Você está na página 1de 22

Resumo dos capítulos

1. Dogma e dúvida em uma cultura pluralista

Dizer que vivemos em uma sociedade pluralista significa, não apenas que estamos em uma
sociedade diversa, com variadas culturas, religiões e estilos de vida, mas que esta
pluralidade é celebrada como algo que deve ser aprovado e valorizado.

É uma característica própria da sociedade secular, na qual não há um padrão oficial de


crenças e condutas, antes é marcada pelo espírito crítico que submete todos os dogmas ao
exame da razão.

A visão de mundo cristã da europa ocidental, que estabeleceu os padrões de crenças durante
muitos séculos, foi impactada pela forte tradição humanista presentes na cultura greco-
romana e que floresceu durante o Renascimento e Reforma.

Este humanismo tem muitas características que podem ser enquadradas em duas tradições
de busca pela verdade. A primeira é a tradição racionalista que defende a razão como único
meio de se conhecer a verdade. A segunda é a tradição espiritualista que argumenta pela
capacidade do ser humano de acessar a verdade através de experiências místicas. Ambas
tem em comum uma marginalização dos eventos históricos como fonte da verdade única.

Entre os séculos 17 e 18 esta cosmovisão ganhou mais espaço e houve então uma transição
entre o “mundo da Bíblia” e o mundo natural, dominado pela razão e consciência. Os
defensores do cristianismo como paradigma para a realidade passam a adotar o modo de
pensar secular, defendendo a Bíblia e a fé cristã como “razoavéis”.

Aos poucos, os ensinamentos bíblicos deixaram de ser entendidos como verdades públicas e
as Escrituras se tornaram um livro que trata apenas da vida interior, da alma, da realidade
espiritual. Apenas o que pode resistir ao exame crítico da ciência moderna poderia ser
considerado fato, verdade pública. Tudo o mais é considerado dogma e não pode ultrapassar
os limites de uma crença pessoal.

No mundo contemporâneo, o dogma deve ser questionado e esta atitude é vista como marca
consistente de maturidade e competência intelectual. Já para os cristãos, o evangelho de
Jesus é um fato e deve ser proclamado como verdade, não mera opinião pessoal. A
revelação de Deus é algo dado e que não pode ser derivado da reflexão racional sobre a
experiência de todas as pessoas. É um convite a fé, uma vez que a verdade dela não pode
ser demonstrada com base em outras supostas certezas. Isso soa como arrogância e
ignorância para os ouvidos contemporâneos.

Mas o princípio do pluralismo não é universalmente aceito na sociedade. Ele parece ser
aplicável apenas aquilo que chamamos de “valores”, o mundo das escolhas pessoais, mas
não aos “fatos”, que devem ser aceitos, quer gostemos ou não. No pluralismo, os valores não
devem se apresentar como verdades públicas; este é um espaço destinado apenas aos fatos.
Contudo, alguns aspectos precisam ser considerados:

1. Todo tipo de pensamento sistemático parte de algumas coisas tidas como certas, ou
seja, depende de algum nível de pressuposições. Em todos os domínios do
pensamento é possível questionar o ponto de partida e, portanto, o dogma não é
exclusividade da igreja.
2. Toda sociedade depende de um conjunto de crenças e práticas que são aceitas por
seus membros, consideradas como razoáveis, e estas “estruturas de plausibilidade”
diferem em diferentes momentos e lugares. O evangelho dá origem a uma estrutura
de plausibilidade radicalmente diferente daquelas que formam outras culturas,
gerando uma tensão constante ao longo da história
3. A defesa de que a verdade é muito maior do que qualquer pessoa ou tradição
religiosa pode compreender parece bastante humilde e tem seu valor. Contudo, pode
atentar contra a verdade se usada para neutralizar qualquer afirmação verdadeira.

Na sociedade pluralista, qualquer afirmação confiante de crença na revelação de Deus e seu


propósito para o mundo tende a ser duramente rejeitada. Mas a lógica que fundamenta este
posicionamento também está ancorada em suposições sujeitas a crítica. Porém, a visão
pluralista não é questionada por fazer parte da estrutura de plausibilidade vigente.

Parte da rejeição ao dogma é uma confusão que há entre ele e a coerção, o poder político e a
negação da liberdade. E de fato, quando isso ocorre, a mensagem cristã é deturpada, pois a
verdade de Cristo sustenta a liberdade.

A verdade cristã não precisa ser domesticada para encaixar-se na estrutura de plausibilidade
atual. Razão e revelação não são duas fontes diferentes de informação, mas maneiras
distintas de interpretar os dados disponíveis a todos. Assim o cristão usa tanto a razão como
a revelação para compreender a realidade.

É essencial para a integridade da mensagem cristã que se reconheça como testemunhas do


evangelho e não detentores de toda a verdade. Os cristãos estão no caminho que leva a
verdade, Jesus, e avançam por ele até o dia em que terão um conhecimento pleno.

O dogma cristão não é uma série de proposições eternas, elucubrações metafísicas sobre
Deus, a natureza e o homem, mas sim uma história. Uma forma de interpretar a história
humana que se passa dentro da história da natureza, e que nos é dada para aceitação pela
fé. A fé cristã, por sua vez é, em essência, uma interpretação da história universal.

SÍNTESE

O pluralismo é uma visão de mundo derivada do humanismo que defende a valorização da


diversidade de culturas, religiões e estilos de vida. A racionalidade está no centro de sua
estrutura de plausibilidade de modo que o conhecimento é segregado em dois grupos: os
fatos - que podem ser comprovados pelo método científico e portanto são dignos de
confiança - e os valores - crenças pessoais e subjetivas que são legítimas em foro privado,
mas que não devem se apresentar como verdade na esfera pública.

Nesse contexto, as afirmações que não podem ser submetidas ao exame crítico, como os
pressupostos do cristianismo, são tidas como dogma e encaradas com desconfiança. No
entanto, todo conhecimento está fundamentado em verdades que, em última instância,
podem ser questionadas e, se os princípios do pluralismo não são colocados em discussão é
porque fazem parte da estrutura de plausibilidade vigente.
2. As raízes do pluralismo

É preciso diferenciar a pluralidade de uma ideologia do pluralismo. Ainda, há uma diferença


entre pluralismo cultural (atitude que acolhe a diversidade de culturas e estilos de vida
acreditando que isso é um enriquecimento para a sociedade) e o pluralismo religioso (crença
de que as diferenças entre religiões são diferentes percepções da mesma realidade e não
uma questão de verdade ou mentira).

O pluralismo exerce sua influência no campo das crenças, mas não domina sobre o campo
dos fatos. A religião, enquanto crença, não é avaliada pelos critérios de verdade, mas de
sinceridade, "boa fé" daquele que a professa. Já as narrativas ancoradas na ciência são
elevadas ao status de fato, pois desfrutam de uma suposta neutralidade do método.

A concepção que temos da vida humana depende, em grande parte, da história na qual nos
vemos inseridos. De um lado há a narrativa da evolução e, de outro, a narrativa bíblica. São
histórias diferentes e incompatíveis. Na primeira, a realidade que conhecemos é resultado do
acaso e não se pode falar em um propósito último para a existência humana. Na segunda, há
uma intenção por trás de toda a criação e há uma finalidade para a vida.

Enquanto as ciências naturais se dedicam às relações de causa e efeito, as crenças


procuram responder à questão do propósito. A questão do propósito, porém, é fundamental.
Se não souber o propósito para o qual a vida humana foi criada (se ele não existir de fato),
não há base para dizer que qualquer estilo de vida humano é bom ou ruim. Se, por outro
lado, for um fato que aquele que criou toda a história definiu um propósito para o cosmo e a
humanidade, conhecê-lo e seguí-lo será de suprema importância.

A estrutura racional do mundo criado, que a ciência busca entender, não lhe é dada por seu
Criador, mas suprida pela necessidade do pensamento humano. A realidade última é
incognoscível e a natureza humana deve ser entendida em termos de causas eficientes e não
de causas finais. As opiniões sobre como ela deveria ser só podem ser opiniões pessoais.
Qualquer afirmação de propósito definido por um agente externo (o Criador), será encarada
como dogmatismo inaceitável.

Mas a própria estrutura racional é sustentada por um dogma, a saber, que a dúvida é mais
intelectualmente respeitável que a aceitação de um credo. Estas suposições que
fundamentam o pluralismo religioso e ético também devem ser submetidas ao exame crítico.

