro Reich, tinha notado
com a tomada do poder pelos nazis? Porquê aceitar a burocracia e/ou corrupção como um modo
de governo de Estado e instituições do Estado? Porquê aceitar a progressiva destruição do
planeta Terra e o discurso banalizado mesmo nas suas besteiras televisivas onde uma voz
publicitária nos anuncia entre duas notícias sobre os vestidos da Kate Middleton ou a última
transferência financeira de um jogador de futebol: “O crédito da Terra começou desde 8 de
Agosto”?
A passividade funciona antes de mais nada devido a um sentimento de impotência para
mudar esta realidade social, esta transferência social. Esta realidade quotidiana consiste em
viver em relações sociais que são organizadas por uma potência humana cuja base é o lucro do
outro, um lucro escandaloso do proprietário de um direito arbitrário de possuir o instrumento
que permite, através da exploração humana, produzir um gozo individual radicalmente
desligado do objetivo primordial de satisfazer as necessidades sociais, uma função social da
vida e a reprodução da vida do coletivo humano. O proprietário capitalista indica que Marx
aposta na “conquista, escravização, assalto à mão armada, o reinado da força brutal” e gostaria
de nos enganar fazendo-nos acreditar em “um idílio entre o capital e o trabalho”.
É, no entanto, bastante possível produzir hoje outra base para a vida social e políticas.
É perfeitamente possível, com os dados econômicos e científicos do século XXI, organizar
democraticamente o princípio social da satisfação das necessidades humanas fundamentais,
assegurando que cada ser humano tenha acesso à saúde, educação, cultura, habitação, lazer
criativo e uma responsabilidade política ativa no coletivo, sendo este último tão essencial como
o primeiro.
O comunismo, na direção que Marx dá a este termo, é possível hoje em dia no mundo
do século XXI! Se fizermos viver maciçamente numa prática social não a ideia do comunismo
ou a sua hipótese abstrata, o seu futuro abstrato ainda por vir, mas o concreto do comunismo,
então a propaganda do capitalismo deixará de funcionar. Para fazer Revolução, é uma questão
de fazer com que os valores do capitalismo deixem de funcionar nas relações sociais de
produção, na vida quotidiana, e isto só pode ser feito na condição de que outros valores
funcionem anteriormente nas relações sociais, outros valores de gozo, com uma força
incompleta mas suficiente para finalmente romper com “a não-satisfação no não-
reconhecimento” [1]. 1] É com estes dados de imanência que se forma a outra base social e
política, diferente de uma alternativa, aquela que permite o desenvolvimento daquilo a que
chamei policomunismo a-capitalista diferencial.
Na atual transferência social no Ocidente funciona para a maioria dos seres humanos,
as relações de dominação que fazem daquele que não tem dinheiro, um desperdício, um
desperdício social, bom para pôr no lixo. Existem, além disso, vários tipos de caixotes do lixo
para humanos e me parece interessante estudar os diferentes modos de produção de lixeiras, se
for considerado como lixeira, um modo de decadência social. Na relação social produzida pelo
capitalismo, há explicitamente uma transferência do tipo: um mais faz viver uma pessoa na
condição de que haja um menos para outra pessoa. Um mais sustenta um grupo com a condição
de que haja um menos para outro grupo. Este modo de gozo particular ao capitalismo, baseado
na desigualdade dos meios atribuídos, está intimamente ligado ao conceito de sub-humano.
Geralmente é esquecido, recalcado ou rejeitado, que para obter esta vantagem de pelo menos
algo é morto por alguém ou, na pior das hipóteses, uma pessoa real é morta. Este modo
particular de gozo é a base de diferentes formas de segregação social e causa da violência social.
É por isso que na transferência social, conscientemente ou inconscientemente, a questão
do homicídio individual e em massa se insinua. As duas guerras mundiais capitalistas do século
XX mudaram a nossa relação com o homicídio de uma forma duradoura. Habituámo-nos a
matar, a matar e a ser mortos, e os meios de comunicação social estadunidenses, transcendendo
o American Way of Life [estilo de vida americano], têm-nos embriagado desde a infância com
os seus desenhos animados e outros jogos de vídeo. O “Âme-ricane6” do Way of Life torna-nos
“uma vida de matança”: vivemos uma vida em que não morremos “naturalmente” mas em que
somos assassinados. O filósofo e cineasta Ivan Chaumeille, recordando a contribuição do
pensamento de François Châtelet sobre este assunto, grita no final de um dos seus escritos: “O
que significa ser morto (aqui e agora; Como? Porquê?)”[2].
Somos o agente, o efeito, o produto de um sistema que, nas relações sociais, nos faz
consentir o fato de termos uma vida dos mortos, e compreendo melhor a máxima de Lacan de

6
Trocadilho com a palavra “americano” em francês: âme em francês significa “alma” em português. A
equivocação proposta, Âme-ricane, parece-nos conduzir ao sentido de “alma americana”.
que estamos mentalmente debilitados. Face ao que nos incumbe, fabricamos relações de
compreensão, de explicações de reciprocidade ou de possível harmonia, onde não há e onde
não pode haver, e onde há relações de saberes a serem feitas, não queremos vê-las! A negação7
e o “não querer ver” são certamente os mecanismos humanos mais fortes para negar consciente
e inconscientemente o “Você pode saber!”.
A psicanálise pode certamente nos ajudar a acordar. Também pode fazer o oposto. Lacan
castigava regularmente os psicanalistas estadunidenses que empurravam o seu rebanho para o
divino divã para acabarem por se identificar com eles por meio de forçar a necessidade de se
adaptarem à carteira do psicanalista. É então uma questão de adaptação a esta falsa moeda
psicanalítica, pois é apropriado se adaptar socialmente ao estilo American Way of Life, uma
promessa de liberdade...
Mas esta prática psicanalítica tem feito muito pior. O sobrinho duplo de Freud em
pessoa, Edward Bernays, o fundador da propaganda capitalista moderna, construiu a partir do
saber psicanalítico sobre o gozo e desejos humanos, um livro sobre o fenômeno da manipulação
consciente e inteligente dos hábitos e opiniões das sociedades democráticas. Ele chamou a isto
o governo invisível....
O seu livro Propaganda [3], que inspirou Goebbels, é ainda incrivelmente atual,
inspirando as manipulações midiáticas políticas. Nele Bernays explica o que ele chama “a
fábrica do consentimento”: como impor uma nova marca de detergente em pó. Como é que se
consegue eleger um presidente? Algumas pessoas dizem que acordam grogues depois de beber
vários Scotchs duplos, mas ainda hoje estamos inconscientemente grogues com apenas um
sobrinho duplo de Freud! Uma droga com um efeito lento e duradouro. Uma forma de
dependência em que o produto é consumido na rotina de repetição e hábito devido à excitação
cuidadosamente alimentada dos meios de comunicação social que o impõe.
O que estava confinado aos Estados Unidos da América (EUA) foi rapidamente
exportado e organiza a negação forçada do “Você pode saber!” no que é mais frequentemente
referido como uma democracia liberal. Esta negação forçada alimenta a debilidade mental
generalizada e a estupidez, dois termos que Lacan insiste no final do seu ensino. Débeis e
idiotas, este é o efeito da Propaganda!
Trata-se portanto de avançar sobre o que produz este “capitalismo podre” que me parece
estar tão bem definido como significando o estado das relações sociais atuais no Ocidente.
Foram sem dúvida os discursos hediondos dos dois candidatos à presidência da República dos

7
Tradução oriunda do francês “déni”.
Estados-Anus da América8, Donald Trump e Hillary Clinton9, que me fizeram recordar a
expressão tão apropriadamente utilizada por Lênin para descrever o imperialismo americano:
“capitalismo em putrefação”!
O capitalismo atual está apodrecendo o capitalismo com todos os significados possíveis
do abjeto adjetivo “apodrecimento” A fim de contrariar a imagem de um mundo em
decomposição, o poder capitalista promoveu lutas eleitorais em que os chamados falcões e
pombas vencem de forma alternativa, ou seja, sem qualquer mudança real na política. Jogando
no eixo horizontal das diferenças no esquema da transferência social, mais ou menos atenuado,
mais ou menos ascendente ou descendente, os sotaques pseudo-libertários ou realmente
repressivos são encenados numa comédia que se transforma numa tragédia perante os nossos
olhos como espectadores impotentes de uma eleição estadunidense caricatural. As negações
forçadas de saber que alimentam o governo invisível produzem uma decadência indescritível:
com esta eleição de 9 de Novembro de 2016, já não é apenas uma farsa, uma comédia ou uma
tragédia, mas, seja qual for o resultado, um colapso da dignidade humana para governar um
Estado que quer ser Mestre do Mundo, Mestre de um sistema que produz relações sociais
segregativas e poubellicitaires10.
O carisma do Sr. Obama é frequentemente mencionado. Prefiro dizer que, no mínimo,
o Sr. Obama contribui para o fascismo da sedução. Este fascismo de sedução é um fascismo
que se expressa claramente pelo impetuoso papel hollywoodiano que ele desempenha. É
conveniente intervir na vida dos Estados que não têm a mesma concepção de liberdade que os
Estados, e esta intervenção autoritária, desorganização da sociedade civil ou intervenção militar
de outros Estados é digna das já citadas palavras de Marx “a conquista, a escravização, o assalto
à mão armada, o reinado da força brutal”. O slogan [lema] publicitário do Yes we can [Sim, nós
podemos] não poderá ter tido o valor de um French-Cancan11 [6].
Sob estes erros humorísticos, é evidente que vivemos um momento de colapso ético na
História e que o que parece ser a agonia do sistema atual é o mais perigoso desde os tempos do
nazismo. A fim de se vislumbrar hoje a construção social e política, parece necessário
questionar a forma-Estado e colocar no centro da nossa reflexão a questão do assassinato como
produto das relações sociais de produção.

8
Equivocação com a palavra em francês “États-Unis d'Amérique” [Estados Unidos da América]: “Etats-Anus
d’Amérique” [Estados Anus da América].
9
O presente ensaio é contemporâneo às eleições para presidente nos Estados Unidos.
10
Equivocação com a palavra francesa poubelle, que no português significa “lixeira”. O sentido pretendido pelo
autor expressa “lixo publicitário”.
11
Referência a um filme de 1954, um musical/comédia, dirigido por Jean Renoir.
A questão do homicídio e as formas de segregação

Do que foi estudado anteriormente, é evidente que a questão do homicídio é uma questão
essencial a ser abordada, a ser pensada, a fim de construir relações sociais outras. Freud em seu
trabalho sobre a civilização insiste no assassinato do Pai da horda primeva como fundamento.
Châtelet nos tira da mitologia edipiana para lançar luz sobre o fato salientado por Freud: “Na
origem da civilização, pode-se dizer também do poder, de atividade política, notou-se Totem e
Tabu, há assassinato, a origem da aliança de assassinos e o seu remorso comum” [7]. Isto nos
leva a pensar de forma diferente a questão do homicídio: uma aliança transferencial entre seres
humanos baseada no fato de ter assassinado uma pessoa, não necessariamente um pai, e em
particular no que eles têm em comum, a culpa. Shakespeare o tinha descrito com genialidade,
e isso alimentou Freud... E sobretudo Marx.
A contribuição de Marx para a questão do assassínio é essencial porque toca na questão
do mais e do menos na produção do mais-valor: tal é o significado de “trabalho morto” ou o
uso das palavras “fantasma” ou “vampiro” em “O Capital”. Uma frase extraída de “O Capital”
explica em parte a vida do morto acima salientada: “É durante o próprio processo do trabalho
que os meios de trabalho, em virtude da sua transformação num autômato, se encontram face a
face com o trabalhador como capital, como trabalho morto que domina e suga a força viva do
trabalho” [8].
Esta é outra forma de abordar a questão do assassinato: este assassinato é rejeitado do
discurso capitalista e a culpa é evacuada, forcluída. Não há remorsos nesta transferência. Esta
contribuição de Marx na circulação transferencial de valor explica a nossa transferência social
moderna e, em particular, o fato de a falta forcluída retornar no Real das guerras imperialistas.
Talvez se encaixe na evocação deste extrato de “O Capital”, que descrevi como o apelo
melancólico feito a Marx por Lacan no seu seminário “O momento de concluir” em 1978 [9]?
Contentar-me-ei aqui em fazer uso de uma declaração de Lacan sobre o nazismo no seu
texto sobre a formação de psicanalistas, 9 de Outubro de 1967. A ausência de questionamento
do Édipo, do Pai Ideal, do Pai Morto, no meio psicanalítico, indica Lacan, deixa na sombra um
fenômeno que ele nomeia de forma muito precisa: “O advento correlativo à universalização do
sujeito proveniente da ciência, do fenômeno fundamental cuja erupção o campo de
concentração mostrou. Quem não vê que o nazismo só tinha aqui o valor de um reagente
precursor?”.
Depois, Lacan associa à ascensão de um mundo organizado todas as formas de
segregação. O nazismo teria assim sido o reagente precursor de um mundo organizado sobre
todas as formas de segregação, e a ideologia do Pai Morto combinada com o discurso ao
discurso da ciência se refere ao que mencionei sobre a aliança de assassinos e o seu impacto na
transferência social. A ideologia do Pai Morto conduz a paixão da ignorância.
Esta conjunção nos impede de ver as formas de segregação assassina: negação, recusa
sombria [10]. Aqui está um ponto de vista revolucionário sobre a questão da transferência para
o horror nazi. A ideologia do Pai Morto, do Pai Ideal, pelo seu efeito transferencial, não nos
permite ver o fenômeno fundamental de que o mecanismo da segregação nazi científica foi o
precursor.

Este é um ponto para compreender os pontos de impacto do imperialismo. É este mundo


de capitalismo apodrecido construído sobre a ideologia inquestionável do primado da Morte
paterna, das religiões monoteístas ocidentais, que dá origem a este mundo organizado sobre
todas as formas de segregação. É este capitalismo podre estadunidense que utiliza a segregação
científica do assassínio em massa localizado com a ajuda desta base teológica, que pode ser
secular, na crença do Pai Ideal, do Pai Morto, o que nos permite fechar os olhos ao sacrifício
do sangue humano, favorecendo assim através da força do mecanismo de negação o mais
comum que é a negação, o sacrifício imposto aos outros povos que supostamente não se devem
submeter ao ditame.
Os estudos históricos mostraram que o capitalismo financiou Hitler e a ideologia nazi.
O capitalismo europeu tinha em comum com Mein Kampf (Minha luta), o conceito de sub-
humanidade e a ideologia de colonização. Não houve nenhuma luta dos EUA contra a
Alemanha nazi até 7 de Dezembro de 1941, quando o ataque ao seu solo pela força aérea
japonesa em Pearl Harbor, em 7 de Dezembro de 1941, impossibilitou uma não-intervenção no
que então se tornaria a Segunda Guerra Mundial.
Houve também o fator determinante na vitória de Stalingrado sobre a barbárie nazi
(Janeiro-Fevereiro de 1943) e o receio do capitalismo mundial de que toda a Europa ficasse sob
dominação comunista. É uma boa aposta que se o Exército Vermelho não tivesse derrotado
decisivamente ou continuado a lutar na Europa, a solução preferida teria sido a utilização
localizada da arma atômica estadunidense contra um nazismo que se tinha tornado totalmente
incontrolável.
A segregação científica do assassinato localizado é assim a principal orientação que
emerge do imperialismo americano, que tem como ponto de partida o holocausto do povo
ameríndio e a segregação racial. A possível utilização da ciência foi um critério estadunidense
na seleção de cientistas nazis na sua extradição para os EUA no final da Segunda Guerra
Mundial e os bombardeamentos desumanos de Nagasaki e Hiroshima procederam a partir desta
mesma lógica de assassinato em massa localizado para assegurar o fascismo da capital
estadunidense. O agente laranja no Vietnã é da mesma fábrica e os tratados comerciais que
querem ser impostos a todo o mundo são também construídos sobre a mesma lógica, mais
insidiosa, de segregação científica do envenenamento com base no princípio da lei sacrossanta
do lucro financeiro.
Temos hoje de compreender este ponto essencial, que é a existência do imperialismo
americano e o seu potencial para produzir uma forma de segregação científica do assassinato
em massa localizado. Com base na propaganda já descrita, produz a destruição do que une as
pessoas socialmente através das suas ações diretas ou indiretas na ex-Iugoslávia, Iraque, Líbia,
etc. No eixo horizontal da transferência social, o das diferenças entre as pessoas, a sua estratégia
é intervir para despertar o ódio nas diferenças, sejam elas étnicas, religiosas ou de classe, com
os resultados que conhecemos. Isto é combinado com o que Domenico Losurdo chamou à
indústria da mentira e à midiatização do espetáculo de guerra, produtos diretos do sobrinho
duplo de Freud [11].
Esta análise permite compreender o que guia hoje em dia este enorme poder midiático
e militar e que distingue claramente o imperialismo dos EUA de outros Estados capitalistas no
uso da transferência social. Não há equivalência. Este forte poder baseado na crença
transcendental, a manipulação midiática e a corrupção financeira são fatores importantes na
transferência para a subjugação passiva. Esta tendência para a submissão foi também
influenciada pelos efeitos de duas inversões contemporâneas de valores que constituíram a base
da relação com o assassínio no coletivo humano: os campos de concentração nazis, os
assassinatos em massa baseados na segregação racial e política e utilizando uma inclinação
científica, por um lado, e os bombardeamentos atômicos de Nagasaki e Hiroshima, de outras
partes, atos que constituíram um avanço na utilização assassina científica de massa do “como
se não fosse por nenhuma razão”.
Mas, bizarramente, o que se transmite nos meios de comunicação social europeus é que
houve dois totalitarismos no século XX: o nazismo e o comunismo, dois líderes sangrentos
Hitler e Stalin, e que hoje o perigo para o planeta estadunidense e democraticamente
globalizado na loucura do Pentágono é encarnado pela Rússia de Putin e pela China comunista.

O falso conceito de totalitarismo

O conceito de totalitarismo foi lançado em 1951 por Hannah Arendt em “A origem do


totalitarismo” e consiste num paralelo sistemático entre os fenômenos nazi e stalinista. “Esta
análise se baseia largamente em perspectivas liberais. Mantém uma oposição essencialmente
política entre as democracias ocidentais e o ‘totalitarismo’, de acordo com François Châtelet e
Évelyne Pisier-Kouchner” [12].
Esta oposição política oculta a análise dos efeitos da política do liberalismo, do
capitalismo estadunidense em particular. Como se pode explicar esta cegueira? Em 1951,
quando Hannah Arendt regressou aos Estados Unidos para prosseguir uma carreira acadêmica
e publicar o seu livro, a sinistra Senadora McCarthy foi nomeada presidente da comissão de
inquérito às atividades anti-americanas e criou um clima incessante de terror e de denúncia. Os
Rosenbergs são condenados à morte por espionagem.
No entanto, é necessária uma análise mais detalhada. A base do pensamento de Arendt
começa a partir da noção de “massa atomizada”. Lacan salientou, na altura em que desenvolveu
o seu conceito de pas-tout [não-todo] em 1972, como Freud tinha acreditado na imbecilidade
produzida por Gustave Le Bon relativamente à entidade das massas. Não existe nenhuma
entidade das massas e insisto neste ponto no esquema de transferência social no que diz respeito
ao conceito de furo. Hannah Arendt liga este falso conceito de massa ao de átomo da massa.
François Châtelet e Evelyne Pisier-Kouchner retomam o texto de Arendt:

O domínio totalitário [...] se funda na desolação, na experiência do absoluto não-pertencente ao


mundo... estreitamente ligado ao desenraizamento e à inutilidade que aflige as massas modernas
desde o início da revolução industrial e que se tornou crítico com a ascensão do imperialismo
no final do século passado e o descalabro das instituições políticas e das tradições sociais no
nosso tempo...,

para que “o sujeito ideal do regime totalitário não seja nem o nazi convicto nem o comunista
convicto, mas este homem desolado, este homem moderno cuja condição está a ser preparada
desde o início da Revolução Industrial” [13]. Esta descrição não diz respeito de modo algum à
Rússia czarista ou à URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas)...
Para além desta observação, gostaria de salientar que Lacan dá no Seminário XXIV as
chaves para sair deste falso conceito de totalitarismo e abre uma nova perspectiva para a
psicanálise social.

Tudo indica, com o índice de suspeita que eu fiz pesar no todo, que de fato tudo é apenas
montado, e peça por peça. A única coisa que importa é se uma moeda tem ou não valor de troca.
Esta é a única definição. Uma moeda tem valor em todas as circunstâncias, isto significa, isto
significa apenas circunstância qualificada como tudo para ter valor, homogeneidade de valor. O
todo é apenas uma noção de valor. O todo é o que vale na sua espécie, o que vale na sua espécie
outro do mesmo tipo de unidade [14].

O que é importante, em relação ao lugar do indivíduo na sua possível relação com um


Todo, é que neste Todo que só pode ser peneirado, perfurado, sem a possibilidade de fazer uma
massa, portanto, cada indivíduo como uma peça, tem ou não tem um valor de troca. É de fato
esta relação do furo com o indivíduo que produz um valor de troca, e que Lacan insiste em dizer
que o Todo é apenas uma noção de valor. Mas na contiguidade, Lacan indica que o inconsciente,
o único erro,
é o que é trocado apesar de não valer a unidade em questão. Uma outra unidade é semelhante à
outra. Tudo o que suporta a diferença entre o mesmo e o outro é que o mesmo é materialmente
o mesmo. A noção de matéria é fundamental na medida em que funda o mesmo. Qualquer coisa
que não seja baseada na matéria é uma fraude matériel-ne-ment12 [15].

Ele prossegue, dizendo que “o mesmo valor é a introdução da mentira, há troca, mas
não a materialidade mesma” [16]. Esta passagem dá assim uma orientação muito diferente da
produzida por Hannah Arendt. É no lado do valor, do valor de troca, do valor do gozo ligado
ao ensino de Marx que Lacan situa a relação com o Todo. Longe de Arendt, então.
Esta contribuição de Lacan reforça a impossibilidade do princípio de equivalência que
já tinha sido trazido à luz com o Esquema 5 (A máscara, o valor, o furo) deste trabalho. Se a
Igreja, o Exército, o Estado e o Partido ocupam o mesmo lugar no eixo vertical, eles não têm a
mesma função social e política e não são equivalentes, nem estão numa posição equivalente, ao
contrário do que sugere Hannah Arendt.
O que me parece interessante na análise desta fraude conceitual duradoura é mais uma
vez o forte impacto da relação que favorece a ignorância e o engano: o impacto da ideologia do
Pai Ideal, do Pai Morto. Apresentada como pensadora da imanência contra a transcendência, da
separação da esfera política pública da Igreja, sua concepção de liberdade e do seu Amor mundi
deve muito ao cristianismo. Véronique Albanel desconstrói assim Arendt como uma pensadora
da imanência [17].
A relação com a política é, portanto, teológica. Na sua crítica ao livro de Véronique
Albanel, Minh Nguyen da Universidade de Ottawa insiste no fato de a palavra milagre utilizada
por Arendt para qualificar as três categorias para estabelecer uma continuidade na política: o
perdão, o poder de começar e a taxa de natalidade, não é uma figura de linguagem. A referência
de pensamento de Hannah Arendt é desde o início até ao fim agostiniana.
Ao ler a polêmica entre Jules Monnerot e Hannah Arendt sobre o título da obra do
primeiro “Religião do Comunismo”, tinha notado a raiva da segunda que descrevia a obra de
Monnerot como blasfêmia! Por tudo isto, concordo com a análise de Domenico Losurdo de que
o conceito de totalitarismo de Hannah Arendt é polissêmico, baseado na teologia cristã,
revelando um esquematismo abstrato que isola elementos da realidade histórica a fim de fazer
uma comparação implícita entre nazismo e comunismo em benefício dos intelectuais da Guerra
Fria [18].

12
Trocadilho que envolve o jogo de palavras entre “material”, “não” e “mente”. Ao pé da letra podemos traduzir
por “material-não-mente”.
Sob o transcendentalismo e o misticismo do Um funciona sempre o gozo do
proprietário, o valor do gozo do proprietário, como indiquei anteriormente. Isto não é alheio à
ideologia do Pai Morto, nem ao que François Châtelet chama filosofia morta [19]. As filosofias
mortas bem como a ideologia do Pai Morto são assassinas ou servem ao assassinato. Foi
apropriado estabelecer estes pontos de referência antes de estudar as perspectivas
revolucionárias.

[1] François Châtelet, « Pour une analytique de l’amour », Arguments, n° 21, Paris, Éd. de
Minuit, 1er trimestre 1961.

[2] Ivan Chaumeille, « L’endurance du déchet », Le Grand Soir, 21 mars 2015, [en
ligne] http://www.legrandsoir.info/l-endurance-du-dechet.html (page consultée le 5 nov.
2016).

[3] Edward Bernays, Propaganda, comment manipuler l’opinion en démocratie, Traduit de


l’anglais (États-Unis) par Oristelle Bonis, Préface de Normand Baillargeon, Paris, Zones,
2007.

[4] Expression humoristique reprise du film V for Vendetta.

[5] Vladimir Lénine, L’Impérialisme, stade suprême du capitalisme, publié pour la première
fois en 1917, Œuvres, tome 22, p. 201, Paris, Éditions Sociales, 1960.

[6] Film réalisé par Jean Renoir en 1954.

[7] François Châtelet, L’Apathie libérale avancée et autres textes critiques, textes choisis et
présentés par Ivan Chaumeille, Paris, Le Seuil, novembre 2015, p. 215.

[8] Karl Marx, Le Capital, livre I, Paris, PUF, 1993, p. 475.

[9] Hervé Hubert, « Ce que Marx apporte à la psychanalyse », séminaire donné à l’Élan
Retrouvé à Paris en 2011-2012 (inédit).

[10] Lacan utilise cette expression de louche refus pour traduire la négation de savoir
prédominante, la Verleugnung, habituellement traduit par « déni ».

[11] Domenico Losurdo, « Industrie du mensonge et guerre impérialiste », Le Grand Soir,


12 septembre 2013 [en ligne] http://www.legrandsoir.info/industr... (page consultée le 4 nov.
2016).

[12] François Châtelet et Évelyne Pisier-Kouchner, Les conceptions politiques du XXe siècle,
paris, PUF, 1981, p. 802.

[13] François Châtelet et Évelyne Pisier-Kouchner, Les Conceptions politiques


du XXe siècle, op. cit., p. 802-803.
[14] Jacques Lacan, Séminaire XXIV, 14 décembre 1976, (inédit).

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Véronique Albanel, L’amour du monde, christianisme et politique chez Hannah Arendt,
Paris, Éditions du Cerf, 2010.

[18] Voir « Domenico Losurdo »,


in CocoWikipedia, http://cocowikipedia.org/index.php?title=Domenico_Losurdo.

[19] François Châtelet, Histoire de la philosophie — Le XXe siècle, t. 8 , Paris, Hachette,


2000, coll. « Pluriel », p. 341.
“EM PÉ A NOITE INTEIRA!” UM ATO DE EXPRESSÃO POLÍTICA NA
TRANSFERÊNCIA SOCIAL – REFLEXÕES DE PSICANÁLISE SOCIAL (PARTE 5)

Não ceder ao valor do ato de Lênin de 1917 ou Como pensar as perspectivas


revolucionárias com o instrumento da transferência social

Queria escrever sobre Nuit Debout! [“Em pé a noite inteira!”] porque este fenômeno
apresenta a ideia de rejeição do sistema capitalista da "Falsa Esfera". Nuit Debout! na prática –
e é apropriado partir do primado da prática – consistiu em quebrar o ciclo circadiano ligado ao
ritmo de trabalho, hábitos sociais, repetições da vida quotidiana, com o objetivo de falar
coletivamente. Por esta forma de quebrar um ritmo, o ato Nuit Debout! põe assim em causa a
aberração da repetição na vida quotidiana. Não será uma aberração viver como vivemos,
sofrendo a imposição, o ditame, o forçar de uma ordem econômica e política com repercussões
tão graves e prejudiciais para uma vida viva? Estamos longe do fim da fome que mata, e
conceber a vida de cada camarada humano como uma obra artística não pode fazer parte do
discurso capitalista.
É paradoxo ou contradição? O evento Nuit Debout! assumiu uma forma considerada
aberrante por alguns que só queriam vê-lo como excitação pequeno-burguesa, tagarelice
noturna sem amanhã, um vagabundo a negar a luta de classes confinada à classe trabalhadora...
Não importa. O que importa é o significado deste ato: no ato de fazer uma declaração neste
modo noturno, pode ser entendido como um desejo de romper com aquilo que nos leva a
consentir sem o nosso conhecimento, sem o sabido de todos, ou a consentir sem o nosso
conhecimento, sem o conhecimento de todos, com aquilo que humilha e que mata pouco a
pouco...
Pode ser percebido como um desejo de quebrar uma ordem, de fazer outro valor ao
camarada humano, à prática social, ao trabalho, à vida. Tentar desta forma partir de outra base
que não a instituída pelo capitalismo e a sua ideologia do discurso hollywoodiano do eu forte.
Nuit Debout! criou uma possível crítica coletiva da “Falsa Esfera” ao capitalismo. Uma base
foi atacada, questionada e isto diz respeito ao Estado, à hierarquia de valores, à sua circulação
na transferência social, a forma-Estado portanto, porque uma forma exige o funcionamento de
um valor em circulação.
Esquema 8 – A circulação de valores de troca

Nuit Debout! no entanto, não causou uma revolução ou mesmo o início de uma
revolução. Não houve produção de uma teoria da Revolução nem simplesmente a organização
de um movimento. Isto reduz obviamente o alcance histórico do evento de uma forma forte, e
o que fez com que a subversão no seu ponto de partida permanecesse “noite estática”.
Penso, no entanto, que o questionamento coletivo de um Estado em recesso e da função
do Estado capitalista deve ser capaz de dar lugar a reflexão com os instrumentos fornecidos por
Lênin nesta obra fundamental “O Estado e a Revolução” em 1917. A Revolução de 1917 teve
a função de tentar e conseguir o movimento de transferência fundamental da inversão e abolição
da ordem capitalista durante um período de tempo a um nível extremamente forte.
Gostaria de destacar alguns pontos para enfatizar a evidente atualidade do ato
revolucionário de Lênin, o que explica o meu título: “Não ceder ao valor do ato de Lênin em
1917”. O ponto mais importante desta atualidade é certamente a teorização por Lênin da função
da forma-Estado de Marx, mas também a sua análise crítica do movimento que ele estabeleceu
com o seu ato revolucionário.
Começarei por sublinhar a sua visão de um fenômeno que hoje escapa a muitos que
estão fechados no falso binário democracia/totalitarismo, tal como o descrevi anteriormente:

A forma de dominação do Estado pode ser diferente: o capital manifesta o seu poder de uma
forma onde existe uma determinada forma, de outra forma onde a forma é diferente; mas, em
suma, o poder permanece nas mãos do capital, quer o regime seja censurador ou não, mesmo
que a república seja democrática; melhor ainda: este domínio do capitalismo é tanto mais brutal,
tanto mais cínico quanto mais democrática é a república [1].

Esta frase indica claramente que é com a forma política democrática, falsamente
democrática para usar um termo comum a Pasolini, que o capitalismo assegura o seu domínio
no zênite, oscilando entre diferentes formas de dominação. É demasiado perturbador pensar em
falsa alternância, seja nos Estados Unidos da América ou na França. Os acontecimentos atuais
relativos ao binário Hillary/Donald mostram o estado de degeneração e cegueira política para
o qual o poder ideológico do “capitalismo sedutor” [2] nos arrasta. Porquê se deixar enganar
pelo tom de Hillary, porquê se deixar enganar pelo viril Donald que se fez bolas de ouro?
(Clincher, um termo inglês que evoca “inclinar a balança”, “fazer decisivo”). A resposta está
do lado do significante-mestre Estado: perante a provocação do pato que obscenamente abala a
ordem do galinheiro democrata, ele é cancaneado. “Mesmo assim, a Sra. Clinton é uma mulher
de Estado!” enquanto que para Trump é “o protecionismo de um “Estado-Nação” que se torna
obviamente salutar para a vida de toda a humanidade reduzida a um bando de humanos.

Proposição de revisão do Grand Robert de la langue française [Dicionário da


língua francesa] por Ivan Chaumeille

O que significa este encobrimento de duas formas diferentes de fascismo? O esquema


do Pai Morto e as Formas de Segregação podem lançar uma nova luz sobre a situação. É de fato
em torno do “não querer saber nada” no que diz respeito à ideologia do Ideal e à transcendência
do Pai Morto que as transferências sociais estão a ter lugar para novas formas de segregação
mundial.
Como construir uma revolução social e política nos Estados Unidos é a questão crucial
para o mundo de hoje, e não a de pensar que a Sra. Clinton ou o Sr. Sanders, Democratas, seriam
uma “alternativa”. O peso da transcendência permanece enorme nas transferências sociais, e
favorece a predominância dos sistemas binários de pensamento. Um dos efeitos deste peso diz
respeito ao binário “direita/esquerda”, um binário pós-feudal cuja função é assegurar uma ou
outra forma de dominação pelo capital. Este binário está além disso a evoluir na Europa em
direção ao binário “Republicano/Democrático” estadunidense, que deveria fazer abrir os olhos.
Se não for dada prioridade à análise da função social e política do Estado no concreto
da vida, prevalece a confusão. Lênin começa com o livro de Engels, “A origem da família, da
propriedade privada e do Estado” publicado em 1884, e escreve:

O Estado [...] não é portanto um poder imposto do exterior à sociedade; nem é “a realidade da
ideia moral”, “a imagem e a realidade da razão”, como Hegel afirma. É antes um produto da
sociedade numa determinada fase do seu desenvolvimento; é a admissão de que a sociedade está
enredada numa contradição insolúvel consigo mesma, tendo-se dividido em oposições
irreconciliáveis que é impotente para evitar. Mas se os antagonistas, as classes com interesses
econômicos opostos, não quiserem se consumir a si próprios e à sociedade numa luta estéril, há
necessidade de um poder que, aparentemente colocado acima da sociedade, deve desfocar o
conflito, mantê-lo dentro dos limites da “ordem”; e este poder, nascido da sociedade, mas que é
colocado acima dela e se torna cada vez mais estranho a ela, é o Estado [3].

Este ponto de vista tem uma base radicalmente diferente da defendida por Hegel e é de
importância fundamental no que diz respeito à tese desenvolvida por François Châtelet, que é
que o Estado moderno, aquele que ainda hoje nos governa, é o Estado pensado por Hegel.
Assim, o Estado não é nem a realidade da ideia moral, nem a imagem e a realidade da razão.
Isto ressoa no fato de que, para a psicanálise social, a realidade não é transcendência mas sim a
imanência da experiência de transferência social.
O ponto preciso de Lênin é que o Estado é um poder colocado acima da sociedade e que
se está se tornando cada vez mais estranho a ela. A partir disto conclui que a emancipação da
classe oprimida é impossível, não só sem uma revolução violenta, mas também sem a supressão
do aparelho de poder do Estado que foi criado pela classe dominante e no qual este caráter
estranho se materializa [4]. Isto continua a ser essencial hoje em dia e deve ser um ponto de
referência importante. Claro que a questão da “revolução violenta” é assustadora, evocando a
questão crucial do assassinato em massa, e isto é cuidadosamente mantido nos meios de
comunicação social da ideologia dominante. É uma questão de lidar com este problema
fundamental de uma perspectiva revolucionária nos dias de hoje. Irei o propor trabalhando a
partir do conceito de transferência social. É importante que isto continue com Lênin neste
mesmo texto, uma vez que ele se refere diretamente ao desfile de defensores do Estado: “De
acordo com os professores e publicistas pequeno-burgueses e filisteus – que se referem
abundante e complacentemente a Marx! – o Estado tem precisamente o papel de reconciliar as
classes” [5]. Este desfile coloca-nos num beco sem saída no que hoje se chama democracia.
Lênin indica no resto do texto a orientação lançada por Marx:

Segundo Marx, o estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão


de uma classe por outra; é a criação de uma 'ordem' que legaliza e reforça esta opressão,
moderando o conflito de classes. Segundo a opinião dos políticos pequeno-burgueses, a ordem
é precisamente a conciliação das classes, não a opressão de uma classe pela outra; moderar o
conflito é conciliar, não retirar certos meios e métodos de luta às classes oprimidas que lutam
pelo derrube dos opressores [6].

Esta referência à encomenda é bastante interessante. Lacan salienta, e eu a desenvolvi


no contexto do trabalho de transferência social, que a ordem é um nó. É encontrado com Lênin
e Marx, um ponto em comum com Freud e Lacan: há um conflito na base. A forma de lidar
com a questão do conflito é essencial e para Marx, Lênin e Lacan isto é dito por um “não há
relação possível”, ou mais exatamente, e isto diz respeito tanto à clínica psicanalítica como à
questão da política: trata-se de partir do conflito fundamental e criar um novo nó social que não
seja uma reconciliação de contradições. O exemplo do trauma pode lançar alguma luz. A
questão do trauma não passa pela solução da reparação. Algo foi desfeito pelo buraco do
troumatismo13 e é necessário partir de outra base, a do desembaraço, para fazer outro nó. Esta
é uma posição de contrapartida nesta clínica comum de transferência social para o tratamento
de conflitos na política, e a Revolução de Outubro e depois a Constituição da União Soviética
pôs em prática um novo nó. Lênin continua claramente:

Assim, na revolução de 1917, quando o problema da significação e do papel do Estado surgiu


em todo o seu alcance, praticamente como um problema de ação imediata e, o que é mais, de
ação de massas, os socialistas-revolucionários e os mencheviques, todos se derramaram na
teoria burguesa da “conciliação” desde o início e sem reservas [7].

É este ponto crucial que deve ser tido em consideração hoje, a fim de fazer um novo nó,
a partir de outra base que não a da falsa democracia de hoje, a ditadura do Capital. Trata-se

13
Em francês, uma das significações de trou quer dizer “furo”. “Troumatismo” é um trocadilho com os sentidos
das palavras “furo” e “traumatismo”.
portanto de transferência social, uma transferência que passa por diferentes pontos: amor, ódio,
ignorância, deslocamento, transbordamento de afetos, palavras, imagens, sensações corporais,
suposição e atribuição, ocultação e engano.
Escondê-lo, enganá-lo, o engano do funcionamento social capitalista, fenômenos
claramente analisados por Marx na primeira seção do Capital fabricam a transferência social e
é apropriado ver como com a ajuda deste instrumento se pode fazer Revolução, que requer
inversão e abolição, praticada com o instrumento do furo e separação de uma antiga ordem de
nó, instrumento de dominação de um Estado.
Decepção, dissimulação, suposição e a atribuição de gozo são pontos decisivos no que
faz balançar a massa. Como nos podemos desamarrar deste poder colocado acima da sociedade
e que lhe é cada vez mais estranho, sabendo que este poder provém das contradições de classes
irreconciliáveis, das contradições de grupos sociais irreconciliáveis? Desta “não existe uma
possível relação de conciliação” são afirmadas tendências opostas, ambiguidades, propósitos
contrários na transferência social, e é aqui que intervém a questão dos valores, a transferência
de valores, a Wertubertragung de Marx, a transferência dos valores de gozo se for feita
referência a Lacan para este último termo “valores de gozo”.
Noto que em relação ao ponto importante da ideologia do Pai Morto e do Pai Ideal,
Lênin não é cego e nem surdo. Eu tinha salientado a importância deste ponto em relação às
formas de segregação humana e especialmente ao nazismo. Quando Lênin inicia o primeiro
capítulo, o Estado, produto de contradições de classe irreconciliáveis, refere-se a este conluio
entre o Pai Morto e o Pai Ideal, sem os nomear como tal. As primeiras linhas do seu trabalho O
Estado e a Revolução são surpreendentemente estas:

Acontece hoje à doutrina de Marx o que aconteceu mais de uma vez na história às doutrinas de
pensadores revolucionários e líderes de classes oprimidas que lutam pela sua emancipação. Na
vida dos grandes revolucionários, as classes de opressores recompensam-nos com perseguições
incessantes; acolhem a sua doutrina com a mais selvagem fúria, com o mais feroz ódio, com as
campanhas mais frenéticas de mentiras e calúnias. Após a sua morte, são feitas tentativas para
os transformar em ícones inofensivos, para os canonizar, por assim dizer, para rodear o seu
nome com uma certa auréola, a fim de “consolar” as classes oprimidas e mistificá-las; ao fazê-
lo, a sua doutrina revolucionária é esvaziada do seu conteúdo, rebaixada e a sua vantagem
revolucionária é embotada. É nesta forma de “acomodar” o marxismo que se reúnem hoje a
burguesia e os oportunistas do movimento operário. O lado revolucionário da doutrina, a sua
alma revolucionária, é esquecida, reprimida e alterada. Trazemos para a frente, exaltamos o que
é ou parece ser aceitável para a burguesia [8].

