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A crista de Hilst
Questões de poesia
Professora: Maria Lúcia de
Barros Camargo
16/02/2018
A palavra crista aparece duas vezes na seção Da morte. Odes mínimas, parte
principal do livro de mesmo título1, de Hilda Hilst. Situada entre outras 3 seções de
poemas curtos, em número e tamanho, os 40 poemas desta trazem a palavra nas estrofes
“Perfil sem dracma/Crista pontuda/No timbre liso”, do poema VI, e “Como se tu
coubesses/Na crista/No topo/No anverso do osso”, do poema XV2. A interlocutora
poética, não só destes versos, como de todos os demais, é a morte. E por interlocutora
poética queremos trazer à mente todos os jogos de construção de metáforas,
embaralhamento de remissões, mistura de identidades, sombreamento, indagação e
indefinição de voz que só a poesia, aqui em oposição à prosa e ao drama, assume com
natural radicalidade. Duas coisas chamam, nisto, a atenção: uma, apesar de aparecer
pouco, crista é uma rara palavra que remete a auge, topo, limite superior, num livro em
que a morte, mesmo não perdendo seu aspecto de mistério e enfrentamento, é
frequentemente colocada ao nível das coisas insignificantes, esvaziadas, como sinônimo
de objetualidades e significações ínfimas, em pleno processo de disjunção3. E, duas, é mais
uma palavra feminina, entre os inúmeros substantivos deste gênero listados para ou
entificar ou “batizar de novo” (como proposto no primeiro verso da obra4) a morte e a
linguagem do seu espaço simbólico.
O isolamento social de Hilda (retirada da vida das cidades para escrever, isolada
numa casa de campo, de 1966 até sua morte, em 2004) e o caráter de forte indagação
existencial e/ou metafísica que é cerne de toda sua obra, compõem como que a
atmosfera para este belo trabalho que, pelos rigores de seu conteúdo, mais do que por
uma classificação temporal, é autenticamente digno da alcunha literatura contemporânea¸
como trataremos. “Aqui, a morte é chamada para a dança e se rende às leis de atração e
repulsão”, como afirma Victor Heringer, no posfácio à recente edição de sua poesia
completa. “Ela” a morte, “a sedutora implacável, também é seduzida.” 5 Impulsionada
pela limitação do corpo da linguagem, que tem de impor um de dois gêneros, masculino
ou feminino, aos substantivos, Hilst tem nisto um dos motes para que versos de
aproximação e diálogo com o fenômeno da morte façam tal limitação parecer acaso
1
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2017.
2
Ibid, ps. 319 e 325 .
3
Trataremos desse conceito mais adiante no ensaio.
4
Em “Te batizar de novo.” Ibid, p. 316.
5
Ibid, p.541.
2
poético e horizontalização natural, operação como que ironizada em “Duas fortes
mulheres/ Na sua dura hora”6.
O exercício básico para se chegar a ter intimidade com estes poemas parece ser o
de permitir flexibilidade e abertura à identidade do sujeito da voz ativa dos versos, pois
o jogo com o caráter fabular da morte, como um outro sujeito, como no senso comum,
leva a morte a ocupar vários lugares nas modalidades possíveis do discurso, ora sendo
mero sujeito passivo, ora sendo um sujeito, vamos dizer, ontológico-indeterminado, e
ora transmutando-se mesmo no sujeito ativo, ao que parece, dos versos. Inevitável
pensar, também, crista como o feminino de Cristo, mesmo que a semântica de ambas as
palavras seja diferente e não sejam estas substantivos biformes. Talvez esta espécie de
ato falho de um leitor seja uma das consequências acidentais de, por um lado, a abertura
que emprestamos à poesia, e, por outro, o mesmerismo, enormemente recorrente nas obras
de arte contemporânea. De tanto repetirmos e rompermos, diminuirmos, esvaziarmos e
enfeitiçarmos, em nome da liberdade formal e da destituição dos deuses, caímos em
ciladas involuntárias, mas ricas, da linguagem.
Por essas razões, bem como pelo fato de crista ter uma de suas definições como
excrescência carnosa, a aparição da palavra ganha aqui sentido, apontando outra das mais
fortes características desta reunião de poemas: o paradoxo. Justificado pelo extremo das
indagações metafísicas este recurso é usado de 3 maneiras: a temática, na
impossibilidade de experenciarmos a nossa própria morte, a substantiva, na conquista
de inúmeras imagens que encarnam a plena possibilidade do fazer poético e, ainda, a
formal, com o uso do paradoxo para a diluição total das identidades, nomes e valores
consagrados ao tema, morte, e ao fazer poético tradicional. O jogo implosivo com a
relação forma e substância é constante em toda a poesia moderna, e aqui aparece, por
exemplo e explicitamente, na estrofe já destacada: “Perfil sem dracma/Crista
pontuda/No timbre liso”7. A impossibilidade de substanciarmos a experiência morte,
aqui, se amalgama belamente a este recurso poético: tal como o perfil do dracma8 que,
6
Ibid, p. 316.
