Você está na página 1de 37

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

A crista de Hilst

Diogo Araujo da Silva

Questões de poesia
Professora: Maria Lúcia de
Barros Camargo
16/02/2018
A palavra crista aparece duas vezes na seção Da morte. Odes mínimas, parte
principal do livro de mesmo título1, de Hilda Hilst. Situada entre outras 3 seções de
poemas curtos, em número e tamanho, os 40 poemas desta trazem a palavra nas estrofes
“Perfil sem dracma/Crista pontuda/No timbre liso”, do poema VI, e “Como se tu
coubesses/Na crista/No topo/No anverso do osso”, do poema XV2. A interlocutora
poética, não só destes versos, como de todos os demais, é a morte. E por interlocutora
poética queremos trazer à mente todos os jogos de construção de metáforas,
embaralhamento de remissões, mistura de identidades, sombreamento, indagação e
indefinição de voz que só a poesia, aqui em oposição à prosa e ao drama, assume com
natural radicalidade. Duas coisas chamam, nisto, a atenção: uma, apesar de aparecer
pouco, crista é uma rara palavra que remete a auge, topo, limite superior, num livro em
que a morte, mesmo não perdendo seu aspecto de mistério e enfrentamento, é
frequentemente colocada ao nível das coisas insignificantes, esvaziadas, como sinônimo
de objetualidades e significações ínfimas, em pleno processo de disjunção3. E, duas, é mais
uma palavra feminina, entre os inúmeros substantivos deste gênero listados para ou
entificar ou “batizar de novo” (como proposto no primeiro verso da obra4) a morte e a
linguagem do seu espaço simbólico.
O isolamento social de Hilda (retirada da vida das cidades para escrever, isolada
numa casa de campo, de 1966 até sua morte, em 2004) e o caráter de forte indagação
existencial e/ou metafísica que é cerne de toda sua obra, compõem como que a
atmosfera para este belo trabalho que, pelos rigores de seu conteúdo, mais do que por
uma classificação temporal, é autenticamente digno da alcunha literatura contemporânea¸
como trataremos. “Aqui, a morte é chamada para a dança e se rende às leis de atração e
repulsão”, como afirma Victor Heringer, no posfácio à recente edição de sua poesia
completa. “Ela” a morte, “a sedutora implacável, também é seduzida.” 5 Impulsionada
pela limitação do corpo da linguagem, que tem de impor um de dois gêneros, masculino
ou feminino, aos substantivos, Hilst tem nisto um dos motes para que versos de
aproximação e diálogo com o fenômeno da morte façam tal limitação parecer acaso

1
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2017.
2
Ibid, ps. 319 e 325 .
3
Trataremos desse conceito mais adiante no ensaio.
4
Em “Te batizar de novo.” Ibid, p. 316.
5
Ibid, p.541.

2
poético e horizontalização natural, operação como que ironizada em “Duas fortes
mulheres/ Na sua dura hora”6.
O exercício básico para se chegar a ter intimidade com estes poemas parece ser o
de permitir flexibilidade e abertura à identidade do sujeito da voz ativa dos versos, pois
o jogo com o caráter fabular da morte, como um outro sujeito, como no senso comum,
leva a morte a ocupar vários lugares nas modalidades possíveis do discurso, ora sendo
mero sujeito passivo, ora sendo um sujeito, vamos dizer, ontológico-indeterminado, e
ora transmutando-se mesmo no sujeito ativo, ao que parece, dos versos. Inevitável
pensar, também, crista como o feminino de Cristo, mesmo que a semântica de ambas as
palavras seja diferente e não sejam estas substantivos biformes. Talvez esta espécie de
ato falho de um leitor seja uma das consequências acidentais de, por um lado, a abertura
que emprestamos à poesia, e, por outro, o mesmerismo, enormemente recorrente nas obras
de arte contemporânea. De tanto repetirmos e rompermos, diminuirmos, esvaziarmos e
enfeitiçarmos, em nome da liberdade formal e da destituição dos deuses, caímos em
ciladas involuntárias, mas ricas, da linguagem.
Por essas razões, bem como pelo fato de crista ter uma de suas definições como
excrescência carnosa, a aparição da palavra ganha aqui sentido, apontando outra das mais
fortes características desta reunião de poemas: o paradoxo. Justificado pelo extremo das
indagações metafísicas este recurso é usado de 3 maneiras: a temática, na
impossibilidade de experenciarmos a nossa própria morte, a substantiva, na conquista
de inúmeras imagens que encarnam a plena possibilidade do fazer poético e, ainda, a
formal, com o uso do paradoxo para a diluição total das identidades, nomes e valores
consagrados ao tema, morte, e ao fazer poético tradicional. O jogo implosivo com a
relação forma e substância é constante em toda a poesia moderna, e aqui aparece, por
exemplo e explicitamente, na estrofe já destacada: “Perfil sem dracma/Crista
pontuda/No timbre liso”7. A impossibilidade de substanciarmos a experiência morte,
aqui, se amalgama belamente a este recurso poético: tal como o perfil do dracma8 que,

6
Ibid, p. 316.
7
Ibid, p. 319.
8
Moeda grega de mais longeva circulação no mundo. Costuma ser traduzida para “moeda”. Dela a Bíblia
traz a seguinte parábola: “Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma dracma, não acende a candeia, e
não varre a casa, buscando com diligência até encontrá-la? E achando-a, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: alegrai-vos
comigo, porque achei a dracma que eu havia perdido.” (Lucas 15:8,9) BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição
Pastoral. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1995, p. 1335.