A santidade do Pai morto e o seu nome auréola é portanto uma filigrana como uma força
de imagem e significante com a função de silenciar o desejo, aqui o desejo de revolução. Depois
associa sobre a função histórica e a significação do Estado! Uma forma maravilhosa de
inaugurar o colossal trabalho sobre as diferentes formas de segregação, seguindo o padrão do
Pai Morto, a fim de emergir da transcendência que produz o sacrifício. Maravilhosa forma de
pensar a organização humana na relação entre o eixo vertical e horizontal da transferência
social, através do furo, uma vez que é disto que ainda hoje falamos em relação ao que acontecer
no mundo capitalista: a primazia das formas de segregação.
A lucidez de Lênin acerca dos problemas enfrentados pela União Soviética, que
explodiram os apoios ideológicos do Estado e das instituições czaristas, é evidente:

Algo semelhante ao que nos foi dito na nossa infância, nas lições de história, aconteceu ali. Foi-
nos ensinado o que acontece que um povo submete outro e depois o povo que subjugou é um
povo conquistador e o subjugado é um povo derrotado... Se este povo conquistador é mais culto
do que o povo derrotado, impõe-lhes a sua cultura. No caso contrário acontece que é o povo
derrotado que impõe a sua cultura ao conquistador. Não aconteceu algo semelhante na capital
da R.S.F.S.R. [República Socialista Federativa Soviética da Rússia] [9].

Assim, as relações de domínio não são apenas econômicas, mas apanhadas numa
transferência social: nas suas ações, os homens não estão conscientes de que são determinados
pelas suas transferências sociais, as suas transferências de valores que não são necessariamente
econômicas.
A antecipação é clara face ao que vem neste problema de Estado. “O aparelho estatal
em geral: abominavelmente [10] mau, inferior à cultura burguesa” é uma nota escrita na
primeira metade de Dezembro de 1922 para um discurso no X Congresso dos Soviéticos em
Dezembro de 1922, um dos últimos textos de Lênin [11] que ressoa com a problemática do
Estado na obra de Châtelet.
A ligação com o que Lacan indicará no seu seminário “O avesso da psicanálise” [12]
que é de cortar a respiração quando Lênin indica que o estado soviético é “como um estado
operário apresentando uma deformação burocrática” [13]. Não deixará de advertir contra a
burocracia, o papel dos funcionários que atuam fora de uma ligação com o povo, um organismo
acima e fora do povo, possuindo um poder econômico superior e um fator de corrupção. A
questão a ser tratada é sempre esta “Estado como um poder colocado acima da sociedade e cada
vez mais estranho a ela”, que Lênin destacou a partir de Engels e que explicará, em parte, mas
na minha opinião de forma decisiva, a queda da União Soviética.
Esquema 7 — “O Pai Morto” e a Verdade

A questão crucial em relação às formas de segregação diz respeito, do ponto de vista da


transferência social, à ideologia do Pai Morto. É neste quadro que penso ser essencial pensar
no fenômeno stalinista que se seguiu à morte de Lênin. O papel histórico de Stalin é complexo
devido ao seu papel na vitória contra o nazismo, uma vitória que não teria sido alcançada sem
o dom estratégico do Marechal Joukov e a bravura dos homens e mulheres soviéticos. Stalin é
regularmente comparado com Hitler como um déspota sanguinário do século XX, uma tese em
linha com o falso conceito de totalitarismo desenvolvido pela senhorita Arendt.
Não partilho este ponto de vista, o que confunde a análise com uma proposta
historicamente absurda de equiparar o nazismo ao comunismo. Concordo com a análise feita
por Lilly Marcou, que partiu da filosofia poubellicitaire14 e do seu molho Béchamel que
começou a soprar na França em 1977 (a base do molho Béchamel é a farinha concebida para
satisfazer a nobreza no tempo do Rei Sol, e 1977 corresponde à publicação de La Barbarie à

14
Equivocação com a palavra francesa poubelle, que no português significa “lixeira”. O sentido pretendido pelo
autor expressa “lixo publicitário”.
visage humain [A barbárie com um rosto humano]). O nazismo utiliza a experiência científica
e a industrialização do genocídio, esta é a sua marca de fábrica e não tem nada a ver com o
terror stalinista. Concordo com a análise feita por Lilly Marcou, uma investigadora da Fundação
Nacional de Ciência Política:

Mais do que nunca, é necessário um olhar sereno sobre a história, sobre esta história. Evocá-lo,
ressuscitá-lo, julgá-lo é necessário e recorrente para a avaliação do tempo presente, para as
perspectivas do futuro. E, acima de tudo, para evitar a satanização. A tentativa de alguns
historiadores ou cientistas políticos de abordar as experiências do “socialismo real” europeu e
da URSS em particular das posições maniqueístas, levando a uma confusão dolorosa e à
perigosa amálgama do fascismo e do comunismo, leva-nos cada vez mais longe de uma análise
autêntica do passado, de um verdadeiro olhar sobre o presente e de uma possível perspectiva
para o futuro. Não devemos aceitar o inaceitável e, através do estudo não partidário e
desapaixonado, desmantelar as comparações abusivas, mesmo estúpidas, e em qualquer caso
falsas que são feitas entre o nazismo e o stalinismo, entre Hitler e Stalin [14].

No entanto, Joseph Stalin tem uma pesada e séria responsabilidade nesta nauseante
instrumentalização. É mais uma vez a partir da ideologia do Pai Morto que é possível avançar
na análise. Tinha assinalado em 2010 (Seminário realizado na Maison des Sciences de l'Homme
[Casa de Ciências do Homem] em Paris sobre a falta de civilização no século XX, 2009-2010)
a utilização por Stalin do nome de Lênin desde a sua morte para afirmar o seu gozo do poder
pessoal. O seu discurso “Lênin está morto” proferido no II Congresso dos Soviéticos da URSS
(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) em 26 de Janeiro de 1924, ilustra o nó entre o Pai
Morto e a Verdade. Esta Verdade é a da raça proletária, para usar a expressão produzida por
Lacan num outro contexto [15], e Stalin introduz nela o significante “comunista”. Retomo a
formulação do discurso de 1924:

Camaradas! Nós, comunistas, somos pessoas de um tipo especial. Somos cortados a partir de
um pano especial. Somos o exército do grande estratega proletário, o exército do camarada
Lênin. Não há nada superior à honra de pertencer a este exército. Não há nada superior ao título
de membro do Partido cujo fundador e líder é o camarada Lênin. Não é dado a todos ser membro
de um tal Partido. [...] Os filhos da classe trabalhadora, filhos da necessidade e da luta, da
privação e dos esforços heroicos, são aqueles que, acima de tudo, devem ser membros deste
Partido. É por isso que o Partido dos Leninistas, o Partido dos Comunistas, ainda é chamado
Partido da Classe Trabalhadora [16].

Há pessoas de um tipo ou tecido diferente e isso corresponde a uma raça proletária. Em


louvor ao Pai Morto, cada parágrafo do discurso de Stalin será pontuado pela mesma frase
ritual: “Ao deixar-nos, o camarada Lênin recomendou que mantivéssemos elevado e
conservássemos na sua pureza o glorioso título de membro do Partido. Juramos-lhe, camarada
Lênin, que acompanhará com honra a sua vontade”. Este discurso não tem nada em comum
com o autor de “O Estado e a Revolução”, que, além disso, tinha assinalado o perigo
representado pela brutalidade de Stalin no cargo de Secretário-Geral. Esta aliança entre o Pai
Morto e A Verdade produzirá no nó a culpa, julgamentos e assassinatos, terror e confissões.
É este ponto que terá consequências trágicas para as vítimas e marcará após 1956 e a
destituição do ídolo Khrouchtchev, um furo, um trauma na transferência mundial para a URSS
“comunistas no poder mataram outros comunistas” como se não fosse por nenhuma razão. Isto
muda a solidez da transferência que Lênin tinha forjado para o Partido no eixo vertical, no início
da Revolução de 1917. O grande significado do ato de Lênin foi o de articular o eixo vertical
com o eixo horizontal. Ele situou no eixo horizontal do povo a notável afirmação concreta de
fazer anéis entre cada componente do povo: fazer anéis concretos de solidariedade no povo
soviético.
É aqui que a tese de Lênin encontra a topologia de Lacan. Menciono este ponto porque
noutro contexto, em 1976 em “O Sinthoma”, um seminário que marca uma nova topologia,
Lacan sublinha o fato de Lênin indicar como uma linha, uma linha reta, pode ser torcida. Mas
aqui é uma questão da lógica dos furos e, portanto, das transferências de valores que mencionei
na terceira e quarta partes desta série. Lacan assinala em 1977 [18] como do Tudo, peneirado e
peça por peça, o que conta é saber se uma peça tem ou não um valor de troca. Um indivíduo é
uma peça neste Tudo peneirado de furos. Um indivíduo sozinho não existe, mas a sua existência
liga-se a outro através da ferramenta topológica do furo. É neste contexto que um indivíduo
pode tornar-se, num diferencial, um valor de troca e é uma ferramenta essencial para a análise
relativa ao futuro.
Esquema 9 — Os esquizes

A clivagem entre o capitalismo e o comunismo se baseia neste fato. O capitalismo, por


todos os meios, joga de forma assassina no eixo das diferenças para separar os indivíduos de
forma a dividir competitivamente e favorecer o lucro, a propriedade do mais-valor. O
comunismo, segundo Lênin, joga no nó dos anéis entre os indivíduos, os proletários.
Esquema 10 – Os anéis de Lênin

O que foi abalado pelo trauma do terror estalinista e depois pela inconsistência política
de Khrouchtchev assumiu um tom diferente no início da era Brejnev com um regresso marcado
a Lênin e estes laços evocados. No entanto, a predominância do discurso acadêmico aos
comandos, o Saber aos comandos, a existência do poder acima da sociedade, levou a uma
situação em que a dialética entre a Garantia do Estado no eixo vertical e os anéis de
solidariedade foi fragilizada: uma economia subterrânea funcionava com outros valores.
Isto tornou-se mais agudo na última parte da era Brejnev, quando este último, doente,
assumiu de fato a função do Pai Morto, incapaz de manter um limite ao abuso do gozo por parte
de alguns membros do Politburo. A força de valor de troca capitalista estava repleta de lacunas,
os furos, especialmente entre alguns líderes do Partido Comunista que desejavam desenvolver
seus poderes de valores de troca pela restauração da propriedade privada e sobretudo da
transmissão da propriedade privada familiar transmitida: um retorno trágico à inversão dos
valores iniciais levados a cabo por Lênin na sua análise da obra de Engels, A Origem da Família,
da Propriedade Privada e do Estado.
O efeito da queda da União Soviética pode ser visto hoje em dia, a posteriori, como uma
catástrofe, quanto mais não seja devido à implantação de um capitalismo mundial desenfreado
e sem limites que, sob o impulso dos Estados Unidos da América, conduz, devido a esta
ausência de limites, à destruição da humanidade. Longe de manter a demonização desta
experiência soviética, que é muito curta em termos históricos, é apropriado, sem,
evidentemente, tomar um modelo, apreender os avanços sem precedentes na transferência
social coletiva que foram produzidos em certos momentos, bem como os avatares e as tragédias.
A primeira frase do prefácio de Edgar Morin no seu livro De la Nature de l'URSS [Da
natureza da URSS] tem hoje uma ressonância diferente: “A aventura da URSS é a maior
experiência e a maior questão da humanidade moderna. O comunismo é a grande questão e a
principal experiência da minha vida” [19]. Esta experiência, que ainda tem um poder importante
na evolução do mundo atual, pode ser uma fonte de análise e reflexão sobre a questão da forma-
Estado a pôr em prática a fim de romper com o capitalismo. Lênin conseguiu estabelecer uma
forma-Estado a partir de uma base que não o sistema dominante da época, numa escala
impressionante de poder.
O que certamente me parece interessante é poder fazer uma análise séria e concreta dos
vários avanços e recuos que tiveram lugar. Claro que o discurso acadêmico ligado à filosofia
de Hegel pode ter estado aos comandos, mas todo um lado não hegeliano diretamente derivado
de Marx e Lênin também teve múltiplos efeitos, experiências inovadoras no campo da
imanência modificaram de forma duradoura as relações humanas inventivas. Houve certamente
o desenvolvimento da filosofia morta de Stalin, catastrófica, um Estado por vezes hegeliano,
um Estado-sabedor mas que ao contrário do mundo liberal, nem sempre permaneceu numa
binaridade rígida. Este aspecto, proveniente dos soviéticos, a relativa igualdade social, a
satisfação das necessidades humanas de alta qualidade em matéria de educação, habitação,
saúde, cultura, permitiram o desenvolvimento ou a esperança de uma mudança de mentalidades
em relação ao capitalismo, uma transferência social baseada em algo que não seja o mais-valor
e o mais-de-gozar capitalista.
Ao contrário do que é transmitido no pensamento ocidental dominante, proponho que
os avanços produzidos na União Soviética sob o impulso de Lênin sejam postos a funcionar
primeiro e depois no período pós-stalinista até ao final dos anos 70. As relações sociais foram
construídas numa base que não a capitalista e esta base se deu em muitos campos de
perspectivas de desenvolvimento não-binário na transferência social.
A contribuição de Lênin é de qualquer forma inevitável para pensar seriamente sobre
uma base que não o capitalismo de hoje. O importante não é tomar esta contribuição de uma
forma ideológica mas prática, rompendo com toda a transcendência, ou seja, rompendo “[...]
um princípio colocado tanto como fonte de toda a explicação e como uma realidade superior”
[20]. É do campo da imanência para construir um policomunismo diferencial que vou concluir
no sexto artigo dedicado à análise do Nuit Debout! O estudo das perspectivas revolucionárias.

Notas

[1] V. I. Lénine, De l’État. Conférence faite à l’université Sverdlov le 11 juillet 1919, [en
ligne] https://www.marxists.org/francais/lenin/works/1919/07/19190711.htm.

[2] Michel Clouscard, Le capitalisme de la séduction, Éditions Sociales, 1981.

[3] Lénine, L’État et la Révolution, Août-septembre 1917, in Œuvres, Tome XXV, p. 418-
419, Éditions Sociales, Paris — Éditions du Progrès, Moscou, 1970.

[4] Ibid., p. 420.

[5] Ibid., p. 419.

[6] Ibidem.

[7] Ibid., p. 419-420.

[8] Ibid., p. 417.

[9] Œuvres, op. cit., Tome XXXIII, pp. 293-294.

[10] Ce mot - abominablement - était en caractères gras dans l’édition des œuvres complètes
de Lénine.

[11] « Plan d’un discours non prononcé au Xe Congrès des Soviets de Russie », Œuvres, tome
XXXVI, p. 600 (publié pour la première fois le 27 septembre 1925, dans la Pravda n° 221).

[12] Jacques Lacan, L’Envers de la Psychanalyse, Séminaire XVII, Paris, Le Seuil, 1991, p.
237.

[13] Œuvres, op. cit., tome XXXII, p. 17.

[14] Lilly Marcou, Une enfance stalinienne, PUF, Paris, 1982, p. 192.

[15] L’Envers de la Psychanalyse, op. cit., p. 208, séance du 10 juin 1970.

[16] Joseph Staline, « Lénine est mort », in Textes, tome 1, introduction de Francis Cohen,
Éditions Sociales, Coll. « Essentiel », Paris, 1983, p. 97.
[17] Ibidem.

[18] L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, Séminaire XXIV, séance du 14 décembre
1976 (inédit).

[19] Edgar Morin, De la Nature de l’URSS, Fayard, Paris, 1983, p. 9.

[20] François Châtelet, Les années de démolition, Éditions Hallier, 1975, Paris, p. 263.
DA CIA À MÁFIA, DE HIROSHIMA À FUKUSHIMA, DE FUKUSHIMA À
FUKUYAMA, O CHEIRO CAPITALISTA DO FIM DA HISTÓRIA RESSOA COM
NAGASAKI, TRIUNFO DO ESTADO PÓS-NAZI

No nosso mundo acidentalizado, estamos à beira de um colapso, por enquanto ainda


latente. Mas as larvas estão agora eclodindo a uma velocidade capitalisticamente exponencial.

Paul Éluard — Liberté, j’écris ton nom [Liberdade, escrevo teu nome]
Poema ilustrado por Fernand Léger (1881-1955)
Sérigraphie en couleurs par Roger Klein. Paris, Seghers, [s.d.] Dépliant 1115 x 290.
© Tous droits réservés

Das eleições estadunidenses às eleições francesas, das situações sociais divididas às


vidas competitivas em progresso, migrante ou estagnado, dos destinos humanos esmagados aos
potenciais de vida sufocados, das injunções para viver em conformidade com a falsa democracia
às exigências do bom senso consensual, das propagandas visíveis e invisíveis que condiciona a
nossa vida quotidiana aos governos que os organizam impunemente, como podemos continuar
nesta recusa duvidosa de ver a catástrofe que se avizinha?
O século XX foi marcado por três grandes rupturas éticas: o nazismo de Hitler, a
ditadura da Propaganda Político-Econômica-Midiática inventada pelo sobrinho duplo de Freud,
e finalmente Hiroshima-Nagasaki. Nestas três rupturas, o papel dos Estados Unidos, a sua
ideologia e as suas práticas assassinas de massa é evidente.
Estas rupturas ocorreram na lógica capitalista, aquela que Marx e depois Lênin tinham
claramente identificado: roubo e pilhagem através da organização do caos e da guerra. Os
efeitos destas rupturas prosperam no século XXI no modo capitalista exponencial que é o seu
hoje e organizam um fascismo globalizado, ou seja, um fascismo liderado pelo complexo
militar-industrial estadunidense. Este fascismo é um fascismo da vida quotidiana através da
ditadura da função capitalista do dinheiro nesta civilização de compra e venda para a obtenção
e exploração de lucros, bem como um fascismo militar na vida internacional. Somos apanhados
por esta transferência fascista bífida e o seu não-sabido.
O que faz o fenômeno de Nuit Debout! [Em pé a noite inteira!] neste navio capitalista?
Nos cinco artigos anteriores insisti no que poderia ser avançado a partir do acontecimento
político que foi e, sobretudo, a partir do que ainda poderia assinalar: questões sobre o Estado,
questões sobre a organização de uma recusa e o estabelecimento de uma dinâmica de vida social
a partir de outra base. É, por outras palavras, um sinal no sentido de uma Revolução social e
política.
Trata-se portanto de poder fazer uma recusa radical, uma ruptura radical em todas as
áreas da organização social e da forma de lidar com os problemas, incluindo os científicos, e
este é um ponto essencial que Marx prefigurou na sua obra, partindo de uma inversão nos modos
de relação com o saber, para fazer, para produzir. A partir daí, coloca-se a questão: como
organizar uma rejeição em massa que não esteja apenas no domínio do protesto ou da
manifestação, mas que possa ter o alcance de algo sensível que ponha concretamente um ponto
final no funcionamento do capitalismo? Como podemos criar uma outra vida social hoje, uma
outra vida, sem cair de novo num Além religioso ou num amanhã mais brilhante?
A abolição pode sempre ser decretada a partir do topo de uma hierarquia estatal, o
importante é que o que é abolido já não deve ter qualquer valor em termos de funcionamento
social, que é a condição para a sua verdadeira abolição. Trata-se, portanto, de pôr em marcha
valores sociais que fazem o povo comum funcionar de uma nova forma e provocar o fim do
funcionamento capitalista.
É necessário mudar radicalmente as bases da construção social comum a nível mundial.
Isto é crucial sob pena do mesmo nome: trata-se de partir de lógicas e práticas a-capitalistas
plurais que colocam o comum em comum e trabalham em conjunto para construir poli-
comunismos diferenciais. É evidente que a lógica capitalista liderada pelos Estados Unidos da
América é mortal para a humanidade em diferentes registros, tal é o significado da minha rima:
“Da CIA à Máfia, de Hiroshima à Fukushima, de Fukushima à Fukuyama, o cheiro capitalista
do fim da história ressoa com Nagasaki, o triunfo do Estado pós-Nazi”.
As transcendências assassinas

A questão da função social do Estado é essencial. A importância da filosofia Hegeliana


no que se poderia chamar o modelo do Estado moderno tem sido salientada há várias décadas.
François Châtelet analisou este fenômeno de uma forma clara e chamou-lhe maravilhosamente
“o Estado sábio” [1]. O Estado moderno é o Estado hegeliano, ou uma certa ideia de servidão:
“A humanidade foi libertada menos da servidão do que pela servidão” escreve Georg Friedrich
Wilhelm Hegel na sua Filosofia da História. Ele despedaça os vivos: “A Igreja apoiou a luta
contra a barbaridade da sensualidade bruta de uma forma tão bárbara e terrorista” e o terror da
vida após a morte foi necessário para “embotar o espírito desenfreado e domá-lo até se tornar
calmo”, escreve novamente.
Há uma “falha” no traje da filosofia da história que guia o Estado moderno e torna
necessário o terror, um terror baseado na transcendência. O que é ignorado da foraclusão na
filosofia de Hegel é o assassinato do outro. A anedota do filósofo ao ver passar o cavaleiro
Napoleão na sua cidade de Jena e exclamando ter visto o Espírito a cavalo, diz muito sobre a
fenomenologia ligada a ele.
Na sua obra dedicada à filosofia de François Châtelet, Gilles Deleuze começa com um
ponto essencial: a função da transcendência. Depois de ter sublinhado que o que distinguia
Châtelet era a sua forma de desafiar Deus e toda a transcendência. “Todas as transcendências,
todas as crenças num outro mundo, ele chama-lhes ‘outrecuidances [arrogância/atrevimento]’”
[2]. Cito o excerto da obra Les années de démolition [Os anos de demolição] escolhida por
Deleuze nesta ocasião devido à força do texto e à sua atualidade ardente:

Em nosso jargão de filósofos, um princípio que é simultaneamente fonte de toda a explicação e


uma realidade superior, chamamo-lo de transcendência. A palavra é bonita e eu a acho
conveniente. Os arrogantes, grandes ou pequenos, desde o líder do pequeno grupo ao Presidente
dos Estados Unidos, desde o psiquiatra ao CEO, funcionam com transcendência, como o
vagabundo de vermelho. O Deus medieval se dispersou, sem perder a sua força e profunda
unidade formal: a Ciência, a Classe trabalhadora, a Pátria, o Progresso, a Saúde, a Segurança, a
Democracia, o Socialismo – a lista seria demasiado longa – são todos avatares disto. Estas
transcendências tomaram o seu lugar (isto é, ainda lá está, omnipresente), que exercem com
ferocidade crescente as suas tarefas de organização e exterminação [3].

Este extrato é de extrema importância. Um significante trazido a esta função de


transcendência pode funcionar de uma forma assassina, independentemente das intenções da
Razão ou da Verdade. Este significante assume um valor transcendente e comanda
independentemente das condições subjetivas ou sociais reais. Isto diz respeito a todas as
instituições e obviamente também à Psicanálise. O Nome-do-Pai, o Significante, a chamada
Psicose para retomar temas que são trabalhados nas nossas Oficinas Práticas de Psicanálise
Social pode assumir esta função assassina ligada à transcendência e esta é infelizmente a bênção
ordinária das Igrejas ou capelas psicanalíticas.
Este extrato selecionado deverá poder servir como ferramenta. É uma questão de
identificar e estudar, longe de uma lógica de prazer da denúncia de uma falha nos outros, como
podemos deslizar, nas nossas múltiplas práticas e teorias, para estes funcionamentos “à golpes
de transcendência” e há muitas oportunidades para o fazer. Isto faz parte da nossa vida diária,
da nossa transferência diária para a vida social, inclusive para as coisas ditas banais,
especialmente no primeiro grupo social que é a família. É uma questão de compreender como,
em política, uma palavra como República pode, no quadro do Estado ocidental moderno,
funcionar como uma teologia secular baseada na transcendência e não na imanência. Somos,
portanto, facilmente apanhados em mudanças no sentido de transcendências e das formas de
negação de homicídio a ela associadas.
O Estado, dirigido por peritos, administra um saber essencialmente burocrático, não
relacionados com práticas sociais concretas e isto pode ter efeitos devastadores em diferentes
áreas da vida social. Do mesmo modo, a teologia da República, desde o período colonial até à
guerra da Argélia, da guerra da Argélia até ao atual período pós-colonial, suporta esta
ferocidade sublinhada por Châtelet. O Deus medieval se tornou o Deus que tem o direito
absoluto de matar por causa da propriedade em nome de uma transcendência precisa. Ele é o
paradigma transferencial de muitos dos assassinatos e guerras atuais.
Há um importante acréscimo a fazer às críticas ao Estado hegeliano e à sua forma
totalizante. François Châtelet, em 1979, faz a suposição de um furo na profecia hegeliana do
fim da história. “Esta última [4] será caracterizada pelo aparecimento do Estado mundial, a fase
final e uma promessa de transparência; entretanto, grandes guerras internacionais serão
desencadeadas, produzindo sucessivas sínteses territoriais que conduzirão à síntese final” [5].
Ao contrariar o cálculo ilustrado pelo compromisso de Kojève como “conselheiro do Príncipe”
[6], ele parece, Châtelet indica, que entretanto “se estas guerras tiverem de fato lugar” [7], “há,
pelo contrário, uma multiplicação de soberanias” [8], o estabelecimento de “territórios de gestão
que se sobrepõem, se sobrepõem parcialmente, interferem, mas permanecem heterogêneos uns
com os outros” [9].
O importante é o seguinte:
A criação destas múltiplas instituições estatais, para-estatais privadas, mas reconhecidas de
direito ou de fato como “de utilidade pública”, por vezes maciças, por vezes aparentemente
modestas, que regulam e constrangem, reintroduz uma disparidade de ordens digna do que é
atribuído aos regimes “feudais”, com a diferença de que todos, potencialmente, estão sujeitos a
elas [10].

Porque é que isto é importante? Há nesta análise de Châtelet os inícios do que podemos
analisar hoje: o retorno de poderes feudais correlacionados com a transcendência assassina, que
funciona como o feroz Deus medieval. O poder se torna cada vez mais disputado na sua
hierarquia e modo de funcionamento no atual regime econômico capitalista, o que coloca em
tensão o múltiplo e o único do imperialismo americano. Assim, existe uma lacuna, um furo na
concepção do Estado mundial e os valores são impulsionados para dentro dele para funcionar,
e o que tem acontecido desde o final dos anos 70 é a globalização progressiva do valor Business
[empresarial/negócios].
“A propagada é o órgão executivo do
do governo invisível”
(E. Bernays, Propaganda, 1928)
Para uma revisão do Grand Robert
de la langue française
© I. Chaumeille pour L'Airétiq. Avril 2017

Como salientei na oficina da APPS (Ateliers Pratiques de Psychanalyse Sociale


[Oficinas Práticas de Psicanálise Social]) deste ano sobre o valor: este ponto sobre a ordem
estatal se cruza de perto com o nazismo. Alfred Rosenberg censurou a Revolução Francesa por
ter quebrado uma ordem hierárquica no poder de Estado e a associou ao valor do “sangue”. Os
nazis estão de fato a tentar fazer funcionar esta ordem feudal, que liga o poder à transcendência
assassina, à questão da herança e da propriedade privada e que tem a especificidade de fazer
funcionar os “valores de raça e do sangue” na segregação social ao ponto de incluir A Ciência.
A minha tese é que ainda estamos no pós-Nazismo, a era pós-Nazi, e isto é muito grave
na transferência social que produz. Num outro registro, mas diretamente relacionado com o
anterior, o poder da máfia intervém através da CIA no governo dos Estados Unidos e no seu
rescaldo nos Estados bernianos. Este poder faz igualmente funcionar esta ordem feudal, familiar
e transcendente do Godfather [Deus pai]: há ofertas que não podem ser recusadas; assim seja!
Na transferência produzida pelo capitalismo, às formas de negação do assassinato ligadas à
transcendência, junta-se a transferência desta ordem feudal feroz. É portanto necessário partir
de uma base diferente, e na história há o que foi impulsionado por Lênin e a Revolução de 1917,
que é geralmente chamado comunismo [11].

A questão dos valores comunistas

Começarei com a contribuição de Alain Badiou sobre a Ideia do Comunismo [12] que
tem o mérito de apresentar um significante essencial para a sobrevivência da humanidade, o do
comunismo. Por exemplo, em “A Hipótese Comunista” [13] ele sublinha o fato de que teria
sido apropriado lidar com o Terror atribuído a Stalin numa perspectiva revolucionária e não
como fez Khroutchev. Isto é essencial porque apoiou uma ideologia que permitiu que as
filosofias liberais proliferassem, seja no molho berniano ou no molho bechamel, não importa.
A referência ao comunismo, comum na Europa liberal ou na América do Norte, tornou-se
negativa ou foi rebaixada para uma utopia, enquanto que no resto do mundo não é esse o caso.
Contudo, propor uma filosofia do comunismo tem, na minha opinião, os seus limites,
que estão ligados à tomada de ideias como base. Já o sublinhei nas minhas críticas à filosofia
psicanalítica de Žižek: é necessário partir do primado da prática social [14]. Este ponto me
parece essencial e diz respeito à relação com a filosofia de Hegel, mais uma vez. Badiou deixa
isto claro numa nota de rodapé:

Digamos que há duas formas de salvar a Ideia do Comunismo na filosofia atual: renunciar a
Hegel, dolorosamente, a propósito, e ao preço de repetidos exames dos seus textos (é o que eu
faço), ou propor um Hegel diferente, um Hegel desconhecido, e é isso que faz Žižek a partir de
Lacan (que foi ao longo da sua vida, Žižek dir-nos-á, primeiro explicitamente, depois
secretamente, um magnífico hegeliano) [15].

Partindo de Hegel conduz a um impasse em relação a uma prática revolucionária e à


proposta de Alain Badiou de um deslocamento “para os territórios especulativos do meu amigo
Slavoj Žižek” [16], e pensar: “esclarecedor para formalizar o funcionamento da Ideia em geral,
e da Ideia Comunista em particular, no registro das três instâncias do Sujeito segundo Lacan: o
real, o imaginário e o simbólico” [17], não assenta em nenhuma prática clínica social, individual
ou coletiva. Isto conduz à invalidação do ponto central carregado por Marx, a História: “Será
então acordado que a História tem apenas uma existência simbólica” [18].
Isto talvez explique o que é revelado na entrevista em inglês dada por Alain Badiou na
altura da vitória de Donald Trump [19], um discurso baseado na transcendência, fora e dentro,
o retorno do passado, o marco do para além, uma evocação do novo fascismo muito abaixo das
formulações de Pasolini sobre a questão e, finalmente, um apelo para apoiar Sanders na
construção de uma alternativa. O único ponto possivelmente revolucionário na sua entrevista é
que ele insiste que a questão da propriedade privada deve ser questionada.
A tarefa hoje em dia não é construir alternativas – a sedução da revolução cidadã é do
mesmo tipo – mas sim partir de uma base diferente para dar a volta ao desastre atual e construir
uma vida social e política diferente. Trata-se de partir de uma base diferente da democracia
acidentalizada, democracia formal no processo de decomposição, uma expressão cada vez mais
concreta do novo fascismo descrito por Pasolini.
Esta última pode nos dar chaves se conseguirmos sair de uma lógica mortífera.
Entrevistado por Jean Duflot, pouco antes do seu assassinato, ele já indica a sua lucidez
antecipada a partir da pergunta: “Como marxista, parece-lhe suficiente se limitar a estabelecer
a nomenclatura das pistas, os sinais de alerta de uma catástrofe mundial?”. Ele responde:
“Marxistas ou não, estamos todos envolvidos neste fim de mundo. Nem a sociedade nem Édipo
resolveram o mistério da sua existência. Olho para a face sombria da realidade”.
Mantenho, contra os psicopata-logias de todas as riscas, que a realidade é a nossa
experiência transferencial, transferencial social no contexto coletivo. “Eu olho a face sombria
da realidade porque o outro ainda não existe”. Este é um ponto muito importante: na
transferência global, há um x desconhecido e, de momento, apenas a face sombria da
transferência está lá e envia o mundo acidentado ao pecado, à culpa.
Mas acima de tudo Pasolini introduz a questão dos valores:

Há alguns anos atrás pensei que novos valores iriam emergir da luta de classes, que a classe
trabalhadora iria levar a cabo a revolução e que esta revolução iria gerar valores claros. A justiça,
a felicidade, a liberdade. Mas primeiro fui trazido de volta à realidade pelas revoluções russa e
chinesa, e depois pela cubana. Todo o otimismo feliz e incondicional era agora proibido para
mim. Além disso, atualmente, o neocapitalismo parece tomar o caminho que coincide com as
aspirações das massas. Tanto que a última esperança de uma renovação de valores através da
revolução comunista desaparece. Esta esperança se tornou utopia, pelo menos em mim. Para os
jovens é talvez diferente, os jovens talvez tenham redescoberto a esperança.

A constatação de Pasolini é amarga: os valores do capitalismo parecem ter ganho, por


causa de um encontro com aquilo que seriam as aspirações das massas e por falta de afirmação
dos valores do comunismo.

Partir de uma base outra: construir imediatamente o comunismo

A contribuição de Marx é considerável e indispensável para começar a partir de uma


base outra. Inaugurou um novo movimento que quebrou com a tradição na prática da elaboração
científica. François Châtelet diz o seguinte sobre o marxismo:

O marxismo é de fato uma nova filosofia, uma concepção original da realidade. Não é, contudo,
como Jdanov, o pensador oficial do stalinismo, uma ontologia. Não tem conteúdo doutrinário;
visa provocar um compromisso radical; determina uma conduta; não é, no entanto, da ordem de
crença. As suas extensões éticas não implicam de forma alguma que as suas justificações ou
fundamentos sejam de ordem moral [20].

A base não é a ontologia, doutrina, crença ou moralidade, e isto faz uma ruptura
heterodoxa com a civilização dominante no mundo ocidental que teve origem do cristianismo
[21]. É também importante compreender que o marxismo

é científico [...] define a afirmação científica - contra a afirmação vulgar, contra a afirmação
utópica - como uma crítica realista ao discurso que credita como real o jogo das aparências. A
este respeito, inaugura uma nova concepção do trabalho científico [22].

Há vários fatores concretos que podem explicar este novo desenvolvimento no modo de
elaboração de saber e de prática revolucionária. O primeiro fator é que Marx coloca a sua
construção científica em tensão com a construção poética, que ele próprio enfatiza [23]. O
segundo fator é que é sensível, hipersensível à transferência social, à vida social e à sua
construção. Uma pista para isto é-nos dada por François Châtelet numa frase extraordinária:

O Capital é uma crítica à economia política. O termo “crítica” não deve ser entendido nem no
sentido kantiano nem no sentido voltairiano. A crítica é menos sobre o texto e os seus
argumentos do que sobre a realidade histórica que o produz como verdade, ou seja, como uma
máscara e um álibi [24].

Isto significa claramente que, graças à análise de Marx sobre a transferência social, a
crítica que é sempre fundamental na construção de um saber deve se concentrar principalmente
na realidade histórica, ou seja, a transferência histórica, que produz esta crítica como verdade.
Esta verdade é tanto uma máscara como um álibi: é o produto da transferência histórica que
carrega valores que funcionam no social, e com a verdade vêm as funções de máscara e da
culpa, o discurso que fornece um álibi para uma culpa. Basta ler “O Capital” para verificar e
implementar esta análise transferencial de Marx nos planos social, político e histórico.
Estes dois fatores, a relação com a poesia e a transferência social, são decisivos na forma
como a assunção do saber científico e psicanalítico é alterada. O que extraio do ensino de Lacan
pela proposição “Marx é um precursor da psicanálise” copula com outra proposição “Marx é o
primeiro analista da transferência histórica e social”. Este é o ponto determinante e explica as
minhas observações anteriores: o conceito de transferência social e de Wertübertragung são
inescapáveis para apreender o funcionamento da civilização atual e, sobretudo, as condições
históricas que permitem a produção de atos revolucionários.
Isto lança, portanto, luz sobre as estratégias a serem construídas. Também lança luz
sobre os obstáculos. Se estamos perto de uma catástrofe, isto não diz apenas respeito às formas
de governar, mas também às atuais abordagens concernentes a elaboração do de saberes e,
acima de tudo, de práticas. Esta catástrofe diz diretamente respeito ao que acontece nas relações
sociais diárias. Por exemplo, emerge da leitura de “O Capital” que muitos pensamentos que
acreditam como natural um certo número de fatos que escondem a lógica das relações de
produção, lucro e exploração.
Assim, parece natural que a produtividade seja gerada pelo capital. Parece igualmente
natural que o que é produzido pelas pessoas que trabalham seja forçosamente sob a forma de
mercadorias e que estas últimas tenham evidentemente um valor de mercado. Marx parte de
uma outra base na relação com o saber para mostrar que isto não é natural e que é uma forma
social nascida do modo de produção capitalista.
Esta crítica de Marx é essencial para contrariar a mudança aparentemente natural para a
mercantilização da vida social. Diz respeito ao nosso modo de produção de saber e à nossa
relação com a verdade, pontos que concernem diretamente respeito à análise da transferência,
incluindo a transferência psicanalítica. Da mesma forma, parece igualmente natural que
ocorram assassinatos entre seres humanos. Eu indiquei que muitos pensamentos – a nossa
mente, portanto – acreditam como natural um certo número de fatos sociais e que por baixo
desta naturalidade está a lógica das relações de produção.
As formas de negação dos assassinatos produzidas pelas relações sociais impostas pela
circulação dos valores capitalistas fazem assim parecer natural o fato social de que assassinatos
ocorrem entre seres humanos. O homicídio não é uma coisa natural, ao contrário do que pensam
alguns adeptos da pulsão de morte pensam, outra forma de transcendência a ser posta a trabalhar
no campo psicanalítico e social. Esta concepção de transferência histórica e social, transferência
de valores, tem consequências muito importantes para a compreensão da lógica de momentos
de ruptura no século XX e da nossa atual relação com o Estado, que eu chamo pós-Nazi. Esta
transferência de valores nos permite analisar os efeitos do que, da minha leitura de Lacan, foi a
condição para o reagente nazi aparecer: a universalização do tema da Ciência e das ideologias
conservadoras do Édipo, o Pai Ideal e o Pai Morto. Permite-nos igualmente descolar da
berniseria pegajosa que alimenta as gargantas midiáticas, berniseria que tanto inspirou
Goebbels.
Estes últimos elementos transportam valores que funcionam nas relações sociais e é
importante compreender o impacto do alcance da primeira seção do Livro I de “O Capital”, que
é, segundo Châtelet, uma teoria da civilização baseada na teoria dos valores. A forma como
produzimos no social e como isto é reconhecido tem uma consequência na forma como nos
vemos valorizados ou desvalorizados, por exemplo. As relações sociais ligadas ao nosso modo
de produção econômico têm um efeito nas nossas relações com os nossos semelhantes e, dentro
dos nossos semelhantes, com as pessoas que suportam uma diferença e, portanto, em última
análise, na questão essencial das nossas relações de segregação.
Como indiquei nas Oficinas da APPS consagradas este ano ao valor. “O Capital” e a
obra de Marx na sua totalidade, tratam das relações que são construídas entre os seres humanos
na sua vida social e dependem das relações de produção. Considerar a contribuição de Marx
desta forma tem múltiplas consequências: permite-nos estabelecer outra análise da economia
para além daquelas veiculadas pela economia política clássica, capitalista e a ortodoxia
marxista; provoca uma ruptura com a visão estatal hegeliana e modifica a nossa relação entre a
teoria e a prática: a teoria está sempre imersa nas nossas diversas práticas sociais, e neste
quadro, esta teoria, na maioria dos casos, “a independência que reivindica, é apenas uma forma
de justificar, como se por um ‘suplemento de alma (ou de discurso)’, o poder vige (ou o outro
poder que é anunciado)” [25]. Para continuar a indispensável crítica realista orientada por Marx,
evocarei a minha prática psicanalítica e psiquiátrica.