Algumas considerações sobre a fragilidade do dogma científico:


1. É impossível, ao mesmo tempo, duvidar tanto da afirmação como das crenças com
base nas quais a afirmação é colocada em dúvida.
2. O conhecimento tem de começar de um ato de fé.
3. Todos os chamados fatos são fatos interpretados. O que vemos como fatos
dependem da teoria que trazemos para a observação.
4. O fato de que nosso conhecimento é limitado não deveria ser usado para desaprovar
tais informações do que podemos saber enquanto somos capazes de fazer. A busca
pela verdade é sempre guiada por uma certa intuição na qual confiamos.
5. A desintegração entre aquilo que é objetivo e aquilo que é subjetivo não pode ser
sustentada quando analisamos a forma como construímos nossa epistemologia.
SÍNTESE

A concepção que temos da vida humana depende, em grande parte, da história na qual nos
vemos inseridos. Existem duas importantes metanarrativas no mundo ocidental: a evolução e
o enredo bíblico. Estas são histórias diferentes e incompatíveis. Enquanto a evolução se
fundamente em relações de causa e efeito e não reconhece propósito para a existência do
cosmo ou da humanidade, a narrativa bíblia afirma a existência de um Criador que faz todas
as coisas, inclusive a humanidade, com um propósito.

A estrutura racional sustentada pela ciência alega ter mais legitimidade na esfera pública por
trabalhar a partir de critérios neutros e objetivos. Contudo, ao passar pelo exame crítico, nota-
se que mesmo esta estrutura aparentemente isenta está fundamentada em pressupostos
que, em última análise, não podem ser questionados e, portanto, são escolhas dogmáticas.

3. Saber e crer

A sociedade atual segmentou ciência e religião. Considera que a ciência pode ser ensinada,
pois trata daquilo que todos sabemos, enquanto que a religião não pode ser ensinada como
verdade, pois diz respeito àquilo que algumas pessoas creem. Mas como e onde se traçam
os limites entre aquilo que sabemos e aquilo que cremos?

Embora o método científico se proponha a ser objetivo e, em um mundo de desconfiança,


esta suposta neutralidade lhe dê credibilidade para ocupar a arena do saber, ele mesmo não
costuma ser submetido a crítica. Os passos adotados pelo método científico são: a)
"observação de fatos significativos"; b) "elaboração de uma hipótese"; c) "deduzir
consequências que podem ser testadas".

Em cada uma dessas etapas, é possível reconhecer que o cientista se apoia não apenas no
conhecimento disponível, mas em sua intuição. A seleção dos fatos que serão julgados
"significativos" é uma tarefa com boa dose de subjetividade. A elaboração de uma hipótese
não segue regras pré-estabelecidas e, muitas vezes, parte da imaginação do pesquisador.
Em um mesmo estudo, encontram-se resultados dos testes que fogem ao padrão e a
expectativa e que, via de regra, são descartados para que se alcance algum produto ao final
da pesquisa. Ou seja, todo o processo de construção do conhecimento é, em muitos níveis,
pautado por crenças. A busca da certeza por meio da dúvida universal é um beco sem saída.

Nosso conhecimento de mundo é mediado por ferramentas que adotamos de forma não
crítica, como a linguagem. Esse conjunto de ferramentas fazem parte de uma entidade maior
que chamamos de cultura. A cultura é a lente pela qual interpretamos a realidade e, apenas
quando nos deparamos com uma cultura diferente, que adota outro "par de lentes" para
enxergar o mundo é que nos damos conta de que aquilo que sempre tivemos como certo é
apenas uma forma de ver as coisas.

Este caso se aplica também para a estrutura racionalista. Ela é uma perspectiva cultural em
que o cosmo é o resultado acidental da operação dos fatores idênticos de acaso e
casualidade. Esse conceito de um cosmos sem propósito que dá a confirmação para a
divisão do nosso mundo em dois - um mundo de fatos sem valor e um mundo de valores que
não tem base alguma em fatos.
SÍNTESE
Todo processo de construção do conhecimento é, em muitos níveis, pautado por crenças.
Nem mesmo o método científico goza de total imparcialidade e objetividade. Embora esta
seja a estrutura de pensamento dominante no ocidente, os critérios que lhe outorgam
credibilidade também podem ser questionados. Mas, à medida em que não são, o resultado
que temos é de uma cultura em que parece bastante razoável a crença em um mundo sem
propósito, em que não há qualquer correspondência entre a esfera dos valores e a esfera dos
fatos.

4. Autoridade, autonomia e tradição

A cultura atual é fortemente influenciada pelo Iluminismo, movimento de rejeição à tradição e


sua autoridade. Nesta sociedade, é exigido que todos sejam hereges, ou seja, que façam
escolhas pessoais de forma autônoma. A Bíblia e a igreja deixam de ser fontes de autoridade
e a fé já não deve ser compreendida como verdade pública, mas uma escolha pessoal. Por
outro lado, a ciência assume a posição de autoridade estabelecendo, ironicamente, uma nova
tradição e se sustentando a partir dela.

Na realidade, a busca pela verdade sempre depende, em alguma medida, da autoridade de


uma tradição. Alunos aprendem com professores, profissionais iniciam suas carreiras debaixo
da supervisão de pessoas mais experientes, teorias e experimentos anteriores fundamentam
as pesquisas mais recentes. A confiança na tradição não deixou de existir, o que ocorreu, foi
uma mudança de paradigma.

O cientista aceita a autoridade da tradição, não para substituir a compreensão pessoal da


verdade, mas como precondição necessária para obter essa compreensão. E se o cientista é
um pioneiro que chegou ao ponto de desafiar a tradição e propor uma inovação drástica, não
é para enfraquecer a autoridade da tradição, mas para torná-la ainda mais congruente com a
verdade. O cientista se compromete pessoalmente com este conhecimento e nele deposita
sua reputação profissional assumindo o risco de estar errado.

De modo semelhante, um cristão faz parte de uma tradição que reivindica autoridade. Essa
tradição incorpora e leva adiante certos modos de observar as coisas, certos modelos para
interpretar a realidade. Inicialmente, ele aceita esta tradição pela fé, como um aluno de física
que confia nas palavras de seu professor. Com o avanço na compreensão e o acúmulo de
experiências (aquilo que chamamos de discipulado) a pessoa passa a ver o mundo por estas
lentes; sua mente, coração e vontades serão permeados por esta tradição. Embora seja
pessoal, não é simplesmente subjetiva, pois tem intenção universal. Dentro da comunidade
cristã, haverá também intérpretes da tradição que apresentarão modificações que devem ser
submetidas ao julgamento pela comunidade, propostas que visam alcançar uma
compreensão mais completa da verdade.

Mas, ao contrário da tradição científica, a cristã não se restringe a perguntas sobre a


estrutura racional do cosmo, mas trata do significado e propósito das coisas e da vida
humana. Ambos têm a mesma pressuposição sobre a racionalidade do cosmo, mas a
tradição cristã considera uma racionalidade mais abrangente que se baseia na fé de que o
autor e sustentador do cosmos revelou pessoalmente seu propósito.
No caso da comunidade científica, a tradição é a da aprendizagem, da escrita e da fala
humanas. No caso da comunidade cristã, a tradição é a do testemunho da ação de Deus na
história, revelando e cumprindo o propósito do Criador.

SÍNTESE

Após o Iluminismo e sua lógica de questionamento das tradições, a igreja e as Escrituras


perderam espaço enquanto vozes autoritativas. Cresceu a confiança no pensamento
científico, de modo que este assumiu a posição de autoridade, apresentando seus resultados
como verdade pública e se estabelecendo como nova tradição. Embora a modernidade tenha
questionado as tradições anteriores, a busca pela verdade sempre se sustenta em uma
tradição que demanda confiança e exige autoridade.

5. Razão, revelação e experiência

As fontes da fé cristã são historicamente atribuídas à razão e à revelação. Recentemente, o


debate inclui também o papel da experiência como contexto necessário para a compreensão
das Escrituras e da tradição.

Acessamos a revelação por meio da razão, afinal é a estrutura de pensamento e lógica que
nos permite compreender a realidade revelada. Ao mesmo tempo, a razão está
fundamentada em uma tradição que lhe dá suporte, desde parâmetros elementares como a
linguagem até fatores incidentais como mudanças sociais e econômicas.

