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Leonildo Silveira Campos

TEATRO, TEMPLO E MERCADO:


ORGANIZAÇÃO E MARKETING DE
UM EMPREENDIMENTO
NEOPENTECOSTAL

co-edição

VOZES SIMPÓSIO UMESP

PETRÓPOLIS-SÃO PAULO

1997

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AGRADECIMENTOS
Depois de escrever um livro, esta tarefa derradeira é também espinhosa e desafiante. Principalmente
por se tratar de um texto nascido de uma série de pesquisas bibliográficas, contatos pessoais, e
conversas com inúmeras pessoas, ao longo de três décadas. Somos devedores a um grande número de
conhecidos e desconhecidos, alguns são amigos e colegas, que ofereceram idéias, palpites e
indicações, observações - tudo isto fundido lentamente, no passar dos anos. Por isso, não podemos
separar com tranqüilidade cartesiana os limites do pessoal e do coletivo, em uma obra de pesquisa
como esta. Conseqüentemente, cada uma dessas pessoas encontrará neste livro, um fragmento de sua
contribuição, embora nem sempre nomeada e incorporada como elas gostariam que acontecesse.
Enfim, declinar os seus nomes seria impossível, mas também dizer um obrigado não diz tudo, e nem
quita as dívidas contraídas com tantas pessoas amigas.

Mesmo assim tenho que nominar alguns. Assim, agradeço em especial ao Prof. Dr. ANTONIO
GOUVÊA MENDONÇA, mestre e amigo, que nos anos 70, ainda durante a graduação, a nós seus
discípulos nos transmitiu interesse e amor pela sociologia da religião e, vinte anos depois, a mim
pessoalmente, me acompanhou na orientação deste trabalho, entre longos e gratificantes diálogos.
Registro uma palavra de agradecimento aos membros da banca de doutorado, professores e doutores:
Antonio Gouvêa Mendonça (UMESP), Gino Giacomini Filho (ECA-UMESP), Yara Nogueira
Monteiro (UMESP), Roberto Venosa (FGV-SP) e Renato da Silva Queiroz (USP), que em 7.11.96, na
Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, analisaram exaustivamente este texto, sugerindo
alterações e enriquecimento em várias partes do mesmo. Infelizmente, nem todas as sugestões
puderam ser incorporadas aqui, e acabamos por resistir à tentação e necessidade de atualizá-lo,
incorporando novos eventos, pesquisas e bibliografias, surgidas após aquela data, pois a mutação no
campo religioso e intelectual é muito rápida, o que pode provocar um envelhecimento prematuro do
texto.

Registro e agradeço o apoio institucional da UMESP e de seu Instituto Ecumênico de Pós-Graduação


em Ciências da Religião, bem como a ajuda financeira, já no final da pesquisa, da MISSION E
DIACONATO MUNDIAL DE LAS IGLESIAS REFORMADAS EN HOLANDA. Não posso deixar
também de agradecer aos professores Josué Xavier e Mylnen Negrão Fazzio, pelas sugestões de uma
melhor apresentação estilística e gramatical do texto final; ao professor Gilson Marcon de Souza, pelo
auxílio no manuseio de textos em Inglês; ao professor Glauber Piva Gonçalves, pela ajuda na pesquisa
de campo; ao reverendo Milton Nuñes, pela hospitalidade durante alguns dias de pesquisa em Nova
York.

O agradecimento especial vai para RUTH LENIRA, minha esposa e colaboradora, durante todo os
anos que durou esta jornada de pesquisas, ao lado de nossas filhas Mônica e Érica. Foi graças ao
apoio dela, integral e cotidiano, que este livro tornou-se realidade.

Lamento contudo, que apesar de tanta ajuda, este artefato intelectual ainda tenha ficado distante do
planejado e do que dele esperávamos. Talvez tenhamos esperado muito, além do capacidade humana e
individual de que um só autor possui. Por isso, precisamos caminhar para situações em que as
pesquisas sejam coletivas, pois somente assim os acertos e desacertos serão socializados com justiça e
eqüidade.

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INDICE DE QUADROS

Quadro 01 - A produção intelectual na América Latina sobre pentecostalismo ...............