Não há doença mental mas sim uma problemática social no psiquismo

Eu tinha definido um eixo revolucionário no campo do que se chama saúde mental:


“Não há doença mental mas sim uma problemática social no psiquismo” [26]. Esta orientação
é decisiva para a apreensão médica e psicanalítica do sofrimento na mente. Esta mente diz
respeito ao corpo, às palavras, bem como à imagem que são tiradas nas relações sociais e,
portanto, na transferência social. Na mente há conflito social, conflito com o socius, o
companheiro, o companheiro, o camarada, o outro – “Eu sou um outro” – e muitos outros
conflitos. Esta abordagem ao sofrimento na mente é, evidentemente, a consequência do que
disse anteriormente sobre as ligações lógicas que são fabricadas entre a mente, o natural e as
relações sociais de produção.
Também aqui, a transidentidade é paradigmática. Os psiquiatras e psicanalistas nas
correntes transcendentais e, portanto, muitas vezes presunçosos, apaixonados pela corrente
dominante – Châtelet falou de outrecuidants para os praticantes da transcendência – aplicaram
à problemática transgênero o conceito falso, vago e fantasmagórico de psicose, e isto me parece
ser bastante exemplar da problemática assassina encontrada na transcendência, que é um
obstáculo à vida humana e à expressão do seu potencial criativo. As condenações das
transformações exigidas pelo povo transgênero tiveram este “diagnóstico”, digno no final da
elaboração do personagem Diafoirus, como suporte. O que é impressionante é a ausência de
argumentação clínica, uma ausência que atesta um diagnóstico que se tornou moral e repressivo,
por falta de considerar a suposição como a força motriz central da transferência e de atribuir
um gozo a outro, um preconceito de uma ordem moral que se baseia na frase de Lacan de 1958
na qual ele usa o termo “gozo transexualista” em relação ao caso Schreber, o paradigma da
chamada psicose.
As doutrinas psicanalíticas ainda são tributárias da ordem reacionária: a ordem edipiana,
a ordem simbólica, a ordem do significante e da letra, a ordem do Pai Ideal e do Pai Morto.
Muitas vezes dão testemunho de uma lógica segregativa e sectária bem destacada por Lacan,
oscilando entre uma prática religiosa do texto e um capricho que revela o que se ganha com a
mistificação deste tipo de psicologia transcendental que faria acreditar benevolentemente na
oposição entre a fala/violência, cultura/barbárie, entre outros exemplos.
François Châtelet descreveu em 1970 “a filosofia dos professores”, que ainda hoje é
relevante e que poderia ser transposta para a “psicanálise dos professores”, em muitos
exemplos, uma vez que o discurso universitário reina ali, na Universidade é evidente, mas
também nas Escolas ou Sociedades dominantes. O seguinte excerto me parece exemplar na sua
aplicação à psicanálise:

O que resta é isto: as frases, extraídas aqui e ali, tornam-se a expressão do saber, desse saber
que, além disso, reivindica como a sua grande universalidade e legitimação integral. Na prática
da citação, imposta pela própria natureza do gênero que a instituição e a tradição impõem,
manifesta-se uma vigarice [...]. Citando, indiferentemente e da mesma perspectiva, Platão,
Descartes, Robespierre, Marx ou Nietzsche Amiel, Bergson ou Simone Weil, também - é impor
ao leitor, ao ouvinte (que nem sequer tem o lazer de ser bom e de ser elogiado), a banalidade
tranquilizadora onde tudo é igualado, onde tudo é trocado, em contingência. O dicionário das
“belas citações” dos “grandes autores” – as páginas cor-de-rosa do academismo filosófico –
coloca-o no seu verdadeiro nível: o do ecletismo [27].

A frase final é muito atual. Châtelet evoca a função da filosofia e “o que ela é no
presente, na sua expressão escolástica e acadêmica: a legitimação ao mesmo tempo que o aroma
espiritual da ordem burguesa” [28].
Estas correntes dominantes da psicanálise marcam claramente esta característica de
“legitimação bem como o aroma espiritual da ordem burguesa” (ver o excelente artigo de Diane
Scott no Club Mediapart, 15 de Março de 2017: “Sr. Miller, volte a dormir na sua classe”). O
enfoque apenas na extrema-direita nas eleições presidenciais francesas é o último sintoma,
justificando alegremente a vitória da falsa democracia e de outra variante fascista da extrema-
direita: o fascismo ligado aos meios de gozo que é o dinheiro, um fascismo que mata muitas
pessoas todos os dias neste contexto.
Estas correntes dominantes são marcadas pela transcendência, aquelas – diferentes – de
Freud e de Lacan, e não é surpreendente que aqui novamente a questão do assassinato seja
objeto de diferentes formas de negação. A nível clínico, o reinado de uma psicopatologia
psicanalítica que deve muito à ordem moral do século XIX – a chamada psicose em particular
– é uma garantia para a teoria e a prática. O modelo anatomopatológico é deslocado em direção
ao significante e à letra, habilmente recortada para cada “caso clínico”. A “Psicanálise de Jam”
e O homem sem gravidade tão aterrador, os resultados da luta dos Diadoques após a morte de
Lacan, ilustram o que deve ser analisado sob o termo “Miséria da psicanálise”. (Um início de
análise concreta começa no meu artigo publicado em Le Grand Soir, 16 de Abril de 2012, “Le
surmoi féroce de Jean-Luc Mélenchon et l'épate de Jacques-Alain Miller [O supereu feroz de
Jean-Luc Mélenchon e o espanto de Jacques-Alain Miller]”).

A atualidade da Crítica do Programa de Gotha

Na sua crítica ao Programa de Gotha, Marx dá bússolas muito importantes que são
extremamente atuais tanto em relação à situação política na França, as eleições presidenciais,
como em relação ao que pode ser trabalhado em torno das possíveis significações do fenômeno
Nuit debout! Marx estuda minuciosamente o programa de Gotha, para deduzir que parte de uma
base política que não é revolucionária mas reformista, seguindo a influência de Lasalle que
morreu 10 anos antes.
No entanto, à primeira vista, este programa fala de equidade salarial, ajuda estatal,
melhor distribuição da riqueza, cooperativas em relação a um Estado popular livre. Também
evoca uma posição nacionalista e socialista. Marx revela a predominância da abstração e do
idealismo que ditam este programa e que este fato lhe confere o seu caráter reacionário. Engels
considerou os erros deste programa como erros teóricos que precisavam de ser corrigidos.
Retomo os pontos essenciais da Crítica do Programa, retomando a análise que François
Châtelet faz na sua introdução ao Manifesto do Partido Comunista [29]. Marx sublinha que a
frase inicial:

“O trabalho é a fonte de toda a riqueza e cultura”, “é uma falsa afirmação, que está de acordo
com a economia política burguesa. É do seu interesse isolar o trabalho como uma entidade
metafísica e conceder-lhe todas as virtudes; ignorar o fato de que a natureza também produz
valores de uso.... O trabalho não tem um poder sobrenatural; é natural, ou seja, material e social
[30].

É uma questão de poder compreender a importância das retificações para um real: a


imanência, o material, o social, e que isto diz respeito também à intervenção na transferência
de uma experiência psicanalítica... De fato, é de notar que “Deste aspecto metafísico e idealista
deriva imediatamente um outro: o moralismo abstrato” [31]. Dois termos são assim conjugados:
moralismo e abstração. A abstração é reacionária e o moralismo atribui um defeito a alguém ou
a um grupo quando existe um defeito de gozo.
Também aqui isto diz respeito à prática da transferência psicanalítica. Também aqui o
perigo de o ignorar é um erro que causa desastres sociais e políticos. Châtelet insiste na
“formulação proposta relativamente à distribuição dos frutos do trabalho: ‘a emancipação do
trabalho exige a elevação dos meios de trabalho à propriedade coletiva da sociedade... com
partilha equitativa do produto do trabalho’” [32]. Ele continua:

Marx observa que a referência a uma noção moral tão confusa como a da equidade vem de uma
concepção não científica da realidade. De fato, se considerarmos o modo de produção
capitalista, a distribuição do produto do trabalho é bastante equitativa. Além disso, como poderia
ser de outra forma? O materialismo histórico mostrou claramente que os chamados “valores
morais” – como “normas religiosas” – exprimem simbolicamente o dado social efetivo [33].

Assim, o Programa sob a influência do idealismo e do moralismo esquece este fato


social efetivo, o capitalismo. Châtelet continua:

É o mesmo moralismo que aparece na análise econômica que está subjacente ao projeto de
programa: propõe abolir “o sistema assalariado com a lei de ferro dos salários”. Sabemos em
que consiste esta famosa lei, que está na linhagem de Malthus, e que, à moda dos goethianos,
estipula que o capitalismo, utilizando o seu poder econômico e político, tende, utilizando as
condições do mercado, a pagar ao trabalhador o preço mais baixo possível. Tal concepção
aplica-se, como vemos, ao valor da força de trabalho o critério idealista utilizado pela economia
clássica para medir o valor da mercadoria. Marx e Engels demonstraram que a força diária do
trabalhador é “bastante compensada”: suficiente para o fazer viver e à sua família durante um
dia e assim restaurar a sua força de trabalho [34].

Assim, a militância por uma remuneração justa do trabalhador torna possível o


restabelecimento da força de trabalho deste último. Para Marx, não se trata de uma melhor
distribuição mas sim de uma transformação revolucionária da produção. É conveniente estar
extremamente vigilante nas formulações e ser capaz de pôr em prática uma inversão da questão,
a fim de obter uma resposta à perspectiva revolucionária. Châtelet assinala a importância disto:
“O capitalista não é mau nem mesquinho: ele é uma peça num sistema baseado no lucro,
necessariamente ladrão e opressor” [35]. Esta é outra formulação da máxima que apresentei:
partir de uma outra base.
Prosseguimos com Châtelet para compreender a lógica das inversões a implementar
numa perspectiva revolucionária: “O ‘erro’ cometido pelo projeto não é apenas teórico: tem
consequências políticas. Marx sugere mesmo que é a vontade de impor estas consequências que
induz o caráter errôneo dos princípios” [36].
A vontade de impor as consequências do idealismo, da abstração e do moralismo,
usando formas de negação sobre o que funda o gozo capitalista que organiza as relações sociais
e a transferência social: o lucro, o roubo e a opressão, induz o caráter errôneo do princípio. As
consequências tornam possível compreender o erro do princípio: uma inversão na operação de
pensar sobre o problema que permite pôr a nu o que vem da relação à transcendência. Também
aqui está em jogo a ligação com o ato psicanalítico.
Châtelet continua o seu comentário e vou insistir em três pontos que ele destaca no
Programa de Gotha, um programa social-democrata de esquerda: a utopia, a demagogia, o
perigo reacionário ilustrado pelo Estado popular livre. Sobre a utopia, Châtelet observa:

Assim, à ideia de distribuição equitativa do produto do trabalho corresponde o programa das


cooperativas, no quadro do Estado. Outro aspecto do idealismo do texto aparece aqui: o seu
utopismo. O brilho marginal n° 3 contrasta a ideia de uma melhor distribuição com a de uma
transformação revolucionária da produção. É abstrato e, portanto, reacionário sugerir que as
cooperativas podem ser modelos na sociedade atual: por muito “equitativas” que sejam,
subsistem apenas enquanto obedecerem às leis do sistema do lucro, e o que quer que façam, a
ordem do lucro se reflete na sua própria organização. Sobre a demagogia: “O utopista se torna
estritamente demagógico quando o projeto (I, 4) considera que apenas a classe trabalhadora é
capaz de alcançar a emancipação do trabalho e que todas as outras classes formam apenas uma
‘massa reacionária’”. Tal apreciação política é simultaneamente falsa e criminosa. É falso
porque é metafísico, porque imobiliza o processo, porque ignora a dinâmica do desenvolvimento
capitalista [37].

Marx nota que as classes médias se tornam revolucionárias [...] tendo em conta a
iminência da sua passagem para o proletariado. Châtelet indica que “Esta perspectiva é
politicamente criminosa no sentido em que enfraquece desde o início as possibilidades do
partido dos trabalhadores de fazer alianças com todas as vítimas do capitalismo” [38].
Finalmente vem a questão do Estado, que dá o objetivo último do programa e é assim, sublinha
Châtelet, que a verdade de todo o texto é dada, citando o fragmento: “[...] o Partido operário
alemão se esforça, por todos os meios legais, por fundar o Estado livre e a sociedade socialista”.
Qual é portanto este monstro lógico-político: o Estado popular livre?. Interroga Châtelet e ao
mesmo tempo indica: “A esta ideia, Marx se opõe ao processo de transformação da forma-
Estado para a sociedade comunista; é aí que ele define o elemento decisivo da luta política: a
ditadura do proletariado” [39]. Vou retomar este ponto do processo de transformação na
construção do poli-comunismo diferencial.
O interesse em relação à situação atual, se a hipótese de que ainda estamos no pós-
Nazismo for relevante, consiste em duas observações de Châtelet: Karl Liebknecht e Bebel
foram interpretados pelos Lassalianos. Não se trata de um compromisso e eu acrescentaria que
não pode ser um compromisso: o compromisso indica sempre a junção de engano e gozo, tal
como um sintoma em psicanálise, ao contrário de certas afirmações, não é comprometido:
testemunha os valores do gozo na sua relação com um semblante. O engano político está,
portanto, neste Programa de Gotha de apostas.
A segunda observação de Châtelet é que “Marx não está enganado” [40]. “E propõe
outro programa político, o da classe trabalhadora, que Lênin aprofundará no ‘O Estado e a
Revolução’ e que conduzirá às vitórias de 1917 e 1949” [41]. O que Marx propõe não é uma
alternativa ao capitalismo, mas o comunismo e Lênin partirá desta base outra, e este ponto foi
trabalhado com os conceitos de psicanálise social no artigo anterior.
Mas aonde leva o programa social-democrata de Gotha? A posição de Châtelet em 1973
sobre este assunto é a seguinte: “A Crítica do Programa de Gotha [...] sublinha aspectos da
concepção Lassaliana que não são alheios a certas ideias de ‘esquerda’ que ajudaram, setenta
anos mais tarde, ao sucesso do Nacional-socialismo” [42]. Isto deve ser colocado em
contiguidade com outra frase de Châtelet sobre o Programa de Gotha: “Na realidade, prevaleceu
o ponto de vista nacionalista e socialista que era o de Lassalle. Marx não está enganado” [43].
O engano social-democrata, duplicando valores nacionalistas e socialistas, levaria ao
nacional-socialismo. A fórmula pode parecer demasiado rápida e no entanto as questões de
nação e do socialismo, de igualdade social, têm sido tratadas na França social-democrata através
de abstrações, de fórmulas transcendentais cujos valores reacionários foram descritos acima. O
engano social-democrata diz respeito aos valores sociais, valores de gozo, e conduz à libertação
do que está abaixo: o valor do homicídio, que pode ter função no social através do ódio. A
pessoa privada de gozo atribui a outra um abuso de gozo e em caso de angústia social exige que
o abusador finalmente pague o preço e seja punido pelo seu abuso por falta de hipocrisia ou de
humilhação provocada. A pessoa se torna facilmente um grupo social e este será distinguido
por uma diferença, uma característica distintiva, e os mecanismos de segregação podem então
tomar todas as formas contra ela, em função da libertação do poder e da oferta.

A proposição de um poli-comunismo diferencial

Nuit Debout! continua a assinalar, moderadamente, uma recusa, nomeadamente pelo


significante Debout! “Guiana Debout! [Levante-se!]” por exemplo, ou “um tal e tal hospital
Levante-se!”, lê-se nas notícias no momento em que, em Março de 396, as velas do primeiro
aniversário do movimento foram sopradas em Paris. Debout! é o início de uma canção
revolucionária. Uma recusa afirmada, um sinal de desejo, é a etapa necessária para uma
revolução.
Como fazer a revolução? Nuit Debout! é um passo cujo efeito duradouro permanece
incerto. Do ponto de vista da transferência social e política, pode-se argumentar que houve um
movimento, um movimento de lugares, uma tentativa de alterar uma ordem hierárquica, uma
tentativa de estabelecer outro modo de enunciação num grupo que por vezes, e depois de
contradições, viveu clivagens que o frearam. A perspectiva de mudar de um eixo vertical,
vivendo na horizontal das trocas, inventando as trocas...
A troca pode fazer eco de muitas coisas. Mencionarei primeiro o valor, o valor de troca,
e dei toda a importância deste conceito neste trabalho de reflexão sobre uma perspectiva
revolucionária em artigos anteriores. O valor capitalista funciona com efeitos mortais que
analisei, mas é um fato óbvio que funciona no quadro deste estranho consentimento ao novo
fascismo descrito por Pasolini há mais de 40 anos atrás. O valor Business [empresarial] se
infiltrou no furo do sistema Estatal hegeliano, capitalista liberal, mas também capitalismo de
Estado. Funciona este valor capitalista através da Propaganda no quadro de um Estado que
descrevi como pós-Nazi. Basta ler Pasolini ou Viktor Klemperer, para ver os filmes de Oliver
Stone para compreender o tecido desta era pós-Nazi capitalista, partindo da afirmação de Lacan
de que o nazismo é o primeiro reagente de um mundo construído sobre todas as formas de
segregação. Vou citar um excerto da palestra de Eric Hobsbawn em Oxford em 1994, “Barbárie,
um manual de instruções”.

Não devemos, contudo, subestimar a disponibilidade para aprender, mesmo com a experiência
dos campos de concentração. Como sabemos agora, graças à divulgação de informação pela
administração Clinton, os Estados Unidos empreenderam, desde o período imediato do pós-
guerra até meados da década de 1970, experiências sistemáticas sobre o efeito da radiação nos
seres humanos, selecionadas entre as que se considera terem um valor social inferior. Tal como
as experiências nazis, estas foram conduzidas ou pelo menos controladas por médicos, uma
profissão cujos membros, devo dizer com pesar, se permitiram demasiadas vezes participar na
prática da tortura em todos os países. Pelo menos um dos médicos que conduziu estas
experiências desagradáveis protestou junto dos seus superiores: sentiu “o odor de Buchenwald”.
É seguro assumir que ele não era o único que estava ciente desta semelhança [44].

Falar de um Estado pós-Nazi significa que o Estado funciona sem ter alterado a base
que produziu o nazismo ou analisado os seus efeitos no registro de todas as formas de
segregação, e eu indiquei os seus fundamentos anteriormente. O neofascismo estadunidense
parte destas bases altamente segregadoras e assassinas em massa, em conjunto com o
funcionamento do valor Business [empresarial].
O resultado é uma situação de impotência e passividade. Pasolini antecipou, pelo menos
para o mundo ocidental, a queda dos valores ligados ao comunismo, e o desaparecimento da
URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), que teve um efeito verdadeiramente
catastrófico na transferência global para povos que tinham uma perspectiva de emancipação,
reforçou esta queda de valores, e insisto no fato de que um valor o faz funcionar, que um valor
faz viver. As direções dos partidos comunistas europeus ficaram atoladas numa posição de
impotência extrema.
Neste contexto, Debout! tem sido uma tentativa de expressar um poder possível por
intermédio do seu ato subversivo. O significante onda de “esquerda” tinha rivalizado com o
significante “comunista” para designar a perspectiva de outro mundo possível, outra vida social,
e depois suplantou-a. Este era o tempo do Eurocomunismo, da União da Esquerda, e foi
concretizado pela adesão ao poder na Europa Ocidental de partidos socialistas que
implementaram uma política social-democrática, portanto capitalista. Isto levou à anulação dos
valores inicialmente promovidos pelo ideal comunista. A expressão de um possível poder Nuit
Debout! permitiu uma reflexão sobre democracia, tentando inverter nesta prática reflexiva a
impotência do processo eleitoral social-democrata.
O poder é transferencial e eu distinguiria no fenômeno Nuit Debout! dois aspectos da
transferência na orientação psicanalítica do termo: deslocamento e transbordamento. O
deslocamento é a manifestação mais conhecida de transferência: deslocamento de palavras em
lapsos, chistes, deslocamento de lugares afetivos, deslocamento de intenções, deslocamento de
imagens. Com Nuit Debout! o exercício do poder da fala tem sido capaz de provocar certas
deslocamentos significativos em termos dos constrangimentos a que estamos sujeitos, das
aberrações que nos são impostas, das estupidezes de que somos vítimas.
Pode ter havido algo do lado do que Guattari chamou de “agenciamentos coletivos de
enunciação” [45], um desejo de inventar por deslocamento. O transbordamento do corpo é
pulsional: o corpo na multidão, o transbordamento que acompanha a revolta, a indignação
recalcada, o transbordamento insurreccional dos lugares. O transbordamento pode fazer
movimento, mais próximo do Umwalzung de que Marx falou para qualificar a Revolução no
primeiro tempo.
No entanto, do lado do deslocamento, alguns tiveram lugar do lado da mítica democracia
ateniense, ou do deslocamento para outro lado: reconstrução utópica, para outro lado... Há
também as comissões, algumas das quais ainda trabalham, em particular na educação, e depois
na convergência das lutas, as conexões sem precedentes entre campos que normalmente não se
cruzam. Algo aconteceu do lado de um modo de vida diferente, de viver as relações sociais de
forma diferente, de criar outras relações sociais.
Analisei mais precisamente o que está em jogo nestes eventos a nível social, tendo em
conta a dimensão internacional. A psicanálise social e a transferência social me parecem ser
conceitos relevantes para se orientar, tomando o social como base e utilizando assim Marx
como instrumento. Para qualificar Marx como uma ferramenta indispensável mas não exclusiva
me parece ser um potencial explosivo na necessidade de revolução que se anuncia.
A análise de François Châtelet sobre a Crítica do programa de Gotha é uma mina para
nos orientar na construção “de um sistema a-capitalista?” e evitar o engano social-democrata.
É uma questão de poder identificar os atuais impasses da Revolução cidadã ou de movimentos
como o Podemos na Espanha. A Revolução deve primeiro ser social e política e depois legal,
da ordem do Direito. Podemos pôde nos atrair se revelando ser um movimento eleitoralista por
detrás de um líder: não há nenhum salvador supremo.
As apostas são claras: é necessário partir de uma base outra que não a do capitalismo,
radical e concretamente, a fim de se avançar para uma transformação revolucionária. Isto diz
respeito tanto ao Estado como às relações sociais de produção. A Crítica de Marx ao Programa
de Gotha chama a atenção para os aspectos nacionais e socialistas do Estado social-democrata
de esquerda. O engano concreto do dispositivo criado faz um movimento reacionário em relação
aos partidos de extrema direita, particularmente os de inspiração nacional-socialista. Badiou
insiste no valor revolucionário da bandeira vermelha em oposição à bandeira tricolor
nacionalista. O soberanismo mais ou menos mascarado é outra característica do nacional. É
imperativo poder lidar com esta questão do Estado e da sua forma, e do moralismo que lhe está
associado.
O caráter internacionalista é indispensável e é necessário ter em conta as experiências
que tiveram ou estão a ter lugar em países socialistas como Cuba e a China. Ter em conta estas
experiências é importante para compreender a transferência de valores que podem ter ocorrido
ou que ainda ocorrem, para pensar também nos fracassos e na questão de transcendências
assassinas. Parece indispensável olhar para trás, para a curta experiência soviética, como uma
experiência partindo de outra base social. A supressão da propriedade privada e da igualdade
relativa teve efeitos nas relações sociais que devem ser tidos em consideração para construir
uma base outra, a tarefa é complexa e difícil.
Freud escreveu em 1932 sobre a União Soviética:

no preciso momento em que grandes nações declaram que só esperam a sua salvação da sua
fidelidade à fé cristã, o tumulto que teve lugar na Rússia aparece - apesar dos seus dolorosos
episódios – como um prenúncio de um futuro melhor [...] o futuro pode mostrar que o
julgamento foi prematuro, que uma transformação radical da ordem estabelecida é pouco
provável de ser bem sucedida até que sejam feitas novas descobertas que aumentem o nosso
poder sobre as forças naturais... Talvez se torne possível remodelar a organização social, para
remover a miséria material das massas, respeitando as exigências culturais do indivíduo? [46].
Convém partir de experiências diversas, não socialistas, que se estabelecem como
resultado de mudanças de valores provocadas pelo capitalismo assassino. Félix Guattari
escreveu muito pouco antes da sua morte:

Uma condição essencial para a promoção de uma nova consciência planetária residirá assim na
nossa capacidade coletiva de reemergir sistemas de valores que escapam à laminação moral,
psicológica e social da qual procede a valorização capitalista, unicamente orientada no lucro
econômico. A alegria de viver, a solidariedade e a compaixão pelos outros devem ser
consideradas como sentimentos em perigo de desaparecer e que devem ser protegidos,
revigorados, e reimpulsionados de novas vias. Os valores éticos e estéticos não são imperativos
e códigos transcendentes; exigem uma participação existencial baseada numa imanência que
deve ser constantemente recuperada [47].

É necessário trabalhar com todos aqueles que inovam no sentido de práticas sociais
novas e que tentam se realizar sem o capitalismo. “O nosso modelo econômico está em guerra
com a vida na terra”, diz Naomi Klein, por exemplo. A revolução digital deve, evidentemente,
ser levada em conta.
Para concluir, vou dar alguns pontos de referência sobre o que quero dizer com poli-
comunismo diferencial. O poli indica os muitos a fim de começar a partir de uma outra base
transferencial que não o Um, o Mono. É poli porque os comunismos são diferentes consoante
os países, as línguas, os tipos de produção e os desejos dos povos. O comunismo a que me refiro
é “A associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre
desenvolvimento de todos” [48].
O diferencial implica a significação diferencial, a importância da análise de
significações diferenciais entre os seres humanos. Este é um ponto crucial e eu tinha insistido
em como o capitalismo estadunidense se divide, como causa caos ao jogar com as diferenças
entre os humanos de uma forma assassina e como a política de Lênin se baseava no
estabelecimento de anéis de solidariedade entre os humanos. Diferencial, indica também que o
pensamento é fundamentalmente não binário e que Marx ou Lênin devem ser tomados em
sentido diferencial com outros pensadores políticos, por exemplo.
O próprio policomunismo diferencial remete tanto quanto possível à imanência, rejeita
o binário direita-esquerda, um conceito pós-feudal cujos valores capitalistas já não funcionam
no socius e não têm qualquer interesse no comunismo. Apoia-se no pensamento ternário. O
poli-comunismo implica em um poli-comunismo de imediato. É uma questão de partir de
situações concretas e estabelecer o comunismo. É necessário retomar a história dos soviéticos
sobre este assunto. Eram os órgãos do poder na Rússia em 1917. A ação de Lênin foi fundada
nestes soviéticos pelos quais, juntamente com outros, ele reivindicou todo o poder, político,
econômico, etc.
Qual é a função dos soviéticos neste momento da história russa que abala o mundo?
Têm uma função de luta com o desejo de estabelecer uma dualidade de poder no trabalho, no
local de trabalho, articulando um programa político, uma nova prática social e em ação
imediata. É hoje possível construir novas práticas sociais, em ação imediata.
Existem diferentes possibilidades no campo da Educação, da saúde por exemplo, mas
muitas invenções são possíveis na vida social se um desejo de Revolução nasce. A Educação
Nacional não é passível de reforma, isso é uma evidência. Vamos criar escolas poli-comunistas.
Criamos centros de saúde poli-comunistas, consideremos que não há doença mental mas sim
uma problemática social no que é psíquico, e tiramos as consequências criando centros de
psicanálise social e construímos a partir do primado da base social novos dispositivos não
segregadores no que se chama saúde mental.
As tarefas são consideráveis, mas se o Nuit debout! tem um futuro em sua significação
política e social ele só pode estar nesta imanência de ações concretas de transformação na
convergência das lutas sociais.
Este breve comentário sobre o poli-comunismo é evidentemente muito insuficiente,
exigindo desenvolvimentos teóricos que não podem ser expostos aqui, mas numa altura em que
a democracia parlamentar formal e representativa está em pleno declínio, é urgente fazer
funcionar outros valores sociais concretos, outros modos de organização de poder. “A
associação em que o livre desenvolvimento de cada pessoa é a condição para o livre
desenvolvimento de todos” – o comunismo – torna possível sair das aberrações de nossas vidas
capitalistas, dos disparates dos meios midiáticos, e encontrar um poder de criação. Vou concluir
com esta citação de François Châtelet: “O poder também é liberdade” [49].
GUERRA PELA GUERRA – MEMÓRIAS DE UM RECRUTA
ANTICOLONIALISTA

“Guerra pela guerra!” são as palavras afiadas que concluem o 19 de Março de 2006, as
palavras introdutórias de Jacques Tourtaux a respeito do seu livro sobre a guerra argelina
“Memórias de um recruta anticolonialista” [1]. “Guerra pela guerra!”. Estas palavras
tristemente atuais soam ainda mais alto hoje em dia, uma vez que a atual crise do capitalismo
feito pelos EUA (Estados Unidos da América) produz um risco claro da Terceira Guerra
Mundial.
“Guerra pela guerra!”, Jacques Tourtaux sabe do que fala, aquele que, chegando à
Argélia em Fevereiro de 1961, incorporado no exército francês, fez a escolha da coragem, a de
continuar a luta anticolonialista, militando dentro do próprio exército. Henri Alleg sublinha isto
no prefácio do livro Pas un moment donc, Jacques Tourtaux ne céderera (“Nem um momento,
portanto, Jacques Tourtaux não cederá”). Ele não cede ao seu desejo como militante comunista,
um desejo de justiça, de paz, de fraternidade, de liberdade, de revolução.
O testemunho de Jacques Tourtaux é precioso. É a transmissão de uma experiência
humana singular relativa a um acontecimento histórico altamente trágico e traumático para os
povos argelino e francês. Este testemunho é muito completo e preciso; incorporado diretamente
na Argélia, começa com a sua descrição do período em que estudava em Oued-Smar e termina
com a libertação e o retorno à sua região de origem, as Ardenas. Entretanto, as narrativas nos
permitem compreender a transformação que ele experimenta no seu “Estar-no-Mundo”.
Esta transformação é da ordem das consequências de um trauma. Foi feito um furo no
tecido humano, face aos horrores desta guerra suja. Como psiquiatra e psicanalista hospitalar,
fui trazido para me encontrar na minha consulta ou no hospital com várias pessoas que tinham
“lutado” na guerra argelina. Nenhum deles tinha escapado ileso e não se tratava de um simples
mal-estar existencial. Jacques Tourtaux escreve: “Alguns dias de barata, não via outra saída
senão a morte, o suicídio. Eu esperava a bala que ia me matar” [2].
O que é importante compreender é que estas ideias mórbidas não se limitaram ao período
crucial da guerra, mas foram movidas ao longo do tempo. Este fenômeno de sofrimento ainda
hoje o questiona. Sublinhando a estranheza de viver as suas ideias sombrias quando o perigo
diminuiu uma vez proclamado o fim das hostilidades, Jacques Tourtaux tenta saber mais, para
interpretar este mal-estar infinito. A sua conclusão é judiciosa: “Penso que o fato de ter
manipulado todos estes dispositivos de morte destinados a matar maciçamente me afetou muito
e me transformou numa pessoa ‘culpada’. Como poderia um inimigo declarado desta guerra
colonial sair incólume?” [3]. A sentença que conclui o parágrafo 71 “Pensamentos suicidas,
culpabilidade” é clara: “Não consegui sair da camisa-de-forças da culpa ... de não ser culpado
de nada” [4].
Alguns poderão vê-lo como a análise “clássica” da pessoa no divã falando da sua culpa:
“Sinto-me culpado por um crime que não cometi”. É óbvio que a descrição dos crimes
cometidos durante esta guerra dá uma dimensão e um significado totalmente novos ao relato do
drama humano vivido por Jacques Tourtaux e os seus companheiros.
Para eles, era uma questão de confronto direto ou indireto com crimes de massa em que
a integridade física ou psicológica das pessoas era afetada. Estou particularmente consciente
deste fato profissionalmente, sendo responsável por um centro de psicoterapia que lida com
refugiados políticos migrantes.
O psiquismo reage nestas circunstâncias ao furo que se produziu na vida por um
sofrimento grave: um temor terrível se produziu. A ordem que liga o corpo e as palavras através
da imagem é alterada. Expressões de desespero, horror e protestos são misturadas com um
sentimento de impossibilidade de mudar o que acontece. Este sofrimento tem consequências no
tempo à distância do trauma com a sensação de o reviver através de pensamentos, pesadelos.
Há uma espécie de sensação de estar em estado de alerta na vida social diária e as dificuldades
em dormir são frequentes. Qualquer coisa que nos faça lembrar o acontecimento traumático, as
injustiças, pode levar a dificuldades na relação com os outros.
Neste contexto, as reações de ódio não são raras. A família é o primeiro grupo social na
história de um ser humano. É neste grupo que se cria a experiência da transferência, a que
chamei “transferência social” [5]. Esta noção de transferência social é muito importante,
correlativa ao termo “psicanálise social” que fundei e coloquei em prática. Os sentimentos, as
palavras, as imagens, as expressões de corpos assumem a mesma importância na vida social
que na transferência psicoterapêutica singular. Esta transferência diz respeito ao amor, ao amor
e ao desejo de ser amado, fundamentalmente. Também diz respeito ao que está ligado entre a
palavra, o corpo, a imagem para fazer identidade.
É este testemunho que é dado em palavras simples e autênticas por Jacques Tourtaux: o
que ele experimenta é apanhado por significados e valores que são transferidos e vividos de um
ser humano para outro ser humano, de um ser humano para um grupo. E aí haverá uma
transferência para a sua família, os seus camaradas comunistas, os seus camaradas, “os caras
ou os recrutas” que ele escreve frequentemente, alistados na mesma estúpida restrição: “Que
besteira é a guerra!” mas também de uma transferência para o Exército como instituição e,
claro, para o povo argelino.
Mencionei-o no ano passado na revista on-line Le Grand Soir para analisar o trauma
sofrido pelo povo tâmil:

As vítimas destes traumas são referidas ao sentimento experimentado por qualquer criança de
estar “sem ajuda possível”, tal como descrito por Freud, ou ao sentimento de ser confrontada
com a ruptura, o colapso, descrito pelo psicanalista infantil Winnicott. É aqui que entra em jogo
a necessidade de questionar a transferência social: Noam Chomsky também fala de colapso, de
colapso coletivo. Face a este colapso que faz com que os humanos se encontrem em busca do
seu ser intelectual, é uma questão de poder agarrar uma forma para continuar a pensar, e
gradualmente constituir pedaços recuperados no nada completo, como nos diz o poeta Antonin
Artaud.

Este trauma toca o ser humano na sua relação com o amor primordial, o da infância. O
que é impressionante no livro de Jacques Tourtaux é que os primeiros capítulos são dedicados
à sua infância, às coordenadas do amor ou de separação, às coordenadas do que tinha caído no
nada e à forma como tinha sobrevivido. É de fato o que, numa repetição de outra ordem, se joga
de novo no trauma. É disto que se fala neste livro e diz respeito à fundação das civilizações
humanas e aos avatares da destruição, da demolição que caracteriza a falha da civilização
capitalista. A essência do homem está nas relações sociais, diz Marx. Os seres humanos são ao
mesmo tempo os fabricantes, os agentes e os produtos de relações sociais, de transferências
sociais.
Jacques Tourtaux descreve as relações sociais deste momento histórico do fim da Guerra
da Argélia no contexto particular dos grupos humanos em guerra por um motivo colonial onde
o valor humano pode ser reduzido, pelo motivo falacioso da raça ou da religião, a uma categoria
de sub-humano. De fato, é do lado da humilhação, do desprezo, das intimidações, das torrentes
de violência contra os “sub-humanos” que Jacques Tourtaux dá os seus testemunhos e reflexões,
acompanhados de documentos e fotografias. Ele descreve os abusos repressivos da seguinte
forma: “A prisão, apelidada ‘la Villa’ era como uma prisão. A simples menção do nome
aterrorizava-nos ‘e novamente’ foi no apito, correndo com as mãos dobradas sobre a cabeça
que os reclusos tiveram de cantar canções nazis” [6].
Jacques Tourtaux mostra igualmente neste livro a sua posição de luta: a da recusa. É isto
que o fará viver, não sem sofrimento, mas é também, com modéstia, um esclarecimento do que
Engels disse na sua famosa carta a Joseph Bloch em Setembro de 1890: “Segundo a concepção
materialista da história, o fator determinante na história é, em última instância, a produção e a
reprodução da vida real. Nem Marx nem eu nunca dissemos mais”. Trata-se de ouvir também
este testemunho da rejeição de Jacques Tourtaux do que leva à barbárie, como uma luta para
produzir e reproduzir a vida.
“Habituamo-nos a matar” [7], escreve o historiador britânico Eric Hobsbawn a propósito
do século XX:, e a violência é particularmente feroz contra grupos que são demonizados como
sub-humanos, são desacreditados. A noção de sub-humanidade é inerente à lógica da
exploração capitalista, e a busca do lucro financeiro permanece assim, na sua maioria e
estupidamente, o objetivo de uma vida humana no Ocidente no esquecimento das
consequências segregadoras, bélicas, colonizadoras e exploradoras. Assim, o assassinato em
massa, que não tinha deixado o nosso mundo ocidental, regressa à vanguarda e o fascismo toma
o seu lugar nas mentalidades e fatos políticos deste mesmo mundo ocidental, revelando a
própria essência do liberalismo capitalista no seu extremo: relações sociais assassinas em
proveito de uns poucos.
Numa altura em que, perante o que a falsa democracia liberal traz à Ucrânia,
nomeadamente um mundo onde a barbárie nazi é “livre de correr”, os seguintes extratos são os
portadores do ensino da narrativa do drama descrito na obra de Jacques Tourtaux: “Como pode
um povo como o nosso, que tanto sofreu com a barbárie nazi, ter filhos que reivindicam a
violência fascista?” [8]. A luta que Jacques Tourtaux descreve no seu livro é a luta contra esta
lógica de demolição humana. O seu testemunho na sua singularidade é, portanto, universal,
profundamente internacionalista.

