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METEMPSICOSE
Walter Poliseno
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METEMPSICOSE
Walter Poliseno
0s últimos golpes de picareta ressoaram no silencio do vale.
Havia, em todos nós, uma estranha trepidação, porque
chegara, finalmente, o momento esperado, havia meses:
a porta de mármore do túmulo do Faraó estava aberta.
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parecia prestes a engolir-nos.
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do Livro dos Mortos. Ao. longo das paredes, havia místilas
e sobre elas estavam dispostos os objetos mais variados:
figurinhas de madeira esculpidas, pintadas com cores vi-
vas, porta-perfumes de alabastro, jarras azuis, em forma
de flores de lótus, vasos de Cánapo, recipientes de alabastro
para cosméticos. Num ângulo, havia um cofre baixo, com
entalhes de majólica azul, marfim e ébano. Nele estavam
gargantilhas, amuletos, braceletes e anéis, leques de ouro
e ébano, espelhos, mancais de bronze e cobre.
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vista, descobria aquele sorriso doce e impenetrável.
- E então?... Amun-Eti!
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para o Cairo, eu já sabia que não me esqueceria de Amun-
Eti, não seria capaz de subtrair-me ao desejo de tornar a
vê-la, nem jamais me separaria do colar de lápis-lazúli, sím-
bolo daquela estranha aventura.
A sala foi aberta ao público e uma semana mais tarde fui lá.
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A moça olhou para mim e sorriu-me. Era muito jovem.
Tinha olhos pretos, com longos cílios. A sua pele era vaga-
mente de uma cor azeitonada. 0 sangue egípcio revelava-
se-lhe nos lábios carnudos e nos zigomas, ligeiramente pro-
eminentes, que davam a seu rosto um acentuado caráter
oriental. Trazia um pequeno turbante, de um azul pálido,
não diferente do penteado da mesma Amun-Eti. 0 seu ves-
tido de crepe, cor de canela, desenhava-lhe as formas es-
beltas, bem torneadas, revelando as curvas sensuais do
corpo moço, que encarnava as linhas ideais do velho Ori-
ente. Afastei-me, embaraçado.
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timo desejo, que vivesse somente para mim, emanação e
animação dos meus sentimentos. Soube que seu pai era
inglês, falecido havia muitos anos, mas sua mãe era egíp-
cia: uma senhora copta, de nobre ascendência, cuja família
se gabava de pertencer aos últimos faraós Saites e que,
embora cristã, havia conservado o culto tradicional das an-
tigas divindades locais.
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coração. Eu amava uma mulher muito bela, inteligente, culta,
refinada: gozava do seu sorriso, da sua companhia, do seu
pensamento. E fugira àquele incubo estranho, àquela ob-
sessão que talvez se viesse a converter em loucura.
Pequei-lhe na mão.
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seu rosto que, repentinamente, se tornara pálido. Alguns
dias antes, fizera-lhe eu presente do colar de lápis-lazúli de
Amun-Eti. E, naquela noite, ela trazia-o. As pedras azuis,
betadas de ouro, brilhavam como se fossem mágicos fo-
gos aprisionados.
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na noite dos tempos, que, finalmente, se encontrou e se
receia perder.
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Eu sorri:
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podia subtrair-se inteiramente ao peso de crenças e su-
perstições milenares.
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encontrar-me no meio de uma paisagem irreal, apocalíptica,
debaixo dágua. Do maciço montanhoso, precipitavam-se
torrentes, formando cascatas, arrastando pedras, casca-
lhos, detritos de toda a espécie. 0 céu tornava-se cada vez
mais escuro, embora fosse ainda pleno dia. Cada vez mais
freqüentes, os relâmpagos lívidos fuzilavam, por entre as
nuvens, iluminando o deserto revolto e os rochedos, dom
uma luz sinistra. Eu olhava, com apreensão, para a água
que escorria, em catadupas, da montanha para - o Vale.
Tínhamos que andar depressa, depressa...