Razão e tradição não são critérios distintos na busca pela verdade. A razão só funciona
dentro de uma tradição social contínua que não pode ser entendida como uma operação
puramente cerebral sem relação com as experiências contínuas da comunidade que passa
adiante essa tradição.

Surge, então, os defensores da teologia contextual, uma abordagem que nega a existência
de verdades eternas transmitidas de geração em geração através da Bíblia e do credo,
entendendo que a teologia resulta das experiências momentâneas. Segundo eles, não se
deve partir do dogma, mas dos fatos, analisando primeiramente a situação presente para
então se descobrir o que Deus está fazendo naquele momento.

Contudo, deve-se considerar que os "fatos" são repletos de teoria e toda experiência é
interpretada. A intuição e a imaginação têm papel importante na formação de novos modelos
teóricos. Uma nova visão de coerência pode resultar de propostas que sequer foram
experienciadas. A comunidade cristã tem uma tradição de racionalidade que nasce do que foi
revelado àqueles que testemunharam ou participaram de eventos narrados na Bíblia.

Há uma semelhança entre estes momentos de revelação na história da ciência e na história


da religião, mas há também uma diferença fundamental. Enquanto a primeira declara "eu
descobri" a segunda afirma "Deus falou". A diferença está no papel que a razão passou a
desempenhar. Na primeira, é autônoma, decidi o que perguntar, que dados coletar, que
método usar para a análise, que hipóteses serão formuladas. A segunda, renuncia a
autonomia soberana e torna-se ouvinte de confiança, uma vez que reconhece uma dinâmica
interpessoal. A verdadeira oposição não está entre a razão e a revelação como fontes da
verdade e critérios para ela, mas entre as duas maneiras como a razão pode ser usada.
A tradição cristã de racionalidade não usa como ponto de partida quaisquer verdades
supostamente evidentes por si mesmas. Ela tem como ponto de partida acontecimentos nos
quais Deus se deu a conhecer em circunstâncias particulares. A comunidade que respondeu
a esse chamado teve de dar sentido às circunstâncias em constante mudança e lidar com
elas à luz do que havia sido revelado nos acontecimentos originais.

SÍNTESE

Ciência e religião valem-se da razão para compreender a realidade. A diferença está no uso
da razão, sendo que a ciência opera com base na autonomia do pesquisador em relação ao
seu objeto de estudo e o cristianismo assume uma postura de escuta e confiança em outra
realidade pessoal, aquilo que chamamos de revelação.

A tradição cristã tem como ponto de partida acontecimentos nos quais Deus se deu a
conhecer em circunstâncias particulares. A comunidade que respondeu a esse chamado teve
de dar sentido às circunstâncias em constante mudança e lidar com elas à luz do que havia
sido revelado nos acontecimentos originais.

6. Revelação na história

O cristianismo é uma fé histórica. Isso significa que os acontecimentos narrados pelas


Escrituras são compreendidos como fatos reais e não um conjunto de aforismos ou narrativas
que apenas servem como ilustração para uma verdade universal. Por esta razão, o
relacionamento do cristão com Deus não está separado daqueles atos nos quais Deus
revelou e cumpriu o propósito dele para o mundo. Sua devoção é expressa no seu
envolvimento com a história e por meio dele, uma vez que faz parte da missão de Deus.

Assim, a experiência de Israel não deve ser interpretada simplesmente como um capítulo na
história das religiões do Oriente, mas como a ação da autorrevelação de Deus. A igreja cristã
também não é simplesmente uma entre diversas variedades de experiências religiosas, mas
fruto da obra prometida do Espírito de Deus, para testemunhar Cristo ao mundo, revelando
assim o propósito de Deus para sua criação.

7. A lógica da eleição

A doutrina da eleição é rejeitada pela sociedade. Como Deus pode escolher se revelar a uma
pequena tribo em particular e deixar sociedades inteiras à margem do segredo da salvação
por milhares de anos?

No entanto, esta doutrina é fundamental para qualquer exposição verdadeira da Bíblia. Desde
o início Deus escolhe, chama e envia pessoas em particular. É sempre Deus quem inicia.
Mas podemos acreditar que o Deus Todo-Poderoso age dessa maneira aparentemente
arbitrária?

Diferente do que se encontra nas religiões orientais e na perspectiva racionalista do ocidente,


a visão bíblica de salvação não reside em uma busca individual autônoma, nem na relação de
um Deus solitário com um ser humano solitário. Desde o início, a Bíblia fala da vida humana
em termos de relacionamentos e essa dependência mútua vai muito além de uma parte da
jornada rumo a salvação, mas é intrínseca ao próprio objetivo. A salvação sempre envolve o
outro, somos salvos juntamente com aqueles que são portadores da salvação.

A doutrina da eleição não representa uma posição privilegiada diante de Deus. Antes, é a
universalidade do amor salvífico de Deus que é a razão pela qual ele escolhe e chama uma
comunidade para ser mensageira da sua verdade e amor por todas as pessoas. A verdade e
o amor de Deus só podem ser transmitidos se estiverem incorporados a uma comunidade.

A graça eletiva de Deus, sua escolha de alguns como portadores da sua salvação para todos,
é uma questão de temor e gratidão, por isso, nunca pode se tornar a razão para se fazer
reivindicações contra Deus que excluam outros (ele não escolhe destruir outros).

Ser eleito em Jesus significa ser incorporado à sua missão ao mundo, ser portador do
propósito salvífico de Deus para todo o mundo, o sinal do seu bendito reino que é para todos.
A salvação de Deus não tem por objetivo nos tirar da história, mas operar nela e por meio
dela.

SÍNTESE

Diferente do que se encontra nas religiões orientais e na perspectiva racionalista do ocidente,


a visão bíblica de salvação não reside em uma busca individual autônoma, nem na relação de
um Deus solitário com um ser humano solitário. Desde o início, a Bíblia fala da vida humana
em termos de relacionamentos e essa dependência mútua vai muito além de uma parte da
jornada rumo a salvação, mas é intrínseca ao próprio objetivo. A salvação sempre envolve o
outro, somos salvos juntamente com aqueles que são portadores da salvação.

8. A Bíblia como história universal

A Bíblia se propõe a falar da vida humana no contexto de uma visão da história cósmica
universal. Confiar em seu conteúdo é certamente um ato de fé, crer que de fato Deus revelou
seu caráter e o propósito da criação por meio de acontecimentos no curso da história,
primeiro a Israel e depois a Igreja.

A interpretação desses acontecimentos originais ocorre sempre dentro de uma comunidade


que, a cada geração, busca aproximar-se mais da verdade a luz de novas experiências. Isso
de modo algum fere a questão da autoridade bíblica. Ela está na essência da tarefa dos
portadores do evangelho, cuja tarefa difícil é buscar entender o pensamento moderno à luz
da história bíblica. Mas pode a Bíblia questionar o modo pelo qual eu, como membro da
sociedade, entendo o mundo?

Sim, mas para isso, é preciso corrigir duas formas comuns, porém equivocadas, de
compreender a Bíblia. Primeiro a ideia fundamentalista de que ela é um compêndio de
proposições factualmente infalíveis sobre tudo o que há no céu e na terra. De fato, as
Escrituras não se propõem a ser um livro escrito com o rigor científico e os padrões
metodológicos da sociedade pós-iluminista. Adotar esta postura é um anacronismo que fere a
cultura e sociedade que primeiro recebeu estes textos. Em segundo lugar, a Bíblia não é um
registro de experiências religiosas únicas. Em muitas culturas, são contadas histórias sobre
deuses que morrem e ressuscitam, narrativas enraizadas na experiência de morte e
nascimento. A diferença é que a Bíblia apresenta esta narrativa como verdadeira, apontando
para uma realidade factual, um acontecimento na história, em um tempo e lugar que existe e
sustentada por testemunhas que viveram e morreram em defendendo a historicidade de
Jesus Cristo.

Essa perspectiva de uma história única e universal em suas implicações para a raça humana
pode desafiar diferentes estruturas de plausibilidade por meio do testemunho de uma
comunidade que, em total continuidade com os autores e testemunhos bíblicos, está
habitando na história que a Bíblia conta. A questão então não é simplesmente conhecer o
texto, mas compreender o mundo por meio do texto. Não se deve examinar o texto como
alguém de fora, mas viver no texto e a partir dessa posição tentar entender o que está
acontecendo no mundo agora.