7
Ibid, p. 319.
8
Moeda grega de mais longeva circulação no mundo. Costuma ser traduzida para “moeda”. Dela a Bíblia
traz a seguinte parábola: “Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma dracma, não acende a candeia, e
não varre a casa, buscando com diligência até encontrá-la? E achando-a, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: alegrai-vos
comigo, porque achei a dracma que eu havia perdido.” (Lucas 15:8,9) BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição
Pastoral. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1995, p. 1335.
3
sem dracma, é preso na imagem, apenas, sem suporte concreto, ou como o timbre que,
liso, já não se timbra efetivamente, sendo uma espécie de desaparição, somos levados a
imaginar que a crista pontuda é assim descrita porque se perde no nada, no nada do alto
– e ferindo o alto. E se Cristo é aquele que faz a divindade descer ao chão, a Crista
mostra-se como a excrescência que habita o alto, agora resignificado como também
telúrico, exatamente como os novos lugares aqui propostos para a morte ou a poesia,
figurados em uma posição feminina contrapositora.
Os versos, aqui, como por toda parte, são secos, com uma intencionalidade quase
que enumerativa, compondo um choque entre certo desdém dessa voz poética e a
presença de complexos voos no abstrato dos paradoxos, ação que, aliada ao efeito
disjuntivo mencionado, sustenta a um só tempo a operação de desconstrução dos
lugares tradicionais (mesmo modernistas) da poesia e a originalidade dessa voz poética.
É uma mirada da vida humana também original o que sustenta esta novidade de
linguagem poética, pois, como afirmado no texto crítico talvez mais clássico sobre a
autora, escrito por Anatol Rosenfeld em 1970, “na linguagem nobre e austera de sua
poesia Hilda Hilst não poderia dizer toda a gama do ente humano, tal como o concebe”9.
Estes procedimento poético e posição biográfica não se originam do nada, obviamente.
Em termos de tradição literária, valem-se nada secretamente do resultado da terapia
modernista de violentação dos píncaros da poesia clássica, fazendo esta descer ao trivial
cotidiano e ao baixo humano, o que naturalmente criou um novo lugar de consciência
para a poesia posterior. Pelo simples fato de ter as conquistas de um evento anterior
como solo, um novo evento tem de partir de outro lugar, se quiser assumir o seu tempo,
o que, nesta poesia suja, origina-se do “horizonte estético do século XX”, este que
“desenha-se enquanto retorno do recalcado, do há muito tido como superado pelo
belo”10.
Esta voz de desconstrução e insignificância conscientes, é importante que se
diga, não é a única visitada no trabalho. Aqui a, se pudermos assim chamar, eu-lírica, na
lida com o fenômeno a que se dirige, também apresenta vozes de sucumbência,
indagações pra lá de comuns, temores fantásticos, naturalidade no enfrentamento,
euforia de vitória, forte vazão ao erótico, tentativa de experenciação direta, etc A recusa
a uma concepção tradicional da morte é bastante dominante e veremos como, mas, ao
9
ROSENFELD, Anatol. Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. IN: HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo:
Perspectiva, 1970, p.9.
10
SILVA, Reginaldo Oliveira. Uma superfície de gelo ancorada no riso: a atualidade do grotesco em Hilda Hilst. Campina
Grande: Eduepb, 2013, p.28.
4
mesmo tempo, é como se a poeta não se pretendesse sobre-humana no enfrentamento
do fenômeno da morte e, por isso, sucumbisse aos fantasmas triviais e a um constante
trabalho de significação que, mesmo alçando inteligentíssimos pensamentos, não deixa
de ser ordinário. Nisso, porém, também reside uma característica da literatura
contemporânea: a capacidade de passar por várias vozes e estados radicais, como se o
Tempo passasse, inevitavelmente, pela obra, levando-a de um extremo (o céu) a outro (o
dejeto, o insignificante).
O ponto máximo da trivial experiência com a morte nestes poemas é atingido
por Hilst, a nosso ver, no aberto abatimento dos últimos quatro versos do poema IX 11. O
poema abre com perguntas ostensivas e desafiadoras à morte, desafiando-a diretamente,
chegando a chamá-la de “cavalinha”, mostrando completo desamparo em determinar
sua forma, se terá “cascos enfaixados” pra que não se ouça o seu “duro trote”, ou se a
morte virá “criança” (o ente irresponsável, pelo qual outro tem de ser responsável, e o
ente novo no mundo) e fará muito barulho quebrando “louças”. A esta ousada e
descontrolada indagação, porém e do nada, seguem os versos: “Amante/Porque te
desprezei?/Ou com ares de rei/Porque te fiz rainha?”12. Aí a culpa no ser humano mais
comum extravaza, em um sentido mais imediato. É possível também ler estes versos
como um entendimento positivo, consciente: a eu-lírica reconhecendo que o desprezo é
um sinal de amor e que foi sua escolha fazer do Outro (da morte) rainha. Mas a poeta
evidentemente arma um jogo que é o de fazer antagonizarem situações diversas e que
passam pelo retrato das impressões comuns.
