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daniel sampaio

vivemos livres
numa prisão

colaboração

dulce bouça
pedro strechet

caminho
nosso mundo

vivemos livres
numa prisão
autor: daniel sampaio
capa: design gráfico de
josé serrão
c editorial caminho,
sa, lisboa -- 1988
tiragem: 15 000 exemplares
impressão e acabamento:
tipografia lousanense,
l.da
data de impressão: março
de 1998
depósito legal
n.o120 781/98
isbn 972-21-1181-7

www.editorial-caminho.pt

vivemos livres
numa prisão

o autor
daniel sampaio é médico e professor associado com agregação da
faculdade de medicina de lisboa, onde ensina psicopatologia e
psiquiatria.
especialista de psiquiatria do hospital de santa maria, em
lisboa, coordena no serviço de psiquiatria o núcleo de estudos
do suicídio.
foi um dos introdutores da terapia familiar em portugal e
fundador da sociedade portuguesa de terapia familiar.
dedica-se particularmente ao trabalho com adolescentes, pais e
professores.
tem os seguintes títulos publicados:

droga, pais e filhos (em colaboração), bertrand, lisboa, 1978


terapia familiar (em colaboração), afrontamento, porto, 1985
(3.a ed., 1997)
que divórcio? (em colaboração), ediçÕes 70, lisboa, 1991 (2.a
ed., 1992)
ninguém morre sozinho -- o adolescente e o suicídio, editorial
caminho, lisboa, 1991 (8.a ed., 1998)
vozes e ruídos -- diálogos com adolescentes, editorial
caminho, lisboa, 1993 (9.a ed., 1997)
inventem-se novos pais, editorial caminho, lisboa, 1994 (10.a
ed., 1998)
voltei à escola, editorial caminho, lisboa, 1996 (4.a ed.,
1998)
a cinza do tempo, editorial caminho, lisboa, 1997 (3.a ed.,
1998)
vivemos livres numa prisão, editorial caminho, lisboa, 1998

colaboraǦo

dulce bouÇa -- psiquiatra no hospital de santa maria.


assistente convidada da faculdade de medicina de lisboa.
tem-se dedicado ao trabalho clínico com adolescentes,
particularmente no campo das perturbaçÕes do comportamento
alimentar. É autora do livro madrugada de lágrimas, edinter,
porto, 1997.

pedro strecht -- pedopsiquiatra (psiquiatra da infância e da


adolescência). É autor dos livros para uma escola feliz, ed.
autor, lisboa, 1995 e crescer vazio, ed. autor, lisboa, 1997.

para a minha avó


sarah bensaúde branco --
onde quer que ela esteja.

o próprio do homem não é viver


em liberdade, é viver numa prisão.

montesquieu,
o espírito das leis
1

escola:
os cavalos de tróia

a escola dos meus netos é uma grande confusão. quando a


trombose levou o meu marido, há três anos, o meu neto joão
andava no 12.° ano, uma coisa que inventaram e que não havia
no meu tempo. felizmente entrou para a faculdade e com ele não
há problemas. com os irmãos as coisas não vão bem. a minha
neta mariana estuda pela noite fora e fica muito nervosa antes
dos pontos. o meu neto do meio, o gonçalo, é o que me preocupa
mais. fica horas e horas no quarto e diz não ter "motivação"
para estudar e que as aulas são uma maçada.
sou daquelas pessoas que andaram na escola toda a vida. fui
professora primária até há dois anos, altura em que me
reformei, mas ainda hoje penso nos alunos que me deram
melhores momentos.
a noite passada sonhei que o meu marido estava à porta da
escola à minha espera. fiquei tão contente que deixei cair o
estojo das esferográficas quando corri para ele. entrámos os
dois logo a seguir num grande salão cheio de meninos e
meninas, todos de bibe, alinhados como se fossem cantar em
coro. em cima do palco estava um senhor importante, todo
vestido de cinzento, segurando um estojo azulado com aquilo
que pressupus ser uma medalha. de repente os meninos começaram
todos a olhar para mim e a bater palmas e o senhor importante
deixou cair a medalha sem nunca mais a encontrar. o manuel
agarrou-me o braço com força e fomos para o meio das crianças.
a certa altura pareceu-me que lá no meio estavam também os
meus filhos e os meus netos e acordei sobressaltada.
quando casou comigo, o manuel disse-me que eu tinha de deixar
a escola à porta de casa, mas a verdade é que me envolvia
tanto no trabalho que às vezes lhe contava como tinha sido o
meu dia. como professora do 1.o ciclo, como agora se diz, acho
que fui capaz de me fazer respeitar sem me preocupar muito com
isso. bastava pôr os alunos sempre a trabalhar para eles
estarem quietos.
a escola dos meus filhos já foi bem diferente. o antónio
deu-me muito trabalho. as professoras estavam sempre a
chamar-me porque ele faltava às aulas. descobri um dia que
saía do liceu e ia jogar bilhar para um café em frente, ou
então andava um grande bocado a pé e ia esperar as meninas
noutro liceu. É por isso que tive de fazer um pedido para ele
entrar para o banco onde ainda hoje está. quando casou, senti
uma certa vergonha, porque a mulher tinha mais estudos.
felizmente dão-se bem, e como não têm filhos, parecem não ter
grandes preocupaçÕes.
deus tirou de um lado e pôs noutro. a minha filha manuela é a
mãe do joão, do gonçalo e da mariana. penso neles a toda a
hora. foi o joão quem insistiu para que eu fosse viver lá para
casa todo o dia. senti pena de deixar a minha casa, mas acho
que com 72 anos ainda posso fazer muita coisa para ajudar a
minha filha e os meus netos. a minha vizinha já me perguntou
por que razão eu não vivia com o meu outro filho, mas
disse-lhe que tinha uma coisa ao lume e felizmente ela não
voltou ao assunto. nunca lhe direi que o meu ditado favorito é
aquele assim "sogra e nora, cão e gato: não comem no mesmo
prato". com o meu genro não há problemas, pelo menos comigo.
trabalha todo o dia e assim que acaba de jantar vai para o
escritório mexer no computador. só uma única vez me chamou
para o pé dele, para eu ver um jogo que tinha
umas correrias num castelo, mas francamente não achei graça
nenhuma.
estou sentada em frente da televisão. não está ninguém em
casa. tenho o jantar adiantado. faço sempre comida a mais,
porque na verdade só o joão e o pai é que comem coisa que se
veja. eu à noite fico bem só com a sopa e a manuela e a
mariana comem poucochinho. pena o gonçalo, que tanto apreciava
os meus petiscos, andar agora com tão pouco entusiasmo pela
comi-
da.
gosto muito deste bocado do dia. que estarão eles a fazer? o
joão anda naquela faculdade ao pé do jardim do campo grande.
noutro dia, passamos lá de carro e ele mostrou-me uma série de
prédios cinzentos com umas escadas azuis e uma esplanada cheia
de estudantes. lembrei-me que às vezes ficava lá por aquelas
bandas a fazer malha e a conversar com uma amiga, enquanto o
meu marido ia ver jogar o sporting. o joão estuda biologia e
às vezes penso se será capaz de arranjar emprego. tenho a
certeza que ele gosta do curso, porque o meu neto mais velho
faz tudo bem feito. não percebo o interesse em acampar com os
colegas e passar uma noite a observar corujas e um dia a ver o
cocó de uns animais, mas para estas coisas a minha cabeça já
não dá.
o gonçalo e a mariana andam na mesma escola e aí é que é a
confusão em que eu estava a pensar há bocadinho (a ideia agora
foge-me muito para as recordaçÕes, deve ser isto a que chamam
velhice). acho que passam muitas horas fora de casa, nem têm
tempo para almoçar comigo e os pais estão sempre em cima
deles, um porque estuda pouco, a outra porque estuda de mais.
a minha filha é professora de outro liceu e talvez por isso
está sempre a dar opiniÕes. para mim, acho que os professores
faltam muito e os miúdos ficam sem nada para fazer. também não
percebo muito bem o que lá aprendem, porque não sabem fazer
contas de dividir, nem sequer arranjar o candeeiro que noutro
dia fez uma pequena faísca e deixou de dar luz. não percebo
nada dos "agrupamentos", ou "áreas" ou lá que raio é, o
gonçalo está sempre a dizer que quer mudar, com a mãe a
responder-lhe que é um disparate, pois terá de andar para
trás, do 12.o ano parece que para o 10.o (que confusão, não
sei se é assim...).
o gonçalo anda a faltar às aulas. no meio da papelada que o
carteiro me entregou com montes de propaganda de computadores
e produtos de beleza, não pude deixar de ver um papel do
liceu, com uns números e umas letras a vermelho. achei melhor
não dizer nada aos pais. conheço bem os papelinhos do liceu do
tempo do meu filho antónio e, além disso, vejo o miúdo tão
triste que não lhe quero arranjar mais problemas. e se os
professores faltam tanto, não hão-de os rapazes faltar
também??
a minha vizinha contou-me umas coisas estranhas sobre as
escolas, porque o filho dela também é professor e até teve
problemas. viu dois alunos à luta, um calmeirão a bater num
pequenito, e não esteve com meias-medidas: pregou uma valente
estalada no maior. foi o cabo dos trabalhos! uma coisa a que
chamam associação de pais (no tempo dos meus filhos não
havia...) fez logo uma reunião, telefonaram para a
televisão... o que sei é que o professor, filho da minha
amiga, está agora sem poder dar aulas. não é que eu seja a
favor do bater só por bater. na escola primária dos meus
filhos a régua servia para tudo, para castigar a falta de
estudo, a má educação e até a burrice... e não havia essa
coisa de discutir com os professores. lembro-me que o antónio
não gostava lá muito do professor, mas tinha-lhe medo, ou
respeito... só não aceitava era quando o professor se ia
embora por uns tempos e ficava o chefe de turma a tomar conta,
escrevendo no quadro o número dos alunos malcomportados. foi
coisa que eu nunca fiz na minha escola primária e ria-me com o
meu filho, quando o antónio hesitava em bater no colega ou
dar-lhe um "custoso" cromo da bola, como eles diziam na
altura!
há uma coisa que deve estar na mesma. dizia-me o antónio, nos
seus tempos da primária e do liceu, que o melhor da escola
eram os recreios. o meu filho, como estava na primeira fila
(não havia essas chinesices modernas de os alunos escolherem o
lugar), saía a correr com um bando de colegas e ia para as
arcadas do liceu jogar à carica. uma vez fui lá falar com um
professor e fiquei um tempo a olhar. com um piparote, atiravam
a tampinha de modo a meterem golo na outra arcada, que servia
de baliza. podia usar-se a cabeça ou as mãos para evitar o
golo. o antónio às vezes prolongava o jogo e chegava tarde à
aula seguinte. divertia-se muito nos intervalos e, felizmente,
acho que isso continua assim. +s vezes passo pela escola dos
meus netos e ouço uma grande barulheira. o posto de rádio da
escola, uma ideia dos alunos que acho bem, dá música moderna
muito alto e eles andam para ali a conversar e a namorar. bem,
isso de namorar como elas fazem agora também me faz uma certa
confusão... e a mariana disse-me que uma colega dela tinha
aparecido grávida! cá na minha acho que cada qual deve saber
tomar conta de si e uma rapariga, se quer ser mulher, deve
saber tomar conta de si própria. também no meu tempo
havia rapazes que faziam avanços, mas nós sabíamos pô-los com
dono.
no fundo, isto da escola e da família tem mudado muito. outra
coisa que eu não percebo é esta mania que os pais agora têm de
querer mandar na escola! É isso, a associação de pais, mas...
parece que não é só para fazerem coisas para melhorar a
escola, também querem reuniÕes com os professores e decidir...
não, isso não acho bem. quem manda na escola são os
professores. a manuela tinha uma professora que pertencia à
mocidade portuguesa feminina e que acabou por ser a reitora.
ninguém gostava dela, dava sermÕes sem parar e tinha um ar de
aa (auxiliar do apostolado), uma coisa que havia no tempo do
salazar. recebia os pais de vez em quando, mas não deixava
dúvidas que era ela quem mandava em tudo e todos. pela minha
parte, não gostei nada de a conhecer, mas reconheço que às
vezes agora se facilita demasiado.
nas minhas aulas também tive alunos com algumas dificuldades.
chamava os pais à parte e tentava dizer como poderiam ajudar.
sei, pela manuela, que na escola dos meus netos os professores
que mandam ralham um bocado aos pais, à frente de outras
pessoas. agora que o gonçalo anda tão triste, disseram à minha
filha para o rapaz ir ao psicólogo. não sei se têm razão, só
tenho a certeza que ninguém tem nada a ver com isso e que o
assunto deveria ter sido tratado em privado.
como professora que fui, sei bem que ensinar não é nada fácil,
mas todas as crianças são capazes de aprender. sempre tive a
ideia que não podia ensinar todos da mesma maneira e que uns
aprendiam mais depressa que outros. não era por serem "burros
machos" ou "burras fêmeas", como dizia a regente escolar das
raparigas da minha escola, acontecia simplesmente que uns
estavam mais à vontade que os outros ou se mostravam mais
interessados pela leitura ou pelas contas.
faz-me hoje um bocadinho de confusão tanta gente na escola,
com um programa igual para todos... se calhar é por isso que
vejo
tantos miúdos a deixarem de estudar e ficarem por aí ao deus-
-dará.
o meu genro nunca foi à escola dos filhos. está sempre a dizer
que não pode largar a empresa e ir a uma reunião a meio da
manhã.
estaria tudo bem se em casa se interessasse um pouco mais.
tenho a certeza que os filhos que o joão vai ter vão ser mais
acompanhados pelo pai, porque o meu neto não se atrapalha nada
a pegar num bebé ou a tomar conta de uma criança. quem sabe se
essa não será uma solução para o problema, os pais e as mães
poderem estar um pouco mais em casa a educar os filhos, de
modo a deixarem os professores mais livres... porque eu acho
que se pede demasiado à escola. os professores não podem fazer
tudo e afinal são pagos é para ensinar o que aprenderam!
os meus netos dizem-me que a escola agora é muito diferente.
têm lá sentados, bem junto a eles, miúdos com muito poucas
posses e às vezes sem família. os pais de um colega da mariana
têm problemas de droga e já foram presos. outros vieram da
guiné e de cabo verde e têm muita dificuldade em falar
português. e por isso é que eu digo que a escola dos meus
netos é uma grande confusão! a ideia com que fico, depois de
tudo observar, é que as pessoas falam pouco umas com as
outras. se conversassem mais, muita coisa se resolveria, como
cá em casa. talvez haja televisão
a mais... embora eu não perca a minha telenovela brasileira e
às vezes fico contente, porque consigo vê-la com os meus ne-
tos.
há uma semana tive outro sonho. a escola onde eu tinha dado
aulas tinha sido aumentada com umas construçÕes prefabricadas
de aspecto frágil e o pátio tinha ficado mais pequeno, com
uma espécie de telheiro a tirar-lhe o sol. os miúdos não
tinham cara e estavam todos vestidos de igual, com uns fatos
de corte militar e uns capacetes com viseira, parecidos com os
da polícia de choque, como no tempo em que a manuela andava na
faculdade. não havia salas de aulas e tudo se passava cá fora.
os professores pareciam umas crianças e estavam todos de
bibinho às riscas, sentados numa espécie de estrado ao ar
livre, bem encostados uns aos outros. os alunos não pareciam
ligar nenhuma importância ao estrado e organizavam-se em
grupos de combate, batendo-se uns contra os outros. a certa
altura, levantou-se uma professora-
-menina e tentou falar com os alunos, mas não conseguiu ser
ouvida. + medida que a luta continuava, a minha escola ia
ficando destruída e alguns miúdos caídos. fiquei na dúvida
sobre se aquele lá no fundo seria o gonçalo. corri a toda a
pressa até lá chegar e encontrei sangue por todo o lado.
acordei com o coração a bater muito e a pensar que se o manuel
estivesse ao meu lado, ouviria o seu meigo assobio para me
acordar de vez, e poderia ficar abraçada a ele até serenar.
ando a pensar demasiado na escola. foi tudo ao mesmo tempo: a
morte do manuel, a minha reforma e a minha mudança para esta
casa, que me faz reviver constantemente a minha juventude e o
crescimento dos meus filhos. ou se calhar ando preocupada com
o que se passa na escola, porque tenho visto muita televisão e
estão sempre a falar mal dos professores, coisa que me irrita
muito. no meu tempo não se podia dizer mal de deus, dos
médicos e dos professores, agora só é poupado nosso senhor e
nem sequer é sempre. quem ouvir os telejornais, até pode ficar
com a ideia que não há nada de bom na escola, o que não é
verdade. a mariana sabe imensas coisas e quer sempre aprender
mais e mesmo o gonçalo, que não tem boas notas, ganhou noutro
dia um prémio num concurso de poesia organizado pela
associação de estudantes. a minha vizinha diz-me que na escola
do filho dela há muitos miúdos com problemas, mas só perdem
tempo em campeonatos da bola e em exposiçÕes de pintura. o que
sei é que os meus netos gostam imenso de ir para a escola e
fazem lá bons amigos. como se divertem os jovens de hoje!
francamente, sinto inveja e nessas alturas é que me lembro que
já ultrapassei os setenta anos. adoro pôr-me na sala e ouvir
ao longe as combinaçÕes telefónicas de saídas nas
sextas-feiras à noite, ou as discussÕes sobre dúvidas nas
vésperas dos testes.
estou absolutamente convencida de que as coisas vão melhorar.
para mim, nada é pior que o desinteresse e vejo muita gente a
tentar mudar a maneira de estar na escola. se for possível
vencermos certos medos, receios afinal de ser diferente que eu
também tenho (acho que o meu sonho mostra como no fundo também
eu ando assustada), havemos de conseguir compreender as
mudanças da escola e os filhos dos meus netos ficarão melhor.

entra-se na escola por um portão verde mal pintado, ladeado


por uma guarita onde está um porteiro com ar envelhecido.
atravesso um pátio com chão de cimento, ocupado bem no meio
por um triângulo de terra batida, ladeado por um fio a
pretender proteger uma relva inexistente. os alunos estão em
pequenos grupos: sentados em bancos semiapodrecidos, de pé
encostados à parede ou à entrada em magotes barulhentos. o
posto de rádio da associação de estudantes grita uma música
que não parece interessar a ninguém.
a entrada do prédio principal tem uma divisória de vidro,
cheia de cartazes amontoados, que uma funcionária de bata
cinzenta se apressa em abrir para me dar passagem. numa
espécie de antecâmara, vejo mais alunos a conversarem, duas
professoras a trocar fotografias de bebés e uma escada de
pedra igual em tantas escolas. sou encaminhado para o conselho
directivo, uma sala pequena com duas secretárias cobertas de
papéis e vários telefones sempre a tocar. já está na hora da
acção de formação e mal tenho tempo para entrar na sala dos
professores, ao menos para ver o ambiente e tomar um café. os
professores entram e saem com ar apressado, alguns sentam-se
em pequenos sofás de napa e falam da família ou do ministério.
há um bar ao canto da sala, para uso exclusivo dos
professores, para onde me dirijo apoiado nas organizadoras da
acção. um pequeno tabique separa a sala e na zona mais pequena
amontoam-se os professores fumadores,
que parecem um grupo à parte. há placards de cortiça por
todo o lado, um deles diz "informaçÕes sindicais" e é uma
grande confusão, uma vez que fala de pelo menos quatro
sindicatos diferentes.
não temos mais tempo e vamos para a acção de formação. a sala
escolhida é numa parte do refeitório, limpa e arranjada, mas
impessoal e com cadeiras desconfortáveis. os professores
chegam em pequenos grupos, não são mais de quarenta e trazem
malas e dossiers a mais.
como metodologia de trabalho, proponho a discussão de
casos-problema, apresentados pelo director de turma e
discutidos pelos professores da turma, sendo mais tarde
generalizada a discussão. os professores olham para os papéis
ou murmuram para o lado palavras ininteligíveis. aguardo com
tranquilidade. "gostaria que nos falasse da indisciplina,
temos cada vez mais alunos que não conseguem estar numa sala
de aula", "não sei se conhece a zona, os pais estão muito
desinteressados e não aparecem na escola, os miúdos são
deixados muito sós", "temos uma turma completamente apática.
estão no 12.o ano e não se interessam por nada. faltam muito e
alguns estão para lá e é como se não estivessem. não consigo
fazer nada deles. para mim é uma novidade. os alunos do 12.o
ano às vezes até têm a mania das notas, são muito competitivos
e estão sempre a exigir mais matéria. estes não. parecem
extraterrestres", foram algumas intervençÕes que registei. a
última pareceu-me mais mobilizadora. alunos do 12.o ano
apáticos? vamos ver. pedi para escolherem um aluno desta turma
que os preocupasse particularmente. a directora dessa turma
descreveu assim: "estou muito preocupada com o gonçalo. eu sou
de história, na minha disciplina consegue atingir os níveis
pretendidos, mas a matemática está uma desgraça. um aluno que
quer ir para economia! em ides e em iti também teve negativa
no primeiro período. É uma família diferenciada, está a ver, o
pai trabalha numa boa empresa e a mãe é nossa colega. parece
que tem uma irmã doente e um namorico que não está a correr
bem. a rapariga deixou-o, trocou-o por outro colega, o rapaz
está cada vez mais desinteressado. a família, sabe..."
interrompi esta torrente informativa. comecei por tentar
decifrar as siglas, fiquei a saber que ides queria dizer
introdução ao desenvolvimento económico e social e iti
introdução às tecnologias de informação, se bem percebi.
depois, interessava-me trabalhar sem grandes dados sobre a
família. uma das dificuldades que tenho sentido no trabalho
com os professores relaciona-se com o foco do problema. onde
actuar? com quem actuar? quando actuar? que informaçÕes são
relevantes para a acção e quais as que a embaraçam?
pedi para que os professores do gonçalo ocupassem a primeira
fila. como é habitual, não estavam todos. É muito curioso
verificar numa escola a falta sistemática de alguns
professores a acçÕes de formação onde vão ser discutidas as
suas dificuldades. "alguns professores moram longe", disse uma
professora de cabelos brancos e saia e casaco de bom gosto.
não pretendi polémica. "vamos trabalhar com os que estão", e
comecei
por identificar os presentes. estavam quatro de um total de
sete.
o professor de matemática era um jovem de faces coradas, todo
vestido de bombazina castanha e camisola de gola alta: "o
gonçalo não tem bases e não estuda. É insolente e
indisciplinado, nunca faz os trabalhos de casa e é hostil para
os colegas nos trabalhos de grupo. não percebo o que ele quer
fazer da vi-
da."
a professora de introdução ao direito era muito magra e alta,
tinha os cabelos sobre os olhos e um sorriso tímido: "É a
primeira vez que estou nesta escola. o gonçalo senta-se na
última fila e passa as aulas a olhar para o tecto. não
participa, mesmo quando solicitado. os conteúdos curriculares
não parecem interessá-lo."
a professora de português teve um discurso surpreendente: "o
gonçalo escreve lindamente. ganhou um prémio de poesia, sabem?
gosta de ler e acho que tem talento. nas minhas aulas está
agora mais calado e um pouco triste, mas ontem fez um poema.
querem ouvir?" a directora de turma: "É pena os testes de
história estarem tão mal escritos, denotam uma falta de
estudo. não satisfaz minimamente os objectivos da disciplina."
o que mais me impressionou foi o facto de os professores desta
turma só se terem reunido para questÕes de avaliação. propus
que me falassem da turma como um todo. as opiniÕes
dividiam-se: "há miúdos com meios familiares muito diferentes.
a turma é muito heterogénea. uns querem aprender e outros
não"; "há um grupinho muito bom, mas a maioria está
desinteressada e prejudica os outros"; "não temos tempo para
falar com eles, coitados, têm muitas carências afectivas mas
tenho de dar a matéria, é ano de exame e eles, no fundo,
querem é entrar para a universidade..."
propus um salto: "vamos deixar esta turma em banho-maria e
falar de outra, onde também tenham dificuldades."
"o 8.o 10.a", gritou uma professora de blusão castanho e
óculos presos por uma corrente. as respostas ao meu pedido de
definição da turma referida foram as seguintes: "turma
completamente sem regras. há imensos rapazes filhos de
toxicodependentes. pelo menos dois têm a mãe na prostituição.
o vasco esteve num colégio de ensino especial e não dá
rendimento nenhum"; "desculpe, colega, ele vê mal. tem os
óculos todos riscados e a avó não lhe pode dar uns novos. já
falei ao sase e nada consegui"; "a verdade é que alguns mal
sabem ler, não percebo como chegaram até aqui. não compreendem
o que se lhes está a explicar, como hão-de ter boas notas?";
"em evt não são maus. aquele de que vocês estão sempre a dizer
mal, o ricardo, tem feito uns trabalhos com piada"; "saio
dessa turma esgo-tada, passo a vida a tentar controlá-los e
não consigo. francamente, acho que muitos deveriam ir para os
currículos alternativos."
sentei-me na mesa que me estava reservada e comecei a pensar.
estava perante um grupo de professores interessados (os
desmotivados tinham faltado), mas descrentes e sem
estratégias. a definição do problema não existia, ou era tão
contraditória que não permitia compreendê-lo. uns professores
punham a tónica na sala de aula, outros no psiquismo dos
alunos, outros ainda nas suas famílias de origem. apesar de
ensinarem na mesma escola e alguns nas mesmas turmas, não
formavam um grupo coeso.

escola:
intervir face a um problema

não se pode intervir face a um problema escolar sem se ter uma


teoria sobre a mudança. a exigência face ao papel dos
professores é cada vez maior e os docentes oscilam entre um
entusiasmo militante de alguns e a rotina do deixar andar de
outros.
o grande problema perante uma situação problemática na escola
é que as teorias sobre a mudança estão todas centradas no
interventor (na maioria dos casos, um membro do corpo
docente).
este foco no papel do professor leva às seguintes afirmaçÕes:

-- só posso intervir se conhecer o problema na sua totalidade;


-- só posso intervir se tiver apoio técnico claro, variante de
não podemos continuar sem psicólogo e sem assistente social;
-- não posso intervir porque não tenho conhecimentos técnicos,
variante de sou professor de química e não percebo nada de
droga e de insucesso escolar;
-- já tentei todas as intervençÕes possíveis, sem resultados;
-- vou continuar a tentar, esforçando-me cada vez mais,
variante simpática de "eles em breve darão cabo de mim".

a verdade é que há cada vez mais professores a seguir uma


carreira psiquiátrica, em vez de obterem formação para poderem
actuar melhor. todos os técnicos de saúde mental sabem que um
grande número de docentes do ensino básico e secundário
recorre a consultas de psiquiatria, esgotados por uma prática
quotidiana na escola para a qual não se vê saída.

numa linha oposta, parece-me essencial que as teorias sobre a


mudança na escola estejam centradas no sujeito, objecto de
intervenção. foi o grupo de palo alto, na califórnia, quem
pela primeira vez chamou a atenção para a importância do
próprio indivíduo na génese da sua própria mudança (1). esta
concepção

(1) watzlawick, p. weakland, j., fisch, r., change: principles


of problem formation and problem resolution, norton, n. i.,
1974.

parte do princípio de que cada sujeito-problema tem ideias


sobre a sua própria mudança, isto é, possui um conjunto de
pensamentos, atitudes e sentimentos que pensa estarem
relacionados com as causas do problema e com as ideias sobre a
forma de o resolver. cada sujeito-problema é essencial para a
redefinição e deve ser o protagonista da intervenção, tendo
direito a ser ajudado a reflectir sobre novas perspectivas de
mudança. o papel de interventor é o de criar o contexto onde
vai emergir a intervenção.

1.o passo -- avaliação do problema

a reunião que descrevi atrás mostra que o problema "gonçalo"


não está correctamente avaliado. trata-se de um aluno
"insolente e indisciplinado" (professor de matemática),
"desinteressado, não participativo" (professor de introdução
ao direito), "talentoso" para a escrita (professora de
português), com "falta de estudo" (directora de turma e
professora de história), eventualmente "deprimido" (poderia eu
sugerir), em agrupamento errado, a estudar economia em vez de
letras...
a primeira coisa a fazer é avaliar correctamente o problema.
nas questÕes de comportamento indisciplinado, por exemplo, é
raro que os professores se juntem para decidir em conjunto as
medidas a tomar, depois de um trabalho de análise da situação.
este trabalho de avaliação deve ter vários passos:

(a) avaliação da natureza do problema

de que estamos de facto a falar? para o sabermos, devemos


chamar todas as pessoas que tenham sido "tocadas" pela questão
e pô-las a falar brevemente, de uma forma eficaz e precisa.
algumas sugestÕes:

-- dê um exemplo recente do problema


-- imagine que tinha na mão uma câmara de vídeo. que filmaria?
-- o que acontece primeiro? e depois? e depois? -- a
possibilidade de descrever a sequência do comportamento é
essencial para podermos descobrir os elos que o podem estar a
perpetuar
-- quantas vezes ocorre? quanto tempo dura?
-- o que faz parar o problema? o que faz aumentar?

(b) procura de soluçÕes

numa escola não há tempo a perder. temos de rapidamente


perceber o que foi tentado anteriormente e não resultou, as
situaçÕes de excepção face ao problema e a definição de
objectivos para a mudança:

-- exploração de "soluçÕes anteriores" -- o que fez para


resolver a questão, por favor diga detalhadamente; o que
pensou fazer e não fez, ou não foi capaz de fazer?; o que
fizeram as outras pessoas;
-- exploração de excepçÕes -- é muito importante determinar
onde e quando o problema não se manifestou e as consequências
desse comportamento diferente. procederemos do seguinte modo:
quando não ocorreu o problema?, o que mudou desde o problema?,
quando é menos (mais) evidente o problema?, desde que o
abordámos, o que mudou?, que acontecerá (por exemplo, aos
professores e aos pais) com o fim do problema?, que será
necessário para fazer cessar o problema?

(c) definição de objectivos simples para mudar

não é possível transformar um aluno violento e hostil num


cavaleiro branco, através de um passe de mágica. um dos
problemas existentes nas escolas é o de não ser definido
exactamente para onde se quer ir na alteração do comportamento
sentido como desajustado.
nas fases iniciais da intervenção, é importante perceber que
uma pequena mudança, por mais simples e diminuta que pareça,
vai mobilizar e tornar possível uma alteração posterior mais
aprofundada. curiosamente, quando trabalhamos numa escola com
professores ou funcionários sobre questÕes da indisciplina, há
grandes diferenças na valorização que é dada ao comportamento
problemático.
É assim importante seguir um método, como agora se sugere:

-- classifique a gravidade do problema: de 1 (mínimo) a 10


(máximo);
-- que pode fazer para deslocar, no sentido do melhor
comportamento, apenas um número nesta escala;
-- que podem os outros (pais, professores, funcionários,
colegas do aluno) fazer para essa deslocação;
-- se conseguirmos mudar uma casa nessa escala, o que
acontecerá?
-- vamos admitir que o problema se resolveria por um truque de
ilusionismo
que acha das alteraçÕes que iria notar?
quando imagina que os outros notarão a diferença?

só depois de este primeiro e importantíssimo passo (avaliação)


ter sido dado é que se torna possível intervir. não se pode
avançar sem compreendermos a dimensão do problema e a
verdadeira direcção da mudança que pretendemos.

2.° passo -- intervenção

(a) excepÇões

após uma avaliação do problema, cuidadosamente elaborada,


poderemos intervir. e essencial não fazer "mais do mesmo",
porque a pseudo-solução encontrada agrava o comportamento
disfuncional. se o aluno é indisciplinado ou pouco atento, a
intervenção deve centrar-se não no seu comportamento habitual,
mas antes nas excepçÕes ao seu modo de estar.
começamos, assim, por valorizar todas as excepçÕes do proble-
ma -- no caso do gonçalo, atrás referido, teríamos de
salientar o seu comportamento de excepção nas aulas de
português, em vez de insistir nas suas dificuldades em ides e
iti. em seguida, vamos redefinir positivamente essas
excepçÕes, atendendo às condiçÕes e às circunstâncias em que
se verificam. um aluno indisciplinado e apático como o gonçalo
é valorizado na sua criatividade poética.
não basta ficar por aqui. É preciso promover a expansão das
excepçÕes; por exemplo, poderemos detectar qual a disciplina
em que será possível a aproximação a um novo comportamento, ou
seja, onde poderá o aluno estar menos longe do padrão desejado
(no caso do gonçalo, talvez a professora de introdução ao
direito tivesse sido menos crítica e fosse mais fácil
mobilizar o aluno). em seguida, deveremos conotar
positivamente toda e qualquer evolução positiva, mesmo que
mínima, e manter o progresso efectuado através do
envolvimento, participação e encorajamento do aluno-problema.

soube hoje, meu filho, que houve uma reunião dos professores
da tua turma para discutirem os problemas dos alunos. a tua
mãe foi chamada à escola e insistem na ideia do psicólogo.
parece que esteve lá um médico que teve um programa na
televisão, que vocês viam pela noite fora ou aos bocados
depois de o terem gravado. sabes que a tua avó deu aulas
muitos anos e por isso tenho a certeza de que estás triste por
causa da rapariga te ter deixado, ou então não estás a estudar
uma coisa que minimamente te inte-
resse. no meu tempo e mesmo na época da tua mãe, era mais
fácil a opção entre letras e ciências e acho que o teu
problema começou aí. desde há três anos que te vejo a ler
poemas e a escrever versos num bloco que levas para todo o
lado. parece que o tal médico, que anda por aí a falar com os
professores e os alunos, quis ler os teus poemas e encorajou a
tua professora de português (a única de quem verdadeiramente
gostas) a ajudar-te a publicá-los. a tua mãe está muito
preocupada com as tuas negativas e as tuas faltas, eu
lembro-me do teu tio antónio e tenho medo de que te
desinteresses da escola. a verdade é que o teu tio tocava
viola espantosamente e eu nunca dei importância a isso. quem
sabe se ele deveria ter ido para músico?
a tua mãe ficou com a ideia que a directora de turma se sentiu
posta em causa pelo tal professor de medicina. parece que o
senhor só falava no facto dos professores da tua turma nunca
se terem reunido antes para conversarem e cada um ter uma
opinião diferente sobre ti e sobre os teus colegas. pela minha
parte, só me lembrei que não fiz nenhum comentário quando
foste à cozinha ler um poema, estava eu a fazer leite-creme
para o jantar. no fundo, estamos todos a pensar que tens de
entrar para a faculdade para seres economista, não será melhor
dizeres já se não queres nada disso? também, para dizer a
verdade, como podes viver da poesia? no meu tempo e a
propósito de um escritor qualquer, dizia-se que não vivia da
pena, vivia da pena que a mãe tinha dele.
pego agora no livro que me ofereceste no natal e sinto um
arrepio. não posso deixar de pensar que não estás bem e que
essa apatia e falta de interesse pelos estudos é afinal uma
grande tristeza. abro o pequeno livro de capa castanha, de
vasco graça moura, deve ser um senhor que aparece na
televisão, eu em poesia fiquei no fernando pessoa. li:

"vem, quando o coração não aguenta


a atroz pressão dos versos numa prega
mais da realidade, a violenta
morte cujo revólver, se fumega
por disparar assim à queima-roupa,
guarda inda balas no tambor
de uma melancolia que não poupa
as sua muniçÕes e o mais que for

da praxe para um dia, no grau zero,


se apagarem sinais do coração,
quer o queiram sincero ou insincero
vem, de certeza, quando já não são

os golpes da paixão arrebatada


a comandar a vida, o desafio
de jogar de uma vez a tudo ou nada,
como a roleta russa, a sangue frio."

