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vivemos livres
numa prisão
colaboração
dulce bouça
pedro strechet
caminho
nosso mundo
vivemos livres
numa prisão
autor: daniel sampaio
capa: design gráfico de
josé serrão
c editorial caminho,
sa, lisboa -- 1988
tiragem: 15 000 exemplares
impressão e acabamento:
tipografia lousanense,
l.da
data de impressão: março
de 1998
depósito legal
n.o120 781/98
isbn 972-21-1181-7
www.editorial-caminho.pt
vivemos livres
numa prisão
o autor
daniel sampaio é médico e professor associado com agregação da
faculdade de medicina de lisboa, onde ensina psicopatologia e
psiquiatria.
especialista de psiquiatria do hospital de santa maria, em
lisboa, coordena no serviço de psiquiatria o núcleo de estudos
do suicídio.
foi um dos introdutores da terapia familiar em portugal e
fundador da sociedade portuguesa de terapia familiar.
dedica-se particularmente ao trabalho com adolescentes, pais e
professores.
tem os seguintes títulos publicados:
colaboraǦo
montesquieu,
o espírito das leis
1
escola:
os cavalos de tróia
escola:
intervir face a um problema
(a) excepÇões
soube hoje, meu filho, que houve uma reunião dos professores
da tua turma para discutirem os problemas dos alunos. a tua
mãe foi chamada à escola e insistem na ideia do psicólogo.
parece que esteve lá um médico que teve um programa na
televisão, que vocês viam pela noite fora ou aos bocados
depois de o terem gravado. sabes que a tua avó deu aulas
muitos anos e por isso tenho a certeza de que estás triste por
causa da rapariga te ter deixado, ou então não estás a estudar
uma coisa que minimamente te inte-
resse. no meu tempo e mesmo na época da tua mãe, era mais
fácil a opção entre letras e ciências e acho que o teu
problema começou aí. desde há três anos que te vejo a ler
poemas e a escrever versos num bloco que levas para todo o
lado. parece que o tal médico, que anda por aí a falar com os
professores e os alunos, quis ler os teus poemas e encorajou a
tua professora de português (a única de quem verdadeiramente
gostas) a ajudar-te a publicá-los. a tua mãe está muito
preocupada com as tuas negativas e as tuas faltas, eu
lembro-me do teu tio antónio e tenho medo de que te
desinteresses da escola. a verdade é que o teu tio tocava
viola espantosamente e eu nunca dei importância a isso. quem
sabe se ele deveria ter ido para músico?
a tua mãe ficou com a ideia que a directora de turma se sentiu
posta em causa pelo tal professor de medicina. parece que o
senhor só falava no facto dos professores da tua turma nunca
se terem reunido antes para conversarem e cada um ter uma
opinião diferente sobre ti e sobre os teus colegas. pela minha
parte, só me lembrei que não fiz nenhum comentário quando
foste à cozinha ler um poema, estava eu a fazer leite-creme
para o jantar. no fundo, estamos todos a pensar que tens de
entrar para a faculdade para seres economista, não será melhor
dizeres já se não queres nada disso? também, para dizer a
verdade, como podes viver da poesia? no meu tempo e a
propósito de um escritor qualquer, dizia-se que não vivia da
pena, vivia da pena que a mãe tinha dele.
pego agora no livro que me ofereceste no natal e sinto um
arrepio. não posso deixar de pensar que não estás bem e que
essa apatia e falta de interesse pelos estudos é afinal uma
grande tristeza. abro o pequeno livro de capa castanha, de
vasco graça moura, deve ser um senhor que aparece na
televisão, eu em poesia fiquei no fernando pessoa. li:
(b) alternativas
problemas graves,
professores paralisados
que fazer com estes dados? proponho um corte radical com este
olhar.
vamos fazer antes duas coisas: pesquisar factores protectores
e organizar pedagogicamente a escola.
sabemos, da investigação psicossocial, que crianças e jovens,
mesmo a viver em circunstâncias muito desfavoráveis, conseguem
desenvolver aspectos da sua personalidade que os tornam mais
resistentes às condiçÕes adversas. todo o esforço deverá ser
concentrado, não na análise dos factores de risco, mas antes
na potenciação dos factores protectores, que a seguir se
exemplifi-cam:
caderno de significados
contas de cabeça
alguns jogos
de escola/brincando
com coisas sérias
boa sorte!