SÍNTESE

A Bíblia se apresenta como uma história real de implicações universais. Mais que um
compêndio de explicações infalíveis sobre a natureza e a história e, certamente, diferente de
outros registros de experiências religiosas existentes, as Escrituras reivindicam revelar o
caráter e o propósito de Deus para toda humanidade, através de acontecimentos históricos.

Assim, ela é a maneira pela qual compreendemos e damos sentido à história como um todo.
As experiências de cada geração devem ser interpretadas à luz dos relatos originais de modo
que a comunidade cristã faça uma leitura crítica da estrutura de plausibilidade que a cerca e,
mais que isso, testemunhe na história em continuidade a revelação recebida.

9. Cristo, a chave para a história

Muitos historiadores afirmam que o significado da história é dado por cada nação ou cultura,
não há uma direção ou objetivo comum para a humanidade e o cosmo. Na compreensão
hebraica, porém, há uma crença distinta: a espera de uma consumação gloriosa e terrível da
história, não apenas para Israel, mas para o mundo. Este objetivo não pode ser alcançado
pelo desenvolvimento das forças imanentes dentro da história, mas são garantidos pelas
promessas de Deus.

Jesus parece ser o último representante desta voz apocalíptica (profética) e, a consumação
aguardada pelo povo de Israel e a igreja do primeiro século, aparentemente não se
confirmou. Alguns sugerem que, ao ver frustrada sua expectativa de fim do mundo iminente,
a igreja ajustou seu pensamento à nova realidade e passou a se tornar parte da ordem
estabelecida.

Contudo, o próprio registro do Novo Testamento parece apontar em outra direção. Em Cristo,
o reino de Deus estava próximo não no sentido temporal, mas espacial, presente na vida do
homem Jesus. Ao mesmo tempo, a presença do reino é velada para aqueles que persistem
em manter uma visão do poder de Deus de acordo com os padrões do mundo. Esta presença
oculta gera um conflito e desafia os poderes estabelecidos gerando hostilidade. A realidade
do reino presente e, ao mesmo tempo, futuro, não deve ser compreendida pelo binômio
incompleto e completo, mas oculto e manifesto. Esta lacuna se deve a missão da igreja de
estender a revelação da misericórdia de Deus às nações. Essa espera requer paciência, pois
é marcada tanto pelos sinais do reino quanto pelo sofrimento. É esta condição "encarnada"
da missão que dá espaço para que as nações respondam livremente com fé. Mas a igreja
precisa responder com esperança e paciência, pois a promessa é que Jesus certamente
voltará, ainda que não saibamos o dia, nem a hora.

Agora, este ensino sobre o reino de Deus nos permite falar de um significado para a história?
Certamente, a Bíblia contempla um objetivo, uma direção na qual podemos avançar. A
questão é que esta proposta depende de uma perspectiva de futuro e a sociedade
contemporânea, sobretudo o ocidente desenvolvido, parece não ser capaz de articular uma
visão de futuro que valha a pena.

Mesmo os cristãos, parecem não compreender o significado da história como apresentado


nas páginas da Bíblia e adotado uma postura imediatista e sem esperança. Com o colapso da
crença de progresso, os cristãos nas sociedades abastadas normalmente caem numa
escatologia puramente privatizada, que sujeita qualquer esperança à visão de bem-
aventurança pessoal para a alma depois da morte.

Perdemos a capacidade de estabelecer uma visão de futuro porque a morte nos tira da
história antes de ela alcançar seu objetivo. A realidade da morte aponta que toda vida
humana está tão imperfeita e desfigurada que não pode levar a consumação da história que
Deus prometeu. A boa nova é que Jesus abriu um caminho e nos chama a permanecermos
nele, compartilhando primeiramente de sua paixão, depois de sua vitória sobre a morte.

Assim, o cristão vive na esfera pública e privada desafiando os poderes do presente século
em nome de Jesus, sendo por ele guardado em segurança para o dia da ressurreição. Se ele
mesmo é o caminho, podemos avançar com confiança mesmo quando o futuro está
escondido.

SÍNTESE

Diante do questionamento a respeito de um significado para a história, o cristão deve olhar


para a vida de Jesus, os eventos singulares de sua morte e ressurreição, bem como sua
mensagem escatológica. As páginas do Novo Testamento sinalizam que a chegada do reino
de Deus tem implicações cósmicas e, ainda não foi manifesto de modo glorioso, pois antes
disso a igreja deve cumprir sua missão de levar o evangelho a todas as nações.

Um desafio para a crença neste desfecho para a história é que a sociedade atual carece de
uma visão de futuro. A morte aponta que a humanidade não pode levar o mundo a
consumação da história prometida por Deus. Por esta razão, apenas a fé em Cristo pode
sustentar a esperança de que o caminho para a ressurreição foi aberto e que o futuro
sinalizado nas Escrituras está garantido.

10. A lógica da missão

A missão da igreja está enraizada no evangelho. Mais do que a obediência a um mandato,


ela aparece no Novo Testamento como uma explosão de alegria, uma notícia que não pode
ser omitida.

Quase todas as proclamações do evangelho descritas em Atos surgem em resposta às


perguntas feitas por pessoas de fora da igreja. Em todos os casos há sempre uma nova
realidade que exige explicação e, assim, dá origem à pergunta para a qual a pregação do
evangelho é a resposta. Arrepender-se significa fazer um giro mental que permite crer naquilo
que está oculto, a realidade presente do reino de Deus no Jesus crucificado. Somos
batizados em sua morte e participantes de sua ressurreição.

De fato, a missão é de Deus. Os discípulos não agem por conta própria, mas é o Espírito que
lhes dá poder e é o Espírito que testemunha. Na fidelidade a Jesus eles se tornam o lugar
onde o Espírito fala e age. A igreja, portanto, não é tanto o agente da missão, mas o locus.

Em discussões sobre a missão contemporânea da igreja, é dito com frequência que a igreja
deve se dirigir às perguntas reais que as pessoas estão fazendo. Este é um entendimento
incorreto da missão de Jesus e da igreja. As perguntas do mundo não são as perguntas que
levam a vida. O que realmente precisamos dizer é que, onde a igreja é fiel ao seu Senhor, ali
os poderes do reino estão presentes e as pessoas começam a fazer as perguntas para as
quais o evangelho é a resposta. A missão da igreja é dar continuidade à missão de Jesus.

A igreja compartilha da fraqueza e, ao fazer isso, experimenta também os poderes da nova


era. Isso confronta questões fundamentais da existência humana ao jogar luz sobre as trevas.
Então é preciso fazer uma escolha, pois a pergunta sobre o significado último da história foi
levantada. O evangelho pode ser aceito pela fé, ou rejeitado absolutamente. Há também
tentativas de adaptá-lo, diluindo seu compromisso com a cruz para torná-lo palatável, mas
não passam de falsos projetos messiânicos.

A lógica da missão é esta: o verdadeiro significado da história foi revelado. Pelo fato de que é
verdade, deve ser compartilhado universalmente, dando às pessoas a oportunidade de
conhecerem a verdade sobre si mesmas e sobre a história a qual fazem parte. Uma decisão
terá que ser tomada em favor ou contra Cristo. Outros projetos pessoais ou coletivos podem
tentar concorrer com ele reivindicando ser a chave para interpretação da história. O
compromisso pessoal com Jesus Cristo e a proclamação do evangelho com intenção
universal são a prova da nossa fé.

Aquele que foi chamado e amado pelo Senhor, aquele que deseja amar e servir ao Senhor
desejará estar onde ele está. No cerne da missão está simplesmente o desejo de estar com
ele e dar-lhe o serviço da nossa vida. No cerne da missão estão ação de graças e louvor.
Distorcemos as coisas quando fazemos da missão uma iniciativa nossa na qual podemos nos
justificar pelas obras. Missão é uma doxologia prática.

SÍNTESE

A missão da igreja está fundamentada no fato de que o verdadeiro significado da história foi
revelado. Sendo a verdade sobre a vida humana e a história como um todo, deve ser
compartilhada para que as pessoas tomem uma decisão em relação a Cristo.