[1] TOURTAUX Jacques, Editions Scripta, Jouaville, 2006

[2] Idem p. 138

[3] idem

[4] Idem, p. 139

[5] Desenvolvi mais precisamente este conceito numa conferência dada em Havana no
congresso de psicologia Hominis, em Dezembro de 2013, e no DVD « Psychanalyse et
Révolution » realizado por Didier Mauro em setembro de 2013, publicado em Harmattan.

[6] TOURTAUX Jacques, « Souvenirs d’un appelé anticolonialiste » Editions Scripta,


Jouaville, 2006, p. 36

[7] HOBSBAWM E., « Barbarie, mode d’emploi » in Marx et l’histoire, Editions Demopolis,
2008

[8] Idem, p. 40
“GÊNERO, CULTURAS, SOCIEDADES – QUESTÕES DE TRANSIDENTIDADE”

Mariela CASTRO, Hervé HUBERT

Prólogo ao Colóquio Internacional em Paris, em 28 e 29 de Março de 2014

O “transexualismo” é um termo comumente utilizado pela medicina durante 60 anos,


questiona o conceito de identidade. Fenômeno enigmático para a pessoa que carrega esta
questão, é tão enigmático para a sociedade que a recebe, questionando de forma fundamental
aquilo a que vulgarmente se chama a identidade sexual, perturbando os limites anteriormente
admitidos do ser humano, como para uma pertença a um sexo. Classicamente, a transexualidade
designa para as pessoas em questão a convicção de pertencerem a um sexo, feminino ou
masculino, o que não corresponde ao sexo anatômico e consequentemente à atribuição do sexo
feita à nascença. Isto leva à necessidade de alcançar uma mudança, materializada por uma
transformação hormonal-cirúrgica, e de uma forma regular por uma mudança de estado civil.
Esta transformação hormonal-cirúrgica depende de cada caso individual e por esta razão
pedimos que seja permitida uma mudança legal da identidade de gênero sem a obrigação de as
pessoas serem sujeitas a estes tratamentos.
O fenômeno chamado “transexualismo” pela medicina questiona de forma profunda a
identidade social. As pessoas transexuais sofrem desta imposição de um modelo binário rígido,
e por isso são as normas socialmente estabelecidas de atribuição de um gênero a partir dos
genitais que estão em questão. A evolução social atual felizmente, mas não sem luta, empurra
o problema para fora do campo psiquiátrico ou psicopatológico. O termo transsidentidade é
testemunho disso. Da mesma forma, a transexualidade deixou oficialmente de ser classificada
como doenças mentais em certos países: na Argentina em 2012, na França em 2010 de uma
forma ambígua, porém. Em Cuba, desde 2005, desenvolve-se como política uma estratégia de
cuidados pluridisciplinares para pessoas transexuais, incluindo a total gratuidade dos cuidados
e operações. O Cenesex [Centro Nacional de Educación Sexual] apresenta a orientação de não
considerar a transexualidade como uma doença. Para recordar, a homossexualidade deixou a
classificação das doenças mentais em 12 de Junho de 1981 na França, e será feita a nível
mundial em 17 de Maio de 1990.
Durante este colóquio, iremos examinar as situações relativas à transsidentidade em
Cuba, França, Argentina e Brasil. As questões serão tratadas com a participação de psicólogos,
advogados, médicos, membros da rede profissional Respectrans em Paris, representantes de
associações de pessoas transexuais, atores da sociedade civil e artistas.
Serão expressos pontos de vista diferentes e será particularmente importante
compreender as transformações em curso em Cuba, apresentadas pela equipe do Cenesex em
Havana. A integração social das pessoas transgênero está de fato no centro da estratégia posta
em prática pelo Cenesex. O objetivo é assim mudar a forma como os outros encaram as coisas,
para ter em conta a transferência social como uma prioridade.
Isso permitir-nos-á pôr em tensão esta estratégia com a situação na França e avançar
sobre as atuais contradições que conhecemos, pois se a transexualidade está oficialmente fora
da lista das doenças mentais que não foram acompanhadas de uma saída do campo psiquiátrico
na prática. A transsidentidade não é uma doença e a psiquiatria dos transexuais é paradigmática
da psiquiatria das diferenças entre os seres humanos.
Isto terá de ser combinado com os debates atuais sobre mudanças na identidade civil
sem transformação cirúrgica radical. Uma frase lança luz sobre o problema:

Se tivéssemos conseguido suavizar os conceitos (...) provavelmente as pessoas transexuais não


estariam a clamar tão urgentemente pelos benefícios da cirurgia e outros tratamentos que ajudam
a remodelar os seus corpos, para serem finalmente reconhecidos dentro de um dos dois
extremos: homem ou mulher (1).

Isto nos orienta para uma grande reformulação da questão transfronteiriça e pode ter
várias consequências. A Transidentidade ensina sobre a humanidade e as relações sociais, os
fundamentos culturais, históricos e sociais da civilização. De fato, diz respeito de uma forma
paradigmática ao primeiro grupo social no nascimento de um ser humano, à família e aos grupos
mais vastos da sociedade. O questionamento do patriarcado e o aumento da segregação
relativamente às diferenças, de raça, de cor da pele, de gênero, questões antropológicas, não são
alheios à transidentidade e aos seus fenômenos existenciais concretos, quanto mais não seja
devido à existência de transfobia nesta dialética. É nesta perspectiva que trabalharemos na
orientação de uma transsidentidade universal, aquela que cruza o diferencial e as diferentes
identidades humanas.

(1) Mariela Castro Espín, La transexualidad en Cuba, in prologo, Cenesex, La Havane, 2008.
BOAS FESTAS DA FOME MALDITA

“Boas Festas!” é o lema que ouvimos e pronunciamos nestas circunstâncias de fim de ano,
um motivo musical com múltiplos significados nesta partitura orquestrada por um
capitalismo trivializado à sua barbárie.

“Boas Festas!” pode ressoar como um desejo de felicidade, uma aspiração legítima para
uma humanidade do século XXI cujas possibilidades em meios econômicos e científicos
tornariam possível pensar que em qualquer parte do mundo todos poderiam viver de acordo
com as suas necessidades, pelo menos ter o poder democrático de alimentar, alojar, trabalhar,
ter acesso à saúde e aos cuidados, e ser cultivados desde a infância, com o pensamento de que
somos seres sociais, que nos realizamos e criamos nas nossas relações sociais e que é por isso
necessário orientar o que produzimos numa perspectiva social que atravessa o individual e o
coletivo. Neste contexto, as realizações da Revolução Cubana são um farol de luz.
No mundo capitalista, banalizados ao ponto da barbárie, a fome e a escassez alimentar
continuam em seus poderes de condenação. “Boas Festas da Fome Maldita” pode ser a escrita,
o trocadilho, Witz [chiste], que tem o desejo de não ficar confinado ao trocadilho para se
concentrar na força revolucionária das criações humanas e, entre elas, a das palavras.
A fome e a escassez alimentar não são males inevitáveis, sabemos isso, mas o
esquecemos frequentemente nesta religião da civilização consumista, cuja descrição do
fascismo se inclina para a degradação, desvalorização, A mercantilização do ser humano não
encontrou melhor escritor do que o poeta Pier Paolo Pasolini, que denunciou o processo que
“tende a identificar as palavras da burguesia e da humanidade” [1] e soube adivinhar o “novo
fascismo pragmático americano”, cujo objetivo é “a reorganização e o nivelamento brutalmente
autoritário do mundo” [2].
A partir daí, é a luta contra este mundo capitalista, contra o que também rege as suas
mentalidades, que convém de ser trabalhada, sendo esta religião da civilização do consumo
apenas o aroma deste mundo, para usar a lógica proposta por Marx na sua “Contribuição para
a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. A escassez alimentar é o sinal de que há pessoas
famintas, ou seja, pessoas que “reduzem outras pessoas à fome” [3], privando injustamente e
tirando o potencial da vida. Há diferentes escassezes alimentares e práticas psicanalíticas que
nos ensinam enquanto experiência social a razão pela qual o impulso criativo pode ser perdido
e “a razão pela qual a sensação de um indivíduo de que a vida é real e significativa pode
desaparecer” [4].
Com Winnicott, um analista da transferência entre a criança e sua mãe, temos de
considerar que um bebê sozinho não existe, e com Karl Marx, o primeiro analista da
transferência social na história, que um ser humano sozinho não existe, que a essência do
homem está nas relações sociais. Quando estas relações sociais conduzem à destruição social,
à ruptura social, é comparável, de um ponto de vista homológico, e não de um ponto de vista
analógico abstrato, ao colapso, à ruptura, ao abandono da criança, que cada criança experimenta
na experiência da separação e que pode ser acompanhado por acontecimentos violentos e
brutais.
O capitalismo reduzindo o ser humano à fome dá peso à perspectiva dada por Marx na
sua articulação entre o individual e o coletivo. Rompo aqui com uma certa tradição que gostaria
de acreditar que a psicanálise traria de fora um ganho, um plus sobre o saber trazido por Marx,
saber que seria constituído num outro campo heterogêneo e pouco permeável.
Como psicanalista, considero, pelo contrário, com Lacan, que Marx se encontra no
campo da psicanálise e, por conseguinte, implementa todas as suas consequências,
nomeadamente que Marx está empenhado numa prática de transferência e que analisa de forma
revolucionária as máscaras e semblantes usados na transferência social, as suas funções. Assim,
Marx considera que o capitalismo é a causa do sacrifício de vidas humanas por causa da sórdida
avareza ligada a ele e à sua produção, que “se mostra esbanjadora de homens e de trabalho vivo,
desperdiçando não só carne e sangue, mas também nervos e cérebros”.
Especialmente no Livro I do Capital, explica Marx:

A acumulação primitiva desempenha na economia política aproximadamente o mesmo papel que o


pecado original desempenha na teologia (...) Daí a pobreza da grande massa que, apesar do trabalho sem
fim e das tréguas, deve sempre pagar por ela na sua própria pessoa (...) Na história real é a conquista, a
escravatura, o roubo à mão armada, o reinado da força bruta que desempenharam o grande papel. Nos
livros didáticos da economia política, pelo contrário, sempre reinou o idílio. Para lhes dizer, nunca
houve, com exceção do ano em curso, qualquer meio de enriquecimento que não fosse o trabalho e a lei.
De fato, os métodos de acumulação primitiva são tudo o que se poderia desejar, exceto a matéria idílica.

Marx explica assim a condenação daquele que não acredita na fábula do idílio da
acumulação de capital, daquele que não acredita no idílio, o suposto amor do capitalista pelo
trabalhador. Esta condenação refere-se à culpa, à culpa que tem um significado real na vida de
cada ser humano, e é mais particularmente aqui que a prática psicanalítica pode de fato trazer
um ganho de saber sobre a prática da transferência social.
A condenação de um outro, de um grupo humano, será uma solução para outro grupo
humano a fim de escapar de “ser reduzido a um desperdício social, a um que corre o risco de
morrer de fome”. O colapso, que se refere à experiência de satisfazer a fome do bebê, requer,
para sobreviver a esta redução da fome, um plus, um mais-de-gozar, um mais de gozo noutro
registro.
A solução fascista se alimenta deste avatar humano. A solução que denuncia um grupo
por razões de raça ou religião ilustra isto mesmo. Trata-se de condenar um grupo, de o
atravessar pela desgraça, condená-lo. Este avatar está na encruzilhada do campo ético uma vez
que, em contraste com a solução fascista, é como um fato humano que se confronta sendo um
desperdício, ao mesmo tempo, a possível fonte de revoluções sociais para a abolição do
capitalismo e a fabricação de processos criativos. Ser o desperdício da civilização capitalista
pode levar a querer a abolição do capitalismo.
A hipótese formulada pelo historiador filosófico François Châtelet assume todo o seu
significado neste contexto: “o Estado fascista é o Estado liberal reduzido à sua própria essência:
uma associação de proprietários que, direta ou indiretamente, já não se dá ao trabalho de se
esconder, ou já não pode esconder as suas práticas fundamentalmente autoritárias devido às
circunstâncias” [5].
A questão fundamental levantada por esta “maldita fome de capitalismo” é, portanto,
como nos separarmos do capitalismo e da sua essência fascista. Um ponto a recordar de Marx
é, evidentemente, o motor da luta de classes. As questões da fome e do recuo da civilização a
ela associada não se limitam aos países africanos distantes. A situação na Grécia é testemunho
disso e pode ser o que virá a furar esta civilização consumista capitalista, que segundo Lacan
está condenada a um furo.
No entanto, não devemos esquecer nesta luta o lado ideológico, a força do que toma o
lugar do pecado original no liberalismo, o idílio desmascarado por Marx, que se baseia no
fetichismo e no amor, e portanto a força sedutora e destruidora do capitalismo e do fascismo.
Em 1844, nos seus manuscritos econômicos e filosóficos, Marx insiste que “o sofrimento
humano – entendido humanamente – é um gozo de si do homem”.
Esta fórmula, que deve orientar os psicanalistas nas suas práticas, deve também avançar
na resolução dos obstáculos à produção de uma civilização de emancipação humana. Deve
assim nos ajudar a retomar a questão colocada e levada por Lênin: “O que fazer?” É sobretudo
uma questão de poder afirmar no concreto da transferência social as soluções que permitem
uma separação revolucionária da força brutal do capitalismo e do fascismo.
Vou terminar com a transferência internacional. Os forçados à fome e os condenados da
terra não são estranhos às “boas festas da fome maldita” e a importância de uma transferência
internacional de solidariedade e luta entre os povos, para a emancipação e transformação das
relações sociais, das transferências sociais, é fundamental. Mencionei-o no artigo “Hugo
Chavez, uma transferência histórica! ” [6] :

É importante para os povos em luta saber que há outros que estão a fazer o mesmo e são bem
sucedidos, que o socialismo do século XX, como disse Hugo Chavez, avança em algumas partes
do mundo, particularmente na América Latina, sob diferentes formas. O apelo à construção de
uma Quinta Internacional, formulado por El Comandante em 2009, estava nesta linha, essencial
para combater o imperialismo a fim de alcançar “a derradeira e maior ambição revolucionária,
que é ver o homem libertado de sua alienação” [7].

[1] P.P. Pasolini, « La première vraie révolution de droite » i Écrits corsaires, p. 43,
Flammarion, Paris, 1976

[2] Idem, « Le véritable fascisme et donc le véritable fascisme », p. 82

[3] Affamer est réduire quelqu’un à la faim selon Le Dictionnaire Historique de la langue
Française, Alain Rey

[4] D.W. Winnicott, in Jeu et Réalité

[5] In Éléments pour une analyse du fascisme vol 1, 10/18, Union générale d’éditions, en 1976
(séminaire de Maria Antonietta Macciocchi, qui eut lieu à Vincennes l’année 1974/75)

[6] H.Hubert, « Hugo Chavez, un transfert historique ! » Le Grand Soir, 28 mars 2013

[7] GUEVARA Ernesto, Discursos y escritos, La Habana, Editorial de ciencias sociales, 1977
O TRAUMA DO POVO TÂMIL

A barbárie sofrida pelo povo tâmil permanece tragicamente desconhecida até aos dias de
hoje. Desde 1948 o número de mortos foi de pelo menos 400.000 e os acontecimentos de
2009, particularmente intensos em Abril e Maio, deixaram 80.000 mortos, 146.000
desaparecidos e 30.000 deficientes, de acordo com a ONU (Organização das Nações
Unidas). Estamos na presença de um fenômeno onde as palavras de massacre, de
assassinato em massa e genocídio cultural ficam aquém das experiências afetivas e
emocionais das populações.

O que podemos dizer quando ouvimos palavras de horror? “Eu nadava num mar de
cadáveres”, “400.000 pessoas, homens, mulheres e crianças viveram em bunkers durante 8
meses com a ameaça de morte sempre presente”, “Como podemos viver com a memória de um
membro da família ou de um vizinho massacrado”?
Isto leva-nos de volta ao que se chama em psiquiatria a “síndrome do stress pós-
traumático”, ou seja, a questão humana: o que acontece psicologicamente quando a integridade
física ou psicológica da pessoa ou do seu séquito foi afetada ou realmente ameaçada? Estou
particularmente consciente disto profissionalmente, sendo responsável por um centro de
psicoterapia que cuida de pessoas em exílio social, especialmente migrantes que são refugiados
políticos. [1]
A pessoa afetada pelo trauma não se pode adaptar à situação: o horror com que é
confrontada rompe com a sua experiência. O psiquismo reage nestas circunstâncias ao furo que
ocorreu na vida por um sofrimento grave: um terrível susto se produziu. O desespero e o horror
se misturam com um sentimento de impossibilidade de mudar isso que acontece. Isto tem
consequências no tempo à distância do trauma com a sensação de o reviver através de pesadelos,
pensamentos. Há uma espécie de sensação de estar em estado de alerta na vida social quotidiana
e as dificuldades em dormir são frequentes. Qualquer coisa que lembre um acontecimento
traumático através de lugares, as pessoas podem levar a estratégias de evasão e, portanto, um
fator adicional de dificuldade para a pessoa na sua relação com os outros. As crianças e os
idosos são frequentemente mais vulneráveis.
A psicoterapia orientada pela psicanálise pode ajudar a pôr palavras ao horror sofrido e
a recuperar a dignidade, mas o essencial é poder, através da narrativa de um drama humano,
pôr em prática significados que, no luto, darão vida a um elevado valor humano. Isto irá
empurrar para o futuro concreto de tomar medidas para combater o sentimento de estar
condenado ao abandono e para a posição de ter de suportar interminavelmente. Isto é feito no
âmbito de uma transferência, de um deslocamento, de um movimento.
Em psicoterapia, os sentimentos são verbalizados, movidos, transferidos. Eles são amor,
ódio, recusa de saber. É também uma questão de encontrar, encontrar os valores dados às
palavras nos grupos humanos que foram tocados, particularmente o grupo humano familiar, que
é o primeiro grupo onde a experiência de transferência é criada, a que chamei “transferência
social” no contexto do ensino dado na nossa associação TRIP (Trabalhos de Pesquisas sobre o
inconsciente e as pulsões) [2].
Esta noção de transferência social é muito importante, correlativa ao termo “psicanálise
social” que fundei e coloquei em prática. Os sentimentos, as palavras, as imagens, as expressões
de corpos assumem a mesma importância na vida social que na transferência psicoterapêutica
singular. Esta transferência diz respeito ao amor, ao amor e ao desejo de ser amado,
fundamentalmente. Também diz respeito à função da ausência, à ausência de resposta dos
outros, à ausência da pessoa amada. Freud compreendeu a simbolização da ausência da mãe
para a criança: a criança brinca quando a mãe está ausente para fazer aparecer e desaparecer um
objeto. No luto que atinge o povo tâmil, compreende-se assim a função dos cenotáfios, os
túmulos vazios que se encontram em Paris, Londres ou Genebra.
Estes túmulos vazios tornam possível lutar por uma presença, contra o vazio do
desaparecimento de entes queridos. Este vazio é ainda mais intenso quando os corpos dos
desaparecidos nunca foram encontrados. Ser capaz de ver e olhar é uma função essencial no
que constitui a identidade humana. A imagem torna possível produzir uma ligação entre uma
palavra e um corpo. Também aqui, a infância e o grupo familiar são convocados para esta
constituição de identidade que é o palco no espelho onde o bebê jubila no primeiro
reconhecimento da sua imagem no espelho, como Henri Wallon e Jacques Lacan a
descreveram. Ser capaz de ligar uma palavra a uma forma é essencial para o homenzinho. O
túmulo vazio dá assim uma forma altamente simbólica visível, para contrariar o rasgão invisível
do ser social enlutado.
Noutras palavras, a provação sofrida nas circunstâncias que sabemos no Sri Lanka se
refere àquilo que funda a identidade na infância. As vítimas são referidas ao sentimento
experimentado por cada criança de ser “sem possível ajuda”, como descrito por Freud, de ser
confrontada com a ruptura, o colapso, descrito pelo psicanalista infantil Winnicott. É aqui que
entra em jogo a necessidade de questionar a transferência social: Noam Chomsky fala também
de colapso, colapso coletivo. Face a este colapso que faz com que os humanos se encontrem
em busca do seu ser intelectual, é uma questão de poder agarrar uma forma para continuar a
pensar, e gradualmente constituir pedaços recuperados no nada completo, como nos diz o poeta
Antonin Artaud. Este trabalho tem lugar numa psicoterapia, uma prática de transferência
singular, mas o problema da significação coletiva é essencial para se conseguir uma pulsão de
vida. O reconhecimento passa por um outro, “Eu sou um outro”, diz-nos Arthur Rimbaud.
O luto traumático enfrentado pelo povo tâmil é terrível: refere-se ao terror, e a falta de
reconhecimento pela comunidade internacional do que parece ser um genocídio coloca as
pessoas num estado de abandono violento. Isto é agravado pela queda de um Ideal, o de uma
prática coletiva de humanismo concreto que reinou durante 10 anos no país Tâmil: cada pessoa
tinha um trabalho, uma habitação, o acesso à saúde, altos níveis de educação e de cultura, e isto
teve o efeito de uma transferência social rica em valor humano concreto.
A essência do homem está nas relações sociais, escreveu Marx. Os humanos são ao
mesmo tempo os fabricantes, os agentes e os produtos de relações sociais, de transferências
sociais. A experiência tâmil foi uma forma exemplar de lidar com o que eu chamo a falha de
civilização entre os humanos, que combina a segregação, a violência e a crueldade. Isto é
destruído e este belo tecido que faz progresso humano foi quebrado, humilhado da forma mais
brutal e bestial. Alterar os nomes das aldeias e humilhá-las publicamente é uma prática que,
somada aos massacres, é simultaneamente genocídio cultural e barbárie.
O psicanalista Jacques Lacan nos avisou já em 1967 que o nazismo era a primeira
manifestação de uma violência construída sobre todas as formas de segregação. A política de
violência exercida contra os Tâmils é esta nova forma de segregação e racismo: trata-se de
erradicar o que, por razões obscuras, é tomado como insuportável. Para arrasar cemitérios e
construir hotéis ou acampamentos militares nestas pistas, visa degradar e erradicar os vestígios
da civilização do progresso.
Que este é o local de diversão e de férias para turistas mostra como a civilização do
consumismo capitalista, tão bem descrita pelo cineasta italiano Pier Paolo Pasolini como um
novo fascismo, uma nova relação social fascista, nega e destrói a humanidade. O historiador
britânico Eric Hobsbawm descreve com precisão esta encosta à barbárie [3] que existe desde a
Primeira Guerra Capitalista Mundial, a guerra de 14-18. Habituámo-nos a matar, escreve ele, e
a violência é particularmente feroz contra grupos que, considerados sub-humanos, são
desacreditados. A noção de sub-humanidade é inerente à lógica da exploração capitalista e a
procura do lucro financeiro permanece assim, na sua maioria, o objetivo de uma vida humana
no Ocidente no esquecimento das consequências segregadoras, bélicas, colonizadoras e
exploradoras.
A luta do povo tâmil é universal, profundamente internacionalista. É a luta contra aquilo
que produz violência cruel e dominadora do humano sobre o humano. Vou citar Nelson
Mandela: “É sempre o opressor, não o oprimido, que determina a forma das lutas. Se o opressor
usar a violência, o oprimido não terá outra escolha senão responder com violência. No nosso
caso foi apenas uma forma de legítima defesa”. É igualmente importante salientar que a forma
que o opressor dá também pode mudar de acordo com a luta e a pressão internacional. É urgente
fazê-lo para o povo tâmil, para a luta contra a barbárie que se espalha, mas também, como disse
Thomas Sankara em memória de Che Guevara [4]: para se tornarem cidadãos de um mundo
livre!

[1] CPMS, Centre Psycho-Médical et Social, Elan Retrouvé, Paris

[2] « Travaux de Recherche sur l’Inconscient et la Pulsion », fait lien entre psychanalyse,
culture et symptôme social.

[3] HOBSBAWM E. Barbarie, mode d’emploi in Marx et l’histoire, Editions Demopolis, 2008

[4] SANKARA T, Che est aussi africain, discours du 8 octobre 1987


HUGO CHÁVEZ : UMA TRANSFERÊNCIA HISTÓRICA

Os povos foram fortemente tocados pela morte de Hugo Chávez. As reações foram
extraordinariamente fortes, indo para além do território da Venezuela e da América Latina, para
preocupar a humanidade como um todo, de uma forma ou de outra. Trata-se de um fenômeno
que pode ser qualificado como histórico.
O Chavismo vai além do efeito do carisma: estas reações feitas de dor e de emoção
dizem respeito àqueles que sabem isso que a angústia social quer dizer no concreto de suas
vidas ou no concreto da vida das pessoas que encontram. Este fenômeno tem uma significação:
o de uma transferência para o homem, Hugo Chávez, que marcou, marca e marcará a História,
que por isso merece o termo de “transferência histórica”.
Uso o termo de “transferência” porque é a partir de uma transferência que um
psicanalista pode dizer algo sobre os fenômenos sociais e políticos, e vou precisar esclarecer o
termo “transferência” um pouco mais. Atualmente se fala mais frequentemente de
transferências de jogadores de futebol e das somas astronômicas que os acompanham, ou de
transferências de fundos e dos seus transportadores, do que de transferência psicanalítica.
O que é a transferência na orientação psicanalítica do termo, qual é este conceito motor
de uma psicanálise? Antes de mais, diz respeito aos sentimentos nascidos das três paixões
fundamentais descritas por Aristóteles e retomadas pelo psicanalista Jacques Lacan, o amor, o
ódio e a ignorância.
O amor vem primeiro quando se trata de transferência psicanalítica. Falar repetidamente
com uma pessoa sobre os seus problemas, recontar um drama e procurar a significação provoca
geralmente este sentimento. O que vem primeiro quando se fala de Hugo Chávez ao povo
venezuelano se não ao amor? Tem a ver com o fato de Hugo Chávez ter sabido falar de amor
ao seu povo, aos povos da Terra. Falou de amor nos seus discursos políticos. “O valor central
que Chávez procurou disseminar foi obviamente o amor, que é uma forma ligeiramente mais
íntima de encarnar a solidariedade e a partilha, e de criar motivações de empatia mais fortes nos
indivíduos”, diz Raquel Garrido numa entrevista recente (1). Na transferência há também ódio,
e Hugo Chavez soube fazer emergir este sentimento entre muitos capitalistas, destacando o
cruel engano social de que são os autores.
Na transferência há também uma vontade de ignorância que deve ser removida. “Podes
saber! algo mais, algo novo, sobre o que é a base da tua relação com os outros, a tua relação
social”, esta é também a mensagem psicanalítica. A transferência se baseia numa suposição de
saber que se transforma em saber-fazer.
Foi aqui que Hugo Chávez se destacou: saber-fazer através da magia da palavra dirigida
a outro ser humano, através de um corpo em movimento, através de uma atenção e um olhar
que cativou, uma presença que carregava a perspectiva de libertação dos potenciais humanos
inibida e dificultada pela falta de civilização inerente ao capitalismo. Um saber-fazer que se
destacou em ações concretas nas áreas da saúde, da educação, do analfabetismo, da pobreza, da
solidariedade, e a direção dada pela Revolução Cubana também encontrou aí a sua realização.
Esta e muitas outras coisas ainda circulam entre Chávez e o povo, entre Chávez e os povos
oprimidos, entre Chávez e os povos que lutam contra a barbárie capitalista.
A transferência, para além dos sentimentos, faz circular palavras, imagens, olhares,
corpos. A transferência também faz funcionar os valores criados e portados pelo homem. Estes
valores terão uma função em grupos sociais, em classes sociais. Eles vão fazê-los funcionar,
fazê-los viver. A transferência é assim um fenômeno social, inerente à humanidade. É um
fenômeno primário, o fundamento da hominização e é, antes de mais, uma transferência social.
A transferência psicanalítica é secundária, é o resultado da transferência social e o saber que
dela resulta pode nos iluminar sobre os fenômenos sociais, desde que não ignoremos Marx.
Marx, de fato, é o analista da transferência social. A transferência é uma relação social
e “as relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Ao adquirir novas forças
produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e ao mudar o modo de produção, a
forma de ganhar a vida, mudam todas as suas relações sociais” escreve Marx em “Miséria da
Filosofia”.
Freud insiste em 1921 em “Psicologia das massas e análise do eu” que não há diferença
entre psicologia individual e social. Ele propõe uma ferramenta que nos permite analisar hoje a
transferência social, na condição de removermos os elementos reacionários que desordenam as
teorias freudianas. É uma ferramenta simples onde existe uma vertical e uma horizontal. A
transferência entre os membros do grupo social que se encontram no eixo horizontal é uma
função da vertical. Esta vertical liga todos os membros do grupo num único ponto. Freud falará
assim sobre este eixo vertical do papel do ponto único, do líder, daquele que lidera. Também
ali colocará a Igreja ou o Exército. Se removermos o que faz a fixação vertical, os elementos
na horizontal são afrouxados, todo o grupo social transitoriamente se parte em partículas
separadas.
Demonstrei (2) que o eixo vertical se refere à questão das origens, “de onde viemos” e
o eixo horizontal se refere à questão das diferenças entre os membros do grupo. A função do
líder tem um efeito sobre a questão que liga os membros do grupo, a questão das diferenças,
das diferenças sociais, das diferenças de raças, diferenças sexuais, etc., e, portanto, sobre a
questão da igualdade.
Esta ferramenta mostra a função do deslocamento, inerente à transferência, que
mencionei anteriormente. A partir disto e da experiência da minha prática, criei o termo
“psicanálise social” que é acompanhado pelo termo “transferência social” (3). Qualquer prática
psicanalítica é uma prática social, um bebê sozinho não existe diz o psicanalista Winnicott, um
indivíduo é um ser social diz Marx, um indivíduo sozinho não existe. Um indivíduo é
obrigatoriamente apanhado por uma transferência social, que é tanto o seu motor como o seu
obstáculo.
Esta transferência social se repousa no que cada ser humano encontra desde a infância:
a angústia de ser decepcionado, o encontro com a solidão emocional, o confronto de ser um
desperdício para um outro e isto acontece a todos de uma forma mais ou menos forte, imaginária
ou real na infância. Isto foi descrito por Freud com a experiência da criança de Hilflogiskeit
(desamparo), a experiência de estar em um momento sem qualquer ajuda possível, ou pelo
psicanalista pediátrico britânico Winnicott, com o termo breakdown, colapso. Noam Chomsky
fala também de colapso coletivo para a crise de 1929.
Esta experiência de colapso tem uma solução: uma vantagem que empurra para a vida.
Esta é a função que El Comandante soube cumprir, a de um poderoso vetor para a vida, vida
criativa para o povo, através da emancipação social. Em caso de angústia, que também produz
um fenômeno transferencial, a solução deve ser simples e concreta, eficaz, longe de abstrações
abstratas e metafísicas. Em caso de angústia, de sentimento, de abandono, de injustiça, de
humilhação, de sentimento de ser um desperdício, de ser uma merda, de ser um sub-humano, é
necessário encontrar uma solução concreta. Ao nível do seu povo Hugo Chávez encontrou a
solução concreta: a Revolução, a Revolução Bolivariana, e a prática que lhe está associada. Isto
é da maior importância para o futuro da humanidade.
De fato, a angústia social pode facilmente encontrar outra solução no eixo vertical e
hierárquico: a transferência para o ponto único da extrema direita, o fascismo. A tentação de
avançar para a extrema-direita é forte no mundo ocidental, especialmente na Europa. Esta
transferência para a extrema direita toma amplitude porque o capitalismo, que se tornou
bárbaro, sem limites, induz ele próprio a ideia de que existem “sub-humanos”.
Isto está na essência do capitalismo: os trabalhadores podem muito bem deteriorar a sua
saúde, ser postos na rua, ser condenados à morte por causa das suas condições de trabalho,
conscientemente, pelo lucro financeiro e gozo de uns poucos. Estes trabalhadores têm estado
errados por não os terem transformado em “homem feito por conta própria” (self made man),
gestores... Isto corresponde à ideologia dominante veiculada nos Estados Unidos da América,
que forja assim a maioria das mentalidades.
Para que haja “homem feito por conta própria” capitalistas, tem de haver “sub-homens”.
Historicamente, o conceito de “sub-humano” não nasceu com o nazismo, mas nos Estados
Unidos da América. Não é surpreendente que Henry Ford, como muitos capitalistas americanos,
muitos capitalistas alemães, tenha apoiado Hitler e, portanto, o horror nazi, tão bem descrito e
claramente anunciado em Mein Kampf (Minha luta), publicado em 1925.
Os grandes trunfos políticos dos líderes capitalistas de extrema-direita são confiar em
mecanismos psíquicos comuns a todos e de os manipular. Estes mecanismos são atualmente
impulsionados pela transferência social induzida pela crise do capitalismo: a exploração
humana, a humilhação, o engano e o abuso para obter ganhos financeiros. Esta transferência
implica a ideia de um menosprezo do que um ser humano é para outro ser humano.
A transferência social induzida pelo capitalismo está na sua dominância empurrada para
a ideia de que existem sub-humanos. Isto pode se tornar o elemento trágico do obscurantismo
no século XXI. O pensamento dominante induzido pelas relações sociais capitalistas não é o de
solidariedade, mas o de esmagar o outro para sobreviver. A importante diminuição dos direitos
dos trabalhadores, um corolário do reforço da exploração de classe, a ausência de garantias no
eixo vertical, portanto, a ausência de segurança, a ameaça de colapso, produz estes efeitos
desintegradores sobre o que une as pessoas, no eixo horizontal.
O que une as pessoas no período da civilização de consumo também produziu
mentalidades forjadas pelo valor dominante: o poder baseado no menosprezo do outro. A falta
de civismo, de respeito humano na vida quotidiana, no trabalho em primeiro lugar, mas também
em lugares coletivos, na rua, na condução automobilística, etc... devem assim ser colocados
neste registro, bem como o aumento das violências. O filólogo alemão, judeu e comunista na
Alemanha nazi, Viktor Klemperer, insiste na alienação induzida pelo nazismo no imaginário
popular no final dos anos 20 na Alemanha. O lugar do herói, assinala ele, não é o de quem age
para elevar a humanidade, mas o do piloto de automóveis de corrida. Há um turno, observa ele,

Se o jovem rapaz não escolhe como heróis os lutadores com músculos, nus ou em uniformes SA
(...) então ele está certamente inspirado pelos pilotos de carros de corrida. Estes dois tipos de
heróis têm em comum um olhar fixo no qual expressam uma firme determinação de avançar e
uma vontade de conquistar. A partir de 1939, o carro de corrida é substituído pelo tanque, o
condutor da corrida pelo condutor do tanque (4).
Eis um exemplo simples e dramático de deslocação, da transferência, da transferência
social e política. Durante várias décadas, o liberalismo induziu em mentalidades que o que
contava numa vida era ter sucesso financeiro, consumir, poder gozar de objetos de consumo,
tornar-se proprietário de bens. Na imaginação coletiva, o poder está lá e gerou a civilização do
consumo capitalista.
Hugo Chávez representou no concreto (este termo é em todas as circunstâncias e para
qualquer análise muito importante) um vetor de elevação da humanidade, combatendo a sempre
possível descida. O poder desejado por Chávez ia no sentido desta elevação, aquela que permite
ao povo de “poder fazer”, desenvolver os seus potenciais, realmente, livremente, ao contrário
da prática capitalista para a qual é o dinheiro que dá direitos e produz uma falsa liberdade. Ele
estava preocupado com a mentalidade tipicamente estadunidense da sociedade de consumo, de
sua globalização através da propaganda criada, a propósito, pelo sinistro Edouard Bernays,
sobrinho de Sigmund Freud, que utilizou a teoria psicanalítica para este fim.
Hugo Chávez soube desmantelar todos estes mecanismos que tornam a ditadura, real,
concreta, sobre os povos. A transferência, psicanalítica ou social, pode ser uma das ferramentas
para explicar fenômenos sociais se, e só se, esta transferência for analisada com Marx, que
destaca o engano capitalista no que constitui a transferência social. Colocado no eixo vertical
na transferência que vinha do povo, Hugo Chávez podia fazer circular a questão da verdade de
forma autêntica e ligá-la a soluções concretas para resolver situações por vezes complexas e
sempre relacionadas com questões de segregação.
Porquê falar de segregação? Com a crise da dívida, o poder de ganhar dinheiro ou de
consumir na vida quotidiana é afetado ou ameaçado: temos portanto de encontrar aqueles que
enganam, abusam e ameaçam o poder do grupo social. Os imigrantes em todos os países da
Europa se tornam assim os elementos visíveis de uma ameaça cuja verdadeira causa é
apresentada como invisível, a do capitalismo financeiro. Depois de ter tornado
fraudulentamente visível o que parece invisível, a solução de eliminação ou do apartheid pode
ser posta em prática. A violência e a guerra se tornam hábitos inescapáveis, tornados
costumeiros, naturais para os seres humanos.
É aqui que reside o perigo: o apoio, através da transferência social resultante da crise do
capitalismo, de uma maioria de cidadãos a uma política segregativa e violenta decorrente da
questão da origem das pessoas discriminadas (origem nacional, origem racial), eixo vertical,
cruzado com o das diferenças notadamente sociais, cívicas, religiosas, eixo horizontal.
É para salientar o pleno impacto transferencial do trabalho político realizado por Hugo
Chávez que tenho insistido sobre isso que se passa nas mentalidades na Europa com a crise, e
como pode ajudar-nos. Era muito sensível à desvalorização do humano produzido pela
“civilização” do consumo e pela “civilização” do engano capitalista. Ele lutou contra todas as
formas de segregação.
Isto me parece importante porque é aqui que a transição para a repetição do horror nazi
pode ter lugar, sem dúvida de uma forma diferente, é dito frequentemente, e a evolução do
nazismo na Grécia não parece ser muito diferente do original, como testemunha a saudação nazi
do jogador de futebol da AEK Atenas, Giorgios Katidis, no dia 16 de Março para celebrar a
vitória da sua equipa perante os espectadores. Neste primeiro país europeu, uma cobaia da
ditadura capitalista, a violência assassina contra estrangeiros de “países inferiores e pobres”, as
ameaças de morte contra certos jornalistas e comunistas, as novas formas de recrutamento
educativo de crianças e também ações concretas de "solidariedade" dirigidas a certas vítimas
alvo da crise são também prova disso.
O psicanalista francês Jacques Lacan, contra a doxa e o sentimento progressista da
época, previu logo no início dos anos 70 o retorno das religiões e do racismo. Avisou-nos em 9
de Outubro de 1967, o dia fatídico do assassinato de Che Guevara, durante a sua conferência
sobre a garantia psicanalítica: “O nazismo tinha apenas o valor de um reagente precursor de um
mundo organizado sobre todas as formas de segregação”.
O filósofo marxista Georges Politzer também nos advertiu sobre a natureza da
propaganda nazi. Ele mostra a distorção dos fatos que nos faria pensar que Hitler atacaria o
ouro do capitalismo numa “luta pela hierarquia de valores”. Ele mostra a ligação óbvia entre o
nazismo e o capitalismo: como esta luta pela hierarquia de valores cobre a luta pela partilha do
mundo, como a propaganda nazi tem como paradigma fundador o discurso da publicidade
comercial capitalista.
Isto é confirmado de outra forma por Joachim Fest, biógrafo de Hitler, para quem o
nazismo causou uma ruptura e depois uma inversão de valores entre o povo. Seria errado
desmontar o nazismo como um fenômeno, sem relação com o capitalismo e, portanto, com a
democracia liberal. Esta derrubada de valores antes de 1933 é o próprio efeito da relação social
produzida pelo capitalismo, e continuou e se agravou após a queda do Terceiro Reich (Terceiro
Império). Muitos cientistas nazis irão migrar para os Estados Unidos e serão protegidos, muitos
nazis serão protegidos na América Latina.
Na Alemanha Federal, Alemanha Ocidental dominada pelos Estados Unidos da
América, Kurt Kiesinger, membro ativo do partido nazi desde 1933, vice-diretor da propaganda
do Reich (Império) no estrangeiro, apelidado de “Goebbels do estrangeiro”, que liga Ribbentrop
e Goebbels, um alto funcionário do regime nazi será Chanceler da República Federal da
Alemanha de 1966 a 1969! Isto foi feito em relativa paz, para além da bofetada pública de Beate
Klarsfeld em 7 de Novembro de 1968, que o denunciou como nazi.
Nos anos sessenta, neste mesmo país, falar-se-á dos pontos positivos do nazismo, em
particular das suas lendárias rodovias, escreve Joachim Fest na sua biografia de Albert Speer,
o burguês liberal humanista, arquiteto, próximo da natureza, uma espécie de Bobo15 antes do
seu tempo, em suma, seduzido por Hitler ao ponto de se tornar seu Ministro do Armamento.
Não há necessidade de se surpreender com a destruição do povo grego que está
atualmente em curso; faz parte de uma política construída sobre a derrocada dos valores
produzidos pelo nazismo. Os Estados Unidos nos deram todos os sinais do horror contínuo em
relação à categoria humana de seres sub-humanos desde Hiroshima e Nagasaki, depois Napalm
no Vietnã. A lista é longa e é completada por exações colonialistas ocidentais na Argélia e
noutros locais.
Isto está em estrita continuidade com a cultura capitalista do “sub-humano”. Os homens,
mulheres, crianças, afegãos, iraquianos, líbios, sírios, mortos pela ação das potências ocidentais
ou dos seus aliados, não são “sub-humanos”, meros danos colaterais numa corrida para o
objetivo final, que é a segurança do lucro capitalista? Os homens, mulheres e crianças de Gaza
são considerados de forma diferente?
Ser capaz de fazer funcionar na prática outros valores humanos é, portanto, de suma
importância neste retiro da civilização que estamos a viver. Era nisto que Hugo Chávez
trabalhava. Conseguiu derrubar os valores do capitalismo no sentido de uma elevação da
humanidade e da transferência social no seu país e partilhá-la. É sem dúvida esta derrubada dos
valores da ditadura do capital financeiro que lhe trará esta calúnia no Ocidente para ser
considerado como um ditador! É uma derrubada revolucionária dos valores humanos no
concreto, um efeito da Revolução Bolivariana que tem muito a ensinar-nos.
Para voltar à questão colocada por Lênin na relação entre a Revolução e o Estado, é
evidente que existe um avanço essencial produzido por Hugo Chávez, e não é surpreendente
que o nome de Lênin também tenha sido mencionado após a sua morte. Este avanço diz respeito
à sua primeira eleição em 1999 e à sua vontade no eixo da transferência vertical de criar uma
inovação: convocar uma Assembleia Constituinte para que o povo possa escrever uma nova
constituição.