1 -- autonomia
2 -- os pais e a escola
anorexia nervosa:
o templo de ar
um diário -
dulce bouça
"junho
"a minha vida não tem mais interesse, porque o diogo começou a
curtir com a minha melhor amiga, que é mais bonita e mais
magra do que eu, não tem papos nem pernas gordas como as
minhas e sabe conversar. eu nunca sei o que hei-de dizer e
nunca curti com ninguém, por isso fico sempre de parte e não
consigo ser boa companhia.
"estou gorda, as pernas roçam uma na outra e o rabo
é enorme. detesto o meu corpo cheio de gordura, ninguém pode
gostar de mim, assim.
"julho
"comecei a fazer dieta. tenho que perder uns quilos, 3 ou 4
talvez já cheguem para eu ficar com menos rabo e coxas.
"deixei de comer doces, açúcar e pão e na balança já tenho
menos l kg mas ainda não se nota nada. tenho que continuar,
sem perder tempo e com muito controlo para não falhar.
"agosto
"já perdi mais 3 kg, mas tive que deixar de comer sopa e
carne. ainda ninguém percebeu que estou a fazer dieta, porque
continuo a comer peixe e verduras; a mãe até acha bem porque
ela própria queria emagrecer, mas nunca consegue por causa dos
doces.
"a avó é que já me disse que ando a alimentar-me mal para a
minha idade, mas eu disse-lhe que comia nos intervalos das
aulas que é quando tenho mais fome.
"não quero preocupar a avó porque ela é a força da nossa
família."
"outubro
"hoje pesei-me e tenho menos 10 kg. sinto-me vitoriosa por ter
conseguido, mas tenho medo de me olhar no espelho, de me ver
ainda gorda porque é assim que ainda me sinto, gorda e confusa
porque a pele está seca, o cabelo fraco e não tenho peito
nenhum. mas sinto a barriga ainda grande e não me vejo magra
como as pessoas dizem que estou.
"o pior de tudo é que não me vem a menstruação e tenho medo de
estar a ficar doente.
"+s vezes tenho uma grande vontade de comer doces, mas não
posso descontrolar-me depois de tudo o que consegui.
"ainda tenho que perder uns 2 ou 3 quilos para poder provar um
doce no natal.
"o diogo já não anda com a madalena, pode ser que me convide
para a festa de anos dele."
"dezembro
"estou cheia de medo do natal. aqueles doces todos na mesa e a
família a comer... a comer... e a insistirem comigo para
provar, posso perder a força e ganhar todos os quilos que já
perdi -- 15 kg.
" janeiro
"o natal foi horrível porque havia muita comida e eu sem poder
provar nada, nem sentir-me feliz como os outros.
"quando me sento à mesa os alimentos parecem-me pedaços de
jornal e as letras todos os bocadinhos em que os corto.
"quando engulo sinto a tinta do papel a escorrer da boca até
ao estômago e quando a comida lá chega são pedras que caem
pesadamente e me deixam cheia e dilatada como se estivesse
grávida.
"por isto tudo e pelo medo, muito medo, de engordar não posso
comer, mas como me sinto fraca e a perder as forças sou
forçada a escolher alguns alimentos que me mantenham viva.
preciso de fazer mais exercício para queimar calorias. vou
experimentar comer em pé, estudar em pé, ver televisão em pé,
para a gordura não se acumular.
"fevereiro
"já não aguento mais esta vida que tenho levado. pensava que
um dia poderia despreocupar-me com a comida, mas agora vejo
que isso nunca vai acontecer. perdi os meus amigos e vejo os
meus pais tristes, sempre a discutirem por minha causa e
sinto-me culpada.
"pensei falar com a avó, mas não posso fazê-lo porque a mãe ia
sentir-se traída por eu não ter confiado nela.