A proclamação do evangelho é, em muitos casos, uma resposta às perguntas feitas pelo


mundo quando este se depara com a realidade do reino de Deus na vida e testemunho da
igreja. Ela se torna o lugar onde o Espírito fala e age na medida em que os cristãos
permanecem em fidelidade a Jesus. A missão, portanto, não é uma iniciativa nossa, uma
maneira de nos justificarmos ao cumprirmos um mandamento, mas sim uma resposta de
adoração, a manifestação do desejo de estar com o Senhor e dedicar-lhe a vida.
11. Missão: palavra, obra e novo ser

A missão mundial cristã é a chave para a história num duplo sentido: proclamador e
impulsionador. Ao proclamar Cristo, a missão oferece a todas as pessoas a possibilidade de
entender o que Deus está fazendo na história. Em seu sentido propulsor, a igreja estimula
acontecimentos para que sigam na direção do seu verdadeiro fim. Isso significa que o
evangelho anuncia a esperança de que as coisas podem ser significativamente diferente
daquilo que são hoje, criando uma revolução de expectativa. A missão da igreja não é
simplesmente uma interpretação da história, mas uma força que faz história; não consiste
apenas em declarar, mas em cumprir.

Nos evangelhos há um nexo indissolúvel entre atos e palavras. As obras em si, sem serem
interpretadas, não fazem a exigência de arrependimento e fé, não questionam radicalmente o
mundo atual e, por isso, o anúncio do evangelho é fundamental. Por outro lado, a pregação
não tem sentido se nada diferente estiver acontecendo, se não há manifestações da vida de
Deus que levantem os questionamentos para os quais apenas o evangelho tem a resposta.

Em sua missão, a igreja manifesta a presença do reino de Deus, a presença de Jesus, em


seus atos e palavras. Ela não está autorizada a fazer isso de maneira diferente daquela pela
qual Jesus viveu, ou seja, desafiando os poderes do mal e suportando na própria vida os
custos do desafio.

Mas antes de falarmos de nossas palavras e ações, é preciso resgatar que a centralidade de
que a missão é uma ação do Deus trino. Esta ênfase corrige dois conceitos equivocados que
estão dividindo a comunidade cristã. De um lado a preocupação exclusiva na salvação da
alma individual e no crescimento da igreja por meio da proclamação em palavras. De outro,
os que defendem a supremacia das ações sociais, como a busca pela justiça e a paz, a
despeito da pregação evangelística.

Este conflito tem enfraquecido o testemunho da igreja porque, em ambos os casos, a igreja
se esquece que ela é o locus da ação poderosa de Deus. A ênfase não está tanto naquilo
que a igreja faz, mas no que Deus faz na igreja e que pode ser testemunhado pelo mundo.

SÍNTESE

Em sua missão, a igreja manifesta a presença de Jesus em atos e palavras, fazendo isso de
maneira semelhante a Cristo que desafiou os poderes do mal e suportou os custos do
desafio. Ela proclama a verdade sobre o que Deus está fazendo na história e estimula
acontecimentos para que as pessoas sigam em direção ao propósito final.

A igreja tanto declara quanto cumpri o evangelho. Não há dicotomia entre o falar e o agir, pois
o que ocupa a centralidade da missão não é o que a igreja faz, mas a ação de Deus na igreja
que pode ser testemunhada pelo mundo.

12. Contextualização: verdadeira e falsa

Uma vez que o evangelho não vem como uma mensagem desencarnada, mas como a
mensagem de uma comunidade que afirma viver de acordo com ele e que convida outras
pessoas a aderirem a ele, a vida da comunidade deve estar ordenada de tal maneira que
“faça sentido” para aqueles que são convidados. Neste processo, reside a preocupação em
não fazer do evangelho um produto formado pela mente do ouvinte.

A contextualização busca entender como o evangelho pode ganhar significado em diferentes


contextos culturais e, ainda assim, ser autêntico. Esta é uma questão que não se restringe a
missões transculturais embora, historicamente, a relação entre diferentes continentes seja
importante para a compreensão do tema uma vez que foi marcada por equívocos, culpa e
ressentimento. A pergunta que resulta é, basicamente, como podemos preservar a missão
evangelística para que não se degenere em mera transferência/imposição de cultura? Até
que ponto o evangelho deveria “acomodar-se” a uma cultura e até que ponto ele deveria
resistir à “domesticação”?

Primeiramente, é importante reconhecer que toda interpretação do evangelho está


incorporada a alguma forma cultural, será sempre o testemunho de uma comunidade
tentando vivê-lo fielmente dentro de determinado estilo de vida. O missionário carrega o
evangelho interpretado por sua cultura.

Porém, a própria Bíblia foi escrita dentro de uma cultura e língua específicas, sendo
permeada por ela, ainda que não exija que tal cultura seja assimilada para que o cristão seja
identificado com Cristo. Por esta razão, o evangelho não deve ser identificado com um
modelo particular de comportamento ligado a uma das muitas culturas da humanidade.

Então, o que é exigido, em qualquer cultura que seja, pela obediência cristã? Alguns
respondem recorrendo a algum conceito amplamente geral como liberdade, justiça ou amor,
substituindo o evangelho por uma combinação entre lei moral e programa político e acaba por
ignorar a igreja.

Se a contextualização não é uma coisa nem outra, o que é preciso para que o evangelho seja
verdadeiramente comunicado? Roland Allen afirma que é preciso haver uma congregação
equipada com a Bíblia, os sacramentos e o ministério apostólico. Com isso, a jovem igreja
está livre para aprender a incorporar o evangelho à sua própria cultura enquanto cresce.
Newbigin acrescenta que, uma vez que a resposta ao evangelho deve ser feita em liberdade
e que todos os seres humanos são falíveis, não haverá unanimidade nos modos pelos quais
a igreja, em todo tempo e lugar, busca proclamar e incorporar a vida de Jesus para que o
poder dele seja manifesto, sustentando e julgando toda cultura humana.

Onde há uma comunidade cristã cuja vida está centrada na história bíblica por meio de sua
adoração, ensino e sacramentos, certamente haverá diferenças de opinião sobre questões
específicas, erros, falsos princípios. Porém, a fé nas Escrituras aponta que as portas do
inferno não prevalecerão sobre ela. Já as comunidades que colocam outra coisa no centro,
um código moral, um conjunto de princípios ou outros critérios que vêm de fora da história,
estarão sempre à mercê das constantes mudanças à sua volta.

O pensamento e a ação cristãos autênticos não começam quando prestamos atenção nas
aspirações das pessoas, nem quando respondemos às perguntas que elas fazem nos termos
delas, nem quando oferecemos soluções para os problemas como o mundo os vê. Deve
começar e continuar quando prestamos atenção ao que Deus fez na história, quando
habitamos nesta história para que ela seja nossa história.
A igreja erra em sua relação com o mundo sempre que busca segurança no passado em vez
de se arriscar em um envolvimento profundo com ele. Erra também quando permite que o
mundo dite as questões e os termos do envolvimento. O resultado é que o mundo não é
desafiado em profundidade, mas absorve e domestica o evangelho com vistas a sacralizar
seus próprios propósitos. O ponto de partida é a revelação de Deus e a verdadeira
contextualização acontece quando há uma comunidade que vive fielmente de acordo com o
evangelho e naquela mesma identificação onerosa com as pessoas em situações reais como
vemos no ministério terreno de Jesus.

SÍNTESE

O evangelho nunca é uma mensagem desencarnada, mas sim a mensagem de uma


comunidade que vive de acordo com ele e convida outros a aderirem a ele, dentro de
determinado momento histórico e de uma determinada cultura. A contextualização busca
entender como o evangelho pode ganhar significado em diferentes contextos culturais e,
ainda assim, ser autêntico.

Deve-se reconhecer, de um lado, que o evangelho é sempre interpretado por uma cultura e,
de outro, que ele não tem compromisso com um modelo particular de comportamento ligado
exclusivamente a uma das culturas humanas. Sendo assim, sua vida deve estar centrada na
história bíblica por meio da adoração, dos sacramentos e do ensino, ainda que tenham
diferenças sobre pontos específicos. O ponto de partida é a revelação de Deus e, as
comunidades que viverem fielmente o evangelho, seguindo o modelo de Jesus Cristo,
buscarão um envolvimento profundo com o mundo sem se acomodar à cultura.

13. Nenhum outro nome

Parte expressiva da sociedade contemporânea argumenta que a necessidade mais


importante do mundo é a unidade e uma atitude agressiva por parte de uma das religiões do
mundo que afirma ter a verdade para todos só pode ser considerada como uma traição contra
a raça humana. Segundo eles, é preciso que a igreja reconheça que a graça de Deus está
agindo sem distinção entre todos os povos e em todas as grandes tradições religiosas e,
assim, o cristianismo deve abandonar a pretensão de ser a única detentora da verdade.