3
sem dracma, é preso na imagem, apenas, sem suporte concreto, ou como o timbre que,
liso, já não se timbra efetivamente, sendo uma espécie de desaparição, somos levados a
imaginar que a crista pontuda é assim descrita porque se perde no nada, no nada do alto
– e ferindo o alto. E se Cristo é aquele que faz a divindade descer ao chão, a Crista
mostra-se como a excrescência que habita o alto, agora resignificado como também
telúrico, exatamente como os novos lugares aqui propostos para a morte ou a poesia,
figurados em uma posição feminina contrapositora.
Os versos, aqui, como por toda parte, são secos, com uma intencionalidade quase
que enumerativa, compondo um choque entre certo desdém dessa voz poética e a
presença de complexos voos no abstrato dos paradoxos, ação que, aliada ao efeito
disjuntivo mencionado, sustenta a um só tempo a operação de desconstrução dos
lugares tradicionais (mesmo modernistas) da poesia e a originalidade dessa voz poética.
É uma mirada da vida humana também original o que sustenta esta novidade de
linguagem poética, pois, como afirmado no texto crítico talvez mais clássico sobre a
autora, escrito por Anatol Rosenfeld em 1970, “na linguagem nobre e austera de sua
poesia Hilda Hilst não poderia dizer toda a gama do ente humano, tal como o concebe”9.
Estes procedimento poético e posição biográfica não se originam do nada, obviamente.
Em termos de tradição literária, valem-se nada secretamente do resultado da terapia
modernista de violentação dos píncaros da poesia clássica, fazendo esta descer ao trivial
cotidiano e ao baixo humano, o que naturalmente criou um novo lugar de consciência
para a poesia posterior. Pelo simples fato de ter as conquistas de um evento anterior
como solo, um novo evento tem de partir de outro lugar, se quiser assumir o seu tempo,
o que, nesta poesia suja, origina-se do “horizonte estético do século XX”, este que
“desenha-se enquanto retorno do recalcado, do há muito tido como superado pelo
belo”10.
Esta voz de desconstrução e insignificância conscientes, é importante que se
diga, não é a única visitada no trabalho. Aqui a, se pudermos assim chamar, eu-lírica, na
lida com o fenômeno a que se dirige, também apresenta vozes de sucumbência,
indagações pra lá de comuns, temores fantásticos, naturalidade no enfrentamento,
euforia de vitória, forte vazão ao erótico, tentativa de experenciação direta, etc A recusa
a uma concepção tradicional da morte é bastante dominante e veremos como, mas, ao
9
ROSENFELD, Anatol. Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. IN: HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo:
Perspectiva, 1970, p.9.
10
SILVA, Reginaldo Oliveira. Uma superfície de gelo ancorada no riso: a atualidade do grotesco em Hilda Hilst. Campina
Grande: Eduepb, 2013, p.28.

4
mesmo tempo, é como se a poeta não se pretendesse sobre-humana no enfrentamento
do fenômeno da morte e, por isso, sucumbisse aos fantasmas triviais e a um constante
trabalho de significação que, mesmo alçando inteligentíssimos pensamentos, não deixa
de ser ordinário. Nisso, porém, também reside uma característica da literatura
contemporânea: a capacidade de passar por várias vozes e estados radicais, como se o
Tempo passasse, inevitavelmente, pela obra, levando-a de um extremo (o céu) a outro (o
dejeto, o insignificante).
O ponto máximo da trivial experiência com a morte nestes poemas é atingido
por Hilst, a nosso ver, no aberto abatimento dos últimos quatro versos do poema IX 11. O
poema abre com perguntas ostensivas e desafiadoras à morte, desafiando-a diretamente,
chegando a chamá-la de “cavalinha”, mostrando completo desamparo em determinar
sua forma, se terá “cascos enfaixados” pra que não se ouça o seu “duro trote”, ou se a
morte virá “criança” (o ente irresponsável, pelo qual outro tem de ser responsável, e o
ente novo no mundo) e fará muito barulho quebrando “louças”. A esta ousada e
descontrolada indagação, porém e do nada, seguem os versos: “Amante/Porque te
desprezei?/Ou com ares de rei/Porque te fiz rainha?”12. Aí a culpa no ser humano mais
comum extravaza, em um sentido mais imediato. É possível também ler estes versos
como um entendimento positivo, consciente: a eu-lírica reconhecendo que o desprezo é
um sinal de amor e que foi sua escolha fazer do Outro (da morte) rainha. Mas a poeta
evidentemente arma um jogo que é o de fazer antagonizarem situações diversas e que
passam pelo retrato das impressões comuns.
A pessoa Hilda Hilst teve uma trajetória bastante forte para criar o seu papel de
escritora. Quando decide radicalizar o seu ofício, passa a não se tratar mais de uma
cidadã cosmopolita, crítica e engajada, leitora metódica e frequentadora da academia,
situada em outras artes, indo a teatros e museus, preocupada em compreender as
atitudes filosóficas de sua época. Trata-se de uma mulher (característica ainda,
infelizmente, inolvidável) que teve educação religiosa bastante forte até a adolescência,
bela e que, aos 36 anos, elegeu absorver os dilemas mais próprios de seu tempo de
maneira antagônica ao viver citadino, isolando-se em sua Casa do Sol. Esta atitude pode
ser vista como uma realocação da posição de vivência numa cidade como sendo a mais
propícia para estar a par do próprio tempo e para que, de suas manifestações, se tire

11
HILST, Hilda. op cit., p.321.
12
Ibid., p.321.

5
alimento para o espírito, deslocando-a, dada a contemporaneidade e a autonomia de
Hilst, do âmbito da necessidade para o da opção.
A autora lançou o livro em pauta aos exatos 50 anos (tendo nascido em um ano
redondo, 1930 e, portanto, acabado esta obra em outro, 1980, o que, para uma pessoa
supersticiosa, não deve ter passado nem um pouco despercebido), havendo 14 anos de
seu autoexílio. São tempos de vida e isolamento bastante favoráveis à escolha do objeto
em questão. Sua coragem de abdicar, como dizia, de seus muitos namorados e de outras
ocupações para se dedicar ao artesanato da palavra, não se restringe à atitude de se
concentrar no desenvolvimento técnico de uma habilidade treinada com exclusividade:
a escolha por ser poeta, contemporânea, experimental, polêmica, maldita, coloca a
técnica como um dos valores a serem aperfeiçoados, em meio à constante procura por
reconstrução, pathos, temas, formas. Hilda era uma artista apaixonada por seu pai, a
quem viu pouco e que também era poeta, e que, dona de alta inteligência, resolveu
cultivar-se autonomamente, longe do apego à formação tradicional-urbana, que talvez
seja preto-no-branco demais para alguém tão aberta às profundidades de cores e à
possibilidade de mistérios.
Também na trajetória de Hilda Hilst, a voz poética de Da morte. Odes mínimas não
é inédita – apesar de quase. A obra figura como, por assim dizer, o primeiro
desdobramento do pontapé da maturidade da poesia da autora, iniciado com o livro
Júbilo, memória, noviciado da paixão13, de 1974. Este livro traz a mais vasta reunião de
poemas, em número, de toda bibliografia de Hilst: são 85 poemas, divididos em 7 seções,
sendo também a obra poética imediatamente anterior à aqui focada, antecedendo-a em
6 anos. A razão da conquista desse estágio maduro, definido como o abandono de “certo
parnasianismo”, segundo Alcir Pécora14, foi, segundo o mesmo crítico, a experiência
explosiva que Hilda realizou com os outros gêneros clássicos da literatura, a prosa e o
drama. Em outras palavras, é com essa obra de 74 que a poeta começa a fazer literatura
contemporânea, deixando seus versos serem trespassados pela sujeira e pelo vazio,
abraçando a finitude e alcançando sua particular concisão.
Com sua escrita teatral e de prosa, sua maturidade literária, bem como com a
quebra de seu silêncio social, a escritora inaugurou também sua famosa atitude
polêmica, no protesto contra a baixa quantidade de atenção e leitores, fato que iria