... paixão, revólver, a sangue-frio... gonçalo, neto adorado,


pede ajuda. não te mostres desinteressado ou hostil quando
queres que te amparem. não te mostres preguiçoso ou
indiferente quando sei que a tua cabeça não pára de pensar e
bem lá dentro não sossegas um momento.

(b) alternativas

insisto na ideia de que muitos problemas se avolumam na


escola pelo simples facto de a estratégia fracassada ser
repeti-
da sem cessar. a breve trecho, o professor está esgotado e o
comportamento desajustado permanece inalterável.
a busca de alternativas para a resolução dos problemas
avaliados requer grande criatividade por parte do professor. É
fundamental alterar o modo de proceder: por exemplo, mudar
completamente o método de ensinar, utilizando o vídeo em vez
da exposição cansativa, a simulação de papéis em vez do
confronto directo, a leitura de recortes de revistas em vez do
manual do costume. basicamente, é preciso fazer o imprevisto
para obter mudança comportamental. todos os professores
experientes utilizam estratégias inesperadas para resolver os
dilemas com que se confrontam. não é possível nem desejável a
existência de uma cartilha de receitas para qualquer situação
que possa surgir no âmbito da relação professor-aluno. a
título de sugestão, dão-se algumas ideias que poderão ser
úteis (1):

(1) cf. murphy, j. e duncan, b., brief intervention for school


problems, guilford press, n. i., 1997.

-- mudar a frequência do problema -- por exemplo, em vez de


recomendar em todas as aulas a elaboração do trabalho de casa,
fazê-lo apenas uma vez por semana;
-- alterar a duração do problema -- se um aluno discute toda a
aula com um colega, propor-lhe só o fazer cinco minutos em
cada aula;
-- mudar a localização do problema -- sugerir ao professor
ciciar um comentário ao aluno em vez de responder
simetricamente ao grito do estudante;
-- alterar a sequência das questÕes à volta do problema -- se
o estudante sistematicamente se comporta de modo desajustado e
depois pede sempre desculpa e diz "para a próxima vou atinar",
sugerir que no princípio das aulas seguintes ele comece
justamente pela frase "vou atinar".
esperemos que os professores que eventualmente lerem este
livro não o apliquem como uma receita da maria de lurdes
modesto. pretendo somente dar exemplos de alternativas
inesperadas que surpreenderão, em vez de seguir, sem chama ou
imaginação, o comportamento habitual que o estudante já sabe
controlar.

3.o passo -- acreditar/manter a mudança

toda e qualquer evolução obtida, mesmo que mínima, deveria ser


valorizada. impressiona verificar a descrença que se
estabelece tantas vezes na sala de aula, com o aluno
genuinamente a tentar melhorar um bocadinho, o professor a
alterar ligeiramente o seu modo de actuar e os dois sem verem
a melhoria já conseguida. É preciso encorajar diariamente e
fazer notar ao estudante que foi ele que conseguiu a alteração
do comportamento avaliado como indesejável. se ele foi capaz
de mudar, será capaz de manter a mudança, se o interventor
permanecer disponível.
a partilha dos resultados obtidos é, por si própria, um
estímulo para conseguir mais e melhor. É preferível fazê-lo em
privado, no intervalo a seguir à aula, do que enfileirar num
discurso paternalista em frente dos colegas. um velho
professor do liceu pedro nunes, no meu tempo de estudante,
oscilava entre dizer "você, que era um rapazinho tão brioso,
que se passa consigo?" ou "temo-lo cá outra vez!", em todas as
situaçÕes de quebra e posterior recuperação. as frases, tão
repetidas, provocavam o riso de toda a turma e novos focos de
indisciplina. mais de trinta anos depois a situação repete-se
nalguns locais...

problemas graves,
professores paralisados

nas dezenas de escolas que visito anualmente em todo o


território nacional, procuro transmitir a crença na
possibilidade de mudança e a convicção de que estamos num
momento decisivo para a construir. encontro muitos professores
motivados ou mesmo entusiasmados, alunos criativos e
saudavelmente críticos, funcionários atentos e pais
mobilizados para a melhoria da escola. É com este vasto
conjunto de pessoas que é possível trabalhar, é para eles todo
o meu esforço e reflexão.
não esqueço o muito que é exigido aos professores do ensino
básico e secundário. apesar de o seu número de horas de
trabalho semanal não ser muito elevado -- bem menor do que em
muitos países da europa --, a pressão dos acontecimentos
problemáticos na escola, o impressionante conjunto de tarefas
burocráticas a que são sujeitos e a falta de recursos externos
à escola tornam difícil o seu quotidiano.
a situação é mais grave na periferia das grandes cidades.
quando visito escolas na periferia de lisboa, porto, setúbal
ou amadora, encontro muitos professores paralisados perante
alunos com muitas dificuldades, escolas com problemas de
segurança e pais sem lá aparecerem, com associaçÕes de pais
permanentemente queixosas da sua ausência.
sei que cerca de 100 000 estudantes abandonam anualmente o
sistema escolar sem terem concluído o 9.o ano da escolaridade
obrigatória, mesmo quando a escola está pedagogicamente bem
organizada e os professores aplicam, por exemplo, muitas das
estratégias referidas. oiço então dizer: "os alunos não têm
regras, vivem em barracas"; "os pais estão na droga, é uma avó
que toma conta dele"; "já foi ao psicólogo uma data de vezes e
não deu nada, não admira, em casa só há violência"; "chegam
aqui sem terem comido nada, como podem aprender?". estas
posiçÕes traduzem um profundo mal-estar do grupo docente,
gerador de uma descrença que leva ao desinteresse ou ao
esgotamento. professores que leram o meu livro voltei à escola
sorriram com benevolência e consideram que tenho uma visão
idealista da sala de aula. "deveria vir dar aulas para a
brandoa ou para o laranjeiro", gritou-me uma vez uma
professora aflita de uma escola perto de almada.
compreendo bem a gravidade destas situaçÕes e a dificuldade em
encontrar alternativas. sei que não é possível pretender que a
escola tenha êxito e recupere crianças permanentemente
excluídas de uma sociedade do faz-de-conta. julgo, contudo,
que é preciso conhecermos um pouco melhor o problema.
a questão começa no jardim-de-infância e nas escolas do 1.o
ciclo. com o pai e a mãe a trabalharem ou à procura de
emprego, quem toma conta das crianças até aos dez anos, quando
as instituiçÕes falham ou acabam as actividades escolares? um
estudo recente, na região da grande lisboa (1), mostra que

(1) estudo de anália torres e j. l. santos castro, apresentado


na assembleia da república em janeiro de 1998.

apenas 16% das crianças ficam com os avós e que as redes


familiares são frágeis ou inexistentes, sobretudo nos casos de
maior necessidade. as soluçÕes institucionais com preços
acessíveis
são claramente insuficientes e é solicitado o apoio para a
aquisição de competências específicas para a educação das
crianças, mais
do que é reivindicada uma política de simples atribuição de
subsídios.
estas crianças vivem em condiçÕes de vida muito desfavoráveis,
o que constitui à partida uma situação de risco psicossocial.
existe uma causa estrutural para este problema: a pobreza. as
causas da pobreza estão na sociedade. tive ocasião de afirmar,
em colóquio realizado na assembleia da república em janeiro de
1998, que a ausência de uma política de habitação que desse
uma casa a todos os portugueses e acabasse com as barracas era
a vergonha da classe política. pouco se poderá fazer por uma
pessoa que não tem casa, cujos pais lutam diariamente por um
emprego precário e em que os filhos desde muito cedo contactam
com a droga ou a prostituição infantil. muitas destas crianças
de risco vivem desde o seu nascimento em situação de pobreza e
exclusão social que tornam logo à partida problemática a sua
vida. desde muito cedo são abandonadas, maltratadas ou
negligenciadas pelos pais, não porque estes sejam à partida
mal-intencionados, mas porque as suas condiçÕes de vida são de
tal modo problemáticas que são necessárias estratégias de
simples sobrevivência, incompatíveis com o desempenho de
funçÕes parentais.
para sobreviver, a pré-primária e a escola do 1.o ciclo não
são a solução. não admira, pois, que muitas destas crianças
comecem desde logo por não ir à escola e entrar em esquemas de
trabalho infantil, ou em estratégias ilícitas, para obter a
possibilidade de continuarem vivas. +s vezes fazem falta à
família para "trabalharem" na mendicidade ou na droga, não
para aprende-rem a ler e a escrever. sabe-se hoje que 80% a
90% das crianças que estão na rua provêm de famílias muito
carenciadas, em que cerca de metade são de origem
cabo-verdiana. impressiona ver como a protecção destas
famílias e em particular destas crian-
ças dos 0 aos 2 anos não constitui a prioridade das
prioridades, como costumam dizer os nossos políticos. mas não.
provavel-mente é mais rentável eleitoralmente falar todo o
tempo de serviços para toxicodependentes, esquecendo que a
prevenção de
todos os comportamentos desviantes começa exactamente
aqui!
estas crianças vivem desde cedo na rua, nos seus bairros de
origem e perto das suas casas (?) degradadas. adoptam desde
muito cedo códigos linguísticos característicos, muitas vezes
relacionados com os países africanos de onde vieram os seus
pais. vadiam pelos bairros de miséria, roubam ou desenvolvem
expedientes para vencerem o seu dia-a-dia. colocam-se em
situaçÕes de risco para tentarem, desesperadamente, conferir
um sentido para a vida. julgam-se livres, mas estão numa
prisão. É natural que desenvolvam sentimentos de profunda
aversão face a uma instituição formal, cheia de regras e de
saberes pseudo-
-organizados como é a escola tradicional.
estes problemas, a escola dita "regular" não pode resolver.
infelizmente, os professores perderam a sua função de agentes
produtores de cultura e hesitam no caminho a seguir. alguns,
num esforço notável, procuram suprir estas carências
multiplicando-se em actividades muito louváveis, mas
destinados ao insucesso, porque a concepção do actual sistema
de ensino, planeado para meninos brancos e da classe média,
como eu costumo brincar,
não permite respostas adequadas. É essencial que os professo-
res se organizem e denunciem a impossibilidade de ensinar
estas
crianças na escola tradicional. infelizmente, vejo muitos a
desistir ou a reivindicar psicólogos, polícias e assistentes
sociais. mais técnicos para burocratizarem o sistema, se as
causas são estruturais? mais do mesmo, novamente! adiante
falarei de outras propostas que julgo pertinentes. para já, é
crucial evitar a paralisia dos professores perante a dimensão
dos problemas de certos alunos em determinadas escolas.
os professores estão muito habituados a olhar para os factores
de risco, embora o conhecimento desses dados não se revele
muito
útil para a sua acção. É deste modo que muitos docentes
desen-volveram competências para detectar os seguintes
factores de risco:

-- a nível individual -- história de abuso ou violência, baixa


auto-estima, doença física ou mental;
-- a nível de família -- doenças nos pais, desorganização
familiar, pobreza, toxicodependência;
-- a nível da comunidade circundante -- desemprego,
isolamento, poucas redes de suporte social, problemas de
habitação.

que fazer com estes dados? proponho um corte radical com este
olhar.
vamos fazer antes duas coisas: pesquisar factores protectores
e organizar pedagogicamente a escola.
sabemos, da investigação psicossocial, que crianças e jovens,
mesmo a viver em circunstâncias muito desfavoráveis, conseguem
desenvolver aspectos da sua personalidade que os tornam mais
resistentes às condiçÕes adversas. todo o esforço deverá ser
concentrado, não na análise dos factores de risco, mas antes
na potenciação dos factores protectores, que a seguir se
exemplifi-cam:

-- a nível individual -- boa saúde e aparência física,


episódios de envolvimento afectivo com sucesso face a alguns
adultos (por ex., um professor), algumas competências
interpessoais;
-- a nível da família -- existência de algum familiar
disponível, família com dificuldades mas com regras claras;
-- a nível da comunidade -- suporte social, envolvimento
autárquico, estratégias de ligação entre a escola e o emprego,
espaços para jovens.

um aluno de insucesso só poderá melhorar se descortinarmos um


conjunto de factores onde ele possa triunfar, por mais
diminutos que nos pareçam de início. olhemos em volta e
descobriremos. o que tem de ficar bem claro à partida é que a
escola está pensada para a sociedade dominante e por isso a
reproduz. a escola é selectiva e por isso exclui. jamais
poderemos pensar que cabe à escola resolver os problemas
estruturais das sociedades actuais, caracterizadas cada vez
mais por pobres cada vez mais pobres, ricos cada vez mais
ricos, consumismo exacerbado e quebra de redes de
solidariedade da vizinhança.
É preciso compreender também que as perturbaçÕes emocionais
estão relacionadas com dificuldades escolares, mas não compete
ao professor o seu tratamento. para que fique bem claro o meu
pensamento: sou a favor da presença do técnico de saúde men-
tl na escola, sou contra a psicologização ou psiquiatriza-
ção da escola. quer isto dizer que a escola não pode funcionar
como um consultório gigante, com um psicólogo afogado em ca-
sos que vão desde simples questÕes de indisciplina causadas
pela relação professor-aluno, ou pela má organização da sala
de aula, até graves problemas de doença mental ou de carência
social.
o psicólogo deverá trabalhar muito ligado aos professores
procurando, com a sua visão do problema, ajudar a redefini-lo
e a enquadrá-lo de um modo diferente. deverá estar muito bem
articulado com as estruturas de emprego e de saúde existentes
na zona, fazendo os encaminhamento, necessários. combaterá
firmemente a estigmatização e a marginalização existente em
muitas escolas, que leva a serem considerados de insucesso
alunos simplesmente diferentes. dinamizará projectos dos
alunos que julgue pertinentes para a melhoria do clima
escolar. lutará pela estranhamente abandonada saúde escolar
(onde estão essas equipas, que não se sentem nas escolas?)
através de uma colaboração interdisciplinar.
os professores não são psicólogos. não lhes compete fazer
diagnósticos, nem dissertar sobre as dificuldades familiares
dos alunos, nem sobre as suas eventuais rupturas afectivas.

o meu neto foi hoje ao psicólogo e a entrevista não correu


mal. o gonçalo estava muito desconfiado. sabe que o seu caso
tem sido falado na sala dos professores e parece que houve uma
professora qualquer que falou do fim do seu namoro à frente
dos colegas. tentei explicar-lhe que deveria ser para ajudar e
ser compreensiva, respondeu-me agressivamente que de boas
intençÕes estava o inferno cheio. por isso, faltou à primeira
reunião com o psicólogo e disse-me avó, não vou lá. a avó quer
que a escola inteira saiba que eu ando passado dos carretos?
resolvi sugerir-lhe que talvez fosse bom falar primeiro com
algum dos professores, que tal a professora de português de
quem ele às vezes falava? olhou para mim muito sério e não
respondeu.
nessa noite, sonhei que ele estava à beira de um precipício e
eu sem forças para o agarrar. o gonçalo gritava pela avó e
eu,
velha como os trapos, com as pernas a tremer e sem ter forças
para o puxar para o pé de mim! manuel, não me deixes agora, se
estivesses ao meu lado agarravas este rapaz! acordei com a
roupa completamente revolta e semiatravessada na cama.
no dia seguinte, soube que o gonçalo tinha mesmo falado com a
professora de português. parece que ela vai publicar os poemas
num jornal qualquer. muito a bem, pela positiva, ofereceu-se
para falar com o psicólogo. foi por isso que o meu neto lá
foi. felizmente o psicólogo encorajou-o muito e sugeriu-lhe
falar de novo com a mesma professora. parece que não vai fazer
nenhum tratamento especial na escola e ainda bem. detestaria
ter o meu neto com um diagnóstico na testa.

aos professores compete um conjunto mínimo de conhecimentos


que permita detectar algumas situaçÕes de risco e compreender
alguns elos do desenvolvimento susceptíveis de articulação com
a didáctica da sala de aula. É bom que o professor seja uma
referência estável, a quem o aluno possa recorrer, mas que
deverá parar rapidamente se não se sentir à vontade no seu
papel. uma prática de vinte anos com professores e alunos
diz-me que muitas vezes a fronteira entre o professor e o
psicólogo não está bem definida. se não se sabe o que vai
fazer com a confidência que se recebe ou com a informação que
se obteve, é melhor não fazer nada. É terrível criar
expectativas de suporte afectivo e social que não podem ser
satisfeitas.
o texto seguinte fornece pistas de compreensão e
esclarecimentos importantes sobre a acção do técnico de saúde
mental perante as perturbaçÕes emocionais no contexto escolar.

aprender a viver (perturbaçÕes emocionais


e dificuldades escolares) --
pedro strecht

caderno de significados

e um caderno de linhas aberto, calmamente esperando


movimentos compassados do lápis a desenhar letras, pala-
vras, números, contas... aprender é isto, mas felizmente que
a vida é muito mais. há coisas que se aprendem tão bem
sem quase ninguém ter que ensinar e tanta coisa que se
ensina que quase ninguém aprende. ainda bem que há sem-
pre uma certa ironia aliada da verdade, um escrever direito
sobre linhas tortas, um acertar que segura e confirma, um
falhar que descobre e alerta, um mal-estar que lembra e
desperta.
há uma mensagem que se resume a isto: descobrir de novo a
simplicidade esquecida das coisas, a harmonia secular do bom
senso e em caso de dúvida (como no palco da tragédia ou da
comédia) "sê sempre tu próprio!".
o verdadeiro ensino não está só nos manuais, não se aprende
soletrado em 10 liçÕes, não se compra estafado na encomenda de
ocasião, nunca chega por decreto (quanto a isso, nunca). mais
força que todas as leis tem o homem e dentro dele as crianças:
o poder de inverter a certeza de alguns movimentos, muitas
vezes antes que o sol feche o seu círculo no céu, o contrário
de uma certa tendência para pensarmos demasiado em nós
próprios, o secreto entender que de altos e baixos se faz a
tranquilidade.
antes que as crianças sejam velhas de mais para verem sozinhas
o que há para ver, ensinemos-lhes ternamente a vida, a maior
das sabedorias.

contas de cabeça

no trabalho diário do médico de pedopsiquiatria as queixas da


escola continuam a ser das principais que trazem pais e
crianças ou adolescentes às nossas consultas. destacam-se duas
componentes:

-- dificuldades de aprendizagem (capacidade de adquirir e usar


conhecimentos);
-- problemas de comportamento (habitualmente instabilidade,
hiperactividade e agressividade/destrutividade).

estes últimos são muito importantes. julgo mesmo que grande


parte dos professores de hoje passa muito tempo, mais do que a
tentar ensinar o seu grupo de alunos, a tentar conter
comportamentos mais ou menos disruptivos. também de uma forma
geral, e em muitos casos em particular, as estruturas de
funcionamento depressivas, nas suas diversas formas, continuam
a ser as mais vulgares perturbaçÕes emocionais que condicionam
estas dificuldades. o contributo da psiquiatria infantil e
juvenil para a compreensão de algumas destas situaçÕes não é
único nem exclusivo; contudo, ela pode ser extremamente útil
pois ajuda a perceber o que se passa no mundo interior destas
crianças e adolescentes. dito de outra forma, pode constituir
um meio de entender o que será que afinal eles aprenderam tão
bem que não os deixa aprender o que lhes queremos ensinar.
a questão não é fácil, mas existem alguns pontos prévios que
convém não esquecer. eles constituem o básico de uma proposta
de discussão para o entendimento de perturbaçÕes emocionais
que podem condicionar dificuldades escolares:

-- que a maioria das situaçÕes graves de dificuldades


escolares de crianças e adolescentes expressa também um
mal-estar psíquico que não se originou apenas no momento em
que se tornou observável; começou seguramente num qualquer
ponto anterior da evolução infantil, tomou corpo e deu sinais
exteriores provavelmente na altura em que vários mecanismos de
defesa não foram mais capazes de o conter internamente. a
conclusão mais rápida que este pressuposto permite é a de
assim ser possível reforçar a ideia de estarmos atentos e
aptos a reconhecer sinais precoces de sofrimento psicológico,
antes que eles resultem numa espectacularidade de queixas com
repercussÕes no meio (no caso, a escola);
-- que a maioria desses mal-estares tem um significado na vida
emocional inconsciente dessa criança ou adolescente. ou seja,
que é preciso compreender a ligação entre o que eles pensam e
sentem, e o que simbolicamente expressam. por exemplo, um
menino que dá um pontapé na porta da sala de aula não está
propriamente mostrando uma zanga contra a porta, mas sim
provavelmente contra alguém ou algo que lhe provocou esse
sentimento. aqui, a ajuda pressupÕe também que os adultos
compreendam isto e que saibam descodificar uma mensagem que,
aparentando uma coisa, quer dizer outra. o diogo era um rapaz
de 10 anos que fazia muito repetidamente este tipo de
comportamentos que descrevemos. da conversa com ele, com a sua
professora e com a avó com quem vivia, foi possível entender a
ligação entre estes actos e ausência dos pais, para a qual não
encontrava significado (o pai recons- tituíra família e pouco
o contactava e a mãe ausentara-se do país por razÕes
profissionais): "sou como uma rã de um filme que eu vi. era a
história de uma rã verde que tinha ido parar a um mundo
vermelho e então não sabia lá muito bem o que fazer..." esta
frase do diogo parecia bem elucidativa da desadequação das
respostas do meio às suas necessidades afectivas e vice-versa;
-- que nesse casos, aquilo que normalmente funciona na escola,
falha; leia-se: um contacto adequado entre professor e
criança, um currículo interessante e moldado (dentro do
possível) às realidades individuais e do grupo, uma resposta
afectuosa de estímulo positivo quanto aos resultados obtidos.

as estruturas depressivas destas crianças e adolescentes dizem


cada vez mais respeito a falhas narcísicas (auto-estima) cujas
raízes se desenvolveram desde os primeiros anos de vida,
condicionando paragens, desvios ou distorçÕes de um sólido
crescimento emocional. a estabilidade de fases mais evoluídas
do desenvolvimento psíquico está longe de ser o que predomina.
um nível muito comum de funcionamento é o que podere-
mos chamar de "incorporativo-evacuativo", de que uma boa
imagem pode ser a de "água a correr para uma pia de ralo
aberto"; isto é, a informação flui sem que nada fique retido
no interior e na riqueza das ligaçÕes psíquicas. na melhor das
hipóteses, quando mecanismos defensivos de clivagem conseguem
manter mais afastada a dor psíquica, assiste-se a uma colagem
de conhecimentos feito à custa de processos de "identificação
adesiva". o resultado final é que não existe aplicação
possível, de forma autónoma e criativa, desses conhecimentos:
a repetição imediata por condicionamento (amestração) é o
melhor que eles podem dar em resposta ao que lhes pedem.
contudo, o contrário também é verdadeiro; ou seja, podemos
notar em crianças rotuladas pela escola de inaptas para a
leitura (por exemplo)
uma notável disponibilidade para o funcionamento nessa área,
quando ultrapassados níveis de conflitos que bloqueavam essa
capacidade.
a luísa era uma menina de 8 anos, muito instável na escola,
com dificuldades na escrita e que não sabia ler a palavra pai.
quando a conheci em consulta e lhe pedi para desenhar o que
seria que ela pensava quando estava na escola e que não lhe
deixava espaço para poder estar tranquila para aprender,
desenhou a sua casa. + medida que nos fomos conhecendo melhor,
falou-me depois do pai que estava emigrado na alemanha, e que
já não via há mais de um ano. quando lhe desenho a bandeira
tricolor alemã, disse-me rapidamente: "essa palavra eu sei. É
a-le-ma-nha!" desenho então um avião e escrevo por baixo
"avião". a luísa olha e diz com olhar vivo: "mas essa eu
também sei ler! queres ver?... É tap."
existe, portanto, uma forte ligação entre dificuldades
psíquicas (tanto maiores quanto mais precoces) e o impacte no
equipamento necessário para uma criança aprender na escola,
isto é, em algumas crianças e adolescentes existem níveis de
conflitos psíquicos tão importantes que dificultam a
disponibilidade interior para o conhecimento.
numa simplificação de mensagem diria: aprende melhor quem é
gostado. aprende-se melhor do que se gosta. para uma criança
gostar de aprender tem que primeiro gostar dela e, depois, ter
alguém de quem gostar.

noves fora, nada

as falhas no funcionamento deste tipo de crianças estão também


habitualmente associadas a dificuldades sociais e familiares.
sobretudo do ponto de vista familiar, é possível com
frequência destacarem-se:

-- perturbaçÕes da vinculação pais/criança nos primeiros anos


de vida: muitas vezes o que predomina é o abandono, a
negligência ou o abuso emocional. em muitas encontramos mesmo
abusos físicos e sexuais. as experiências relacionais são
pobres, intermitentes, descontínuas, distorcidas e por isso
sentidas como pouco gratificantes;
-- perturbaçÕes psicológicas de um dos pais (ou prestadores de
cuidados), de ambos ou da sua dinâmica relacional; por
exemplo, destacam-se as perturbaçÕes narcísicas e border-line
da personalidade, tais como as dos pais alcoólicos,
toxicodependentes, etc. nesses casos, os filhos não crescem
numa tranquilidade envolvente nem são pensados conforme os
seus direitos e necessidades de crianças. nos casos mais
graves, funcionam mesmo como objectos utilizáveis à mercê de
produçÕes mentais patológicas dos adultos;
-- desagregação sociofamiliar intensa, isto é, ausência de
"meio facilitador", ainda para mais mantida numa perpetuação
transgeracional de problemas. depois, finda a possibilidade de
manter uma maleabilidade psíquica e alguma capacidade
reparadora, restará a algumas crianças (tal como na geração
anterior a seus pais) fazerem uso do processo de
"identificação ao agressor", como forma de sobrevivência
psíquica: "se nada podes contra eles junta-te a eles", se não
suportas a violência que sobre ti exercem, serás violento,
pois essa é a melhor forma de tu próprio a poderes controlar
sem desistires e assim sobreviveres...

o miguel tem 9 anos, e este é um excerto do nosso diálogo numa


consulta:

"-- tu fazes-me um desenho de mim lindo?


"-- eu sei que tu passaste por muitas coisas que foram
difíceis e que com certeza sentiste como feias, mas isso não
quer dizer que tenhas de te sentir sempre assim, feio.
"-- sou, sou... tu que és lindo, todo enfeitado."
e um outro, não muito tempo depois:
"-- É que eu não gosto de ir à minha escola. É tudo feio...
"-- por que será que tu pensas isso assim?
"-- olha, sei lá! também não gosto de ver cães a levarem
pontapés! "

o miguel veio à consulta porque não aprende na esco-


la, é instável no seu comportamento e agride os seus colegas
e professora. É trazido pela avó paterna, que com ele habita
num bairro degradado da cidade e que também nos diz "não
ter estudos...". as expectativas em relação ao progresso
escolar do neto são pobres. foi abandonado pela mãe. o pai é
toxicodependente desde a adolescência, altura em que também
abandonou a escola, e até recentemente utilizava esta criança
para passar droga, sobretudo durante os períodos da noite,
vagueando até altas horas...
a distorção da auto-imagem deste menino por interiorização de
"maus objectos" era muito importante. muitas vezes, este tipo
de crianças e adolescentes organiza-se em volta de imagens tão
distorcidas como aquela que a "casa dos espelhos" poderia dar:
e como explicar que, de facto, eles tomam como mais importante
a imagem que os reflecte ora "muito altos e magrinhos" ora
"muito baixos e gordos" do que uma outra que lhes estamos a
tentar devolver? porque quem funciona como o verdadeiro
espelho emocional nos primeiros anos de vida são os pais ou os
adultos que moldam o esqueleto das primeiras relaçÕes
emocionais, e, quando estas são vividas como negativas ou
desadequadas, o padrão de funcionamento futuro fica assim
precocemente afectado.
outras vezes, não se trata tanto de uma distorção, mas
sobretudo de uma falha (ausência) de uma construção, que será
a responsável por um enorme vazio interior. a pobreza e
miséria psicológica de algumas famílias condicionam que desde
muito cedo as estruturas destas crianças seja um pouco como a
primeira casa da história dos três porquinhos: frágil,
desmoronável ao primeiro impacto adverso. aqui, depressão
seria também a dificuldade em pensar a ausência, trabalho
especialmente difícil, sobretudo porque os pais são as mais
altas coisas que os filhos criam. um risco futuro seria a
organização progressiva num estado de rarefacção psíquica, com
predomínio das desligaçÕes.
a margarida tem 6 anos e é uma menina que vive numa
instituição. respondendo a uma sugestão da professora para que
faça um desenho da família diz:
"-- família? (pausa)... família? vou desenhar um boneco,
pipocas e um bolo."
antónio, 11 anos, bom nível sociocultural, para quem a morte
recente da mãe se tinha tornado um assunto nunca falado pelo
pai e irmão mais velho, respondeu assim ao mesmo pedido
durante uma consulta:
"-- então vou fazer um pára-quedista e depois... era uma vez
três homens que andavam à procura de uma arca perdida. a arca
tinha o maior tesouro do mundo, mas ela estava mesmo perdida
para sempre."

o imperfeito do verbo gostar

os factores sociofamiliares referidos anteriormente levam


vulgarmente a outras tantas dificuldades individuais:

-- falhas nas boas experiências emocionais primárias. estas


tornam-se impensáveis para as crianças e adolescentes, dada a
sua qualidade traumática, ou distorcidas na expressão de
imagens compensatórias (tanto maiores e mais idealizadas
quanto piores as experiências reais). o padrão relacional é de
uma desconfiança básica em relação a adultos e meio exterior;
-- dificuldades na separação/individuação, acabando na
falha de definição de limites (no próprio interior e do
interior com o exterior). as aproximaçÕes são sentidas como
intrusÕes; as ausências como abandonos. a distância emocional
torna-se muito difícil de gerir e torna-se um factor principal
a ter em conta. algumas das questÕes mais intensas de
"indisciplina" na escola têm aqui as suas raízes;
-- dificuldades na capacidade de pensar: como dizia um
adolescente que segui em consulta, 14 anos, 3.a classe, "é que
à porrada é mais rápido...". os conhecimentos da escola serão
no máximo conglomerados (ilhas ou arquipélagos) não
absorvíveis ou integráveis no funcionamento global do "eu". a
energia psíquica permanece canalizada para a satisfação de
pulsÕes muito primitivas; sobreviver na luta por necessidades
investidas (falsamente) como gratificantes e poderosas
torna-se então uma das estratégias procuradas. muitos deles
acreditam que o peso do passado -- e das primeiras
experiências escolares negativas -- terá de permanecer para
sempre, e que nada mais lhes resta que agi-lo no presente
contra eles próprios ou contra os outros.
temos assim nestas crianças uma sintomatologia caracterizada
por:

-- uma ansiedade predominantemente de perda de amor;


-- distorção das relaçÕes criança/meio, ou seja, criança/
/família/escola, maioritariamente expressa em respostas
reactivas, quer dizer, comportamentos disruptivos. a criança é
a ferida que fere, a que aniquila por medo de ser aniquilada,
a que abandona por medo de ser abandonada;
-- uma patologia do agir visível numa dupla vertente: actos
não pensados, pensamentos não agidos ou comunicados. o comboio
que leva do agir ao pensar não pára no apeadeiro do pensar.
existe uma precariedade na forma como expressam sentimentos,
que vulgarmente não é por palavras; é que muitas vezes as
dificuldades mais importantes ocorreram em níveis de evolução
pré-verbais (primeiros anos de vida).

