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RITICA A estética da mercadoria no poema “O acucar’ de Ferreira Gullar ? Anrigos Usinas escuras x locus amoenus HERMENEGILDO JOSE BASTOS* A poesia (literatura) moderna exibe, como num gesto de autopropaganda, sua pretensa autonomia. O gesto é contemporaneo da consolidagao, enquanto elemento determinante da esfera da cultura, da indtistria cultural, o que, por ‘sua vez, se insere na nova forma de divisao do trabalho caracterfstica da mo- demidade. A exibigdo é auto-exibigao. A literatura exibe-se, expde-se, como ‘num espetaculo sedutor. A auto-reflexao literdria (como tipo especial de propaganda) visa a de- Marcar e proteger espacos culturais, distinguir a literatura de outras formas de trabalho. Com isso, a obra se encarece, informa o custo de sua produgio, exi- -gindo do leitor igual dispéndio. ___ A autopropaganda e a exibic&o nao sao tao novas na literatura brasileira. Os itores lembrarao do comentario de Lufs da Silva logo no inicio de Angiistia: “Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrines, tenho a impres- ao de que se acham ali pessoas exibindo titulos e pregos nos rostos, venden- uma espécie de prostituigao. [...] E os autores, resignados, mostram as letras € os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama”. * Professor de teoria literdria da UNB. ' Graciliano Ramos. Angtistia. S80 Paulo, Record, 28 edicao, 1984, p. 7. CRITICA MARXISTA * 85 Mas Angiistia € uma obra de 1936, momento em que a indiistria cultural ainda nao havia se imposto como fator determinante da esfera da cultura. Au- tores demarcam os anos 50 como os anos da reviravolta’. Apesar disso, sera possfvel rastrear os passos da evolucao desse problema, de modo a analisar as diversas maneiras como 0s autores reagiram A questo. Isto se evidencia nas reflexdes sobre a representacdo e a mimesis. O pequeno comentario de Luis da Silva poderd ser revelador, porque a literatura enquanto questao (en- tenda-se; a representagao literaria) est4 colocada af como algo que invade a conduta imoral. Mimetismo e imoralidade reaparecerao juntos em A hora da estrela de Clarice Lispector, que é j4 de 1977. Apesar da distancia temporal entre Angtistia e A hora da estrela, chama a ateng&o a semelhanga da proble- matizagao: “Na Radio Relégio disseram uma palavra que achei meio esqui- sita: mimetismo. Olimpico olhou-a desconfiado: —Isso € coisa pra moga virgem falar? E para que serve saber demais? O Mangue est cheio de raparigas que fizeram perguntas demais”. Nao se pensa aqui em abolir as diferengas entre as duas obras. Mas 0 his- toriador pode procurar o idéntico no diverso, ou o contrério. De qualquer sor- te, o estudo da continuidade de uma questao poderé evidenciar linhas evolu- tivas, o que é um objetivo da andlise histérica’. Neste ensaio, procuraremos ver como isto ocorre em um poema de Fer- reira Gullar, autor cuja obra sempre se fez na vizinhanga da indistria cultu- ral, quer porque ele prdéprio produziu para a televiséo, quer porque seus tex- tos tematizam e problematizam essa vizinhanga’. O leitor d’ “O agticar” de Ferreira Gullar acompanha o trabalho de cons- trugdo do poema, ao mesmo tempo em que acompanha retrospectivamente 0 processo de produgao de bens de consumo. Poema e agticar sao produzidos segundo as leis do capitalismo avangado e sao também prazerosos. A pureza do acticar (como também do poema) esconde a explorac4o presente em toda 2 Cf, Tania Pellegrini. “Aspectos da produgao cultural brasileira contemporanea’, in Critica marxis- ta, So Paulo, Brasiliense, Vol. 1, n® 2, 1995. 5 Clarice Lispector. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 55. 4 Sobre A hora da estrela, v. Hermenegildo José Bastos. “O custo ¢ o prego do desleixo: a estética da mercadoria”, in A hora da estrela, inédito. 3 Angela Maria V. Dias. “Esteticismo e vanguarda: politicas culturais no Brasil dos anos 60” in Dias, ‘Angela Maria (org.). A missdo e o grande show. Politica cultural no Brasil. Anos 60 e depois. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999. 