13
HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. IN: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras,
2017. ps. 227 a 300.
14
Conforme entrevista disponível em: https://youtu.be/EH_m53oBeyM

6
permanecer intocado, ou quase, durante toda sua vida. Hilst manteve este gesto de
protesto até o fim, o que certamente acabou ajudando a trazer à sua poesia os
importantes componentes da ira, da repulsa, do esvaziamento, do sarcasmo, da
escatologia, do experimental, de uma nova aproximação ao sagrado, do aberto erotismo,
etc A escolha do tema da morte para compor o livro que é aqui analisado, portanto,
resulta de um encontro consciente e enormemente significativo. Este é o passo posterior
a Júbilo, memória, noviciado da paixão, seu primeiro grande grito poético; esta é a sagração
da maturidade da escritora; este é o enfrentamento radical, pessoal e artístico, do tema
da morte.
Através do exame de Da Morte. Odes mínimas e outros títulos da fase madura, como
o já citado Júbilo, memória, noviciado da paixão e um livro posterior e de temática parecida
como Poemas malditos, gozosos e devotos15 (de 1984), este tratando de diálogos malditos com
Deus, podemos verificar algumas características que chamam atenção mais
contundentemente na poesia da autora. São as seguintes: o labor das palavras, que,
apesar de manterem o tom dramático (isto é, o pedido por serem lidos em voz alta e
mantendo a fluência respectiva) são cuidadosamente pesadas e pensadas,
diferenciando-se da poesia que se aproxima da prosa (como por exemplo em
Drummond ou Pessoa), labor que transparece na assertividade lacônica dos versos e na
rica diversidade lexical; a presença da indagação filosófica, sempre profunda e
mostrando intimidade com veredas e paradoxos da linguagem e da razão; a tematização
do maldito, muito comum aos poetas, e que em Hilst se manifesta nos desafios lançados
à morte, a Deus, ao amor, ao convívio humano, etc, trazendo, por sua vez, em seus versos
a marca, não da exaltação lírica, mas, pelo contrário, da frieza, da resignação, do
laconismo, da podridão material, da secura e do sarcasmo; a assunção da base, a
investigação das profundezas e o questionamento do fenômeno social do feminino; a
corajosa e inteligente circunscrição de sua obra madura nos temas e desafios da poesia
conteudisticamente contemporânea, tomando o modernismo como uma espécie de
ponto de partida; a forte presença do erótico; o também forte caráter de desmistificação,
presente no esvaziamento de fontes de consolação e medidas exteriores à vida em sua
nudez.
A imaginação de Hilst é bastante vasta, fértil e, como todos os autores
imaginativos, ela parece procurar alimentar a profusão e a destilação das imagens como

15
HILST, Hilda. Poemas, malditos, gozosos e devotos. IN: HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras,
2017. ps. 405 a 425.

7
se estivesse criando o mundo a partir de si mesma, sobrevoando normas da vida comum
e afirmando que estas também dizem respeito a sonhos. Claro que, para uma leitura
pedagógica, a imaginação pode ser vista em todos os poetas. Afinal, o que seria da casa
da palavra, a poesia, sem inventividade e liberação? Agora, para um exame mais íntimo,
autores racionais, como, por exemplo, um João Cabral de Melo Neto, parecem submeter
as imagens a um rigor resoluto, ainda que vivo, atento. O inconsciente se manifesta nos
primeiros poemas, de forte apoio no surrealismo, de João Cabral, mas jamais você se
deparará com uma assertiva errante, de forma solta, de caráter chulo. Até quando diz
fezes, João Cabral diz fezes, não merda. A postura contrária, a de ser um sujeito
puramente imaginativo, à parte até da escrita, sem trabalho material ou ao menos
espontaneidade e laconismo, já não faz nenhum sentido para o universo poético. Em
Hilst, no entanto, a imaginação (o uso da imaginação, vamos dizer assim) pode ser
apontada como um dos destaques de seus versos. Por mais que razão e irrazão,
assertividade e loucura, pareçam brigar sem trégua nestes poemas, ainda assim, se
pudermos apontar para a força dominante dessa briga, a imaginação poderia ser a mais
forte candidata. Nos poemas de Hilst há uma premeditação que não é nem racional,
nem, grosso modo, combativa, gratuita. É a premeditação do imaginário: o encontro, por
acaso, com o pensamento carne. O lacônico de seus poemas brota daí. O viril. A incisão,
mais que mordaz, eficaz, abrangendo a metamorfose das coisas. Ou obedecendo a
definição de João Barrento, citando Herberto Helder, “o poema é assombro (...)para me
mostrar que há apenas uma lei, a da metamorfose, ‘abrangendo tanto o mundo das
coisas como o da imaginação.’ ”16
Como levantamento de hipóteses, nestes poemas a imaginação pode estar
presente: nos motes inventivos de vários dos poemas (no achamento de asserções como
“Perderás de mim/Todas as horas//Porque só me tomarás/A uma determinada hora” do
poema VII17 ou “Onde nasceste, morte?” do XXV18); nas repetições, associações e
quebras francamente apoiadas no onírico; na maneira surpreendente como indagações e
associações metafísicas surgem aqui em casamento com a poesia19; e na forma
puramente plástica com que vários poemas se apropriam das palavras, fazendo-nos os

16
BARRENTO, João. A geografia imaterial por vir. IN: INIMIGO RUMOR 11. Rio de Janeiro: 7 letras, 2001, nº 11,
p.35.
17
HILST, Hilda. op.cit., p. 319.
18
Ibid, p. 331.
19
Como no poema XXX: “Juntas. Tu e eu/Duas adagas/Cortando o mesmo céu./Dois cascos/Sofrendo as
águas.//E as mesmas perguntas.//Juntas. Duas naves/Números/Dois rumos/À procura de um deus.//E as mesmas
perguntas/No sempre/No pasmoso instante.//Ah, duas gargantas/Dois gritos/O mesmo urro/De vida,
morte.//Dois cortes./Duas façanhas./E uma só pessoa.” Ibid, p. 335.