o zé tem 12 anos e a sua história não é única; é comum e


típica de outras situaçÕes que conhecemos.
o zé viveu com os pais até aos 4 anos, num bairro social muito
problemático. a mãe abandonou-o então. a criança ficou aos
cuidados do pai, homem com problemas de alcoolismo e emprego
incerto. quando entrou para a escola, aos 6 anos, os
comportamentos agressivos tiveram início, não sem que antes
existissem já referências claras de instabilidade
incontrolável no jardim infantil. chegou a agredir a
professora, batia noutros meninos. as dificuldades escolares
eram globais. nenhuma resposta foi posta em prática. os
problemas aumentaram. passou a faltar com muita frequência.
circulava à pendura nos eléctricos da zona.
"-- eu achava que sabia onde a minha mãe estava e ia à procura
dela", explicou-me um dia.
por se achar incapaz de controlar a situação, o pai colocou-o
numa ama "selvagem". aos 12 anos repetia pela terceira vez o
5.o ano de escolaridade. quando entrava na escola era de tal
modo conhecido que colegas e professores temiam pelos seus
actos. o mal-estar era imenso: por exemplo, pendurava-se nas
janelas altas simulando eventuais quedas. noutro episódio,
baixou as calças à frente de todos, numa aula de matemática.
estava em risco de abandonar a escola, apesar de ser um miúdo
muito esperto. dizia-me:
"-- eu bem quero ir, mas é assim... vou pela rua e a estrada
foge-me. eu odeio lá ir. eles também não gostam de mim... +s
vezes gozam-me. um dia, eles vão ver."

como vemos por este caso, na ausência de uma estabilidade


emocional adequada, em que as pulsÕes de ódio (em vez das de
amor) já podem ser importantes, o tal saudável desejo de
crescer e prazer de aprender é apenas uma miragem para estas
crianças.
a vida psíquica organiza-se para um padrão de sobrevivência
perante as lutas internas e externas que constantemente
ameaçam o seu funcionamento. a escola é por excelência
o palco destes dramas; a aprendizagem ainda mora ao la-
do!
acresce ainda um ponto: por vezes, o desfasamento entre o que
a escola pode ou quer oferecer e o que estas crianças ali
procuram é enorme. ninguém procura em alguém o mínimo
denominador comum.

p.rà rua (ou talvez não)

as mais preocupantes situaçÕes de crianças e adolescentes que


não aprendem têm um enorme impacte no dia-a-dia da escola,
levando habitualmente os adultos a sentir a ansiedade, a
confusão e o caos que elas produzem. como muitas vezes é
difícil a escola estar adaptada para responder a isto mesmo,
todos parecem reagir, não reflectindo, dando vulgarmente
respostas que como consequência reproduzem afinal as
experiências precoces de falhas na contenção do meio.

o joão tinha 9 anos, nível escolar quase zero. ou melhor,


estava "oficialmente numa 3.a classe, a um nível de 2.a,
fazendo fichas de 1.a". as queixas de comportamentos
agressivos eram por todos sentidas como imparáveis. o joão
tinha-se tornado o "menino-problema" da sua escola. para que
se possa entender um pouco melhor a razão deste quadro,
podemos acrescentar que este menino tinha sido vítima de abuso
sexual. os próprios pais estavam longe de conhecer a questão
quando falámos nas primeiras consultas.
contudo, a resposta da escola para esta situação tinha sido
colocar a criança a saltitar de sala em sala (todos os dias
uma), numa fórmula em que "repartir o mal pelas aldeias" foi
tida como a acertada. bom exemplo perpetuante de uma
descontinuidade, de ausência de limites, até impeditivo da
organização de um sentimento de integridade e pertença tão
necessário para a reestruturação psíquica do joão. a escola é
mais que uma "federação de salas de aula"; uma criança é mais
que o somatório de várias funçÕes.
este caso relembra ainda uma questão essencial: para que se
atinja a tão desejável "inclusão escolar" será sempre
necessário actuar junto daqueles que não podem (porque estão
psiquicamente doentes) fazer uso dela, e que, portanto, se
excluem ou acabam por ser excluídos; justamente porque a
primeira etapa, a da própria "inclusão e integração" das
funçÕes psíquicas, ainda não existe ou sofreu uma rotura. o
mesmo em relação à questão das puniçÕes e castigos: podemos
punir ou compreender. vulgarmente, quanto mais compreendermos
menos necessidade teremos de punir, embora a questão primeira
seja sempre: que uso fará
a criança dessa mesma punição? controlar por ameaças, pela
dor, humilhação, privação, ou não controlar de todo, são
extremos a evitar.
assim, para estas crianças e adolescentes cujas perturbaçÕes
emocionais condicionam problemas na escola, "aprender a viver"
será o primeiro e decisivo passo para a sua evolução. para
isso, é essencial a reconstrução de uma identidade básica que
facilite um novo modelo de relação com o adulto que lhes está
próximo, de forma a que possam progressivamente recuperar a
confiança em si mesmos, depois no adulto enquanto pessoa e
professor e só depois (e de novo) com os outros em geral, com
o mundo, num nível estável de um prazer de funcionar. só por
fim poderão estar aptas para "viver a aprender". sabemos que o
trabalho é longo, e nem todos conseguiremos recuperar para a
sua própria vida, para uma profissão, para a sociedade. mas é
de pequenos gestos que se podem mudar alguns destinos que,
deixados à sorte, levarão sucessivamente ao absentismo,
insucesso, abandono escolar, desinserção socioprofissional,
toxicodependência, marginalidade, tendo como destinos últimos
os hospitais, a prisão ou simplesmente a rua.

alguns jogos
de escola/brincando
com coisas sérias

"jogo do mata" -- "lado de lá": despotismo. medo.


humilhação. confusão. arrogância. intolerância. inveja.
insegurança. crueldade. amestração. indiferença. descon-
tinuidade. "lado de cá": confiança. tolerância. verdade.
respeito. gratificação. exigência. esperança. previsibilidade.
descoberta. admiração. disponibilidade.
podem entrar mais participantes. mesmo que haja quem jogue do
"lado de lá", é obrigatório para os adultos terem de jogar do
"lado de cá". o objectivo é ir trazendo todos para o nosso
campo, enfraquecendo aos poucos o adversário.

"jogo da macaca": tem de se atirar a marca sucessivamente de 1


a 9 a ver se se acerta e depois fazer o percurso saltitando.
são naturais alguns balanços e hesitaçÕes. nem sempre é fácil
acertar no número que se pretende.

1 -- +s vezes, todos erramos.


2 -- vale sempre a pena ouvir.
3 -- mesmo que a cabeça não pense, o coração bate.
4 -- não há nada que não possa ser posto em palavras (no tempo
e local certo).
5 -- os olhos dizem (quase) tudo e o sorriso vale ouro.
6 -- a empatia vale mais do que qualquer técnica.
7 -- o passado não tem que ser o destino.
8 -- É uma pergunta: que chance tem a minha voz de atingir a
tua e deixar nela um traço?
9 -- mesmo que a verdade seja "não posso ajudar", a esperança
não pode morrer.

boa sorte!

"cabra-cega": um tapa os olhos com uma venda e anda à roda


para ficar sem norte. depois, tem de apanhar outro e descobrir
quem ele é. ganha se acertar. moral da história:

-- não nos conhecemos só pelo que já sabemos;


-- as aparências iludem;
-- quem vê caras não vê coraçÕes;
-- descobrir os outros leva tempo (mas é decisivo);
-- é possível, por momentos, sentirmo-nos perdidos. mas também
é possível encontrar alguém;
-- há sempre boas surpresas (especialmente quando se tiram as
vendas).

"apanhada" (é um dos mais conhecidos; será um dos mais


esquecidos?): as mãos suavemente poisadas, as mãos abertas
minuciosamente -- a esquerda ou a direita (é indiferente) --
numa folha de papel branco, cuidadosamente definidas num
contorno anguloso de lápis, o sorriso então pronunciado com
algumas falhas do risco nas curvas acentuadas.
as mãos docemente postas, ternamente apertando (as minhas),
seguras ou frágeis, grandes ou pequenas. pelas mãos não
sentimos apenas; descobrimos, falamos, vemos, saboreamos,
ouvimos, escorregamos pelos declives da vida, subimos ao cume
da vida, a aspereza da vida, a lisura da
vida.
as mãos em tanta coisa bela, no regaço das mães entrelaçadas,
abraçadas no colo, postas ao serviço de amar. muitas formas de
amar -- sabemos disso -- só são possíveis assim, pelas mãos
que seguram, juntam, apertam, cuidam, desprendem, afastam,
dizem adeus...
e agora, hoje, que as nossas palavras são sempre rápidas,
breves, duras -- já quase não falamos nos braços uns dos
outros --, se cada mão com uma outra sempre existisse, não
ficaria ninguém por ser tocado.

sobre a organização da escola (contribuição breve a tentar


desfazer alguns equívocos)

1 -- autonomia

sou claramente a favor do desenvolvimento da autonomia das


escolas. como já afirmei no meu livro voltei à escola, o
estabelecimento de ensino é uma organização com
características diversificadas. uma escola do interior não é
igual a uma escola do centro elegante de uma grande cidade. o
norte de portugal é bem diferente do sul. embora sejamos um
país pequeno, somos grandes em tradiçÕes e culturas locais. o
gigantismo centralizador do ministério não tem permitido a
flexibilidade organizativa que é cada vez mais necessária à
escola.
quando se analisa a legislação existente sobre a autonomia,
fica-se por vezes com a ideia de que se pode ir mais além em
clareza e precisão. no meu entender, é necessário esclarecer
vários aspectos: autonomia deve significar o apagamento
progressivo do poder central, até aqui o único capaz de
decidir as questÕes educativas. a existência de muitas
escolas, de norte a sul, com uma identidade e uma cultura
próprias permite a construção de projectos educativos locais
(1), aliás já existentes em muitos estabelecimentos de ensino.

(1) cf. macedo, berta, a construção do projecto educativo da


escola -- instituto de inovação educacional, lisboa, 1995.
agradeço à autora algumas sugestÕes para a elaboração deste
subcapítulo.

autonomia, contudo, não significa independência. um


adolescente pode ser autónomo em relação à família e continuar
a depender financeiramente dos pais; mas jamais conseguirá ser
independente se não tiver passado por uma progressiva
autonomia. os interlocutores desta questão, em portugal,
confundem sistematicamente os dois conceitos e ficam
aterrados, pois pensam que as escolas que não forem capazes de
caminhar para a autonomia vão ficar sem funcionar. tal como as
famílias, há filhos mais rápidos que outros a ser autónomos:
só em famílias muito patológicas é que os mais lentos ficam
sem o pão da boca. no mesmo sentido, é evidente que algumas
escolas se vão autonomizar mais depressa. qual o problema? o
que é importante é que o ministério garanta que cada escola
funcione como um centro de formação e educação, que tem de
responder de forma diversificada às necessidades locais.
para mim é evidente que não basta legislar bem a nível
central. basta que o corpo docente de uma escola se altere
substancialmente para que esta passe a ser uma organização
diferente. então a autonomia é um meio e não um fim: é a
possibilidade de encontrar soluçÕes a partir da organização
do sistema. tal como no sistema familiar, capaz de se au-
to-organizar -- e as novas terapias familiares têm bem
demonstrado a capacidade de auto-organização das famílias --,
também a escola se deverá auto-organizar como sistema local de
educação. as áreas de competência das escolas deverão, em
consequência, ser reforçadas e os estabelecimentos de ensino
deverão ser capazes de gerir, com mais ou menos rapidez e
maior ou menor autonomia, as dependências necessárias para o
seu melhor funcionamento.
para que uma escola seja protagonista de um processo de
autonomia, deverá negociar e obter os recursos necessários
para realizar o que pretende. se a escola quer ter uma
identidade que lhe permita fornecer um contexto propício para
realizar o seu projecto educativo específico, deverá
organizar-se internamente e ligar-se ao exterior, para poder
ser diferente. não poderemos continuar a ter programas,
recursos e pedagogias iguais em todo o lado.
o ministério da educação não deverá precipitar a autonomia de
uma escola se esta não tiver condiçÕes para o fazer. os
contratos deverão ser transparentes, mas diversificados e de
acordo com o grau de desenvolvimento. assim como um pai não
faz passar o seu filho do colo para a bicicleta, o ministério
não deverá avançar um projecto de autonomia sem um corpo
docente estável, um projecto educativo realista e uma partilha
de responsabilidades a nível local, e a possibilidade de uma
formação contínua dos professores.
É minha convicção que é preciso ir mais longe na
responsabilização autárquica do sistema escolar. não basta
dizer que os autarcas terão assento na assembleia da escola, é
preciso que a administração central transfira verbas para as
câmaras municipais, de modo a que estas tenham progressivas
responsabilidades na gestão das escolas. esta é a única forma
de evitar o centralismo imobilizador, ou uma excessiva
autonomia potenciadora de uma independência demasiado precoce.
para que a autonomia possa funcionar, é preciso criar ou
dinamizar os conselhos locais de educação, infelizmente com
pouca expressão em muitas zonas do país. quando funcionam,
esses conselhos constituem uma estrutura essencial, geradora
de projectos verdadeiramente inovadores e ligados ao meio.

em resumo, autonomizar progressivamente, responsabilizar


claramente as autarquias, ligar a escola ao emprego e à vida
activa em cada região.

vi hoje no jornal, gonçalo, que ganhaste outro prémio, 1.o


lagar nos jogos florais de poesia da câmara! não pudeste
deixar de sorrir. talvez vá falar com o presidente da câmara e
propor-lhe a edição de um livrinho com as obras dos premiados.
sabes que o presidente era muito amigo do teu avô manuel?

2 -- os pais e a escola

para que também não fiquem dúvidas: sou absolutamente


a favor da cooperação dos pais em projectos da escola que
envolvam os professores, alunos e funcionários. julgo, no
entanto, que os papéis deverão ser bem definidos.
a vida constrói-se em diferentes narrativas e em espaços
diferenciados. É essencial que as crianças e os adolescentes
percebam o papel dos pais e o papel dos professores. um aluno
disse-me uma vez que o professor era um "pai escolar". que
confusão ia naquela cabeça! também ouço professores dizerem às
vezes que são uma "espécie de mães". É preciso dizer bem alto
que esta escola dos afectos, assim indefinida, só traz consigo
a confusão, sobretudo em jovens à pro-
cura da sua identidade ou já a funcionarem em pseu-
do-seres.
o crescimento, como tão bem o demonstrou joão dos
santos (1)

(1) santos, joão dos, ensaios sobre educação i e ii, livros


horizonte, lisboa, 1983.

(um autor estranhamente desconhecido para grande número de


professores actuais), faz-se à custa da conquista de parcelas,
em que o adulto é um mediador entre a criança e o espaço
exterior. crescemos também através de pequenas transgressÕes,
de jogos de cumplicidades entre nós e alguns dos outros, com
os quais os restantes nada têm a ver. a
escola é um espaço de liberdade essencial para as crianças,
que os pais devem acompanhar, mas que não devem controlar.
É preciso que exista uma confiança básica entre as geraçÕes.
para estruturarem a sua personalidade, os jovens precisam de
regras fornecidas por adultos seguros do seu papel e sem medo
das suas convicçÕes.
faz-me muita confusão a presença de pais em conselhos
disciplinares e a acorrerem à escola ao menor sinal de
mal-estar dos seus filhos. estamos a caminhar para uma
desresponsabilização sistemática de todos: professores têm
medo dos pais, pais comentam a didáctica da sala de aula,
alunos não sabem quem manda na escola e em casa vêem uma
conversa, que desejariam ser sobre afectos, desaguar nos
trabalhos de casa.
os pais de hoje têm muitas dificuldades e hesitam no caminho a
seguir. consomem literatura sobre a adolescência à procura de
soluçÕes mágicas. infelizmente, adultos com mais formação não
significam sempre adultos bem formados. por vezes, parecem
perder a espontaneidade necessária à educação livre que
ideologicamente dizem defender. como os professores são um
grupo muito pouco coeso e cheio de dúvidas, arriscamo-nos a
juntar na escola dois conjuntos de adultos inseguros,
disputando o poder e o controlo, mas deixando os jovens sem
saber para onde olhar. experiências de outros países têm aliás
demonstrado que a presença constante de pais na escola não
melhorou a indisciplina (na maioria dos países da união
europeia, os pais não têm assento nos órgãos decisórios das
escolas).
os pais tendem a ser parciais com os filhos. o contrário é que
seria de espantar. por isso, vejo com dificuldade serem juízes
em causas próprias. assim como os médicos não devem tratar os
familiares, penso que os pais o precisam de ser em casa, mais
do que na escola.
em que ficamos, afinal? na palavra "cooperar", que significa
trabalhar em conjunto. organizar e dinamizar projectos. lutar
pela melhoria das condiçÕes da escola. responsabilizar os
filhos para que eles sejam progressivamente os gestores dos
seus deveres escolares. participar, em minoria, na assembleia
de escola. ter apenas um papel consultivo no conselho
pedagógico. penso, aliás, que com a dinamização de activos
conselhos locais de educação, é sobretudo nessas estruturas
que as organizaçÕes de pais devem trabalhar com exigências
eficazes no plano educativo.
É de louvar todo o trabalho efectuado pelas associaçÕes de
pais, com quem trabalho em todo o país. É bom não esquecer,
contudo, que uma grande percentagem dos pais dos alunos são
completamente alheios a todo esse labor. numa investigação que
coordenei em 1996 (1), com uma

(1) sampaio, daniel (coordenador), inquérito "escola, família


e amigos" -- programa de promoção e educação para a saúde,
ministério da educação, lisboa, 1996.

amostra de 9608 estudantes do 8.o ao 11.o ano, média de idades


de 15 anos, recolhida em 111 escolas oficiais de portugal
continental, 53,3% dos pais e 51,9% das mães tinham apenas a
4.a classe. as mães com licenciatura
representavam 8% e os pais licenciados não atingiam os 10%
(9,7%). como pode esta avalanche de pais, infelizmente com tão
pouca instrução, compreender o discurso por vezes hermético
dos dirigentes das associaçÕes de pais, cheios de siglas de
difícil compreensão (ferlap, frapal, confap, etc.)? só um
trabalho em comum, a partir de experiências muito pequenas
vividas em cada escola, concretizadas a partir de um projecto
educativo redigido em português simples e não em "eduquês",
pode levar a uma participação clara e útil dos pais na escola.
por isso, não faz para mim sentido a proposta da ferlap
(federação regional de lisboa das associaçÕes de pais), de
janeiro
de 1998, ao defender que "ao conselho pedagógico
devem ser atribuídos poderes decisórios e não apenas
emissão de pareceres, nomeadamente no que diz respeito a
projecto educativo da escola; orçamento; avaliação do pessoal
docente e não docente; plano anual de actividades". a caminhar
neste sentido, iremos para uma escola onde ninguém se entende.
o ministério da educação deve pensar todo o sistema, no seu
conjunto. fico com a sensação de que, espartilhado entre a
pressão dos sindicatos dos professores e as associaçÕes de
pais, esquece um pouco os alunos, afinal a razão de ser de
tudo isto. É inegável o progresso introduzido pela actual
equipa ministerial, sem dúvida merecedora de aplauso pela
vontade de mexer no sistema, em vez de apenas o gerir. por
isso é que é preciso aproveitar e não ter receio de ir mais
longe.
aproveitemos a força política das associaçÕes de pais para
exigir um melhor ensino. lutemos para que o estado se
responsabilize pelo apoio aos alunos que não têm estruturas
familiares. cooperemos com os professores, mas deixemos a sala
de aula para eles se entenderem com os nossos filhos.
não controlemos permanentemente o que os jovens fazem na
escola, talvez seja melhor falar com eles em casa (1).

(1) agradeço a eulália barros algumas sugestÕes utilizadas


neste subcapítulo.

3 -- sobre a sala de aula

joão dos santos introduziu em portugal a pedagogia


terapêutica, como ajuda alternativa para crianças e
adolescentes que necessitassem de cuidados especiais. no
fundo, é um tratamento de jovens inadaptados que, embora
inteligentes, têm maus resultados escolares. as escolas
portuguesas estão cheias de crianças nestas condiçÕes. são
muitas vezes intitulados "meninos de insucesso" e empurrados
para o ensino especial, para turmas de repetentes ou para
currículos alternativos. este mito de que as escolas e classes
especiais resolvem todos os problemas pedagógicos tem levado à
progressiva descrença e desresponsabilização de muitos
professores.
uma escola bem organizada tem de ter sempre em conta as
relaçÕes estabelecidas entre os que ensinam e os que aprendem.
as educadoras de infância sabem bem que, se a criança não se
conseguiu autonomizar minimamente, não consegue aprender.
para muitas crianças e jovens de hoje, a sala de aula é um
espaço que não serve as suas necessidades afectivas, como
atrás escreveu pedro strecht.
em crianças com dificuldades de aprendizagem, eulália barros
defende a existência "de um conjunto de regras elas
próprias contentoras e organizadoras do funcionamento das
crianças e dos adultos" (1).

(1) barros, eulália, a pedagogia terapêutica em joão dos


santos, monografia cese em saúde mental comunitária, ispa,
lisboa, 1996.

seja qual for a turma em causa, defendo um conjunto de


pressupostos essenciais para o ensino:

(a) o envolvimento pedagógico permanente e activo é in-


compatível com um comportamento persistentemente
indisciplinado ou agressivo.

alunos a trabalhar todo o tempo durante a aula, eis o que


proponho. trabalhar é também pensar, debater, para além de
ler, escrever e contar. o que não faz sentido é ter alunos não
envolvidos no trabalho ou a fazerem as fichas de outra
disciplina. não pode haver dúvidas de que quem manda na escola
é o director ou o presidente do conselho directivo ou
executivo; quem manda na aula é o professor. a escola não é
uma comunidade onde todos têm os mesmos direitos e deveres. a
infeliz expressão "comunidade educativa", um dos vocábulos
característicos do "eduquês", leva a uma permanente
desresponsabilização completamente deseducativa. os alunos
sabem bem o que esta mistificação esconde porque, em
derradeira análise, o professor (e muito bem) acaba por ser o
último juiz que o avalia e o faz progredir ou estagnar.
nenhuma organização social, nenhum sistema humano pode
funcionar sem hierarquia. já viram um governo funcionar bem
sem primeiro-ministro? uma equipa de futebol sem treinador?
uma família onde os filhos mandam é recomendável?
não me parece correcto, por conseguinte, toda e qual-
quer medida que faça diminuir a autoridade do professor,
que lhe é conferida (mal ou bem) por uma qualificação
académica que o torna diferente do aluno e do pai. também
a sociedade em que o aluno vai trabalhar quando deixar de
estudar não é uma sociedade em que cada um pode fazer o que
pretende.
ter autoridade não significa não ouvir o aluno. precisamos
cada vez mais de ter retroacçÕes sobre a forma como estamos a
ensinar. por isso:

(b) a metacomunicação (comunicação sobre a comunica-


ção) é essencial para assegurar progresso.

ouçamos os alunos de uma forma organizada. procuremos


compreender como estamos a ser entendidos. depois decidimos.

(c) a turma deve ser transformada num grupo de trabalho


cooperativo.

mesmo que a turma fosse artificialmente homogeneizada


(tentação totalitária infelizmente praticada em algumas
escolas), os ritmos de aprendizagem são diferentes, porque
díspares são os desenvolvimentos cognitivos.
É preciso ajudar os alunos, desde o início do ano, a ouvir a
opinião dos outros, a deixar falar cada um e a fazer
contribuiçÕes concisas para o trabalho da turma. É essencial
torná-los responsáveis pela ajuda de outros, tendo como meta o
trabalho da turma. alunos mais "rápidos" podem auxiliar outros
com maiores dificuldades de aprendizagem. alguns professores e
certos militantes do movimento associativo de pais ficam muito
inquietos com os "bons alunos" a "perderem tempo" a ajudar
outros. a verdade é que é educativo perceber que existem
diferenças, modos dissemelhantes de encarar um problema e
várias estratégias para o resolver. ajudar um colega é óptimo
para consolidar conhecimentos e cria sentimentos positivos de
solidariedade. "ce qui se pense bien s.enonce clairerr ent",
dizia boileau. já no velho
liceu normal de pedro nunes eu trocava os meus bons
conhecimentos de inglês por umas explicaçÕes do "mate-mático"
da turma.
e evidente que para trabalhar em grupo é preciso acreditar
que:

(d) só a diferenciação das práticas pedagógicas no grupo


turma possibilita a disciplina consentida.

existem muitos professores que dizem ser isto impossível.


nunca mo conseguiram demonstrar. os que não estão
definitivamente ancilosados têm esta experiência como
enriquecedora. É preciso perceber a rede de comunicação
existente em cada turma e trabalhar de acordo com um plano
previamente estabelecido, resultante da análise feita em aulas
anteriores.

(e) o reconhecimento de factores sociofamiliares relaciona-


dos com o comportamento agressivo não isenta o estudante de
ser responsabilizado pelos seus actos.

dito de outra forma: se o aluno não tem regras em casa, a


escola é a última oportunidade para que ele as conheça. numa
escola de lisboa onde trabalho com regularidade, foi curioso
verificar como alunos outrora considerados sem regras foram os
primeiros a cumpri-las, quando os professores se transformaram
num grupo coeso e procederam, sob o ponto de vista do controlo
disciplinar, de um modo concertado.

contra a exclusão escolar

o início do século xx foi caracterizado por algumas


ideias ingénuas. uma das que teve mais continuidade foi a
de que era preciso criar uma escola obrigatória para todos os
alunos. rapazes ou meninas, ricos ou pobres, com família
ou sem família, todos os alunos deveriam ser ensinados
como se fossem um só. estava criada a ideia da escola
popular e da turma homogénea, que tem perdurado até aos nossos
dias.
não demorou muito tempo até o sistema perceber a ilusão que
criara. muitos alunos começaram a "atrasar-se" e, com o apoio
das célebres escalas de q. i. (quociente de inteligência),
foram considerados "diferentes" e muitas vezes colocados
em colégios "especiais". os meninos não aprendiam por-
que não eram inteligentes, logo era necessário criar formas
de compensação para que ultrapassassem a sua falta de
dons.
o grande problema resultante desta evolução tem levado a que
um número crescente de alunos não possa acompanhar o chamado
ensino "regular" (!), passando a engrossar os dispositivos
"especiais" ou a iniciar a sua carreira de tratamento
psiquiátrico. a situação tornou-se profundamente paradoxal:
uma escola de massas, que se quer democrática porque "para
todos", vê sair do seu sistema muitos dos seus membros; a
pretendida escola para todos tornou-se
apenas para alguns. É evidente que as crianças com doen-
ças orgânicas, ou com graves problemas de desenvolvimento
afectivo, são as principais vítimas desta exclusão mais ou
menos disfarçada.
felizmente que muitos se têm apercebido desta realida-
de. foi claro para os investigadores, a partir dos anos se-
tenta, que o "não aprender" é a resultante de uma complexa
teia de variáveis. pode-se não aprender porque não se ouve
bem, porque se tem uma doença mental ou porque o clima
da sala de aula e a relação professor-aluno dificultam a
aprendizagem.
foi então que se começou a pensar de maneira diferen-
te: se a escola se organizasse e fosse capaz de criar meios
e estratégias de apoio à educação, talvez fosse possível
diminuir o número de alunos de "insucesso" e minorar o
problema da exclusão escolar. para isso era preciso
distinguir os alunos que necessitam de médicos daqueles que
podem evoluir se o modelo educativo se modificasse de
modo a incluí-los.
foi graças a esta evolução que alunos com deficiências
passaram a receber apoios adequados que lhes permitiram
frequentar a escola regular. passou a falar-se de "alunos
com necessidades educativas especiais", pediu-se mais
claramente o apoio dos pais à escola e muitos professores
receberam formação específica para o ensino destes alunos.
É neste sentido que se fala da "escola de inclusão",
definida na declaração de salamanca (assinada por muitos
países, entre os quais portugal, em 1994) com o princípio "de
que todos os alunos devem aprender juntos [...]; as escolas
devem reconhecer e satisfazer as necessidades diversas dos
seus alunos, adaptando-se aos vários estilos e ritmos de
aprendizagem, de modo a garantir um bom nível de
educação para todos através de currículos adequados, de
uma boa organização escolar, de estratégias pedagógicas, de
utilização de recursos e de uma cooperação com as respectivas
comunidades [...]". como escreve sérgio niza num texto onde me
inspirei directamente, "as escolas que queiram corresponder a
este novo desafio contra a exclusão terão de implementar novos
modelos pedagógicos de cooperação e de diferenciação [...]; só
uma pedagogia diferenciada centrada na cooperação poderá vir a
concretizar os princípios da inclusão, da integração e da
participação".
os debates sobre a disciplina e a autonomia das escolas
não podem esquecer o problema da exclusão escolar. impressiona
ver, em tantos textos dos jornais ou no
debate do parlamento, como se fala de autoridade e de
castigos, de regras tradicionais e de medidas a tomar, como se
fosse possível aplicar o mesmo fato a alunos de tamanhos tão
diferentes.
precisamos educar com exigência e qualidade, mas sem esquecer
a exclusão.

tomaste a decisão certa. vale mais andar para trás e ires


fazer uma coisa que gostes. o teu pai teve dificuldade em
aceitar que voltasses para o 10.o ano, com a tua nova meta de
estudos portugueses. pela minha parte e como velha professora
que sou, apesar de reformada, acho que gostar de ler e
escrever poesia é uma coisa linda. ainda és muito novo e tens
tempo à tua frente. acho que o psicólogo te ajudou, mas
confessa uma coisa à avó: não achas que a professora de
português foi uma querida?
felizmente estás mais bem-disposto e tornaste a sair à noite.
telefona muito cá para casa uma rita, mas acho que não te
deves precipitar. É pena não estares mais em casa para falares
comigo.

alguns temas para reflexão

a) os estudantes estão diferentes. têm novos saberes,


acreditam muito pouco nos políticos e receiam o futuro
imprevisível. todos iguais em dignidade e em direitos
(apregoa-se!), cada vez estamos mais dissemelhantes. fala-se,
há muito tempo, da "modificação do perfil psicológico dos
discentes" (1), facto

(1) bertaux, p., "um novo projecto humano", in a educação do


futuro, unesco, bertrand, lisboa, 1978.

que muitos professores parecem não querer ver. quando a


internet revolucionar a escola, poderá ser tarde. a verdade é
que bertaux falava, há vinte anos, "do aumento da
sensibilidade visual e audiovisual e regressão da
sensibilidade auditiva pura; maior rapidez a aprender símbolos
e sinais; considerável dificuldade em se concentrarem mais de
dois ou três minutos seguidos sobre o mesmo tema". se isto é
verdade, é altura de ensinar de outra maneira a todo o vapor.
infelizmente, a nossa sociedade faz pouco apelo à vida mental.
passamos a vida a pôr pensos rápidos nos problemas que
encontramos e isso é também o slogan da moda acerca da nossa
mente: "eu penso rápido".

felizmente, a sociedade do século xxi vai ser cada


vez mais auto-reflexiva. É bom começar a fazê-lo na escola.

b) os valores cultivam-se no relacional. não vale a pena


escrevermos frases sobre a cidadania e a solidariedade, se só
somos capazes de pensar na humanidade e não no homem que está
ao pé de nós. que me interessa a bandeira da escola "educação
para os valores" se as pessoas se desconhecem.

c) É preciso investir fortemente no ensino recorrente e no 9.o


ano ligado à vida activa. os alunos que completam 15 anos até
15 de setembro de cada ano podem ser integrados em turmas de
ensino regular, irem para uma turma do 3.o ciclo do ensino
recorrente ou serem integrados em currículos alternativos
(circular 16/97, dep. educação básica). É bom que as escolas
não esqueçam esta possibilidade. o despacho conjunto n.o
123/97 do ministério da educação e do ministério para a
qualificação e o emprego permite a articulação com a vida
activa através de um ano de formação profissional que garante
a obtenção de um certificado profissional. É uma perspectiva
que não pode ser desperdiçada.

d) a prática do desporto e da educação física tem de ser


revolucionada. acabemos com velhos ginásios de espaldar e com
regras de desportos que ninguém gosta de jogar. o confronto
com o espaço natural, a imprevisibilidade do meio envolvente,
o risco e a aventura, a liberdade de opção pela prática
desportiva, são necessidades actuais do corpo adolescente. as
novas culturas juvenis apropriam-se dos ambientes e exigem
outro tipo de confrontaçÕes. ousemos, também aqui, propor as
mudanças necessárias (1).