"não tenho saída nenhuma, se morresse era menos uma
preocupação para todos, talvez se unissem mais e voltássemos a
ser uma família feliz.
"estou perdida e sozinha no meu sonho que era de ouro e se
tornou cinza. morrer seria a minha glória possível."
uma doença
causas da an
fase 1 -- vulnerabilidade
fase 2 -- precipitação
algo faz surgir a an nesta pessoa vulnerável. a doença
pode surgir entre os 7 e os 13 anos, antes da adolescência.
nestes casos, existem muito mais rapazes (20%-25%)
e a evolução grave exige estratégias terapêuticas intensivas.
os autores ingleses têm acentuado a importância do
diagnóstico das anorexias nesta faixa etária, porque o seu não
tratamento provoca um atraso do crescimento que pode ter
consequências irreversíveis. É possível que factores externos
possam ter um papel importante: mudança de escola, conflitos
graves entre os pais, obesidade criticada, ameaças ao
equilíbrio familiar pelos primeiros passos da autonomia da
criança. o certo é que a an não tem nada a ver com faltas de
apetite que podem surgir na evolução de uma criança normal. o
sintoma principal continua a ser uma persistente, por vezes
bizarra, recusa alimentar, com medo de engordar, e profundos
sentimentos de mal-estar interno.
a maioria dos casos ocorre, como é sabido, na adolescência,
sendo raro o aparecimento da an depois dos 25 anos.
praticamente em todas as situaçÕes, a doença é precipitada
por uma dieta progressivamente exigente e cada vez mais
restritiva.
o ciclo patológico inicia-se assim pela redução da ingestão
alimentar. em muitos casos o doente com an não tem peso a
mais: sente-se mais gordo e rejeita a sua aparência corporal.
o começo da doença é gradual, não sendo visíveis para a
família os esforços iniciais para perder peso. a dieta pode
aparecer justificada por motivos de excesso de peso ou,
pelo contrário, feita às escondidas num jovem de peso
normal.
muitas vezes a restrição alimentar coincide com dificuldades
do processo da adolescência ou com acontecimentos de vida
marcantes: mudanças de casa ou de escola, rupturas afectivas,
doenças físicas no próprio ou em familiares, perda de pessoas
chegadas ou pressÕes na escola. não podemos esquecer o
perfeccionismo destes doentes, que os faz ter um grande grau
de exigência face ao seu quotidiano.
frequentemente, e no contexto escolar, os testes são vividos
com grande ansiedade e ficamos surpreendidos com a
insatisfação profunda sentida pela baixa de apenas um valor
numa avaliação momentânea. É importante que os professores
possam compreender que as altas classificaçÕes, se
bem que desejáveis, podem esconder graves dificuldades dos
alunos, surgindo como uma tentativa de sobrecompensação
perante dúvidas internas. os estudantes com an são um exemplo
claro de que um adolescente "perfeito" pode estar doente.
as disciplinas ou cursos relacionados com a necessidade de
altos desempenhos a nível físico são muitas vezes o contexto
propício ao desencadear da an. refiro-me a alunos de classes
de ginástica ou bailado, particularmente exigentes em relação
ao peso e forma corporais. temos na nossa consulta do núcleo
de doenças do comportamento alimentar do hospital de santa
maria, em lisboa, várias frequentadoras assíduas de aulas de
educação física e bailado. contam-nos histórias espantosas.
referem a grande exigência dos treinadores e professores,
pesando-as constantemente e exigindo uma dieta rigorosa,
acompanhada de comentários críticos face a ligeiros aumentos
de peso ou pequenos erros alimentares. relatam-nos os truques
usados para enganar os professores e os chocolates comidos às
escondidas ou vomitados antes do início do treino. falam-nos
dos seus sentimentos de culpa e dos receios de não serem a
campeã de barra fixa ou a nova edição da bailarina famosa de
que conhecem pormenorizadamente a biografia. nos rapazes com
an, a grande exigência desportiva também pode funcionar como
factor de precipitação: é o caso de praticantes da modalidade
de luta ou de boxe que querem perder peso para poderem
competir numa categoria de menos pesados e iniciam um controlo
alimentar cada vez mais exigente.