86 © A ESTETICA DA MERCADORIA NO POEMA “O ACUCAR” produgao. O poema é€ 0 doce (prazer) final da produgio capitalista, como tal pode terminar legitimando-a. Mas 0 poeta se recusa a ser ciimplice da esca- moteagao, procura contaminar o leitor com sua recusa. Ao mesmo tempo, tem consciéncia de que esta comprometido com ela. O seu poema nao pode se colocar fora do universo cujo horizonte € o da indiistria cultural. O traba- Tho do poeta é, ent&o, duplamente problematizado: por um lado, ele se vale -do privilégio da arte (que € um privilégio de classe), mas o faz para defender “um espaco critico: critico, em primeiro lugar, da propria poesia enquanto ati- vidade que se beneficia da divisio moderna do trabalho e, nessa linha, criti- co da sociedade de classes. A voz lirica € a de um personagem-escritor dilacerado pela consciéncia de “que 0 seu poema nio s6 nao pode escapar do universo da forma-mercadoria, como, mais do que isso, brota na verdade de seu solo. O alto refinamento ar- tistico (0 agticar, ou o doce, de que fala 0 poema) é 0 tiltimo estégio de refina- “mento da produgao capitalista. Assim colocado, onde repousa o sentido do fa- poético? Que nao repousa no ideal da aurea mediocritas parece claro: o mundo reconciliado pelos deuses j4 nao esta disponivel, nao ha reconciliagéo 4 vista. O poeta, sozinho, sem deuses, sem valores que previamente justifi- ‘quem sua atividade, é lancado no turbilhdo da sociedade moderna. Ainda se se empenhar neste sentido, encontrar alguma justificativa no “espirito”, ja “arte”, na “poesia”, O empenho resultaré num modo qualquer de sacraliza- », © que é uma forma moderna das antigas religiées. Mas a mercantilizacio nte das relagdes humanas nao lhe dard sossego: quando menos esperar deparar4 com o seu préprio inferno, um inferno moderno, desprovido do 10 do julgamento divino, que é reconfortante mesmo se punitivo. “O agticar” € um poema de Dentro da noite veloz. Ei-lo: branco agticar que adogaré meu café nesta manha de Ipanema nao foi produzido por mim nem surgiu dentro do acucareiro por milagre. Vejo-o puro E affvel ao paladar Como beijo de moga, agua Na pele, flor Que se dissolve na boca. Mas este aguicar Nao foi feito por mim. Este agticar veio Da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, Dono da mercearia. CRITICA MARXISTA # 87 Este agticar veio De uma usina de agticar em Pernambuco Ou no Estado do Rio E tampouco o fez o dono da usina. Este agticar era cana E yeio dos canaviais extensos Que no nascem por acaso No regaco do vale. Em lugares distantes, onde nfo hé hospital Nem escola, Homens que nao sabem ler e morrem de fome Aos 27 anos Plantaram e colheram a cana Que viraria agticar. Em usinas escuras, Homens de vida amarga E dura Produziram este agticar Branco e puro Com que adogo meu café esta manha em Ipanema." O poema gira em torno do eu. Os acontecimentos narrados sao vividos e filtrados por um eu, e € assim que 0 texto se imp3e ao leitor. Nao € uma nar- rativa de acontecimentos, mas a expressao dos efeitos desses acontecimentos na subjetividade do poeta. Contudo, 0 poema vai se mover em direcio ao mundo dando a ver uma condi¢4o problematica do eu. Diz o poeta que o café aser adogado é “meu”, a manha de Ipanema, qualificada como “esta”, é tam- bém a sua. O agticar, por sua vez, é branco, o que deve ser entendido como “purificado”, ou mesmo “puro”. Entretanto, o agticar “nao foi produzido por mim”. Ser produzido contrapGe-se a existir por milagre. Como se vera, este contraponto tem grande importancia também para 0 poema, cuja existéncia hesita entre ser milagre e produg&o. A ambicao do poeta poderia ser a do otium cum dignitate, mas esbarra num elemento contrario que contamina o eu © o condena ao dilaceramento. A voz tenta recuperar nos 33 versos do poema o processo de produgio do acticar, como numa histéria contada de tras pra frente, em que os tltimos acontecimentos precedem os primeiros. Como numa desmontagem, o agticar percorre o caminho de volta do acucareiro para a mercearia do Oliveira, daf para a usina em Pernambuco ou no Estado do Riv, até chegar avs canaviais © Gullar, Ferreira. “O agdcar”. Toda poesia. Rio de Janeiro, Civilizacao Brasileira, 1980. 