(1) cf. rodrigues, a., valores e representaçÕes corporais em


culturas juvenis escolares, dissertação de mestrado, faculdade
de motricidade humana, lisboa, 1997.

e) alteremos também a prática do jardim-de-infância e criemos


estruturas de apoio à primeira infância inspiradas no modelo
familiar. crianças sem família deverão ser acolhidas em casas
com ambiente afectivo o mais próximo possível de uma família.
acabemos com a picotagem e a iniciação cedo de mais à leitura,
numa criança que ainda não aprendeu a olhar e a registar o que
vê.

f) reforcemos o papel do pai na família. os homens também


sabem tomar conta de bebés. as licenças de maternidade devem
ser iguais às de paternidade e aumentadas urgentemente.

g) conciliemos a vida profissional e a vida familiar, através


da flexibilidade de horários, licenças nos empregos para ir à
escola dos filhos e formação profissional contínua das
auxiliares de infância e das ajudantes familiares
profissionais. melhoremos os centros de saúde com consultas
acessíveis a jovens pais e a seus filhos (educação parental).

e, por último, e acima de tudo: a escola não pode ser igual


para todos. como diz eulália barros, "não podemos submeter
todos os seres diferentes a um modelo único de ensino
(teórico, formal-abstracto)"

a própria lei bases do sistema educativo prevê orientaçÕes


vocacionais diferentes até ao 9.o ano. temos de começar desde
já a ensinar coisas diversas, conforme as capacidades e os
interesses dos alunos, em diálogo com os pais e tendo uma
permanente perspectiva de ligação escola-vida activa. o ensino
até ao 9.o ano deve possibilitar a cada aluno a descoberta
precoce das suas tendências e capacidades. só assim a escola
retomará sentido.

anorexia nervosa:
o templo de ar
um diário -

dulce bouça

ando preocupada com a mariana. alguma coisa se passa com ela


que me está a escapar. com a minha idade e a experiência de
ter criado dois filhos e três netos sinto que a minha mariana
tem algum problema que não conta a
ninguém.
o sorriso lindo que sempre teve e a alegria que trazia para a
família têm-se apagado desde há uns tempos. passa o dia
fechada no quarto a estudar, ou então na cozinha a
experimentar receitas que eu fui juntando desde há muitos anos
e depois quase nos obriga a comer tudo, insistindo sobretudo
com os irmãos para que se alimentem bem. ela, pelo contrário,
nem sequer prova o que faz e cada dia a vejo pôr menos comida
no prato.
recusa-se a sentar-se connosco à mesa e leva o tabuleiro para
o quarto dizendo que a televisão lhe faz dores de cabeça ou
que vai adiantando os trabalhos enquanto janta.
a minha filha o que quer é que ela tenha boas notas, diz com
alguma vaidade que é para não perder tempo de estudo e o meu
genro nem repara no que se passa porque só pensa na empresa e
nos negócios.
a manuela também não anda bem e sinto que não é só a escola
que a preocupa, mas não desabafa nem pede ajuda. há dias
deixou escapar que se sentia muito sozinha e incapaz de ajudar
o gonçalo e eu não consegui dizer nada. o meu genro é um bom
chefe de família, um pai extremoso que não falta com nada aos
filhos, mas como marido é pouco carinhoso, não namora a
mulher, habituou-se a que ela resolva tudo e não perde tempo a
ouvi-la.
as vezes ouço-os a discutir no quarto e receio que ela me fale
nos desentendimentos que têm, porque não sei que conselhos lhe
hei-de dar.
sinto muito a falta do meu marido, que se estivesse vivo teria
tempo para me ouvir e me sossegar.
tenho muitas saudades dele e é à noite na minha cama que choro
a falta das suas palavras sensatas para me ajudarem a aceitar
a mudança dos tempos e dos hábitos.
sobre a mariana acho que ele me diria não andes atrás da
miúda, deixa-a resolver os seus problemas, mas como estou
sozinha não consigo ver a minha neta tão estranha e não fazer
nada.
há dias veio cá o meu outro filho porque o joão fazia anos e a
manuela quis juntar todos num jantar. nesse dia a mariana não
pôde desculpar-se com os estudos e veio comer à mesa.
quando se serviu pôs no prato uma quantidade tão pequena de
comida, que a tia disse oh! mariana, só comes isso? como é que
consegues estudar a comer tão pouco? todos olharam para o
prato da mariana e ela começou subitamente a chorar, numa
angústia que deixou todos em silêncio. pensei que o pedacinho
de carne e os bagos de arroz iam ficar a boiar nas lágrimas
que escorriam pela face da mariana e caíam uma a uma no prato.
toda a família ficou suspensa naquela aflição, a minha filha
disse que a menina anda cansada por causa do estudo, o meu
genro irritado disse que esta gente nova não sabe o que quer,
e os rapazes disseram em conjunto ao pai que não chateasse.

resolvi salvar a mariana daquela situação e menti. disse que


ela tinha comido enquanto me ajudava a preparar o jantar e que
agora não devia ter fome e assim acabaram as lágrimas,
permitindo que a festa continuasse.
vou ver se consigo arranjar maneira de falar com ela sem
parecer que me quero meter na sua vida.
alguém tem que fazer qualquer coisa, porque a minha filha anda
muito cansada para tomar decisÕes.
passei toda a noite com um pesadelo terrível. toda a minha
família estava num barco a fazer uma viagem para outro país
onde o meu genro ia trabalhar. eu era ao mesmo tempo a
cozinheira do navio e a avó que realmente sou.
a viagem era muito atribulada porque o mar estava muito
revolto e as indicaçÕes do comandante eram para ninguém sair
dos camarotes.
a minha filha passava o dia deitada, doente e cada vez
mais fraca; o meu genro jogava às cartas com os rapazes e o
gonçalo parecia muito menos triste do que o costume.
eu andava numa correria, todo o dia a cozinhar e a tentar
fazer a comida que a mariana mais gosta, mas na hora da
refeição já eu era de novo a avó, uma onda gigantesca entrava
na sala e levava toda a comida para o mar. ninguém se
preocupava com isso, excepto a mariana que corria pelo convés,
batida pelo vento e arrastada pela onda a tentar apanhar a sua
comida sem o conseguir, porque escorregava, caía, voltava a
levantar-se e a cair de novo.
eu voltava à cozinha, preparava tudo de novo e voltava sempre
aquele temporal para impedir a mariana de comer.
acordei exausta, mais cansada do que me deitara, e pensei que
tinha sido um aviso para fazer alguma coisa pela minha neta.

fui ao quarto dela disposta a puxar conversa, mas já não a


encontrei, tinha saído para as aulas. reparei então num saco
de plástico debaixo da cama e quando me aproximei para ver
melhor, encontrei vários sacos com restos de comida das
refeiçÕes dos últimos dias.
percebi que a mariana não come quando vem para o quarto,
esconde a comida para depois a deitar fora e é por isso que
não toma as refeiçÕes à mesa connosco.
estará doente? só pode ser alguma coisa grave e de que não se
queixa para não preocupar a mãe.
que doença é esta que não deixa a menina comer, e que está a
deixá-la triste e enfadada da vida?
o que me intriga é que ela continua inteligente e ambiciosa
nos estudos e as notas que traz da escola são sempre as
melhores.
os pais, com tantos problemas para resolver, só têm
olhos para os bons resultados escolares e não reparam como ela
anda triste, há muito que não traz amigos cá a casa,
nem é convidada para as festas de anos onde dantes costumava
ir.
dantes... quando tudo estava bem e o gonçalo não tinha aquela
maldita depressão que deixou a minha filha acabada e infeliz.
dantes... quando a mariana era a princesa da casa, sempre
bem-disposta e pronta a ajudar todos.
dantes... quando os miúdos eram pequenos e a casa se enchia de
barulhos, de risos e correrias e cada um de nós sabia qual era
o seu papel.
a minha filha era feliz e eu sentia-me útil a ajudá-la e a
tratar das crianças porque tinha um testemunho a passar.
revivi com os meus netos a minha experiência de ser mãe, com
menos ansiedade e menos pressa para fazer tudo.
a mariana sempre foi um bebé com ritmo próprio que fazia
impacientar a mãe, pressionada por horários a cumprir e uma
carreira como professora em que sempre se empenhou muito, daí
resultava pouco tempo para se adaptar às dificuldades da bebé
para comer.
apesar de crescer bem e ser sempre saudável a mariana nunca
mostrou grande gosto pela comida, era preciso entretê-la na
hora das refeiçÕes, caso contrário, se pressionada cuspia ou
cerrava os dentes e nada a convencia. nunca a minha filha teve
o gosto de a ver comer com interesse e desesperava-se achando
que a menina se alimentava mal e iria ficar doente.
felizmente eu tinha tempo, contava-lhe histórias e ia
conseguindo que fizesse uma refeição completa, por isso me
habituei a fazer-lhe os pratos que mais lhe agradavam e assim
libertei a minha filha de preocupaçÕes.
hoje sinto que a mariana já não se deixa levar pelas minhas
ideias nem pelos meus petiscos, bem gostaria de poder entender
o que a preocupa. será alguma doença do crescimento que está a
consumi-la? mas porquê esta tristeza e revolta que lhe sinto
no olhar e nas palavras?
dantes eu sabia sempre o que fazer e se tinha dúvidas o meu
marido tinha sempre uma ideia para me aliviar a alma.
hoje sinto-me assustada porque acho que se falar ninguém vai
entender o que sinto, acham-me fora de época e não vão perder
tempo a pensar nos meus pensamentos.
eu própria sei que tudo mudou tanto e tão depressa, que o
que era certo ontem pode já não o ser hoje e os meus olhos
vêem um mundo que pouco tem a ver com o da minha infância.
contudo não deixo de pensar que preciso de ter uma ideia nova,
ainda que a minha memória me atraiçoe com
recordaçÕes antigos em que a força me vinha do amor e da
esperança; um já me deixou, a outra anda a precisar de
cuidados, de frágil que está.
mais uma discussão ao almoço de domingo e o meu genro a perder
o controlo e a dizer que não respondia pelos seus actos se ela
continuasse a não comer, a minha ilha a chorar dizendo que não
aguentava tantos conflitos e a mariana parecia um pássaro a
debicar grão a grão o arroz, com um dedo de bife todo desfeito
e espalhado pelas bordas do prato.
deixei-os todos sair de casa para irem visitar a outra avó e
eu voltei ao quarto da mariana. precisava de encontrar algum
sinal que me permitisse dar um passo para sair deste drama que
estamos todos a viver.
encontrei na gaveta da secretária o diário dela, aberto, e
tinha escrito no dia de ontem "quando penso no meu corpo
imagino-me uma estalactite, afilada e luminosa pela sua
transparência".
não entendi nada e por isso não resisti a ler outras folhas,
mesmo sabendo que estava a violar os segredos da minha neta.
sentei-me na cama e fui lendo o que estava escrito nos últimos
meses e que me revelou um drama que a mariana tem vivido desde
junho do ano passado, já lá vão nove meses. nessa altura dizia
assim:

"junho
"a minha vida não tem mais interesse, porque o diogo começou a
curtir com a minha melhor amiga, que é mais bonita e mais
magra do que eu, não tem papos nem pernas gordas como as
minhas e sabe conversar. eu nunca sei o que hei-de dizer e
nunca curti com ninguém, por isso fico sempre de parte e não
consigo ser boa companhia.
"estou gorda, as pernas roçam uma na outra e o rabo
é enorme. detesto o meu corpo cheio de gordura, ninguém pode
gostar de mim, assim.

"julho
"comecei a fazer dieta. tenho que perder uns quilos, 3 ou 4
talvez já cheguem para eu ficar com menos rabo e coxas.
"deixei de comer doces, açúcar e pão e na balança já tenho
menos l kg mas ainda não se nota nada. tenho que continuar,
sem perder tempo e com muito controlo para não falhar.

"agosto
"já perdi mais 3 kg, mas tive que deixar de comer sopa e
carne. ainda ninguém percebeu que estou a fazer dieta, porque
continuo a comer peixe e verduras; a mãe até acha bem porque
ela própria queria emagrecer, mas nunca consegue por causa dos
doces.
"a avó é que já me disse que ando a alimentar-me mal para a
minha idade, mas eu disse-lhe que comia nos intervalos das
aulas que é quando tenho mais fome.
"não quero preocupar a avó porque ela é a força da nossa
família."

aqui parei de ler. estou muito aflita porque descobri o


segredo da mariana e não posso usá-lo, nem dizer à minha filha
o que sei porque ela não seria capaz de guardar esta
confissão, ia entrar em desespero e querer esclarecer logo
tudo e a minha neta nunca me perdoaria ter lido o seu diário.
estou num túnel sem saída porque não posso fazer nada com o
que descobri. hesitei em continuar a ler, mas depois de uns
minutos em que me senti sufocada, decidi continuar. já que
vou ter que suportar este peso sozinha vou tentar saber mais,
saber tudo se possível.

"outubro
"hoje pesei-me e tenho menos 10 kg. sinto-me vitoriosa por ter
conseguido, mas tenho medo de me olhar no espelho, de me ver
ainda gorda porque é assim que ainda me sinto, gorda e confusa
porque a pele está seca, o cabelo fraco e não tenho peito
nenhum. mas sinto a barriga ainda grande e não me vejo magra
como as pessoas dizem que estou.
"o pior de tudo é que não me vem a menstruação e tenho medo de
estar a ficar doente.
"+s vezes tenho uma grande vontade de comer doces, mas não
posso descontrolar-me depois de tudo o que consegui.
"ainda tenho que perder uns 2 ou 3 quilos para poder provar um
doce no natal.
"o diogo já não anda com a madalena, pode ser que me convide
para a festa de anos dele."

parece-me impossível que a mariana tenha perdido tanto peso


sem darmos por isso.
tenho que inventar um pretexto para ela aceitar ir ao
medico.
a menstruação recolhida é muito perigosa, sempre disse a minha
mãe, até pode subir à cabeça e levar à loucura.
É urgente a mariana ir-se tratar, mas como?

"dezembro
"estou cheia de medo do natal. aqueles doces todos na mesa e a
família a comer... a comer... e a insistirem comigo para
provar, posso perder a força e ganhar todos os quilos que já
perdi -- 15 kg.

"o diogo não me convidou para a festa, os meus amigos olham


para mim como se fosse doente, não foi para isto que eu lutei
tanto!
"agora já não posso fazer nada e engordar é impossível,
voltaria tudo ao mesmo.
"já não me custa passar sem comer, porque já não tenho apetite
e qualquer coisa que cai no estômago provoca-me dores e um
peso enorme que nunca mais passa.
"ainda me falta perder a barriga que parece cada vez maior,
talvez porque os intestinos passam mais de uma semana sem
funcionar, apesar dos laxantes da mãe que tomo todos os
dias.
"a menstruação nunca mais veio, mas a mãe não pode saber ou ia
logo pensar que estou muito doente e eu não quero que sofram
por minha causa.
"É fácil disfarçar o corpo com roupa larga."

há dois dias que não durmo a pensar no que está a acontecer


com a mariana e eu sem saber o que fazer.
disse à minha filha que achava a menina muito emagrecida e com
má cara, que talvez fosse melhor levá-la a um médico e ela
respondeu que o gonçalo não estuda, não conversa nem quer
estar com os amigos, decerto que anda de novo deprimido e
acrescentou mãe, a minha vida está tão complicada, que não sei
para onde me virar, e eu respondi-lhe deixa, filha, dá tempo
que tudo se há-de resolver.
também eu passei por momentos difíceis e não tive uma mãe a
quem pudesse confiar as minhas magoas, a vida era dura para
ela e sempre me ensinou que era preciso lutar contra a vontade
de baixar os braços, porque a dignidade e a esperança são
coisas que nunca acabam.
assim eu cresci, sempre à procura de uma razão para
dar graças a deus por estar viva e poder descobrir novas
oportunidades para ser feliz.
assim eu vivi, assim tentei ensinar os meus alunos a nunca
desistirem e a acreditarem na sua vontade, assim cheguei a
este tempo a querer transmitir aos meus filhos e netos que
vale a pena viver e agarrar a alegria, mas não estou a
conseguir passar-lhes o meu testemunho, porque os valores de
hoje são outros e talvez mais difíceis de manter.
aos 15 anos eu pensava no futuro e sonhava, o gonçalo pensa
que não tem futuro e a mariana não sonha, vive de medos.
alguma coisa se perdeu no fio das nossas vidas e é preciso
encontrar de novo um sentido para continuar, a minha angústia
é que não sei por onde começar.
fiquei um serão sozinha com os pequenos, porque os meus filhos
saíram os dois, o que já não faziam há muito tempo e isso
pareceu-me um bom sinal para algo poder mudar.
estávamos os quatro na sala em frente da televisão a ver a
telenovela e eu perguntei o que é curtir?
as três cabeças voltaram-se na minha direcção de olhos
espantados e o joão disse oh! avó, isso não são assuntos para
a sua idade... o que é que lhe deu?
expliquei que no café tinha ouvido uma conversa entre duas
raparigas em que uma dizia à outra que tinha curtido com um
vasco, e como não entendi a que se referia resolvi pedir aos
meus netos que me ensinem alguma coisa nova.
a mariana sorriu, o gonçalo não se manifestou e o joão uma vez
mais tomou a palavra para dizer avó, curtir é mais ou menos um
rapaz e uma rapariga gostarem de estar um com o outro, e
acrescentou estarem numa boa, assim como numa transe, a
conhecerem-se.
perguntei se não era o mesmo que namorar, porque eu também
namorei e tive muito prazer nesses momentos em que conheci o
meu marido e ele me enchia de carinho.
a mariana entrou na conversa e disse namorar é mais sério, tem
mais compromisso, percebe? curtir é curtir...
disse-lhes que no meu tempo isso se chamava "flirt" porque não
deixava marcas e o joão rectificou mas curtir deixa marcas,
porque pode ser uma boa experiência, mas também pode correr
mal e ser um fracasso.
a mariana ouvia com atenção o que o irmão dizia, por isso
aproveitei a deixa e perguntei como é que os rapazes de hoje
gostam que seja uma rapariga. o joão respondeu gira, com bom
corpo, bem-disposta e que saiba conversar.
aqui, o gonçalo deu a sua opinião isso não existe, vivem todas
a pensar só no corpo e têm a cabeça oca.
a conversa que estava a chegar onde eu queria ficou por ali,
porque o telefone começou a tocar e nunca mais parou.
a mariana foi estudar, e eu fiquei sozinha na sala a pensar no
desgosto que ela tinha por não conseguir ser como queria.
ainda voltei mais uma vez ao diário à procura de uma nova
inspiração.

" janeiro
"o natal foi horrível porque havia muita comida e eu sem poder
provar nada, nem sentir-me feliz como os outros.
"quando me sento à mesa os alimentos parecem-me pedaços de
jornal e as letras todos os bocadinhos em que os corto.
"quando engulo sinto a tinta do papel a escorrer da boca até
ao estômago e quando a comida lá chega são pedras que caem
pesadamente e me deixam cheia e dilatada como se estivesse
grávida.
"por isto tudo e pelo medo, muito medo, de engordar não posso
comer, mas como me sinto fraca e a perder as forças sou
forçada a escolher alguns alimentos que me mantenham viva.
preciso de fazer mais exercício para queimar calorias. vou
experimentar comer em pé, estudar em pé, ver televisão em pé,
para a gordura não se acumular.

"fevereiro
"já não aguento mais esta vida que tenho levado. pensava que
um dia poderia despreocupar-me com a comida, mas agora vejo
que isso nunca vai acontecer. perdi os meus amigos e vejo os
meus pais tristes, sempre a discutirem por minha causa e
sinto-me culpada.
"pensei falar com a avó, mas não posso fazê-lo porque a mãe ia
sentir-se traída por eu não ter confiado nela.
"não tenho saída nenhuma, se morresse era menos uma
preocupação para todos, talvez se unissem mais e voltássemos a
ser uma família feliz.
"estou perdida e sozinha no meu sonho que era de ouro e se
tornou cinza. morrer seria a minha glória possível."

dói-me a alma como se estivesse para parir um filho morto.


dói-me a memória de uma vida construída para amar, que chegou
a este momento de trevas em que me sinto sem
forças para me libertar desta criança morta que trago dentro
de mim.
esta noite não vou dormir porque o céu está cheio de estrelas
e a luz de todas juntas entra no meu coração, como para me
mostrar um sinal que não descobri ainda.
as estrelas dão-me qualquer coisa de paz e de consolação
porque têm uma ordem fixa que dá segurança e assegura a
continuidade. sinto-me esta noite em ligação com elas, que
mesmo sem me enviarem calor me inundam de uma luz tão forte
que parece capaz de gerar vida e sabedoria.
quando eu era criança a minha mãe costumava vir para o quintal
connosco, nas noites estreladas de verão, e fazia-nos repetir
uma conversa com as estrelas que dizia assim: estrelinha
cintilante que no céu estás a brilhar se nesta altura o...
(pai, avó, amigo, etc.) em mim estiver a pensar faz que um cão
ladre, um gato mie ou um homem assobie.
depois, ficávamos todos, muito calados, sem respirar à espera
do sinal desejado.
como isto se passava no campo havia sempre um animal ou um
homem noctívago que nos alimentava o sonho.
e eu acreditava nessa união entre todos, protegida pelas
estrelas da nossa aldeia.
hoje, da janela do meu quarto repeti o mesmo pedido ao céu
desta cidade onde vivo e que acredito estar ligado ao céu do
meu passado.
perguntei às estrelas se o manuel lá em cima estava a pensar e
fiquei de respiração presa à espera de uma resposta.
nem cão nem gato nem homem deram sinal.
mas eu não desisti e aguardei que ele ouvisse a minha súplica.
então, de repente uma estrela deslocou-se no firmamento, a
correr como aquelas que diziam que anunciavam a entrada de uma
alma no céu.
sei que foi o manuel a dizer-me vai em frente, faz o que tens
a fazer!
deitei-me na minha cama em paz e com a mesma esperança de
sempre, para me entregar ao que me é pedido.
tive um sonho tão real que estava com certeza relacionado com
o movimento da estrela.
quando tinha 12 ou 13 anos, fui com a minha mãe visitar
uma rapariga que vivia na nossa terra e que toda a gente
dizia que era possuída por uma alma que nela tinha entrado
para cumprir uma penitência que em vida não tinha completado.
era uma rapariga de 18 anos que tinha deixado de comer. só
vivia de água, a que misturava vinagre e fruta de uma arvore
que tinha no quintal.
no inverno comia pão de vários dias que guardava em caixas que
acumulava no quarto.
era magrinha, magrinha, como os tuberculosos do sanatório, mas
tinha uma força para trabalhar em casa e no campo que a todos
admirava.
era ela que cuidava de toda a família, uns diziam que era
possuída de uma alma pecadora, outros que era uma santa que
não precisava de comer porque se alimentava do bem que fazia.
quando fui visitá-la tive medo do olhar penetrante com que me
fixou e à salda disse-me uma coisa que nunca entendi:
alimenta-te bem, para cresceres saudável e seres feliz.
um dia caiu à cama com tosse e morreu em poucos dias.
no meu sonho real, a certa altura essa rapariga tinha a cara
da mariana e servia-nos à mesa, a mim, aos pais e aos irmãos,
uma comida quente e saborosa que ela nunca provava.
acordei alagada em suor.
a mariana não pode morrer!
encontrei-me com ela no quarto onde estava a estudar. agora
sei que além do estudo está a pensar na dieta, no peso e no
corpo em que se sente presa. perguntei se podia interrompê-la
uns minutos para lhe contar um segredo. a mariana olhou-me
assustada, como se nunca tivesse imaginado que também posso
ter segredos. (mal sabes, mariana, que o meu maior segredo
neste momento, roubei-to, do teu diário que nunca devia ter
lido e para o que não tenho qualquer perdão.)
e disse-lhe quero confessar-te que pela primeira vez na minha
vida me sinto velha, porque percebi que nunca mais vou amar
ninguém para além de vocês, e agora só me preocupo em não
perder as memórias que são a prova do que vivi, embora às
vezes me pergunte se terá sido verdade aquilo de que me
recordo. a avó está doente?, perguntou. não, minha querida,
estou um bocadinho triste, o que não é muito o meu género,
como sabes, porque tenho receio de cada vez menos poder
corresponder ao que esperam de mim.
a avó é a força da nossa família, disse a mariana com um olhar
preocupado que me fez sentir mais pesadas as forças que vão
fraquejando desde que perdi algumas certezas (... manuel não
me deixes agora sozinha...).
disse-lhe que a força desta família eram ela, o joão e o
gonçalo, o avô que não continuou na nossa vida, como eu
gostava, mas não sei se sou capaz de os ajudar a não
desistirem de ser felizes.
a avó foi feliz?, quis saber a mariana, nesta altura já com a
voz apertada e um mar de emoção contido por trás de um olhar
voltado para o seu martírio glorificado.
respondi-lhe que sim sem nenhuma hesitação, mas tive que lutar
para não perder a esperança nos momentos em que pensei que não
ia conseguir o que queria.
eu também tenho medo, avó, de não ser capaz... e as
lágrimas da mariana saltaram puras, luminosas e cheias de
vida.
(manuel, dá-me a tua mão para eu ser capaz de aliviar o
sofrimento da nossa neta, que quando nasceu veio ajudar a
resolver um momento difícil que estávamos a viver os dois,
lembras-te?)
avó, acho que tenho uma doença que se chama anorexia
nervosa,... é tão difícil explicar-lhe o que é.
respondi-lhe que tenho lido nas revistas que é uma doença das
princesas, que sendo bonitas e admiradas se sentem feias e
infelizes, que era difícil imaginar o que a fazia a ela
infeliz e ainda mais difícil ter uma solução para os seus
problemas, fossem eles quais fossem, mas que era preciso
rapidamente e sem medo procurar ajuda.
conversámos longamente, nessa tarde, a mariana esqueceu os
estudos e fez-me perguntas sobre a minha adolescência, a da
mãe e sobre os seus primeiros tempos de vida.
parecia querer avidamente encontrar um sentido para a sua vida
e um lugar de pertença e de direito na família.
não fiz perguntas (para quê, já sei tanta coisa...) porque
seria obrigá-la a devassar a sua intimidade (perdoa, mariana,
teu segredo irá comigo para as estrelas...) mas percebi que
aquilo que a preocupa deveras é a falta da menstruação.
então combinámos que falaria com a mãe para a levar ao nosso
médico de família e lhe contaria tudo para ele a orientar.
tenho medo avó, quero mudar mas não quero modificar o meu
corpo, e eu respondi-lhe tens medo, minha filha, mas tens
também muita força, tanta que eu nem consigo entender...

uma doença

a anorexia nervosa (an) é uma doença complexa e fascinante,


descrita há muitos anos e que desde sempre tem suscitado o
interesse dos investigadores e a inquietação dos famílias onde
se manifesta.
as protagonistas desta história que atravessa o tempo são
quase sempre mulheres, uma vez que a doença só atinge o sexo
masculino em 5% a 10% dos casos. são uma espécie de heroínas
trágicas, com um percurso em que se entrecruzam o misticismo,
a rebeldia e a dedicação e onde surge algumas vezes a morte.
lembremos catalina bennicasa, mais tarde santa catarina de
siena, notável mulher do século xiv. filha de um artesão
italiano e com mais de vinte irmãos, nasce em siena em 1347,
um ano antes do aparecimento da epidemia de peste que
atravessaria a europa. desde criança, decide permanecer virgem
e sacrificar-se comendo muito pouco, de modo a "retirar a esta
carne qualquer outra carne, pelo menos aquilo que for
possível" e passando muito tempo preocupada a alimentar os
seus familiares e animais domésticos. a família de catarina
compreende mal as suas privaçÕes e não aceita a sua recusa em
tentar um casamento que lhe garanta mobilidade social. apesar
de castigada, a jovem mantém as suas privaçÕes e o seu
estoicismo, comendo cada vez menos e autoflagelando-se
frequentemente.
com uma determinação e uma inteligência notáveis, catarina
envolve-se na vida religiosa da cidade, onde acaba por ter um
papel importante. É assim que em 1376 vai a avignon convencer
o papa gregório xi a deixar a frança e a instalar-se em roma,
como era tradição. passa desde então a ter um papel activo na
luta por uma igreja mais austera e interveniente, ao lutar
pela unidade das instituiçÕes religiosas até à sua morte, em
1380, por provável an.
É sempre delicado fazermos um diagnóstico retrospectivo, mas
as descriçÕes do seu confessor e os seus próprios escritos
revelam períodos de jejum prolongado, recusa alimentar,
mastigação incompleta dos alimentos seguida de vómitos
autoprovocados e um emagrecimento progressivo até à inanição.
o sacrifício por um ideal é levado ao extremo, deixando de se
alimentar e entregando-se à causa de deus com uma dedicação e
um estoicismo absolutos, até à sua morte com 33 anos.
muitas outras mulheres célebres são hoje consideradas
anorécticas. elisabete da ¦ustria, a imperatriz sissi, rainha
da hungria, tinha 1,72 metros e não queria ultrapassar os 50
kg, pelo que fazia dieta muito restritiva e exercício físico
intenso, quer no ginásio junto ao seu toucador quer em longos
passeios a cavalo. a sua biografia é atravessada pela
dedicação à família e à causa real e preenchida por
acontecimentos trágicos, entre os quais o suicídio do seu
filho rodolfo, a loucura do seu primo luís da baviera e a sua
própria morte, num regicídio, em 1898.
lembremos também a magreza e o idealismo de virginia woolf e
karen blixon, escritoras que alguns autores têm como
anorécticas, e particularmente a filósofa francesa simone
weil, que falava da espiritualidade no trabalho e se dedicou à
causa dos trabalhadores até ao esgotamento. escreve ela:
"desde os doze anos que sofro de uma dor à volta de um ponto
central do sistema nervoso, no sítio de reunião da coluna e do
corpo, que permanece durante o sono e que nunca parou, nem
sequer um segundo". existem muitos testemunhos da sua extrema
magreza e recusa alimentar,
até à sua morte, em 1943, com 34 anos, seguramente por an.
mais perto de nós, quem pode esquecer a princesa diana de
gales, que sofria de anorexia bulímica? em 1993 tive o
privilégio de assistir, em londres, ao discurso que fez na
abertura do mais importante congresso internacional sobre
doenças do comportamento alimentar e que se realiza,
alternadamente, em nova iorque e na capital de inglaterra.
diana fez uma intervenção em que assumiu a sua própria doença
e exortou os mais de quinhentos participantes, de muitos
países, a lutarem pela melhoria do tratamento destas doenças.
a sua declaração ocupou a primeira página de todos os jornais
e noticiários televisivos do mundo ocidental e foi importante
como estímulo para a participação das autoridades de saúde no
combate às consequências destas afecçÕes. quando hoje
assistimos a programas de televisão sobre a sua vida, podemos
verificar as oscilaçÕes do seu peso. na famosa entrevista à
bbc fala da sua bulimia e dos seus períodos depressivos. a sua
vida de princesa do povo, na feliz expressão de tony blair,
terminou num acidente trágico que impressionou o mundo.
qual a relação entre o misticismo de catarina de siena, o
sacrifício de simone weil, a infelicidade de diana e as
anorécticas anónimas que o final do século xx vê aumentar em
cada dia? no momento actual dos nossos conhecimentos, ainda
não podemos responder completamente a esta questão.

minha querida neta mariana, tenho tanto medo da tua doença. li


noutro dia que, ao contrário do que eu pensa-
va, não é uma coisa só dos jovens de hoje. julgava que era
provocada pela vossa mania de serem magras ou pelo vosso
costume de comerem a correr. sei agora que no passado
existiram muitas pessoas com anorexia e algumas delas morreram
por não comer. embora não consiga entender o seu sofrimento,
não deixarei de pensar em ti.

sabe-se que a primeira descrição médica da doença foi feita em


1689 pelo inglês norton, que a designou por "consumpção
nervosa", mas só no século xix o francês lasègue e o inglês
gull a identificaram claramente como entidade clínica. lasègue
acentuou a causa psiquiátrica da doença e william gull
recomendou o afastamento de familiares e amigos para aumentar
a eficácia do tratamento, ao mesmo tempo que, em 1873, criava
o termo anorexia nervosa, que ainda hoje se mantém.
após um período em que a doença foi confundida com uma
insuficiência da glândula hipofisária, é a partir dos anos
setenta que a investigação e a clínica da an sofrem impulsos
decisivos, em grande parte devidos à contribuição de três
pioneiros: hilde bruch, arthur crisp e gerald russell. bruch
chama pela primeira vez a atenção para a perturbação da imagem
corporal de que sofrem muitas destas doentes.

não percebi, mariana, a tua pergunta de ontem. estavas no meu


quarto a olhar para o espelho e a dizeres que estavas mais
gorda. tu, gorda? agora que te vejo a emagrecer dia após dia,
sem conseguires parar... agora que deixaste de gostar dos meus
cozinhados e dizes que eu faço tudo com muita gordura... agora
que saltas refeiçÕes porque dizes que não tens fome!
crisp conceptualizou a an como uma "fobia do peso", devido ao
receio mórbido que estes doentes têm de engordar,
relacionando-a com as dificuldades psicológicas de encarar as
transformaçÕes maturativas da puberdade e da adolescência.
segundo este investigador inglês, o crescimento pubertário
constituiria uma ameaça psicológica para uma rapariga ou um
rapaz até aí sem grandes desafios, resguardados por uma
família protectora e estimulados por uma capacidade
intelectual muitas vezes acima da média. a mudança do corpo,
as questÕes levantadas pelo grupo adolescente, a sexualidade
emergente e o desejo de autonomia levariam a uma "fuga ao
crescimento", explicativa da regressão a um padrão infantil
característico desta afecção.
a contribuição de gerald russell é crucial. reconhecido
internacionalmente pelo seu contributo decisivo para a clínica
e investigação da an, foi também muito importante para o nosso
grupo. conheci-o pessoalmente em pavia, em 1992, num
inesquecível jantar num castelo medieval, após um congresso
internacional. É alto e magro, lembra incrivelmente um mocho
sábio tal como o imaginámos na infância e impressiona pela sua
educação e simplicidade. hoje, reformado e com mais de setenta
anos, continua a tratar doentes e a escrever, mas também é
capaz de se sentar a ouvir e a tomar apontamentos das últimas
descobertas ou a estimular o trabalho de um jovem
investigador. trouxemo-lo a portugal para uma das nossas
reuniÕes científicas e sempre fala da beleza de lisboa, da
simpatia com que o recebemos e da nossa crónica falta de
pontualidade.
em 1970, russell estabeleceu pela primeira vez, de uma forma
clara, as três características fundamentais da an:

comportamento persistente com o objectivo de per-


der peso.

alteraçÕes psicológicas características causadas pelo medo de


engordar.
presença de uma perturbação originada por alteraçÕes
endócrinas e que se traduz na falta de menstruação
(amenorreia) nas mulheres e falta de potência e interesse
sexual nos homens.

russell continuou a estudar sistematicamente os seus doentes


com an e verificou que muitos deles tinham uma evolução
diferente. enquanto um grupo mantinha uma dieta rigorosa com
frequentes períodos de recusa alimentar, outros tinham uma
alimentação muito desorganizada, com períodos de jejum
alternando com momentos em que literalmente eram capazes de
comer tudo o que encontravam pela frente. estabeleceu então os
critérios para uma nova doença, a bulimia nervosa (bn),
utilizando a palavra de raiz grega "bulimia" que significa
"fome de boi". estávamos em 1979 e o seu célebre trabalho (1)
marcou um momento decisivo na história das

(1) russell, g. f. m. (1979), "bulimia nervosa: an ominous


variant of anorexia nervosa", psychological medicine, 9, pp.
429-448.