8
remeter à pintura, de artistas como Chagall ou Kandinsky (como em “Cavalo, búfalo,
cavalinha” e “O coruscante vermelho do teu couro” de XVI20 ou “Te vi/Atravessando as
muradas/Montada no teu cavalo/Acrobata de guarda-sóis” de XVIII21).
A baixa quantidade de leitores e estudos que Hilst teve em vida, apesar de suas
batalhas e mesmo com um já grande quadro de mudança nas últimas duas décadas,
parece ser a razão principal para que paire ainda uma aura de carência de justeza
principalmente no exame de sua obra poética. Isso se confunde, é claro, com a baixa
atenção que nossa cultura e país dão à literatura. Tem-se aqui a impressão de que um
grande risco que correm os atuais trabalhos acadêmicos e de divulgação dirigidos à
produção da autora é caírem no velho fetichismo de autor, que tanto ataca literatura e
outras artes. Aqui esse fetichismo se manifesta, por exemplo, além de no usual
romantismo da figura do escritor, na sobredeterminação da condição feminina de Hilst.
Longe de querermos cair, com esta crítica, no estereótipo machista, o caso aqui é que a
insistência nas condições da autora, em detrimento da análise crítica de sua obra, acaba
por, simplesmente, deixar de entrar nesta, fazendo com que palavras de convite à
experiência da literatura circulem restritas numa espécie de eterna propedêutica ou de
mero uso para fins teóricos ou, o que é pior, de colagem teórico-burocrática.
Em textos sobre Hilst, os clichês em geral gravitam em torno de escolher uma
das características seguintes para compor colagens entre conceitos teóricos e trechos da
própria autora: a condição feminina; a presença do erótico; a vazão para o experimental
e para o fluxo de consciência destacados em sua prosa; o tema do divino; a poeta como
maldita ou contraventora; etc Leem-se versos como mera ocorrência de temas (num
registro que mais parece manifestar um recalque jurídico: afirmação 
responsabilidade), como se ficássemos, nós, estudioso, texto crítico e leitores, sempre
de fora da obra. A elipse, certamente uma das características mais caras à poesia,
resulta, sob este viés, esquecida, pois tanto paira sobre a poesia uma saudável
impossibilidade de determinação objetiva, quanto para a crítica, ingênua, uma sede
excessiva de sobredeterminação.
Estas reflexões são interessantes aqui, pois se relacionam com a principal
expectativa da humanidade em geral, expectativa esta bastante desafogada na relação
com a palavra e com a arte: a de permanência. Num livro de poemas cujo assunto
principal é a morte, permeado por remissões ao vazio e ao insignificante e ditado por

20
Ibid, p. 326.
21
Ibid, p. 327.

9
uma voz poética seca, resignada, obviamente o próprio lugar da literatura, como
manifestação sujeita ao fim, entra em jogo. Esta assunção da finitude, no limite, gera a
consequência de um efeito para as imagens poéticas aqui presentes: uma vez
submetidas ao tempo, as imagens precisam passar por metamorfoses. Estas não são,
para a literatura contemporânea, mera atitude temática por parte dos artistas: elas se
misturam a todas as etapas do fazer poético, na fuga de quaisquer determinações
estanques. Formas e deformidades estão a favor do poeta. Como diz Maiakóvski, citado
por Boris Schnaiderman: ‘“Eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne
poeta e escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Chama-se poeta justamente
o homem que cria estas regras poéticas.”’22
Em Da morte. Odes mínimas é a morte que, sendo a única interlocutora
determinável do livro, é também, em si, impossível de se determinar, exigindo que se
crie sempre um novo discurso, a partir do chão. Um exemplo dessa indeterminação
metamorfósica é a estrofe em que a morte aparece como “Afilada/ Ferindo como as
estacas/ Ou dulcíssima lambendo”23. Aqui ela aparece como tornada fina em matéria
finalmente visível (em “Afilada”), posta nesta palavra isolada e incomum de maneira já
misteriosa e indeterminada (uma palavra sozinha que não ambienta cenário algum), e
que, por isso, já carrega a força do pleno fazer poético. Depois a morte atinge
violentamente, numa forma absolutamente diversa, ampla, como as estacas, que aqui
não batem, ferem. E, por fim, em nova e derradeira metáfora sensível, lambendo
docemente, a morte ofereceria um consolo, mas depois das imagens antecedentes, este
verso ganha muito mais um sabor da crueldade. Os estados não estão, portanto, se
sucedendo com vistas a sanar uma dúvida científica que procure o real estado da morte.
A metamorfose supõe contradição. Aqui, pra nós, isso quer dizer que entre os comuns
temas destacados na poesia de Hilst (como o erotismo, a relação com o divino e a
relação com a feminilidade), existem outros que não deixam de ser presentes, e só por
decorrência de um excesso de objetificação da literatura não são ressaltados: para o polo
do erotismo, em Hilst, existe o da solidão; para o do divino, existe o do cotidiano; para o
da feminilidade, o das figuras masculinas.
Nem tudo são tragédias (anti)literárias, entretanto, ou ao menos não tão
pontuais ao caso Hilda ou Brasil. O percurso que Hilst e outros poetas mundo afora têm

22 SCHNAIDERMAN, Boris. Maiakóvski: Evolução e unidade. IN: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo:
editora Perspectiva, 2002, p.15.
23
HILST, Hilda. op.cit., p.318

10
de percorrer é o da dificuldade em relação à tarefa histórica que, segundo Giorgio
Agamben, se impõe na relação entre poesia e vida e na exploração de um espaço
entulhado que obscureceu a experiência poética pela dominação desta por outros
saberes:

É nessa área acidentada que primeiro a teologia, e, mais tarde, a psicologia e a


biologia criaram seu canteiro de obras. Quando a crítica literária e a estética
enfim chegaram a formular, em relação à obra de arte, o problema da relação
entre vivido e poetado, o terreno sobre o qual tal problema poderia ter sido
corretamente colocado já estava coberto e para sempre alterado.24

Segundo Barrento novamente, a poesia é a “exposição ingênua ou quase obscena do Eu


na destituição da subjetividade em favor do discurso”25. A poesia de Hilst pode ser vista
como a exposição obscena de um eu que visa rir e destruir a concepção científico-
objetivista das subjetividades, encarnadas na forma de objetos determináveis para o
discurso e que visam a grandeza e a definitividade, afastando-nos da meditação acerca
de nossas “partes baixas”. Até mesmo na politização do discurso reside uma absoluta
resistência a um fator que é necessidade para a experiência artística: encara-se todo o
discurso poético como um discurso direto (sem elipses), em favor de, e que, portanto,
deve se armar de grandiloquência, e não como uma experiência em si, e que, só assim,
pode passar pelo baixo. A poesia, pelo contrário, pode surgir da atenção ao objeto
insignificante e mesmo ao esvaziamento do significado.
Levado ao limite, este raciocínio implica numa dissolução de uma subjetividade
determinável na poesia, o que, na obra em análise, resulta bastante interessante, e, em
alguns momentos, evidente: aproveitando de seu espaço (culturalmente) residual
feminino a poeta mistura sua voz à da morte (que também tem espaço residual, haja
vista ser evitada tanto pelo senso comum quanto pela poesia do eterno ou do píncaro),
obscurecendo completamente “quem” está a falar: é um eu finito ou a finitude
desvinculada da subjetividade? Um belo exemplo disso é o poema XXII que abre com os
versos “Não me procures ali/Onde os vivos visitam/Os chamados mortos” e termina com
“Passos da vida. Procura-me ali./Viva.”26 Se esta é ou pode ser uma voz de morte a operação

24 AGAMBEN, Giorgio. Categorias italianas. Tradução: Carlos Eduardo Schmidt Capela e Vinícius Nicastro
Honesko. Florianópolis: editora da UFSC, 2014, p.103.
25 BARRENTO, João. A geografia imaterial por vir. IN: INIMIGO RUMOR 11. Rio de Janeiro: 7 letras, 2002, nº
11.,p.35.
26 HILST, Hilda. op.cit., p.330.