88 © A ESTETICA DA MERCADORIA NO POEMA “O ACUCAR” que “nao nascem por acaso/ no regaco do vale”. Por fim chega aos homens que o plantaram e o colheram. O deslocamento d4-se no espaco, mas também no tempo. As condigées de trabalho dos “homens de vida amarga” sao pré- capitalistas. Enquanto isso, 0 poeta vive em um mundo plenamente capitalis- ta, quer pela forma de consumo, quer — 0 que, para nds, é mais decisivo — en- quanto produtor. O seu produto, o poema, é exatamente isso — um produto. Esta desmistificado, nao se origina de um milagre. Além disso, 0 que se dira do prazer a que o poema esté ligado? E um prazer emancipador, ou instcu- mentalizador? Dele diz o poeta: Vejo-o puro E afavel ao paladar Como beijo de moga, agua Na pele, flor Que se dissolve na boca. E verdade que ele esta falando do agticar, mas, se estamos certos, acticar © poema se confundem, ao menos num primeiro instante. A sua diferenciagao 86 se coloca na perspectiva do leitor, do consumidor do poema. A culpa do poeta Nao é uma narrativa pura e simplesmente, mas uma narrativa confessio- nal. O eu transmite-nos sua culpa: até chegar 4 sua mesa, em sua manhi, e ado- ‘gar o seu café, o agticar passa por varias transformagées, dir-se-iam mégicas ou milagrosas, no sentido de que cada passo do trajeto, das “usinas escuras” até © agucareiro, esconde o passo anterior. O branco do acticar que vem das “usinas escuras” € resultado de uma escamoteagao. A producfo nao se d4 sem prépria escamoteagao. Na sucesso das etapas da produgao, alguma coisa desprezada, deixada para trds, jogada fora como bagaco. O agticar € branco, ‘sem méculas, purificado, refinado. O refinamento é 0 processo de escamotea- go da explorag&o de quem plantou e colheu e fabricou o agticar. Em sua condi¢ao, traduzida pela manha em Ipanema e pelo café a ser ado- , que so seus, o poeta se sente ciimplice do processo de escamoteagio. O que esté em jogo, portanto, é mais do que a produg&o do agiicar, € a produ- ¢ao do poema, ou melhor, a intima relagéo entre as duas produgées. O refina- ito é, entao, tanto do agticar como do poema. Ligando os dois, esta o fato de que, na sucesso das etapas da produgao, alguma coisa é desprezada, dei- ada para trés como bagaco. Na verdade, o que adoga a manha em Ipanema é doce do poema, que, por sua vez, é a quintesséncia do doce do agticar. A manha em Ipanema é um locus amoenus, ao qual se contrapdem as inas escuras”. O locus amoenus seria o lugar do milagre; as “usinas escu- o da produgio. Mas, como o poema é também produzido — e é isso que CRITICA MARXISTA © 89 © poeta sublinha, enfatiza —, ent@o o milagre é o suplemento ideolégico da produgao: 0 poema coroa 0 processo de escamoteacdo de tudo o que estd en- volvido no processo de produgao. O poema confunde-se com o agticar. E o refinamento dos refinamentos. Aqui, entretanto, alguma coisa parece se colocar para tentar desfazer a homo- logia. O leitor se pergunta, considerando a homologia: se 0 poeta nao fez o agiicar, ao menos faz 0 poema? As producdes do acticar e do poema obedecem a esquemas modernos, per- fazem o longo caminho da industrializagao, com as intimeras transformagdes pelas quais passa a matéria-prima submetida ao valor de troca, 8 forma-merca- doria. O consumo — leitura, no caso do poema — nao pode se consumar sem 0 ilusionismo ou a fantasmagoria das metamorfoses. A forma-mercadoria € des- de sempre espectral, fantdstica, porque € um jogo de aparigdes e desaparigdes. O agticar da arte adoca a manha do poeta e de seus leitores. A arte é, pois, o refinamento do refinamento, o est4gio mais avangado (“na pele, flor”) da produgao capitalista, a transformagao mais sutil e fantasmagérica. Ao dizer que © acticar nao foi feito por ele, o poeta nos diz que o poema também nao €um milagre, embora se oferte como tal; diz-nos que a matéria do poema que ele faz na manha de Ipanema é a produgao do aguicar e que, sendo assim, vem 14 também das “usinas escuras”. A matéria do poema é a vida amarga dos “homens de vida amarga”. A matéria-prima do poema — 0 aguicar posto no café — j4 vem produzida. Por isso, enquanto 0 poeta acompanha 0 processo de desmontagem do agticar e recupera, passo a passo, as etapas de sua produ- ¢Go, 0 leitor acompanha a produgao do poema enquanto ela se da. Observe-se que acima, a propésito da feitura do poema, dissemos faz, nao fez. O leitor é levado a refazer retrospectivamente os passos da produgao do agticar, mas a acompanhar 0 poeta no momento mesmo em que ele faz o poema. Talvez aqui esteja um dado a ser investigado. A diferenga est4 em que 0 poema comega quando 0 agticar jé estd feito e dis- ponfvel no acucareiro. Ao leitor resta envolver-se na hist6ria, entrar no fogo cru- zado. O que é dado como bagaco, pela produgao do agiicar, € 0 indigesto do poe- ma ou 0 poema indigesto, nao comestivel, amargo, que 0 leitor deve compartilhar. A culpa do poeta est4 em que fazer o poema € participar do longo proces- so de escamoteaco, uma vez que 0 poema, que também é produzido, é a ul- tima etapa da producdo de bens de consumo. O poema integra o processo de producio da mercadoria e, mais do que isso, também se dé como mercadoria e, ainda mais, fazendo-se passar por resultado de um milagre, é o refinamen- to do refinamento da escamoteagio: o fetiche. Poderd o leitor resgata-lo en- quanto elemento indécil, nao submetido a todo a esse processo? Dentro da noite veloz, livro em que se publicou “O acticar”, marca, se- gundo mostra Lafet4, uma fase de mudanga na poesia de Ferreira Gullar: di- 90 * A ESTETICA DA MERCADORIA NO POEMA “O ACUICAR” ferentemente do que ocorreu nos livros anteriores, agora as posigGes politi- cas vao surgir “nao mais como algo de fora [...], mas como algo interior, da vida do poeta, e do qual se fala”. Como Lafeté também demonstrou a pro- posito de Poema sujo’, a subjetivizagao permite ao poeta superar os proble- mas iniciais de sua poesia (esteticismo, formalismo da geracao de 45), mas ao mesmo tempo funciona como um limite. Em “O agticar’; o limite se dei- Xa ver e, mais do que isso, deixa ver o dilaceramento do poeta: colocado, como escritor, do lado de cé da fronteira, ele pode contar a vida dos “homens de vida amarga”, mas na posicao de quem, ainda que contra sua vontade, se beneficia dela. Em outros momentos da poesia brasileira, como observa ainda Lafeta, os Poetas puderam atingir maior veeméncia do que se vé nesses textos. Lafeté cita O carro da miséria de Mario de Andrade, A Rosa do povo de Drummond como exemplos dessa veeméncia. Mesmo assim, péde-se verificar um retro- cesso quando as “conquistas” modernistas cederam lugar ao esteticismo da geragao de 45, Se isso ocorreu € porque alguma fragilidade do proprio moder- nismo forneceu a brecha por onde isso se deu. Lembre-se de que os “grandes” do modernismo, jé pelos meados dos anos 40 e depois, decididamente, nos anos 50, j4 renegavam aquelas “conquistas”. Foram eles mesmos que voltaram aos sonetos, ao requinte poético, a linguagem rebuscada e, outra vez, afastaram-se da fala popular e coloquial. Pode-se entiio supor que, sem poder ir a frente no sentido da radicalizag&o daquelés procedimentos, o modernismo deparou-se com o seu préprio limite. Disse Lafeté que Gullar “operou nos limites da -consciéncia do artista (intelectual) brasileiro contempordneo, preocupado ‘com os problemas sociais do seu pais”, Os limites nao foram rompidos. Supde Lafetd que talvez porque “a nossa consciéncia possivel” de intelectuais esbarre circulo de ferro de nossa classe, ¢ o “outro” — representado obliquamente, através de suas refragdes no sujeito poético — nado ganhe nas obras a autono- ‘mia € a forga capazes de colocé-lo no centro do processo. Acreditamos, porém, que é possivel obter um outro rendimento da leitu- ad’ “O agiicar”, se sublinhamos o autoquestionamento literdrio”. O limite € Lafeta, Joo Luiz. “Traduzir-se. (Ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar)”. O nacional e 0 popu- na cultura brasileira, S40 Paulo, Brasiliense, 