A história é a narrativa dos acontecimentos; tudo o mais vem daí. Paul Veyne
A história ainda vive os reflexos dos embates entre “racionalismo” e
“irracionalismo”, “ciência” e “arte” travados na segunda metade do século XX e que envolveram grandes nomes da historiografia como Michel de Certeau, Paul Veyne, Hyden Whute, Carlo Ginzburg e Roger Chartier. A questão da representação narrativa e a, consequente, aproximação da história aos gêneros literários foram uma das principais trincheiras desses embates. Há ainda um debate aberto que opõe comunidades de historiadores, porém alguns apontamentos podem nos ajudar a refletir sobre possíveis saídas para essa questão. As narrativas permitem as pessoas se relacionarem com o tempo, com outras pessoas e de ordenarem a experiência vivida, sendo que cada sociedade possui diferentes modos de narrar que lhe são próprios. A prática cultural de narrar é uma característica indelével das mais diversas culturas humanas nos diferentes momentos de sua experiência no mundo, uma prática antropologicamente universal e trans-histórica. (BARTHES, 1994; RUSEN, 2001). Conforme Roland Barthes:
a narrativa está presente no mito, lenda, fábula, conto, novela,
epopeia, história, tragédia, drama, comédia, mímica, pintura (pensemos na Santa Úrsula de Carpaccio), vitrais de janelas, cinema, histórias em quadrinhos, notícias, conversação. Além disso, sob esta quase infinita diversidade de formas, a narrativa está presente em cada idade, em cada lugar, em cada sociedade; ela começa com a própria história da humanidade e nunca existiu, em nenhum lugar e em tempo nenhum, um povo sem narrativa. (BARTHES, 1994, p.251-252)
A história ao tornar o passado presente se apresenta como uma
narrativa (RÜSEN, 2001). Essa narrativa dos acontecimentos dentro de uma temporalidade, chamada de história e representada pela musa Clio, nasceu em contraposição a narrativa mítica na função de construtora de uma memória social. Essa história “tradicional” ou “clássica” nascida por volta do século V a.C. estava intimamente ligada a moral, a religião e política, a qual pode ser sintetizada a partir de Cícero: historia magistra vitae. Essa história tradicional apesar das metamorfoses que sofreu durante o decorrer dos séculos manteve a narrativa como um de seus principais aspectos constitutivos, fazendo a história ser considerada como uma das modalidades do gênero literário. No final do século XVIII e início do XIX, nascia a história na sua concepção “moderna”, a emergência da história como campo disciplinar, propiciada pelo diálogo com as novas Ciências Sociais como a economia, a ciência política, a antropologia e a sociologia. A história moderna supõe que o conhecimento histórico é um saber critico dotado de um método científico, a qual deveria produzir uma visão racional e antimetafísica da experiência humana. A modernidade, segundo Hanna Arendt, rompeu com a tradição, o pensamento – memória - que orientava a ação deixou de existir e observou-se um distanciamento entre ação e pensamento, o passado deixou de esclarecer o futuro. No entanto, esse rompimento abriu a possibilidade de olhar o passado sem a “lente” da tradição, questionando e compreendendo o seu significado de modo que o passado voltasse a ter relevância para o presente (BIROLI, 2008). A história durante o século XIX, o chamado de “século da história”, deixou de ser um gênero literário e passou a ser considerada uma “ciência” e os historiadores, consequentemente, “cientistas” (NOVAIS, SILVA, 2011), “todavia começam atravessando um período que as paixões literárias e políticas prevalecem sobre as pretensões científicas” (TÉRTAT, 2000, p. 81). Ainda no século XIX, o célebre historiador Dênis Fustel de Coulanges afirmou que a história tem o poder de compreender a verdade objetiva, uma “ciência”. A história seria uma “ciência pura” como as ciências exatas, não uma arte, já que “visa unicamente encontrar fatos, descobrir verdades”. A história na sua concepção “tradicional” era confrontada pela “moderna” no compromisso com o rigor de suas afirmações, no