11
destes poemas ganha enormemente em abertura e complexidade: a própria morte
resulta como fenômeno que deve ser tratado fora do binômio/morte vida, ou
presença/ausência, estando presente e sendo vida. No poema XII, os versos “Por que não
me esqueces/ Velhíssima-Pequenina?”27, também podem ser vistos como uma fala da
morte para a mulher. Tal inversão torna-se bela inclusive para o verso final desta estrofe
que, referindo-se a “Menina-Morte”, também pode apontar para a parte humana da
interlocução, na obsessão humana pelo assunto desde um tempo impossível de
determinar no passado.
A consciência de Hilda destas ambiguidades e esvaziamentos, é claro, é o que é
realmente importante, sob a pena de colocarmos verdades que não estejam na obra ou
propormos exercícios extravagantes. Trazemos aqui, para isso, uma lista dos
substantivos femininos que nela aparecem e uma sua classificação. Como mencionado
anteriormente, tais palavras aparecem como um recurso dentro da obra. A morte
aparece aqui nomeada, rebatizada ou remetida a objetos insignificantes, estados,
lugares, entidades, na avassaladora maior parte femininos. Aqui os classificamos,
segundo estes citados modos, não repetindo substantivos que aparecem mais de uma
vez e colocando alguns em mais de uma lista quando permitem mais de uma
interpretação:

Objetos/matéria
Teias Flautas Calha Candeia Palma Palha Pena Terra Carne Atadura Ferraduras
Escadas Linhas Semente Estacas Dracma Crista Chama Boca Casa Cal Cara Telhas
Costas Louças Sandálias de palha Esteira Cereja Cordas Cancela Coisas Quinas
Urnas Medula Poça d’água Tina Pele de cobra Casca Pupila Pontes Poeira Gaiolas
Grades Máscaras Faca Crina Patas Farpas Haste Cornadura Conchas Corta-capim
Corta-águas Pedra Cabeça Amêndoas Rosas negras Flor Estopa Mortalha Acácias
Favas Adagas Naves Gargantas Neve Paliçada Vidraças Mandala Garra Arca Vagas
Couraça

Espirituais e psicológicos
Insana Nula Hora Pena Carne Posse Sorte Coitadez Linhas Contração Palavra
Ilusões Voz Cantiga Poesia Vida Velhíssima-pequenina Menina-morte Rede de

27
Ibid., p.323.

12
avenças Soberba Pontes Máscaras Funduras Correnteza Ideia Acrobata Fonte
Palavra viva Ventura Morte-Ventura Canções Luz Perguntas Façanhas Alquimia
Mágoa Garra Confissões Escrita Funduras

Formas/estados
Fulva Linhas Ferrugem Tranças Funduras Correnteza Aguadas Entrepausa Nuança
Crueza Púrpura Altura Fantasia Irmã Pequenina Cores Subida Seca Noite Tardes
Madrugada Funduras

Lugares/bichos
Corça Praia Fêmeas Rosa mordente Planície Olaria Águas Cavalinha Montanha
Colina Andorinha Fonte Praças Duna Subida

Entidades
Mulheres Fêmeas Terra Criança Rainha Amiga Noite Irmã Tardes Madrugada

Como se vê, os substantivos que se referem a objetos, a maior parte humildes, ou


à matéria, também desprovidos de pompa, são numericamente muito superiores a
quaisquer outros. Nisso se manifesta o que aqui chamamos de disjunção. Ao fazer as
remissões de tentativa de abarcar o fenômeno da morte a objetualidades irrisórias, ora
listadas de maneira quase mesmerizante, e fazendo com que a própria intensidade dos
poemas seja permeada por um permanecer ao rés do chão, frustrante da expectativa de
elevação poética, Hilda faz o artesanato das palavras, ao qual se abandona, dizer a morte
a partir de um novo mundo, o mundo de um ‘“acordo discordante’”28. No conhecimento
do ser da poesia e na entrega da autora há também uma completa superação da
possibilidade de se estar a usar a poesia para dizer (outro) algo, na atitude que torna o
lugar poético mero suporte para o fetiche de ser maldito ou brincar com normas (ou o
tédio). Nisto reside, com Deleuze, uma crítica à identidade que, radical, torna a razão
disjunta, ou seja, não conforme a si. Com isso,

No exercício superior, ao comunicar a uma outra faculdade a violência


que a leva a seu limite próprio – a seu máximo de potência ou limiar de

28
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 301.

13
intensidade – e a coloca em presença de sua diferença e de sua
divergência com todas as outras, cada faculdade produz um acordo
discordante, uma discordância acordante que exclui o privilégio da
identidade. No exercício superior ou transcendente das faculdades, é a
discórdia que implica um acordo, é a diferença que articula ou reúne.29

Há diversos matizes sensíveis que atravessam os poemas aqui tematizados. Sua


disjunção se mostra em sintonia com a intenção da obra contemporânea de erguer não
um constructo, pedra a pedra, enfeite a enfeite, para atingir o ápice do sentido e da força
artística. Pelo contrário, através do abraço ao paradoxo filosófico, da ironia, da fala
coloquial e de todas as menções ao baixo, o que se sucede é uma nova abertura ao lugar
de possibilidade do poético.
No que toca à sobredeterminação da pessoa do autor, Edmund Wilson encontra,
longe no passado literário, um possível rastro para a genealogia da ruptura desta
concepção: “o estilo do século XVII (...) era algo de muito mais pessoal: servia ao autor
como um terno de roupa e se ajusta aos contornos naturais de seu temperamento e de
sua mente; o tempo todo a gente se dá conta de que há um homem dentro dele”
enquanto que, na arte que começa a se desenhar no século XX, destacada por Wilson
em autores como T.S. Eliot e Bernard Shaw, “o estilo parece visar ao efeito de um
instrumento inflexível e impessoal, especialmente ideado para preencher funções
especiais”30. Aqui começa o procedimento de esvaziamento da pessoalização, da
grandeza e mesmo da crítica à identidade que tão chão será para a arte contemporânea.
A própria palavra disjunta aparece num dos poemas da obra em análise:
XIV31

Porque é feita de pergunta


De poeira

Articulada, coesa
Persigo tua cara e carne
Imatéria.

Porque é disjunta
Rompida
Geometral se faz dupla

29
Ibid., p.301.
30
WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Tradução: José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.69.
31
HILST, Hilda. op.cit., p.324.