1982. Idem, “Dois pobres e duas medidas”, in Schwarz, Roberto (org.). Os pobres na literatura ileira. Sao Paulo, Brasiliense, 1983. Idem, ibidem, p. 200. * Sobre o autoquestionamento literério, v. Hermenegildo Bastos, José. Memérias do cércere, lite- € testemunho. Brasilia, EdUnB, 1998. CRITICA MARXISTA © 91 na, verdade a propria literatura, e a explicitagao disso em “O agticar” talvez possa ser considerada uma forma nova de veeméncia. Ao falar do eu e sua subjetividade, 0 poema fala da condig&io mesma de existéncia do fendmeno lirico numa sociedade de classes. Nao hé como discordar de Lafetd: os limi- tes ndo foram superados. Releia-se o bloco final do poema: Em usinas escuras, Homens de vida amarga E dura Produziram este agticar Branco e puro Com que adogo meu café esta manha em Ipanema. O tom é de derrota e, até mesmo, elegfaco, mesmo porque informar so- bre a existéncia desses homens nada acrescenta ao que a literatura brasileira ja vem fazendo h4 algum tempo. O que é relevante, porém, é que se expde 0 comprometimento do fazer literério. Se, como diz Lafet4, a subjetivizagao foi o caminho de superago do es- teticismo inicial da poesia de Gullar, feito isto, ela se colocou, entretanto, como 0 novo limite e, dessa vez, intransponivel: 0 “circulo de ferro de nossa classe”, barreira para a representacao do “outro”. O sujeito poético é, ao mes- mo tempo, individual e coletivo; como tal, integra um horizonte hist6rico. Os limites desse horizonte, portanto, nao sao da poesia de Ferreira Gullar, mas da poesia brasileira. O mal-estar que essa poesia pode causar no leitor preve- nido esta em que ela beira a autopiedade. A autopiedade poderd ser tomada como categoria histérico-literaria? Se for, ser um dado estilfstico-ideoldgico e nfio uma acusagio dirigida a este ou aquele escritor. Lembre-se como isso percorre a poesia de lingua portuguesa moderna: “E estou-me rebolando numa grande caridade por mim”, diz Fernando Pessoa. Afinal “Sim, eu sou também vadio e pedinte/ E sou-o também por minha culpa”. Ao falar de subjetivizagio, pensamos em um processo, em vez de num dado pacifico e preexistente ao texto. A subjetividade esta no texto como re- sultado de um processo propriamente literdrio que corresponde aos processos ideolégicos de interpelago do individuo em sujeito”. Um conjunto de meca- nismos morfossintaticos, semantics e ret6ricos produz o sujeito. Este que no texto diz eu nao é, portanto, o ponto de partida do texto, mas seu ponto de " Fernando Pessoa. “Ficgbes do interlidio". Obra poética. Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1969, p. 414. " V. althusser, Louis, fdeologia e aparelhos ideol6gicos de Estado. Sobre a reprodugao, Petrépolis, Vozes, 1999. 92 ¢ A ESTETICA DA MERCADORIA NO POEMA “O ACUCAR” chegada. O ilusionismo esta em que 0 poema se apresenta como produto do eu, quando na verdade o produz. O leitor, acompanhando a producio d’ “O agticar”, tem a rara oportuni- dade de ver a fabricagiio da ilusao. Nesse sentido, 0 poema caminha em duas diregdes opostas, mas ao final convergentes: a primeira € que é um texto de alta qualidade estético-literaria; a segunda € que impée ao leitor 0 amargo do poema, o poema nao-comesttvel, indigesto, que implica um questionamento dessa alta qualidade estético-literaria. O leitor pode ficar com 0 poema alta- mente bem realizado, mas cuja excelente qualidade estético-literaria é parte do universo da produg&o capitalista, ou ficar com sua autocritica, Em ambos ‘os casos, porém, teré que digerir um impasse. “O acuicar” é, assim, uma ars poetica. Se uf se questions o milagre do poema, nao sera, porém, para enfatizar sua total dependéncia da forma-mercadoria. Até af, permanecemos no universo da autopiedade, sem safda possivel. Res- salve-se que a autopiedade pode gerar e tem gerado obras de primeiro esca- lo. Mas 0 desejo que enforma “O agticar”, sua veeméncia, pode funcionar como uma bomba a explodir no interior do poema, fazendo os agticares e os doces desandarem. CRITICA MARXISTA © 93

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