A pessoa Hilda Hilst teve uma trajetória bastante forte para criar o seu papel de
escritora. Quando decide radicalizar o seu ofício, passa a não se tratar mais de uma
cidadã cosmopolita, crítica e engajada, leitora metódica e frequentadora da academia,
situada em outras artes, indo a teatros e museus, preocupada em compreender as
atitudes filosóficas de sua época. Trata-se de uma mulher (característica ainda,
infelizmente, inolvidável) que teve educação religiosa bastante forte até a adolescência,
bela e que, aos 36 anos, elegeu absorver os dilemas mais próprios de seu tempo de
maneira antagônica ao viver citadino, isolando-se em sua Casa do Sol. Esta atitude pode
ser vista como uma realocação da posição de vivência numa cidade como sendo a mais
propícia para estar a par do próprio tempo e para que, de suas manifestações, se tire
11
HILST, Hilda. op cit., p.321.
12
Ibid., p.321.
5
alimento para o espírito, deslocando-a, dada a contemporaneidade e a autonomia de
Hilst, do âmbito da necessidade para o da opção.
A autora lançou o livro em pauta aos exatos 50 anos (tendo nascido em um ano
redondo, 1930 e, portanto, acabado esta obra em outro, 1980, o que, para uma pessoa
supersticiosa, não deve ter passado nem um pouco despercebido), havendo 14 anos de
seu autoexílio. São tempos de vida e isolamento bastante favoráveis à escolha do objeto
em questão. Sua coragem de abdicar, como dizia, de seus muitos namorados e de outras
ocupações para se dedicar ao artesanato da palavra, não se restringe à atitude de se
concentrar no desenvolvimento técnico de uma habilidade treinada com exclusividade:
a escolha por ser poeta, contemporânea, experimental, polêmica, maldita, coloca a
técnica como um dos valores a serem aperfeiçoados, em meio à constante procura por
reconstrução, pathos, temas, formas. Hilda era uma artista apaixonada por seu pai, a
quem viu pouco e que também era poeta, e que, dona de alta inteligência, resolveu
cultivar-se autonomamente, longe do apego à formação tradicional-urbana, que talvez
seja preto-no-branco demais para alguém tão aberta às profundidades de cores e à
possibilidade de mistérios.
Também na trajetória de Hilda Hilst, a voz poética de Da morte. Odes mínimas não
é inédita – apesar de quase. A obra figura como, por assim dizer, o primeiro
desdobramento do pontapé da maturidade da poesia da autora, iniciado com o livro
Júbilo, memória, noviciado da paixão13, de 1974. Este livro traz a mais vasta reunião de
poemas, em número, de toda bibliografia de Hilst: são 85 poemas, divididos em 7 seções,
sendo também a obra poética imediatamente anterior à aqui focada, antecedendo-a em
6 anos. A razão da conquista desse estágio maduro, definido como o abandono de “certo
parnasianismo”, segundo Alcir Pécora14, foi, segundo o mesmo crítico, a experiência
explosiva que Hilda realizou com os outros gêneros clássicos da literatura, a prosa e o
drama. Em outras palavras, é com essa obra de 74 que a poeta começa a fazer literatura
contemporânea, deixando seus versos serem trespassados pela sujeira e pelo vazio,
abraçando a finitude e alcançando sua particular concisão.
Com sua escrita teatral e de prosa, sua maturidade literária, bem como com a
quebra de seu silêncio social, a escritora inaugurou também sua famosa atitude
polêmica, no protesto contra a baixa quantidade de atenção e leitores, fato que iria
13
HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. IN: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras,
2017. ps. 227 a 300.
14
Conforme entrevista disponível em: https://youtu.be/EH_m53oBeyM
6
permanecer intocado, ou quase, durante toda sua vida. Hilst manteve este gesto de
protesto até o fim, o que certamente acabou ajudando a trazer à sua poesia os
importantes componentes da ira, da repulsa, do esvaziamento, do sarcasmo, da
escatologia, do experimental, de uma nova aproximação ao sagrado, do aberto erotismo,
etc A escolha do tema da morte para compor o livro que é aqui analisado, portanto,
resulta de um encontro consciente e enormemente significativo. Este é o passo posterior
a Júbilo, memória, noviciado da paixão, seu primeiro grande grito poético; esta é a sagração
da maturidade da escritora; este é o enfrentamento radical, pessoal e artístico, do tema
da morte.