a adolescência fornece, na maioria dos casos, o contexto
psicossocial onde vai emergir a doença anoréctica. à dieta
soma-se muitas vezes o exercício físico excessivo, vivido com
grande obsessão e rigor, acompanhado de uma hiperactividade
que impressiona num corpo tão frágil. o lema parece ser, como
escreve beaumont: "nunca sentar se se pode ficar de pé, nunca
permanecer de pé se se pode andar, nunca andar se se pode
correr." as refeiçÕes são vividas com enorme sofrimento e
acompanhadas de um cortejo de comportamentos que deixam
perplexos os familiares. a doente pode pesar a comida, contar
o número de batatas ou de colheres de arroz, recusar
completamente primeiro os doces e depois todos os alimentos,
esconder que não come ou exigir que ninguém olhe para ela
durante a refeição. uma das nossas doentes impôs ser ela
própria a cozinhar as suas refeiçÕes, fechando-se na cozinha e
impedindo a utilização dessa parte da casa durante horas;
outra proibia o pai de olhar para ela enquanto tentava comer,
porque sentia na simples inquietação do pai uma crítica
permanente à sua pouca alimentação. um rapaz que tratámos com
êxito, muito rigoroso consigo próprio, controlava no início do
tratamento tudo aquilo que ingeria, não permitindo aos pais a
simples sugestão de um ligeiro aumento nas quantidades de
comida.
são também frequentes as mentiras no que se refere às
refeiçÕes, por exemplo, a informação de que comeram bem ao
almoço na escola sem o terem feito, ou procedimentos bizarros
para esconderem a comida. uma das nossas doentes ocultava os
alimentos num espaço existente sob o tampo da mesa, outra
utilizava o cimo de um armário, pouco visitado pela empregada,
para guardar aquilo que não conseguia
comer.
É importante os familiares compreenderem que a recusa
alimentar não é uma teimosia. mais do que a perturbação da
imagem corporal, é o controlo da fome e o horror de engordar
que constituem as verdadeiras características da doença. deste
modo, não adianta forçar a ingestão de comida, nem estar
sempre a falar da necessidade de comer. as recriminaçÕes
constantes dos pais e das mães, embora compreensíveis, não
ajudam. É necessário apoiar os familiares através de grupos
de pais ou de terapia familiar, para lhes fornecer o apoio
necessário para enfrentarem a situação. É muito difícil a uma
mãe aceitar que uma filha esteja disposta a morrer por falta
de alimentação. foi a comida o primeiro elo que se estabeleceu
entre o bebé e a mãe e muitos dos bons momentos da vida de uma
família saudável ocorrem depois de rituais familiares,
organizados a partir de uma festa onde a comida abunda.
mas é essencial ajudar os pais a compreender que a an
corresponde a algo muito profundo na vida interna da doente e
que foi conseguido com muito esforço. controlar um instinto
tão básico como a fome exigiu grande pertinácia e sacrifício.
só poderá ser alterado quando a pessoa com a afecção
compreender que poderá "trocar" esse controlo por uma coisa
melhor, não ameaçadora da sua vida. por isso, costumamos
recomendar às famílias para não falarem em comida e sobretudo
não castigarem os filhos doentes com an, quando eles recusam
alimentar-se. o pai de uma das nossas doentes, com apenas onze
anos de idade, confidenciava-nos: "as pessoas não compreendem
o nosso problema. dizem-nos: por que razão não a obrigam a
comer? É só dar um tabefe e meter a comida pela boca abaixo!".
a verdade é que estas manobras
pseudo-heróicas geram mais resistência à mudança. sendo
capaz de dizer não às ameaças e pressÕes familiares, a pessoa
com an reforça o seu controlo e engrandece a sua capaci-
dade de luta, embora com evidentes custos para a sua saúde.