entanto tinham na narrativa sua principal semelhança. Segundo Novais e Silva: A historiografia distingue-se da tradicional pelo diálogo com as ciências sociais, e pela aspiração à cientificidade. Mas isso não significa que tenha deixado ao abandono suas dimensões anteriores; o que estas tenha perdido importância e significação. É preciso ficar claro: a historiografia moderna tem componentes que lhe são específicos, e mantém os antigos, tradicionais, inextricavelmente fundidos. E nada estabelece de antemão a predominância dos novos “imperativos” sobre os velhos “irrelevantes”. Pode-se, legitimamente, assumir que o que a historiografia moderna tem em comum com a tradicional é no mínimo tão relevante e mesmo fundamental. E esse núcleo fundante e resistente do discurso do historiador reside no seu caráter de narrativa do acontecimento; essa a dimensão que atravessa todo o percurso, do venerável Beda ao venerável Braudel. (NOVAIS; SILVA, 20, p.15)
Essa é uma postura contrária a orientação hegemônica nos estudos de
historiográficos que entendem que a emergência de uma historiografia moderna não estabeleceu nenhuma relação com o modelo tradicional de história. O estatuto cientifico da historiografia moderna se fortaleceu na medida em que a preocupação dos Estados nacionais com a história fez multiplicar museus, bibliotecas e arquivo, além de instituí-la como disciplina escolar. A história constitui-se progressivamente como ‘ciência’ humana e universitária” (TÉTART, 2000). Porém, Chartier afirma que na busca pela condição de ciência a história “sempre ignorou que pertencia a uma classe de narrativa e apagou as figuras próprias de sua escrita na reivindicação de sua cientificidade”. A ciência histórica “não podia senão recusar pensar-se como uma narrativa e como uma escrita” (2008, p.164). Os historiadores começaram a escrever mal a partir da despreocupação com a forma, sendo uma perda irreparável (NOVAIS, SILVA, 2011) A instituição da história como campo possibilitou o estabelecer, a sucessão de diversas tendências historiográficas dentro dessa noção de história moderna, cientifica ou “cientificamente conduzida”, como o a Escola Metódica, dita “positivista”, o Historicismo, o Marxismo, os Annales, entre outros. A disciplina de história institucionalizada, segura de suas “verdades”, foi alvo, a partir da segunda metade do século XX, de críticas vorazes ao estatuto de ciência da história. Essas críticas eram resultantes da falência dos grandes modelos teóricos interpretativos, a disciplina de história passa por um debate epistemológico que procura situa-la entre narração e conhecimento. A disciplina desde então passa por um despertar epistemológico (CERTEAU, 2013) que procurou discutir o que é o conhecimento histórico, os seus objetos, as fontes para a sua produção e as suas potencialidades e limites. A partir desse cenário de “crise da história” nasceu a necessidade do diálogo da história com a própria história, a teoria da história. Essa reflexão sobre o campo disciplinar pode ser chamada de metahistória. Nesse contexto, as considerações feitas por Hayden White afastaram a história da ciência e a aproximaram da literatura, ao entende-la como uma narrativa que compartilha das mesmas fórmulas da escrita ficcional, sendo construtora de versões de acordo com o contexto em que está inserida. Segundo José Carlos Reis:
Para White, o historiador não pode continuar tão ingênuo, não
pode mais ignorar a estreita relação entre história e mito. A história não é uma ciência porque não é realista, o discurso histórico não aprende um mundo exterior, porque o real é produzido pelo discurso. O que o historiador produz são “construções poéticas”. É a linguagem que constituí o sentido. A história é uma representação narrativa de representações- fontes. Os próprios documentos históricos já são representações, interpretações e não são o passado em si. A narrativa histórica é uma “construção imaginativa” do passado. (...) Não há rigor cientifico em história que possa garantir objetividade. (REIS, 2010, p. 64 -65)