Através do exame de Da Morte. Odes mínimas e outros títulos da fase madura, como
o já citado Júbilo, memória, noviciado da paixão e um livro posterior e de temática parecida
como Poemas malditos, gozosos e devotos15 (de 1984), este tratando de diálogos malditos com
Deus, podemos verificar algumas características que chamam atenção mais
contundentemente na poesia da autora. São as seguintes: o labor das palavras, que,
apesar de manterem o tom dramático (isto é, o pedido por serem lidos em voz alta e
mantendo a fluência respectiva) são cuidadosamente pesadas e pensadas,
diferenciando-se da poesia que se aproxima da prosa (como por exemplo em
Drummond ou Pessoa), labor que transparece na assertividade lacônica dos versos e na
rica diversidade lexical; a presença da indagação filosófica, sempre profunda e
mostrando intimidade com veredas e paradoxos da linguagem e da razão; a tematização
do maldito, muito comum aos poetas, e que em Hilst se manifesta nos desafios lançados
à morte, a Deus, ao amor, ao convívio humano, etc, trazendo, por sua vez, em seus versos
a marca, não da exaltação lírica, mas, pelo contrário, da frieza, da resignação, do
laconismo, da podridão material, da secura e do sarcasmo; a assunção da base, a
investigação das profundezas e o questionamento do fenômeno social do feminino; a
corajosa e inteligente circunscrição de sua obra madura nos temas e desafios da poesia
conteudisticamente contemporânea, tomando o modernismo como uma espécie de
ponto de partida; a forte presença do erótico; o também forte caráter de desmistificação,
presente no esvaziamento de fontes de consolação e medidas exteriores à vida em sua
nudez.
A imaginação de Hilst é bastante vasta, fértil e, como todos os autores
imaginativos, ela parece procurar alimentar a profusão e a destilação das imagens como
15
HILST, Hilda. Poemas, malditos, gozosos e devotos. IN: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras,
2017. ps. 405 a 425.
7
se estivesse criando o mundo a partir de si mesma, sobrevoando normas da vida comum
e afirmando que estas também dizem respeito a sonhos. Claro que, para uma leitura
pedagógica, a imaginação pode ser vista em todos os poetas. Afinal, o que seria da casa
da palavra, a poesia, sem inventividade e liberação? Agora, para um exame mais íntimo,
autores racionais, como, por exemplo, um João Cabral de Melo Neto, parecem submeter
as imagens a um rigor resoluto, ainda que vivo, atento. O inconsciente se manifesta nos
primeiros poemas, de forte apoio no surrealismo, de João Cabral, mas jamais você se
deparará com uma assertiva errante, de forma solta, de caráter chulo. Até quando diz
fezes, João Cabral diz fezes, não merda. A postura contrária, a de ser um sujeito
puramente imaginativo, à parte até da escrita, sem trabalho material ou ao menos
espontaneidade e laconismo, já não faz nenhum sentido para o universo poético. Em
Hilst, no entanto, a imaginação (o uso da imaginação, vamos dizer assim) pode ser
apontada como um dos destaques de seus versos. Por mais que razão e irrazão,
assertividade e loucura, pareçam brigar sem trégua nestes poemas, ainda assim, se
pudermos apontar para a força dominante dessa briga, a imaginação poderia ser a mais
forte candidata. Nos poemas de Hilst há uma premeditação que não é nem racional,
nem, grosso modo, combativa, gratuita. É a premeditação do imaginário: o encontro, por
acaso, com o pensamento carne. O lacônico de seus poemas brota daí. O viril. A incisão,
mais que mordaz, eficaz, abrangendo a metamorfose das coisas. Ou obedecendo a
definição de João Barrento, citando Herberto Helder, “o poema é assombro (...)para me
mostrar que há apenas uma lei, a da metamorfose, ‘abrangendo tanto o mundo das
coisas como o da imaginação.’ ”16
Como levantamento de hipóteses, nestes poemas a imaginação pode estar
presente: nos motes inventivos de vários dos poemas (no achamento de asserções como
“Perderás de mim/Todas as horas//Porque só me tomarás/A uma determinada hora” do
poema VII17 ou “Onde nasceste, morte?” do XXV18); nas repetições, associações e
quebras francamente apoiadas no onírico; na maneira surpreendente como indagações e
associações metafísicas surgem aqui em casamento com a poesia19; e na forma
puramente plástica com que vários poemas se apropriam das palavras, fazendo-nos os
16
BARRENTO, João. A geografia imaterial por vir. IN: INIMIGO RUMOR 11. Rio de Janeiro: 7 letras, 2001, nº 11,
p.35.
17
HILST, Hilda. op.cit., p. 319.
18
Ibid, p. 331.