Quadro 02 - As “correntes de fé” na Igreja Universal ....................................................

Quadro 03 - As “campanhas de fé” na Igreja Universal..................................................

Quadro 04 - Matérias publicadas na imprensa sobre a IURD (1988-89) ........................

Quadro 05 - As emissoras da IURD no ranking das rádios AM (São Paulo) ..................

Quadro 06 - Audiência das rádios São Paulo, Record e Morada do Sol..........................

Quadro 07 - Programação religiosa semanal na TV (em horas) ......................................

Quadro 08 - Audiência de programas evangélicos na TV (em faixa etária).....................


Quadro 09 - Audiência de programas católicos na TV (em classes sociais).....................

Quadro 10 - Audiência de programas religiosos na TV (em classes sociais) .....................

Quadro 11 - Audiência e classificação de programas religiosos segundo a temática ..........

Quadro 12 - A “genealogia” da “Teologia da Prosperidade”.............................................

Quadro 13 - O crescimento da IURD segundo a imprensa paulista ...................................

Quadro 14 - Expansão e distribuição de templos da IURD no exterior (1985-1995) .........

ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1 - Folheto convidando para a participação nas “correntes de fé” ..........................

Figura 2 - Folheto convidando para a “corrente da vida regalada” (prosperidade) ............

Figura 3 - A publicidade na “Folha Universal”..................................................................

Figura 4 - A IURD é uma “FEST-Food” .........................................................................

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ABREVIATURAS

ABC - Associação Beneficente Evangélica


ADHONEP - Associação dos Homens de Negócios do Evangelho Pleno
AEVB - Associação Evangélica Brasileira
CAVE - Centro Audio Visual Evangélico
CEB - Confederação Evangélica do Brasil
CCB - Congregação Cristã no Brasil
CNPB - Conselho Nacional dos Pastores do Brasil
CONAMA - Convenção Nacional Madureira das Igrejas da Assembléia de
Deus
IAD - Igreja Assembléia de Deus
IBOPE - Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística
ICAR - Igreja Católica Apostólica Romana
IEQ - Igreja do Evangelho Quadrangular
IIGD - Igreja Internacional da Graça de Deus
IPBC - Igreja Evangélica Pentecostal “O Brasil para Cristo”
IPDA - Igreja Pentecostal “Deus é Amor”
IURD - Igreja Universal do Reino de Deus
IURDIANO - Membro, seguidor ou simpatizante da Igreja Universal do Reino
de Deus
RCC - Renovação Carismática Católica
VINDE - Visão Nacional de Evangelização

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PREFÁCIO

A questão da conexão entre religião e cultura não se restringiu à época das missões clássicas,
cuja história faz parte da mesma história da expansão do mundo ocidental europeu, mas se
repete neste fim de século, embora com outras configurações mais próximas talvez, do deus
nietzscheano “morto na cultura”. Surgem hoje, sob diversas formas, as “histórias de Deus”
como, por exemplo, a de Karen Amstrong (Uma história de Deus, 1995), em que as faces de
Deus se mostram dentro da perspectiva das três mais importantes religiões do mundo no
espaço e no tempo. De maneira mais ampla, o mesmo se vê em Norman Cohn (Cosmos, caos
e o mundo que virá, 1996). Voltam à tona neste tempo as representações que Deus, como
centro de sistemas de crença, tem assumido ao longo da História.

No caso típico do cristianismo ocidental, católico ou protestante, essas representações de


Deus, ora muito próximas, ora distantes umas das outras, construíram um universo de sentido
muito sólido, mas que começa a ser outra vez abalado por novas configurações. Tanto de um
lado como de outro, o Deus cristão de nossa cultura tem oscilado entre Deus-milagre e Deus-
razão, correndo as variações na esteira das circunstâncias sociais e culturais. Assim, temos
tido o Deus do altar e o Deus da consciência, o Deus do indivíduo e o Deus da cristandade, o
Deus majestático e irado e o Deus benevolente, Deus morto e Deus vivo, Deus próximo e
Deus distante. Como se configura Deus na efervescência religiosa de nosso tempo?