como vimos atrás, sucede bastantes vezes a passagem
de uma situação de an restritiva para um quadro de an
com voracidade alimentar compulsiva e manobras para con-
trolar o peso (an tipo ingestão compulsiva/purgativo ou
também designada an bulímica). trata-se de um sinal de
gravidade, como já russell tinha salientado há cerca de vinte
anos. nestes casos, é frequente o doente fazer um jejum quase
completo durante o dia, para à noite comer grandes quantidades
de comida num curto espaço de tempo. o carácter imperioso,
compulsivo, persistente e recorrente, e a grande quantidade de
comida ingerida rapidamente caracterizam a crise bulímica.
podem comer tudo o que encontram à mão. durante muito tempo
pensou-se que certo tipo de alimentos eram preferidos, hoje
sabe-se que o que verdadeiramente marca a crise bulímica é a
quantidade ingerida. as pessoas com an bulímica ou bulimia
nervosa (bulimia sem antecedentes de an) não conseguem ficar
saciadas e têm muita dificuldade em parar de comer.
o grande problema destes doentes, contudo, reside nas manobras
realizadas para controlar o peso. utilizam vómitos
autoprovocados, introduzindo os dedos na boca até vomitarem.
chegam a ter calosidades no dorso das mãos, devido ao contacto
repetido dos dedos com os dentes (sinal de russell). uma das
nossas doentes andou de médico de clínica geral para
dermatologista e vice-versa, usou várias loçÕes e cremes
para tratar as erosÕes dos dedos, sem explicar as causas das
lesÕes e sem que os médicos pusessem a hipótese diagnóstica
correcta!
os vómitos significam sempre um sinal de gravidade de urna an,
pelas graves consequências resultantes. o conteúdo ácido do
estômago destrói o esmalte dentário e provoca infecçÕes na
boca, podendo também causar inflamaçÕes no esófago e
hemorragias gastrintestinais. uma doente que tratámos foi a um
médico gastrenterologista queixando-se de azia. com a pressa e
a destreza técnica que caracterizam alguns actuais
profissionais da medicina, fez imediatamente uma gastroscopia
e iniciou um tratamento. o médico não tinha pensado em an
bulímica e não perguntou se ela provocava o vómito. escusado
será dizer que o problema só
se resolveu com o tratamento da doença base. por outro lado, a
alimentação caótica pode agravar a obstipação já existente, e
em casos graves de grandes ingestÕes provocar uma dilatação
aguda do estômago que leva à sua ruptura, exigindo uma
intervenção cirúrgica de urgência. os vómitos conduzem também
muitas vezes a situaçÕes de desidratação e de
litíase (pedras) no rim, com alteraçÕes do equilíbrio
hídrico e electrolítico graves. a nível cardiovascular,
podem surgir hipotensão e arritmias cardíacas que podem ser
fatais.
como vimos, os doentes com an tipo ingestão compulsiva
(bulímica) podem ter comportamentos purgativos, isto é,
recorrem muitas vezes ao uso repetido de laxantes e diuréticos
com o intuito de perderem peso. para além de não o baixarem
significativamente (apenas perdem água), o uso destas
substâncias provoca graves alteraçÕes metabólicas, se o
processo terapêutico não conseguir cessar este
procedimento.
as diarreias provocadas pelo uso dos laxantes levam a
importantes perdas de potássio e a lesÕes da mucosa
intestinal, agravando a obstipação e o desconforto abdominal.
a conjugação dos vómitos e do uso de laxantes e diuréticos é
particularmente perigosa, pelos desequilíbrios do meio interno
que provoca.
os comportamentos que estes doentes realizam, com a intenção
de perder peso, constituem assim uma grave ameaça à sua vida.