15
Expressão derivada e particular à cultura francesa que tem o significado de um boêmio burguês vinculado ao
meio intelectual, artístico e que é crítico às suas origens, recusa-se a pertencer à sua própria classe social burguesa.
Como salienta Raquel Garrido, “foi uma profunda revolução no próprio pensamento
democrático” (5), “um processo que permite envolver o povo na vida política” (6). Esta ideia,
que foi iniciada na mesma entrevista, poderia ser mais desenvolvida:

Na realidade, a realização de um referendo para perguntar se o povo quer alterar a Constituição


através de uma Assembleia Constituinte é necessariamente válida do ponto de vista jurídico, na
medida em que a Constituição estabelece o princípio de que a soberania reside no povo. Mas
para os neoliberais, Chávez, quando eleito presidente, foi culpado de minar a base do seu próprio
poder legal ao encenar um golpe de Estado contra si próprio: eles retrataram-no, portanto, como
um ditador (7).

Isto modifica totalmente o esquema dado por Freud em 1921 que descreve um tipo de
transferência no seu fundo fascista e racista entre as massas e o líder, entre as massas e o Estado,
entre a horizontal e a vertical. Esta é a antítese do esquema dominante da “democracia” liberal
na relação entre os políticos e o povo, como demonstra esta declaração feita há alguns meses
na Croácia por um candidato nas eleições “Votem em mim! Para vocês isso não vai mudar nada.
Mas para mim... muito!”. Com Hugo Chávez é uma questão de construir uma garantia que faz
um furo no sistema oligárquico financeiro: retirar o poder dos ricos, partilhar na coletividade.
Chávez deve ser completado em muitos registros, especialmente sobre a função
revolucionária da sua dialética transferencial com o Povo, as massas, a relação com a produção
e a sua utilização. Trata-se de uma transferência histórica entre El Comandante, que é aqui o
nome de uma função ao serviço de uma orientação decisiva para uma civilização de
emancipação humana, e os povos que enfrentam a ameaça da barbárie.
Vou concluir sobre um ponto: a transferência internacional. Face ao perigo de uma
amplificação das guerras internacionais em curso, face ao atual recuo da civilização, a
importância de uma transferência internacional de solidariedade e luta entre os povos, pela
emancipação e a transformação das relações sociais, das transferências sociais, é fundamental.
É importante para os povos em luta saber que há outros que fazem o mesmo e tem sucesso, que
o socialismo do século XXI, tal como formulado por Hugo Chávez, avança em algumas partes
do mundo, particularmente na América Latina, sob diferentes formas. O apelo à construção de
uma quinta internacional, formulado por El Comandante em 2009, estava neste registro,
essencial para combater o imperialismo a fim de alcançar “a derradeira e maior ambição
revolucionária, que é ver o homem libertado de sua alienação” (8).

Hasta siempre Comandante!


(1) Entretien avec Raquel GARRIDO par Clément Sénéchal, le 8 mars, Ragemag, Paris

(2) H.HUBERT-KLEIN, « Transfert pictural et drame de peindre » in Art, Psychoanalysis and


Revolution, Londres janvier 2011

(3) H.HUBERT, Ateliers Psychanalyse et ségrégation, « Ce que Marx apporte à la pratique


psychanalytique » 2011-2013, Paris, Elan Retrouvé.

(4) V. KLEMPERER, LTI, la langue du IIIème Reich, Albin Michel, 1996, p. 27

(5) Raquel GARRIDO, opus cité

(6) idem

(7) idem

(8) GUEVARA Ernesto, Discursos y escritos, La Habana, Editorial de ciencias sociales, 1977
O SUPEREU FEROZ DE JEAN-LUC MÉLENCHON E O ESPANTO DE JACQUES-
ALAIN MILLER

O psicanalista Jacques-Alain Miller fez a sua avaliação de certos candidatos


presidenciais na revista semanal Le Point, na quinta-feira, 5 de Abril de 2018. O seu critério é
assumir o papel de uma estrela: o que é mais impressionante? Há, antes de mais, um truque que
nos é bem explicado entre a função do pai, pater em latim que nos é dito, e é-pater [surpreender]
a galeria. “(...) [épater] surpreender é sair do normal, sair da linha. Todos os outros de um lado,
e o Um à parte: a exceção toma o lugar do pai” [1] A fábula é construída. No lugar da velha
ordem patriarcal, deve ser posto no lugar Um líder que espante as multidões. Que forma
espantosa de articular funções singulares e coletivas na política e na sociedade!

Qual é o resultado? Disse Miller:

Agora, isso irá vos espantar, vocês estão encurralados aí no canto, Sarkozy [ex-presidente da
França, entre 2007 e 2012, ele sabe como fazer. Hollande [Presidente da França e Co-Príncipe
de Andorra de 2012 a 2017]. (...) ele prometeu não nos impressionar. Convenhamos que ele
conseguiu isso impressionantemente. Depois de ter mencionado que Hollande se esconde do
que ele diz e se envolve em “não toque!”.

Indica ainda Miller:

Sarkozy, pelo contrário, vai para o contato. Ao estilo fóbico do socialista responde o papouille
[expressão em francês para designar dentre outras coisas: uma carícia, um toque indiscreto]
sarkozyista. Como resultado, a campanha de 2012 vê novamente a mesma cena: Hollande foge,
Sarko trovejando atira-se a si próprio atrás dele. É Apollo perseguindo Daphne.

Mélenchon é a surpresa da campanha, tal como Marine Le Pen foi a surpresa da pré-
campanha, segundo nos foi dito. Este último “tinha tudo para impressionar a galeria, e fazê-la
gritar, como o seu pai uma vez fez, com uma palavra espirituosa e apimentada”. É isto que
caracteriza o discurso lepenista segundo Jacques-Alain Miller: uma pitada de pimenta sobre
uma palavra espirituosa e faz-nos apreciá-la! Mas será que não inspira nostalgia? “Cansada!
deixou as suas cartas de nobreza no bengaleiro, abandonou a longa linha contra-revolucionária
que floresceu na Colaboração [2] e nas guerras coloniais, deixou-se de se difamar tão bem, tão
bem compensada pelo politicamente correto que agora está cansada”. Eis um comentário
espantoso.
Então a surpresa Mélenchon? Com ele, “a memória dos séculos chega ao palco, cheia
de todas as dores e queixas da esquerda desde o 9º Termidor [Décimo-primeiro mês do
Calendário Revolucionário Francês, em vigor de 22 de setembro de 1792 a 31 de dezembro de
1805 na França]”, ou seja, a queda de Robespierre. Mas

Ai daquele que o desrespeita! A sua irritação só pede para ser vertida naquelas raivas que eram
para os Antigos, a característica de um temperamento tirânico: fazem dele a encarnação de um
supereu feroz. Como resultado, todos o acham espantoso: que verve, que cultura, que ponche!.

Por detrás desta parte laudatória, e não se pode negar o talento de Jean-Luc Mélenchon,
o que deixa uma marca no comentário é bem: “Termidor, tirânico, dominado por algo feroz”.
Portanto, cuidado! É melhor amansar Bayrou [é um político francês que presidiu a União para
a Democracia Francesa. Um dos fundadores do Partido Democrata Europeu] que, talvez, “(...)
imaginemos o presidente perfeito, não vamos infligir a este ícone o teste do poder: ninguém
governa inocentemente”.
As escolhas políticas de Jacques-Alain Miller transparecem. A sua argumentação
conduz à redução da política a um carácter psicológico, ignorando a história, singular ou
coletiva, dos movimentos sociais, da exploração capitalista e das suas consequências. Seria
apropriado que um psicanalista inspirado por Lacan analisasse os discursos e visse os efeitos
do capitalismo (que leva ao furo, como nos disse o sogro de Jacques-Alain Miller), ou
convocasse Marx e a sua análise do engano social, ou a função do mais-de-gozar na sociedade
capitalista, aquela que Lacan inventou como a contrapartida do mais-valor marxista.
Temos direito a uma fábula que valoriza a política, do espetáculo, do extraordinário,
aquele que se estabeleceu na França durante alguns anos. O filólogo Viktor Klemperer, autor
do LTI (Língua do Terceiro Reich [Império]), insistiu que a política de espetáculos dos Estados
Unidos tinha como matriz a encenação dos nazis na Alemanha, cortando o conteúdo da
elaboração política. A teoria do “Um à parte e os outros” assumiu proporções catastróficas neste
contexto em 1933.
Não seria bastante interessante questionar criticamente o trabalho de Freud em
“Psicologia das Massas e Análise do Eu” em 1921, que carrega as contradições da sua classe
social: ele está um passo à frente no fato de ele estabelecer uma homologia entre psicologia
social e psicologia individual e um passo atrás no fato de ele já ter renunciado ao concreto para
falar acima de tudo do homem abstrato e se confinar a uma posição conservadora, como
mostrou o filósofo Georges Politzer [3]. De fato, é sempre impressionante ler o texto de Freud
em alemão do qual emerge a transferência das massas para “Ein Führer” [Um líder] ou o
“Rassenseele”, a alma da raça, um termo do trabalho de Le Bon “A psicologia das multidões”
que Freud não critica, mas que será a pedra angular do sinistro Alfred Rosenberg, ideólogo do
Partido Nazi. Lacan disse na sessão de 10 de Maio de 1972 do seu seminário que Freud herdou
o erro de colocar o tudo como uma entidade do famoso Le Bon, que ele descreveu como um
imbecil. Jacques-Alain Miller dá antes a impressão de mergulhar nele.
Teria sido interessante compreender o culminar agonizante dos limites da civilização
judaico-cristã, daquele que nos chega do Mestre Eckhart: fazer o Um com Dois, no Amor. Mao
num contexto não ocidental disse que, na dialética da contradição chinesa e marxista, Um se
divide em Dois. O seu adversário neste campo era Deng Xiao Ping, que era a favor da ausência
de uma dialética de luta de classes. Teria sido interessante apreender a filosofia de Lênin na sua
análise do imperialismo, nos seus comentários sobre os Estados Unidos da Europa, ou quando
Lacan o cita em 1976, na sua reflexão topológica, para dizer que um direito pode ser torcido.
Mas já sabemos que nem Lênin nem Mao beberam camomila [4]. Não existe tal coisa
como um indivíduo sozinho. A orientação de “Um à parte e os outros” é baseada no capitalismo
e resulta no fascismo. Não há diferença entre a essência da transferência social e a essência da
transferência de uma pessoa em psicanálise. Isto torna necessário não considerar a transferência
psicanalítica como algo sagrado e pensar na fórmula de Marx “A essência do homem está na
totalidade das relações sociais”, utilizando o instrumento da transferência. A transferência
capitalista na sociedade implica que o objetivo ideal de um indivíduo é ter sucesso financeiro
ao preço de esmagar alguns “sub-humanos”, daí o apoio do industrialista americano Ford a
Hitler. O conceito de “sub-humano” veio do Underman americano, e os nazis só o retomaram,
Untermensch, como Domenico Losurdo recentemente recordou [5].
O trabalho concreto em Cuba tem uma orientação diferente deste desenvolvimento
capitalista, com base no Um à parte e nos outros. A orientação da Revolução Cubana produz
efeitos emancipatórios para a diversidade humana, longe de ser uma fraseologia abstrata. O
trabalho de Mariela Castro sobre a diversidade sexual é um bom exemplo disto [6].
A visão de Jean-Luc Mélenchon sobre a situação na América Latina dá esperança
àqueles que, sem fazer dele o “Um da exceção”, ouvem com interesse que as ideias veiculadas
no mundo ocidental sobre Cuba ou a Venezuela são propaganda. Também neste caso, a
utilização da transferência psicanalítica conservadora pode causar estragos. Citamos
rapidamente a contracapa do livro “Propaganda” de Edwards Bernays (1891-1995), publicado
pela primeira vez em 1928, com um prefácio do Professor Normand Baillargeon [7] na nova
edição francesa de 2010. Bernays é sobrinho de Freud. Referindo-se frequentemente ao seu tio,
desenvolveu uma propaganda comercial e política baseada em teorias psicanalíticas: “Como
impor uma nova marca de detergente em pó? Como obter a eleição de um presidente?”. Mas o
que é menos conhecido, campanhas de desestabilização política orquestradas na América
Latina, que acompanharam a derrubada do governo da Guatemala, de mãos dadas com a CIA
(Central Intelligence Agency [Agência Central de Inteligência]). É verdade que Freud não
estava inclinado para Marx.
Existe uma dialética entre o individual e o coletivo. A transferência é a força motriz por
detrás dela. Por vezes para pior. Para concluir, note-se que o Sr. Jacques-Alain Miller partilha
a sua transferência relativa à atual crise financeira, numa entrevista para Marianne 2 [8]. Ele
nos diz que “o dinheiro é um significante sem sentido, que mata todas as significações”. Pode
ser difícil fazer o povo grego engolir isto. A crise financeira faz muitas vítimas, matando seres
humanos, o número de suicídios duplicou na Grécia desde o início da crise. Há muito a dizer
sobre toda a gama de comentários feitos nesta entrevista.
Vamos tentar encontrar algo psicanalítico. Por exemplo:

Morte, gozo e repetição são as três faces de uma pirâmide cuja base é dada pela natureza
inconsciente do dinheiro: é da ordem do objeto anal. O que vemos neste momento de verdade e
que constitui uma crise financeira? É que tudo isto é inútil e que o dinheiro, é da merda! (...)
Bento XVI, sempre animado, foi rápido em explorar a crise financeira: prova bem, disse ele,
que tudo é vaidade, e que só a palavra de Deus se mantém!.

Para uma psicanálise concreta e emancipatória, seria apropriado retornar a Marx, e à sua
descrição das funções do dinheiro, o poder que transforma as relações entre os seres humanos
notadamente. Continuemos com as peças escolhidas:

O significante monetário é um semblante, que repousa sobre convenções sociais. O universo


financeiro é uma opadas, que se baseia em convenções sociais. O universo financeiro é uma
arquitetura de ficções cuja pedra angular é o que Lacan chamou de “sujeito suposto saber”, para
saber o porquê e o como. Quem desempenha este papel? (...) a crise durará enquanto não
tivermos reconstruído um sujeito suposto saber (...). Isto conduzirá eventualmente a um novo
Bretton Woods [o Sistema Bretton Woods nos Estados Unidos, foi um sistema de gerenciamento
econômico internacional que estabeleceu em julho de 1944 as regras para as relações comerciais
e financeiras entre os países mais industrializados do mundo], um conselho encarregado de dizer
a verdade sobre a verdade.

Uma palavra sobre o “sujeito suposto saber”, Lacan o tinha inventado para distinguir o
motor transferencial, a suposição que dirige a transferência. Aqui, parece ser um puro discurso
do mestre. Bretton Woods tinha presidido o nascimento do FMI (Fundo Monetário
Internacional) em 1946. É aqui que reside a chave para o motor de transferência.
O singular e o coletivo estão ligados. O Sr. Jacques-Alain Miller se abstém de falar de
domínio financeiro, tem uma abstinência em relação ao capitalismo, uma palavra que não
aparece. Terminemos com a bússola dada por Karl Marx, que evoca, em relação à partilha do
mais-valor, a teoria da abstinência defendida em 1836 pelo economista Nassau Senior, que
explica que a fonte do lucro do capitalista é a abstinência e não a exploração humana. Marx
escreveu:

o toque da economia vulgar tinha soado... Nassau W. Nassau W. Senior tinha anunciado ao
mundo outra descoberta: “Eu”, disse solenemente, “substituo a palavra capital, considerada
como um meio de produção, pela palavra abstinência”. Uma invenção sublime! Um exemplar
inigualável da “descoberta” da economia vulgar! Substitui-se uma categoria econômica por um
bajulador verboso, só isso [9].

Marx é espantoso!

[1] J-A Miller « Hors de l’ordinaire pour mieux nous épater », Le Point, 5 avril 2012, p. 58,
toutes les références citées proviennent de cet article sauf notification contraire

[2] Nous noterons le C majuscule

[3] Voir H.HUBERT, Congrès Marx International VI, Faculté de Nanterre, septembre 2010,

[4] Voir H.HUBERT « Pourquoi faire un colloque sur les Trans-Révolutions ? » in LeGrandSoir
1er décembre 2011

[5] Lors de la conférence prononcée à la Fondation Gabriel Péri sur Staline, le 12 avril 2012
à Paris

[6] Voir H.HUBERT « Pourquoi faire un colloque sur les Trans-Révolutions ? » in LeGrandSoir
1er décembre 2011

[7] E. BERNAYS, Propaganda, Comment manipuler l’opinion en démocratie, Zones, label des
Editions La Découverte, 2010

[8] J-A MILLER, La crise financière vue par Jacques-Alain Miller, 10 octobre 2008, Blog AMP
(Association Mondiale de Psychanalyse)

[9] Marx Karl, Livre 1, Editions Messidor, Editions Sociales, 1983, p.668
PORQUÊ REALIZAR UM COLÓQUIO SOBRE O TEMA “TRANS-
REVOLUÇÕES”?

A ideia de organizar um colóquio que atravessa a revolução transexual, as revoluções


individuais e coletivas surgiu-me após um encontro internacional que teve lugar em
Havana em 2010 sobre trans-identidades, gênero e cultura. Este colóquio foi organizado
em conjunto com Mariela Castro e a equipe do Cenesex (Centro Nacional de Educación
Sexual)

Psiquiatra, Psicanalista, ex-perito junto à Corte de Apelação, trabalhando durante muito


tempo a questão transexual na França, descobri a extensão dos avanços feitos em Cuba no
caminho para enfrentar o problema e para o tratar. Mariela Castro partiu dos sintomas históricos
individuais e coletivos: o que estava errado na vida social dos transexuais, o seu sofrimento, e
propôs um programa nos aspectos sanitários, legais, sociais, cívicos que, tanto quanto sei, não
tem equivalente noutro país. Estes avanços são realizados em um trabalho em conjunto com os
próprios transexuais e todas as categorias profissionais envolvidas.
Micro-Revolução, por assim dizer, uma vez que diz respeito a uma pessoa em 60 000
em geral, uma pessoa que se sente presa no outro sexo desde a infância, pedimos uma
transformação hormonal-cirúrgica de mudança de sexo. A minha experiência prática e teórica,
numa abordagem psicanalítica que não esquece a contribuição de Marx, fez eco do que Mariela
Castro salientou, ou seja, que houve este possível avanço em Cuba por causa do contexto
ideológico cubano. É a partir daí que uma micro-revolução individual pode aprender sobre a
revolução coletiva, tornar-se transversal, e passar pelo que está na base das relações sociais. O
fato é que a evolução das relações sociais, das relações entre os seres humanos, no Ocidente,
no mundo em geral, é cada vez mais preocupante. Os sintomas que anunciam uma grande crise
ética se tornam cada vez mais presentes na civilização capitalista.

Os efeitos do capitalismo e da sua crise sobre o individual e o coletivo, a transferência


social

Voltemos à questão do individual e do coletivo. Até ao relâmpago da crise financeira de


2008 e suas consequências, o capitalismo parecia, para uma maioria de europeus, norte-
americanos e australianos, trazer ao Ocidente uma melhoria da liberdade e do conforto de vida,
à custa de políticas bélicas e assassinas a nível civil no próprio Ocidente, como mostra o
exemplo da ex-Iugoslávia, mas acima de tudo e, portanto, mais longe na Ásia, África e América
Latina, para não mencionar a infâmia da fome e da mortalidade infantil em muitos países destes
três continentes.
Tinha-se desenvolvido e continua a desenvolver o que Pier Paolo Pasolini definiu como
a civilização do consumismo capitalista como o primeiro verdadeiro totalitarismo que toca a
humanidade. Cada ser humano apanhado neste sistema capitalista é confrontado com o
arrebatamento do ser humano para ser um objeto passivo, depois um desperdício, seja no
trabalho, na rua, na vida social. Neste sistema, este humano produz este tipo de relação social,
eventualmente contra a sua vontade, de uma forma forçada.
Isto tem uma consequência na transferência social cotidiana, e portanto repetitiva: a de
uma passividade, de uma tendência para se habituar ao desumano. Mesmo que exista legislação
sobre a tortura, os crimes de guerra existem, as transgressões são repetidas. Estas repetições de
relatos de massacres, de danos colaterais, de torturas forçam uma adaptação inconsciente ao
horror. Conscientemente ou inconscientemente, face a estes aumentos de segregação e de
crueldade, o primado de ganhar dinheiro e de consumir tem sido até agora maioritária nas
sociedades ocidentais. Não é alheio à ideia de uma superioridade de um ser humano sobre outro
com base no sucesso financeiro ou de consumir mais de acordo com o modo capitalista.
Refere-se ao fato social comum de que um humano pode, neste sistema, ser um dejeto,
etimologicamente algo que cai, e cai num estado inferior, um estado onde o humano pode
esmagar outro humano. Isto diz respeito ao mais-de-gozar de homens históricos reais que
funcionam nas sociedades ocidentais, o mais-de-gozar individualmente do tipo de mais-valor
psíquico identificado pelo psicanalista Jacques Lacan ao ler Marx. Por tudo isto, um certo
número de cidadãos tentam fazer um furo na perversão do sistema que é o primeiro verdadeiro
totalitarismo onde o impulso pela primeira vez na história parece prevalecer e empurrar para o
pior pela aliança da exploração capitalista mais brutal, da busca desenfreada e estúpida do maior
lucro a curto prazo e do poder tecnológico que fascina.
O capitalismo entra numa fase que pode levar à ruína da humanidade, para citar Lacan
desde o início dos anos 70 e num período de tempo relativamente curto: as inconsequências
para o lucro a curto prazo abundam, sendo o exemplo do acidente nuclear no Japão
paradigmático desta aporia mortífera do capitalismo. Homo Sapiens vulnerabilis. Pasolini
chamou às democracias liberais parlamentares, as falsas democracias, as que hoje mostram
melhor as suas máscaras por causa da crise financeira.
Como sair das contradições que levam à aporia mortífera do capitalismo?

A aporia consiste em contradições que não encontram seus caminhos. Como iluminar o
caminho? Certamente ao tomar em ação, ao fazê-lo para transformar as relações sociais, a
orientação de uma ética de consequências em vez da de intenções. Tomando o caminho de um
retorno a Marx sem se deixar enganar pela omnipotência da teoria ou da verdade absoluta. O
conflito social teorizado em Marx, a luta de classes e as lutas contra a exploração como
orientação de um movimento real. Ele também introduziu a psicanálise onde o “eu” não é o
mestre em sua casa, onde o discurso psicanalítico pode fazer um furo no discurso dominante, o
Discurso do Mestre. Introduzindo a criação artística e cultural como um vetor de transformação
da relação social.

Porquê pensar uma contribuição da psicanálise para as revoluções coletivas?

A questão coloca-se. A psicanálise nem sempre tem uma boa impressão no movimento
orientado para os marxistas, e com razão. Como Lacan indica, os psicanalistas fizeram muito
pouco na resistência ao nazismo e os pontos de junção entre o nazismo e a psicanálise foram
corretamente salientados pelo filósofo Georges Politzer em 1939, Lacan irá validar esta análise
[1]. Já no final da década de 1960, Lacan previu o aumento da segregação, especialmente a
segregação racial, contra a opinião comum. Em 1967, ele deu ao nazismo “o valor de um
reagente precursor (...) da ascensão de um mundo organizado sobre todas as formas de
segregação”.
Isto é importante porque não estamos assistindo à ascensão do que poderia se tornar
uma explosão mortal de segregação. A crueldade e a segregação são fenômenos fundamentais
em todo o ser humano, e entre os avanços da civilização poderia haver o de avanços concretos
no saber-fazer social e político com estes fenômenos, numa relação ética. Creio que é neste
preciso momento que encontramos avanços cubanos no tratamento da questão transsexual e da
forma de segregação que ela acarreta. Trata-se de um avanço civilizacional do qual devemos
tirar lição rapidamente face às catástrofes humanas e éticos que se aproximam com a aporia
capitalista e que nos atingirão na França e noutros lugares.
Então, porquê a psicanálise? Porque é uma prática de transferência, e a transferência
como é também uma relação social está numa lógica que inconscientemente articula o “mais”
e o “menos” na economia psíquica, como Lênin e Lacan indicam, uma lógica que articula
dialeticamente a perda e o mais-de-gozar. A transferência social enoda o individual e o coletivo,
a experiência psicanalítica e a contribuição de Marx.
Esta transferência funciona como funciona a transferência psicanalítica. Há um
invariante em Lacan: assim que evoca o racismo, a discriminação e a estigmatização, fala
também do fim da cura, da passagem onde, na transferência, o analista toma o lugar de dejeto
que é lançado na lixeira, para aquele que ainda está no divã. Este é o resultado do esvaziamento
do que leva um ser humano a gozar na sua relação com os outros e consigo próprio. Alguma
coisa caiu na transferência, o que anula e orienta a ética. Esta lógica de báscula pode nos
iluminar se a ligarmos à relação social analisada por Marx.

A experiência psicanalítica e a contribuição de Marx

Esta é a diferença essencial entre os psicanalistas. Caso contrário, existe um grande risco
de cair numa metafísica psicanalítica que transforma o explorador e o explorado uns contra os
outros. Como salienta Politzer, “(...) os psicanalistas ofereceram aos burgueses uma outra
compensação. Eles dizem-lhes: ‘Despojamos’ as vossas virtudes, mas, não se preocupem;
fazemos o mesmo com o proletariado”.
O psicanalista Jacques-Alain Miller, num artigo publicado no semanário, a revista, Le
Point, em 29 de Setembro de 2011, produz ideias semelhantes... “Obama fez-nos sonhar.
Chávez também fez as pessoas sonharem. Agora, nos Estados Unidos como na Venezuela, os
progressistas estão desiludidos” [3]. Vamos ler um pouco mais, “Lênin, certamente, refundou
a Rússia e Mao a China, mas não eram consumidores de camomila. E para que resultado - se
não a refundação, aqui da autocracia, ali de uma aristocracia” [4]. Mas tranquilizemo-nos: “Sim,
houve, no século passado, refundações bem sucedidas: a da Alemanha, de Japão, de Israel. Foi
preciso uma guerra mundial, Hiroshima, Dresden e a Shoah” [5].
As severas críticas de Politzer a uma certa psicanálise ainda hoje são, portanto,
relevantes. Não criticando a exploração capitalista, o ditame financeiro, sob o pretexto da
política do sonho e da política do desejo, apaga a homologia entre o atual ditame financeiro e o
ditame racial do nazismo. É portanto necessário apoiar uma prática psicanalítica que tenha em
conta o que a leitura de Marx traz à psicanálise. A essência humana na sua realidade é a
totalidade das relações sociais, Marx indica na sua 6ª tese sobre Feuerbach.
Lênin assinala também que as relações sociais são objetivas, portanto inconscientes:
“Em todas as formações sociais mais ou menos complexas, e especialmente na formação social
capitalista, os homens, quando entram em relações uns com os outros, não estão conscientes
das relações sociais que se estabelecem entre eles” (Materialismo e Empirocritismo).
As relações sociais, a transferência psicanalítica e o inconsciente são assim articulados
e permitem avançar para uma transformação da relação entre o indivíduo e o coletivo. Voltemos
à questão da transferência social. O eixo vertical, patriarcal, o da origem, está em declínio e o
eixo horizontal, o do irmão, do outro, dos iguais e de suas diferenças, está no primeiro plano
das tensões sociais. É necessário inventar uma nova relação social, caso contrário a segregação
e a crueldade desenvolver-se-ão horizontalmente no laço da civilidade, da civilização, a nível
mundial.

A Revolução e as transformações das relações sociais

A fonte da guerra diz sempre respeito à humilhação do outro, à privação e à fabricação


humana que este outro odeia, engana hipocritamente, abusa socialmente. Em caso de colapso
pessoal ou social, de queda, o derrube transferencial pode ser rápido em direção ao ódio. Noam
Chomsky está preocupado com isto e descreve-o muito bem num artigo publicado na
Legrandsoir em 21 de Abril de 2010. É esta relação com o colapso de uma vida no meio de
valores que já não funcionam que pode ser um fator determinante numa nova catástrofe. É uma
questão de provocar uma transformação das relações sociais que nos permita afastar do perigo
que nos espera, o regresso ao fascismo do Um, que pode eliminar as diferenças, erradicá-las, se
essas diferenças forem tomadas como falhas que conduzem ao engano e ao estatuto humano de
desperdício, para construir um Eu forte, ao estilo americano, o da Ford ou da psicanálise
americana. Politzer tinha demonstrado vividamente a estreita ligação entre a cultura capitalista
americana e o nazismo. Isto diz respeito à noção de sub-humano.

A Revolução transexual

E é aqui que entra a micro-revolução transexual. Os transexuais não são tomados por
sub-humanos, pessoas que enganam a sua identidade, que a gozam, que abusam dela? Isso diz
respeito à verdade do ser, o relatório ético. É aí que as pessoas transexuais nos ensinam. Há um
colapso pessoal de um valor, na infância da pessoa transexual, o valor comum que torna um
corpo, uma identidade, aquele que diz respeito ao poder viril. Abandonar a falsa pretensão deste
valor fálico tem consequências cruéis para a pessoa transexual nas suas relações sociais com
reações de escárnio e de segregação, de violência por vezes assassina.
Eis o colapso da vida da pessoa transexual e os seus efeitos, que assim nos ensinam
noutros registros sobre o colapso subjetivo ligado a uma crise social, por exemplo. O resultado
pessoal da transexualidade é de fato uma revolução: há abolição de uma ordem antiga e
transformação das relações sociais, abolição da identidade sexual imposta por uma ordem social
que já não funcionava para a pessoa e transformação na identidade sexual que impulsionava
para a vida face ao colapso da infância.
Numa revolução há a abolição de uma ordem antiga, que funciona apenas ao preço de
uma aporia mortal, e a transformação de uma relação social. A pessoa transexual abole a sua
identidade primária, que já não funciona mais para ela e muda a relação social, a sua
participação na vida social.

A insurreição cubana e a sua contribuição para uma civilização de emancipação humana

O contexto ideológico em Cuba é favorável a esta orientação da estratégia social,


salienta Mariela Castro. Isto me parece paradigmático de uma concepção do ser humano que
está fundamentalmente presa nas relações sociais, e nestas relações sociais há
fundamentalmente uma segregação a lidar. O esquema individualista capitalista é aqui
completamente invertido: a evolução de uma personalidade, de uma pessoa não é apenas uma
individualidade mas também o produto, o efeito de uma relação social. Isso diz respeito tanto
mais à articulação do singular e do coletivo na problemática atual de que a pessoa transexual é
assim confrontada ao nível da identidade sexual com aquilo que nos toca coletivamente com o
atual desenvolvimento capitalista: um valor humano que não funciona mais, o valor homem ou
mulher, o non-sens [não-sentido] que empurra para a transformação.
A lógica inconsciente que empurra uma pessoa transexual para a transformação de um
sistema que já não funciona para ela é paradigmática do que empurra para a Revolução e a
emancipação humana. Será assim muito interessante ouvir a questão transexual na sua relação
com a crise capitalista e os seus efeitos no mundo. Será muito interessante compreender o que
se produz em Cuba, onde o valor humano não corresponde ao desenvolvimento da
superioridade financeira como no relatório social europeu.
Tinha observado num artigo no Le Grandsoir de 12 de Dezembro de 2010 que a
dimensão histórico-cultural como orientação básica no ensino da psicologia em Cuba nos
permite analisar os problemas do ponto de vista histórico. Isto é o que também é transmitido a
partir do trabalho de Mariela Castro. As histórias individuais e coletivas são, de fato, do mesmo
tecido e a ênfase na cultura coloca o fenômeno da transferência social com o da pessoa humana.
Esta abordagem faz parte do “Pensamiento cubano” mas, mais especificamente para a
psicologia, destaca o papel fundador do pensamento do psicólogo russo Lev Vygotski (1896-
1934) que introduziu o fato de o desenvolvimento infantil ser uma função dos grupos sociais
perante o fator estritamente individual. A preocupação cubana em definir a aplicação concreta
da psicologia para a emancipação humana é um material muito importante, completamente
desconhecido na Europa.
Organizar um certo tipo de relação com a produção não deixa de ter efeito na questão
do valor humano, e o que acontece em Cuba por meio dos avanços na transexualidade
corresponde bem ao desenvolvimento da ética e da civilização para romper com a
desvalorização da humanidade produzida pelo capitalismo. É isto que estará em ação este fim
de semana com encontros internacionais entre a França, a China, a América Latina e a Grécia,
mas também entre práticas diversas: economia, filosofia, cinematografia, escrita e jornalismo
em particular. Mais uma vez, precisamos de inventar uma nova relação social, caso contrário
veremos a segregação e a crueldade se desenvolverem horizontalmente no laço da civilidade,
da civilização, a nível mundial.

[1] Hervé HUBERT, Entre apport et aporie de la critique marxiste : retour sur la critique de
Georges Politzer faite à la psychanalyse. Perspectives actuelles. Congrès Marx International.
Université de nanterre. Septembre 2010. Section Etudes Marxistes.