A busca por unidade global é um traço distintivo do pluralismo contemporâneo e alguns


teóricos têm sugerido que ela deve ser sustentada por um interesse em comum, como a
busca humana por salvação ou a defesa de “valores humanos” como justiça, compaixão e
verdade. Há um desejo de unidade entre todos os seres humanos, pois a unidade oferece a
promessa de paz. Desejamos a unidade em nossos próprios termos e são nossos programas
rivais que nos separam.

O evangelho fornece respostas para esta realidade. Não quando adota a mentalidade e
metodologia do seu entorno, tornando-se mais uma forma imperialista e opressora, mas
quando reconhece que em seu centro está a cruz onde todos os poderes mundanos são
humilhados e somos convidados a encontrar o cerne da unidade humana naquele que se fez
nada para que todos pudessem ser um.
Contudo, esta percepção é rejeitada pelo seu “exclusivismo”. Os programas para a unidade
da humanidade apresentam formas de minar o argumento da singularidade cristã.
Ironicamente, todos eles trazem implícito certa visão de princípio norteador que, em última
análise, baseia-se em um compromisso de fé que não pode buscar a validação de alguma
base mais definitiva.

Este ambiente de total relativismo não sustenta base alguma para falar em salvação.
Desejamos a unidade em nossos próprios termos e são nossos programas rivais que nos
separam. Precisamos estar comprometidos pessoalmente não apenas com aquilo que
desejamos (valores), mas também com aquilo que realmente é o caso.

O cristianismo reivindica ser o portador de uma verdade absoluta. Ainda que críticos
argumentem sobre a impossibilidade ou a tirania de um absoluto, a comunidade cristã alega
que, em Jesus, a verdade absoluta se fez presente em meio às relatividades das culturas
humanas e que não assumiu a forma de poder imperial e opressor. A igreja procura
expressar sua lealdade a essa verdade em formas de declaração teológica e vida prática,
temporárias e defeituosas, mas abertas à reforma à medida que são sempre mantidas sobre
o controle do testemunho original nas Escrituras.

A posição pluralista é reflexo de uma sociedade que exalta o indivíduo autônomo como
realidade suprema. Ele pode expressar sua fé pessoal, mas insistir que ela é verdade na
esfera pública é inaceitável. Além disso, nega a singularidade de Jesus e propõe uma visão
soteriocêntrica, que entende a salvação como “a transformação da experiência humana que
vai do Egocentrismo para a centralidade em Deus - Ou Realidade”. Contudo, uma vez que a
realidade é incognoscível, cada um tem de formar sua própria imagem e portanto a
necessidade de salvação só pode ser satisfeita por uma forma do Transcendente
desconhecido que o eu possa sustentar - nada mais egocêntrico.

A verdadeira afirmação de que nenhum de nós pode compreender toda a verdade, torna-se
uma desculpa para desqualificar qualquer afirmação que se faça de ter uma pista válida para,
pelo menos, o início do entendimento. Quando este argumento é usado para invalidar todas
as afirmações de que é possível discernir a verdade, torna-se arrogante, um tipo de
conhecimento que é superior ao que está à disposição de outros seres humanos.

SÍNTESE

A sociedade pluralista advoga em favor da unidade global, rejeitando qualquer religião que
reivindique ser portadora da verdade absoluta. A proposta é que a unidade seja sustentada a
partir de interesses em comum como a busca humana por salvação ou a defesa dos direitos
humanos. Esta proposta, contudo, adota certa visão de princípio norteador, que está
igualmente fundamentada em um compromisso de fé. Além disso, a busca por unidade é feita
em nossos próprios termos e os programas rivais para alcançá-la acabam gerando novas
divisões.

O evangelho fornece respostas para esta realidade. Não quando adota a mentalidade e
metodologia do seu entorno, tornando-se mais uma forma imperialista e opressora, mas
quando reconhece que em seu centro está a cruz onde todos os poderes mundanos são
humilhados e somos convidados a encontrar o cerne da unidade humana naquele que se fez
nada para que todos pudessem ser um.
14. O evangelho e as religiões

Qual a atitude correta dos cristãos em relação aos fiéis de outras religiões, uma vez que
Cristo é a revelação única e decisiva da parte de Deus? A resposta passa tradicionalmente
pelas abordagens exclusivista (todos que não aceitaram Jesus como Senhor e Salvador
estão eternamente perdidos), inclusivista (a obra de Cristo vai além dos limites da igreja
visível e outras religiões são meios de salvação) e pluralista (Deus se manifesta igualmente
em todas as religiões sem que Cristo tenha um papel central para a redenção).
Newbigin sugere que a revelação bíblica apresenta dois polos igualmente importantes. De um
lado, a maravilhosa graça de Deus, de outro, o terrível pecado do mundo. Somos tentados a
aliviar essa tensão, ora apelando ao universalismo, ora abraçando um exclusivismo que
impede o diálogo com outras religiões.

A pergunta tão característica do mundo evangélico, “Quem pode ser salvo?”, não é adequada
se quisermos entender qual deve ser a relação do cristão com outras crenças. Primeiro,
porque apenas Deus tem a resposta para esta pergunta, nós não estamos em posição de
conhecer de antemão o juízo final de Deus. Em segundo lugar, porque abstrai a alma da
realidade plena da pessoa, descolando da história. Em terceiro, porque está baseada em
uma necessidade da pessoa em garantir a felicidade suprema e não em um compromisso
com Deus e sua glória.

Uma vez que o objetivo das missões é a glória de Deus, o cristão deve adotar algumas
práticas em seu relacionamento com pessoas de outras religiões: a) reconhecer os sinais da
graça de Deus manifestos na vida daqueles que não conhecem a Jesus como Senhor; b)
cooperar com pessoas de todas as religiões naqueles projetos que estiverem de acordo com
o entendimento do cristão sobre o propósito de Deus na história; c) usar o comprometimento
em comum com os problemas do mundo como contexto para o diálogo que apontará as
diferenças existente sobre o significado da história humana, e; d) a contribuição do cristão
para o diálogo será simplesmente contar a história bíblica confiando na obra do Espírito.

Newbigin adota uma posição que não fecha com as abordagens tradicionais. Ele se diz
exclusivista em relação à revelação de Deus em Jesus, mas não nega a possibilidade de
salvação do não cristão. É inclusivista pois não limita a graça salvífica a igreja, mas rejeita a
ideia de que outras religiões são meios para a salvação. É pluralista no sentido de reconhecer
a graça de Deus na vida de todo ser humano, mas o nega ao defender o caráter decisivo do
que Deus fez em Jesus Cristo.

SÍNTESE

A singularidade e centralidade de Cristo na história não deve ser uma barreira para a relação
do cristão com fiéis de outras religiões. Uma vez que o objetivo das missões é a glória de
Deus e não a investigação de quem será salvo ou não, o cristão deve adotar algumas
práticas que valorizam o diálogo e reconhecem a abrangência da obra de Deus.

A sugestão do autor é que os cristãos reconheçam os sinais da graça de Deus na vida


daqueles que não conhecem a Jesus como Salvador; cooperem com todas as pessoas
naqueles projetos que estiverem de acordo com o propósito de Deus na história; neste
contexto, aponte as diferenças existentes sobre o significado da história humana (contar a
história bíblica).

15. O evangelho e as culturas

Após examinar o pluralismo religioso, é preciso analisar como o evangelho se relaciona com
a diversidade de culturas. Há enormes variações culturais entre os modos pelos quais os
cristãos, em diferentes partes do mundo, expressam sua fé. Isso não significa que Deus
aceita todos os elementos da cultura humana, pois, enquanto modo de organização coletiva
da sociedade, está também corrompida pelo pecado.

Todos julgamos alguns elementos da cultura como sendo bons ou ruins. A questão é se este
julgamento vem do próprio evangelho ou das pressuposições culturais de quem faz o
julgamento considerando que, em última análise, não há evangelho que não seja
culturalmente moldado. Por vezes, a discussão assume um tom dualista, como se fosse
possível uma mensagem desincorporada, dissociada da história.