Neste século XX que agoniza, a ciência e a técnica, principalmente esta, alcançaram limites
difíceis ainda de medir na extensão e conseqüências. Se nos séculos anteriores, a ciência e a
razão levaram muitos a diagnosticar o fim da necessidade de Deus e da religião, com sobejos
motivos, poderíamos pensar o mesmo neste fim de século. Embora não nos esqueçamos do
impacto, ainda que efêmero da “Teologia da Morte de Deus”, fruto do desespero provocado
por duas guerras mundiais que ocuparam, no desenrolar e nos efeitos, os seus primeiros
cinqüenta anos, estamos ao contrário sendo espectadores de surpreendente revitalização da
religião, principalmente nos últimos vinte anos. Não se trata da revitalização das velhas
religiões, mas da emergência de novas formas de prática religiosa, com novas configurações
de Deus também. Mesmo que se revelem nelas lastros de religiões tradicionais, de fato são
novas religiões. A força inaudita desses novos movimentos religiosos faz lembrar os grandes
despertamentos dentro do protestantismo, ocorridos nos séculos XVIII e XIX, cuja
centralidade estava na conversão dos indivíduos e a conseqüente mudança de conduta. Mas, o
atual despertamento tem, naturalmente, outras características.

Entender as motivações e as marcas dessa efervescência religiosa exige muita atenção por
parte dos estudiosos da religião. Como era de se esperar, quase que a totalidade dos estudos
feitos não se esquivam de comparar o sagrado, ou sagrados, desses novos movimentos com o
sagrado do cristianismo tradicional tomado como paradigma. Trabalhamos assim com velhos
hábitos valorativos, até mesmo de verdade e de erro, sem levar em conta as mudanças
históricas e culturais, que desenham no espaço e no imaginário sociais novos perfis do
sagrado. Como em fins do século passado não reconhecemos, principalmente enquanto

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instituições religiosas, que outros sagrados surgem no lugar do antigo. Entretanto, ao menos
para os estudiosos da cultura, isto não parece significar a morte das velhas igrejas, pois que
elas têm resistido às muitas crises por que passaram.

O protestantismo, institucionalmente mais frágil por causa da sua falta de centralidade de


poder e, por isso mesmo, mais livre para ajustar suas formas de pensamento aos desafios e
crises da história, alcançou seu apogeu nos anos cinqüenta deste século. Mas, o protestantismo
pela sua natureza, sempre esteve entre Cila e Caríbdes: ao tentar reforçar suas instituições
mata seu pensamento e ao liberar este enfraquece-se como instituição. Neste século,
especialmente em sua segunda metade, a reflexão teológica mais criativa do protestantismo
foi sufocada ou correu à margem das igrejas mais fortes por causa do impacto do
fundamentalismo. A estreiteza dogmática do fundamentalismo e sua crítica ferrenha ao
“modernismo” talvez seja uma das molas propulsoras dos movimentos religiosos que,
conforme muitos afirmam, navegam nas águas da pós-modernidade. Se a pós modernidade é
entendida como libertação de dogmas e tradições, essas novas religiões nada têm de
fundamentalistas como diversos autores têm afirmado; ao contrário, poderiam ser entendidas
como liberais e modernistas em muitos sentidos. Seriam, com muitas razões, uma reação ao
fundamentalismo.

O protestantismo histórico, ao mesmo tempo que fornece os parâmetros eclesiásticos para o


neopentecostalismo, reage contra ele, não com a flexibilidade de pensamento, mas com a
rigidez da doutrina como último bastião das instituições. O protestantismo histórico está
perdendo a batalha para as novas formas de cristianismo por duas vias: por evasão direta para
as novas igrejas ou por perda simbólica no interior dos seus próprios templos.

O que dizer da Igreja Católica nesta nova situação do campo religioso brasileiro? Apesar do
alarme manifestado por suas lideranças, por causa da perda de fiéis para as novas formas
emergentes de cristianismo, ela tem ainda instrumentos de resistência mais fortes. Basta
lembrar que apesar de sua forte centralização de poder, ela não apresenta a rigidez do
protestantismo, mas possui no seu interior, espaço de manobra e gestão de crises. Poder e
diplomacia se equilibram. Além disso, a Igreja Católica tem inserção nas bases populares, e
faz parte da cultura brasileira. No confronto no interior do campo, o protestantismo é o que
mais perde.