A história para White estaria mais próxima da arte do que da ciência já
que ela não pode reconstituir o passado tal qual como o vivido, mas oferecendo apenas uma leitura, uma interpretação, um discurso, sobre os acontecimentos. A narrativa teria um papel fundamental para a construção do significado, fazendo perder de vista qualquer tentativa de se fazer uma história objetiva Essa noção relativista da história do autor norte-americano é alvo de criticas violentas por parte de Roger Chartier: Hayden White faz-se o arauto de um relativismo absoluto (e muito perigoso) que denega toda possibilidade de estabelecer um saber “científico” sobre o passado. Assim desarmada, a história perde toda capacidade para escolher entre o verdadeiro e o falso, para dizer o que foi, para denunciar as falsificações e os falsários (CHARTIER, 2002, p.110)
A história seria reduzida a uma representação do passado realizada a
partir de documentos que são também representações de dada realidade, essas condições afastariam os historiadores do real e impossibilitariam a história como conhecimento científico. Já Paul Veyne entende a história apenas como uma narrativa, porém a sua distinção com a literatura estaria no compromisso com a verdade. A história para Veyne “permanece fundamentalmente uma narrativa, e o que chamamos de explicação não é senão a maneira que a narrativa possui de se organizar numa intriga compreensível” (1917, p. 67 apud CHARTIER, 2008, p.163). Além disso, uma história entendida como ciência não seria capaz de compreender a complexidade do passado, ou seja, a abordagem científica seria uma modalidade simplificadora da história. Uma história efetiva para Veyne seria aquela livre das limitações da ciência. Paul Veyne e Hayden White revelavam que a história não era a reconstrução fiel do que aconteceu, mas apenas uma interpretação, a certeza dos historiadores da coincidência entre a explicação histórica do presente e o passado naufragavam (CHARTIER, 2008) A história após o penoso caminho realizado desde do século XVIII na busca de cientificidade, voltava a ser considerada uma literatura, segundo Novais e Silva:
Devemos observar neste sentido que é possível distinguir dois
momentos em que a história era considerada um “gênero literário”. O primeiro (...) que antecede no tempo à consideração da história como uma “ciência”, e outro, contemporâneo, chamado também como período da “pós- modernidade”, caracterizado pelo linguistic turn. (NOVAIS; SILVA, 20, p.14) A defesa intransigente da história como ciência, ainda com uma forma peculiar de ciência, está associada a legitimidade do saber já que a pesquisa histórica é dotada procedimentos científicos que a conduz. “Histórias narradas com especificidade científica são histórias cuja validade está garantida mediante uma fundamentação particularmente bem feita” (RÜSEN, 2001, 96- 97). Roger Chartier, numa posição igualmente combativa aos chamados linguistas e fazendo eco ao seu pertencimento a tradição dos Annales, reivindica que a história é uma ciência social. A escrita da história possuir um regime próprio, com teorias, métodos e técnicas a permite se afirmar como uma ciência. A produção da história precisa ser pensada a partir do seu lugar social, pois a sua aceitação social está relacionada a ideia de campo que legitima a sua autoridade (CERTEAU, 2013; CHARTIER, 2008). A ficção também se vale de referências, técnicas e fontes para a produção de suas narrativas e, por vezes, formam representações coletivas sobre o passado “mais eficientes” que a própria disciplina histórica, mas são esses elementos que são incumbidos de revelar o estatuto de conhecimento da história (CHARTIER, 2008). O italiano Carlo Ginzburg é um dos autores que procuram participar do acalorado debate sobre as possibilidades e os limites da história após as críticas dos chamados pós-modernos. Ginzburg apresenta essas críticas, chamadas de “futuros nós epistemológicos das ciências humanas”, realizando uma comparação entre a “incerteza” da medicina com a das ciências sociais, mais especificamente a história.