Se o evangelho é sempre e em todos os lugares culturalmente incorporado, como é possível


ao evangelho ter uma relação crítica com a cultura? É bem verdade que o modo como
qualquer cristão percebe a revelação de Deus em Cristo e em toda a história bíblica será
moldado pela cultura por meio da qual a pessoa foi formada. Mas Jesus não é um nome ao
qual podemos associar qualquer personagem que gostemos de imaginar, não é uma figura
inacessível, mas revelada nas Escrituras. Assim, a única maneira pela qual o evangelho pode
desafiar nossas interpretações dele que estão condicionadas pela cultura é pelo testemunho
daqueles que leem a Bíblia com a mente moldada por outras culturas. Temos de ouvir os
outros. Esta correção mútua às vezes é indesejável, mas é necessária e proveitosa.

É apenas quando somos participantes fiéis de uma família multicultural e supranacional de


igrejas que podemos encontrar os recursos para, ao mesmo tempo, sustentarmos nossas
respectivas culturas e cuidarmos delas com fidelidade e também sermos críticos fiéis dela. O
evangelho aprova uma ampla diversidade entre as culturas humanas, mas não aprova um
relativismo total.

SÍNTESE

Há enormes variações culturais entre os modos pelos quais os cristãos, em diferentes partes
do mundo, expressam sua fé. Isso não significa que Deus aceita todos os elementos da
cultura humana, pois, enquanto modo de organização coletiva da sociedade, está também
corrompida pelo pecado.

É apenas quando somos participantes fiéis de uma família multicultural e supranacional de


igrejas que podemos encontrar os recursos para, ao mesmo tempo, sustentarmos nossas
respectivas culturas e cuidarmos delas com fidelidade e também sermos críticos fiéis dela. O
evangelho aprova uma ampla diversidade entre as culturas humanas, mas não aprova um
relativismo total.

16. Principados, potestades e pessoas


Na cultura ocidental, há uma tendência a considerar o comportamento individual como algo
que pode ser entendido, explicado e talvez alterado à parte do comportamento da sociedade
à qual a pessoa pertence. Como resultado, muitos defendem uma visão do evangelho que
dirige todos os seus esforços para a transformação da consciência pessoal e não às
sociedades e instituições. Segundo esta perspectiva, a sociedade só poderá ser diferente
quando as pessoas o forem e, portanto, a igreja deve procurar converter as consciências
individuais para que a mudança na sociedade ocorra como consequência.

Mas sem dúvida, a relação entre indivíduos e sociedade não é unilateral, mas recíproca. A
sociedade molda a pessoa do mesmo modo que a pessoa molda a sociedade. A pergunta
"como devo me comportar?" deve ser precedida pela pergunta "de que tipo de sociedade
quero participar?". A ideia de que o evangelho dirige-se à pessoa e, apenas de modo indireto,
à sociedade, é uma ilusão. A Bíblia está repleta de instruções voltadas para o povo.

O Novo Testamento apresenta um elemento extremamente importante, neste sentido:


principados e potestades. Esses poderes não existem à parte de instrumentos humanos aos
quais estão incorporados, mas também não são idênticos a essas pessoas particulares.
Refere-se a algo por trás dessas pessoas, aos cargos, aos poderes, à autoridade que é
representada de tempos em tempos por essa ou aquela pessoa. Quando os cristãos têm de
lutar suas batalhas, é contra estes poderes que milita, não contra os seres humanos.

Esses poderes foram criados por meio de Cristo e para Cristo então essas coisas têm um
bom propósito. Contudo, houve uma rebelião desses poderes contra o seu soberano Senhor,
que se levantaram contra Cristo em uma fúria assassina. Em sua morte, elas foram expostas
e na ressureição foram despojadas. Ainda possuem uma função a cumprir na ordenação do
universo, mas tornam-se uma ameaça quando absolutizadas.

Toda vida humana é vivida dentro de limites que sejam estabelecidos por certas
características estruturais como leis, costumes e tradições. Ninguém poderia viver de forma
racional se não houvesse normas dadas e de papéis aceitos. Eles servem ao propósito de
Deus, mas podem se tornar demoníacos.
Qual então o dever cristão? Precisamos olhar para as estruturas sobre o paradigma da cruz e
ressurreição, juízo e graça, ira e paciência. Cristo é o único absoluto e todas as demais
coisas são relativizadas. Como implicação temos: a) o cristão não busca a anarquia, não faz
um ataque às estruturas como tal. Também não deve ser o tipo de conservador que
considera as estruturas como parte da ordem inabalável da criação. Elas devem ser estar
sujeitas ao juízo, mas desfrutarem de paciência. b) o cristão deve se lembrar de que não luta
contra as pessoas que exercem seus papéis dentro das instituições. Apenas o poder do
próprio evangelho pode abalar o que estes poderes reivindicam.

Em seu ministério, Jesus enfrentou uma grande batalha espiritual contra os poderes deste
mundo, não simplesmente fragilidades, erros, doenças ou pecados humanos.

SÍNTESE

Embora a perspectiva cristã muitas vezes limite o caráter transformador do evangelho à


esfera do indivíduo, as Escrituras são claras em apontar que há uma dimensão importante na
qual a missão de Cristo lida com as estruturas sociais (leis, costumes, tradições), aquilo que
conhecemos por poderes e potestades.
Estes poderes foram criados para Cristo e atendem a um bom propósito. Contudo, quando
absolutizados, querem tomar o lugar do salvador e se rebelar contra ele com fúria assassina.
Na cruz, estes principados foram expostos e subjulgados, ainda que pela paciência de Deus
permaneçam no mundo oferecendo níveis de racionalidade e ordem para a sociedade.

A relação dos cristãos com estes poderes deve ser de juízo e graça, ira e paciência. Deve
reconhecer que não há espaço para a anarquia que visa acabar com as estruturas, nem com
o conservadorismo que as sacraliza. Sua luta nunca será contra as pessoas que ocupam
posições elevadas, mas que apenas o evangelho pode abalar o trono que estes poderes
reinvindicam.

17. O mito da sociedade secular

O sociedade secular sustenta a crença de que a modernidade esteja num curso constante e
irreversível em direção a uma secularização cada vez maior e que isso deva ser acolhido
uma vez que permite deixar as guerras da religião para trás e criar uma sociedade na qual as
alegações conflitantes da verdade das religiões não dilacerem a sociedade. Esta crença pode
ser encarada como um “mito”, tanto no sentido de que ela é aceita de maneira não crítica
para justificar uma instituição social, como no sentido de ser uma crença equivocada.

Esta crença parece não se confirmar, pois ao olharmos para sociedades bastante avançadas
na industrialização, urbanização e racionalização, ainda assim, os movimentos religiosos não
perderam o seu vigor e há uma constante oferta de organizações que se concentram no
sobrenatural. Esta realidade aponta que o espírito humano apresenta necessidades que não
são supridas pela racionalização, pela compreensão das relações de causa e efeito, mas que
persiste a carência de respostas ligadas ao propósito da existência.

Ela é também um mito no sentido técnico, ou seja, uma teoria aceita de modo não crítico para
justificar uma instituição social. Cristãos foram atraídos por esta crença na secularização pois
parecia oferecer a esperança de uma coexistência pacífica entre as religiões e visões de
mundo. Contudo, a proposta secular é cercada por contradições como defender que a
sociedade não assuma compromisso com nenhuma visão particular de mundo, sem se dar
conta de que esta é, em si mesma, uma perspectiva particular pela qual toda sociedade deva
ser julgada. O que está mascarado no mito da sociedade secular é a existência de uma
sociedade pagã, que cultua deuses que não são reconhecidos como tal.

Mas esta convivência pacífica entre Deus e os baalins não pode ser sustentada. Este mito
poderoso que cega as pessoas para a realidade age como os poderes e potestades já
comentados e precisam ser desmascarados. O discipulado cristão não pode abraçar a
dicotomia secular entre vida privada e vida pública. Não pode significar que a pessoa aceita o
senhorio de Cristo na regência da vida pessoal e doméstica e da igreja, enquanto outra
soberania é reconhecida para a vida pública da sociedade. A igreja não é outra coisa senão
esse movimento lançado na vida pública do mundo pelo seu soberano Senhor para continuar
o que ele veio fazer até que seja consumado em sua volta na glória.

SÍNTESE

A sociedade pluralista crê que a modernidade segue invariavelmente para secularização e


que este movimento deve ser acolhido, pois este seria o caminho para a convivência pacífica
entre as religiões. Contudo, ao defender que a sociedade não deve se comprometer com
qualquer visão particular de mundo, os secularistas não reconhece ser esta mesma uma
proposta única pela qual julgam que toda a sociedade deva se orientar. Ou seja, por trás do
mito da sociedade secular existe a proposta de coexistência entre o Deus cristão e os
poderes e potestades do mundo, a ideia de que alguém pode servir ao Senhor em sua vida
privada e as leis de mercado, por exemplo, na esfera pública.