14
Persigo tua cara e carne
Resoluta.

Porque finge que franqueia


Vestíbulo, espaço e casa
Se sobrepondo de cascas
Gaiolas, grades
Máscara tripla
Persigo tua cara e carne.

Comigo serrote e faca.

Este poema mostra-se quase como um comentário à obra como um todo. Os


versos trazem mais uma vez o jogo com o paradoxo das formas, mas de maneira
ostensiva. Neles se persegue algo que é feito simultaneamente de matérias díspares
como pergunta + poeira + articulação + coesão + cara + carne + imatéria, etc A
articulação e a coesão atribuídas a algo que é poeira, resulta paradoxal, da mesma forma,
ou ainda pior (por já termos passado por um enigma), quando este mesmo algo que se
persegue se apresenta como pergunta, que, como se não bastasse, também é feita de cara e
carne e, ao mesmo tempo, imatéria. As formas do objeto perseguido vão se sobrepondo,
ora aparecendo como feito de geometria dupla (aí em evidente disjunção), ora de
máscara tripla. Aqui, para chegar a ele, temos que esbarrar na sobreposição de cascas,
gaiolas e grades, três objetos ínfimos que compõem a mencionada máscara. O objeto
procurado é a morte, mas também pode ser visto como a própria identidade da mulher-
poeta que, disjunta, tal como a morte, nunca se deixa determinar. Se procuramos essa
determinação, na morte caímos, entulhados entre cascas, gaiolas e grades – que podem
figurar como a única forma de morte realmente encontrável: a do entulhamento, da
confusão. O verso final, “Comigo serrote e faca” a princípio soa redundante e de um
enfrentamento exageradamente ostensivo. Mas o efeito pretendido parece ser este
mesmo, mostrando o quanto esta voz poética pode abraçar o ínfimo e suas
redundâncias, aqui significativas. Além disso, serrote reme a obra, mundo, e faca a
sobrevivência, casa, no que há um mínimo antagonismo. Também se um eu, para
enfrentar o truncado e, na verdade, espiritual cenário descrito anteriormente só tem
estas duas armas, ínfimas e redundantes, ele é aqui figurado na desproteção que
sentimos diante da morte.

15
O poema seguinte, XV32, traz a segunda aparição da palavra crista, já
mencionada aqui. Com “Como se tu coubesses/ Na crista/ No topo/ No anverso do
osso”, a ideia de paradoxo é reafirmada, aqui parecendo levar em conta a imagem do
senso comum pertinente à morte. Parece também haver um ataque à essa imagem: como
pode a morte ser tão grande e importante e, ao mesmo tempo, caber na crista, no topo?
O que há debaixo dela, para a sustentar? Como ela nunca poderia estar mais escondida
do que à mostra, ou seja, como está sempre premente, tão imensa, dentro do escopo do
nosso humano tamanho? Nossa fetichização da morte aqui é evidenciada e com rica
poesia. No último verso, a palavra anverso (que quer dizer fronte, cara) é inusual, e ecoa a
própria palavra verso, como se fosse seu contrário. Realmente o anverso do osso, soa como
o seco do mais óbvio, a procura, em tudo redundante, pelo rosto do claro, a
compreensão última de algo incompreensível. Crista, aqui, remete a crista da onda,
muito mais do que à saliência presente na cabeça das aves.
A crista da onda é o ápice, é, em linguagem cotidiana, o estar em pleno destaque,
mas aqui vai ganhando contornos diferentes, desde a interdição inicial (“Como se tu
coubesses”), onde ganha movimento, passando pela estrofe seguinte, “Tento prender teu
corpo/ Tua montanha, teu reverso”33, onde a forma da morte, em uma tentativa de
determinação, é completamente abstraída (imaginava-se, de início, uma montanha no
topo? Em que avesso resta o reverso de uma montanha?), mostrando que a procura por
paradoxos leva a imaginarmos lugares impossíveis, verdadeiros não lugares, ou
instâncias só atingidas pela palavra, efeito que é repetido, como em outros poemas, na
estrofe seguinte, “Como se a boca buscasse/ Seus avessos”. No fim da estrofe posterior a
poeta nos leva a entender qual a figuração correta para relacionar morte à crista: “E
sempre te assemelhas/ A tudo que desliza, tempo,/ Correnteza.” A morte não seria o
ápice, não devendo nele ser unicamente buscada ou temida pela grandeza, mas o
próprio movimento de ondulações que permitem cristas invariáveis, na indiferença do
mar, no seu mecânico.
Da morte. Odes mínimas significa a maturidade de uma grande autora da literatura
brasileira contemporânea e também, se pudermos apresentar uma sua conquista
temática, um ato de coragem artística, ao enfrentar um dos temas mais caros à arte com
ousadia e solidão, dentro de uma mirada que coloca a própria arte e o lugar do poético
em questão. É possível ver a poesia, aqui, sendo na sua própria finitude, na morte.

32
HILST, Hilda. ibid, p.325.
33
HILST, Hilda. ibid, p.325

16
Esvazia-se este tema, de seus infinitos temores, e, com isto, também o poema de suas
infinitas precauções. A liberdade artística, em suas pulsões sempre almejantes de poder
ir a todos os lugares, é o cantado e o oferecido na poesia hilstiana em seu máximo.

17
Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Categorias italianas. Tradução: Carlos Eduardo Schmidt Capela e


Vinícius Nicastro Honesko. Florianópolis: editora da UFSC, 2014.
BARRENTO, João. A geografia imaterial por vir. IN: INIMIGO RUMOR 11. Rio de Janeiro:
7 letras, 2002, nº 11.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Tradução: Ivo Storniolo e Euclides
Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1995.
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2017.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
ROSENFELD, Anatol. Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga. IN: HILST, Hilda. Fluxo-
floema. São Paulo: Perspectiva, 1970.
SCHNAIDERMAN, Boris. Maiakóvski: Evolução e unidade. IN: MAIAKÓVSKI, Vladimir.
Poemas. São Paulo: editora Perspectiva, 2002.
SILVA, Reginaldo Oliveira. Uma superfície de gelo ancorada no riso: a atualidade do grotesco em
Hilda Hilst.Campina Grande: Eduepb, 2013.
WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Tradução: José Paulo Paes. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.

18
Anexo

Da morte. Odes mínimas

Hilda Hilst

Te batizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis:
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não?

II

Demora-te sobre minha hora.


Antes de me tomar, demora.
Que tu me percorras cuidadosa, etérea
Que eu te conheça lícita, terrena

Duas fortes mulheres


Na sua dura hora.

Que me tomes sem pena


Mas voluptuosa, eterna
Como as fêmeas da Terra.

E a ti, conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.

19
III

Pertencente te carrego:
Dorso mutante, morte.
Há milênios te sei
E nunca te conheço.
Nós, consortes do tempo
Amada morte
Beijo-te o flanco
Os dentes
Caminho candente a tua sorte
A minha. Te cavalgo. Tento.