[2] POLITZER G, Ecrits 2 les Fondements de la Psychologie, Editions Sociales, Paris, 1973,
p. 277

[3] MILLER J-A, La politique du rêve et la politique du désir, Le Point, 29 septembre 2011, p
72

[4] idem

[5] idem
REFLEXÕES SOBRE O 6º ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDANTES DE
PSICOLOGIA EM HAVANA

Psiquiatra, Médico Hospitalar, Chefe de Departamento de um Centro de Consulta


Psicoterapêutica em Paris, fui convidado, juntamente com a minha colaboradora, Magda
Gomez, psicóloga, a participar do 6º Encontro Internacional de Estudantes de Psicologia em
Havana. Tive a oportunidade em Junho, durante o 1º Colóquio Internacional sobre Trans-
Identidade organizado em parceria com Mariela Castro e a equipe do Cenesex (Centro Nacional
de Educación Sexual), de ir, por iniciativa dos meus colegas psicanalistas, Concepción e
Bernard Doray, à Faculdade de Psicologia da Universidade de Havana.
O acolhimento ali tinha sido caloroso e, no entanto, tínhamos chegado inesperadamente
em meio a época de exames! No entanto, fomos recebidos pelo Reitor, Reynaldo Rojas
Mansera, e pela responsável pelo centro de documentação, Mariela Despaigne. Estes últimos,
muito gentilmente digitalizaram vários documentos consultados, vendo o nosso forte interesse
em certas obras. Isto foi feito por sua iniciativa, gratuitamente. Concepción filmou e entrevistou
os estudantes, que estavam muito interessados e curiosos, felizes por poderem trocar e falar
sobre os seus estudos. Um acolhimento desta qualidade é raro e não tenho a certeza de que num
país como o nosso, tal liberdade de contatos e entrevistas filmadas sem autorização prévia seja
comum na universidade.
O 6º encontro internacional teve lugar de 25 a 29 de Outubro e confirmou a impressão
inicial de grande qualidade humana e relacional. Os trabalhos mostraram variedade e riqueza
tanto nos temas como nas orientações propostas. Deve-se também notar que havia um número
muito grande de estudantes internacionais que vinham principalmente da América Latina:
México, Colômbia, Venezuela, Chile, Argentina, Santo Domingo, mas também da Espanha e
da China. Havia também um orador do Hampshire College, dos Estados Unidos.
Gostaria de fazer algumas observações:

- Estes foram prioritariamente dias organizados pelos estudantes em coordenação com os


professores da Universidade. Enquanto estes últimos intervieram em sessão plenária uma ou
duas vezes por dia para uma conferência de duas horas, o resto das intervenções foi da
responsabilidade dos estudantes. Isto é notável e importante na dinâmica dos próprios dias. Este
aspecto não se encontra geralmente na França, onde no próprio sistema hierárquico que
conhecemos na universidade, os dias dos estudantes são muitas vezes transformados em dias
dos professores. A identificação clara de um Coordenador Estudantil na pessoa de Jorge
Enrique Torralbas Oslé é um exemplo concreto disso. Isto também explica sem dúvida os
eventos festivos que tiveram lugar algumas noites com criações artísticas feitas e organizadas
apenas por estudantes cubanos de um nível bastante notável.
- A grande variedade das intervenções é outro ponto com grandes temas de organização:
psicologia educacional e do desenvolvimento, estudos de gênero, psicologia social, psicologia
da família, do casal e da sexualidade. Mencionemos alguns títulos entre muitos, a granel:
Influências das emoções maternas no desenvolvimento do feto durante a vida intra-uterina,
Crises de identidade profissional em relação à identidade sexual, a propaganda nazi, Qualidade
de vida numa empresa de produção, Imaginação social e eutanásia, Representações sociais da
violência contra as mulheres, Psicanálise e homossexualidade, A Transsexualidade no cinema,
o desmame do consumo de tabaco, Estudos de capacidades emocionais em crianças em idade
escolar, A violência nas relações interpessoais entre adolescentes, Avaliação das influências da
pornografia num grupo de estudantes cubanos, Estudo dos fatores que influenciam a integração
num centro geriátrico, Momentos fundamentais da clínica psicanalítica de orientação lacaniana,
Abordagem da violência intra-familiar a partir da orientação histórico-cultural, O cabelo na
construção da identidade das mulheres negras, Uma abordagem histórico-crítica do problema
da crise da psicologia contemporânea. Foi também organizado um simpósio sobre a violência
relacionada com a identidade sexual. Mais uma vez, todas estas oficinas foram organizadas,
dirigidas, sem a presença de quaisquer professores. O trabalho dos próprios estudantes, de certa
forma! Isto cria um hiato no discurso universitário clássico que discutirei a seguir.
- A vivacidade e seriedade dos debates entre estudantes é uma característica: por exemplo,
durante a discussão coletiva após a exibição de um documentário cubano que descreve a vida
de uma criança numa família reconstituída onde o pai partiu e a mãe vive num casal com uma
mulher. A vontade de debater é forte. O eixo teórico ainda está em questão, mas o objetivo da
discussão é de fato a aplicação prática do que é concretamente proposto a partir de uma
perspectiva pessoal e coletiva.
A crítica faz parte dos debates e um período de duas horas no final dos dias será dedicado
à avaliação crítica dos dias: o que foi considerado interessante, útil, o que pode ser melhorado?
- A preocupação com o coletivo, com o grupo sem excluir a dimensão subjetiva individual,
permite que a ligação social seja apresentada.
- O que irá impulsionar este último ponto fundamental é a abordagem histórico-cultural da
psicologia, que é extremamente inexistente nos países ocidentais. Na França, as querelas
tendem a girar em torno de egos universitários e a restringir os desenvolvimentos teóricos e
práticos. A batalha entre psicanalistas e cognitivistas é bem conhecida e midiatizada, o que não
exclui as que se travam entre capelas psicanalíticas, e a recente polêmica em torno das críticas
de Michel Onfray a Freud mostrou um ambiente universitário psicanalítico francês em geral
muito próximo da inquisição. O contraste com a atmosfera cubana é flagrante: os diferentes
pontos de vista em Havana são expressos no contexto preciso dos dias científicos, sobretudo
para avançar na questão da emancipação, e as críticas emitidas não são sistematicamente
tomadas como um insulto ao ego. Não se trata de elogiar, mas de pegar nos fatos observados
neste colóquio e ver o que ele nos ensina: a dimensão histórico-cultural como orientação básica
do ensino da psicologia cubana nos permite analisar os problemas do ponto de vista histórico.
As histórias individuais e coletivas são, de fato, do mesmo tecido e a ênfase na cultura coloca
o fenômeno do laço social com o do sujeito humano. Esta abordagem faz parte do “Pensamiento
cubano” mas, mais especificamente para a psicologia, destaca o papel fundador do pensamento
do psicólogo russo Lev Vygotski (1896-1934) que introduziu o fato de o desenvolvimento
infantil ser uma função dos grupos sociais perante o fator estritamente individual. Lev
Vygotsky, que após a sua morte tinha sido censurado por Stalin, foi descoberto a partir dos anos
60, o que sem dúvida explica este lugar original em Cuba. Quase ignorada na França fora do
meio educativo progressista, a sua obra, que não está totalmente traduzida em francês, começou
a dar-se a conhecer graças ao trabalho de Françoise e Lucien Sève (1), depois Yves Clot e
Bernard Doray (2).
Para concluir, gostaria de fazer algumas observações. Durante o VI Congresso Marx
Internacional, apresentei no dia 24 de Setembro de 2010 na oficina “Psicanálise e Materialismo”
moderada por Bernard Doray, uma comunicação sobre “Retorno à crítica feita de Politzer à
Psicanálise”. O filósofo marxista Georges Politzer defendeu a orientação para uma psicologia
concreta e colocou durante algum tempo a invenção freudiana como a portadora desta
esperança. Ele criticou severamente a evolução da psicanálise em 1939, falando das renúncias
de Freud à sua orientação primária, condenando a abstração que a metapsicologia e o
inconsciente da Psicologia Individual testemunham.
O psicanalista Jacques Lacan elogiará a contribuição de Politzer, sublinhando
simultaneamente uma aporia: o confinamento deste último no discurso psicológico
universitário que, no entanto, ele denuncia. Lacan é, além disso, nos seus desenvolvimentos,
muito severo no discurso universitário dos psicanalistas sobre a psicanálise. É também severo
nos desenvolvimentos individualistas de uma certa psicanálise, a dos Estados Unidos
nomeadamente, que adapta o assunto no divã ao modo de vida capitalista.
Porquê evocar Politzer? A preocupação cubana em definir a aplicação concreta da
psicologia para a emancipação humana é um material muito importante, completamente
desconhecido na Europa. O que é categorizado por Lacan como a exigência de Politzer, e que
Lacan fez sua em 1946, de que uma psicologia concreta seja constituída em ciência e que está
apenas na fase de postulações formais, pode encontrar um certo resultado sob a influência da
experiência cubana. A exigência de alguns estudantes em Havana de introduzir de forma mais
importante Lacan, a psicanálise, não arrisca assim encontrar certas armadilhas das sociedades
capitalistas ocidentais: a promoção do sucesso individual, o terreno fértil do horror capitalista,
em detrimento da preocupação coletiva.
O terreno fértil da orientação histórico-cultural cubana permite outros desenvolvimentos
sobre este assunto mas também no que diz respeito aos impasses do discurso universitário
psicanalítico, especialmente na França. De fato, os psicólogos universitários cubanos estão
ligados à aplicação prática no concreto do que ensinam pelo próprio fato da impregnação na
realidade histórico-cultural. Isto é diferente dos discursos franceses, que são por vezes
brilhantes a nível teórico, mas que permanecem na sua maioria numa aporia. Isto é diferente
em relação aos “elogios da intimidade ou da realidade interior” que hoje floresce numa certa
esquerda na França, para não mencionar a fumegante “libertação da humanidade no homem”.
No final do primeiro colóquio em que participei sobre a transexualidade no mês de
Junho de 2010 em Havana, tinha-me colocado a questão de saber por que razão os psicanalistas
franceses, gregos, colombianos e mexicanos partilhavam com os não psicanalistas cubanos, tão
facilmente, uma linguagem comum sobre preocupações clínicas, enquanto que isso é difícil e
conflituoso na França, exceto para dizer banalidades. A resposta reside no fato destes
psicanalistas estarem preocupados com a questão social e não ignorarem a contribuição de Marx
para a explicação da história construída pelos humanos, individual e coletivamente, e, claro,
conjuntamente, no fato de a orientação histórico-cultural cubana ter as mesmas questões.
Resta introduzir um debate que me anima há algum tempo: o que a experiência
psicanalítica pode trazer à emancipação do coletivo consiste em cruzar o fato de que a essência
humana é uma relação social (Marx) com o fato de que o humano é também uma transferência
e que a partir da lógica desta transferência um psicanalista conhece uma parte dela. O humano
é uma relação social; a relação social é também uma transferência.
Desta troca em Havana, para estes dias intitulada “Pela Esperança e Bem-Estar
Humano”, por esta lógica de relações sociais e sua estruturação que modifica a relação do ser
humano com o seu gozo, o mais-valor, ao seu valor, estou elucidado pelo que diz Gorky de
Lênin: “Ele acreditava inabalavelmente que o infortúnio não é o fundamento irremediável da
vida” (3). Resta, portanto, seguindo o otimismo transmitido por estes dias em Havana de
organizar e estruturar encontros entre estudantes cubanos e estudantes franceses.
(1) avec la traduction du livre fondamental « La pensée et le langage »

(2) Clot, Y. (sous la direction de), Avec Vygotski , La dispute, 1999, dans laquelle Doray B,
Vygotski et Freud, l’espace d’un dialogue

(3) Gourfinkel N, Lénine, Editions Le Seuil, Paris, 1959, p 19


1º COLÓQUIO INTERNACIONAL “TRANS-IDENTIDADES, GÊNERO E
CULTURA” EM HAVANA: A TRANSEXUALIDADE NÃO É UMA DOENÇA

O 1º Colóquio Internacional “Trans-identidades, Gênero e Cultura”, anunciado nestas


colunas no dia 3 de Maio de 2010, reuniu em Havana, na La Casa de la Amistad, especialistas
de três continentes: Austrália, Europa com a França e a Grécia, e a América: Cuba, Canadá,
Colômbia e México.
Com a ajuda de conferências, de apresentações, de vídeo-debates, de mesas redondas
com traduções simultâneas hispano-francesas, diferentes disciplinas tais como Medicina,
Psicologia, Direito, estudos culturais reuniram-se durante três dias com um objeto de trabalho
comum: a trans-identidade e mais especificamente a transexualidade.
Organizado pela Seção “Diversidade Sexual” da Sociedade Cubana Multidisciplinar
para o Estudo da Sexualidade (SOCUMES) e pela Associação “L’ Elan Retrouvé” ( Paris) este
colóquio teve como objetivo estabelecer uma troca científica e construir uma marca de
referência comum para a abordagem das Trans-Identidades.
Mariela Castro Espàn, Presidente do Colóquio para Cuba, define o espírito do encontro
de uma forma muito bonita: “Estamos no processo de construção e elaboração de uma
linguagem que nos ajuda a articular um discurso para a despatologização das trans-identidades.
E esta construção não deve ser apenas trans-disciplinar, deve ser feita com a participação de
pessoas trans”.
Desta forma, diferentes pessoas trans que vivem em Cuba irão intervir nas apresentações
e debates. Notou-se a participação da Professora Viviane Namaste da Universidade de
Montreal, transexual, que apresentará o trabalho dos artistas trans em Montreal. Lerá também
uma apresentação de Axel Léotard, Presidente da Associação Francesa “Intertrans” sobre a
situação francesa marcada por uma longa segregação psiquiátrica, jurídica e social. Axel como
muitos transexuais franceses não tinham tido a possibilidade de vir ao colóquio por razões
financeiras.
O que é essencial é que a participação das pessoas trans não foi um “espetáculo” mas o
resultado de uma estratégia de política de saúde que coloca o ser humano no centro. As equipas
cubanas trabalharam para a realização deste colóquio e durante o colóquio, como estão
habituadas a fazer diariamente. É de fato a partir dos encontros estruturados com pessoas
“trans” pelo Cenesex, o Centro Nacional de Educação Sexual, dirigido por Mariela Castro
Espàn, que são feitas propostas para modificar as leis. É este ponto específico da política cubana
que impressionou Viviane Namaste: uma construção interdisciplinar que combina a lei, o
médico-psicológico, o social, onde existe uma estratégia de trabalho em conjunto com as
pessoas envolvidas, que não existe noutros países.
O outro ponto específico na orientação do colóquio é a despatologização ou não da
transexualidade. Para que conste, deve se recordar que a homossexualidade foi removida do
DSM III, o manual de diagnóstico e estatística de perturbações mentais da Associação
Americana de Psiquiatria apenas em 1973. A transexualidade aparece ainda hoje nestas mesmas
classificações psiquiátricas como uma perturbação da identidade sexual. Em 2005, a Comissão
Nacional Cubana abandonará o termo “Distúrbios de Identidade de Gênero” para se identificar
como a Comissão Nacional de Atenção às Pessoas Transexuais. É em Fevereiro de 2010 que o
Ministério da Saúde, na França, retirará o “transexualismo” das patologias mentais.
Esta não patologização da condição transexual, dirá o Doutor Alberto Roque Guerra,
terá sido a mesma preocupação de todos os oradores do colóquio com referências diferentes das
habituais em Cuba, em particular os psicanalistas (Hervé Hubert, Bernard e Concepcion Doray,
Magda Gomez). Como Presidente do Colóquio para a França, sublinharei também na conclusão
o aspecto essencial da não-patologização: “a transexualidade não é algo que tem a ver com uma
psicopatologia, uma doença, mas simplesmente algo que tem a ver com a diversidade humana,
uma diferença do ser humano na construção da identidade sexual”.
Nesta construção de uma diferença, o ponto singular da criação artística apresentou o
que faz o valor real do ser humano, o valor criativo individual tomado numa relação social. Isto
é o que três psicólogos gregos, Dimitra Athanasopoulou, Themis Golegou e Assimina Rapti,
desenvolveram de um ponto de vista psicanalítico. “O que precisamos ainda mais do que uma
mudança sexual é uma ressignificação social”, diz uma pessoa trans, “para nos sentirmos
reconhecidos na sociedade, por aqueles que lhes são próximos, no seu ambiente de trabalho”.

(...) O que é importante é tomar a decisão da operação e levá-la a cabo. É igualmente importante
receber ajuda, apoio para começar uma “nova vida”, muitas vezes um novo lugar, um novo
nome, recomeçar do zero, sem a história que produziu a discriminação anterior, diz ela.

O que os trabalhadores aprenderam e continuam a aprender só pode ser feito com as


pessoas que portam estas questões. Mariela Castro, por exemplo, fala de pessoas que
experimentam contradições com a sua identidade de gênero. É no trabalho destas contradições
que se podem fazer progressos na individualidade e na sua articulação com o coletivo. Isto
orientará Mariela Castro para a perspectiva mais ampla dos direitos e da política social sobre
esta questão.
A apresentação do acadêmico australiano Veck Lewis sobre a violência da transfobia
no México como falta de política social, o maravilhoso documentário “Translatina” sobre as
questões segregativas da sexualidade e HIV (Human Immunodeficiency Virus [vírus da
imunodeficiência humana]) na América Latina, a abordagem da gestão das dificuldades
relacionais nas famílias apresentada pela psiquiatra cubana Ada Alfonso, terão sido outros
exemplos da importância do trabalho necessário sobre o vínculo social como força motriz para
a realização concreta do progresso. Isto toca diretamente a questão da segregação social, o que
exigiria outros desenvolvimentos. Recordemos que a experiência cubana tem sido
extremamente rica em lições sobre o tratamento fundamental desta questão em todos os
registros: livre acesso a todos os cuidados, política anti-discriminação, promoção da integração
social, a começar pela participação das pessoas envolvidas na reflexão sobre a elaboração das
legislações que lhes diz respeito.
É, evidentemente, este elemento que impulsiona a proposta de lei sobre a alteração do
estado civil das pessoas transexuais que não desejam ser operadas. O primeiro ponto contra a
segregação é de fato poder nomear as pessoas “trans” de acordo com a sua identidade e não de
acordo com o sexo anatômico de origem. A promulgação desta lei e o trabalho de reforma do
Código de Famílias marcariam uma revolução para o bem-estar dos transexuais em Cuba, e por
suas repercussões, no mundo.
Tanto em termos de método como de soluções concretas, a experiência cubana oferece
ideias estimulantes e esperanças de progresso nos domínios médico-psicológico, social e
jurídico. Teremos todo o prazer em continuar este trabalho em conjunto e em responder
favoravelmente ao convite de Mariela Castro para construirmos juntos um segundo congresso
internacional em 2012 em Havana.

CINEMA E TRANSEXUALIDADE
Magda Gomez

Durante o colóquio realizado em Havana nos dias 9, 10 e 11 de Junho de 2010, sobre


“Trans-identidade, gênero e cultura”, no qual tive a oportunidade de participar, um dos
objetivos era construir um quadro de referência sobre a transexualidade, o transgênero e as
trans-identidades, promovendo a despatologização não só do ponto de vista dos Direitos
Humanos, mas também de uma abordagem cultural.
Assim, conseguimos encontrar várias abordagens e maneiras de lidar com a questão a
partir da arte e da cultura, sendo o cinema uma das principais manifestações a partir das quais
o “transexualismo” foi abordado e das quais surgiram vários elementos interessantes,
especialmente para uma compreensão mais ampla e profunda da realidade social dos sujeitos
“trans”.
Encontramos por um lado, a exposição do cineasta cubano Frank Padrón, sobre as
identidades transgênero no cinema latino-americano, especificamente no cinema cubano, onde
é evidente que apesar dos avanços médicos e psicológicos feitos em Cuba para tratar esta
população, ainda se está longe da aceitação social. A estigmatização e marginalização dos
sujeitos “trans” pela sociedade é uma questão presente e permanente, que também se estende a
outros países da América Latina, uma situação que explica o fenômeno da “transfobia”.
Este fenômeno, bem como outros aspectos com que os transexuais e transgêneros são
diariamente confrontados, poderia ser apreciado através do documentário “Translatina”,
dirigido por Felipe De Gregory e estreado na cidade de Buenos Aires, Argentina, em 2010. Este
documentário patrocinado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Programa
Conjunto das Nações Unidas sobre VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana)/SIDA (Síndrome
da Imunodeficiência Adquirida) (ONUSIDA [Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o
VIH/Sida]) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), teve também o
apoio da Rede Latino-Americana e Caribenha de Pessoas Transgênero (REDLACTRANS) e
da Regional Latino-Americana e Caribenha da Associação Internacional de Lésbicas e Gays
(ILGA-LAC).
“Translatina” foi produzido no Peru, mas contém imagens de nove países da América
Latina, expõe através de testemunhos de representantes da população civil, autoridades de saúde
e justiça, os desafios enfrentados pelas mulheres transgênero, travestis e transexuais para ter
acesso à educação, ao trabalho, à justiça, à saúde, entre outros. Na maioria dos testemunhos
apresentados neste documentário, pode-se apreciar histórias dramáticas de vida que mostram a
exclusão e a segregação a que os sujeitos “trans” são objeto, bem como a violação dos direitos
humanos, incluindo uma lista crescente de assassinatos, como causa de discriminação.
Apesar deste panorama sombrio, “Translatina” revela, no entanto, a perseverança e
esperança dos transexuais na América Latina, ao mostrar as mobilizações da comunidade
através de marchas como as realizadas no Chile, México e Argentina, para apelar aos governos
e para que estes, por sua vez, busquem políticas que ofereçam quadros legais específicos para
a proteção dos seus direitos.
Este documentário também nos informa sobre os progressos realizados em diferentes
países, como o Equador, onde existe uma lei que criminaliza a discriminação com base na
orientação sexual e identidade de gênero e prevê a união de fato entre pessoas
independentemente da orientação sexual, ou no Brasil, onde os transexuais podem acessar aos
serviços de saúde com o seu nome feminino, embora não seja dito no documentário, quero
acrescentar que a Colômbia é um dos poucos países do mundo, onde a mudança de nome no
documento de identidade é possível sem a operação de mudança de sexo.
E, claro, possuímos o exemplo de Cuba, onde a cirurgia de mudança de sexo é possível
gratuitamente e onde não existe qualquer forma de intolerância da sociedade cubana, uma vez
que não existem registros de violência física para com a comunidade “trans”. Organizações que
trabalham com a comunidade transgênero, como a Vàa Libre do Peru, afirmam que a
comunidade participa em espaços onde antes não estava, e contribuem, por exemplo na
UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS ), na OEA (Organização
dos Estados Americanos), entre outros.
Podemos dizer que a comunidade “trans” está atualmente mais capacitada e mais
organizada através de uma extraordinária rede de apoio a nível da América Latina, e que está
construindo iniciativas de aceitação e educação de cada país a fim de despatologizar e evitar a
discriminação desta comunidade, apesar de um contexto de violência, assassinato e repressão.
Finalmente, gostaria de destacar o trabalho de outros cineastas latino-americanos, sobre
os quais falei na minha apresentação intitulada “O transexual no cinema”, igualmente
apresentada no colóquio. Gostaria de destacar “Hotel Gondolin”, um documentário argentino
que é apresentado como um caminho para a procura de soluções e a des-marginalização dos
transexuais que trabalham na prostituição; “Pasarelas libertadores”, um documentário
venezuelano que denuncia a violência e os abusos a que são sujeitos diariamente os transexuais
que se prostituem na Avenida Libertador em Caracas, especialmente pela polícia; e o filme
venezuelano “Cheila, una casa pa'maita”, vencedor do festival de cinema venezuelano de
Mérida em 2009, que explora um problema não frequentemente abordado pela cinematografia
latino-americana em geral, como a aceitação de transexuais e a pobreza de outro ponto de vista
através da história da sua personagem principal, um transexual chamado Cheila.
O filme nos mostra diferentes faces do “transexualismo”, mas principalmente os vários
problemas com que o transexual é confrontado, o filme vai nos fazer espectadores
especialmente do sofrimento experimentado por estes sujeitos, como produto geralmente de
rejeição e discriminação pelo ambiente, este sofrimento será encenado pelo suicídio, morte,
fuga, e pela cumplicidade segregativa da lei e da sua práxis, também pelo estatuto que o dinheiro
adquire como meio para alcançar o fim desejado: o filme também nos mostra o peso que o
simbólico tem na imagem, ou pelo contrário, que a imagem tem no simbólico, mostrando assim
a vergonha e a frustração que o transexual pode experimentar quando confrontado com a
impossibilidade de mudar o seu nome no documento de identidade, mesmo após uma mudança
de sexo, e a reação do outro a esta incongruência.
Mas a vergonha não é o mais grave, senão a consequência desta impossibilidade (a falta
de acesso à saúde, à educação ou ao trabalho), que ligará a transexualidade à marginalização e
à prostituição, questões que não são alheias à realidade latino-americana, e a outros países como
a Tailândia ou o Sri Lanka, onde também foram recentemente produzidos documentários que
testemunham esta realidade. No entanto, através da experiência cubana e do documentário
“translatina”, ficamos com a sensação de que uma nova realidade é possível. A sensação de que
uma “transformação” social é possível e que o sujeito transexual é um claro exemplo e prova
disso.
OS HOMOSSEXUAIS E OS TRANSEXUAIS EM CUBA

Os dois textos que se seguem irão abalar gravemente as suas certezas, aqueles que têm
uma visão distorcida da realidade cubana pelos nossos meios de comunicação social. O primeiro
“Les homos de La Havana” foi escrito e publicado por Maxime Vivas em Março de 2007. Não
só apoia a releitura de 3 anos depois, mas anuncia implicitamente o segundo de Hervé Hubert:
“Um colóquio sobre a transexualidade em Havana” em Junho de 2010.
Se é verdade que Cuba, no rescaldo da sua Revolução (há meio século atrás!), não tinha
uma política gloriosa relativamente às suas minorias sexuais (como muitos países do mundo na
altura, mas é bom esquecê-lo), as coisas evoluíram numa marcha forçada, em particular graças
à vontade de duas mulheres que, perturbando a opinião pública do seu país, estiveram na origem
das leis que puniam a homofobia e da elaboração de um texto de lei a favor das uniões legais,
bem como da possibilidade de adoções.
Uma delas é Vilma Espin, esposa de Raúl Castro, lutadora pelos direitos das mulheres
e minorias sexuais, heroína guerrilheira e figura histórica da Revolução Cubana, que morreu
em 2007. A outra, Mariela Castro Espin, filha de Vilma Espàn e Raúl Castro, é a diretora do
Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex) e a principal instigadora de uma resolução que
aprovou, em 2008, a realização de operações gratuitas de mudança de sexo. Mariela Castro
Espin participou num desfile contra a homofobia na ilha e é uma ativista pelos direitos das
pessoas LGBT (Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais).
De fato, Cuba realizou a sua primeira operação de mudança de sexo em 1988, o que
chocou a população e escandalizou a Igreja Católica Cubana. Após um período de latência, 26
outros transexuais foram operados na ilha. Numa altura em que a União Europeia sanciona a
ilha caribenha sobre a questão das liberdades individuais (mas sobretudo não o sangrento
regime colombiano nem os carrascos da prisão de Guantánamo), a presença de várias
associações francesas neste colóquio (que contribuíram para organizar) honra a nossa
comunidade científica e recompensa os esforços obstinados de um psiquiatra parisiense, o
Doutor Hervé Hubert.
Assina aqui para a revista eletrônica “Le Grand Soir” um artigo sobre o colóquio que relatará
de Havana.

Le Grand Soir
Maxime VIVAS

OS HOMOSSEXUAIS DE HAVANA

Yasmina Reza é escritora e atriz. Estudou teatro e sociologia em Nanterre. Em 1987, foi
premiada com o Molière pela peça de teatro "Conversações após um Funeral" e novamente em
1995 por “Art”. A arte foi escrita em um mês e meio, especialmente para Pierre Arditi, Charles
Vaneck e Patrice Luchini. Em 1994, a peça triunfou em um clube de comédia na Champs
Elysées e depois em todo o mundo.
O TEMA: Serge é um médico abastado e adora arte. Ele comprou um quadro. O fundo
é branco e se se pisca os olhos, pode-se ver finas bordas transversais brancas. O seu amigo Marc
explode de rir do que ele chama uma “merda” paga por 200.000 francos. Embora atordoado
com o preço, o seu amigo mútuo, Yvan, tenta arbitrar o conflito. Os três amigos são arrastados
para um conflito por uma espiral que não pode parar. Chegam a considerações que vão muito
para além do quadro.
Estive em Havana em Fevereiro de 2007 por ocasião da feira internacional do livro e,
durante um jantar com alguns artistas e intelectuais cubanos, um francês levantou o problema
da liberdade dos homossexuais em Cuba (por alguma razão misteriosa, este tema é de grande
preocupação para os franceses heterossexuais). Doris, uma atriz cubana, convidou-nos então
para o teatro.
Vimos ali a ART. A peça foi interpretada por três homossexuais no papel de três
homossexuais que, no final, como lembrete, (sub)interpretaram três mulheres loucas com
vestidos de penas de ganso. No dia seguinte, por volta das 22h30, sob as arcadas de uma rua
movimentada perto do Capitólio, passo por um grupo de mulheres cubanas altas em mini-saias
e saltos altos. Os meus amigos cubanos que me acompanharam libertaram-me: eles são homens.
De volta à França, recebi um e-mail do marido de Doris, a atriz, comediante, cubana:

Felizmente Doris não o levou a ver, do mesmo diretor, Carlos Diaz, "Las relaciones de
Clara", uma peça contemporânea de uma mulher alemã, onde teria sido tratado cenas de
masturbação fingida. Em todo o caso, Carlos Dàaz faz agora resolutamente teatro para gays,
sempre com um pequeno perfume de escândalo e enxofre para encher o seu teatro. Assim,
transformou La Putain Respectueuse [A Puta Respeitosa] (de Sartre) num espetáculo
sadomasoquista (homens nus amarrados em couro.... etc.), Arte numa avenida louca, como se
pode ver, mesmo que nada no texto se preste a isso. Aqui, ele redige Phèdre [Fedra]. Sim, a
nossa, aquela de Racine. Bem, dou-lho em mil: Phèdre será interpretada por um homem...!!
Por outro lado, no ano passado, a televisão cubana apresentou uma série cubana muito
longa cujos temas centrais eram a SIDA (Síndrome da imunodeficiência adquirida), relações
homossexuais (homens e mulheres) e outras questões semelhantes, que escandalizaram muitos
espectadores e forçaram a agenda a ser transferida mais tarde à noite.
O Centro de Educação Sexual dirigido pela filha de Raúl Castro foi muito ativo a esse
respeito, numa tentativa de erradicar uma série de preconceitos entre a população e entre os
quadros, e ela se esforçava para fazer passar medidas legislativas na Assembleia Nacional do
Poder Popular. Sobre o tema dos travestis, por exemplo. Vê-se que Cuba não está tão atrasada
nesta área, e talvez esteja ainda mais à frente do que outros países latino-americanos e outros
continentes. Em suma, a "perseguição" de homossexuais é uma história antiga.
Doris foi ver uma estreia ontem, uma peça de Esther Suarez Durán, que ganhou um
prêmio num concurso italiano. O título: De hortensias y de violetas, dirigido por Nicolás Dorr
no teatro do Museu de Arte Colonial. O tema: um casal de lésbicas quer adotar ou ter um filho.

No entanto, podemos ter a certeza de que, nos próximos anos, alguém nos perguntará
por que razão Cuba coloca os homossexuais na prisão. Porque as inverdades andam de um lado
para o outro. O famoso filme “Morangos e Chocolate” foi produzido em Cuba no início dos
anos 90. Ainda assim! Em 16 de Abril de 2007, sob um título usado à corda (“Cuba si, Castro
no”), Pierre Assouline escreveu no seu blog “La République des lettres [A República de
letras]”: “Voltamos sempre a uma realidade ao lado da qual os turistas querem bem passar: [...]
a repressão de homossexuais [...] Não está no passado, infelizmente ...”. No mesmo mês, na
França, dois homofóbicos foram julgados por causarem a morte por afogamento de um
homossexual.
Hervé HUBERT

UM COLÓQUIO SOBRE TRANSEXUALIDADE EM HAVANA

Artigo publicado no site “Le Grand Soir” de 03 de Maio de 2010

O colóquio “Trans-identidades, Gênero e Cultura” teve lugar em Havana nos dias 9, 10


e 11 de Junho de 2010. Foi organizado por duas associações cubanas, a Sociedade Cubana
Multidisciplinar para o Estudo da Sexualidade, o Centro Nacional de Educação Sexual
(Cenesex [Centro Nacional de Educación Sexual]), e duas associações francesas: o Centro
Social Psicomédico (CPMS [Centre Psycho-Médical et Social]) de Elan Retrouvé em Paris e
uma associação científica, o Trabalhos de Pesquisas sobre o Inconsciente e as Pulsões (TRIP
[Travaux de Recherches sur l'Inconscient et les Pulsions]). Durante estes três dias cubanos e
franceses falaram e trocaram os seus pontos de vista, assim como oradores da Austrália,
Canadá, Colômbia, França, Grécia e México.
A escolha de Havana foi feita devido às mudanças vanguardistas que Mariela Castro e
a equipe do Cenesex que ela dirige provocaram no que diz respeito aos direitos às diferenças
sexuais. Recordemos que a transexualidade é definida pelo fato psíquico de pertencer ao sexo
oposto à sua anatomia genital. Muitos transexuais têm assim um estranho sentimento de ser do
outro sexo desde a infância, outros constroem esta identidade na idade adulta. A questão
transexual foi definida a nível médico em 1953 pelo Doutor Harry Benjamin, endocrinologista
americano “Os verdadeiros transexuais têm a sensação de pertencer ao outro sexo, de querer
ser e funcionar como membros do sexo oposto, e não apenas aparecerem como tais”, necessitam
de um tratamento hormonal-cirúrgico, depois uma mudança de estatuto civil. Isto não passa
sem um questionamento ético e uma distinção necessária entre transexualidade, transgênero,
travestismo, trans-identidade.
A transexualidade produziu um vácuo no saber humano sobre a identidade e a
sexualidade. Fenômeno de aparência enigmática para o sujeito que carrega esta questão, é
também enigmático para a sociedade que a recebe. Este estado subjetivo sofredor tem sido e
continua a ser frequentemente ridicularizado, segregado e discriminado nas sociedades. A
transfobia, menos conhecida que a homofobia, pode desencadear tanta violência como a
homofobia. Isto foi ilustrado em 2000 pelo filme Boys don't cry, que retrata a tragédia de
Brandon Teena, estuprado e depois morto em Nebraska, nos Estados Unidos, em 1994. Mas a
violência de gênero, para usar uma expressão frequentemente utilizada por Mariela Castro, é
também verbal.
As discriminações são por vezes mais insidiosas, incluídas nos relatórios sociais, e
convém recordar que a França tinha sido condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem em 1992 por ter recusado uma mudança de estatuto civil a uma pessoa transexual. Um
primeiro obstáculo a ultrapassar nos direitos à transexualidade é inegavelmente a repercussão
financeira da mudança de sexo. Na França, as condições de tratamento, os custos financeiros
para ter uma escolha livre de médico são regularmente criticados. As pessoas trans, que na sua
maioria tomam o caminho privado, pagarão entre 3000 e 5000 euros por uma prótese mamária
e entre 9.000 e 12.000 euros por uma vaginoplastia. Nos Estados Unidos, de acordo com a
Fundação Internacional para a Educação à identidade sexual, a operação pode custar de 10.000
a 25.000 dólares, ou mesmo 4 vezes mais, dependendo do procedimento. Em Cuba, o
tratamento é gratuito desde 2008. As situações estão evoluindo. Na França, a eliminação do
transexualismo da lista de doenças mentais em Fevereiro de 2010, por iniciativa do Ministério
da Saúde e após um trabalho sério da Alta Autoridade de Saúde, é um progresso muito
importante, mesmo que as consequências concretas imprecisas no momento.
Em Cuba, uma tradição machista e viril, muito presente no mundo da cultura hispânica,
tinha-se desenvolvido com uma forte homofobia. Esta era uma situação contraditória, uma vez
que uma política a favor dos direitos da mulher estava em vigor desde os anos 60. As campanhas
pelos direitos dos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros)
iniciadas por Mariela Castro estão em consonância com isto, e a despatologização da
transexualidade tomou um lugar estrutural que representa um progresso decisivo quanto às
questões dos direitos à diferença sexual e aos direitos humanos.
A experiência cubana, à qual foi dedicado o último dia do colóquio, representa um
momento privilegiado de intercâmbio internacional, através do estudo da despatologização da
transexualidade e das suas consequências numa organização de saúde centrada na prevenção,
inclusão, participação social e circulação de uma palavra que articula o singular e o coletivo.
Também atravessa, num quadro multidisciplinar, diferentes abordagens e experiências no
objetivo de apreender isso que nós aprendemos com o fenômeno transexual, e os próprios
transexuais o farão, na lógica da criação cultural inconsciente, uma vez que é construção e
produção de laço social, violência e integração social. A trans-identidade envolvendo o
indivíduo como uma relação social, traz um ganho de saber concreto sobre isso que funda as
discriminações e segregações.
EN COMPLEMENT

LE STATUT DES GAIS A CUBA : MYTHES ET RÉALITÉS


https://www.legrandsoir.info/le-statut-des-gais-a-cuba-mythes-et-realites.html

Les Gays à Cuba, et l’école de falsification de Hollywood.


https://www.legrandsoir.info/les-gays-a-cuba-et-l-ecole-de-falsificati...

Cuba pourrait devenir le premier pays d’Amérique Latine à reconnaître des droits égaux aux
couples de même sexe
http://www.pcq.qc.ca/Dossiers/AmeriqueLatine/Cuba/Cuba&CouplesDeMemeSexe.pdf
RETRATO TERRESTRE COM HERVÉ HUBERT

RETRATO TERRESTRE é um encontro com o outro, com a sua percepção do mundo


à sua volta, a forma como o vive, a forma como o muda. O nosso primeiro convidado é o Dr.
Hervé Hubert, psiquiatra e chefe de departamento do l'Élan Retrouvé, uma associação
reconhecida como de utilidade pública desde 1956.

Qual é o seu trabalho?

Sou psiquiatra e psicanalista.

Escolheu-o?

Sim, estudei medicina e me especializei em psiquiatria. Isto representa um total de onze


anos de estudo após o baccalauréat, portanto um período de tempo muito substancial para fazer
uma escolha. Para ser um psicanalista, é preciso fazer você mesmo uma psicanálise e, no meu
caso, que durou nove anos, a uma taxa de três sessões por semana, mais uma vez um tempo e
um investimento que atesta um desejo afirmado.

Porquê a psiquiatria?

Quando comecei a faculdade de medicina, não tinha a intenção de ser psiquiatra. Na


verdade, as minhas únicas más notas durante a faculdade de medicina foram em psiquiatria.
Durante um estágio de cinco anos como estudante do hospital, fui levado a conhecer humanos
chamados “loucos”, o que me causou surpresa e despertou para questões importantes. Por
exemplo, como poderiam os seres humanos manifestar tantas diferenças na expressão dos seus
pensamentos, nas suas práticas de vida? Fui marcado por isto. No final dos meus estudos, estava
muito interessado na questão psicossomática: como é que a ordem dos efeitos e do pensamento
tem impacto no corpo, no organismo? Decidi fazer um ano de estágio em psiquiatria com isto
em mente e fiquei lá. Fui mais uma vez apanhado por diferenças tão extremas na vida, e mais
particularmente no que é chamado de “expressão ilusória”. A psiquiatria é também confrontada
com questões políticas essenciais, a privação de liberdade, que foi outro fator determinante.
Lacan ou Freud? Porquê?

Isso não foi alcançado de início. Comecei por recorrer a uma psiquiatria desalienística
e social. Lidar com a questão da loucura e da mudança da sociedade andou de mãos dadas e
encontrei mais pontos de referência em Marx do que em Freud ou Lacan. Tinha lido Freud no
meu último ano e o achei aborrecido, lento no desenvolvimento dos seus pensamentos. Tinha
visto Lacan na televisão por acaso, enquanto revisava os meus exames intercalares, numa
entrevista em 1973. Tinha ficado impressionado com um discurso deslocado do que estávamos
habituados a ouvir, e encontrei isto mesmo no tom muito melancólico que este discurso
assumiu. Estava muito longe do que eu pensava na altura: “Como podemos fazer uma revolução
social?”. Comecei a fazer psicanálise bastante tarde, aos 35 anos, porque me parecia
indispensável fazer uma psicanálise para compreender isso que se passava na minha relação
com as pessoas que eu tratava. Lacan veio neste contexto, mas eu tive a felicidade de nunca ter
conhecido Lacan, ele já estava morto. Eu tinha um forte interesse, por vezes demasiado
exclusivo, pelo seu pensamento, mas ele nunca foi simpático comigo, nem mais do que com
Freud.

O que é “loucura”, segundo o senhor?

A loucura é a expressão de outra forma de inteligência humana, outro saber sobre a vida
social, a vida com outros seres humanos. Antes de mais, é muito criativo. Por vezes é também
uma expressão de sofrimento, mas este sofrimento está sempre relacionado com os
constrangimentos de viver em grupo e uma resposta à privações. É neste contexto que se trata
de atravessar o sofrimento e a criação: ver coisas que os outros não veem, escutar coisas que os
outros não escutam, sentir coisas no corpo que os outros nunca irão sentir, tudo isto pode ser
uma experiência dolorosa. Esta falta de resposta pode dar valor a uma intenção atribuída a
outros e pode levar ao sofrimento. Esta falta de resposta pode também dar origem a criações
extraordinárias, especialmente no campo artístico.

Ser louco não é questionar o senso comum?

Foi certamente o encontro com aquilo que se chama loucura, durante um estágio de
estudante de medicina, que me determinou a me tornar psiquiatra e depois psicanalista. Foi a
troca com estas pessoas ditas delirantes, ouvindo vozes, que me chamou a querer compreender
melhor esta forma diferente de inteligência que escapa ao senso comum. Deparei-me assim com
a questão do fora-sentido que, dentro do próprio delírio, fazia cair as oscilações do pensamento,
e aprendi muito sobre o engodo do senso comum ou do senso comum na vida quotidiana
daqueles que não se diz serem loucos, os “normais”, a quem por vezes chamo as “ovelhas
sangrentas”. Descobri e lutei contra os mecanismos sociais de exclusão que aqueles que
protestam contra a coerção injusta sofrem como avatares infelizes. Descobri como o chamado
delírio denunciou a hipocrisia assassina do senso comum que rege os nossos Estados, tanto
individuais como coletivos. Descobri o vazio inflado de psicopatas-aos-logos [trocadilho para
se referir aos profissionais psicólogos]. Artaud afirma também a sua recusa, e portanto a sua
consequência, a recusa da imundície: “Não admito, nunca perdoarei ninguém, ter sido capaz de
estar imundo vivo durante toda a minha existência”. Aprendi assim a me preocupar com a
significação social concreta e não mais com o sentido, uma palavra que traz sempre uma
filosofia pré-estabelecida, uma filosofia da história individual ou coletiva.

Esta questão é sobre a desigualdade. Em 2017, como se vê e como se analisa a situação?