doenças do comportamento alimentar. russell considerou a bn


uma variante ominosa, sinistra, da an, definindo-a assim:

os doentes sentem necessidade imperiosa, compulsiva, de comer


em excesso.
fazem tentativas persistentes para evitar o aumento de peso
provocado pelos alimentos, através do recurso a vómitos
autoprovocados e/ou laxantes.
têm um receio mórbido de engordar.
mais tarde compreendeu-se que a bn poderia surgir em doentes
que não tinham um passado de anorexia. foi a época em que
falámos de bulimia de peso normal, pois estes doentes não
tinham a quebra ponderal característica da an e
caracterizavam-se sobretudo pela sua alimentação caótica e
pelos comportamentos compensatórios destinados a não aumentar
de peso.
a partir de 1987, russell coordenou importantes estudos de
terapia familiar no hospital maudsley, em londres. foi a
partir destes trabalhos que ficou bem marcada a vantagem do
tratamento familiar, sobretudo nas anorécticas de menos de 18
anos.
diagnóstico da an

o diagnóstico pressupÕe sempre um exame físico detalhado e


exames complementares (análises e radiografias) que excluam
outra doença, mas é relativamente fácil quando a doença está
bem estabelecida. baseia-se actualmente em critérios bem
definidos, tais como surgem na classificação americana das
doenças mentais (dsm iv, 1994):

a) recusa em manter o peso corporal igual ou acima do normal


para a idade e para a altura, o que deve ser entendido como
perda de 15% de peso em relação ao esperado ou fracasso no
ganho ponderal justificado para o período de crescimento (a
maioria destes doentes são adolescentes).

b) medo intenso de aumentar de peso ou ficar gordo/a, mesmo


quando muito emagrecido/a.

c) perturbação na apreciação do peso e forma corporais,


indevida influência destes na auto-avaliação ou negação da
gravidade do baixo peso actual.

d) nas mulheres, amenorreia durante pelo menos três meses


consecutivos.

alguns autores valorizam o índice da massa corporal, que se


obtém dividindo o peso em kg pela altura em metros, elevada ao
quadrado (normal 20 a 25). um índice igual ou menor que 17.5,
na presença de outros sintomas, é muito sugestivo de
an.
consideramos a existência de dois tipos de an: a an
restritiva, a mais conhecida, caracterizada por grande perda
de peso; e a an com ingestão compulsiva (bulímica), em que os
vómitos, o uso de laxantes, diuréticos e inibidores do
apetite, o jejum e o exercício físico intenso complicam o
quadro clínico e são indicadores do mau prognóstico.
o diagnóstico da an é hoje mais frequente. discute-se muito se
existem de facto mais casos, ou apenas se os serviços de saúde
estão em melhores condiçÕes para reconhecer a doença. em
portugal, não tenho dúvidas de que a doença está em
crescimento, sendo fundamental que todos os que lidam com
jovens a reconheçam, pois o diagnóstico precoce é essencial
para uma boa recuperação.
nos diversos estudos dos outros países e para a população em
geral, a prevalência da doença (número de casos por 100 000
habitantes, por ano) é inferior a 1%, mas este número sobe
muito se avaliarmos a população adolescente. a bn é uma doença
mais frequente.
num estudo realizado pelo nosso grupo (núcleo de doenças do
comportamento alimentar -- hospital de santa maria, lisboa) e
coordenado por isabel do carmo, partimos de um questionário
realizado a 2422 estudantes do sexo feminino da região de
lisboa e vale do tejo, dos 10 aos 21 anos de idade e a
frequentarem 29 escolas. encontrámos uma prevalência de an de
0,4%, inferior a outros países ocidentais, mas outros dados do
estudo permitem afirmar que estamos num momento de transição,
que parece indicar um provável futuro aumento de casos. neste
trabalho, 12,6% das estudantes tinham perturbação da imagem
corporal e perda de peso, 7% revelavam alteraçÕes da forma
como apreciavam as reais dimensÕes do seu corpo, 38% desejavam
emagrecer e 51,5% tinham terror de engordar.
noutro estudo (coordenação de fernando baptista e de mim
próprio), desta vez realizado por inquérito a estudantes
universitárias de lisboa, encontrámos uma prevalência de bn de
3%, valor relativamente alto face a outros trabalhos no
estrangeiro; 13,2% destas alunas tinham crises de in-
gestão alimentar compulsiva (comer grandes quantidades de
comida em curto espaço de tempo), mais de metade queria perder
peso e 12% estavam a fazer dieta no momento do questionário.
na nossa consulta do hospital de santa maria sentimos
semanalmente o aumento de casos de an, a exigir uma melhor
articulação com outras estruturas e a colaboração de técnicos
de diversa formação.

causas da an

não podemos afirmar com segurança o que provoca o aparecimento


da doença. muitos dos sintomas que a caracterizam são causados
pelo efeito da privação de alimentos, isto é, a recusa
alimentar leva a um enfraquecimento progressivo visível em
várias partes do corpo. foram estudos americanos dos anos
cinquenta, repetidos mais tarde por autores alemães, que
mostraram as consequências desta persistente falta de
alimentação.
a pele torna-se seca, o cabelo quebradiço, pode aparecer um
pêlo fino na face e nos antebraços. a nível cardiovascular,
encontramos hipotensão e arritmias cardíacas, no aparelho
gastrintestinal é vulgar a prisão de ventre e a sensação de
enfartamento. por falta de estimulação da hipófise, há baixa
das hormonas sexuais, com falta de menstruação e diminuição do
interesse sexual. os ossos vão enfraquecendo progressivamente
e o psiquismo altera-se, com diminuição da concentração,
perturbaçÕes do sono e sintomas depressivos.
estes estudos, realizados em voluntários, mostraram que estes
sintomas desapareceriam com a recuperação do peso obtido por
uma alimentação regular e equilibrada.

disseste-me que eu era a força da família, tu que pareces


perdê-la dia após dia. foste hoje ao médico de família
com a tua mãe. sei que ele te receitou vitaminas e te
encorajou a comer, falou de uma anorexia no início. eu sei,
mariana, que a tua doença começou há muito. o importante é que
o médico te disse que tudo passaria se começasses a comer.
tenho medo que não seja verdade, como é possível a falta de
alimento deixar uma pessoa sem o período? fiquei admirada pelo
médico não te receitar nada para te voltar a menstruação,
talvez seja melhor falar com a tua mãe e irem ao ginecologis-
ta.

a situação é, no entanto, mais complexa. a an não é uma doença


de dietas, nem é provocada só por falta de comida. existem
factores hereditários na génese desta afecção: os familiares
do 1.o grau dos doentes com an e bn têm um risco de contrair
essas doenças 6 a 10 vezes maior do que a população geral; e
gémeos verdadeiros, mesmo vivendo separados, têm tendência a
sofrer ambos de an. no entanto, não se trata de uma doença
totalmente hereditária, com passagem directa e total de pais
para filhos.
outros factores poderão ter influência. será diferente a
primeira infância e a relação precoce com a mãe? o nosso
grupo, em estudo coordenado por dulce bouça, realizou
entrevistas semiestruturadas centradas nas recordaçÕes
afectivas, ligadas à relação precoce com as filhas, em quatro
grupos de mães de 19 raparigas com an, 19 obesas, 9 com bn e
19 raparigas sem doença do comportamento alimentar, tendo
encontrado maior desinteresse, recusa alimentar e insatisfação
materna na sua relação com as filhas no grupo de mães de an,
quando comparado com os outros grupos. esta nossa investigação
enquadra-se nos estudos de bruch, que salientaram a
superprotecção materna ou inadequação da resposta da mãe às
mínimas solicitaçÕes do bebé (futura anoréctica), respondendo
com comida aos menores sinais de desconforto da filha ou, pelo
contrário, não os captando rapidamente. daqui resultaria uma
perturbação da interpretação da criança face às sensaçÕes de
fome e de mal-estar, gerando um sentimento de inadequação
permanente que apareceria potenciado na adolescência.
ponto fundamental: as doenças do comportamento alimentar são
desencadeadas por uma dieta, muitas vezes sem justificação. É
em regra uma menina que ouviu uns comentários sobre o seu
excesso de peso e começou a comer menos, ou alguém que não
estava gorda, mas que se sentia com peso a mais e alvo de
observação permanente. vimos atrás, nos nossos inquéritos,
como a pressão para ser magra e o desejo de fazer dieta
existem nas jovens portuguesas. trata-se de um padrão estético
que influencia fortemente as adolescentes dos países
industrializados, onde a doença é mais frequente. quem não
observou já os modelos femininos das actuais revistas de
modas? compreende-se que uma adolescente, à procura da sua
identidade, possa querer assemelhar-se a um modelo muito
magro. provavelmente, muitas raparigas se confrontam com este
desejo de emagrecer para se aproximarem do actual padrão de
beleza, mas são poucas as que sofrem de anorexia. se os
factores socioculturais fossem a causa principal, certamente a
doença apareceria mais. dito de uma forma mais simples: quase
todas querem ser magras, felizmente a maioria vence esse
dilema sem adoecer com an.
embora durante algum tempo se tenha pensado que a família
pudesse "causar" a an, hoje sabe-se que não é assim. esta
conclusão é importante: nenhum pai se deve sentir culpado por
ter um filho com esta doença, o que não significa que o seu
contributo para a terapia não seja essencial. longe vai o
tempo em que se responsabilizavam os progenitores pela
anorexia ou bulimia das filhas, criando um mal-estar terrível
nos pais, que bloqueava o processo terapêutico. faz-me lembrar
aqueles colegas que estão sempre a falar da mãe fria ou do
pai ausente para justificarem os seus fracassos terapêuticos!
o sofrimento dos pais que têm um filho com uma doença do
comportamento alimentar é já de si tão grande, para quê
aumentá-lo com culpabilizaçÕes que não encontram justificação
científica?
não existe uma estrutura familiar típica que conduza à an e
muitas características destas famílias, descritas em vários
estudos, são na verdade resultantes dos problemas causados
pela doença.

vejo a tua mãe muito preocupada e a fazer-me perguntas sobre a


vida dela. sei que ela tem um bocado a mania das dietas, às
vezes grelha tanto a carne que fica como carvão. já fez a
dieta das bananas e a sopa de toronto, de vez em quando tem
umas crises de ginástica ou fala da barriga do teu pai. eu,
que sou a mais velha lá de casa, nunca me preocupei muito se
estava gorda ou magra, também não havia o desejo de férias que
há agora, nem as dietas que toda a gente começa a fazer em
abril para caber no fato de banho. tenho dito à minha filha
que, infelizmente, essa coisa da anorexia deve ser mais
complicada.

numerosos estudos têm procurado determinar alteraçÕes


biológicas características dos doentes com an, que de certo
modo traduzissem uma vulnerabilidade específica. nesse
sentido, tem sido encontrado um conjunto de alteraçÕes
relacionadas com uma substância denominada serotonina, que
está alterada nas doenças do comportamento alimentar.
a serotonina é um neurotransmissor, isto é, um mensageiro
químico que transporta informação de um neurónio para outro, a
nível do sistema nervoso central. os neurotransmissores
são sintetizados nos neurónios, guardados em vesículas e
libertados para serem ligados a receptores cerebrais e
exercerem os seus diversos efeitos. existem pelo menos
três tipos de neurotransmissores: os aminas biogénicas,
como por exemplo a serotonina, os aminoácidos e os
neuropéptidos.
a serotonina está relacionada com vários estádios afectivos do
córtex cerebral, sendo a sua disponibilidade química muito
importante na compreensão de certas doenças, como a
perturbação obsessivo-compulsiva e a depressão. a diminuição
da função da serotonina seria corrigida, por exemplo, através
de fármacos antidepressivos que a manteriam "captada". a
serotonina tem um papel importante na ingestão alimentar
e na saciedade, isto é, na sensação de satisfação e de
replecção após termos comido. a libertação de serotonina no
hipotálamo produziria a sensação de saciedade e inibição da
ingestão, enquanto a sua falta determinaria o comer em
excesso.
É com base nestes complexos estudos, que apresentamos aqui de
forma muito resumida (1),

(1) para desenvolver este termo, consultar v. turón gil,


trastornos de la alimentación, masson, barcelona, 1997.

que se tem conceptualizado a vulnerabilidade biológica da an e


da bn como estando relacionada com uma perturbação do
metabolismo da serotonina. na an, haveria um aumento da
actividade serotoninérgica responsável em parte pelos
comportamentos de restrição alimentar e pelo carácter rígido,
obsessivo e perfeccionista destes doentes
(neste caso aproximando-se da perturbação obsessivo-
-compulsiva, afecção com pontos comuns com as doenças do
comportamento alimentar). na bn, existiria uma diminuição da
actividade da serotonina e o aumento de outro neurotrans-
missor, a noradrenalina, responsáveis pela diminuição da
saciedade destes doentes e pelas crises de voracidade
alimentar compulsiva.
experiências muito interessantes realizadas para estudar o
comportamento alimentar de um grupo de doentes com an, de um
segundo grupo de doentes com bn e finalmente de um terceiro
grupo de pessoas sem problemas de doença alimentar mostra
padrÕes muito diferentes, mesmo em diferentes fases do
tratamento das pessoas com patologia. as doentes com an comem
sempre pouco, as pessoas normais comem o suficiente e ficam
saciadas e as bulímicas comem vorazmente, muito dificilmente
ingerindo a quantidade necessária de comida para ficarem
saciadas. neste sentido, poderá haver um substrato biológico
para compreender a restrição alimentar na an e as grandes e
repetidas
ingestÕes na bn. outras substâncias químicas poderão ter um
papel relevante no comportamento alimentar destas doenças.
como poderemos então compreender a evolução de uma an? no
nosso grupo de investigação, conceptualizamos a an como uma
doença grave, a evoluir por fases:

fase 1 -- vulnerabilidade

vimos atrás que é muito provável a vulnerabilidade biológica


nesta doença, o que significa uma variação real na estrutura
da pessoa que a predispÕe para a an (distinguir de risco,
característica ou condição específica cuja presença está
associada ao possível aparecimento da doença. por
exemplo, uma dieta muito restritiva na adolescência pode estar
ligada ao risco de adoecer com perturbação do comportamento
alimentar; esta afecção será muito mais provável numa pessoa
vulnerável à partida).
nesta fase, intervêm factores genéticos contribuindo para os
sintomas da doença ou para a formação de características de
personalidade -- perfeccionismo, rigidez, fuga aos conflitos;
e factores neurobiológicos, com alteração de neurotrans-
missores como a nor-adrenalina e particularmente a serotonina
(5-ht).
também podem ser importantes factores ligados ao
desenvolvimento, como as dificuldades da alimentação infantil,
problemas na relação precoce com a mãe ou dúvidas desta na
interpretação dos sinais de desconforto da criança. daqui
poderiam resultar problemas na separação e independência face
às figuras familiares, com a construção de uma maneira de ser
da filha (futura anoréctica) caracterizada por obediência sem
revolta e sem autonomia, menina perfeita e aceitante de tudo o
que a rodeia, permanentemente preocupada em agradar aos pais,
mas incapaz de construir a sua imagem interna.

fase 2 -- precipitação
algo faz surgir a an nesta pessoa vulnerável. a doença
pode surgir entre os 7 e os 13 anos, antes da adolescência.
nestes casos, existem muito mais rapazes (20%-25%)
e a evolução grave exige estratégias terapêuticas intensivas.
os autores ingleses têm acentuado a importância do
diagnóstico das anorexias nesta faixa etária, porque o seu não
tratamento provoca um atraso do crescimento que pode ter
consequências irreversíveis. É possível que factores externos
possam ter um papel importante: mudança de escola, conflitos
graves entre os pais, obesidade criticada, ameaças ao
equilíbrio familiar pelos primeiros passos da autonomia da
criança. o certo é que a an não tem nada a ver com faltas de
apetite que podem surgir na evolução de uma criança normal. o
sintoma principal continua a ser uma persistente, por vezes
bizarra, recusa alimentar, com medo de engordar, e profundos
sentimentos de mal-estar interno.
a maioria dos casos ocorre, como é sabido, na adolescência,
sendo raro o aparecimento da an depois dos 25 anos.
praticamente em todas as situaçÕes, a doença é precipitada
por uma dieta progressivamente exigente e cada vez mais
restritiva.
o ciclo patológico inicia-se assim pela redução da ingestão
alimentar. em muitos casos o doente com an não tem peso a
mais: sente-se mais gordo e rejeita a sua aparência corporal.
o começo da doença é gradual, não sendo visíveis para a
família os esforços iniciais para perder peso. a dieta pode
aparecer justificada por motivos de excesso de peso ou,
pelo contrário, feita às escondidas num jovem de peso
normal.
muitas vezes a restrição alimentar coincide com dificuldades
do processo da adolescência ou com acontecimentos de vida
marcantes: mudanças de casa ou de escola, rupturas afectivas,
doenças físicas no próprio ou em familiares, perda de pessoas
chegadas ou pressÕes na escola. não podemos esquecer o
perfeccionismo destes doentes, que os faz ter um grande grau
de exigência face ao seu quotidiano.
frequentemente, e no contexto escolar, os testes são vividos
com grande ansiedade e ficamos surpreendidos com a
insatisfação profunda sentida pela baixa de apenas um valor
numa avaliação momentânea. É importante que os professores
possam compreender que as altas classificaçÕes, se
bem que desejáveis, podem esconder graves dificuldades dos
alunos, surgindo como uma tentativa de sobrecompensação
perante dúvidas internas. os estudantes com an são um exemplo
claro de que um adolescente "perfeito" pode estar doente.
as disciplinas ou cursos relacionados com a necessidade de
altos desempenhos a nível físico são muitas vezes o contexto
propício ao desencadear da an. refiro-me a alunos de classes
de ginástica ou bailado, particularmente exigentes em relação
ao peso e forma corporais. temos na nossa consulta do núcleo
de doenças do comportamento alimentar do hospital de santa
maria, em lisboa, várias frequentadoras assíduas de aulas de
educação física e bailado. contam-nos histórias espantosas.
referem a grande exigência dos treinadores e professores,
pesando-as constantemente e exigindo uma dieta rigorosa,
acompanhada de comentários críticos face a ligeiros aumentos
de peso ou pequenos erros alimentares. relatam-nos os truques
usados para enganar os professores e os chocolates comidos às
escondidas ou vomitados antes do início do treino. falam-nos
dos seus sentimentos de culpa e dos receios de não serem a
campeã de barra fixa ou a nova edição da bailarina famosa de
que conhecem pormenorizadamente a biografia. nos rapazes com
an, a grande exigência desportiva também pode funcionar como
factor de precipitação: é o caso de praticantes da modalidade
de luta ou de boxe que querem perder peso para poderem
competir numa categoria de menos pesados e iniciam um controlo
alimentar cada vez mais exigente.
a adolescência fornece, na maioria dos casos, o contexto
psicossocial onde vai emergir a doença anoréctica. à dieta
soma-se muitas vezes o exercício físico excessivo, vivido com
grande obsessão e rigor, acompanhado de uma hiperactividade
que impressiona num corpo tão frágil. o lema parece ser, como
escreve beaumont: "nunca sentar se se pode ficar de pé, nunca
permanecer de pé se se pode andar, nunca andar se se pode
correr." as refeiçÕes são vividas com enorme sofrimento e
acompanhadas de um cortejo de comportamentos que deixam
perplexos os familiares. a doente pode pesar a comida, contar
o número de batatas ou de colheres de arroz, recusar
completamente primeiro os doces e depois todos os alimentos,
esconder que não come ou exigir que ninguém olhe para ela
durante a refeição. uma das nossas doentes impôs ser ela
própria a cozinhar as suas refeiçÕes, fechando-se na cozinha e
impedindo a utilização dessa parte da casa durante horas;
outra proibia o pai de olhar para ela enquanto tentava comer,
porque sentia na simples inquietação do pai uma crítica
permanente à sua pouca alimentação. um rapaz que tratámos com
êxito, muito rigoroso consigo próprio, controlava no início do
tratamento tudo aquilo que ingeria, não permitindo aos pais a
simples sugestão de um ligeiro aumento nas quantidades de
comida.
são também frequentes as mentiras no que se refere às
refeiçÕes, por exemplo, a informação de que comeram bem ao
almoço na escola sem o terem feito, ou procedimentos bizarros
para esconderem a comida. uma das nossas doentes ocultava os
alimentos num espaço existente sob o tampo da mesa, outra
utilizava o cimo de um armário, pouco visitado pela empregada,
para guardar aquilo que não conseguia
comer.
É importante os familiares compreenderem que a recusa
alimentar não é uma teimosia. mais do que a perturbação da
imagem corporal, é o controlo da fome e o horror de engordar
que constituem as verdadeiras características da doença. deste
modo, não adianta forçar a ingestão de comida, nem estar
sempre a falar da necessidade de comer. as recriminaçÕes
constantes dos pais e das mães, embora compreensíveis, não
ajudam. É necessário apoiar os familiares através de grupos
de pais ou de terapia familiar, para lhes fornecer o apoio
necessário para enfrentarem a situação. É muito difícil a uma
mãe aceitar que uma filha esteja disposta a morrer por falta
de alimentação. foi a comida o primeiro elo que se estabeleceu
entre o bebé e a mãe e muitos dos bons momentos da vida de uma
família saudável ocorrem depois de rituais familiares,
organizados a partir de uma festa onde a comida abunda.
mas é essencial ajudar os pais a compreender que a an
corresponde a algo muito profundo na vida interna da doente e
que foi conseguido com muito esforço. controlar um instinto
tão básico como a fome exigiu grande pertinácia e sacrifício.
só poderá ser alterado quando a pessoa com a afecção
compreender que poderá "trocar" esse controlo por uma coisa
melhor, não ameaçadora da sua vida. por isso, costumamos
recomendar às famílias para não falarem em comida e sobretudo
não castigarem os filhos doentes com an, quando eles recusam
alimentar-se. o pai de uma das nossas doentes, com apenas onze
anos de idade, confidenciava-nos: "as pessoas não compreendem
o nosso problema. dizem-nos: por que razão não a obrigam a
comer? É só dar um tabefe e meter a comida pela boca abaixo!".
a verdade é que estas manobras
pseudo-heróicas geram mais resistência à mudança. sendo
capaz de dizer não às ameaças e pressÕes familiares, a pessoa
com an reforça o seu controlo e engrandece a sua capaci-
dade de luta, embora com evidentes custos para a sua saúde.
como vimos atrás, sucede bastantes vezes a passagem
de uma situação de an restritiva para um quadro de an
com voracidade alimentar compulsiva e manobras para con-
trolar o peso (an tipo ingestão compulsiva/purgativo ou
também designada an bulímica). trata-se de um sinal de
gravidade, como já russell tinha salientado há cerca de vinte
anos. nestes casos, é frequente o doente fazer um jejum quase
completo durante o dia, para à noite comer grandes quantidades
de comida num curto espaço de tempo. o carácter imperioso,
compulsivo, persistente e recorrente, e a grande quantidade de
comida ingerida rapidamente caracterizam a crise bulímica.
podem comer tudo o que encontram à mão. durante muito tempo
pensou-se que certo tipo de alimentos eram preferidos, hoje
sabe-se que o que verdadeiramente marca a crise bulímica é a
quantidade ingerida. as pessoas com an bulímica ou bulimia
nervosa (bulimia sem antecedentes de an) não conseguem ficar
saciadas e têm muita dificuldade em parar de comer.
o grande problema destes doentes, contudo, reside nas manobras
realizadas para controlar o peso. utilizam vómitos
autoprovocados, introduzindo os dedos na boca até vomitarem.
chegam a ter calosidades no dorso das mãos, devido ao contacto
repetido dos dedos com os dentes (sinal de russell). uma das
nossas doentes andou de médico de clínica geral para
dermatologista e vice-versa, usou várias loçÕes e cremes
para tratar as erosÕes dos dedos, sem explicar as causas das
lesÕes e sem que os médicos pusessem a hipótese diagnóstica
correcta!
os vómitos significam sempre um sinal de gravidade de urna an,
pelas graves consequências resultantes. o conteúdo ácido do
estômago destrói o esmalte dentário e provoca infecçÕes na
boca, podendo também causar inflamaçÕes no esófago e
hemorragias gastrintestinais. uma doente que tratámos foi a um
médico gastrenterologista queixando-se de azia. com a pressa e
a destreza técnica que caracterizam alguns actuais
profissionais da medicina, fez imediatamente uma gastroscopia
e iniciou um tratamento. o médico não tinha pensado em an
bulímica e não perguntou se ela provocava o vómito. escusado
será dizer que o problema só
se resolveu com o tratamento da doença base. por outro lado, a
alimentação caótica pode agravar a obstipação já existente, e
em casos graves de grandes ingestÕes provocar uma dilatação
aguda do estômago que leva à sua ruptura, exigindo uma
intervenção cirúrgica de urgência. os vómitos conduzem também
muitas vezes a situaçÕes de desidratação e de
litíase (pedras) no rim, com alteraçÕes do equilíbrio
hídrico e electrolítico graves. a nível cardiovascular,
podem surgir hipotensão e arritmias cardíacas que podem ser
fatais.
como vimos, os doentes com an tipo ingestão compulsiva
(bulímica) podem ter comportamentos purgativos, isto é,
recorrem muitas vezes ao uso repetido de laxantes e diuréticos
com o intuito de perderem peso. para além de não o baixarem
significativamente (apenas perdem água), o uso destas
substâncias provoca graves alteraçÕes metabólicas, se o
processo terapêutico não conseguir cessar este
procedimento.
as diarreias provocadas pelo uso dos laxantes levam a
importantes perdas de potássio e a lesÕes da mucosa
intestinal, agravando a obstipação e o desconforto abdominal.
a conjugação dos vómitos e do uso de laxantes e diuréticos é
particularmente perigosa, pelos desequilíbrios do meio interno
que provoca.
os comportamentos que estes doentes realizam, com a intenção
de perder peso, constituem assim uma grave ameaça à sua vida.
É importante que as famílias compreendam o sofrimento que eles
provocam. numa das nossas habituais reuniÕes nocturnas com
pais de doentes com an, os familiares falavam dos "truques"
das anorécticas e da necessidade de vigilância apertada. a
certa altura parecia que estávamos numa investigação policial!
um controlo obsessivo, por parte dos pais, leva a que estes
comportamentos
sejam ainda mais escondidos do que a sua própria natureza já
impÕe. É assim que uma anoréctica bulímica pode vomitar
diariamente, durante um ano, sem que a família se aperceba
deste comportamento. num rapaz que tratámos com bn, a mãe
procurava controlar a frequência dos vómitos, e o filho
apurava cada vez mais a forma de se esconder. a mãe chegou a
comprar uma lupa e pesquisar fragmentos de comida
eventualmente deixados na casa de banho, depois do vómito,
mesmo sabendo que o filho era muito cuidadoso na sua
ocultação.
pais e filhos bulímicos vivem um complexo problema de culpa e
recriminaçÕes mútuas. nada se pode conseguir sem o
estabelecimento de uma confiança recíproca que permita falar,
mesmo que seja de comportamentos desajustados. É crucial
ajudar as pessoas a falar dos seus comportamentos purgativos,
garantindo que serão compreendidas; é essencial ajudar os pais
a exercer uma vigilância apenas discreta, sem crítica ou
pessimismo. a pessoa esconde o vómito porque sabe que não é
uma boa solução, mas de momento é o único mecanismo que lhe
consegue acalmar um pouco a ansiedade provocada pela grande
quantidade calórica da crise bulímica. não esqueçamos,
contudo, que muito provavelmente a pessoa com an já não se
sentia bem, por isso fez dieta. comeu exageradamente e ficou
pior. vomitou para não engordar, mas culpabilizou-se por isso.
jejuou durante muitas horas, com a ideia de finalmente ser
capaz de controlar o peso. falhou e por isso, em desespero,
vomitou o que comeu. os familiares precisam compreender que o
vómito é um sintoma da doença. ninguém critica um doente com
pneumonia por tossir e escarrar muito. o vómito é difícil de
suportar por toda a família. que pode sentir uma mãe que tão
cuidadosamente preparou uma refeição e a vê depois cuspida na
casa de banho? como se deve sentir uma doente que sente
falhar todo o seu plano e não consegue evitar a expulsão do
que ingeriu? há duas coisas que não é possível esquecer:

1) a presença de vómitos repetidos e/ou o uso de laxantes e


diuréticos traduzem sempre um sinal de gravidade da doença do
comportamento alimentar, mesmo que o peso esteja normal.

2) tais comportamentos exigem, para além do tratamento


psiquiátrico, uma avaliação feita por médico com experiência
destas doenças.

algumas pessoas confundem as crises bulímicas que podem surgir


em diversos contextos com o quadro de bulimia nervosa. sabemos
que existem em portugal sessÕes de discussão, em grupos de
auto-ajuda, onde se misturam senhoras de cem quilos com
adolescentes esqueléticos que vomitam! as crises bulímicas
surgem algumas vezes num tratamento para a obesidade, mas não
têm a gravidade nem o carácter obsessivo que caracterizam os
episódios da bn. É por isso importante não confundir o
comportamento bulímico com a doença
bn.
os familiares precisam de criar proximidade e permitir o
relato do comportamento disfuncional. talvez pensar no
sofrimento dos filhos ajude os pais a não criticarem. talvez a
perplexidade que estas doenças provocam na família faça as
pessoas procurarem mais ajuda. de qualquer modo, o tratamento
deve criar condiçÕes para que tudo isto seja falado.
a fase de precipitação da an está relacionada com um
sentimento de profundo mal-estar e de inadequação, ponto de
partida para uma série de comportamentos desajustados que
descrevemos, desde a dieta sem cessar até aos vómitos
frequentes. acontecimentos da vida são importantes
para o desencadear da doença, mas não parecem ser
decisivos.
não temos ainda ideias claras sobre as causas deste sentimento
de inadequação, mas sabemos que temos de o vencer. trata-se de
uma convicção lentamente instalada desde a infância e que
passa a fazer parte da identidade profunda da anoréctica.

não me suporto, avó, a verdade é que não me suporto,


disseste-me ontem. e acrescentaste que chegas a pedir a deus
para te castigar com mais sofrimento, porque não mereces ter
bem-estar. não compreendo como essa parte de ti cresceu tanto
e escondeu a tua alegria e o teu prazer. reages com grande
zanga a qualquer aproximação da tua mãe ou do teu pai e
respondes que eles estão sempre a dizer mal. muitas vezes
pensei que eras perfeita de mais. lembro-me dos problemas que
tive com o teu tio e sei agora que ele tinha uma coisa boa:
protestava e não aceitava facilmente as coisas. tu, mariana,
parecias um anjo. boa aluna, obediente, arrumada, caladinha. o
oposto do que és agora. tornei a encontrar restos de comida
num canto do teu quarto, e pareceu-me, a meio da noite, ouvir
uma espécie de arrancos na casa de banho, sei lá se estás a
provocar o vómito como li noutro dia numa revista feminina.
sinto-me cada vez mais preocupada porque ninguém se pode curar
sem se sentir bem por dentro. sempre que tive problemas na
escola, acabava por resolvê-los com uma espécie de exame de
consciência, em que chegava à conclusão de ter feito o meu
melhor, mas que havia muitas coisas impossíveis para mim. tu
pareces querer atingir a lua só com um olhar! e depois viras
tudo contra ti e sentes-te pior.

muitas pessoas com an tentam tornar-se perfeitas num esforço


de agradar aos outros e vencer os sentimentos de inadequação
que as preenchem. a sua subjectividade hipercrítica fá-las
sentir tudo virado contra si próprias. todos os comentários
ouvidos ou imaginados são sentidos como críticos e há uma
vivência de exclusão e de culpa face a todos os
acontecimentos, mesmo que objectivamente não lhes digam
respeito.
esta situação de negatividade confirmada ("confirmed
negativity condition") na expressão da sua autora (1), é o

(1) cf. p. claude-pierre, the secret language of eating


disorders, times books, random house, n. 1., 1997.

culminar de uma vivência negativa acumulada ao longo dos anos


e depois persistentemente virada contra a própria. todos os
comentários alheios ajudam a confirmar estes sentimentos
negativos, escondidos durante algum tempo por uma perfeição ao
serviço dos outros. este aparente altruísmo é, por vezes,
evidente no modo como a pessoa com an se preocupa com a
alimentação dos familiares. num dos nossos casos, a rapariga
anoréctica caminhava para a morte, enquanto empanturrava a
irmã mais nova com doces e mais doces. noutra situação, a
doente praticamente não comia, mas preparava opulentos lanches
para o seu irmão adolescente. só o internamento e a terapia
familiar permitiram ultrapassar estas situaçÕes. o mal-estar
interno destes doentes só pode ser compreendido em muitos
casos através de uma história do relacionamento familiar, que
revela uma criança permanentemente preocupada com os outros e
despojada de interesses pessoais. muitas vezes a resposta
parental, de um modo inconsciente, pode ter contribuído
indirectamente para o problema, através de uma aceitação
acrítica desta criança perfeita ou, noutras situaçÕes, graças
ao reconhecimento de observadora e cuidadora dos pais, que
algumas das anorécticas revelam na sua infância. não estamos a
culpabilizar os pais, já atrás afastámos esse ponto de vista:
nunca é de mais, contudo, insistir em que uma criança sem
mácula ou demasiado responsável não é sinal de saúde. mais
tarde essas meninas continuam a competir para serem as
melhores na escola, no desporto e na dança. representam
um papel, não se conhecem por dentro. a certa altura,
particularmente na adolescência, olham à volta à procura de
uma das pessoas ou ideais a que tão devotadamente se
entregaram. não está lá ninguém, está um corpo a crescer, uma
sexualidade a nascer e um novo grupo de jovens a observar.
também as pessoas com quem se preocuparam seguiram o seu
caminho, melhor ou pior.