18. A congregação como hermenêutica do evangelho

O evangelho não pode ser acomodado como um elemento integrante de uma sociedade
pluralista. A igreja não pode aceitar como seu papel simplesmente ganhar pessoas para um
tipo de discipulado cristão que diz respeito apenas aos aspectos privados da vida. A igreja
tem de reinvindicar a posição elevada de verdade pública.

O que poderia significar para a igreja “reinvindicar a posição elevada”, fornecer a verdade
pública pela qual a sociedade pode receber coerência e orientação?
- não significa voltar ao passado;
- não significa coerção para impor crença;
- nem triunfalista, nem servil/comercial.

A conversão das nações é uma obra sobrenatural de Deus, mas a igreja tem o papel de
tornar o evangelho crível, testemunhando uma vida de submissão ao homem que tem toda
autoridade e que, ainda assim, morreu em uma cruz. A igreja é uma congregação de pessoas
que creem nisso e vivem por isso. O caráter da igreja é o caráter do seu Senhor e, em sua
fidelidade a Jesus, ela terá como características:
- comunidade de louvor;
- comunidade da verdade;
- comunidade que não vive para si mesma, mas está profundamente envolvida com as
preocupações da vizinhança;
- comunidade que prepara pessoas para o exercício do sacerdócio no mundo e as
sustenta nesse execício;
- comunidade de responsabilidade mútua;
- comunidade de esperança.

Tudo sugere que é absurdo acreditar que a verdadeira autoridade sobre todas as coisas está
representada num homem crucificado. Nenhum argumento brilhante pode fazê-la parecer
razoável para os habitantes da estrutura de plausibilidade moderna. Por isso, a única
hermenêutica possível do evangelho é uma congregação que crê nele.

O evangelho deve desafiar a vida pública da nossa sociedade e isso se dará por movimentos
que comecem com a congregação local na qual a realidade da nova criação esteja presente,
conhecida e vivenciada e a partir da qual homens e mulheres entrarão em todos os setores
da vida pública para reivindicá-la para Cristo, para desmascarar as ilusões que
permaneceram ocultas e para expor todas as áreas da vida pública à iluminação do
evangelho. Mas isso só acontecerá quando as congregações locais renunciarem a uma
preocupação introvertida pela própria vida delas e reconhecer que existem para o bem
daqueles que não são membros, como sinal, instrumento e antecipação da graça redentora
de Deus para a vida da sociedade como um todo.
SÍNTESE

O evangelho não pode ser acomodado como uma peça que compõe a sociedade pluralista e
que lida apenas com aspectos da vida privada. O evangelho deve reivindicar a posição de
verdade pública e o fará por meio do testemunho da igreja em continuidade ao paradigma
ministerial de Cristo.

Na comunidade local a realidade da nova criação deve estar presente, se tornar conhecida e
vivenciada. Cristãos em todos os setores vão expor as ilusões ocultas na vida pública e
reivindicá-las para Cristo. Para isso, as igrejas devem abandonar a preocupação excessiva
consigo mesma e reconhecerem que são instrumento da graça redentora de Deus para o
mundo.

19. Liderança ministerial para uma congregação missionária

O maior impacto da igreja sobre a vida da sociedade como um todo se dá por meio do
trabalho diário dos membros em suas profissões seculares e não pelos pronunciamentos
oficiais de grupos eclesiásticos. Mas é impossível desenvolver, alimentar e sustentar a fé e a
prática cristã à parte da vida de uma congregação cristã. Como, então, essas congregações
podem ser ajudadas para que se tornem o que são chamadas a ser?

O povo sacerdotal precisa de um sacerdócio ministerial para sustentá-lo e alimentá-lo.


Homens e mulheres não são ordenados para esse sacerdócio ministerial para tirar o
sacerdócio do povo, mas para capacitar o sacerdócio do povo.

A tarefa primária do ministro não é cuidar das necessidades espirituais dos membros da
igreja. Tão pouco assumir toda a responsabilidade de representar o reino de Deus para toda
a comunidade. O ministro cristão deve liderar toda a congregação como embaixada de Deus
a toda sociedade.

A Bíblia apresenta duas imagens de cidade, que levam a enfoques ministeriais distintos.
Primeiro a cidade ímpia, sugere duas vertentes de ensino: a) a ideia de que devemos tirar as
pessoas de lá e levá-las para um espaço de segurança (enredo de Ló), e; b) a ideia de que
podemos permanecer a margem, mais preocupados conosco que com a cidade (enredo de
Jonas). Estes dois modelos não nos dão o paradigma da relação da igreja com a cidade.
Vamos então para um segundo padrão, a relação de Jesus com Jerusalém. Cristo desafia os
poderes e reinvindica o governo de Deus sobre a vida pública, pela cruz retoma o trono
usurpado pelas potestades.

Novamente somos tentados a duas ênfases que não refletem o chamado de Cristo ao
arrependimento. Uma delas é o foco quase exclusivo na conversão pessoal, a outra é a ideia
de que a missão se dá na influência dos valores cristãos pela comunidade. Esses equívocos
acontecem por não termos clareza sobre o significado de conversão. A Bíblia nos fala de uma
visão totalmente nova da vida, uma maneira radicalmente nova de entendimento: envolve ao
mesmo tempo, uma exigência à total entrega pessoal (chamado) e a dádiva de total
segurança (promessa).

O ministro deve se relacionar com a comunidade como alguém que capacita e encoraja,
liderando-os, e não apenas dizendo o que devem fazer. A liderança ministerial para uma
congregação missionária exigirá que o ministro esteja diretamente envolvido na guerra do
reino contra os poderes que usurparam a realeza. Enquanto ele fizer isso, o caminho estará
aberto para que ele seja solidário com os membros da congregação que têm de enfrentar um
conflito semelhante.

A liderança da congregação será, em primeiro lugar, na área de seu próprio discipulado,


naquela vida de oração e consagração diária que permanece oculta para o mundo, mas que
é o lugar onde as batalhas essenciais são vencidas ou perdidas.

SÍNTESE

O maior impacto da igreja sobre a sociedade não será resultado de declarações oficiais feitas
pelos clérigos, mas pelo testemunho dos membros em suas profissões seculares. Neste
sentido, o ministro cristão não é apenas alguém que diz o que se os fiéis devem fazer, mas
alguém que está diretamente envolvido na guerra do reino contra os poderes do mundo,
capacitando e encorajando a congregação na mesma direção.

20. Confiança no evangelho

O evangelho é a notícia do que aconteceu. O problema de comunicá-lo numa sociedade


pluralista é que ele desaparece no oceano indiferenciado de informações, representa uma
opinião entre milhões de outras. Ser apresentada como verdade seria considerado arrogância
e as igrejas não querem ser acusadas disso.

Como resultado vemos duas disposições de ânimo. Primeiro a timidez, que leva a teologia
para as esferas de debate público com uma postura acadêmica, descritiva, meramente
intelectual. A outra é a ansiedade, um senso de que o cristianismo pode entrar em colapso e
por isso precisamos agir de forma mais enérgica, com muita ênfase às próprias atividades e
pouco controlado pelo sentido de grandeza de Deus. Essa é uma postura que sutilmente
mascara uma falta de confiança na suficiência de Deus.

A atitude correta, porém, não deve ser nem timidez, nem ansiedade, mas confiança.
Qualquer afirmação confiante da verdade será questionada pela sociedade pluralista, mas
podemos perguntar de volta “por que não?”.

O cristão pode acolher certa medida de pluralidade, sendo enriquecida pela entrada na
comunidade de fé de pessoas de outras culturas e religiões, mas deve rejeitar a ideologia do
pluralismo enquanto a crença que defende a subjetividade e relatividade de tudo.

SÍNTESE

Em uma sociedade pluralista, somos tentados a considerar que o evangelho pode se perder
em meio a uma montanha de informações. Ao mesmo tempo, afirma-lo como verdade
absoluta, pode soar como arrogância. Contudo, devemos preservar uma atitude de confiança
na suficiência de Deus e rejeitar a crença de subjetividade e relatividade de tudo.

Você também pode gostar