19
Como no poema XXX: “Juntas. Tu e eu/Duas adagas/Cortando o mesmo céu./Dois cascos/Sofrendo as
águas.//E as mesmas perguntas.//Juntas. Duas naves/Números/Dois rumos/À procura de um deus.//E as mesmas
perguntas/No sempre/No pasmoso instante.//Ah, duas gargantas/Dois gritos/O mesmo urro/De vida,
morte.//Dois cortes./Duas façanhas./E uma só pessoa.” Ibid, p. 335.
8
remeter à pintura, de artistas como Chagall ou Kandinsky (como em “Cavalo, búfalo,
cavalinha” e “O coruscante vermelho do teu couro” de XVI20 ou “Te vi/Atravessando as
muradas/Montada no teu cavalo/Acrobata de guarda-sóis” de XVIII21).
A baixa quantidade de leitores e estudos que Hilst teve em vida, apesar de suas
batalhas e mesmo com um já grande quadro de mudança nas últimas duas décadas,
parece ser a razão principal para que paire ainda uma aura de carência de justeza
principalmente no exame de sua obra poética. Isso se confunde, é claro, com a baixa
atenção que nossa cultura e país dão à literatura. Tem-se aqui a impressão de que um
grande risco que correm os atuais trabalhos acadêmicos e de divulgação dirigidos à
produção da autora é caírem no velho fetichismo de autor, que tanto ataca literatura e
outras artes. Aqui esse fetichismo se manifesta, por exemplo, além de no usual
romantismo da figura do escritor, na sobredeterminação da condição feminina de Hilst.
Longe de querermos cair, com esta crítica, no estereótipo machista, o caso aqui é que a
insistência nas condições da autora, em detrimento da análise crítica de sua obra, acaba
por, simplesmente, deixar de entrar nesta, fazendo com que palavras de convite à
experiência da literatura circulem restritas numa espécie de eterna propedêutica ou de
mero uso para fins teóricos ou, o que é pior, de colagem teórico-burocrática.
Em textos sobre Hilst, os clichês em geral gravitam em torno de escolher uma
das características seguintes para compor colagens entre conceitos teóricos e trechos da
própria autora: a condição feminina; a presença do erótico; a vazão para o experimental
e para o fluxo de consciência destacados em sua prosa; o tema do divino; a poeta como
maldita ou contraventora; etc Leem-se versos como mera ocorrência de temas (num
registro que mais parece manifestar um recalque jurídico: afirmação
responsabilidade), como se ficássemos, nós, estudioso, texto crítico e leitores, sempre
de fora da obra. A elipse, certamente uma das características mais caras à poesia,
resulta, sob este viés, esquecida, pois tanto paira sobre a poesia uma saudável
impossibilidade de determinação objetiva, quanto para a crítica, ingênua, uma sede
excessiva de sobredeterminação.
Estas reflexões são interessantes aqui, pois se relacionam com a principal
expectativa da humanidade em geral, expectativa esta bastante desafogada na relação
com a palavra e com a arte: a de permanência. Num livro de poemas cujo assunto
principal é a morte, permeado por remissões ao vazio e ao insignificante e ditado por
20
Ibid, p. 326.
21
Ibid, p. 327.
9
uma voz poética seca, resignada, obviamente o próprio lugar da literatura, como
manifestação sujeita ao fim, entra em jogo. Esta assunção da finitude, no limite, gera a
consequência de um efeito para as imagens poéticas aqui presentes: uma vez
submetidas ao tempo, as imagens precisam passar por metamorfoses. Estas não são,
para a literatura contemporânea, mera atitude temática por parte dos artistas: elas se
misturam a todas as etapas do fazer poético, na fuga de quaisquer determinações
estanques. Formas e deformidades estão a favor do poeta. Como diz Maiakóvski, citado
por Boris Schnaiderman: ‘“Eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne
poeta e escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Chama-se poeta justamente
o homem que cria estas regras poéticas.”’22
Em Da morte. Odes mínimas é a morte que, sendo a única interlocutora
determinável do livro, é também, em si, impossível de se determinar, exigindo que se
crie sempre um novo discurso, a partir do chão. Um exemplo dessa indeterminação
metamorfósica é a estrofe em que a morte aparece como “Afilada/ Ferindo como as
estacas/ Ou dulcíssima lambendo”23. Aqui ela aparece como tornada fina em matéria
finalmente visível (em “Afilada”), posta nesta palavra isolada e incomum de maneira já
misteriosa e indeterminada (uma palavra sozinha que não ambienta cenário algum), e
que, por isso, já carrega a força do pleno fazer poético. Depois a morte atinge
violentamente, numa forma absolutamente diversa, ampla, como as estacas, que aqui
não batem, ferem. E, por fim, em nova e derradeira metáfora sensível, lambendo
docemente, a morte ofereceria um consolo, mas depois das imagens antecedentes, este
verso ganha muito mais um sabor da crueldade. Os estados não estão, portanto, se
sucedendo com vistas a sanar uma dúvida científica que procure o real estado da morte.