mariana, não posso esquecer a tua preocupação com a minha


pneumonia, tinhas tu dez anos. ficavas muito tempo ao pé de
mim e não te deitavas sem saber se eu precisava de alguma
coisa. estava tão fraca que nem tinha forças para te dizer
obrigada. quem me dera poder agora ajudar-te, mas olhas para
mim como se eu fosse transparente, o teu olhar está bem longe,
não o encontro... não sei por onde pára...

a capacidade de controlo alimentar significa o último reduto


fortificado de um castelo que há muito deixou de ser
inexpugnável. a comida significa vida, a anoréctica não merece
viver porque não tem valor e não salvou os outros, logo não
deve comer. a vulnerabilidade biológica descrita encontra-se
aqui com o mal-estar psicológico que caracteriza esta fase da
an. o papel da pessoa na vida e no mundo deixou de fazer
sentido, a não ser que se consiga de
alguma forma ser forte para não quebrar às primeiras
manifestaçÕes de fome.
o contexto sociocultural contribui para o aumento da
incidência da an ou, para alguns autores, seria responsável
pelo aparecimento das formas bulímicas da doença ou do
crescimento das situaçÕes da bn. a pressão para um corpo
feminino magro e esbelto, ligado ao sucesso e à promoção
social, veiculado frequentemente pelos meios de comunicação
social, justificaria também o maior número de casos do sexo
feminino. embora a an e a bn sejam doenças mais frequentes nos
países industrializados ocidentais, crescentes descriçÕes
noutras culturas mostram que estes factores não são decisivos.
um autor japonês, suematsu, estudou 1011 raparigas com an, das
quais o importante número de 26,6% não tinham medo de
engordar. parecem predominar, nestes casos, experiências
subjectivas de ascetismo e rigor, determinantes do sintoma
cardinal, a recusa alimentar.
sabemos hoje que o modo como a família reage à possível
autonomia do adolescente pode contribuir para melhorar, ou
agravar, o quadro clínico, sem ser determinante na génese da
afecção. um dos pais das nossas reuniÕes comentava: "a certa
altura, já não sabia onde acabava a anorexia e começava a
adolescência!"
famílias rígidas receosas da independência dos filhos,
controladoras do seu espaço individual, ficam profundamente
abaladas no seu funcionamento pela presença dos sintomas
anorécticos. podem reagir com mais controlo e comentários
críticos, agravando o problema. noutros casos há uma evidente
dificuldade em expressar emoçÕes, a afectividade é pobre e os
problemas são evitados, unicamente cristalizados para o
tratamento da pessoa com an. muitas destas características não
são específicas e resultam das situaçÕes problemáticas
causadas pela doença. todo o apoio à família é essencial para
a recuperação, podendo revestir várias formas, como veremos.

fase 3 -- manutenção

após o aparecimento da an, a doença pode ser mantida durante


bastante tempo ou tornar-se uma situação crónica, com longa
evolução e prognóstico reservado.
na nossa perspectiva, é importante evitar a cronicidade do
processo e instituir a terapêutica o mais precocemente
possível. muitas vezes o diagnóstico é feito tardiamente, o
doente recusa o tratamento ou este fracassa. a pessoa passa a
viver com um parasita dentro de si, que a pouco e pouco se vai
alimentando dela. são os efeitos da privação alimentar que
prolongam o processo. a falta de alimento conduz
progressivamente a um processo de inanição, com queixas e
problemas em vários aparelhos e sistemas do organismo. há um
progressivo isolamento e uma cada vez mais marcada
desadaptação social. a anoréctica recusa convites, fecha-se em
casa e falta aos seus compromissos profissionais, a sua
personalidade vê acentuarem-se os traços já existentes de
rigidez e sentimentos de ser acusada.
a osteoporose (fraqueza dos ossos) é a consequência mais
grave, a longo prazo, da an. muitas vezes surgem fracturas
patológicas, após pequenas quedas ou entorses que não teriam
problemas em pessoas normais. contribuem para a osteoporose a
diminuição de hormonas sexuais (importantes para o metabolismo
do cálcio), a deficiente ingestão deste, o défice de vitamina
d e o aumento de cortisol. torna-se imperioso avaliar a
osteoporose em todos os doentes com mais de um ano de
evolução da doença, através de um exame relativamente simples
denominado densitometria óssea.
nos últimos anos tem crescido a investigação sobre as funçÕes
reprodutiva e materna das mulheres atingidas por an crónica.
sabe-se que a doença pode ser causa de infertilidade e aumento
da frequência de abortos espontâneos, e que os filhos das
anorécticas têm frequentemente baixo peso à nascença. outros
investigadores têm procurado demonstrar a dificuldade que
muitas anorécticas têm na alimentação dos seus bebés. É como
se um ciclo patológico de défice alimentar se perpetuasse, não
sendo de excluir os factores genéticos eventualmente
implicados. muitas mães com an alimentam mal os seus filhos,
ou porque fornecem pouca quantidade de comida, ou porque estão
muito ansiosas na altura das refeiçÕes infantis, ou ainda
porque certa turbulência do bebé ao
brincar enquanto come provoca uma situação de pouca
ordem que choca com o seu sentido de perfeição de que já
falámos.
muitas das nossas doentes têm dificuldade em abordar o tema de
uma possível gravidez. nas fases iniciais do tratamento, a
questão da sexualidade é problemática, mas mesmo após a
melhoria evitam abordar o assunto. sabemos que é necessário um
peso mínimo e uma menstruação regular para se poder
engravidar, factores muitas vezes só atingidos após um
tratamento prolongado. a alteração da imagem corporal causada
por uma gravidez é vivida com ansiedade por muitas doentes.
uma delas descreveu-me um dos seus sonhos: "estava grávida e
dei à luz uns estranhos bichos, qualquer coisa entre cães e
lobos. a minha mãe estava ao pé de mim, mas a sua cara
metia-me medo. pedi ao médico que matasse os bichos e me
cosesse depressa a barriga, para eu ficar magra como sou e
quero continuar a ser."
outra doente tem agora uma relação afectiva estável e deseja
engravidar, mas a situação é ansiogénea e secretamente
ambiciona que tudo passe muito depressa e o marido se
encarregue da criança. um rapaz com an questiona-nos
constantemente sobre a sua falta de interesse sexual. tem
dificuldade em compreender o entusiasmo dos seus colegas com
filmes pornográficos e racionaliza toda a questão ao dizer:
"não me importo de ser estéril ou impotente, não sei bem qual
é a diferença. o que sei é que nesta sociedade quem quer ter
filhos não deve estar bom da cabeça. já viu a quantidade de
crianças vítimas de maus tratos que andam por aí, perdidas na
rua?"
afectividade, sexualidade e parentalidade são profundamente
afectadas pela an crónica. a anorexia atinge, nestes casos, o
mais profundo do ser e só um processo terapêutico activo e
prolongado no tempo pode reestruturar a pessoa doente.
a longo prazo, também a personalidade se modifica. em 34% dos
casos, existe uma associação entre a perturbação da
personalidade denominada estado limite e a an tipo bulímico ou
a bn (1).

(1) cf. dennis, "treatment of patients with personality


disorders", in garner e garfinkel (eds.), handbook of
treatment for eating disorders, guilford press, n. i., 1997.

a an tipo restritivo está, por sua vez, associada a perfis de


personalidade caracterizados por evitamento, dependência ou
obessivo-compulsivos. uma forma particularmente grave é a
bulimia multi-impulsiva, descrita pelo investigador inglês
lacey. no quadro clínico, surgem frequentemente o abuso de
álcool e drogas, queimaduras e cortes autoprovocados, roubos,
excessiva desinibição sexual e tentativas de suicídio.
persiste durante muito tempo um padrão de falta de controlo
dos impulsos, causador de sérios problemas ao doente e seus
familiares. por vezes, estas doentes aparecem como
toxicodependentes ou alcoólicas, sendo inclusivamente
internadas em instituiçÕes de recuperação de toxicodependentes
sem falarem do seu problema de comportamento alimentar! vemos
psiquiatras experientes perplexos pela sucessão de tentativas
de suicídio, ou incrédulos perante a sucessão de pequenos
golpes nos antebraços e nas coxas, mostrados por estas doentes
nas consultas. percorrem os seus livros de texto ou consultam
colegas, sem chegarem a conclusÕes sobre o diagnóstico,
facilmente perceptível se tivesse havido um correcto inquérito
alimentar. uma das nossas doentes, rapariga tímida sempre
metida em casa em obsessivas limpezas do quarto, transforma-se
numa ambiciosa autora de pequenos furtos em grandes
hipermercados. na relação terapêutica, falo-lhe do seu
"tesouro", que guarda escondido numa gaveta do quarto. É um
impressionante conjunto de pastas dentífricas, produtos para
lavar e colorir os cabelos, cassetes de vídeo e cremes de
beleza. de vez em quando abre o tesouro e oferece à mãe alguma
coisa, ou utiliza-a em seu proveito sem nada dizer. tem pouca
consciência da razão destes actos ilícitos e, embora às vezes
prometa não repetir, não resiste a uma nova oportunidade. a
bulimia multi-impulsiva tem um prognóstico reservado e
necessita de uma abordagem terapêutica multifocal.
as doenças do comportamento alimentar podem estar associadas a
outras perturbaçÕes psiquiátricas. É muitas vezes referida a
coexistência de depressão e tempos existiram em que a an foi
considerada uma forma de doença depressiva. sabe-se, no
entanto, que os sintomas depressivos podem ser causados apenas
pela desnutrição e desaparecem quase sempre com a recuperação
ponderal. embora a depressão surja muitas vezes nos familiares
dos doentes com an e bn, a inversa não é verdadeira, isto é,
as doenças do comportamento alimentar não existem
frequentemente nos familiares de doentes com depressão.
estaremos, portanto, perante duas patologias diferentes,
mantidas em contacto pelos efeitos da fome.
são mais complexas as relaçÕes da an com o abuso de álcool e
drogas. É frequente dizer-se que a comida está para a bn como
a droga está para o toxicodependente.
não estou de acordo com esta perspectiva, que me parece
conceptualmente redutora. infelizmente, algumas das nossas
doentes parecem aceitá-la e frequentam locais de tratamento
onde a ideologia anti-droga impera, esquecendo o tratamento do
comportamento alimentar, essencial para o seu bem-estar. para
além de outras razÕes, não existe apetência especial da
bulímica por uma determinada comida, como acontece com o
utilizador de drogas em relação a uma determinada substância.
o que está perturbado, como vimos atrás, é a quantidade de
comida ingerida, não os macronutrientes da refeição bulímica.
a ingestão não "acalma" a doente, como acontece
provisoriamente com a droga, antes determina um aumento
de angústia e agressividade. na an, alguns autores
falam de "dependência" face à fome, ficando sem se perceber
como se pode estar viciado numa coisa ou na total ausência
dela.
na evolução da an surgem frequentemente sintomas obsessivos ou
a personalidade adquire progressivamente essas
características. É possível que a perturbação da serotonina,
que descrevemos, possa justificar os elos existentes entre as
doenças do comportamento alimentar e a perturbação
obsessivo-compulsiva.
no esquema seguinte resumimos a nossa visão global da
an:

fase 1
vulnerabilidade

fase 2
precipitação

fase 3
manutenção

dieta
a. vida

inadequação -- anorexia nervosa

nascimento -- adolescência
factores biológicos
factores desenvolvimento
factores familiares
factores culturais (bn)
efeitos privação alimentar

genéticos
personal.?
neurobiol.
na, 5 ht
dificuld. alimentação
precoce

avaliação e tratamento
da anorexia nervosa

1 -- avaliação

a avaliação clínica pressupÕe um terapeuta (psiquiatra ou


psicólogo) com treino e formação em doenças do comportamento
alimentar, que deve motivar a doente para o tratamento através
de uma relação empática e respeitadora da sua intimidade (ver,
mais adiante, "relação terapêutica na anorexia nervosa", p.
146). deve ser feita uma história detalhada do peso e do
padrão alimentar actual, das crises de voracidade alimentar
compulsiva e comportamentos purgativos, bem como das
consequências psicológicas da privação alimentar e do controlo
da ingestão.
impÕe-se sempre uma avaliação física a cargo de um médico
conhecedor destas situaçÕes. exames complementares diversos
aprofundam a investigação do internista. não esquecer,
contudo, que análises normais podem esconder uma profunda
crise psicológica na pessoa com an.
É também essencial, nas primeiras consultas, averiguar os
tratamentos anteriores e as perturbaçÕes psiquiátricas
concomitantes, bem como determinar as característica do
desenvolvimento da pessoa com an.
a entrevista do diagnóstico familiar é obrigatória em quase
todos os casos, seguida de uma terapia familiar nas
doentes mais jovens. devem ser abordados os seguintes pontos:

-- definição do problema pelos membros da família.


-- tentativas de resolução anteriores.
-- papéis familiares, alianças e coligaçÕes na família.
-- acontecimentos relevantes da história familiar.
-- refeiçÕes na família.
-- espaço individual e espaço familiar.

do médico de família à psiquiatra foi um salto que não


acompanhei. pensei que as análises iriam explicar a razão por
que a minha neta não come, mas parece que não. que doença tão
misteriosa! a mariana reagiu mal. disse que não estava maluca
e que tinham de aceitar que ela não quisesse ser "pançuda"
como o pai e a mãe. o meu genro disse que a vida dele era um
inferno e que felizmente se conseguia embebedar com o
trabalho. foi o joão, mais uma vez, quem salvou tudo.
ofereceu-se para ir com a irmã à psiquiatra, o que foi óptimo,
porque a mariana disse então que preferia ir sozinha. quando
regressou, pareceu-me que tinha chorado e foi a correr
fechar-se no quarto. nesse dia não jantou nem apareceu na
sala.
voltou lá uma semana depois e pareceu-me mais animada. tem de
fazer uma psicoterapia, parece que é um tratamento sem
remédios para se conhecer melhor e conseguir vencer a doença.
a minha filha e o marido também vão ser chamados. oxalá seja
tudo para bem da mariana.

2 -- tratamento

o tratamento da an realiza-se, na maior parte dos casos, em


consulta externa. consiste numa psicoterapia individual,
muitas vezes acompanhada por uma terapia familiar. os
medicamentos são pouco úteis nesta doença, podendo ser usados
fármacos para controlo da ansiedade ou da hiperactividade e
antidepressivos, se os sintomas da depressão persistem após a
recuperação ponderal. na bn, pelo contrário, antidepressivos
serotoninérgicos, como a fluoxetina
(60mg/dia), são úteis para controlo das crises de voracidade
alimentar compulsiva e dos comportamentos obsessivos. não se
prescrevem fármacos, contudo, desligados de um projecto
terapêutico global, em que a psicoterapia ocupa o lugar
fundamental. nenhuma pessoa com an deve ser tratada sem um
psiquiatra e/ou psicólogo experiente, visto que se trata de
uma doença do foro psíquico. impressiona ver dietistas ou
nutricionistas acompanharem estes doentes sem a colaboração de
um técnico de saúde mental, como se o tratamento consistisse
apenas no planeamento das calorias a ingerir! ou
ginecologistas receitarem a pílula para provocar a menstruação
sem cuidarem de ver como a rapariga (não) come!
o tratamento em ambulatório compreende três fases, que a
seguir se apresentam de modo muito resumido:

1 -- a recuperação. pedimos o registo escrito de tudo o que a


pessoa com an e bn come, bem como dos comportamentos de
controlo ponderal e dos sentimentos associados. planeamos as
refeiçÕes com horas marcadas, aumento da quantidade de
alimentos e introdução progressiva de novas comidas.
discutimos as ideias do doente face ao peso e à forma do corpo
e procuramos, desde cedo no processo terapêutico, descortinar
os sentimentos de inadequação que marcam a sua vivência
quotidiana. iniciamos a terapia familiar.

a família toda foi hoje à consulta. começámos por nos perder


naquele hospital enorme e cinzento, cheio de pessoas a correr
de um lado para o outro em corredores gelados. na psiquiatria
enganámo-nos no piso e ficámos meia hora em frente de um
cubículo de vidro, onde jaziam umas plantas abandonadas e um
computador que ninguém parecia utilizar.
a minha filha perguntou pela psiquiatra e disseram-lhe que
era no piso de cima. a porta estava fechada à chave e
tivemos que subir um andar de elevador, fugindo de um doente
de chapéu enterrado na cabeça que dizia frases
incompreensíveis.
no andar de cima a confusão era enorme. estudantes de bota
branca faziam um baralho infernal, dois doentes pediram ao meu
genro cigarros e dinheiro, havia médicos de sapatilhas e
calças de ganga misturados com outros com fatos de bom corte.
duas senhoras de bata azul tentavam, em vão, pôr ordem naquilo
tudo. os médicos corriam de um lado para o outro com ar
aborrecido e não esperavam até ao fim das perguntas dos
doentes, que os interpelavam constantemente a arrastar os pés.
duas raparigas que mais tarde percebi serem psicólogos
aguardavam à porta de um gabinete, numa atitude de
expectativa. mais doentes apareceram com ar de mortos-vivos,
uma enfermeira chamou alguém ao telefone e quatro delegados de
propaganda corriam atrás dos médicos a oferecerem canetas e
papéis coloridos. a mariana disse que se queria ir embora,
felizmente consegui distraí-la com o olhar simpático de uma
enfermeira que nos perguntou ao que vínhamos.
só então apareceu a psiquiatra, acompanhada por um senhor
olheirento e de barba a quem chamavam professor (professor de
quê?...). a médica da mariana tinha um ar decidido, um pouco
ameaçador, mas que rapidamente desaguava num olhar de ternura.
o terceiro elemento da equipa era um médico jovem de peso a
mais e cabelo a menos, com um sorriso tão disponível que me
apeteceu logo agarrar-me a ele.
levaram-nos para uma sala ao fundo do corredor. tinha uma
televisão esventrada, uma jorra de pirosas flores de plástico
e uma série de maples de napa preta esburacada, remendados com
pedaços de adesivo de diferentes tamanhos. a certa altura vi
uma médica a fumar, que confundi com a psiquiatra da mariana,
mas que rapidamente desapareceu para outro gabinete com um
grupo de alunos.
a sala onde ficámos tinha um cortinado meio pendido a tapar
uma janela com vista para a relva do hospital e dois quadros
certamente comprados numa loja de trezentos. mariana, vamos
embora. não suporto estar aqui. como é possível melhorares
nesta nave de loucos?
e, de repente, tudo mudou. os médicos estavam de tal maneira
habituados a trabalhar em conjunto que pareciam adivinhar o
que o outro ia dizer. tinham uma atitude de interesse e
respeito pelo nosso problema e, embora um pouco apressados,
tiveram algum tempo para nos ouvir. o médico do sorriso
entendeu-se muito bem com o joão e o gonçalo, pareciam
conhecer-se
há muito. a mariana olhava constantemente para a sua
psiquiatra e o mais velho, o tal professor, pareceu animar-se
e rapidamente começou a falar com a minha filha e o meu genro.
sem darmos conta, em breve estávamos todos envolvidos numa
emocionante conversa, infelizmente algumas vezes interrompida
por uma porta que se entreabria, para deixar ver
uma enfermeira com um tabuleiro de medicamentos na
mão.
falámos da comida e do corpo, os rapazes pareciam estar em
casa com um amigo e a mariana não perdia oportunidade para se
confrontar com a mãe. pareceu-me que o professor esbarrou com
os problemas da minha filha e do meu genro, mas passou adiante
e centrou a conversa na força da família para salvar a minha
neta. pediu-me histórias da sua infância e eu contei-lhe como
sempre achava demasiado perfeita aquela menina, tão habituada
que estava ao barulho dos meus alunos. combinaram-se várias
maneiras de lidar com a situação e pareceu-me que havia uma
grande preocupação dos técnicos em não deixar ninguém de fora.
pensei que ainda não era altura de contar o meu segredo do
diário, embora ficasse com a ideia de que teria de o fazer
mais cedo ou mais tarde.
saímos todos, mas a médica chamou a mariana para uma conversa
a sós e esperamos de novo naquela entrada barulhenta.
cheguei a casa mais animada e com vontade de lutar.

2 -- o progresso. nesta fase do processo terapêutico em


ambulatório, continuamos a luta por uma alimentação saudável e
combatemos os pensamentos disfuncionais e as distorçÕes
cognitivas que são frequentes nas pessoas com an (exemplo --
"como não consigo uma dieta rigorosa, sou uma pessoa
fracassada; sinto-me magra, é porque estou magra; as pessoas
estão sempre a olhar para mim porque eu estou gorda como uma
baleia", etc). são particularmente importantes, nesta fase, as
acçÕes psicoterapêuticas visando o autoconceito da anoréctica,
o controlo dos impulsos, a capacidade de expressão dos
afectos, o combate ao perfeccionismo e à rigidez.
a terapia familiar centra-se agora mais na comunicação e nos
conflitos face à identidade e à autonomia da anoréctica.

não percebi bem as consultas seguintes com a família. fiquei


com a ideia de que tudo se poderia ter resolvido em casa, sem
necessidade de falarmos das coisas lá no hospital. o médico
mais novo reparou na depressão do gonçalo e o professor não
parou de falar da semanada e das soídas à noite. fiquei
admirada por não terem ligado grande coisa às questÕes da
anorexia.

a relação individual com a pessoa com an deverá neste momento


ter-se solidificado. É um processo longo e difícil, que vai
desde o contacto inicial com o terapeuta até ao final da
terapia. nos anorécticos com menos de 18 anos, a terapia
individual é feita por um psiquiatra ou psicólogo,
obrigatoriamente presentes em todas as sessÕes de terapia
familiar, conduzidas por outro técnico. nas pessoas mais
velhas, a terapia familiar realiza-se em famílias com elevado
grau de disfunção ou em pessoas com perturbação do
comportamento alimentar e grande grau de depen-
dência.
uma relação terapêutica empática e firme é essencial para o
êxito. vejamos como um membro da equipa, dulce bouça, a
descreve pormenorizadamente.

relação terapêutica na anorexia nervosa -


dulce bouça

quando uma pessoa procura tratamento para a sua anorexia


nervosa, traz consigo o pedido de solução para um problema mas
ao mesmo tempo impÕe regras a quem pede ajuda, para atingir um
objectivo ideal que apenas faz sentido ao próprio que o
procura.
assim, um paciente que se apresenta fisicamente debilitado e
com a vida em risco pela desnutrição diz que não se sente
magro e quer ser ainda mais magro, porque só assim conseguirá
viver. precisa de ajuda, mas diz que quer e consegue
controlar-se sozinho, ao mesmo tempo que pede ao médico que o
oriente neste objectivo, sem interferir nas suas convicçÕes
nem o pressionar a seguir um caminho diferente do que
escolheu.
É neste labirinto de expectativas, esperanças e medos que se
processa o primeiro encontro entre o médico e o paciente com
anorexia nervosa, um de quem se espera que possa curar, o
outro pedindo cuidados adequados à sua própria realidade e ao
sentido mais profundo e individual do que é para si a vida e o
modo como a quer viver.
para qualquer ser humano, a intenção de procurar uma vida
melhor não é nunca tão simples como parece ao ser formulada.
seguir em frente com um objectivo de mudança significa encetar
um caminho que pode culminar num triunfo ou numa derrota e
obriga a optar entre várias alternativas que levariam, se
fossem as escolhidas, a outras possibilidades que ficam por
conhecer.
no caso de uma anorexia nervosa, significa substituir o valor
de um ideal de corpo controlado através da magreza por outros
que permitam experimentar novas formas de realização pessoal,
e outras alternativas para encontrar amor por si próprio e
descobrir o prazer no encontro com o que é novo e diferente.
quando lhe é sugerido um tratamento que implica mudança nos
hábitos alimentares, no peso, nas convicçÕes e no objectivo a
atingir, isto é sentido como uma destruição maciça do "templo"
em que se enclausurou e que o tem protegido dos estímulos do
exterior, onde todos os elementos biológicos, psicológicos e
sociais estão em constante interacção, dando lugar ao emergir
de novas possibilidades.
no seu santuário de privaçÕes, onde as experiências emocionais
se passam entre a culpa e a penitência, sente-se protegido
para continuar no seu ideal de purificação esperando vir a ser
mais forte e mais perfeito, acreditando que um dia
será capaz de não falhar e então, aí sim, a vida está ao seu
alcance.
por isso, diz prontamente e com a veemência de quem conseguiu
prescindir de se alimentar para viver: quero melhorar mas não
quero aumentar de peso, quero ter uma vida normal, mas não
quero comer mais, se começar a comer perco tudo o que já
consegui, deixo de me controlar.

esta comunicação aparentemente paralisante e contraditória,


mas que resulta de uma longa e dura experiência de luta, tem
que ser aceite, porque é a única ponte para chegar ao mundo da
anorexia, mas simultaneamente tem que ser descodificada desde
o primeiro momento e devolvida ao doente, nos limites que ela
introduz e que impedem que sejam encontradas outras
possibilidades de saída para a sua vida.
o médico terá que dar um sentido ao que aparentemente
não tem sentido -- querer e não querer --, um sentido de
criação, para dar uma nova forma ao que parece rígido e
imutável.
se reage à magreza insistindo nela está a violar uma convicção
inabalável e fortemente reivindicada; se aceita esta aparente
liberdade de escolha, estará a abandonar uma pessoa em perigo.
em qualquer caso será mal aceite e ineficaz se a sua
intervenção se basear apenas no que é objectivo, sem
atender à subjectividade que a contradição contém em si
própria.
perante si, tem uma pessoa com uma história pessoal, uma
identidade única, uma origem e uma cultura que lhe são
particulares, uma família que é o seu núcleo fundamental de
suporte e afecto e uma experiência própria de fracassos e
sucessos, que constituem ao mesmo tempo o limite e a
possibilidade de tratamento.
mas se é preciso atender e aceitar a ambivalência de quem quer
e não quer, tendo contudo vindo procurar ajuda, é também
necessário desde o início retirar a auréola de poder absoluto
ao médico, que poderá ser investido pelo doente e família de
capacidades ilimitadas para tratar uma pessoa mesmo que ela
não queira, ou se recuse a estabelecer um compromisso de
colaboração com ele.
ainda que o tratamento da anorexia nervosa seja sempre
dolorosamente lento, a sua aceitação tem que ser conseguida em
tempo útil, isto é, tão curto e tão longo quanto possível e
necessário, para que seja eficaz.
iniciar um processo terapêutico com um paciente anoréctico à
pressa e sob pressão, sem os objectivos claramente definidos e
aceites por ambas as partes, não resulta. na primeira consulta
há que explorar a constatação de um sofrimento devastador e um
apego determinado à doença, entre uma dor emocional que já não
é mais suportável e uma ordem rígida e imutável de
comportamento.
não é possível nem desejável garantir o sucesso do tratamento,
não só porque seria uma promessa com possibilidades de
falhar, mas porque tornaria desnecessária a responsabilização
do doente pela sua evolução e ao mesmo tempo lhe retiraria
o controlo sobre si próprio e sobre a relação terapêutica
que vai iniciar, dado que, no início da terapia, talvez a
única competência que o doente não viu desmoronar-se foi a sua
capacidade para controlar as mudanças.
em vez de uma fórmula mágica que o doente espera para o
problema, o médico poderá dizer: veremos se é possível a sua
vida mudar, ou se tudo terá que ficar assim para
sempre.
perante esta antecipação do futuro, qualquer paciente com
anorexia nervosa responde vivamente: ... isso não quero... tem
que mudar!
a anorexia nervosa foi uma tentativa de solução para
um problema e essa solução tornou-se em si mesma o problema.
quando um paciente admite a hipótese de tratamento não tem
ideia de como será árduo e perturbador o processo que vai
enfrentar. de início sentirá uma súbita esperança para o fim
do seu sofrimento, esperando que de um momento para o outro a
relação com a comida se modifique e o corpo se liberte da
necessidade de controlo, sem ter que passar pelo assustador
processo de mudança e adaptação. pouco a pouco vai
confrontar-se com a necessidade de prescindir das restriçÕes e
limites que se auto-impôs para conseguir tornar-se mais forte,
mais perfeito, mais amado, e ver-se-á obrigado a abandonar a
solução que encontrou na anorexia, o que será sentido como um
fracasso mais doloroso ainda do que o motivo que fez
desencadear todo o processo.
É assim muito importante que logo na primeira consulta seja
discutida a necessidade de ser negociado um contrato
terapêutico que responsabilize tanto o médico como o doente
pelo seu cumprimento e que implique a família como parte
activa e fundamental na evolução da situação. o objectivo na
formulação deste contrato é o de avaliar se a mudança é
possível ou admitida pelo paciente e família e se é aceite que
o médico possa ser o orientador dessa mudança.
aparentemente seria desnecessário perguntar ao paciente se
considera que precisa de tratamento, mas é fundamental que a
pergunta seja feita claramente ou a consulta ficará desprovida
de sentido e não marcará diferença em relação a outros
tratamentos previamente tentados e falhados, que podem ter
sido vivenciados como violação e coerção à liberdade
individual.
o que é um objectivo inquestionável para o médico (o
tratamento) é para o paciente um dilema assustador, porque
acredita que libertar-se da tirania da sua anorexia vai
empurrá-lo para um mundo de infinito terror (aumentar de
peso), e assim a clarificação da necessidade de mudança tem
que atender nos seus objectivos às características
particulares de cada doente e de cada situação.
a premência de uma intervenção mais rápida e intensiva
será diferente conforme se trate de um jovem de 10 anos, em em
que todo o processo de desenvolvimento pode ficar
irreversivelmente comprometido se não for tratada a
anorexia em tempo útil para a puberdade se poder manifestar,
ou numa pessoa de 40 anos em que as funçÕes orgânicas,
hormonais e metabólicas já tiveram tempo de estabilização e
adaptação a um funcionamento diminuído, ainda que com os
riscos inerentes à cronicidade que comportam.
a decisão de iniciar um tratamento terá que ser tomada em
concordância de objectivos, aceites pelo médico e pelo
paciente, introduzindo a família no espaço terapêutico, com
tempo e espaço para porem as suas dúvidas e pedidos, sempre
na presença do paciente.
os pais, ao aceitarem que o seu filho necessita de um
tratamento longo, com avanços e recuos e muitos períodos de
aparente impasse, confrontam-se com uma impotência angustiante
por se sentirem incapazes de lhe aliviar o sofrimento.
frequentemente procuram respostas para uma culpa que pensam
ter tido no aparecimento da doença e na sua detecção tardia,
dado que é comum terem decorrido vários meses ou anos até
tomarem consciência da situação e admitirem que ela não se
iria resolver apenas com o seu empenhamento.
o doente, por seu lado, traz consigo a vergonha e a culpa de
ter "enganado" a família, utilizando todos os truques
possíveis para que não percebessem que estava consciente do
seu estado e que o mantinha escondido, por medo de ser forçado
a abandonar o controlo do corpo que se propusera.
no primeiro momento de encontro de todos com o médico, é
notória a necessidade de encontrar causas externas para a
situação, atribuindo-a à moda, às influências dos amigos, aos
comentários de outras pessoas fora da família, aos tempos
modernos e à adolescência perturbadora.
as alusÕes às mentiras, às promessas não cumpridas e à
desconfiança mútua são reveladoras de uma enorme angústia,
pelo receio de que o inexplicável e incompreensível da
situação destrua definitivamente os laços de afecto e união
que pais e filhos vêem ameaçados, perante um conflito que se
instalou e parece ser irreversível.
qualquer pai ou mãe dariam tudo, até a própria vida, para
impedir o seu filho de sofrer, e qualquer filho desejaria que
os seus pais se orgulhassem de si, mas na anorexia nervosa
uma e outra aspiração estão impossibilitadas de se
concretizar, porque uma ameaça impossível de ser compreendida
e explicitada se instalou minando os afectos e as expec-
tativas.
por isso todos esperam uma solução rápida e mágica que garanta
que tudo vai voltar ao normal, isto é, "igual" ao que era
antes da anorexia. É necessário explicar que nada voltará ao
"dantes", que o processo de recuperação será lento mas
progressivo e só será levado a bom termo se a família, o
paciente e o médico trabalharem em conjunto para o mesmo
objectivo, que será a mudança à qual todos terão que se
readaptar.
assim, qualquer tratamento imposto que não parta da aceitação
da mudança global e particular será inoperante porque não
valoriza as competências individuais e familiares
indispensáveis para o sucesso terapêutico.
a decisão de iniciar o tratamento da anorexia terá que ser
tomada sem omissÕes nem promessas e poderá mesmo ser adiada,
ainda que a situação seja grave, enquanto se mantiverem
posiçÕes rígidas que impeçam uma intervenção para a mudança,
como sejam:

-- recusa de uma recuperação ponderal, ainda que lenta, mas a


iniciar de imediato segundo objectivos definidos a curto
prazo;
-- insistência por parte da doente numa atitude passiva de
dependência: faça o que quiser... não me comprometo com nada;
-- se o fracasso de tratamentos anteriores for apenas
atribuído a causas externas, livres de auto-responsabilização;
-- se a família não for um aliado no tratamento e se se
auto-excluir da participação na mudança.
É frequente também o doente afirmar: primeiro preciso de
melhorar psicologicamente e o peso depois se verá...; embora
seja certo que, sem um trabalho psicológico, a recuperação
física será muito difícil, também é claro que tal condição
assim posta não pode ser aceite porque serviria para manter
uma clivagem artificial entre corpo e mente, que a doente tem
vindo a fazer ao longo da sua doença.
pretende-se, nesta clarificação inicial de um processo
terapêutico, que o paciente com anorexia possa admitir
experimentar outras possibilidades para a solução dos seus
problemas com a garantia de o não fazer sozinho nem
apressadamente ou por imposição, e que se pergunte se o
terapeuta e o modelo de tratamento poderão trazer algo de novo
para a sua vida.
uma vez aceite um tratamento com regras e por etapas, será
iniciado um trabalho interdisciplinar em que a avaliação
física está a cargo de um médico internista, a reeducação
alimentar a cargo do nutricionista e o trabalho psicológico
que permita a mudança e o crescimento a cargo do psiquiatra ou
psicólogo com experiência no tratamento destas doenças.
a psicoterapia individual será o cerne e o motor de um
processo de reorganização e reconstrução psíquica num eu
fragilizado por experiências anteriores de insucesso e
menos-valia pessoal, encapsuladas por um comportamento rígido
e obsessivo, na procura de um ideal de perfeição que iluda e
preencha um vazio de inadequação à vida e às suas exigências.
numa relação psicoterapêutica é encetada uma viagem ao mundo
interno do paciente com a sua anorexia, e esse percurso será
dirigido e controlado pelo próprio paciente, umas vezes
dirigido ao mais recôndito lugar das suas memórias de uma
infância que os pais consideram sem problemas, outras vezes,
quando mais difícil se torna procurar sentimentos nas
recordaçÕes, centrando-se nas comidas, gordura e calorias que
não são mais do que temas de passagem para aliviar o
pensamento e a sua dor.
uma menina de 11 anos com a sua anorexia de 18 meses de
evolução diz durante a sua terapia: "eu era duas pessoas, eu
própria e a anorexia. esta era muito mais firme e forte do que
eu e comandava todos os meus actos e se eu falhasse sentia-me
criticada por ela. agora sinto que eu começo a não ter tanto
medo d.ela e talvez seja um dia capaz de me libertar. peço-lhe
[ao médico] que me oriente e me ajude a ser como eu quero, mas
que seja devagar, pouco a pouco, porque tenho muito medo do
que me possa acontecer."
neste longo caminho entre as memórias e o conhecimento do medo
vão-se abrindo portas para novas opçÕes, com períodos de
aparente paragem, com avanços e recuos, mas com uma grande
riqueza de possibilidades para poder trocar o medo da gordura
pelo desejo de sonhar. são vividos pelo paciente e pelo
terapeuta compassos de espera que permitirão a continuidade de
uma experiência tão assustadora quanto desejada, que precisa
de tempo para o paciente se assegurar de que vale a pena
conhecê-la e integrá-la na sua particular e única existência.
a par deste processo de crescimento individual será sempre
oferecido à família um espaço de crescimento e reflexão, numa
terapia familiar, que permita também reunir memórias e
confiança num futuro que perdeu previsibilidade.
o tratamento da anorexia nervosa terá assim que ser adaptado a
cada situação, porque nem todos os doentes responderão da
mesma maneira ao mesmo tratamento, dado que em cada caso estão
implicados factores específicos como sejam a personalidade do
paciente, a idade, a duração prévia da doença, a condição
física, ambiente e a estrutura familiar.
tratar a alma implica também cuidar e fortalecer o corpo que é
a sua casa e a sua condição.
assim é sugerido na metáfora do peixe-lua que diz assim:

um mestre muito velho e muito sábio tinha um discípulo muito


jovem e muito estudioso.
um dia o mestre pô-lo em frente de um aquário onde vivia um
peixe-lua e pediu-lhe que lhe dissesse como era aquele peixe.
o discípulo descreveu exaustivamente a forma, as cores e todas
as escamas e sua orientação e no fim o mestre
disse-lhe: "descreveste o peixe-lua, mas não disseste como ele
É."
então o discípulo descreveu todos os movimentos que o
peixe-lua fez durante um dia inteiro em função da luz, da
temperatura e do ambiente e o mestre disse: "descreveste os
movimentos do peixe-lua mas não disseste como ele É."

então o discípulo passou dias e dias a estudar tudo o que


diziam todos os livros sobre o peixe-lua e a descrever todas
as modificaçÕes por que passava.
um dia o mestre disse-lhe: "de tanto olhares para o peixe-lua
a fim do o tentares conhecer, esqueceste-te de o alimentar e
não reparaste que ele morreu. agora já não poderás saber como
ele era!"