Atingimos a grande ponte de Lameth, lançada sobre o Vale
do Der-Ai-Bahri. Por baixo de nós, abria-se um abismo que,
em certos pontos, ultrapassava mais de cem metros. Ago-
ra, a água corria impetuosa, investindo contra os pilares e
fazendo tremer toda a ossatura da ponte. Os carros cami-
nhavam com cautela, enfrentando um vento de: violência
extrema. . . Estávamos quase chegando à saída da ponte,
quando ouvi um fragor sinistro, e me pareceu que toda a
montanha se precipitava em cima de nós. Das alturas, massa
enorme de água, de pedras, de troncos de árvores, descia
sobre a ponte, com um ruído estranho, ensurdecedor. Um
dos lados do carro foi atirado violentamente de encontro
ao parapeito, com um fragor de ferragens e vidros quebra-
dos. Por um instante, pareceu que o automóvel fosse alçar
vôo: ficou suspenso, com as rodas anteriores no vácuo,
capotou e rolou pela escarpa. Eu havia sido atirado fora. A
chuva não deixava ver nada, o vento uivava a meus ouvi-
dos. Nas mãos, eu segurava qualquer coisa, que contem-
plava, atônito: era o colar de Henet que, instintivamente,
tinha agarrado, no instante da desgraça, e se havia despe-
daçado. Os outros carros haviam parado, Os homens da
Missão gritavam, agitavam-se. Alguém começava a subir
pela escarpa. Henet!, gritei, com voz rouca. Aproximei-
me dos destroços. Henet estava ali, imóvel, os olhos fe-
chados, o rosto branco, sob um véu de lama. Apoderou-se
de mim um terror desesperado, enquanto tentava levantá-
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la. Heneti - gritava eu.
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ental; Laura, tipicamente anglo-saxônia, de olhos azuis lu-
minosos, num rosto um pouco exangue às manifestações
mais secretas do seu espírito.
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- Eu não quero ficar decrépita, entre as comodidades do
Sussex.
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o encontrou?
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diante de mim, no esplendor policromo do sarcófago, re-
mota, arcana, maravilhosamente bela. Henet fitava-me,
através dos olhos de pedra da princesa. Senti-me envolto
numa nuvem pesada, que me sufocava. Nela, somente os
olhos eram vivos, aqueles olhos escuros e misteriosos, que
eu tanto tinha amado.
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parou, sem razão aparente, e eu desci, resmungando, para
dar um golpe de vista ao motor. Estava inclinado sobre a
caixa, quando ouvi um grito: Harry. Era Laura. Desceu do
automóvel e correu aos meus braços. Estava mortalmen-
te pálida.
- Não! Pára!
Parei.
- Para trás!
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lapsos bizarros, que eu não sabia explicar: no meio de uma
conversa, escapavam-lhe algumas palavras que Lauta não
podia ter pensado; como se, por um instante fugaz, hou-
vesse deixado de ser a mesma. Assaltou-me uma sensa-
ção de pânico. Que é que acontecia? . Estava quase decidi-
do a perder tudo e voltar para a Inglaterra. Mas, como
justificar tal decisão a mim mesmo? Sentia-me inquieto,
sem saber por quê. Uma noite, acordei tom a impressão
de que Laura houvesse murmurado alguma coisa, no sono.
Acendi o candeeiro de petróleo e inclinei-me sobre ela, to-
cando-lhe, quase, a boca com a minha. Percebi efetivamente
um murmúrio indistinto, em que me pareceu perceber uma
palavra. Uma sensação de gelo apoderou-se de mim e senti
os cabelos eriçarem-se-me na cabeça. Meryt... Meryt,
murmurava Laura! Eu devia ter-me enganado. Não era uma
alucinação, pois Laura, em estado de vigília, não conhecia
uma única palavra de egípcio antigo ou moderno. Invadiu-
me um terror obscuro, que me regelou. Naquele momen-
to, Laura acordou, em sobressalto. Olhou para mim, com
um olhar espantado, e pareceu não me reconhecer. De-
pois, um relâmpago de compreensão acendeu-se nas suas
pupilas, abandonou-se nos meus ombros e desatou a cho-
rar, sacudida de soluços histéricos. Sonhara, mas não con-
seguia recordar-se de nada, a não ser da sensação de ter-
ror que a dominava.
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- Por que é que veio aqui, Laura? - perguntei.
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trei em nossa barraca!
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teria ela feito isso? Qual foi a força que a impelira a precipi-
tar-se no abismo?
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Experimentei, então, uma sensação indefinível, semelhante
àquela que teria sofrido com o desabar fulminante do mun-
do que me circundava. Aqueles dizeres eram egípcio anti-
go, língua inteiramente desconhecida de Laura. Os lábios
da moribunda haviam dito: Seremos felizes, com você
junto de mim.
FIM
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