Se o protestantismo fornece às novas formas de cristianismo seus modelos eclesiásticos, a


Igreja Católica entra com sua parte no imaginário delas, embora este imaginário absorva
também elementos de outros segmentos da cultura brasileira. Nenhuma análise do campo
religioso brasileiro pode deixar de lado estes fatores.

Esta breve reflexão sobre o campo religioso no Brasil, inspirada na leitura do livro de
Leonildo Silveira Campos, que temos a honra de apresentar, pretende apontar para três
vertentes importantes, que aparecem no estudo por ele empreendido: o novo perfil do sagrado
que nele emerge, os espaços dessa emergência e as estratégias de propagação.

O Autor, ao mesmo tempo em que toma como paradigma a Igreja Universal do Reino de
Deus, cuja extraordinária expansão no Brasil e no exterior surpreende os estudiosos que se

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esforçam por entender as causas desse sucesso, apresenta propostas significativas para o
enriquecimento dos estudos no campo religioso e das Ciências da Religião no Brasil. Este
livro, resultante de pesquisa de campo e de intensa observação participante, assim como de
aguda elaboração teórica, ao nosso ver seu maior mérito, vem ajuntar-se aos principais
trabalhos já publicados sobre o palpitante tema.

Não seria fora de propósito antecipar os eixos básicos, que o Autor projeta na construção do
seu trabalho. Primeiro, a constatação de que o velho sagrado dos pré-milenarismos
protestantes, cujo reino era projetado para além da história, o mesmo acontecendo com o
paraíso extraterreno comum ao protestantismo e o catolicismo, são superados por um Reino
de Deus “hic et nunc”, conquistado pacificamente pela fé num Deus, que não distribui
necessariamente justiça mas benesses, principalmente materiais e individuais. Segundo, que a
ação desse sagrado acontece em três diferentes divisões espaço-temporais designadas
metaforicamente como “teatro”, “templo” e “mercado”, mostrando como a religião, ao mesmo
tempo em que alcança todas as esferas da vida, supre as necessidades pedagógicas e materiais
dos fiéis. Terceiro, substituindo o conceito corrente de “mercantilização do sagrado” por
“marketing do sagrado”, o Autor propõe a inversão do vetor sacerdote-consumidor por
consumidor-sacerdote. Neste caso, o sacerdote ou especialista não produz e distribui
necessariamente os bens simbólicos, mas procura captar as necessidades e desejos do
consumidor a fim de retorná-los em formas simbólicas.

O livro de Leomildo Silveira Campos, professor no Instituto Metodista de Ensino Superior,


em São Bernardo do Campo - SP, não se assenta exclusivamente em dados empíricos, cujas
propostas teóricas daí resultantes correm o risco de perder valor às vezes, muito depressa, mas
busca na tradição da explicação sociológica seus fundamentos mais permanentes, embora as
vertentes explicatórias tragam consigo a originalidade esperada em obras dessa natureza.
Tanto num caso como num outro, significa importante contribuição.

São Bernardo do Campo - SP, junho de 1997.

ANTONIO GOUVÊA MENDONÇA

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INTRODUÇÃO

“Atribuo à ação do Espírito Santo o crescimento da Igreja. Não se trata de marketing


bem feito, boa administração, nem qualquer outra razão humana. É ação do Espírito
Santo mesmo!” (bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus) 1