3 -- a resolução. o tratamento da an é prolongado e difícil. a


sua duração é variável, mas nunca inferior a um ano de
psicoterapia individual. o modelo mais utilizado é o da
psicoterapia cognitivo-comportamental, mas não deve ser posto
em prática de uma maneira rígida, sendo importante a
contribuição da perspectiva psicodinâmica, da psicoterapia
interpessoal e das terapias de grupo. na nossa equipa, temos
experiências animadoras com grupos de doentes com bn e an, que
permitem o entrecruzar de narrativas de vida e a partilha de
situaçÕes quotidianas, mobilizadoras para a mudança
necessária.
a psicoterapia é essencial, mas não pode esquecer que jamais
terá êxito sem a recuperação do peso e sem o estabelecimento
de uma alimentação equilibrada. impressiona verificar a
existência de tratamentos prolongados, às vezes de anos, com
interpretaçÕes constantes por parte do técnico, mas sem
imprimirem mudança real na pessoa com an. como vimos atrás,
são os efeitos da privação alimentar os responsáveis pelo
agravamento e cronicidade do processo anoréctico. sem os
corrigirmos, não interessa que a doente "compreenda" o que se
passa, se isso não a fizer comer. "usava muita roupa para
esconder a minha magreza mas só agora, que como melhor,
percebi que também punha muitas camisolas para não ter frio.
tinha tanto frio! agora até está mais frio lá fora e não
preciso de tanta roupa, porque como mais", dizia-me
recentemente uma das nossas doentes. estava a falar, sem o
saber, dos efeitos da fome sobre as hormonas da tiroideia.
esta glândula é responsável pela termogénese e a sua má
função, determinada pela falta de comida, provoca o frio tão
característico das pessoas com an.
na evolução do tratamento precisamos de continuar a fazer a
revisão dos problemas físicos (papel do médico internista ou
endocrinologista) e trabalhar persistentemente os problemas
psicológicos, com destaque para os sentimentos da inadequação
já referidos.
as questÕes da diferenciação e autonomia são temas frequentes
nas sessÕes de psicoterapia. É preciso ajudar a pessoa com an
a construir a sua identidade, até aí inexistente ou confundida
com o conjunto aglutinado da família. o processo de construção
dessa identidade é longo e
complexo. numa adolescente normal, processa-se através
da acumulação de sentimentos, vivências e emoçÕes individuais,
experimentados ao longo de várias fases e acontecimentos da
vida. a este self (que significa aquilo que é próprio, que é
distinto dos outros) individual é necessário juntar o self
social, obtido a partir da interacção com a sociedade e com o
grupo de pares (companheiros). o adolescente saudável, embora
com avanços, recuos e momentos de turbulência, é capaz de se
desprender da protecção da infância, autonomizar-se face aos
pais, conseguir a sua maturação intelectual, resolver as
questÕes do amor e da sexualidade e com tudo isso adquirir a
sua identidade. o fim da adolescência corresponde justamente à
capacidade de atingir a autonomia, ter um projecto e mostrar
capacidade de decisão, definir uma identidade sexual e
adquirir um sistema de valores. os investigadores da
psicologia social têm chamado a atenção para o facto de este
processo ser completado "para fora", com o grupo de amigos
como uma dimensão fundamental. o adolescente observa o meio,
simplificando-o, e interage com o grupo, diferenciando-se
socialmente dos companheiros. a forma como os adolescentes e
os seus pais se interrogam sobre esse grupo é muito diferente
e a compreensão destas duas perspectivas é importante para o
trabalho clínico com adolescentes (1).

(1) cf. pereira, m. gouveia, a percepção do papel do grupo de


pares nas tarefas de desenvolvimento em adolescentes e pais,
tese de mestrado, instituto superior de psicologia aplicada,
lisboa, 1995.

a auto-estima e a identidade estão relacionadas com todas


estas tarefas da adolescência.
num jovem com an, quer a construção do self individual quer a
formação do self social estão profundamente alteradas. durante
muito tempo e a nível da família, a pessoa anoréctica observou
os pais, cuidou das suas fragilidades ou satisfez os seus
desejos. não conseguiu diferenciar-se
do sistema parental. quando surgiu a pré-adolescência ou a
adolescência, não tinha capacidade para se desprender da rede
primária da família e lutar por um lugar no grupo de jovens,
para construir a sua identidade social e ser uma pessoa com
capacidade de decisão e projectos de futuro. fica assim
perdida entre a lealdade à família e as solicitaçÕes
constantes dos colegas, vendo aumentar a cada dia que passa o
seu mal-estar e a sua inquietação. ao menos a dieta é qualquer
coisa de próprio e íntimo que só depende de si.
as crises de voracidade alimentar compulsiva (crises
bulímicas), os vómitos e os outros comportamentos purgativos
já descritos, exigem estratégias terapêuticas específicas. a
utilização já referida do diário alimentar, o sair de casa ou
telefonar a alguém antes de começar a comer sem parar, e
sobretudo a regularidade sistemática das refeiçÕes, são
estratégias habitualmente usadas para interromper o círculo
vicioso ingestão/expulsão.
o contacto com outras pessoas com o mesmo problema é útil, mas
deve ser feito com supervisão médica. precisamos garantir à
pessoa com an uma disponibilidade mantida, que resolva a
situação actual, mas também previna as recaídas.
na evolução do tratamento (ou no início, se ele começou
tardiamente), pode ser necessário o internamento hospitalar.
torna-se obrigatória esta medida quando existe uma grande e/ou
rápida perda de peso (índice de massa corporal menor que 13),
quando surgem complicaçÕes médicas graves ou os níveis de
perturbação psiquiátrica são significativos, particularmente
depressão e risco de suicídio, ou se existe grave disfunção ou
falta de apoio familiares. um tratamento em consulta externa
que não leve a uma subida de peso ao fim de alguns meses deve
fazer encarar também a hipótese de internamento.

sistematizemos, então, a atitude terapêutica em ambulatório


face a um quadro de an (1):

(1) de acordo com j. treausure, comunicação pessoal.

(a) síndrome parcial (perda de peso, dieta excessiva,


preocupaçÕes face ao corpo, sem serem preenchidos os critérios
de diagnóstico para an): a intervenção deve consistir numa
abordagem psico-educativa com vigilância do peso, que poderá
ser realizada por médico de clínica geral ou endocrinologista.
(b) anorexia nervosa (critérios preenchidos): psicoterapia em
consulta externa, conduzida por psiquiatra ou pedopsiquiatra.
encarar a hipótese de grupo terapêutico. terapia familiar
recomendada, obrigatória em doentes com menos de 18 anos.
procurar técnicos com experiência no tratamento das doenças do
comportamento alimentar, já existentes em portugal nos
serviços universitários de psiquiatria de lisboa, porto e
coimbra. deverão ser realizadas reuniÕes de apoio e informação
aos familiares, à semelhança das que o nosso grupo realiza em
lisboa. mesmo que a pessoa doente recuse ir a uma consulta, a
família deve procurar ajuda numa destas reuniÕes ou através do
contacto com um técnico conhecedor do problema.

É muito importante que os pais compreendam a necessidade do


tratamento psiquiátrico e o risco de dietas da moda, ou
medidas correctoras simplistas, baseadas em reforços
alimentares e contagem de calorias. a an é uma doença grave
que ameaça a vida, por isso não se deve perder tempo.
numa revisão de 68 estudos de evolução, correspondendo a 3104
doentes com an (1), verificou-se recuperação em 43%

(1) steinhausen, h. c., "the course and outcome of an", in


brownell e fairburn (eds.), eating disorders and obesity,
guilford press, n. i., 1995.

dos casos, melhoria em 36% e má evolução, com cronicidade, em


20% (valores médios). a mortalidade neste grupo de mais de
3000 doentes foi de 5%.

internamento

como vimos atrás, o agravamento do quadro clínico torna


necessário o internamento hospitalar. este deve decorrer em
unidade especializada de serviço de psiquiatria ou de
pedopsiquiatria, infelizmente ainda não existente entre nós.
à falta de melhor, os serviços universitários de psiquiatria
de lisboa, porto e coimbra, onde existem equipas com treino
nesta patologia, constituem alternativas menos más para o
tratamento hospitalar.
na última reunião familiar quase entrei em pânico. tive de me
controlar para não desatar a chorar. tinhas perdido muito peso
e a tua psiquiatra descobriu que vomitavas. na sessão,
o teu pai falou com repugnância dos teus vómitos e de como não
valia a pena estarmos ali todos a perder tempo, porque
tu arranjavas maneira de boicotar o que se conseguia
avançar.
senti-me salva pelo médico jovem. fez-me sentar ao pé de ti e
perto dele e, com um leve sinal de olhos, incitou-me a
abraçar-te. ficámos as duas abraçadas e senti o teu corpo a
tremer de encontro ao meu.
no dia seguinte, mariana, foste internada. não compreendo por
que não me deixam visitar-te. tenho a certeza que
precisas de mim. fui contigo até à enfermaria e, com
a tua mãe, arrumamos as tuas coisas que insististe em levar:
um velho walk-man, um livro da susanna tamaro de que não
recordo o título, dois pijamas que te devem estar larguíssimos
e uma coelha de peluche de que nunca te separas. ficaste
irritadíssima de te teres esquecido da escova de dentes e de
uma toalha e começaste a chorar e a bater com os pés no chão
como se tivesses cinco anos.
a enfermaria é sinistra. as paredes estão pintadas de azul. as
camas parecem desconfortáveis e há flores de plástico e
quadros pirosos por todo o lado. antes do internamento, fomos
atendidos num gabinete minúsculo onde, por cima da porta, se
lia "quarto do médico". havia um armário vazio com uma rede de
palha esburacada, um armário de ferro semiaberto donde pendiam
botas brancas com ar mal cuidado e capotes azuis com buracos
de traças. o telefone estava sempre a tocar e a tua psiquiatra
despachava os telefonemas o mais rapidamente possível para se
poder concentrar em ti. o professor era constantemente chamado
para outras tarefas e movia-se pesadamente entre cadeiras
semipartidas e cestos de papéis forrados com sacos pretos de
plástico. só o médico jovem permanecia calmo e ia explicando à
família as regras do internamento. o teu pai não teve direito
a cadeira e sentou-se na cama que deveria ser para o médico de
urgência. tinha uma colcha de festão e quatro pequenas
almofadas roxas com cornucópias alinhadas em diagonal ao longo
do colchão. o restante cenário era constituído por uma
secretária velha, duas garrafas de água, cinzeiros atulhados
de beatas, um lavatório e um gigantesco espelho que me deixou
ver de alto a baixo o teu corpo tão magrinho.
pedi para ir à casa de banho e nunca mais a encontrei. fui
salva por uma doente muito velha que me agarrou pelo braço e
me conduziu a uma gigantesca banheira sem água
corrente, separada por uma parede fina de um minúsculo
cubículo só com uma sanita. outra doente explicou-me que as
doentes tinham de tomar banho do outro lado do serviço, não
longe da enfermaria e da casa de banho dos homens. fiquei
perplexa. mariana, com a tua mania das limpezas, como vais
suportar esta falta de condiçÕes? como vais conseguir passar
sem nós? sinceramente, acho crueldade ficares ali ao pé de
gente com tão mau aspecto!
o professor explicou a razão da separação da família. "a
mariana precisa de tempo para reflectir. sabemos como é
difícil esta separação, mas a intensidade das relaçÕes de amor
na vossa família é tão grande que provavelmente teriam
tendência para aparecerem muito. se isso acontecer, a mariana
ficará muito emocionada e não estará em condiçÕes de lutar
para vencer a doença. à medida que o peso for aumentando, terá
mais visitas e poderá até passar um fim-de-semana em casa.
faremos várias sessÕes de terapia familiar durante o
internamento e estaremos ao vosso dispor para todas as
perguntas, mas não falaremos convosco sem a mariana saber".
foi nessa altura, minha querida neta, que era preciso dizer-te
adeus e deixar-te ali, naquele sítio tão deprimente e mal
cuidado, junto de tanta gente louca e diferente de ti.
deixei-te e saí com os outros.
ficaste a falar com a tua médica. a intensidade da vossa
relação impressionou-me. era como se existisse um pacto
secreto que não percebíamos, mas que nos permitia ir embora
sem terror.

durante o internamento hospitalar é essencial que a equipa


terapêutica tenha os papéis bem definidos e discuta
permanentemente as medidas a tomar. no hospital de santa
maria, em lisboa, o internamento processa-se em três
fases:

a) fase inicial -- informa-se a família e a pessoa com an do


contrato terapêutico e das regras a cumprir. definem-se os
objectivos do tratamento intensivo e o regime de visitas.
b) fase principal -- promove-se a recuperação do peso,
através do estabelecimento de um regime alimentar regular e
equilibrado, negociado entre a dietista e a anoréctica, mas
sem abdicar dos princípios de uma alimentação saudável.
tratam-se as perturbaçÕes psiquiátricas eventualmente
associadas. insiste-se na resolução das principais distorçÕes
cognitivas e, através da terapia familiar, procuramos a
melhoria das relaçÕes da família.
c) fase final -- após recuperação ponderal, prepara-se a alta
junto da pessoa com an e em colaboração com a família.

todos os elementos da equipa têm um papel importante. a


enfermeira vigia as refeiçÕes e o peso, através de uma relação
empática e firme. a dietista estabelece uma dieta progressiva
de 1000 a 3000 calorias/dia, visto haver perigo numa
realimentação rápida. o psiquiatra é o responsável pela
psicoterapia individual (em colaboração com o psicólogo) e
receita os fármacos que entender necessários. outro psiquiatra
é o responsável pelas sessÕes de terapia familiar, onde o
terapeuta individual não pode faltar. o médico está atento à
resolução dos problemas médicos.

passou um mês e parece que vais ter alta em breve. vejo-te com
outro aspecto e até aquele ar irritado desapareceu. sonho
todas as noites que já estás em casa e que vais ficar curada!
até o teu pai está diferente, deve ser das conversas nas
sessÕes de família. a psiquiatra é muito prudente, está sempre
a falar na tua amiga anorexia, acho que ela está a puxar por
ti para ver se consegues viver por ti própria.

prevenção da an
vimos anteriormente que a origem das doenças do comportamento
alimentar não é conhecida, apesar dos notáveis progressos
obtidos no tratamento destas situaçÕes.
a nossa concepção pressupÕe, como dissemos, a existência de
factores predisponentes, individuais e do desenvolvimento;
factores precipitantes, com influência familiar e cultural,
geradores de sentimentos de insatisfação com o peso e a
forma do corpo e que levam a uma dieta persistente e
progressivamente mais restritiva, na esperança errónea de
obter melhor autoconceito e maior controlo; e finalmente
factores que mantêm a doença e a podem tornar crónica,
derivados dos efeitos devastadores sobre o organismo
provocados pela desnutrição. esta visão do problema,
próxima da de garner (1), impÕe uma abordagem multifocal,

(1) garner, d. m., "pathogenesis of anorexia nervosa", lancet,


341, pp. 1631-1635, 1993.

com necessidade de uma equipa multidisciplinar e uma


investigação permanente sobre o melhor caminho para o êxito
terapêutico.
a prevenção das doenças do comportamento alimentar é muito
difícil, pelo conjunto de problemas implicados. todos os
autores concordam, contudo, na importancia do esclarecimento
sobre dietas, afinal o factor precipitante mais
concretamente individualizado. sabendo a elevada percentagem
de jovens, sobretudo do sexo feminino, preocupados com a forma
de perderem peso, é essencial levá-los ao médico de clínica
geral se essa preocupação se torna excessiva ou injustificada.
precisamos dizer que há grandes variaçÕes nos pesos das
pessoas e factores constitucionais importantes que determinam
o facto de sermos mais gordos ou mais magros do que
eventualmente desejaríamos. a prevenção essencial estará,
assim, na luta por uma alimentação saudável e pelo controlo
médico permanente de uma dieta em adolescente.
o segundo aspecto preventivo consistirá numa detecção precoce
das primeiras manifestaçÕes da an e da necessária intervenção
terapêutica. existem muitas pessoas com aquilo que designámos
por síndrome parcial, ou seja, sintomas já detectáveis
clinicamente por um observador atento e que não devem ser
comentados superficialmente, género: podes ficar sem almoço
que recuperas à noite, ou, como estás a fazer exercício, ao
fim da tarde deves comer pouco até à hora da ginástica. um
adolescente deve fazer quatro refeiçÕes por dia, duas das
quais sentado à mesa para almoçar e jantar. vejo certos pais e
mães criticarem as pizzas e os hamburguers tão do agrado dos
jovens de hoje, sem se preocuparem com o hábito tão português
e saudável de os fazer gostar de uma boa sopa de legumes ou de
um bacalhau no forno.
precisamos melhorar o conhecimento sobre a patologia alimentar
em grupos de adultos que lidam com jovens, desde médicos que
não sabem fazer o diagnóstico até professores exigentes e
competitivos, tão agradados com as notas da menina que não
vêem que ela está a definhar dia após dia. professores e
monitores de dança, ginástica, bailado e luta precisam de ser
especialmente alertados. a ânsia de
ter um campeão, exigindo que ele esteja persistentemente magro
para obter melhores marcas, pode ser um factor precipitante
numa pessoa vulnerável. no momento em que escrevo este
capítulo, trato a an de três raparigas onde os factores de
exigência competitiva no plano desportivo foram importantes no
desencadear da doença: uma campeã de ginástica, uma jovem
bailarina e uma nadadora pré-seleccionada para uma competição
internacional. nas três situaçÕes, os monitores exigiram dieta
rigorosa, exercício físico intenso com muitas horas de treino
e pressão permanente para a obtenção de cada vez melhores
marcas. perderam-se três estrelas, esperemos que eu consiga
ajudar a ganhar três mulheres saudáveis!
o terceiro aspecto preventivo diz respeito à recuperação das
pessoas já atingidas por um processo bem marcado da an.
precisamos reduzir a morbilidade, isto é, os diversos aspectos
patológicos que esta doença contém, como descrevemos. para
isso, é necessário uma actuação rápida e eficaz a cargo de
uma equipa treinada. qualquer família atingida por um problema
de doença do comportamento alimentar, não só deverá procurar
ajuda psiquiátrica imediata como também necessitará questionar
o técnico sobre a sua experiência neste campo. em portugal, os
utentes dos serviços de saúde são de uma passividade
preocupante. vão a um centro de saúde ou a um consultório e
podem sair de lá com uma indicação de uma psicanálise ou de um
electrochoque, sem perguntarem nada sobre a patologia ou o
tratamento. infelizmente, em portugal, muitos técnicos, cheios
de boas intençÕes, começam a tratar pessoas com an e bn de uma
forma simplista, sem
um plano terapêutico definido ou com terapêuticas
contra-indicadas. uma das minhas doentes anorécticas foi a um
psiquiatra que a achou deprimida e lhe receitou um medicamento
que a fez aumentar muito de peso. não voltou lá mais, mas
perdeu três meses de tratamento eficaz. outra andou seis meses
a tomar um contraceptivo "para regularizar a menstruação" e
perdeu catorze quilos. um rapaz com grave an, hoje recuperado,
foi diagnosticado com possível esquizofrenia e só não foi
supermedicado nesse sentido porque os pais não se convenceram
do diagnóstico.
não pretendo criticar ninguém. luto apenas para que a doença
seja conhecida das famílias e dos profissionais de saúde e
para que quem estuda possa ter melhores condiçÕes de trabalho
para tratar melhor.

alguns resultados

o núcleo de doenças do comportamento alimentar (ndca) do


hospital de santa maria, de lisboa, fez a revisão recente dos
casos tratados.
desde 1993 até ao fim de 1996 tratámos 124 doentes com an, 120
mulheres e 4 homens. o ano de 1997 traduziu-se por um grande
aumento de novos casos (40 diagnósticos de an durante esse
ano).
procedemos a uma avaliação detalhada das 120 doentes
referidas, destinada à apresentação na minha lição de
agregação na faculdade de medicina de lisboa (outubro de
1997). predominou a an tipo restritivo (76,6%), face à an tipo
ingestão compulsiva/purgativo (23,4%). a grande maioria destas
doentes são estudantes (85% dos casos). a idade de início da
doença oscilou entre o mínimo de 11 anos e o máximo de 27, com
uma média de 16 anos.
em muitos casos, os doentes chegaram muito tardiamente à
consulta, desde um espaço aceitável de três meses até uma
espera de cento e vinte meses. neste caso a doente esteve, por
conseguinte, dez anos sem tratamento adequado! o intervalo de
tempo, em média, foi superior a dois anos -- 25 meses, o que
não deixa de ser preocupante. o não conhecimento da existência
de uma equipa especializada por parte da população contribui
para esta demora, que é imperioso reduzir.
a média dos pesos foi de 41kg, com índice de massa corporal
baixo (média imc 15,63). o tempo de amenorreia oscilou entre o
mínimo de 3 meses -- critério para o diagnóstico -- e o máximo
de 84 meses.
procedemos ao estudo da evolução destes doentes, o que foi
possível em 97 casos. dezanove dessas doentes tinham sido
internadas no serviço de psiquiatria, com uma média de três
meses de tempo de internamento. melhorámos o peso de um modo
significativo, visto que a média de peso passou a ser de 49,9
kg. deu-se a recuperação da menstruação em 67% dos casos.
pesquisámos também as restriçÕes alimentares praticadas por
esse grupo de 97 an nos últimos seis meses antes da avaliação.
sabemos que mesmo com peso e menstruação normais, muitas
doentes com an fazem selecção de alimentos e têm
peculiaridades face à comida. concluímos que 27% das doentes
nunca tinham feito dieta ou restriçÕes específicas de
alimentos; 18,1% tinham feito sempre; 28,2% em menos de metade
das vezes e 27,2% em mais de metade das vezes.
a autonomia face à família, definida apenas pela própria
anoréctica, foi considerada satisfatória em 49,3% dos casos.
estes nossos dados são semelhantes aos de outros
investigadores e provam que a an é uma doença de tratamento
difícil. demonstram, no entanto, de forma inequívoca, que vale
a pena tratar as pessoas atingidas. mesmo que não se consiga
uma completa remissão dos sintomas, as melhorias obtidas na
maioria dos casos evitam as complicaçÕes da doença e permitem
uma evidente recuperação a nível da auto-estima e do
relacionamento social.

fui hoje a casa da minha amiga aurora. com o problema da


mariana há muito que não tinha disposição para lá ir. a
aurora não compreende a doença e acha que tudo se deve a
questÕes de educação. hoje contei-lhe que tudo começou a
correr bem depois do internamento. a mariana aumentou de peso
e está com muito melhor aspecto, embora ainda sem o período. a
médica que trata dessa parte disse que isso leva mais tempo.
continua a pedir-me que grelhe muito a carne e quando come
mais doces fica muito preocupada, vem logo ter comigo para
desabafar. o certo é que agora come de tudo e dorme muito
melhor. a disposição também é outra.
fiz a minha última pesquisa ao diário. como tenho medo que
alguém apareça, só leio aos bocadinhos e volto a pôr tudo como
estava. os últimos meses deixaram-me contente. fala dos amigos
e da família, de ser feliz e de ter saúde. voltei a ler tudo
desde o princípio e fiquei assustada. tanto tempo com aquele
sofrimento, sem dizer nada a ninguém! É uma doença muito
estranha. para mim, é uma espécie de sacrifício, parece que a
mariana quis toda a vida provar que era boa e, como não o
conseguiu, teve de se castigar. o professor, numa das sessÕes,
chegou a pôr a hipótese de ela ir para freira, porque de tão
magra que estava os rapazes não poderiam gostar dela. achei
uma estupidez, mas vi que a minha neta ficou furiosa, o que
significou que o tema lhe tocou de alguma maneira. não sei,
continuo um bocado confusa acerca desta coisa da anorexia, mas
também nunca percebi a tensão alta e se não tomo os
comprimidos fico com dores de cabeça. fiquei com a ideia que a
comida era o remédio na doença da mariana e a verdade é que
quando ela começou a comer como deve ser tudo pareceu
melhorar. "há ainda um longo caminho a percorrer, a mariana
está muito mais independente da sua amiga anorexia, mas ainda
não está completamente pronta para seguir em frente", disse a
psiquiatra dela numa das
últimas sessÕes, enquanto o professor e o outro médico
concordavam. sinto a família mais próxima dos médicos
e com grande confiança neles. de certa forma, todos estamos
diferentes. também se discutiu a depressão do gonçalo e
o seu desejo de morrer, só agora percebi que se calhar isso
também teve importância no aparecimento da doença da mariana.
quando a médica falou no "caminho a percorrer", fiquei
assustada e fui logo ver o diário. havia uma parte terrível
que eu tinha esquecido. era uma série de páginas tiradas de um
livro, parece que se chamava santificada ou qualquer coisa do
género. o que mais me arrepiou foi o desenho de uma rapariga
muito, muito magra e a letra da mariana a transcrever "em
alguns dias não me consigo levantar porque todo o chão se move
demasiado debaixo dos meus pés e eu sorrio pois estou lá, eu
sou quase um anjo. um dia, em breve, quando estiver quase a
extinguir-me, irei lá fora, abanando as mãos para conseguir
voar, e estarei tão transparente que passarei por todos vós
silenciosamente como o vento". oh, mariana, é como se todos os
teus sonhos de felicidade tivessem desaparecido dentro de ti e
tu fosses um pedaço de ar a pairar por aí... felizmente sei
que hoje já não serias capaz de fazer aquele desenho ou passar
para o papel uma frase tão terrível! sei que hoje já se pode
falar contigo sem tu nos atirares pedras, sei que sentiste bem
todo o amor da tua família e o apoio dos teus colegas. no
fundo, talvez o teu esforço e sofrimento tenham feito com que
todos olhássemos mais para dentro, e ao mesmo tempo para
aquele que está ao pé de nós e que deixámos de ver. não valeu
a pena foi teres corrido tantos riscos, sei bem agora que se
não tivesses sido internada poderias ter morrido.
decidi hoje contar-te que andei a ler o teu diário às :;
escondidas. tenho a certeza que vais ficar muito triste, mas
que acabarás por compreender. no fundo, acho que a anorexia é
também uma falta de comunicação e eu só agora sou capaz de
falar contigo directamente. vou prometer-te que nunca mais
entrarei no teu quarto sem tua licença e tenho esperança que
me perdoarás.

as cartas da anorexia (1)


i -- braga, setembro 96

em primeiro lugar, gostaria de o cumprimentar por essa


brilhante ideia que foi o programa verdes anos e ao qual o sr.
doutor deu vida. além de alertada, acho que fiquei mais
sensibilizada para o que é a doença "anorexia nervosa". e é na
qualidade de mãe de uma adolescente anoréctica que tomei a
liberdade de lhe escrever.