A metamorfose supõe contradição. Aqui, pra nós, isso quer dizer que entre os comuns
temas destacados na poesia de Hilst (como o erotismo, a relação com o divino e a
relação com a feminilidade), existem outros que não deixam de ser presentes, e só por
decorrência de um excesso de objetificação da literatura não são ressaltados: para o polo
do erotismo, em Hilst, existe o da solidão; para o do divino, existe o do cotidiano; para o
da feminilidade, o das figuras masculinas.
Nem tudo são tragédias (anti)literárias, entretanto, ou ao menos não tão
pontuais ao caso Hilda ou Brasil. O percurso que Hilst e outros poetas mundo afora têm
22 SCHNAIDERMAN, Boris. Maiakóvski: Evolução e unidade. IN: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo:
editora Perspectiva, 2002, p.15.
23
HILST, Hilda. op.cit., p.318
10
de percorrer é o da dificuldade em relação à tarefa histórica que, segundo Giorgio
Agamben, se impõe na relação entre poesia e vida e na exploração de um espaço
entulhado que obscureceu a experiência poética pela dominação desta por outros
saberes:
24 AGAMBEN, Giorgio. Categorias italianas. Tradução: Carlos Eduardo Schmidt Capela e Vinícius Nicastro
Honesko. Florianópolis: editora da UFSC, 2014, p.103.
25 BARRENTO, João. A geografia imaterial por vir. IN: INIMIGO RUMOR 11. Rio de Janeiro: 7 letras, 2002, nº
11.,p.35.
26 HILST, Hilda. op.cit., p.330.
11
destes poemas ganha enormemente em abertura e complexidade: a própria morte
resulta como fenômeno que deve ser tratado fora do binômio/morte vida, ou
presença/ausência, estando presente e sendo vida. No poema XII, os versos “Por que não
me esqueces/ Velhíssima-Pequenina?”27, também podem ser vistos como uma fala da
morte para a mulher. Tal inversão torna-se bela inclusive para o verso final desta estrofe
que, referindo-se a “Menina-Morte”, também pode apontar para a parte humana da
interlocução, na obsessão humana pelo assunto desde um tempo impossível de
determinar no passado.
A consciência de Hilda destas ambiguidades e esvaziamentos, é claro, é o que é
realmente importante, sob a pena de colocarmos verdades que não estejam na obra ou
propormos exercícios extravagantes. Trazemos aqui, para isso, uma lista dos
substantivos femininos que nela aparecem e uma sua classificação. Como mencionado
anteriormente, tais palavras aparecem como um recurso dentro da obra. A morte
aparece aqui nomeada, rebatizada ou remetida a objetos insignificantes, estados,
lugares, entidades, na avassaladora maior parte femininos. Aqui os classificamos,
segundo estes citados modos, não repetindo substantivos que aparecem mais de uma
vez e colocando alguns em mais de uma lista quando permitem mais de uma
interpretação:
Objetos/matéria
Teias Flautas Calha Candeia Palma Palha Pena Terra Carne Atadura Ferraduras
Escadas Linhas Semente Estacas Dracma Crista Chama Boca Casa Cal Cara Telhas
Costas Louças Sandálias de palha Esteira Cereja Cordas Cancela Coisas Quinas
Urnas Medula Poça d’água Tina Pele de cobra Casca Pupila Pontes Poeira Gaiolas
Grades Máscaras Faca Crina Patas Farpas Haste Cornadura Conchas Corta-capim
Corta-águas Pedra Cabeça Amêndoas Rosas negras Flor Estopa Mortalha Acácias
Favas Adagas Naves Gargantas Neve Paliçada Vidraças Mandala Garra Arca Vagas
Couraça
Espirituais e psicológicos
Insana Nula Hora Pena Carne Posse Sorte Coitadez Linhas Contração Palavra
Ilusões Voz Cantiga Poesia Vida Velhíssima-pequenina Menina-morte Rede de
27
Ibid., p.323.
12
avenças Soberba Pontes Máscaras Funduras Correnteza Ideia Acrobata Fonte
Palavra viva Ventura Morte-Ventura Canções Luz Perguntas Façanhas Alquimia
Mágoa Garra Confissões Escrita Funduras
Formas/estados
Fulva Linhas Ferrugem Tranças Funduras Correnteza Aguadas Entrepausa Nuança
Crueza Púrpura Altura Fantasia Irmã Pequenina Cores Subida Seca Noite Tardes
Madrugada Funduras
Lugares/bichos
Corça Praia Fêmeas Rosa mordente Planície Olaria Águas Cavalinha Montanha
Colina Andorinha Fonte Praças Duna Subida
Entidades
Mulheres Fêmeas Terra Criança Rainha Amiga Noite Irmã Tardes Madrugada
28
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 301.