IV

Vinda do fundo, luzindo


Ou atadura, escondendo,
Vindo escura
Ou pegajosa lambendo
Vinda do alto
Ou das ferraduras
Memoriosa se dizendo
Calada ou nova
Vinda da coitadez
Ou régia numas escadas
Subindo

Amada
Torpe
Esquiva

Bem vinda.

Túrgida-mínima
Como virás, morte minha?

Intrincada. Nos nós.


Num passadiço de linhas.
Como virás?

Nos caracóis, na semente


Em sépia, em rosa mordente
Como te emoldurar?

Afilada
Ferindo como as estacas
Ou dulcíssima lambendo

Como me tomarás?

20
VI

Ferrugem esboçada

Perfil sem dracma


Crista pontuda
No timbre liso

Um oco insuspeitado
Na planície
Um cisco, um nada
À tona das águas

Brevíssima contração:
Te reconheço, amada.

VII

Perderás de mim
Todas as horas

Porque só me tomarás
A uma determinada hora.

E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez.
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos

Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos

A boca dos sentimentos

E fui tomada, ferida


De malassombros, de gozo

Morte, imagina-te.

21
VIII

Lenho, olaria, constróis


Tua casa no meu quintal.
E desde sempre te espio

Linhos e cal tua cara


Lenta tua casa

Nova crescendo agora


Nos meus cinquenta.
E madeirames e telhas
E escadas, tuas rijezas

Tuas costas altas

Vezenquando te volteias
Para que eu não me esqueça
Do instante cego
Quando me pedirás companhia.
Eu não me esqueço.
Te espio de hora em hora

Casa e começo, tua cara,


A qualquer tempo te reconheço.

IX

Os cascos enfaixados
Para que eu não ouça
Teu duro trote.
É assim, cavalinha,
Que me virás buscar?
Ou porque te pensei
Severa e silenciosa
Virás criança
Num estilhaço de louças?
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?

22
X

De sandálias de palha
Pães pretos e esteira

Um dia, para recebê-la.

De sutis seduções
A palavra de ouro, de cereja

Me calo para recebê-la.

Depois me deito
Entre cordas e estanhos
E sonho pátios, guetos

Ínfimos sapatos
Sobre as ilusões.

E então te abraço.
Ombro, cancela
Me fecho para recebê-la.

XI

Levarás contigo
Meus olhos tão velhos?
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?

Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces

Coisas tão antigas.

Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-o comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.

E minha voz e cantiga?


Meu verso, meu dom
De poesia, sortilégio, vida?
Ah, leva-os contigo.
Por mim.

23
XII

Por que não me esqueces


Velhíssima-Pequenina?
Nas escadas, nas quinas
Trancada nos lacres
No ocre das urnas
Por que não me esquecesses
Menina-morte?

Sempre à minha procura.


Tua rede de avenças
Teu crivo, coágulo
Tuas tranças negras

Por que não viajas


No líquido cobre
Da tua espessura?

E por que soberba


Se te procuro
Te fechas?

XIII

Funda, no mais profundo do osso.


Fina, na tua medula
No teu centro-ovo. Rasa, poça d’água
Tina. Longa, pele de cobra, casca.
Clara numas verticais, num vazado sol
Da tua pupila. Paciente, colada às pontes
Onde devo passar atada aos pertences da vida.
Em tudo és e estás.

24
XIV

Porque é feita de pergunta


De poeira

Articulada, coesa
Persigo tua cara e carne
Imatéria.

Porque é disjunta
Rompida
Geometral se faz dupla
Persigo tua cara e carne
Resoluta.

Porque finge que franqueia


Vestíbulo, espaço e casa
Se sobrepondo de cascas
Gaiolas, grades
Máscara tripla
Persigo tua cara e carne.

Comigo serrote e faca.

XV

Como se tu coubesses
Na crista
No topo
No anverso do osso

Tento prender teu corpo


Tua montanha, teu reverso.

Como se a boca buscasse


Seus avessos
Assim te busco
Torsão de todas as funduras.

Persecutória te sigo
Amarras, músculo.
E sempre te assemelhas
A tudo que desliza, tempo,
Correnteza.

Na minha boca. Nos ocos.


No chanfrado nariz.
Rio abaixo deslizas, limo
Toco, em direção a mim.

25
XVI

Cavalo, búfalo, cavalinha


Te amo, amiga, morte minha,
Se te aproximas, salto
Como quem quer e não quer
E não ousa
Tocar teu pelo, o ouro

O coruscante vermelho do teu couro


Como quem não quer.

XVII

Rasteja, voa, passeia


Com toda lenteza
Sobre a minha Ideia.

Em espiral
Oblonga, retilínea
Te recrio terra
Sobre a minha Ideia.

(Caracol de sumos
Andorinha
Crina).

Vagueia sobre a minha Ideia.


E não sei se flui

Poreja

Única, primeira
Num mosaico de teias.

XVIII

Te vi
Atravessando as muradas
Montada no teu cavalo
Acrobata de guarda-sóis.
(Eu era noite e não via.)
Te vi levíssima
Descendo numas aguadas
Lenta descendo como os anzóis.
(Eu era peixe e sabia.)
Te vi semente de som
E te tomei. Patas, farpas
Jato de sol, açoite
Borbulho nas águas frias.
Tu eras morte.

26
XIX

Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro
Te tomaria
Úmida, tênue

E então descansarias.

Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono,

Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.

Se me tocares
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens

Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.

XX

Teu nome é Nada.


Um sonhar o Universo
No pensamento do homem:
Diante do eterno, nada.

Morte, teu nome.


Um quase chegar perto.
Um pouco mais (me dizem)
E terias o Todo no teu gesto.
Um pouco mais, tu O terias visto.

Teu nome é Nada.


Haste, pata. Sem ponta, sem ronda.
Um pensar duas palavras diante da Graça:
Terias tido.

27
XXI

Por que vens ao meio-dia


De cornadura galopando conchas
De cornetim à frente da minha casa
Corta-capim, corta-águas?
Descansa. Faz entrepausa.
Colhe matiz, faz nuança.
Porque até no que não vejo
Te vejo. Corpo de ar e marfim
Boca, palato

Sempre colada, sempre colada.

XXII

Não me procures ali


Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho

Pedra, semente, sal


Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.

28
XXIII

Porque conheço dos humanos


Cara, Crueza,
Te batizo Ventura
Rosto de ninguém
Morte-Ventura
Quando é que vem?

Porque viver na Terra


É sangrar sem conhecer
Te batizo Prisma, Púrpura
Rosto de ninguém
Unguento
Duna
Quando é que vem?

Porque o corpo
É tão mais vivo quando morto
Te batizo Riso
Rosto de ninguém
Sonido
Altura
Quando é que vem?