(1) transcrevo extractos da correspondência trocada entre mim


e a mãe de uma rapariga com an. todos os factos são reais, com
excepção dos elementos de identificação. a publicação dos
excertos foi autorizada pela autora das cartas, a quem
agradeço.

tenho uma filha de 14 anos de idade, a ana paula, inteligente,


estudiosa, "paranóica" das notas escolares, como eu costumava
chamar-lhe, e que igualmente assistiu, gravou e reviu esse
bendito programa. foi a partir dessa altura que ela mais se
consciencializou da doença. esta começou pelo processo da
bulimia, passou a anorexia, quase sem eu me aperceber. só ao
fim de 3/4 meses, quando já estava imensamente magra (dos
47/48 passou para os 38 kg, com 1,63m de altura), é que eu
"acordei" verdadeiramente. procurámos então ajuda junto do
nosso médico de família, que de
imediato a encaminhou para a respectiva especialidade. depois
de algumas consultas de psiquiatria para controlo do peso e
psicoterapia, fomos aconselhados a semi-interná-la numa
clínica psiquiátrica. lá, fazia o tratamento que a médica
achou conveniente e ao fim do dia voltava para casa. daquele
tratamento, tenho imagens da minha filha que nunca imaginei
nem vou esquecer! desde alergias, lapsos de memória,
convulsÕes, desmaios, alucinaçÕes, tudo eu vi sem nada
entender. pensava eu, e depois confirmaram-me, que isto era o
resultado do tratamento, "nada preocupante". nada me era
explicado, tudo era normal, repetiam-me [...] por favor
ajude-nos
a tratar a nossa filha.

ii -- braga, outubro de 1996

obrigada pela sua carta. já contactámos o serviço que nos


indicou. a ana paula está a ser acompanhada por uma médica e
já se falou na terapia familiar, mas não se marcou por falta
de disponibilidade dos médicos. continuo muito confusa acerca
desta doença e sem saber que atitudes devo tomar. acho que
devia haver muito mais informação sobre este tema, os
programas de televisão que elucidassem as pessoas [...].

iii -- braga, dezembro de 1996

desde que recebi a carta do sr. professor, tento


auto-analisar-me acerca do meu comportamento em relação à
minha filha. tem toda a razão quando diz ser eu demasiado
protectora até serei obsessiva a nossa vida, tanto a minha
como a do meu marido, giram em função da sua. e quando me
aconselha a "não entrar no seu território", sinto-me em
dificuldades para seguir à risca este conselho. qualquer dos
seus passos são uma fonte de preocupaçÕes. tento, no entanto,
proceder de forma a que ela não se aperceba [...]. mas onde
pára a terapia familiar? a falta de meios (raramente existe um
gabinete livre para as consultas) e a burocracia a que estamos
sujeitos são grande obstáculo para que o processo decorra como
seria desejável [...].
há quanto tempo tenho a minha filha doente e só me dizem que
esta situação pode durar anos. nem mesmo há a certeza da sua
cura! e os dias passam e sinto-me cada vez mais entregue à
minha sorte, continuando a navegar sem conhecer o rumo. a ana
paula passa todo o tempo que pode a devorar alimentos para, a
seguir, os deitar fora. nos dois ou três dias que antecedem a
consulta seguinte, usa de mais algum cuidado e reequilibra o
peso que porventura tenha perdido. e o saldo final até vai
sendo positivo: há um aumento de 300 ou 400 gramas, e "tudo
vai bem" neste controlo [...].
o que me pareceu na altura em que procuramos ajuda pela
primeira vez e me forçou a mudar, é que a médica que tratava a
ana paula não estaria muito preparada no ramo da an. por isso,
e sem hesitaçÕes, recorremos aos médicos que nos indicou,
acreditando que aí a minha filha seria melhor acompanhada.
e como o sr. professor diz que nunca falei da minha filha, mas
sim da sua doença, aqui vai, sem falsa modéstia, o "retrato"
da ana paula. É uma criança cheia de personalidade, mas dócil,
de uma sensibilidade extrema e a quem não se pode falar num
tom de voz mais elevado sem que isso lhe provoque o escorrer
das lágrimas. julgo que tem dificuldades em manifestar os seus
sentimentos. até à data, tem sido sempre uma aluna de
comportamento exemplar, inteligente, estudiosa até à exaustão,
sempre preocupada em atingir as melhores notas, nunca criando
conflitos com quem quer que seja, mas muito reservada, só
respondendo, nas aulas, quando solicitada.

iv -- braga, janeiro 97

mais uma vez, muito obrigada pela sua carta. eu bem disse que
abusaria. pensei é que não fosse tão rápido. o sr. professor
nem pode imaginar o bem que me fazem as suas cartas. fazem-me
sentir que existe alguém que, mesmo não me conhecendo de lado
algum, me apoia e ajuda, demonstrando um interesse incrível
por uma criança que não lhe diz nada, é apenas mais uma a
precisar de ajuda e isso basta-lhe [...]. "não fique bloqueada
pela burocracia. lute." esta simples frase foi o suficiente
para ganhar novas forças para mais um "combate" [...]. uma
nova postura da ana paula: vejo-a ficar mais tempo junto de
nós quando acaba as refeiçÕes, chegando a reduzir as
quantidades de comida para fugir à tentação de provocar o
vómito, acto este que é uma constante sempre que ingeria uma
grande quantidade (e não julga mal).
[...] também me diz que falo pouco do meu marido. É verdade,
sim, mas não é intencional. não pensei que fosse tão
importante. o meu egoísmo é que me faz pensar assim. o certo é
que a minha vida quase depende da da ana paula, que passou a
ser o meu foco de atenção. ao proceder assim, reconheço, o
meu marido vai sendo relegado. para ele restam os poucos
momentos que "sobram", que é nada. e, conhecendo-o como o
conheço, sei que sofre tanto como eu. É uma pessoa deveras
sensível, terno, carinhoso, delicado e dedicado, o mais que se
possa imaginar. estes sentimentos são recíprocos na filha, que
o adora e não suporta vê-lo magoado. nós duas, acho eu, somos
o seu mundo, para o qual vive. a sua sensibilidade é de tal
ordem que chega a "adoecer" se vê a mulher ou a filha doentes.
assim, enquanto pude, ocultei o estado da ana paula, pensando
que resolveria a situação sozinha. queria poupá-lo [...]. não
é raro vê-lo a um canto da casa com as lágrimas a
escorrerem-lhe pela cara abaixo. sente-se incapaz (por não
saber como) de ajudar a filha e pergunta-se se não lhe caberá
alguma culpa no que está a acontecer, e se não será também uma
consequência das muitas vontades que raramente lhe nega, por
não saber responder não a um qualquer pedido seu.
[...] ela foi por mim muito desejada, mas só o consegui aos 35
anos, e esta não terá sido a melhor idade para uma mulher ter
o seu primeiro filho. só pensei nisso depois. e por mais que
faça a minha autocrítica, a conclusão é sempre igual: "a minha
filha tinha de nascer". há talvez por isso um sentimento maior
de "responsabilidade" ao ponto de a hiperproteger, quase não a
deixando dar os seus próprios passos. fui ao ponto de nunca
sair de casa, a não ser para trabalhar, para que não ficasse
sozinha ou com a família. já bastava o infantário e mais tarde
a escola infantil, para estar longe dos pais o dia inteiro.
sempre que nos era e é possível, a nossa vida é vivida a três.
e, quem sabe, terá sido esta uma actuação negativa?

v -- braga, janeiro 97

[...] como o sr. professor já se apercebeu, e seguindo o seu


conselho, li o livro a vida por um fio, de isabel do carmo.
deixou-me impressionada, para não dizer perplexa, não só pelos
relatos das jovens envolvidas, mas porque me pareceu que
existem algumas em situação bem pior do que a ana paula. como
é óbvio, isso não me conforta, bem pelo contrário. ainda
fiquei mais convicta de que a minha filha vai ser um "caso
crónico". não quero perder a esperança, mas tenho momentos de
muita incredulidade. a minha saúde já se ressentiu bastante e
só com antidepressivos me vai sendo possível encarar menos mal
a situação.
quando ali se diz que chegam a atingir um peso de 27 ou 28
quilos, e já é necessário internamento para alimentação
através de sondas, é de arrepiar. obriga-me a pensar se a
minha filha não estará muito perto de atingir esse estado. e
que não há uma refeição em que a ana paula não provoque o
vómito [...]. pelo que li, esta doença remonta aos séculos
passados. embora tivesse características semelhantes e chamada
de nome diferente, a conclusão é sempre a mesma: anorexia.
agora, que vivemos num outro mundo (?) que devia ser de menos
ignorância, mais esclarecido, parece que voltámos à idade
média! e o pior de tudo é que se está a estender a um universo
muito mais vasto! e a isto há quem chame de progresso!

vi -- braga, fevereiro de 1997

acabo de receber a sua carta exactamente no dia seguinte


àquele em que teve lugar a terapia familiar tão ansiosa-
mente esperada e desejada. esta carta do sr. professor
obrigou-me a pensar como devo ter sido desagradável para
alguém que tão prestativo tem sido comigo. +s vezes os
nossos desabafos acabam por atingir e magoar alguém e
essa não é, nem nunca foi, minha intenção. isto deu-me
uma sensação angustiante de ingratidão e fico com o senti-
mento de culpa pelo uso e abuso que cometi ao escrever-
-lhe, manifestando a minha revolta pelo que me estava a
acontecer, e sem saber parar na hora certa [...]. o que devo
fazer ou como reagir em certas situaçÕes só o sr. profes-
sor, com a sua generosidade, me entendeu e indicou alguns
dos passos que eu devia seguir e julgo ter aproveitado [...].
falando, agora, sobre a terapia familiar, acho que
nesta primeira abordagem ela serviu apenas para os técni-
cos da terapia conhecerem um pouco do ambiente familiar
que rodeia a ana paula [...]. depois de tudo filtrado, ficou
apenas um ponto com algum significado para começar: a
questão da sua mesada ou semanada a que eu nunca atri-
buí alguma importância mas que, pelos vistos, poderá ter.
a ana paula começou por ter, há já uns tempos largos, uma
mesada simbólica, visto que ela não gastava um centavo
dessa importância que lhe dávamos e tudo o que precisava
e pedia poucas vezes lhe terá sido recusado. a par disso
começou, como incentivo ao seu empenhamento no estudo
da matemática, matéria em que sentia e sente alguma difi-
culdade, a ganhar um prémio em dinheiro sempre que ti-
rasse nota mais alta, acabando por se tornar um hábito em
todas as disciplinas, o que significa que a ana paula tem
sempre algum dinheiro com ela. passamos, agora, a seguir o
conselho que nos foi dado, ou seja, dar-se-lhe a semanada para
ela poder gerir como muito bem entender.
[... ]

vii -- braga, julho de 1997

a ana paula foi hoje a mais uma das suas consultas


individuais. gostaria era de ter coisas novas para dizer, mas
não. sempre que vem daquela consulta, surge a minha pergunta
sacramental: "como correu?". a ana paula responde do seu modo
habitual "está tudo normal". e a nossa conversa termina aqui,
como nos foi aconselhado. e fico sem saber o que fazer. se
telefono, estou a ser insistente, se não falo, estou a
negligenciar. como proceder, então?
[...] o meu marido tem uma personalidade muito fechada e quase
não deixa transparecer o que lhe vai no espírito. a sua
realização profissional foi afectada, e de que forma, e a
doença da filha, que se lhe veio juntar, são motivos mais do
que suficientes para não encarar com optimismo o futuro que o
espera [...]. não é muito dado a novos conhecimentos e, por
sistema, não toma iniciativa. qualquer programa que o obrigue
a fugir ao ritmo familiar, já é razão para ficar infeliz.
prefere ficar em casa agarrado ao seu computador, quer seja
para o trabalho, quer seja para passar o tempo, não dando azo
a convívios familiares ou com amigos, que se foram perdendo no
tempo [...]. na sua personalidade há algum conservadorismo,
mas tenho de reconhecer que lá o vou moldando no sentido de,
pelos menos, deixar a filha "viver", agora que "acordou".
viii -- braga, julho 1997

penso que a minha carta se cruzou com a sua, recebida hoje e


que muito feliz me deixou. quando a ana paula tiver a sua
consulta e eu souber quando haverá terapia familiar, darei
notícias ao sr. professor. não esquecerei o seu conselho sobre
"planeamento do próximo ano lectivo" e "tentativa de acabar
com os vómitos". pela minha parte, sinto uma completa
ignorância acerca de como actuar. as tentativas que vou
experimentando não dão qualquer resultado positivo. quando
falo no assunto, a minha filha só me responde: "tu não podes
perceber o que se passa comigo"; "não compreendes que se eu
não fizer isto, nem que seja só um bocadinho, não fico bem";
"sinto necessidade e, como vês, não perco peso"; "se não faço
isto, que agora é muito menos, tenho a certeza que vou ficar
com uma enorme barriga e o meu corpo, neste momento, está
exactamente como eu gosto, acho que já me olham na rua com
outros olhos" [...].
a ana paula encontra-se neste momento no campo de férias da
empresa onde trabalho. foi o primeiro ano que a inscrevi e
será o último em que ela pode estar presente devido à sua
idade. estas colónias e campos de férias destinam-se a
crianças que têm idades compreendidas entre os 6 e os 15 anos.
este ano, como seria o último, inscrevi-a. não havia nada a
perder e, depois de muitas indecisÕes e incertezas e mesmo
recuos da sua parte, lá foi ela, e agora parece-me feliz.
segundo afirma, já arranjou novas amizades, participa em todas
as actividades organizadas pelos monitores e já teve o
"desaforo" de me responder: "mãe, não achas que estás a falar
de mais? estás a tirar a oportunidade a outros pais!".

ix -- braga, agosto de 1997

a ana paula chegou ontem da colónia de férias, onde passou


umas férias como nunca teve. por de mais cansativas, mas muito
agradáveis ("fixes", diz ela). apareceu-me com um aspecto
físico fantástico, bonita, como há muito tempo eu não a via.
durante a sua permanência lá, telefonei-lhe algumas vezes,
escrevi também, a seu pedido. na única carta que recebi dela,
transmitiu-me alguma tranquilidade e confessava-se feliz
porque os dias estavam a correr tão bem que nem queria
acreditar. o tempo era sempre muito pouco para tantos afazeres
[...]. em certo ponto da sua carta, dizia (e parecia
satisfeita com o facto) que até à data em que estava a
escrever apenas tinha vomitado umas quatro a cinco vezes "e
isto porque tinha realmente exagerado". quando ontem a vi, deu
mesmo para acreditar. mas depressa esqueceu os bons hábitos e,
ao jantar, lá repetiu a dose habitual. hoje, em frente ao
espelho, já afirmava: "engordei muito"; "tenho uma barriga
enorme" e "as pernas já estão grossas" [...]. só espero que as
curtas férias que vamos fazer juntos também ajudem, por pouco
que seja. tornou-se-me impossível tê-la sempre ocupada de tal
modo que não dê para pensar o que não deve. lá se foi mais uma
esperança de que o campo de férias a tivesse modificado por
pouco que fosse. mais uma batalha perdida (mas valeu, enquanto
durou) e sinto vontade de a tratar com alguma intransigência,
como seja recusar os seus pedidos de compra disto e daquilo.
só que, já sendo difícil da minha parte a recusa, surgem
depois problemas de consciência: será esta uma boa actuação?
ou, pelo contrário, a hostilidade vai prejudicar ainda mais?
só interrogaçÕes no meu espírito. o "não" da nossa parte não
irá provocar nela alguma revolta e retaliação? tirando isto,
continua a ser aquela menina ternurenta, até mesmo humilde,
mas que, apesar do carinho com que a rodeamos, se sente
carente de outros afectos. não sei se já disse ao sr.
professor que ela passou agora para o 10.o ano, com notas
espectaculares: apenas 3 quatros e o resto tudo cincos.

x -- braga, setembro de 1997

muito obrigada por mais uma carta que teve a amabilidade de me


escrever [...]. faz-me pensar que a partir de agora ela
"acordou mesmo para a vida". os pais já não conseguem o melhor
para elas, por muito que tentem. só a sua classe etária a
atrai, o que é normal, nesta idade. mas aqui surge um "senão".
nós, os pais, talvez por não estarmos habituados ao ritmo que
ela imprimiu à sua vivência, no fundo nos parece exagerado. e
quando chamo a atenção para os seus "15 anos apenas", sempre
me responde: "então agora que me estou a divertir é que acham
que estou a exagerar? até aqui queixavam-se que não saía do
meu casulo, agora saio de mais!" [...]. qualquer bocado de
tempo livre é motivo para se encontrar com os amigos para "não
sofrer a tentação de, em casa, exagerar no que come e de
seguida, deitar fora" [...].
continuo a dar a ler à ana paula as cartas do sr. professor.
fica sempre apreensiva com o que lê, promete tentar ser mais
razoável no seu comportamento, mas depressa esquece
(convém-lhe). mas pediu-me para agradecer, em seu nome, todo o
interesse e carinho que manifesta por ela. manda um grande
beijinho. É mesmo fã do sr. professor e volta e meia fala que
gostaria de o conhecer pessoalmente. oxalá surja uma
oportunidade. ambas ficávamos felizes.

xi -- braga, outubro de 1997

acabo de receber a sua carta, que muito agradeço. continuo a


afirmar que só o sr. professor, mesmo a quilómetros de
distância, me orientou e indicou os melhores passos para não
cair redonda [...]. já não sou só eu a "agarrar-me" ao sr.
professor. o meu marido, que agora está bem por dentro da
questão, sugeriu e eu não desperdicei a ideia: assim, aqui vai
a pergunta: será que está dentro dos seus planos uma vinda a
braga? em caso afirmativo, poderíamos ter alguma chance de o
ver e de lhe falar, nem que fossem só cinco minutos antes da
entrada para o lugar onde vai trabalhar? estamos a pedir de
mais? eu sei que sim, mas a ideia agradou-me tanto que não
resisti à tentação. gostaria imenso que o sr. professor
olhasse para a ana paula e a conhecesse e a nós também.
no meu espírito paira imensas vezes a vontade enorme de ir a
lisboa só para o podermos conhecer e falar pessoalmente. ainda
não me atrevi, sequer, a pôr a questão, no entanto, se surgir
uma oportunidade, não a deixarei fugir.
xii -- braga, novembro de 1997

É sempre com uma enorme ansiedade que abro as suas cartas. sei
que vou sempre encontrar nelas algum conselho, ou mesmo uma
palavra amiga. o meu marido e a minha filha não ficam menos
ansiosos. esta que acabo de receber é bem prova disso. bem
haja por tudo quanto tem feito por nós, é só o que encontro
para exprimir toda a nossa gratidão.
finalmente, realizou-se a tão falada e desejada terapia
familiar! [...] o fundamental, quanto a mim, foi o que se
relacionou com a chamada liberdade da ana paula quanto às suas
saídas. depois de muito debatido o tema, chegou-se à conclusão
de que a minha permissão era sempre mais rápida do que a do
pai [...]. o pai queixa-se de que a filha só se dirige a ele
depois de previamente consultar a mãe, de quem, quase sempre,
recebe logo o apoio, se acha que deve apoiar, iniciando o
diálogo com um "já falei com a mãe que não se importa que eu
vá..." [...]. foi sugerido que se assentasse no número de
vezes que a ana paula poderia sair, porque num dos seus
pedidos para ir à discoteca, eu respondi que sim, mas devia
ter em conta que eu não ia consentir uma ida semanal.
primeiro, porque só tem 15 anos e há muito tempo para viver,
depois porque não vou aguentar todos os sábados ou
sextas-feiras deitar-me às 4 ou 5 horas da manhã, para a ir
buscar [...].

p. s. -- no próximo dia 13 de novembro estaremos na


conferência, nem que seja só para termos o prazer de o
cumprimentar, se nisso não vir inconveniente. muito obrigada
pela informação.

xiii -- braga, novembro de 1997

os meus melhores votos para que o seu regresso a lisboa tenha


sido feito na melhor forma. fez ontem precisamente 8 dias que
tive o prazer de o ver pessoalmente. confesso que criei
grandes expectativas à volta deste encontro, apesar de
mentalizada para a brevidade com que ele ia decorrer -- o meu
marido não se cansava de me recomendar: "vê se te controlas e
não comeces com conversas inoportunas ao momento; não podes
esquecer que o tempo voa e há horários a cumprir".
naturalmente, eu estava já sensibilizada para tudo, mas
naquele momento também tudo esqueci e só pensava que o
"milagre" podia acontecer. este não sucedeu, por meu mal, e
veio a grande frustração. felizmente, quando o sr. professor
estava na minha frente, eu fiquei como que hipnotizada e mal
abri a boca, doutro modo teria dado uma pior imagem de mim. já
passou, eu vi-o, todos nós o vimos, tivemos o prazer enorme de
o cumprimentar e devia ter sido o suficiente para me sentir
feliz. porém, como não passo de um ser humano, sou uma
insaciável, pretendo sempre mais do que está ao meu alcance.
sendo assim, mal posso esperar por nova oportunidade (irá
haver?). para completar, não pude assistir ao colóquio. quando
me informei, foi-me respondido ser necessária uma inscrição
prévia e antecipada. para quem tanto queria qualquer coisa,
tinha obrigação de não desconhecer estes pormenores. ninguém
me manda pensar que tudo me vem ter às mãos de bandeja. para
se alcançar algo que se deseja devem ser removidas todas as
montanhas. de futuro, e se a oportunidade surgir, esta não me
escapará.
o sr. professor deve estar admirado por eu não escrever
imediatamente a seguir ao encontro. no mínimo era o
que devia ter feito. o que aconteceu foi eu ter ficado sem
saber o que dizer, tal como neste momento. É que, depois do
que me foi dado ver naquele auditório, mais me critico pela
perturbação que tenho causado ao seu tão valioso tempo. vi-o
demasiado solicitado naqueles poucos minutos antes de entrar,
e fez-me imaginar, se calhar ainda por defeito, o quanto é
absorvido pelo trabalho e pelas pessoas. devia ser mais
contida, mas a vontade de escrever é sempre mais forte que não
me deixa parar. parece é que estou viciada como a ana paula,
só que noutro sentido. estou mesmo a pedir um abanão forte
para aprender! e esse abanão o sr. professor vai-mo dar
qualquer dia. já pedi desculpa vezes sem conta, prometi não
ser muito "chata", como diz a minha filha, e, acima de tudo,
sei que nada disto me absolve.
agora, à distancia, sinto que deveria ter usado qualquer tipo
de luta pelos direitos que assistiam a uns pais ignorantes de
todo naquela matéria, para serem devidamente acompanhados, e
por que não ensinados, a viver com a doença da filha. e quando
falo nestes direitos, refiro-me ao começo da doença e não
quando ela atingiu o seu auge e a atirou para uma casa de
saúde, onde eu assisti a todo o desenrolar de um tratamento
(?) que ainda hoje ponho em causa. nessa altura é que devíamos
ter sido consciencializados para as prováveis situaçÕes que
iríamos enfrentar. infelizmente não encontrámos a pessoa
certa, no momento certo. só quando me apercebi da existência
do sr. professor, como médico dedicado e tão defensor dos
ideais dos nossos jovens, aí sim, não hesitei em lhe escrever
pela 1.a vez a pedir socorro e, posso confessar agora, sem
esperança de obter resposta. bendita a hora em que tomei essa
decisão.

xiv -- braga, dezembro de 1997

[...] notava uma certa melhoria no comportamento alimentar da


ana paula, não vendo com tanta frequência aquela sua forma tão
característica de devorar em vez de comer pausadamente, mas
conheço bem quais os seus passos imediatamente a seguir às
refeiçÕes, que fingimos não ver, mas a verdade é que ela não
consegue superar aquele seu vício, como ela própria lhe chama.
continua a sentir-se demasiado gorda, mas falta-lhe a força de
vontade suficiente para seguir uma dieta equilibrada onde
possa perder algum peso (está com
49kg, mede 1.64m) sem se prejudicar.
[...] o curioso de tudo isto é que os problemas giram sempre à
volta do mesmo: saídas para o "desconhecido", como sejam um
cinema à noite ou discoteca. uma festa em casa dos amigos e
companheiros da escola já não traz tantas contrariedades. só
as horas, porque a tendência é para estes convívios acabarem
cada vez mais tarde. acontece ainda, nestas festas, surgirem
novos conhecimentos e, em consequência, motivo para mais
saídas, motivo para novas arrelias entre os pais. foi
engraçadíssimo a intervenção do médico nesta parte -- "então
quando não houver problemas da ana paula para resolver, que
vão os pais fazer? ficam no desemprego?". ficou para meditar.

xv -- braga, dezembro de 1997

recebi a sua carta, cheia de interesse, a que só hoje


respondo, por falta de oportunidade. esta cruzou-se com a
minha, que escrevi depois da terapia familiar, em fim de
novembro passado.
nela, o sr. professor dá-me conta de uma iniciativa fantástica
que aí em lisboa começou a empreender -- reuniÕes periódicas
com pais de anorécticas. será a melhor ajuda que poderão
receber. nos meus momentos mais difíceis, procuro conhecer
pessoas que tenham problemas comuns aos meus e, se mais não
consegui, pelo menos encontrei alguém com quem a ana paula se
identificou bastante e, desde logo, nós as mães, marcamos
encontro para elas. foi o início de uma amizade que ainda hoje
perdura [...].
dou comigo imensas vezes a pensar que, se não fosse esta fase
da vida que atravessei, teria perdido a oportunidade de
conhecer algumas pessoas que de uma forma ou doutra me
marcaram profundamente [...]. precisamos é de agarrar com toda
a força a mão que nos é estendida quando estamos no fundo do
abismo, cheios de raiva ou então meio adormecidos. na altura
própria, uma subida forçada à superfície ou um abanão faz-nos
repensar toda a nossa empatia. felizmente eu encontrei quem me
deu força bastante para alcançar uma vida mais plena de
esperança e estou a tentar vivê-la em toda a sua grandeza.

xvi -- braga, dezembro de 1997

está a aproximar-se o fim-de-semana e gostaria de não


o acabar sem voltar a escrever-lhe [...]. fui ao escritório e
gravei em disquete todos os ficheiros que tinha no meu
computador. só receio que algum se tenha danificado. as
cópias de que disponho remeto-as agora ao sr. professor
para que faça delas o que muito bem entender. sem falar nos
erros encontrados, reler este montinho de papéis deixou-me
envergonhada, primeiro pelo tempo que o fiz perder, depois
pelo tom que imprimi em algumas destas cartas, cheia de
desespero e raiva por tudo quanto me estava a acontecer e que
fazia de mim a pessoa mais infeliz da terra
[...]
convenceu o pai a deixá-la passar o fim-de-semana com a turma
do colégio, numa quinta de um dos colegas. só faz 16 anos no
próximo mês. será isto sintoma e princípio de afastamento da
família? eu nem quero crer. dou comigo a pensar se não estarei
mesmo a contribuir para uma liberdade demasiada, e da qual me
vou arrepender. acusada pelo pai eu já sou, de estar sempre do
seu lado, de ser sua aliada. está a ser muito difícil
encontrar o termo de equilíbrio. há uma relação de
cumplicidade muito grande entre nós, devo admitir, e não sei
se poderá ser prejudicial. acontece que as nossas
personalidades (minha e da ana paula -- ambas somos
aquarianas) são muito idênticas e julgo estar a transmitir à
ana paula um grande sentido de independência, com
responsabilidades assumidas, mas nunca de forma calculada,
tudo acontecendo do jeito mais natural. a questão é se estarei
certa quanto à minha forma de agir. fico sempre na dúvida se
não estou a empurrá-la para a "arena" cedo de mais.
o meu bem haja por tudo o que tem feito pela minha família. e
se precisar de alguma coisa em que eu possa ser útil, aqui no
norte, a minha disponibilidade é completa.
os melhores votos de muita saúde, e que o ano de 1998 seja o
melhor da sua vida, assim como de todos os seus.

xvii -- braga, janeiro 1998

este dia 27 de janeiro tem para mim um significado muito


especial e gostaria de o partilhar com alguém que o tornou
ainda mais alegre do que o habitual. a minha filha faz hoje 16
anos, está linda e eu estou feliz. há um ano atrás eu não via
futuro na minha frente e a esperança de que alguma coisa
mudasse era quase nula. o sr. professor nem pode imaginar
a alegria de hoje, comparando com o que vivi há um ano
atrás e que foi um verdadeiro pesadelo. agora tenho despertado
lentamente dele, embora saiba que preciso estar prevenida para
as crises que ainda poderão ocorrer. sempre que a oportunidade
surge, não deixo de lhe falar como está bonita e peço-lhe
nunca esqueça os conselhos do sr. professor [...].
pelo meu lado, tento fazer o meu melhor (?), quer
preparando-lhe umas refeiçÕes mais leves quer motivando-a a
novo visual, com roupas apropriadas ao seu aspecto físico, que
neste momento considero francamente bom, e elogiando, sempre
que há lugar para isso [...].
há momentos na vida em que tudo parece estar bem. de repente,
outros surgem que nos dão a sensação que o mundo vai ruir; o
chão foge debaixo dos pés e o tecto desaba nas nossas cabeças.
nestas alturas gostava de fazer como a avestruz, mas sei que
não posso nem devo e o que mais preciso é de toda a lucidez,
para ajudar a minha filha com todas as armas de que disponho.
os melhores cumprimentos, com votos de muita saúde, e o maior
sucesso para o novo livro que anseio encontrar nas livrarias.

epílogo

o aniversário da minha avó (1)

8 de junho de 2001. a minha avó faz 121 anos. acordou bem


cedo, como de costume, com a empregada de sempre a levar-lhe
um chá e uma torrada. está agora sentada na cama, recostada em
duas almofadas, a pentear o seu cabelo branco com uma escova
de cabo de prata. pensa na família e no seu dia de anos.
depois de arranjar-se, vai esperar a chegada das duas filhas
para almoçar.

(1) texto previamente publicado na revista avós e netos, a


pedido de laurinda alves.

está agora um pouco sonolenta, não sabe bem se adormeceu há


bocadinho e sonhou. estava sentada no jardim de sintra numa
cadeira de madeira, com uma almofada às florinhas presa por
atilhos. olhava em volta para a buganvília do torreão e
pensava no marido que morrera há muito, sem conseguir ver as
flores atingirem o cume. o neto mais novo, o daniel, estava a
seu lado a ler um romance, com um enorme gato preto a dormir
no colo. de repente, começou a ficar muito escuro e o nevoeiro
invadiu tudo, molhando as dálias e as zínias e enchendo-a de
frio. deixou de ver o neto e pareceu-lhe que o gato fugia ao
longe. levantou-se e começou a procurar. foi à sala de jantar,
pode ser que o dani estivesse a ler no lugar do costume,
procurou atrás da magnólia onde ele se escondia às vezes,
olhou para a casa dos vizinhos e pensou lá ir, mas teve medo
do cão que a todos perseguia e não se aventurou. começou a
ficar muito inquieta. como era possível ter perdido o neto? e
subitamente, muito devagarinho, pôs-se à escuta. alguém
respirava com dificuldade em cima do vaso das begónias.
aproximou-se e viu o dani muito pálido, com o nariz a abrir e
a fechar e a respiração ofegante. tentou controlar-se e encher
o peito de ar muito lentamente, mas o coração começou aos
saltos e cada vez respirava pior. deu a mão ao neto e ficaram
os dois, entre as flores, a respirar, a tentar respirar...
acordou muito angustiada e começou a pensar. talvez o sonho
que tivera se relacionasse com a pneumonia do neto daniel. o
rapaz tinha sete anos e procurava-a muito. dizia um amigo do
genro, psicanalista, que era devido à "relação precoce". para
ela, a "relação precoce" tinha sido tomar conta do neto com um
ano de idade, quando a filha, o genro e o outro neto tinham
ido para a américa, para que o genro aprendesse uma coisa que
ela sempre achou não existir e a que a filha chamava "public
health". ficar com o neto foi das coisas boas da sua vida
(teria sido para ele?). foi com ela que o neto disse as
primeiras palavras e começou a andar. chegava a casa, depois
de lanchar com as amigas, e o neto corria ao seu encontro,
para pôr o chapéu que trazia (sempre adorou chapéus,
compreendia tão bem que os rapazes e raparigas de agora
andassem com aqueles barretes esquisitos), e caminhavam pelo
corredor da casa de campo de ourique. como o dani ficava
engraçado com aqueles chapéus!
quando ficou de novo sozinha com ele para outro estudo do
genro, o neto andava na escola e já lia muito bem. lembra-se
de o miúdo chegar a casa, olhar para as portas da cozinha e
ler "sa-bão, esfre-gão, a-reia", com um grito de "avó, já sei
ler!". recorda agora a sua pneumonia. ficava horas ao pé dele,
a ler ou a bordar, a respeitar o silêncio e a espreitar a sua
respiração ofegante. o gato estava aos pés da cama quase
permanentemente. quando o médico deu o neto como curado, numa
tarde fria de setembro, dormiu bem pela primeira vez, ao fim
de trinta dias de preocupação permanente.
o dia de anos estava a passar depressa. pensava tanto que se
sentia pouco atenta. as recordaçÕes apareciam em vertigens
permanentes, quadros inacabados do seu passado que não queria
apagar, mas que lhe impediam a concentração. uma das filhas
estava muito surda e a outra falava sem parar. sempre na
mesma, duas mulheres que amava tanto, mas tão diferentes de
si!
num instante, estava no seu jantar de anos. viu chegar toda a
família mais ou menos à mesma hora. os três netos eram pessoas
conhecidas e de que ela se orgulhava. não podia deixar de
sentir que tinha contribuído para isso. ainda agora jantava
todas as terças-feiras com o seu neto daniel e a mulher, tinha
o cuidado de se vestir como se fosse para uma festa. com o
alfinete de peito de que ele gostava e um discreto bâton que
imaginava ele apreciaria nos seus lábios. o jorge e o filipe
apareciam menos, mas lia coisas sobre eles e telefonava muito.
quando, em 1971, nasceu o seu primeiro bisneto joão, sentiu
que renascia. afinal, o seu neto mais novo foi quem se
despachou primeira adorava agora reunir os seis bisnetos,
quatro rapazes e duas raparigas, naquilo a que eles chamavam
os almoços da avó bi (ou avó sáli, como lhe chamava o marido).
o nascimento da primeira trinetra, em 1997, foi maravilhoso.
tanta gente que não conhecia nem via muito bem, a abraçá-la e
a considerá-la linda! tinha sido
bonita, é verdade, mas com 117 anos já só se pode ser bela por
dentro.
estavam todos na sala do jantar. tinha a certeza de que tinha
conseguido passar a ideia de que os laços familiares intensos
são o mais importante da vida. as avós são as historiadoras da
família, as pessoas que dão continuidade dentro de cada um de
nós e que nos fazem sentir pertencer. naquele momento, com
todos à sua volta e já sem grandes forças, sentia uma energia
impressionante. o seu olhar procurava abarcar todos, sobretudo
os bisnetos e os trinetos, que eram quem mais precisava de si.
com os pais e avós sempre a trabalhar, não podia parar nunca.
haveria de continuar a bordar as suas toalhas com os netos a
escolher as cores, conseguiria continuar a ler os seus livros
porque o joão fazia no escritório umas fotocópias aumentadas,
e já sabia carregar numas teclas dos computadores portáteis
dos bisnetos para ver aqueles jogos, afinal não muito
diferentes do dominó ou do mah-jong do seu tempo.
quando apareceu o bolo enorme, com 121 velas mais ou menos
enterradas no creme, estava feliz. afinal o mundo não tinha
acabado no ano 2000 e, embora difícil, estava mais
interessante que nunca.
chamou todos os bisnetos e trinetos para apagar as velas, o
que foi motivo para uma daquelas explosÕes de alegria
barulhenta que sempre tinha estimulado na família.
passou tudo num instante. +s onze da noite ligou o vídeo
oferecido pelos bisnetos e começou a trautear uma ária de
mozart, que dantes costumava ouvir na rádio. tinha sido um dia
bem passado. valia a pena o facto de nunca se ter afastado,
nem demitido de dizer o que pensava vivia sozinha, mas com
todos dentro de si.
p. s.: querida avó sarah, quando leres este texto -- onde quer
que estejas! --, vais ficar preocupada comigo. sei que
civilmente morreste em 1976, com 96 anos, logo a seguir ao
nosso jantar de terças-feiras. que me importa isso? as avós
verdadeiras são imortais.

aseus, obrigado e... até breve

o livro que acabou de ler pretende resumir a investigação e o


trabalho clínico, por mim efectuado, em três sectores que me
têm mobilizado durante os últimos vinte anos: a família e a
adolescência, a escola, e uma doença que sempre me fascinou, a
anorexia nervosa.
procuro ser um professor universitário que olha em volta e
eventualmente possibilita alternativas aos constrangimentos
vários que todos sofremos. penso que o título do livro é
apropriado; o leitor decidirá.
agradeço a ana paula gomes o cuidado havido com o texto
inicial, à dulce bouça (pp. 85-100 e pp. 146-155) e ao pedro
strecht (pp. 47-62) a colaboração escrita, à eulália, à nazaré
e ao antónio neves a amizade e o estímulo permanentes, e ao
antónio lobo antunes, sempre.
até breve.

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