É importante que as famílias compreendam o sofrimento que eles
provocam. numa das nossas habituais reuniÕes nocturnas com
pais de doentes com an, os familiares falavam dos "truques"
das anorécticas e da necessidade de vigilância apertada. a
certa altura parecia que estávamos numa investigação policial!
um controlo obsessivo, por parte dos pais, leva a que estes
comportamentos
sejam ainda mais escondidos do que a sua própria natureza já
impÕe. É assim que uma anoréctica bulímica pode vomitar
diariamente, durante um ano, sem que a família se aperceba
deste comportamento. num rapaz que tratámos com bn, a mãe
procurava controlar a frequência dos vómitos, e o filho
apurava cada vez mais a forma de se esconder. a mãe chegou a
comprar uma lupa e pesquisar fragmentos de comida
eventualmente deixados na casa de banho, depois do vómito,
mesmo sabendo que o filho era muito cuidadoso na sua
ocultação.
pais e filhos bulímicos vivem um complexo problema de culpa e
recriminaçÕes mútuas. nada se pode conseguir sem o
estabelecimento de uma confiança recíproca que permita falar,
mesmo que seja de comportamentos desajustados. É crucial
ajudar as pessoas a falar dos seus comportamentos purgativos,
garantindo que serão compreendidas; é essencial ajudar os pais
a exercer uma vigilância apenas discreta, sem crítica ou
pessimismo. a pessoa esconde o vómito porque sabe que não é
uma boa solução, mas de momento é o único mecanismo que lhe
consegue acalmar um pouco a ansiedade provocada pela grande
quantidade calórica da crise bulímica. não esqueçamos,
contudo, que muito provavelmente a pessoa com an já não se
sentia bem, por isso fez dieta. comeu exageradamente e ficou
pior. vomitou para não engordar, mas culpabilizou-se por isso.
jejuou durante muitas horas, com a ideia de finalmente ser
capaz de controlar o peso. falhou e por isso, em desespero,
vomitou o que comeu. os familiares precisam compreender que o
vómito é um sintoma da doença. ninguém critica um doente com
pneumonia por tossir e escarrar muito. o vómito é difícil de
suportar por toda a família. que pode sentir uma mãe que tão
cuidadosamente preparou uma refeição e a vê depois cuspida na
casa de banho? como se deve sentir uma doente que sente
falhar todo o seu plano e não consegue evitar a expulsão do
que ingeriu? há duas coisas que não é possível esquecer:
fase 3 -- manutenção
fase 1
vulnerabilidade
fase 2
precipitação
fase 3
manutenção
dieta
a. vida
nascimento -- adolescência
factores biológicos
factores desenvolvimento
factores familiares
factores culturais (bn)
efeitos privação alimentar
genéticos
personal.?
neurobiol.
na, 5 ht
dificuld. alimentação
precoce
avaliação e tratamento
da anorexia nervosa
1 -- avaliação
2 -- tratamento
internamento
passou um mês e parece que vais ter alta em breve. vejo-te com
outro aspecto e até aquele ar irritado desapareceu. sonho
todas as noites que já estás em casa e que vais ficar curada!
até o teu pai está diferente, deve ser das conversas nas
sessÕes de família. a psiquiatra é muito prudente, está sempre
a falar na tua amiga anorexia, acho que ela está a puxar por
ti para ver se consegues viver por ti própria.
prevenção da an
vimos anteriormente que a origem das doenças do comportamento
alimentar não é conhecida, apesar dos notáveis progressos
obtidos no tratamento destas situaçÕes.
a nossa concepção pressupÕe, como dissemos, a existência de
factores predisponentes, individuais e do desenvolvimento;
factores precipitantes, com influência familiar e cultural,
geradores de sentimentos de insatisfação com o peso e a
forma do corpo e que levam a uma dieta persistente e
progressivamente mais restritiva, na esperança errónea de
obter melhor autoconceito e maior controlo; e finalmente
factores que mantêm a doença e a podem tornar crónica,
derivados dos efeitos devastadores sobre o organismo
provocados pela desnutrição. esta visão do problema,
próxima da de garner (1), impÕe uma abordagem multifocal,
alguns resultados
iv -- braga, janeiro 97
mais uma vez, muito obrigada pela sua carta. eu bem disse que
abusaria. pensei é que não fosse tão rápido. o sr. professor
nem pode imaginar o bem que me fazem as suas cartas. fazem-me
sentir que existe alguém que, mesmo não me conhecendo de lado
algum, me apoia e ajuda, demonstrando um interesse incrível
por uma criança que não lhe diz nada, é apenas mais uma a
precisar de ajuda e isso basta-lhe [...]. "não fique bloqueada
pela burocracia. lute." esta simples frase foi o suficiente
para ganhar novas forças para mais um "combate" [...]. uma
nova postura da ana paula: vejo-a ficar mais tempo junto de
nós quando acaba as refeiçÕes, chegando a reduzir as
quantidades de comida para fugir à tentação de provocar o
vómito, acto este que é uma constante sempre que ingeria uma
grande quantidade (e não julga mal).