XXIV

No meio-dia te penso.
Íntima te pretendo.
Incendiada de mim
Contigo morrendo
Te sei lustro marfim e sopro.
E te aspiro, te cubro de sussurros
Me colo extensa sobre tua cabeça
Morte, te tomo.

E num segundo
Ouvindo novamente os sons da vida
Nomes, latidos, passos
Morte, te esqueço.
E intensa me retomo sob o sol.

29
XXV

Onde nasceste, morte?


Que cores, ocaso e monte?
E os pulsos que te arrancaram
Do mais escuro. De carne?
De amêndoas negras? Havia águas?
Vagidos, choros,
Empelicada como nasce a vida?
Se querias, tocavas?
E sendo criança
Não tocavas em tudo
E o instante se fazia
Insipidez e nada?

E velhíssima agora
Conhecendo todos os tatos
Agonia, terror e pasmo

Saciada

Por que não partes?

XXVI

Durante o dia constrói


Seu muro de girassóis.
(Sei que pretende disfarce
E fantasia.)
Durante a noite,
Fria de águas
Molhada de rosas negras
Me espia.
Que queres, morte,
Vestida de flor e fonte?

– Olhar a vida.

30
XXVII

Me cobrirão de estopa
Junco, palha,
Farão de minhas canções
Um oco, anônima mortalha
E eu continuarei buscando
O frêmito da palavra.

E continuarei
Ainda que os teus passos
De cobalto
Estrôncio
Patas hirtas
Devam me preceder.

Em alguma parte
Monte, serrado, vastidão
E Nada,
Eu estarei ali
Com a minha canção de sal.

XXVIII

Ah, negra cavalinha


Flanco de acácias
Dobra-te para a montaria
Porque me sei pesada
De perguntas, negras favas
Entupindo-me a boca
E no bojo um todo averso
Uns adversos de nojo:
Que rumos? Que calmarias?
Me levas para qual desgosto?
Há luz? Há um deus que me espia?
Vou vê-lo agora montada alma
Sobre as tuas patas? Tem rosto?
Dobra-te mansa
Porque me sei pesada. De vida.
De fundura de poço. E porque
Um poeta não sabe montar a morte
Ainda que seja a minha:
Flanco de acácias.
Negra cavalinha.

31
XXIX

Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó

Com a boca viva provei


Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.

XXX

Juntas. Tu e eu
Duas adagas
Cortando o mesmo céu.
Dois cascos
Sofrendo as águas.

E as mesmas perguntas.

Juntas. Duas naves


Números
Dois rumos
À procura de um deus.

E as mesmas perguntas
No sempre
No pasmoso instante.

Ah, duas gargantas


Dois gritos
O mesmo urro
De vida, morte.

Dois cortes.
Duas façanhas.
E uma só pessoa.

32
XXXI

Nos veremos de frente:


As gargantas vítreas
Plexo e ventre.
De todos os lados:
Dorso de nós duas
Flanco e braços.
As grandes palavras
Trancadas e vivas
No meu peito baço.

XXXII

Por que me fiz poeta?


Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
de tudo o que vejo.

No mais que perfeito


No veio, no gozo
Colada entre mim e o outro.
No fosso
No nó de um ínfimo laço
No hausto
No fogo, na minha hora fria.

Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana ideia de um deus que não conheço,
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.

33
XXXIII

Esboçava-se.
Escorria líquido.
Era vidro.

Amava torpe.
Mesquinho te amava.
Era um vivo.

Luzente ofuscava
De vermes e asas
Vivo, silente,
Alquimia de fogo:
De pedra fria
A gozo.

Dirias morto?

XXXIV

Tão escuramente caminha


À beira-lágrima
Dentro do meu ser

Que já não sei


De onde me veio ou vinha
Vontade minha de te conhecer.

Hoje tão escuramente


Passeias, tardas, te arrastas
Num vasto alheamento
Dentro do meu ser

Que já não sei


Se te pensar foi gesto
Para inda mais ferir
Minha própria mágoa.

Por que, pergunto, estando viva


Devo eu morrer?
Por que, se és morte,
Deves me perseguir?

Aquieta-te, afunda-te
Morre, pequenina,
Escuramente
Dentro do meu sofrer

34
XXXV

Ah, se eu soubesse de nuvens


Como te sei no hoje, morte minha,
Diria que me perseguem
Para escurecer
Essas caras de neve.
Diria que se detêm
Sobre a minha casa
Para ensombrar a alma. A minha.
E espalhadas
Diria que se avizinha
O cerco. A paliçada.
Que estou muda no além
Num sofrido perfil.
Nítida. Sozinha.

Se eu soubesse de nuvens
Como te sei
Não diria o que disse
Nem faria o poema. Olhava apenas.

XXXVI

Um peixe lilás e malva


Num claro cubo
De sons e água.

Assim te mostrarás.

Um perfil curvo.
Soma de asas.
Um quase escuro
Sobre as vidraças.

E fios e linhas
Trançando máscaras
Para a minha cara:
Rubra mandala
Para um perfil.

Então ajusto
Para o mergulho
Cores e máscara.
Sou eu. Um peixe rubro

E um outro lilás e malva.

35
XXVII
Não compreendo. Apenas
Tento
Somar meu corpo
A teu corpo negro
Minhas águas
A teu remo
E cascos, os meus,
E luzes de um dia
E ânus, regaço
Somar
A teu matiz cobreado
Tua garra fria.

Não compreendo. Apenas


Tento
(Suor, subida, cascalho
Seca)
Somar teu corpo
A meu pensamento.

XXXVIII

No coração, no olhar

Quando se tocarem
Pela primeira vez
Aqueles que se amam

Eu estarei

Nas grandes luas


Nas tardes
Nas pequenas canções
Nos livros

Eu e minha viva morte


Estaremos ali
Pela primeira vez.

Dirão:
Um poeta e sua morte
Estão vivos e unidos
No mundo dos homens.

Na madrugada
Pela primeira vez

Em amor

Tocada.

36
XXXIX

Uns barcos bordados


No último vestido
Para que venham comigo
As confissões, o riso
Quietude e paixão
De meus amigos.

Porque guardei palavras


Numa grande arca
E as levarei comigo

Peço uns barcos bordados


No último vestido
E vagas
Finas, desenhadas
Manso friso

Como as crianças desenham


Em azul as águas.

Uns barcos
Para a minha volta à Terra:
Este duro exercício
Para o meu espírito.

XL

Lego-te os dentes.
Em ouro, esmalte e marfim.

Entre sarrafos e palha


O baço dos meus ossos.

Procura na tua balança


Minha couraça. Meu bandolim.
Escrita e torso.

Pesa-me a mim. Minhas funduras


E o gume do meu desgosto.

Procura, na minha hora,


Entre sarrafos e palha

O que restou de mim


À tua procura.

37

Você também pode gostar