13
intensidade – e a coloca em presença de sua diferença e de sua
divergência com todas as outras, cada faculdade produz um acordo
discordante, uma discordância acordante que exclui o privilégio da
identidade. No exercício superior ou transcendente das faculdades, é a
discórdia que implica um acordo, é a diferença que articula ou reúne.29
Articulada, coesa
Persigo tua cara e carne
Imatéria.
Porque é disjunta
Rompida
Geometral se faz dupla
29
Ibid., p.301.
30
WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Tradução: José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.69.
31
HILST, Hilda. op.cit., p.324.
14
Persigo tua cara e carne
Resoluta.
15
O poema seguinte, XV32, traz a segunda aparição da palavra crista, já
mencionada aqui. Com “Como se tu coubesses/ Na crista/ No topo/ No anverso do
osso”, a ideia de paradoxo é reafirmada, aqui parecendo levar em conta a imagem do
senso comum pertinente à morte. Parece também haver um ataque à essa imagem: como
pode a morte ser tão grande e importante e, ao mesmo tempo, caber na crista, no topo?
O que há debaixo dela, para a sustentar? Como ela nunca poderia estar mais escondida
do que à mostra, ou seja, como está sempre premente, tão imensa, dentro do escopo do
nosso humano tamanho? Nossa fetichização da morte aqui é evidenciada e com rica
poesia. No último verso, a palavra anverso (que quer dizer fronte, cara) é inusual, e ecoa a
própria palavra verso, como se fosse seu contrário. Realmente o anverso do osso, soa como
o seco do mais óbvio, a procura, em tudo redundante, pelo rosto do claro, a
compreensão última de algo incompreensível. Crista, aqui, remete a crista da onda,
muito mais do que à saliência presente na cabeça das aves.
A crista da onda é o ápice, é, em linguagem cotidiana, o estar em pleno destaque,
mas aqui vai ganhando contornos diferentes, desde a interdição inicial (“Como se tu
coubesses”), onde ganha movimento, passando pela estrofe seguinte, “Tento prender teu
corpo/ Tua montanha, teu reverso”33, onde a forma da morte, em uma tentativa de
determinação, é completamente abstraída (imaginava-se, de início, uma montanha no
topo? Em que avesso resta o reverso de uma montanha?), mostrando que a procura por
paradoxos leva a imaginarmos lugares impossíveis, verdadeiros não lugares, ou
instâncias só atingidas pela palavra, efeito que é repetido, como em outros poemas, na
estrofe seguinte, “Como se a boca buscasse/ Seus avessos”. No fim da estrofe posterior a
poeta nos leva a entender qual a figuração correta para relacionar morte à crista: “E
sempre te assemelhas/ A tudo que desliza, tempo,/ Correnteza.” A morte não seria o
ápice, não devendo nele ser unicamente buscada ou temida pela grandeza, mas o
próprio movimento de ondulações que permitem cristas invariáveis, na indiferença do
mar, no seu mecânico.
Da morte. Odes mínimas significa a maturidade de uma grande autora da literatura
brasileira contemporânea e também, se pudermos apresentar uma sua conquista
temática, um ato de coragem artística, ao enfrentar um dos temas mais caros à arte com
ousadia e solidão, dentro de uma mirada que coloca a própria arte e o lugar do poético
em questão. É possível ver a poesia, aqui, sendo na sua própria finitude, na morte.
32
HILST, Hilda. ibid, p.325.
33
HILST, Hilda. ibid, p.325
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Esvazia-se este tema, de seus infinitos temores, e, com isto, também o poema de suas
infinitas precauções. A liberdade artística, em suas pulsões sempre almejantes de poder
ir a todos os lugares, é o cantado e o oferecido na poesia hilstiana em seu máximo.
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Referências bibliográficas
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Anexo
Hilda Hilst
Te batizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis:
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não?
II
E a ti, conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.
19
III
Pertencente te carrego:
Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento.
IV
Amada
Torpe
Esquiva
Bem vinda.
Túrgida-mínima
Como virás, morte minha?
Afilada
Ferindo como as estacas
Ou dulcíssima lambendo
Como me tomarás?
20
VI
Ferrugem esboçada
Um oco insuspeitado
Na planície
Um cisco, um nada
À tona das águas
Brevíssima contração:
Te reconheço, amada.
VII
Perderás de mim
Todas as horas
Porque só me tomarás
A uma determinada hora.
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
Morte, imagina-te.
21
VIII
Vezenquando te volteias
Para que eu não me esqueça
Do instante cego
Quando me pedirás companhia.
Eu não me esqueço.
Te espio de hora em hora
IX
Os cascos enfaixados
Para que eu não ouça
Teu duro trote.
É assim, cavalinha,
Que me virás buscar?
Ou porque te pensei
Severa e silenciosa
Virás criança
Num estilhaço de louças?
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?