As desigualdades são incontáveis no mundo de hoje. Como Angela Davis assinala


regularmente, “o mundo não é suposto ser assim”. É possível estabelecer alguns pontos
primordiais: desigualdades nas condições de vida a nível econômico e social, em primeiro lugar,
mas também desigualdades de direitos, desigualdades de expressão política, desigualdades de
expressão no que diz respeito às diferenças de identidade humana, desigualdades no acesso ao
saber, à saúde, à habitação, ao trabalho e à comunicação. O importante nesta questão da
desigualdade me parece ser a sua ligação com o poder, o “poder fazer” de uma pessoa numa
vida social. Isso toca, portanto, a questão fundamental da liberdade.

Estão se intensificando em todas as áreas?

Não necessariamente. Há contradições dependendo das sociedades, dos Estados e das


formas sociais a eles associadas. Na França, por exemplo, tem havido uma forte regressão no
direito do trabalho, que é uma fonte de desigualdade, mas que nem sempre é o caso. Foram
também postas em prática medidas positivas na redução das desigualdades de gênero: o direito
ao casamento para todos, ou a – insuficiente – melhoria das condições de mudança do estado
civil para as pessoas transgênero.
Algumas desigualdades são mais importantes do que outras?

As desigualdades econômicas e sociais são atualmente amplificadas, enormes e


escandalosas nos chamados países desenvolvidos; desigualdades ainda mais monstruosas entre
os países do hemisfério norte e a África: milhões de seres humanos morrem de fome ou não
têm acesso às mais básicas condições de saúde.

Porque pensa que isso acontece?

O lucro miserável de alguns bilionários organiza, por forças indignas da humanidade,


estas desigualdades que matam aos milhões. O neocolonialismo é globalizado sob várias
formas. Os poderes feudais dos deuses, no contexto desta regressão espetacular das condições
de vida humanas, exercem uma repressão feroz por um sistema patriarcal indigno do século
XXI, especialmente sobre as sexualidades. O poder dos meios de comunicação de hoje tenta
ocultar e mascarar a forma como estas regressões assassinas são produzidas. O neofascismo
capitalista analisado por Pasolini logo no início da década de 1970 assumiu uma escala terrível.

O que significa para si a crescente pobreza das pessoas nos países desenvolvidos?

Mostra a aberração de um sistema de vida que é imposto no contexto de uma passividade


e indiferença social que se generaliza. Este sistema capitalista se encontra num momento crítico
para a sua sobrevivência. É construído sobre um eixo hierárquico de poder marcado por uma
verticalidade que impõe o seu poder de uma forma cada vez mais autoritária e segregativa. Por
enquanto, isto marca o sucesso do American Way of Life [estilo de vida americano] e do modo
de vida do seu proprietário.

Como se projeta o futuro daqui dez ou quinze anos?

As relações sociais e a forma de produzir estão se desenvolvem a uma velocidade


exponencial através da revolução digital. O impacto deste fator sobre a forma de poder
permanece desconhecido. A igualdade se refere a uma certa horizontalidade, um eixo horizontal
na topologia do poder, em relação ao eixo vertical hierárquico. Um ternário que pode ser
chamado “furo” ou “valor x” vagueia entre estes dois eixos. Tudo dependerá do poder humano
que estará ligado a esta possibilidade de captar os potenciais que atualmente surgem na
organização de “poder fazer” humanos. Isto pode ser chamado de autodeterminação, e é de
importância fundamental para os grupos humanos em todas as suas formas, mas também para
os indivíduos. O período atual é decisivo e a não implementação deste ternário levaria a uma
continuação da aberração, ao aumento da segregação e discriminação e ao desenvolvimento de
uma ciência ao serviço de um sistema de segregação, mantida em conjunto pelo funcionamento
assassino de um complexo militar-industrial. Assim, dentro de quinze anos isso poderíamos ser
Walking Dead (Morto vivo) ou, eu espero, Creative Life (Vida criativa).

Será que os valores comunistas transmitidos através da educação a homens e mulheres


agora chamados “cidadãos idosos” tornam estes indivíduos vadios ou precursores?

Nem todos têm tido a sorte de ter pais comunistas. A minha família era, como era
clássico na altura, entre 1950 e 1960, dividida entre gaullistas e comunistas. Eu tinha caído no
terreno dos gaullistas. Foi esta privação que me levou a produzir o meu primeiro ato
revolucionário na CP, na escola católica que frequentei? Tendo de representar por um desenho
a cena crística da pesca milagrosa, coloquei naturalmente uma bandeira vermelha na popa do
barco. Por isso, não recebi uma educação com valores comunistas. Privada destes valores que
os meus primos viviam, eu tinha uma consciência de classe sem o saber, criada diariamente
pelos meus avós proletários, alienados dos mestres burgueses de quem dependiam. No amor
familiar que eu vivia, esta questão social entrou no amor familiar que eu vivia. Enquanto
adolescente, eduquei-me ao ler o “Manifesto do Partido Comunista” e depois a “Ideologia
Alemã”, sem nunca ter cessado desde então. É neste contexto que respondo e que, por minha
vez, posso me sentir perdido ou precursor, pois posso chamar a mim próprio comunista e, por
vezes, anarquista. Anarquista, certamente, de acordo com a orientação que François Châtelet
dá a este termo onde se denuncia o princípio da armadilha da sacralidade do Estado, ele
continua:

E o sentido original da anarquia não significa outra coisa senão isto: tentemos conceber a
organização de outra forma e imaginemo-la como um produto sempre em mutação, sempre
previsível, dos desejos e vontades daqueles que são a fonte de todo o poder: indivíduos, todos
diferentes e todos tão igualmente humanos.

Comunista, certamente, de acordo com a definição dada por Marx e Engels no


Manifesto: “A associação em que o livre desenvolvimento de cada um é o livre
desenvolvimento de todos”.
Em relação aos valores comunistas, devemos partir do fato de que nunca houve
comunismo em parte alguma, mas que houve, e agora há, partidos comunistas no poder em
alguns Estados, e isso é muito diferente. Uma esperança imensa nasceu em 1917, com a
Revolução Bolchevique, porque tinha valores concretos relativos à vida social: o capitalismo
privado foi derrubado pela primeira vez no mundo e substituído, sob a forma dos soviéticos,
pelo poder direto dos trabalhadores. Foi também uma revolução artística e uma tentativa de
criar outra civilização. Creio que este fato histórico é um precursor e, portanto, ainda hoje
relevante. Penso que desviar seria tomar como modelo o que veio depois. Também aqui, as
consequências do hegelianismo e a filosofia da história devem ser examinadas em pormenor.
Não há modelo de revolução porque as condições históricas e as relações sociais ligadas ao
modo de produção econômica mudam. As consequências da tentativa, que começou em 1917,
foram a supressão da propriedade privada e uma relativa igualdade de meios sociais. Isto tem
de ser tido em conta, mas num contexto completamente diferente. É importante se afastar de
uma concepção de comunismo baseada numa lógica binária em relação ao capitalismo. É uma
questão de tomar como base os valores a-capitalistas hoje em dia, em termos concretos, para se
prescindir das funções do dinheiro e da moeda. Se Marx leva tempo para construir um ternário
na sua teoria do valor para compreender as funções do dinheiro e da moeda, parece-me essencial
apreendê-lo como uma ferramenta. Eis um exemplo de um valor futurista que nunca foi tido
em conta na concretude de uma política coletiva sustentável. O que conta não é tanto a
nomeação do movimento revolucionário mas a sua ação concreta a partir de outra base ternária.
Claro que se poderia chamar comunismo, o mais importante hoje em dia não é isso, extrair e
promover uma palavra, mas criar no concreto do coletivo, uma associação dentro da qual o livre
desenvolvimento de cada um é o livre desenvolvimento de todos, no contexto das relações
sociais do século XXI.

“O belo é sempre bizarro”, diz Baudelaire. O que você pensa sobre isso?

O que parece estranho e desafiante é recalcamento ou a negação do assassinato na


construção dos cânones da beleza. Se, para Hegel, a civilização grega representa uma etapa
realizada da beleza, se ele insiste afirmando que "a consciência grega é o momento da beleza",
temos de dizer as condições históricas: foi feita ao preço da escravatura.
Singular, estranho, caprichoso, irregular seria assim o ar do belo. É por isso que
Baudelaire denuncia o “ver fotograficamente” e a sua aparente nudez como obscena? Além
disso, poderia, neste contexto preciso, ser escrita eaubscène. Esta obscenidade diz respeito à
relação entre o modelo e a cópia. Baudelaire insiste em denunciar esta “ver fotograficamente”
neste momento inaugural da fotografia onde a sua alegada neutralidade objetiva tende à redução
do tempo ao instantâneo. Isto é sublinhado por Jean-Marie Pontévia nos seus escritos sobre arte.
Baudelaire nega à fotografia o direito de “substituir a arte em algumas das suas funções, sob
pena de ser suplantada ou corrompida por completo” (Éditions Gallimard, Pléiade II, p. 224),
“se lhe for permitido invadir o reino do impalpável e do imaginário, sobre tudo o que só vale a
pena porque o homem lhe acrescenta a sua alma, então ai de nós”.
Este comentário de Baudelaire levanta finalmente a questão da relação entre a verdade
e a aparência, uma questão que se revela com a aparência da fotografia. Pontévia descreve bem
o que está aqui em jogo, o que é assustador nas relações humanas. Este medo é o de ver de
repente Baubô mostrar o seu sexo e ser obrigado a admitir que não tem pênis: que “o
impalpável” é de fato impalpável e que “o que o homem acrescenta da sua alma” está de fato
ausente. Baudelaire defende o sonho, e o seu medo de desastre é que o pintor se torne “cada
vez mais inclinado a pintar, não o que sonha, mas o que vê” (Op. cit., p. 225), e que “a arte se
prostra perante a realidade externa”.
Esta conclusão baudelairiana me permite compreender o que está hoje em jogo no que
diz respeito ao nosso fetichismo quotidiano: a beleza diz respeito a um poder de espanto, de
apreensão, de captura em relação ao que é mostrado, designado em particular pelo poder dos
meios de comunicação social. O reverso da beleza, qualificado como bizarro o denuncia
enquanto o recobre ao mesmo tempo.

Você Já trabalhou frequentemente com populações minoritárias (minorias sexuais,


populações migrantes). Qual é a razão para este envolvimento? O que é que isso lhe traz?

Considero essencial que cada ser humano seja capaz de dar livre curso ao seu potencial
criativo, de acordo com princípios éticos para a humanidade. Os seres humanos são todos
diferentes e o livre desenvolvimento do potencial humano só pode ser baseado no
reconhecimento destas diferenças. Este trabalho com populações minoritárias me faz descobrir
outras formas de viver e pensar. Ajuda-me a trabalhar em termos concretos com o conceito de
“significações sociais diferenciais”. Os significados humanos dos vivos são sempre apanhados
no social e diferencial, o que significa que um significado só pode ser exercido na sua relação
com outro significado diferente, sob pena de fascismo.
A criação por falha é um ato de subversão?

Há um ato numa criação artística consequente. Este ato é um cruzamento, há um antes


e um depois deste ato. Um ato produz um efeito se for elevado a uma dignidade de valor, se
fizer algo funcionar que possa fazer algo novo. Para que ocorra uma subversão, esta deve ser
acompanhada por um movimento, seja de reversão ou de inversão, que possa criar uma
dinâmica. A questão da subversão passa então para o lado de uma ordem: como é que o ato
criativo subverte uma ordem? Uma ordem é um nó que se torna fixo. Para que o nó possa ser
modificado, é necessário que o ato ponha em causa pelo menos um dos seguintes elementos:
amor, morte, fora de sentido, condições de subversão. Colocá-los em tensão com a privação e
as suas consequências conflituosas poderia transformar o ato subversivo num ato
revolucionário.

Se você fosse Thomas More ou Rabelais, como definiria Utopia?

Se eu fosse Thomas More, definiria a minha Utopia pela sua relação com o seu avesso,
a sua distopia. Assim, rejeitaria post-mortem (póstumo, posterior à morte) a minha
hegelianização, ou seja, a minha distopia religiosa: a minha canonização em 1935, tornando-se
Santo Thomas More, padroeiro dos funcionários do governo e dos políticos. Também recusaria
os meus casamentos sucessivos com mulheres duvidosas: Jane Colt, devido à relação com o
instrumento assassino que este significante propagaria no país do Minority Report (Relatório
Minoritário); Alice Middleton, devido à contiguidade metonímica com Kate e pela mesma
razão spielbergiana. Se eu fosse Rabelais, releria o mito “Timeu” de Platão para estabelecer a
minha distopia. É uma questão para Thelema de retornar ao tempo antes do acidente do
Ocidente, o tempo em que os homens eram diretamente governados pelos Deuses, quando não
havia necessidade de Estado. Havia uma comunicação direta entre o homem e a sua realidade.
Após o acidente, o mundo começou a se virar de cabeça para baixo, na direção errada, e por
isso houve inversões de direção, metábole. Se é impossível encontrar o governo dos Deuses, é
uma questão de transformar em poder a aparência divina que os homens possuem, e de tentar
salvar o que é divino nos seres humanos.
Se fosse Huxley ou Orwell, o que seria para si uma distopia?

Se eu fosse Huxley, definiria distopia como utopia. Eu exploraria ao máximo o caráter


de Lenina. Eu assumiria o Estado e a Revolução mais vendidos, e mais particularmente, deste
escrito, insisto no fato de que o Estado é um poder colocado acima da Sociedade e que, com
este instrumento, não pode haver questão de reparar um conflito ou de coser o tecido rasgado,
como pensam os Freudo-Lacanianos. A falsa costura de conciliação é uma lua velha que Marx
não usou quando falou da alma, do valor do tecido, que se excita diante do hábito. De Lênin-
Lenina, eu releria os textos críticos sobre a colocação em funções do Pai Morto, Marx, escritos
pelos fiéis a fim de construir ícones inofensivos no lugar de funções revolucionárias.
Finalmente, citaria o seu texto de 1922, no qual evoca com lucidez um aspecto da evolução da
criação revolucionária em 1917, “os trabalhadores apresentam uma deformação burocrática?”.
Se eu fosse Orwell, abandonaria o mau papel de Stalin – que se tornou demasiado
comum – para me concentrar em Hitler e no nazismo. Eu encenaria no ano 84-84 anos após
Hitler ter chegado ao poder – com um efeito de distanciamento brechtiano, Verfremdungeffekt
(Efeito de Alienação), o cenário do atual neofascismo contra um cenário de Hollywood de estilo
mafioso pós-nazi, estilo mafioso pós-nazi. Pasolini faria o final com o seu último texto.

Com o que você se preocupa?

A passividade, a existência passiva que é sempre um vetor de destruição. As forças de


destruição baseadas em todas as formas de segregação demonstraram, desde o nazismo até
Hiroshima, que a guerra rapidamente se torna um estado plebiscito e justificado, sob o pretexto
do que ainda rege o estado moderno, a política hegeliana. Ainda nos encontramos num estado
de fato pós-Nazi. A ideia de que o valor dinheiro poderia ser abolido, não poderia mais
funcionar, a esperança de Che nos seus escritos econômicos.
UM SONHO FUNCIONA SEM AVISO PRÉVIO

Um sonho funciona sem aviso prévio. Uma greve é a expressão de um desejo não
satisfeito. Este desejo é um desejo decidido pela necessidade. Um sonho é a expressão de um
desejo, um Wunsch! Abençoado sejas! Freud o liga à infância, ao desejo sexual infantil: um
desejo sexual infantil insatisfeito e inconsciente. Uma greve é um fato social que é mais
frequentemente coletivo mas que também pode ser de caráter individual, como por exemplo
uma greve de fome, a necessidade de fome e vida: é preciso comer para viver. A greve é uma
recusa de trabalhar enquanto o sonho trabalha nele como um louco para disfarçar e mascarar as
suas personagens. O desejo corre como um furão para contrabandear valores. A greve gostaria
de pôr fim ao engano social e ao seu contrabando. Os sonhos de uma greve geral ainda esperam
que aqueles que veem a guerra chegar. Os sonhos de greve respondem aos mais radicais.
Estas formas de oposição colocadas em série poderiam ser multiplicadas e interpretadas
como a encenação da famosa oposição entre o indivíduo e o coletivo, mesmo que o
entrelaçamento seja passageiro. Mas estamos fartos das Revoluções, por muito surrealistas que
sejam. Antonin Ar- taud está lá para me dizer que se há algo furtivo que persegue, “a arte tem
o dever social de dar lugar às angústias de sua época”.
O ponto central é de fato a angústia social a que ecoam os impulsos sociais. A hora
artística já não é então um momento para trocadilhos psicanalítico-surrealistas, mas para ter em
conta a transferência social fetichista em que vivemos de uma forma tão aberrante todos os dias.
Marx descreveu de uma forma muito antecipada em 1867 em “O Capital” o novo inconsciente
do século XXI. Certamente poderia se acreditar que ele simplesmente antecipa Freud e a leitura
do inconsciente à la Champollion. De fato, ele escreve sobre o valor capitalista:

O valor não leva portanto escrito na sua testa o que é. Pelo contrário, o valor transforma cada
produto de trabalho num hieróglifo social. Subsequentemente, os homens procuram decifrar o
sentido do hieróglifo, penetrar o segredo do seu próprio produto social, porque a determinação
dos objetos de uso como valores é a sua própria produção social, tal como a linguagem.

Esta passagem não coloca – ao contrário das aparências – a ênfase no lado decifrador
de uma leitura de Freud ou Lacan do inconsciente. Marx prefigura um inconsciente social no
qual “o fazer” é mais importante do que o “ler”. A passagem sobre o sentido do hieróglifo é de
fato precedida por uma frase que lança luz sobre o verdadeiro engano, a alienação capitalista,
onde a falsa igualdade transmitida pelo valor de troca é encontrada nas relações humanas na
vida quotidiana. Esta frase marxiana é: “Eles não o sabem, mas eles o fazem praticamente”. O
inconsciente – o que não queremos saber – diz respeito ao “fazer”, à fábrica do social, ao que
os humanos produzem.
O inconsciente marxiano cede o caminho à Revolução no fazer concreto, e isto cairá
sobre os ouvidos do poeta Pier Paolo Pasolini, que escreveu um romance, “Le Rêve d'une chose”
[O Sonho de uma coisa], baseado numa carta de Marx contendo este sintagma romântico. O
sonho funciona sem aviso prévio. A vida funciona sem aviso prévio. A base da norma é uma
armadilha em tudo, incluindo no sonho de uma coisa para seguir Pasolini. É extraordinário que
Marx possa introduzir o fetichismo para mostrar que impõe uma norma e que se trata, portanto,
de partir de outra base. Isto continua a ser frutuosamente revolucionário em campos humanos
ainda inexplorados.
O GRITO DO MONOCROMO

No campo da pintura, a monocromia tem o seu próprio caráter. Um mau caráter: o do


mono! Talvez seja por isso que, mais do que qualquer outro, a pintura monocromática grita. Há
uma vibração particular do mono que pode ser ouvida de longe para qualquer artista receptivo
à luz acústica. Este grito marcou o século XX na primeira revolução que abalou o mundo em
1917 e não é coincidência que Malevitch seja considerado o primeiro artista moderno a fazer
uma pausa na pintura com esta concepção monocrômica e seu famoso Quadro negro sobre um
fundo branco em 1915.
Este foi um tempo de revolução, para usar uma metáfora bem conhecida, e o grito de
parto artístico foi ouvido em todo o mundo, o mono na pintura quebrando bizarramente uma
ordem monárquica na política. O âmbito artístico de uma obra não pode ser concebido sem ter
em consideração a forma como as relações sociais atuam na mente. O início do século foi
convulsivo e assassino a partir de 1914, e a monocromia tinha o valor de expressar uma vontade
de inverter a maré que se podia encontrar noutras formas de arte contemporânea: Dada, o ready-
made...
Para Malevitch, tratava-se de se libertar, criando uma significação social da pintura num
dado contexto histórico. Ele ataca uma ordem antiga que já não funciona e reprime-a. Os corpos
gritam no social. Trata-se de libertação. Há um apelo a pôr em funcionamento um valor social
da pintura: o de olhar, olhar, ser olhado, ser olhado, e isto diz respeito a formas sociais e
políticas, representações. É também sobre uma transferência, sobre uma história de amor que
se move, que pulsa, que empurra, que muda de lugar. Os velhos valores são derrubados e a
criação parte de outra base na prática pictórica e na sua relação com a estética.
A pintura se presta facilmente a este tipo de experiência humana. O gesto do pintor é
uma espécie de chamada, tal como o grito. No “fazer” da pintura circula uma emoção, uma
sensibilidade, uma coisa sensível, suprassensível, um toque, um tato, a relação com a pele da
tela através do material da pintura e a pele se torna uma chamada para o olho. É assim que nasce
uma transferência pictórica para o pintor que faz um grito no tambor do tímpano vibratório. Os
vivos dão à luz, o olhar válido, traz valor a partir desta pulsação vital.
Comunica-se a si próprio, transfere-se para quem o vê. Ele sustenta, há algo no lado do
olhar que faz o trabalho sustentar, há uma relação sólida e física entre a matéria que vemos e
que capta tanto a forma como a imagem. Uma mistura é feita sem o conhecimento do
observador ou da pessoa que fez a coisa ser olhada, o quadro, que olha para nós sem, claro, nos
ver.
O que se esconde no fascínio causado pelo efeito monocromático? Um drama, Rothko
responderá: “Vejo as minhas pinturas como dramas: as formas são os protagonistas”. Para
Rothko, este grito de drama humano se refere à vibração que nasce da sobreposição de cores.
Não há nada como isto com a monocromia de Malevitch ou Yves Klein que, numa abordagem
mais abstrata e metafísica, irá procurar o absoluto. Nada disso, na aparência. Malevitch ataca a
função social do objeto, da representação, da forma. Primeiro aborda a forma política do céu e
choca com Chagall.
Isto não é sem ressoar com Artaud no seu “Não há mais firmamento”. Grande
descoberta, peça a grande descoberta... Oficial! A ciência tem sido virada do avesso. Oficial! E
não há mais firmamento. “Não há mais firmamento”, grita ele. A representação divina caiu
atemorizada. O super-homem e a sua omnipotência caem para enfrentar uma reflexão, uma
passagem difícil através do "não-homem" para a transferência criativa. Com Yves, o
monocromo tem caído regularmente ao chão na sua crença de que pode voar. A monocromia
de Malevitch toca numa ordem divina, desvenda-a, mas talvez deixe ressurgir a antiga religião
da luz. Um crítico de vistas estreitas dirá do trabalho de Klein que não é pintura.
A monocromia desfaz uma ordem, a da representação divina e, portanto, da nomeação:
“Isto é, isto não é!” Um verdadeiro caso de Estado que recuperará os seus direitos. Porquê
esconder um fato da prática social? Ninguém pode ter um olhar, uma ocultação que faz o amor
gritar e dramatizar.
Com Marx, vamos transformar a velha fórmula legal “Os mortos apreendem os vivos”
para que o não-homem, o seu esqueleto de propriedade privada, se vire a partir desta base
fundamental de transferência artística, seja transformado e as condições de vida sejam
realmente olhadas sem fantasmagoria comercial. Não emergimos dos efeitos do despojamento
causado pelo primeiro Malevich, que foram fixados por uma civilização religiosa e proprietária.
A questão do olhar está no centro do que liga os valores das palavras, das imagens e das
sensações corporais. Se isto se desenrola, produz uma pergunta levada pelo olhar que ocupa
momentaneamente o centro. Ninguém pode ser o dono de um olhar, uma questão
eminentemente política colocada pela monocromia.
EXILADO EM SUA PELE

“Uma criança se olha ao espelho, o seu olho ri-se de preto.


Insatisfeito, ele olha para trás para ver se esta forma é um corpo”.
Esta estrofe que inaugura os poemas friulanos de Pier Paolo Pasolini o tinha assombrado
muito cedo na sua adolescência. Uma espécie de “sem forma” foi estranhamente embutida,
dando apenas uma superfície lisa para ver no espelho. Uma sensação visual que não se podia
abrir a um aperto, ressoava sem eco verbal. Quando um vislumbre nasceu no espelho, foi
imediatamente para ver se não se manifestava tão rapidamente como se arrependeria.
No entanto, ele sabia que a luz ganhava no exílio. O exílio... Uma sensação de exílio há
muito que tinha passado pelo seu corpo. Um dia, uma palavra de amor se estendeu para fazer
um relâmpago vivo atravessar a sua pele. Esta luz que o fez viver poderia desaparecer e ser
invertida numa falta cruel. Sentiu-se banido, expulso da sua vida e proibido de retornar.
Cada pele é singular, na sua textura, na sua cor. Viveu esta ociosidade escolar. O toque
e a visão o mantiveram fora da sua vida aos olhos dos outros. Ele sentiu o entre-dois da
migração, a atração da raça. Queria “sentar-se” como Rosa Parks no seu ônibus perante o
imperativo colonialista que o ordenou a se levantar e a dar lugar à superioridade da pele branca.
Esta forma sentida nela a empurrou para fora dele. Como viver neste corpo que agora jaz?
Imóvel como uma pessoa que foi roubada, um homem impossível escreveu os dias da sua vida.
Esta forma sentida nela estava a empurrá-lo para fora de si mesmo.
Este apelo do olhar no espelho do íntimo oculto passou pela experiência da irradiação
pública do olhar dos outros. A ignorância de um corpo assumiu um valor outro. Se a noite das
ondas sempre ondulada, germinando na sua derme, este impulso vivo do olho repetia a sensação
de relâmpago na pele.
“Ali atrás do vidro numa terra de luz Um sino, doce para o meu coração,
E, longe no tempo, resplandece
No meio de uma campanha morta”.
Esta estrofe pasolina fazia os seus olhos respirar.
PRP, PEQUENO RETRATO PASOLINO

Vivemos as últimas convulsões violentas antes da agonia do que foi tão acidentalmente
– no Ocidente – um sistema dominante? O trabalho de Pasolini antecipa de forma extraordinária
o que hoje vivemos na civilização ocidental, quer se trate da sexualidade, da criação artística,
da relação social entre os seres humanos, e ainda mais do que ele lucidamente chama
“neofascismo”.
Gostaria de dar aqui um Pequeno Retrato Pasolino, baseado no que pode ser transmitido
a partir de dois filmes que se sucederam, La Ricotta, em 1963, e II Vangelo secondo Matteo (O
Evangelho segundo São Mateus), em 1964. Pasolini transportou no seu corpo a Paixão da
fundação desta civilização, a de Cristo e da sua ersatz [substituto/sucedâneo] ou derivados. E
assim, se houver Paixão, ela é posta à prova naquilo que une as palavras, as imagens e as
sensações do corpo. É com esta poesia concreta que ele dá poder aos seus filmes.
Ele vira e inverte o que é transferido da relação de domínio político de forma tão maciça,
tão democraticamente consentida. Ele cria os seus filmes como poeta e, portanto, saltando, e
este salto faz uma revolução na história do cinema. “Hic Rhodus, Hic Salta”, escreveu Marx.
Assim, em O Evangelho segundo São Mateus, é por uma presença espantosa de corpos na tela
que ele transmite o que angustia e consegue tratá-lo ao mesmo tempo. Ele transforma a angústia
social por este meio. Enquanto lida com o sagrado que ultrapassa o religioso, ele desfaz a Santa
Agonia e retira-lhe o poder que ainda hoje nos mantém nos seus reinos.
Esta presença dos corpos é mais poderosa do que a interpretação clássica que se tornou
habitual a nível político. Certamente, neste filme, o papel de Cristo é dado a um trabalhador
espanhol, e o povo se opõe aos fariseus burgueses. Mas por detrás desta representação da luta
de classes, que existe social e politicamente, a luta humana fundamental é mais precisamente
sobre a vida e a sua privação, e portanto exige que se tenham em conta as relações de domínio
que derivam desta primazia para se avançar para práticas não tutelares e de livre disposição de
si.
Isto é o que Pasolini tem em conta. Esta presença de corpos se refere à questão do valor
que circula na transferência social, a transferência entre pessoas. O que vale um corpo em
relação a outro corpo? O que funciona como valores na relação entre os seres humanos? Esta
questão dos valores veiculados no mundo social e político é bastante apropriada para ser
estudada aqui. De fato, La Ricotta ganhou-lhe quatro meses de prisão suspensa por desrespeito
da religião e, paradoxalmente, um ano mais tarde, II Vangelo foi recompensando com o Grande
Prêmio do Gabinete Católico Internacional do Cinema.
O que é trazido à tona nestes dois filmes é sobre morte, assassinato na sua relação com
as questões sociais e políticas, e isto é essencial para compreender o que está acontece
atualmente. Os primeiros filmes de Pasolini, “Accattone”, “Mamma Roma” terminaram todos
com a morte do jovem herói proletário. Para os dois filmes em causa, La Ricotta e II Vangelo,
a presença de Cristo muda o jogo. Certamente, Stracci morre em La Ricotta amarrado na cruz
com o papel do bom ladrão. Acima de tudo, morre em humilhação e pela humilhação forçada.
O “escravo da fome” esconde-se numa caverna para engolir uma quantidade
impressionante de ricota. Quando é encontrado pela equipe de filmagem e pelos outros atores,
ele engole a comida que lhe é atirada para o humilhar, e o faz com voracidade. Os atores atiram-
lhe a comida como atirariam a um animal ou com o gesto de apedrejamento. Eles gozam e riem-
se deste suicídio orgíaco em que o escravo da fome tem a revelação impulsiva que pode
consumir sem limites, como propõe o capitalismo.
O fim conclui o assassinato social, um assassinato em que a vida que não tem mais valor
de bens de consumo, pode desaparecer silenciosamente: Stracci, enquanto se prepara para
pronunciar a sua resposta atado à cruz, morre de indigestão, indigestão da qual foi
simultaneamente agente, mas também efeito e produto de uma sociedade de consumo que perde
o seu caráter abstrato e revela o seu inconsciente: o assassinato obsceno transformado num
espetáculo, uma auto morte apanhada na alienação da forçagem zombeteira dos outros. Stracci
significa “trapos” em italiano, o destino de um esfarrapado na civilização do consumo.
Para II Vangelo, o cenário da cruz é bastante diferente. O destaque da beleza dos rostos,
de Cristo, mas também do povo, levanta a questão do valor divino. Se isto for tomado de forma
ateia por Pasolini, prevalece o absoluto da pureza e a questão da solidão. Pasolini consegue unir
o prazer e a santidade. Se o “porquê expor o corpo de Cristo na cruz” se refere ao tríptico
“morte, sexo, pobreza”, faz parte de uma luta política emancipatória que está no entanto ligada
a uma filosofia da história e do paraíso marxista no horizonte.
A diferença com La Ricotta reside na implementação de um estilo cinematográfico onde
a beleza, o fundo do deserto, a pureza exigem uma vida após a morte. Este último não está no
registro da transcendência, mas da imanência: Pasolini é um poeta das coisas. A filosofia da
história, individual ou coletiva, que é sempre religiosa, o apego ao texto fundador do Evangelho,
a boa promessa ligada à palavra escrita, o apelo ao além que pode ser interpretado como
transcendental, só podem ser endossados pela hierarquia católica.
Por tudo isto, a questão central da responsabilidade no assassinato social – que faz
revolução sem o conhecimento de qualquer hierarquia – é a passagem da ordem do Pai para a
ordem do Filho e a sua possível liberdade. Pasolini, na sua criação, convocou os corpos. Isto
está de acordo com a observação de Hervé Joubert-Laurencin: “A crítica política de Pasolini é
também e acima de tudo uma crônica política do seu próprio corpo16”. É assim que ele nos guia
no debate de hoje, sublinhando não a questão da origem, “De onde viemos?”, mas a de nos
tornarmos “Para onde vamos?”. Ou seja, a questão da solidariedade e da sua construção não
submetida ao sacrifício. A possível liberdade dos filhos.

16
H. Joubert-Laurencin, « Avec toi, contre toi, Pasolini », Contre la télévision et autres textes sur la politique et
la société, Éd. Les Solitaires intempestifs, 2003, p. 17.
O HAÏKU NU

Classicamente, um haiku é um pequeno poema destinado a dizer e expressar a


evanescência das coisas. Pessoalmente, defini-la-ia da seguinte forma: uma forma de expressão
poética que nos permite perceber no momento em que se apreende as contradições da realidade
humana. É uma espécie de fotografia verbal, irradiando e sinalizando o viver em movimento,
ou seja, pode dar origem a impulsos interpretativos em direções completamente opostas. Dou
importância a esta definição que contrasta com a maioria das definições que, delirando sobre o
maravilhoso e o misterioso, apontam para o elogio da transcendência.
Mas o que tem isso a ver com o nu? A priori nada, mesmo que o haiku fosse
originalmente chamado hokku. Um jogo de palavras sem qualquer significado em si mesmo,
mesmo que com Artaud a questão do cú o traga de volta. De certa forma, não há mais ligação
com o nu do que com outro tema. E ainda assim! Desejo fornecer uma ferramenta lógica
universal a partir desta declaração haiku.
A palavra haiku em japonês se refere na sua composição gráfica à união de dois kanji,
dois signos japoneses semelhantes aos caracteres chineses. Neste contexto linguístico, que é
difícil de compreender para o homem ocidental, é interessante notar que o primeiro kanji (signo)
da palavra haiku se refere à ideia do que é primeiro, do que está no início, e o segundo signo se
refere a sons semelhantes a sílabas. O haiku como conteúdo poético é escrito numa ordem
vertical. Breve e curto, ele corta. O universal que emerge está no fato de o primeiro kanji ser o
primeiro, “começando”, o que é bastante diferente de “originar”. E este primeiro comando,
orienta o segundo, que diz respeito à ambiguidade das palavras.
Para os nus, evocaria primeiro a relação com o que é primeiro. Não é o nu como uma
aparência social na história da humanidade primordial? Se há um primado do visual na
organização mental, o nu é certamente primário: os primeiros humanos estavam nus, viviam
nus, o que viram foi a nudez dos outros quando trocaram com eles. Qual foi o impacto do nu
em relação à transição para a posição de pé e à aparência da linguagem, e depois das línguas?
Isto é levado pela questão do segundo kanji, os sons e sua organização e permanece um campo
pouco explorado de estudos antropológicos.
A questão é raramente colocada desta forma na cultura ocidental em relação à primeira,
o primado, o começo. O que é que dizemos predominantemente no Ocidente? “No princípio
era o verbo” ou “No princípio era a ação”? Estas fórmulas são típicas das religiões monoteístas
e se referem ao Antigo Testamento: o verbo se tornou carne no momento da criação humana e
a nudez como uma falha aparece depois do pecado original. A mulher, Eva, faz um ato. Ela
transgride a proibição divina. Segue-se a revelação da nudez, a consciência de que Adão e Eva
estão nus e a necessidade de se esconderem. O nu, então, entra na história ocidental do lado da
culpa, disso que porta a falta.
Goethe, pensador do universal, não formula as questões humanas de forma diferente:
“No início era ação”. Freud se inspirou nisto, e as formulações relativas à primazia do verbo ou
do ato enxameado em textos psicanalíticos ao ponto de fazer dela uma religião. Freud apreendeu
a questão do nu infantil e, em vez de quebrar a ordem religiosa, reforçou-a através do culto da
castração. O que vê a criança que descobre a nudez de outra? A castração! E isto fornecerá
respostas aberrantes aos problemas humanos, tais como: uma menina é um rapaz castrado. O
complexo de castração irá organizar com o Édipo uma explicação de todo o terreno na
psicanálise clássica.
O haiku traz algo diferente a esta civilização de culpa. Vou retomar noutra direção dois
excertos da antologia do poema curto japonês de Caroline Atlan e Zeno Bianu. A primeira é:
“Haiku despoja a língua até à medula”, a segunda é o conceito de sentença viva. Citam Léang-
Kiai de Tong-Chan, um poeta da época dos Tang: “Uma frase morta é uma frase cuja linguagem
ainda é linguagem: uma frase viva é aquela cuja linguagem não é mais linguagem”, ponto que
articulo nos limites da linguagem, que descrevo como o nó das palavras às imagens e às
sensações.
Pode ser definido na base lógica do haiku o começo para um indivíduo do momento em
que uma frase viva funciona, o momento em que ocorre uma mudança de valor no que liga as
palavras, as imagens e as sensações corporais. E o haiku ensina sobre o valor do nó das palavras
na sua relação com as imagens e sensações do corpo. E o haiku do nu pode então assumir uma
lógica essencial sobre as questões das identidades humanas, sempre apanhadas em variações
conjugando o começo com as ambiguidades do nu. Concluo com Artaud que quebra a ordem
anatômica da relação com o nu: “Entre o infinito e o indefinido, que são ideias e conceitos, há
um ser sem concepção, nem homem nem mulher, e do qual o homem e a mulher terão sido
apenas estados passageiros”
TRANSIDENTIDADE E PSICANÁLISE: PARTIR DE UMA OUTRA BASE

RESUMO

Os encontros com as pessoas transidentárias provocaram uma verdadeira inversão prática e


teórica. Estas reviravoltas foram para além da questão transidentária para pensar de forma
diferente sobre a abordagem psicanalítica dos problemas e levar à construção de uma nova
psicanálise, a psicanálise social. Esta última difere da psicanálise clássica partindo de outra
base: a base da vida social que é transferencial. Neste contexto de vida social transferencial, a
referência à obra de Marx é utilizada e permite uma análise de experiências de vidas
transidentitárias a partir de conceitos de transferência social e de transferência de valores é a
base para o desenvolvimento de projetos transdisciplinares. A lógica da dinâmica
transidentitária está centrada no valor do gênero como um valor que dá vida e reconhecimento
pelos outros deste valor. O nó entre os elementos fundamentais da identidade, “corpo-imagem-
palavra”, e a privação, apanhados na vida social transferencial fornece pontos de referência
lógicos para a compreensão das questões. Um exemplo concreto é analisado através do
comentário de um filme vietnamita sobre Finding Phong transidentity.

1. Partindo de uma outra base

As reuniões realizadas com pessoas transidentitárias, que começaram nas minhas


práticas psiquiátrica e psicanalítica há 25 anos atrás, provocaram em meu trabalho uma
mudança muito importante, uma verdadeira reviravolta prática e teórica. Esta questão da
identidade humana era menos divulgada na altura, e o sistema de apoio psiquiátrico, psicológico
e psicanalítico era dominante na França fortemente marcada pela concepção de uma psicose
transexual. Este preconceito psiquiátrico teve muitas consequências negativas para as pessoas
trans, incluindo a obrigação de uma longa história psiquiátrica, geralmente dois anos antes para
simplesmente iniciar um tratamento hormonal. Não era concebível excluir do processo médico,
uma intervenção cirúrgica de mudança de sexo, e portanto a esterilização de pessoas. Um
trabalho consequente de pesquisa científica, duas teses universitárias em 2003 (Hubert, H.,
Clinique du transsexualisme : une logique de retranchement, Doctorat de Psychanalyse,
Paris VIII) e 2006 (Transsexualisme : du syndrome au sinthome, Doctorat de Psychologie,
Rennes 2) sobre o que era então chamado transexualismo, permitiu-me sair da lógica que
psiquiatrava e patologizava uma problemática de identidade social.
No entanto, este trabalho não poderia ter encontrado a sua real relevância sem as
reuniões com as pessoas trans e as associações trans. Estas reuniões regulares são ainda hoje
essenciais para compreender as mudanças que ocorrem nas relações sociais sobre esta questão
humana e especialmente sobre o fato humano óbvio de que a transidentidade não é uma doença,
mas uma questão social.
Estas reviravoltas foram para além da questão transidentária para pensar de forma
diferente sobre a abordagem psicanalítica de problemáticas humanas. A contribuição do que
estava em jogo com a questão transidentitária levou de fato a uma mudança radical na forma
como lido com as questões de sofrimento na mente de um ponto de vista psicanalítico, e
portanto humano. Isto proporcionou a construção de uma nova psicanálise, uma psicanálise
social que se distingue da psicanálise clássica e diz diretamente respeito ao argumento do
colóquio: a relação com a clínica e a relação com o saber, assim como a proposição contida em
meu título: “partir de uma outra base”.