[...] também me diz que falo pouco do meu marido. É verdade,
sim, mas não é intencional. não pensei que fosse tão
importante. o meu egoísmo é que me faz pensar assim. o certo é
que a minha vida quase depende da da ana paula, que passou a
ser o meu foco de atenção. ao proceder assim, reconheço, o
meu marido vai sendo relegado. para ele restam os poucos
momentos que "sobram", que é nada. e, conhecendo-o como o
conheço, sei que sofre tanto como eu. É uma pessoa deveras
sensível, terno, carinhoso, delicado e dedicado, o mais que se
possa imaginar. estes sentimentos são recíprocos na filha, que
o adora e não suporta vê-lo magoado. nós duas, acho eu, somos
o seu mundo, para o qual vive. a sua sensibilidade é de tal
ordem que chega a "adoecer" se vê a mulher ou a filha doentes.
assim, enquanto pude, ocultei o estado da ana paula, pensando
que resolveria a situação sozinha. queria poupá-lo [...]. não
é raro vê-lo a um canto da casa com as lágrimas a
escorrerem-lhe pela cara abaixo. sente-se incapaz (por não
saber como) de ajudar a filha e pergunta-se se não lhe caberá
alguma culpa no que está a acontecer, e se não será também uma
consequência das muitas vontades que raramente lhe nega, por
não saber responder não a um qualquer pedido seu.
[...] ela foi por mim muito desejada, mas só o consegui aos 35
anos, e esta não terá sido a melhor idade para uma mulher ter
o seu primeiro filho. só pensei nisso depois. e por mais que
faça a minha autocrítica, a conclusão é sempre igual: "a minha
filha tinha de nascer". há talvez por isso um sentimento maior
de "responsabilidade" ao ponto de a hiperproteger, quase não a
deixando dar os seus próprios passos. fui ao ponto de nunca
sair de casa, a não ser para trabalhar, para que não ficasse
sozinha ou com a família. já bastava o infantário e mais tarde
a escola infantil, para estar longe dos pais o dia inteiro.
sempre que nos era e é possível, a nossa vida é vivida a três.
e, quem sabe, terá sido esta uma actuação negativa?
v -- braga, janeiro 97
É sempre com uma enorme ansiedade que abro as suas cartas. sei
que vou sempre encontrar nelas algum conselho, ou mesmo uma
palavra amiga. o meu marido e a minha filha não ficam menos
ansiosos. esta que acabo de receber é bem prova disso. bem
haja por tudo quanto tem feito por nós, é só o que encontro
para exprimir toda a nossa gratidão.
finalmente, realizou-se a tão falada e desejada terapia
familiar! [...] o fundamental, quanto a mim, foi o que se
relacionou com a chamada liberdade da ana paula quanto às suas
saídas. depois de muito debatido o tema, chegou-se à conclusão
de que a minha permissão era sempre mais rápida do que a do
pai [...]. o pai queixa-se de que a filha só se dirige a ele
depois de previamente consultar a mãe, de quem, quase sempre,
recebe logo o apoio, se acha que deve apoiar, iniciando o
diálogo com um "já falei com a mãe que não se importa que eu
vá..." [...]. foi sugerido que se assentasse no número de
vezes que a ana paula poderia sair, porque num dos seus
pedidos para ir à discoteca, eu respondi que sim, mas devia
ter em conta que eu não ia consentir uma ida semanal.
primeiro, porque só tem 15 anos e há muito tempo para viver,
depois porque não vou aguentar todos os sábados ou
sextas-feiras deitar-me às 4 ou 5 horas da manhã, para a ir
buscar [...].
epílogo