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X
De sandálias de palha
Pães pretos e esteira
De sutis seduções
A palavra de ouro, de cereja
Depois me deito
Entre cordas e estanhos
E sonho pátios, guetos
Ínfimos sapatos
Sobre as ilusões.
E então te abraço.
Ombro, cancela
Me fecho para recebê-la.
XI
Levarás contigo
Meus olhos tão velhos?
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?
Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces
Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-o comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.
23
XII
XIII
24
XIV
Articulada, coesa
Persigo tua cara e carne
Imatéria.
Porque é disjunta
Rompida
Geometral se faz dupla
Persigo tua cara e carne
Resoluta.
XV
Como se tu coubesses
Na crista
No topo
No anverso do osso
Persecutória te sigo
Amarras, músculo.
E sempre te assemelhas
A tudo que desliza, tempo,
Correnteza.
25
XVI
XVII
Em espiral
Oblonga, retilínea
Te recrio terra
Sobre a minha Ideia.
(Caracol de sumos
Andorinha
Crina).
Poreja
Única, primeira
Num mosaico de teias.
XVIII
Te vi
Atravessando as muradas
Montada no teu cavalo
Acrobata de guarda-sóis.
(Eu era noite e não via.)
Te vi levíssima
Descendo numas aguadas
Lenta descendo como os anzóis.
(Eu era peixe e sabia.)
Te vi semente de som
E te tomei. Patas, farpas
Jato de sol, açoite
Borbulho nas águas frias.
Tu eras morte.
26
XIX
Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro
Te tomaria
Úmida, tênue
E então descansarias.
Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono,
Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.
Se me tocares
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens
Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.
XX
27
XXI
XXII
28
XXIII
Porque o corpo
É tão mais vivo quando morto
Te batizo Riso
Rosto de ninguém
Sonido
Altura
Quando é que vem?
XXIV
No meio-dia te penso.
Íntima te pretendo.
Incendiada de mim
Contigo morrendo
Te sei lustro marfim e sopro.
E te aspiro, te cubro de sussurros
Me colo extensa sobre tua cabeça
Morte, te tomo.
E num segundo
Ouvindo novamente os sons da vida
Nomes, latidos, passos
Morte, te esqueço.
E intensa me retomo sob o sol.
29
XXV
E velhíssima agora
Conhecendo todos os tatos
Agonia, terror e pasmo
Saciada
XXVI
– Olhar a vida.
30
XXVII
Me cobrirão de estopa
Junco, palha,
Farão de minhas canções
Um oco, anônima mortalha
E eu continuarei buscando
O frêmito da palavra.
E continuarei
Ainda que os teus passos
De cobalto
Estrôncio
Patas hirtas
Devam me preceder.
Em alguma parte
Monte, serrado, vastidão
E Nada,
Eu estarei ali
Com a minha canção de sal.
XXVIII
31
XXIX
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó
XXX
Juntas. Tu e eu
Duas adagas
Cortando o mesmo céu.
Dois cascos
Sofrendo as águas.
E as mesmas perguntas.
E as mesmas perguntas
No sempre
No pasmoso instante.
Dois cortes.
Duas façanhas.
E uma só pessoa.
32
XXXI
XXXII
Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana ideia de um deus que não conheço,
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.
33
XXXIII
Esboçava-se.
Escorria líquido.
Era vidro.
Amava torpe.
Mesquinho te amava.
Era um vivo.
Luzente ofuscava
De vermes e asas
Vivo, silente,
Alquimia de fogo:
De pedra fria
A gozo.
Dirias morto?
XXXIV
Aquieta-te, afunda-te
Morre, pequenina,
Escuramente
Dentro do meu sofrer
34
XXXV
Se eu soubesse de nuvens
Como te sei
Não diria o que disse
Nem faria o poema. Olhava apenas.
XXXVI
Assim te mostrarás.
Um perfil curvo.
Soma de asas.
Um quase escuro
Sobre as vidraças.
E fios e linhas
Trançando máscaras
Para a minha cara:
Rubra mandala
Para um perfil.
Então ajusto
Para o mergulho
Cores e máscara.
Sou eu. Um peixe rubro
35
XXVII
Não compreendo. Apenas
Tento
Somar meu corpo
A teu corpo negro
Minhas águas
A teu remo
E cascos, os meus,
E luzes de um dia
E ânus, regaço
Somar
A teu matiz cobreado
Tua garra fria.
XXXVIII
No coração, no olhar
Quando se tocarem
Pela primeira vez
Aqueles que se amam
Eu estarei
Dirão:
Um poeta e sua morte
Estão vivos e unidos
No mundo dos homens.
Na madrugada
Pela primeira vez
Em amor
Tocada.
36
XXXIX
Uns barcos
Para a minha volta à Terra:
Este duro exercício
Para o meu espírito.
XL
Lego-te os dentes.
Em ouro, esmalte e marfim.
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