2. Transferência social e transferência de valores

Na minha experiência, a contribuição dos encontros transidentitários tem sido


combinada com o retorno teórico à Marx para compreender o que está em jogo no fato de que
esta outra base para a psicanálise é social, e concerne à vida social. Foi assim que tive a
oportunidade a partir da VI tese sobre Feuerbach declarada por Marx (Marx, K.,1845, 3) “... a
essência humana não é algo abstrato, inerente ao indivíduo singular. Na sua realidade efetiva é
a totalidade das relações sociais”, para extrair e interpretar os elementos que fazem parte do
conteúdo do texto de Freud de 1921, “Psicologia das Massas e análise do eu”, (Freud, S., 1921)
a fim de estudar a relação da transferência entre o indivíduo e as massas para fazer emergir o
conceito de “transferência social”.
A referência à Marx é essencial para ter uma base concreta e social nas situações
transferenciais, e sair das referências metafísicas, da primazia do amor na referência conceitual
da transferência ou do inconsciente profundo e das profundezas da alma, caro a Freud. A base
é a transferência vivente. Da mesma forma, isto exclui a base de Lacan que, mesmo que esta
última tivesse a intuição de colocar Marx no campo da psicanálise, permaneceu numa
abordagem filosófica da psicanálise. Esta transferência social é descrita por Marx no Livro I de
“O Capital”, Seção 1 (Marx, K., 1867) quando ele analisa as relações entre as mercadorias. De
fato, indica claramente que, num certo aspecto, isso fala tanto sobre o homem como sobre as
mercadorias. Esta relação entre as mercadorias é uma relação de valores entre as mercadorias,
portanto, por extrapolação para as relações humanas, uma relação social de valores. Chamei-
lhe “transferência de valores”, Wertübertragung, para retomar a expressão de Marx no Livro I.
Dedicarei a minha exposição para esclarecer a lógica da dinâmica transidentária com
estas ferramentas marxianas que se forjaram numa verdadeira dialética de trabalho concreto
entre o aprofundamento do trabalho de Marx e os encontros com as pessoas transidentárias e as
suas necessidades. A dimensão social das dificuldades encontradas pelas pessoas transiditárias
é evidente por si mesma: o imperativo social (“tens um pênis, és um rapaz” ou o contrário) e o
escárnio social (da simples zombaria, a humilhação, a discriminação, o assédio) são as marcas
constantes da transferência que circula nos grupos sociais.
Isto diz respeito ao primeiro grupo social, que é a família, depois a escola, os locais de
aprendizagem profissional, o trabalho, as relações de casal etc. Esta transferência social é um
fator determinante na abordagem da experiência transidentitária e acompanhará isso que
impulsiona para a vida e para os obstáculos encontrados neste contexto pelas pessoas em causa.

3. O nó “palavra-imagem-corpo” em sua relação com a privação

As transidentidades são múltiplas, mas estabeleci no meu trabalho universitário uma


constante que funciona nas relações sociais: uma identidade baseada num nó existente entre as
palavras, as imagens e as sensações corporais para uma pessoa. Esta identidade interage com
as outras pessoas encontradas e esta interação produzirá impulsos opostos relativamente à
implementação do valor (valorização - desvalorização) das manifestações atribuídas a um
determinado gênero nestes registros.
Diferentes modos de apropriação de transidentidades estão em ação para uma pessoa na
transferência social atual. Isto pode vir de uma sensação de corpo, de uma sensação corporal,
mas também de uma imagem, no espelho – o reflexo no objeto espelho – ou o espelho de outros,
e finalmente de uma palavra, um significante: a pessoa é interpelada, capturada por um nome
próprio ou na maioria das vezes a palavra que atribui o gênero, rapaz ou menina.
O acima exposto define a identidade como um nó. O nó se refere a um valor que
funciona ou que não funciona e, neste último caso, o que estava amarrado fica desamarrado.
Aqui é onde pode se introduzir a questão da transidentidade onde os valores e funções de
palavras, imagens e sensações se confrontam com isso que é dito, visto, sentido e carrega
ambiguidades que organizam propulsores contrários de nós.
A função do nó é dar força, poder, possibilidade e poder para se atar a si próprio ao
mesmo tempo como homem, como mulher, trans, “não-binário”, etc. Estes impulsos opostos
organizam a dinâmica parcialmente inconsciente dos movimentos da vida transidentitária. Dão
origem a fixações e separações. A lógica desta dinâmica está centrada no “mais vida”, o
“impulso à vida” que entra em correspondência com o reconhecimento pelos outros deste valor.
O que aprendi com a primeira pessoa transidentitária que conheci foi fundamental e
acabará por me permitir sair do pensamento em que eu estava preso na altura, o lacanismo.
Felizmente, esta primeira pessoa, o Homem para a Mulher, muito cedo me orientou no sentido
de “impulsioná-lo para a vida fundamental” que provém do reconhecimento na sociedade de
sua identidade de gênero contrária ao seu sexo anatômico. Esta será a questão do mais que faz
viver, e a função de dar nó em uma transferência. Ela me fez compreender o primado da
imagem após a história de um acontecimento que marca uma privação, uma privação de amor
na infância. Ela me orientou para isso que a impulsiona a uma forma feminina, depois a vontade
de estar no lugar desta forma, de desfrutar desta forma, de ter a posse desta forma.
A experiência infantil de vestir uma peça de vestuário feminina veio dar uma sensação
de corpo descrita da seguinte maneira:

Agarrei os colantes e passei uma perna dentro. Não lhe pude descrever a sensação que tinha
nessa idade, não lhe posso dar uma explicação a não ser para se sentir bem, muito bem. Como
se o meu corpo, que até agora tinha em parte ignorado, estivesse assumindo um significado real,
um valor extra de bem-estar.

Este valor suplementar, o prazer da pele no contato com o vestuário dá um significado


vivo ao seu corpo. Todo o problema reside no que faz o corpo e amarra a imagem, este valor
da roupa feminina na pele e a necessidade de se ver a si próprio atribui o nó à palavra menina.
Assim, existe um amarramento corpo-imagem-palavra, que é a base do que se chama a
identidade, identidade que dá sentido a uma forma. Esta questão da forma é fundamental e
chama para encontrar um semelhante, uma vez que existe um furo, um hiato no senso comum:
uma pessoa que tem um pênis não pode ser uma mulher, ou o contrário.
Esta privação de sentido comumente reconhecido tem efeitos importantes na vida de
uma pessoa transidentitária e colide com o sentido pessoal testemunhado, como evidenciado
pela frase acima citada: “Como se o meu corpo, que até agora tinha em parte ignorado, estivesse
assumindo um significado real, um valor suplementar de bem-estar”. Esta privação se refere a
um valor que funciona na transferência social mas que não funciona para a pessoa trans. O valor
que funciona habitualmente pelo que faz a atribuição do gênero homem é produzido
anatomicamente e biologicamente pela presença ou ausência do pênis sobre o corpo não
funciona.
A lógica transidentitária é paradigmática do funcionamento humano em geral quanto a
atribuição da sexuação e do gênero, mas para além do funcionamento humano relacionado com
a transferência social forjada de suposições e de atribuições. Convém sublinhar como esta
abordagem da psicanálise a partir de uma outra base, a base social, inverte a proposta
psicanalítica habitual de que as pessoas trans sofreriam de um defeito, de um déficit (de
simbolização, de função fálica, etc.). Aqui, pelo contrário, as pessoas trans aprendem sobre o
que é comum nos humanos e que não era sabido, visto, sentido como tal. Estas lógicas de nó e
desembaraço que se encontram em vidas trans se entrelaçam com outro casal: imperativo
social/escárnio social. O imperativo social é uma injunção que pode vir do primeiro grupo social
que é a família ou a escola e depois em todos os grupos sociais “Tens um pênis, és um rapaz e
deves te conformar com ele”. A zombaria social diz respeito à forma de estar no social que
evoca e equivoca a identidade de gênero que faz a pessoa viver (identidade contrária à
identidade comum atribuída à anatomia e à biologia). Esta zombaria se refere à questão de ser
tomado por um dejeto, ou seja, a questão da decadência social, da queda social, que cai em
relação com o outro para se tornarem sem valor.
Isto explica a dinâmica transidentária na vida social: a transição em todas as suas fases
refere-se aos efeitos da ambiguidade no social: ambiguidade de palavras, de imagens, de
sensações corporais, o que provoca oscilações, impulsos contrários nas tentativas de atar e
desatar em ligação com a privação.
GRAFO
NÓS CORPO-IMAGEM-SIGNIFICANTE-PRIVAÇÃO

4. Análise de um filme sobre a transidentidade “Finding Phong”

A fim de compreender o que quero dizer com “transferência de valores” no contexto da


transidentidade, tomarei como referência a análise de um filme sobre transidentidade que tem
lugar no Vietnã, Finding Phong (filme vietnamita de 2015). Phong é hoje uma bela jovem
mulher. Nascida criança, ela filmou o início da sua transição à maneira de um diário. A câmara
se torna o instrumento que inicia o jogo de espelhos entre Phong, a sua família, os seus amigos
e os seus companheiros de trabalho.
Nos primeiros minutos do filme, uma frase espantosa é dirigida à sua família: os seus
pais – pai e mãe – os seus irmãos e irmã, o primeiro grupo social da sua vida, o grupo social
onde se cria a relação de amor, morte e sentido. Esta frase é a seguinte: “Fiz este filme para
manter uma bela imagem de mim mesmo, mas choro sem parar”, “espero que nenhum dentre
vocês veja este filme”, “espero que nenhum de vocês veja este filme. É o meu diário filmado.
Não o olhes. Quem me dera que nunca olhassem para mim”.
Esta primeira sequência dá a oportunidade de trabalhar sobre o fenômeno social das
contradições nas expressões de valores: trata-se para Phong de manter uma bela imagem pessoal
antes de se avançar para uma transição, uma feminização. Qual valor dar a esta enunciação que
vem com o choro? Pode se assumir que esta imagem se refere à sua infância, “o belo pequeno
menino e sua mamãe”, mas há um fato: esta imagem não corresponde ao ser com o qual ela
quer viver, ser uma menina. Manter uma bela imagem com um destino ambíguo no amor a si
próprio, à sua mãe, à sua a família permanece íntimo, daí um diário resultante deste imperativo
de desejo subjetivo: “espero que nenhum de vocês veja este filme. É o meu diário filmado. Não
o olhes. Quem me dera que nunca olhassem para mim”.
Em algumas imagens e palavras, ressonâncias do visual e da voz no corpo, coloca-se o
essencial da questão: o nó material e histórico entre a sensação de corpo, a pele e a imagem de
uma pessoa e o que é dito sobre ela pelos outros e, em primeiro lugar, a família – primeiro grupo
social encontrado – não funciona. O chamado nó social natural não funciona. “Rapaz” não se
encaixa com esta sensação de corpo e de seu rosto – olhos, nariz, boca.
O que se segue é um mal-estar, uma falta, uma privação e isto produz uma divisão, uma
Spaltung, e cria um conflito nas relações com os outros. Ele deve ser chamado “menino” neste
contexto social: “Tens um pênis, és um menino”. O que neste enunciado faz com que o nó
palavra-imagem-corpo se mantenha é a questão da bela imagem. Phong tem a memória da sua
imagem de menino, “o belo menino para a sua mamãe”, uma imagem que ele pode ter amado,
que é amado na sua família e sobretudo pela sua mãe. O amor mantém o nó do rapaz nesta
transferência. Há uma transferência do social no psiquismo e Phong se agarra a esse amor no
social. Ao mesmo tempo essa transferência de valor é dividida. Phong também se vê como uma
menina, rejeita as sensações do seu corpo de rapaz.
Este mal-estar, que é uma divisão no social do seu nó, é primeiro íntimo e depois tem
de passar para um momento, não determinado antecipadamente, para o público, não sem medo
legítimo, daí a mensagem de aparência contraditória no início do filme.
A segunda sequência que recordarei evoca precisamente a transição para a difícil
passagem da intimidade para o público, que na sequência está associada à passagem de um ano
para outro com o espetáculo do “festival do Tết”, fogos de artifício que ressoam na privação de
ser eu próprio e na impossibilidade de se ligar ao grupo, de se juntar ao grupo de meninas para
uma festa. “Tenho vergonha de falar sobre meu segredo”, diz ele, usando o gênero masculino.
A vergonha está ligada ao valor do gênero masculino que ainda não o deixou. Depois vem a
afirmação: “Eu quero ser eu, mesmo que a morte seja o preço”. O que está em jogo na transição
passa por uma morte, um confronto com a morte. A morte e o seu corolário de assassinato é o
segundo fator que faz o nó e desatamento de nó.
O primeiro fator é o que se chama amor, o que o faz aguentar e o que o faz quebrar. A
frase “Quero ser eu, mesmo que a morte seja o preço” aponta para o desafio de uma pessoa
transidentitária fazer uma transição bem sucedida, uma questão de vida ou morte, que lança luz
sobre a questão do risco de suicídio. O que é importante compreender é que falamos da morte
de um valor num funcionamento, neste caso o valor “homem”, e que esta morte de um valor
não é operada, eficaz, produzida num sistema unilinear mas sim multilinear, pluri-
transferencial. Isto acontece num trabalho dialético entre o mental e o social. É assim que o
filme se desenrola na sua segunda parte, com intersecções de relações sociais diferentes e
múltiplas: relação com a família, relação com amigos, pessoas trans, relação com o trabalho,
com a cirurgia.
Porque falar da segunda parte? A utilização da câmara se modifica no filme.
Inicialmente a câmara faz, no seu enquadramento, diário, expressão de uma voz ou de uma
imagem frontal para o espectador. As palavras são dirigidas principalmente à mãe. Phong
expressa as suas dúvidas quanto a transição do fato da tristeza da mãe para esta perspectiva:
“Você será uma mãe triste!”. Chegou em Hanói [capital do Vietnã], o local onde ele trabalha,
Phong indica a sua solidão, diz que sente a falta da sua mãe. Ele chora porque tinha visto sua
mãe se ocultar quando ele saiu para não mostrar as lágrimas maternas derramarem. Aqui se
lança assim, a questão do amor de sua imagem no olhar da mãe, que poderia ser um baluarte,
um obstáculo à transformação, uma sequência crucial de transferência maternal.
A orientação decisiva é dada na seguinte sequência do filme onde Phong olha para os
esquemas cirúrgicos da transição e da transformação do pênis em clitóris. Ele deixou a
lamentação, o sofrimento relacionado ao amor. Como um cirurgião que tem de operar sem que
o seu ato seja contaminado pelo afeto, ele pode enunciar: “É da carne cortada como carne”. A
função do amor em seu questionamento identitário mudou. Ele fala novamente de sofrimento,
evoca o fato de que a sua a família tem medo de que ele se magoe. Ele pede perdão, mas indica
imediatamente que os seus pais, os seus irmãos, não precisam se preocupar: será dolorido, mas
terá uma vida inteira de felicidade. Houve uma troca na transferência de valores. O medo ligado
ao valor afetivo da transição, de passar de homem para mulher no olhar e no amor familiar se
transformou num medo técnico objetivo: a dor da operação de mudança de sexo. Há uma
mudança transferencial para a própria família onde o reconhecimento de sua transidentidade
pode ser feito mais facilmente através da dor corporal relacionada com a cirurgia.
Ele foi além do amor que está encerrado na repetição de um sofrimento, ele foi além da
face do gozo ligado à expressão do sofrimento. Coloca-se então a questão da passagem do
íntimo para o público porém ele acaba de o resolver, está resolvido, ele já se separou. Esta
separação diz respeito ao ganho ligado a este último: o “mais de valor” para a sua vida, a
felicidade. No primeiro tempo do filme, ele declarou muito rapidamente em frente da câmara
“Nunca conhecerei a felicidade a não ser em família”. A família – pai, mãe, irmãos, irmã – são
para ele semelhantes no amor que está presente no primeiro grupo social que encontra o ser
humano, a família. Um desatamento se produziu em sua mudança de posição perante o valor-
amor, quando foi apresentado o visual da passagem do pênis para o clitóris e pode se assumir
que mais valor tem prevalecido no gênero feminino.
O encontro com o cirurgião na Tailândia fará uma pausa na utilização da câmara, que já
não foca exclusivamente o rosto e a fala de Phong, mas mostra os seus encontros no social: a
transição está em curso. Ele, cujo trabalho consiste na reparação de marionetes de teatro para
os tornar belos, alterará a função social da máscara para si próprio. Antes era obrigado a fazer
a feminilidade funcionar como uma máscara privada; depois é o pênis que é engolido até à
função de máscara no social. O pênis engolido à função de máscara pode ser removido. Isto é
o resultado de uma progressão límpida e óbvia na qual a feminilidade se afirma a si própria. O
medo de que o cirurgião faça troça dele, da sua feminilidade é um elemento importante. O
imperativo social de conformidade com o gênero definido pela anatomia e a zombaria social da
ambiguidade levada pela pessoa são duas fontes que alimentam o sofrimento. A terapia
hormonal posta em prática após o encontro com o cirurgião reforça esta passagem para a vida,
a vida feminina, ela se torna nela. O nó entre ter sensações corporais femininas, uma imagem
feminina e poder ser chamada de “menina” leva a uma vida que vale a pena viver. Foi
estabelecido um novo nó. Foi estabelecida toda uma dialética filmada nos seus encontros com
mulheres, mulheres trans, prostitutas, homens e também com os seus irmãos e irmãs que o
acompanharão na última fase da transição em Bangkok [capital da Tailândia].
O que é dialético é o que assinala nas reações dos outros um valor feminino que funciona
no social. Isto conduz à introdução de um mais de valor feminino nas trocas com os outros e
que formará a base para novas relações sociais, revolução nas relações sociais em comparação
com a situação anterior. E a palavra bela para Phong sinalizará este valor constantemente antes
de quem quer que sejam os interlocutores. Esta palavra está ligada à menina pela sua função de
valor. O valor de uma palavra funciona para uma pessoa em relação ao valor de outra palavra:
o valor de uma palavra “menina” funciona para Phong numa proporção do valor da palavra
“bela”.
A transidentidade abala uma ordem, sempre e acima de toda a ordem familiar. Para o
pai isso parece simples. A sua ordem de pensamento traz a transidentidade de Phong para o
mundo que é seu, o do desenvolvimento científico e revolucionário. Assim, a ciência pode
encontrar uma solução para estas pessoas trans que outrora estiveram presas num corpo que não
conseguia afinar. Neste contexto, Phong, ao carregar o valor de “menina” na vida social,
continuará a ser aquela criança amada que servirá a Revolução e o combate do heroico povo
vietnamita. O valor da palavra menina pode ser facilmente ligado ao valor da palavra libertação
e, portanto, ao valor da palavra Revolução. Para a mãe, a coisa é mais complexa.
É no quadro de uma discussão de grupo entre Phong, os seus irmãos e ela própria que
ela inverte a sua posição de recusa para uma aceitação. Gira em torno do que a palavra “menina”
atribuída a Phong transporta no grupo familiar. No grupo assim formado o que funciona é
simples: um valor funciona em relação a outro valor. O valor de uma palavra funciona para uma
pessoa em relação ao valor de outra palavra. O mesmo se aplica a uma imagem ou a uma
sensação de corpo. Este conjunto de valores que são levados a cabo funciona em relação ao
social e à privação que este social provoca. O que vai funcionar neste momento de encontro dos
Phong / Irmãos / Irmã / Mãe e o binário Menina/Bela, aquele que Phong coloca no seu ser para
o mundo como uma dinâmica de mais de valor como foi analisado anteriormente.
Este jogo de valores encontra o jogo dos signos, do que é feito um sinal para um valor,
signo-valor, e como funciona sem o conhecimento das pessoas do grupo quanto à aceitação e
rejeição. Aqui entra um ternário. O que acontece na inversão maternal? Os dois irmãos dizem
cada um à sua maneira que Phong / Menina / Bela não serve: ela não é uma menina ou se for
uma menina não é bela. É este nó no discurso filial que faz com que a mãe deixe de se recusar
a perder o seu belo pequeno menino para aceitar ganhar uma menina que é bela. Tudo depende
do valor da palavra bela em relação ao valor da palavra menina e do que ela faz signo.
A mãe tinha percebido pela primeira vez a palavra bela – mais de valor de troca com os
homens para Phong - como um menosprezo: com esta palavra, Phong se tornou para a mãe uma
mulher fácil, uma mulher fraca que se entrega aos homens para ser reconhecida como uma
mulher. Mas é um fato real que isto está ligado à pulsão escópica: ela acha a sua beleza, ela
acha Phong bela, ao contrário do que os seus filhos dizem. A inversão está feita. Ele se tornou
Ela para a mãe. Ocorreu uma transferência de valores e há um não-sabido nesta produção, um
inconsciente social que é também um inconsciente singularizado.
5. As transferências de “valor de gênero”

Partindo de outra base psicanalítica, a psicanálise social torna possível dar primazia à
transferência numa outra orientação que não a da psicanálise clássica: a transferência de valores.
O exemplo de Phong destaca claramente o fato de a transferência de valores de gênero ser um
nó palavra-imagem-corpo ou, por outras palavras, este nó é transferencial, a sua dinâmica é
transferencial. As variações nas atribuições de gênero e da sexuação estão relacionadas com
esta lógica de nós/desatamentos que nos permite captar o material e as coordenadas históricas
do gênero. Esta lógica permite entender de forma diferente o que está tanto no meio do entre-
dois do binário como nas intersecções relativas ao corpo, ao olhar e às palavras. Esta abordagem
possibilita tornar inteligível o mecanismo de inversão do valor do gênero.
É interessante neste contexto para conectar o conceito – ferramenta da máscara com os
de valor e de função. A passagem transitória é o momento em que se verifica uma inversão
parcial das funções de valor de gênero desempenhadas pela pessoa. Um valor de gênero não
funciona mais, está morto. Por exemplo, uma máscara que carrega o valor do gênero feminino,
num caso de MTF (Mulher Transexual), por exemplo, cairá. A pessoa produziu conhecimentos
sobre o gênero que a faz viver: o valor do gênero feminino. Este saber é afirmado após ter
experimentado esta mudança. O valor do gênero feminino não funciona mais como uma
máscara. Isso tem por consequência que o valor que carrega a masculinidade assuma sozinho a
função de máscara. Esta máscara que porta um valor de gênero masculino pode assim ser
removida no momento de autodeterminação, ou não, dependendo do desejo da pessoa.
O nó “palavra-imagem-sensação de corpo” no seu desenvolvimento está em sintonia
com o ritmo da pessoa em transição, sempre sujeito ao concreto do social. É muito importante
a este respeito compreender que a base da psicanálise social é a vida social concreta, que
também está relacionada com o direito. Assim, a lei “Modernização da Justiça no século XXI”
promulgada em 18 de Novembro de 2016 altera a forma de poder ser nomeado, de poder receber
um estado civil correspondente ao gênero que faz a pessoa viver.
Embora seja apropriado exigir a não-judicialização desta alteração do estado civil como
praticada em alguns países, a principal alteração é que a atribuição de um estado civil e de um
gênero contrário ao gênero atribuído ao nascimento de acordo com a anatomia pode ser feita
sem certificado médico, sem modificação cirúrgica ou mesmo hormonal. Isto muda a forma
como as pessoas entram numa transição. Porque não entrar numa transição, mudando primeiro
o estado civil, porque há várias pessoas que podem certificar que a pessoa vive há algum tempo
no gênero que ela demanda, e que a sua apresentação está em conformidade com esta demanda?
Esta não é de todo a mesma forma de abordar a questão da transição hormonal ou cirúrgica, se
a pessoa passou de mulher para homem civilmente, por exemplo.
Isto não é o mesmo para o círculo estreito da família e amigos da pessoa, nem para o
cirurgião ou endocrinologista quando essa pessoa solicita uma hormonoterapia ou uma
mastectomia. Esta mudança tem um peso no valor da demanda da pessoa. A inteligibilidade da
lógica transidentitária na transição também depende dos efeitos da incidência de a lei na
transferência social vertical e hierárquica. Isto influencia a expressão do seu valor. Do mesmo
modo, a transfobia na transferência social horizontal, entre indivíduos, tem implicações no nó
transferencial.
Em qualquer caso, estas transferências de valores como conceitos operacionais
encontram o seu melhor potencial de inteligibilidade na Seção I do Livro “O Capital” em Marx
no detalhe do funcionamento do primado do valor de troca. Com o conceito de transferência
de valores, formas valores, é possível propor uma análise das formas valores contidas em
palavras, imagens e sensações de corpo em seres sociais. Isto pode se aplicar tão bem no
coletivo como no individual e fornecer assim uma lógica de funcionamento o fenômeno
transidentário a partir da noção de forma valor de gênero. Substituindo “casaco” por “casaco
de mulher” e “linho” por “pele” no texto de Marx em “O Capital”, obtemos a lógica
transidentitária “O casaco portanto não pode representar um valor frente ao linho, sem que o
valor para este último assuma ao mesmo tempo a forma de um casaco” (Marx, K., 1867, 59) se
transforma em “O casaco de uma mulher, contudo, não pode representar valor face à pele, sem
que para esta última o valor não tome ao mesmo tempo a forma de um casaco de mulher”.
Esta lógica permite explicar e tornar o fenômeno transidentitário inteligível em contraste
com a psicanálise clássica que ainda fala com frequência de doença mental num quadro muito
retrógrado herdado da invenção de uma psicose transexual e dificulta a transição que
impulsiona para a vida. Esta abordagem também lança uma nova luz sobre a lógica de novas
categorias, tais como binário ou não binário a fim de se concentrar não no que faria estrutura
mas sim no que funciona. O exemplo de Phong é claro: as formas valor amor, morte e sentido
são as formas que provocam as dinâmicas em relação à privação, dinâmicas pulsionais,
dinâmicas de fixação, dinâmicas de separação.
A transferência de valores tem essa vantagem de oferecer ferramentas de inteligibilidade
à discussão, colocando a ênfase no conceito de valor na atribuição de gêneros, um conceito de
valor que permite a partilha de saber entre todos sem discriminação. Assim, a ferramenta “valor
de gênero” pode oferecer novas aberturas na maneira de acompanhar as dinâmicas
transidentitárias.
BIBLIOGRAFIA

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Freud, S. (2019). Psychologie des foules et analyse du moi [Massenpsychologie und


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Paris : PUF.

Hubert, H. (2003). Clinique du transsexualisme : une logique de retranchement, Doctorat de


Psychanalyse, Paris VIII

Hubert, H. (2006). Transsexualisme : du syndrome au sinthome, Doctorat de Psychologie,


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Marx, K. (2012). L’Idéologie Allemande [Ad Feurbach, Marx-Engels-Gesammtausgabe]


(1845). (Badia, G., Trad.). Paris : Les Éditions sociales.

Marx, K. (1983). Le Capital, Livre I [Das Kapital, Buch I] (1867). (Lefebvre, J. -P., Trad.).
Paris : Les Éditions sociales.
A OFICINA DE TERÇA À NOITE E A SUA DIALÉTICA

A oficina de terça-feira à noite das Oficinas Práticas de Psicanálise Social discute uma
vez por mês as orientações do que é estranhamente chamado “psicanálise social” desde a
fundação da nossa associação há 7 anos atrás. O talento das animadoras Antigone
Charalambous e Christine Labeille nos trouxe para o campo do debate dialético, o que toca nas
“contradições vivas das realidades vivas”.
Isto nos coloca no banho direto da transferência para o trabalho. O “primado da
transferência” foi o título do segundo artigo em trabalho após o inaugural “recomeçar pelo
começo”. Uma questão-bebê, isto é, uma pergunta que faz outras e que não está sozinha, “um
bebê sozinho não existe”, afirmou Winnicott... Esta pergunta foi levada por Talitha Tschöke
que questionou a fórmula que se tinha tornado demasiado banal entre nós: “Há uma
transferência do social para o mental!”. Isto lhe pareceu ser demasiado simples na sua
complexidade, com um efeito ritornelo. Esta formulação pode de fato ser interpretada de forma
mecânica, e passar por um deslocamento mecânico, uma transferência mecânica do social para
a mente. Esta é a primeira armadilha desta fórmula.
A segunda diz respeito à expressão “na mente”. Isto levar-nos-ia a considerar o social e
a mente como separados, por um lado, confinando a mente a uma entidade, por outro,
argumentou Talitha com razão. Este questionamento nos permitiu compreender que se trata,
pelo contrário, de considerar o social e o mental como ligados e em movimento. É o terceiro
ladrão da tríade sintagmática (1), a “transferência”, que transporta este movimento conectado.
A transferência é certamente conhecida por ser um deslocamento, e Freud o descreveu pela
primeira vez desta forma no início na interpretação dos sonhos; rapidamente lhe acrescentou no
trabalho do sonho, a deformação, a questão da forma, portanto. A transferência se deforma,
joga sobre a forma, joga com a forma. É assim que a forma-valor é caro a Marx na primeira
seção de “O Capital”, que introduz a transferência de valor que nós “colocávamos em valor”
para definir a transferência, Wertübertragung. A forma de valor muda tudo graças à
metamorfose e à metempsicose ocultadas no tecido de Karl – o brilhante texto de Heinrich.
É graças a esta magia transferencial tão bem descrita em “O Capital” que a mistificação,
a mistificação do fetiche e do seu segredo, ocorre. A bússola para encontrar o seu caminho e
trabalhar é clara: para fazer a análise concreta da situação concreta. Foi este ponto que esteve
em ação na leitura comum do 3º texto “Psicanálise Concreta”. A transferência é real, e a sua
base é a relação social. A base transferencial está portanto no concreto, a da segregação social
em todas as suas formas. A consequência disto é a implementação de transferências que
separam e fixam a forma de gozar e viver. É assim que a discriminação racista e/ou de gênero
se manifesta, por exemplo. A ordem criada pelas relações sociais não é uma ordem natural mas
uma questão de assassinato, de responsabilidade social pela morte ou a ameaça de morte. É
nesta ordem social que operam a transferência de valores, as suas transformações e a sua análise
dialética. É a partir daí que as ações de transferência, as manobras de transferência, podem ser
estabelecidas com a própria pessoa.
Falando dialeticamente, é notável que é depois de ter evocado a dialética hegeliana que
Marx liga a inversão que produz a este respeito com a transferência, em 1873 no seu posfácio
para a segunda edição alemã de “O Capital”:

Para Hegel, o movimento de pensamento, que ele personifica sob o nome da ideia, é o demiurgo
da realidade, que é apenas a forma fenomenal da ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento
do pensamento é apenas a transposição e tradução do movimento real nas cabeças dos homens.

A orientação é clara: contra a transcendência hegeliana e o demiurgo, Marx propõe a


transferência, transposição e tradução, de movimento real na mente. Será importante na nossa
formação “Conexões, Desconexões, transformações de valores na prática transferencial”
destacar as ligações dinâmicas de pensamentos apanhados em contradições para romper com
qualquer conceito de entidade do mental. É também a partir daí que a análise concreta de
situações transferenciais concretas, e das suas condições concretas, encontrará toda a sua
relevância prática. É neste ponto de “O Capital” que se encontra a nossa base teórica
fundamental, e o resto do texto mostra o que está em jogo na prática: método e sistema são
confundidos em Hegel.
Trata-se portanto de perceber a mistificação que dela resulta e isto diz respeito a cada
ser humano que vem falar da sua vida, uma vez que a questão prática é este trabalho sobre a
sua fábrica de mistificação e os fetiches que reinam sobre a sua vida, em parte sem o seu
conhecimento. Esta transferência para a mente assim explicada é rica no futuro. O seu potencial
já deu origem a um importante trabalho em psicologia. O trabalho de Lev Vygotsky, um
psicólogo bielorrusso e soviético (1896-1934) o testemunha quando escreve: “A história real
(...) é entendida como a transferência das relações sociais (entre pessoas) para o psicológico (no
interior do homem)” (2). É nesta base que ele revolucionou toda a inteligência do
desenvolvimento mental na sua relação com a aprendizagem nas crianças. A sua obra é ainda
hoje reconhecida internacionalmente e considerada como uma das mais importantes em
psicologia e pedagogia do século XX.
Teremos a oportunidade de descobrir estas ligações na nossa formação “conexões,
desconexões, transformações”, trabalhando no seu trabalho “consciência, inconsciente,
emoções”. Num outro registro, a perspectiva iniciada por Marx com a frase “Para mim, pelo
contrário, o movimento de pensamento é apenas a transposição e tradução do movimento real
nas cabeças dos homens” revoluciona a dialética hegeliana nos permitindo sair de uma dialética
de reconciliação religiosa. O real é assim apreendido no fluxo do movimento. Este é o trabalho
de descoberta que vamos continuar com a leitura das cartas de “O homem se sentindo uma
mulher”, ainda na nossa formação. Método pedagógico de modo a não confundir a dialética
conceitual com o movimento real. Pelo menos duas bebê-questões no trabalho, portanto!

* A tríade “Transferência, social, mental” em A psicologia concreta, Vygotski, 1929.


A FERRAMENTA MARX NA TROCA DE PRÁTICAS TRANSFERENCIAIS

A cada quinzena de manhã de quarta-feira alternando com a oficina teórica, trabalhamos


a oficina prática “as trocas de práticas na transferência de valor”. O curso de formação deste
ano “Conexões, Desconexões, Transformação de Valores nas Práticas Transferenciais” (1) é
organizado e ritmado desta forma. Esta abordagem dialética entre teoria e prática é enriquecida
a cada seis semanas por um testemunho de vida: uma pessoa vem contar ao grupo a sua
experiência de transferência social e daí resulta uma interação.
No seminário prático “As trocas de práticas na transferência de valor”, cada participante
conta ao grupo a sua prática e é fabricada uma elaboração no grupo. A fim de marcar e alimentar
esta prática, optei por trazer como preliminar a cada sessão uma contribuição teórica que parte
sempre de um comentário sobre um texto de Marx que é lido em conjunto no grupo. Esta forma
de fazer as coisas está diretamente relacionada com o que temos em comum na APPS: a
utilização da ferramenta Marx. Esta é a marca de uma prática e de uma teoria que se atreve a
partir de uma outra base.
“Servir-se Marx como uma ferramenta” é uma fórmula incrivelmente rica que pode ser
usada hoje em múltiplas áreas da vida humana, hoje mais precisamente do que ontem, como
exige a “crise extrema da civilização” obriga. Há urgência! Limitar-me-ei aqui ao campo da
nossa formação, cujo objetivo é formar pessoas para ajudar na recepção da dor sofredora na
mente humana. Isto não é alheio à afirmação na frase anterior e os trabalhadores da saúde mental
que somos, vivem os efeitos da transferência na a mente da atual crise social e política de uma
forma frequentemente violenta.
Servimo-nos da ferramenta Marx na APPS desde a fundação da nossa associação há 7
anos. Estamos conectados a ferramenta Marx. O que é que isto significa na prática? Significa
extrair do trabalho prático de Marx o que pode ser útil à nossa prática transferencial e ao seu
não-sabido. E isto funciona, começando com o termo Wertübertragung, transferência de valor,
que extraímos de “O Capital” e que oferece algo mais preciso do que a simples Übertragung
freudiana. Esta transferência de valores veio gradualmente a definir aquilo a que tínhamos
chamado transferência social (2). Mas falemos de prática. Trata-se, nisso que concerne o
trabalho pela palavra com uma pessoa, de poder introduzir com ela como se fabricam seu
sofrimento e sua dor no seu estar no mundo social concreto.
Esta dor sofredora é mais frequentemente expressa através de uma queixa. E como pode
ser tratada? É uma questão de partir do relato histórico que a pessoa faz desta dor, para fazer
uma narrativa da sua história a partir desta lógica de queixa e da produção do seu mundo de
queixa. Isto é o importante: um outro mundo é produzido pouco a pouco. A base da queixa
reside sobre uma privação. Nesta base, a narrativa histórica da queixa dará lugar à narração de
um drama que encontrará significações. Este tríptico “narrativa-drama-significação” que
extraímos do trabalho de Georges Politzer (3) será questionado.
A resposta está na formulação da pergunta, como Marx indicou, e neste trabalho
preliminar à análise, o da formulação é essencial: parar e retomar as formulações, questioná-
las, colocá-las em forma verbal de uma forma diferente. Porque esta importância está na
formulação do discurso. Porque um discurso carrega conexões entre Palavras, Imagens e
Sensações de Corpo (MIC). Chamamos estas conexões de MIC. São conexões que têm uma
história tanto de movimentos como de fixações, de cópulas e cortes. Um exemplo concreto
desta análise do discurso foi feito a partir do que a transidentidade ensina pelo universal. Isto é
transmitido no belo filme vietnamita Finding Phong.
Acrescentarei à análise feita neste blog do filme em questão (4) o fato de que um
discurso não é um puro significante, que um discurso é fisicamente curto, um movimento feito
de palavras, de imagens e sobretudo de corpo. O trabalho de formulação da questão levado a
cabo por uma pessoa é, portanto, um trabalho que se torna muito diferente do da psicanálise
clássica: trata-se de trabalhar sobre a forma valor palavra, a forma valor imagem e a forma valor
corpo e as suas conexões. Estas conexões são apanhadas num jogo transferencial de atrações e
repulsões. Resultam numa ordem que pode tanto fixar como se mover em relação à privação.
Uma forma valor palavra pode fazer potência, da mesma forma uma forma valor
imagem, ou uma forma valor corpo podem fazer potência, ou seja, poder de fazer, possibilidade
real de fazer. Este conjunto de formas valores consiste num conjunto de valores e, portanto, de
uma ordem de poderes transferenciais. Estes poderes transferenciais têm o papel de facilitar as
possibilidades de fazer criação na vida, mas entram sempre em relações de subordinação e de
dominação: dominação de um poder de forma valor palavra sobre outra forma valor palavra,
dominação de um poder de forma valor imagem sobre outra forma valor imagem, dominação
de um poder de forma valor corpo sobre outra forma valor corpo.
Estas transferências de poder MIC que impulsionam e eventualmente forçam estão
assim em trabalho nos discursos que são também do corpo e da imagem. Aqui está o
ofuscamento das formulações das perguntas e este ofuscamento é radicalmente diferente do
inconsciente psicanalítico clássico. Isto tem o seu peso no trabalho das primeiras entrevistas.
Vou retomar este ponto essencial de uma análise orientada pela ferramenta Marx na análise do
texto “Um homem se sentindo mulher” (5).
Para além desta ênfase na formulação, os outros pontos principais – que orientam de
forma decisiva são: o primado da prática, o primado da produção, o primado da relação social,
o primado das contradições. Voltaremos a este assunto na continuação da utilização da
ferramenta Marx.

(1)https://www.apps-psychanalyse-sociale.com/formations

(2)http://hubertherve75.over-blog.com/2020/06/la-pensee-humaine-vit-dans-un-rapport-
social.html

(3)http://hubertherve75.over-blog.com/2020/09/herve-hubert-entre-apport-et-aporie-de-la-
critique-marxiste-retour-sur-la-critique-de-georges-politzer-faite-a-la-psychanalyse.persp

(4)https://www.apps-psychanalyse-sociale.com/single-post/2018/07/15/finding-phong-la-
transidentit%C3%A9-est-une-question-sociale-universelle

(5)http://hubertherve75.over-blog.com/2020/11/l-homme-se-sentant-femme-extemporane-d-
un-texte.html

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