As razões da ‘incerteza’ da medicina pareciam ser
fundamentalmente duas. Em primeiro lugar, não bastava catalogar todas as doenças até compô-las num quadro ordenado: em cada indivíduo, a doença assumia características diferentes. Em segundo lugar, o conhecimento das doenças permanecia indireto, indiciário: o corpo vivo era, por definição, inatingível. (...) Nas discussões sobre a ‘incerteza’ da medicina, já estavam formulados os futuros nós epistemológicos das ciências humanas. (GINZBURG, 1990, p.166) A “incerteza”, de acordo com Ginzburg, se refere à uma abordagem cética da história que defende a impossibilidade de um conhecimento direto, ou seja, experimentável sobre o passado. No entanto, desde da Revolução dos Annales na primeira metade do século XX as comunidades dos historiadores não entendem mais as fontes como um puro reflexo da realidade, onde o fato histórico pode ser “resgatado”. Os historiadores já derrubaram a pretensa objetividade das fontes. Para Ginzburg, ainda que os historiadores se afastem de uma concepção positivista das fontes, confrontar as noções de “realidade, “prova” e “verdade” são necessárias para não cair numa armadilha às avessas:
Em vez de lidar com a evidência como uma janela aberta, os
céticos contemporâneos a tomam como um muro, que por definição bloqueia qualquer acesso à realidade. Essa atitude antipositivista radical, que considera todos os pressupostos referenciais como ingenuidade teórica, acaba se tornando, à sua maneira, um positivismo invertido. (GINZBURG, 2011, p. 347)
A evidência é a palavra-chave para o paradigma indiciário que ganhou
força na segunda metade do século XIX nas ciências humanas e entendido por Ginzburg como um caminho para a superação da impossibilidade do conhecimento histórico. A compreensão da realidade por parte dos historiadores estaria relacionada a investigação de evidências, provas, resíduos e indícios, muitas vezes, ignorados, o método indiciário seria uma proposta de um método interpretativo situado sobre pistas marginais, consideradas reveladoras. Apesar da grande complexidade da realidade Ginzburg tem uma postura positiva na tentativa de explica-la: “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la” (GINZBURG, 1990, p. 177). As questões colocadas a partir de um despertar epistemológico na década de 70 ainda não estão resolvidas, apesar dos avanços nos últimos anos. Uma posição intermediária nesse embate poderia superar a oposição da dimensão analítica e de uma dimensão narrativa, já que as duas estão necessariamente presentes no fazer historiográfico (NOVAIS; SILVA, 2011). A história, segundo Ginzburg, para chegar à resultados significativos precisa assumir um estatuto cientifico frágil, já que assumir um estatuto cientifico forte levariam a resultados pouco significativos. A história para ser relevante não pode estar confinada numa “gaiola” epistemológica, para reconstruir uma realidade passada existe um processo de seleção que privilegia determinados sinais que fazem parte do “faro, golpe de vista, intuição” do historiador. (GINZBURG, 1990). A história tanto na sua concepção tradicional quanto na sua concepção moderna entende a produção de uma narrativa que apresente uma interpretação do passado. A narrativa, seja ela vista como um gênero literário ou como resultado de uma pesquisa controlada cientificamente, é imprescindível à história. Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. O susurro del lenguaje: más allá de la palabra y la
escritura. Barcelona: Paidos, 1994. BIROLI, Flávia. Dizer n(o) tempo: observações sobre história, historicidade e discurso. In: SIGNORINI, Inês (org.). [Re]discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola, 2008. p.157-184. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In._________. A escrita da história. 3°ed. Rio de janeiro: Forense, 2013. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes.1°. ed. Porto Alegre: Editora Universidade / UFRGS, 2002. CHARTIER, Roger. A história: a leitura do tempo. In. SCHÜLER, F. et al. Fronteiras do pensamento: retratos de mundo complexo. São Leopolodo: Unisinos, 2008, p. 163-178. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In._________. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990. P. 143-179. GINZBURG, Carlo. Controlando a evidência: o juiz e o historiador. In. NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogerio Forastieri da (org.)..Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011 NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogerio Forastieri da (org.)..Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011 REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.. Brasília: Ed. UNB, 2001 RÜSEN, Jörn. O que é a teoria da história? In.________. Teoria da história: uma teoria da história como ciência. Curitiba: UFPR, 2015. P. 31-36 TÉTART, Phileppe. Pequena história dos historiadores. Bauru, SP: EDUSC, 2000)