Faz parte da retórica das organizações e grupos religiosos, principalmente dos que se
legitimam por meio de lideranças carismáticas, explicar as suas origens a partir do
sobrenatural, apresentando-se como expressão legítima da “vontade de Deus”. Por isso,
esperar que a Igreja Universal do Reino de Deus atribua à “boa administração” e ao
“marketing” a sua origem, expansão e sucesso seria no mínimo ilógico e incoerente. Por outro
lado, a análise de um empreendimento religioso, tão somente como um epifenômeno de
situações sociais específicas, também corre o risco de reducionismo. Nessa segunda dimensão
se encontram quase todos os discursos oriundos da academia e que se expressam em uma
paráfrase como esta: “Atribuí-se à ação do marketing bem feito, à boa administração e à
existência de condições sócio-econômico-culturais favoráveis o surgimento e expansão da
Igreja Universal do Reino de Deus. É ação humana mesmo!”
O texto a seguir pretende buscar um meio termo que pensamos situar no ato de descrever e
interpretar, dentro dos limites de um conjunto de conhecimentos intitulado “ciências da
religião”, o sucesso de um empreendimento neopentecostal que, em menos de vinte anos,
conquistou no Brasil cerca de quatro milhões de seguidores, segundo estimativas. Optamos,
por várias razões que serão explicadas mais adiante, pelas expressões “empreendimento” e
“neopentecostal”, embora a palavra “igreja” também seja usada para designar uma
manifestação organizacional de um conjunto de crenças, doutrinas e práticas, que ligam
pessoas através de rituais coletivos, aos quais se atribuem uma eficácia de origem sagrada.
Para abranger, de uma forma mais ampla um conjunto de observações, escolhemos como
título de nossa pesquisa “Templo, teatro e mercado: organização e marketing de um
empreendimento neopentecostal ”. Sob esse guarda-chuva procuramos discutir a origem e o
desenvolvimento de uma das formas de cristalização de um certo tipo de “mentalidade
neopentecostal”, que, devidamente aculturada no Brasil, resultou em um empreendimento
religioso-empresarial paradigmático. Essa organização “tipo igreja” se vangloria de obter
excelentes resultados em suas atividades, desempenhando uma performance, ao nosso ver,
alavancada por estratégias de marketing e de comunicação de massa de notável eficiência,
aproveitando-se para isso dos novos ventos, que vêm da velocidade de um mundo submetido
a um crescente processo de globalização econômica e cultural.

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Edir Macedo, frase formulada por ocasião da comemoração do 19° aniversário da Igreja Universal do Reino de
Deus, em julho de 1996, cf. Folha Universal, 7.7.96.

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Acreditamos que uma abordagem multidisciplinar possa preservar a perspectiva


caleidoscópica do fenômeno pentecostal com maior eficiência. Mas, reconhecemos que a
concretização dessa meta exigiria um esforço muito mais amplo do que uma pesquisa
individual, pois teria de reunir todas as contribuições oriundas da sociologia da religião e das
organizações, da antropologia, psicologia, teologia, filosofia e outras áreas do conhecimento
humano. Por tal motivo, algumas das colocações a seguir devem ser aceitas muito mais como
estímulos para averiguações mais aprofundadas e, sobretudo, para outras pesquisas de campo
do que conclusões prontas e acabadas.
Essa percepção da complexidade de nosso objeto e a impossibilidade de esgotá-la em uma só
disciplina de estudo só confirma o que escreveu André Droogers (in Boudewijnse, 1991) ao se
referir ao fato de que, ao analisarmos o neopentecostalismo, estamos lidando com um
fenômeno complexo, uma religião paradoxal e ambivalente. Nesse sentido perguntas como
estas ganham relevância: o fenômeno pentecostal é tão somente “religioso”, “paradoxal” e
“ambivalente”? Em que sentido a Igreja Universal do Reino de Deus (a seguir Igreja Universal
ou IURD) é um fenômeno específico e peculiar dentro do campo protestante e pentecostal?
Até que ponto ela se distancia daquelas igrejas e seitas pentecostais, consideradas “clássicas”
ou “históricas”? O título “neopentecostal” é adequado para descrever esse empreendimento,
surgido no Rio de Janeiro há menos de duas décadas?
O objeto deste estudo, o neopentecostalismo iurdiano2, possui uma história muito recente, se
comparada com a de outras entidades religiosas, pois a Igreja Universal foi fundada no Rio de
Janeiro em julho de 1977 e que se tornou, até este momento (1996), um empreendimento
marcado por um crescimento expresso em altas taxas de membresia e de arrecadação
financeira. Todavia, essas taxas são de difícil quantificação, inclusive por causa de sua recusa
em tornar transparente os relatórios estatísticos, o que denota a existência de “segredos”, que
cercam as estratégias montadas por sua cúpula. Talvez a falta de rol de membros, o contínuo
turn off de freqüência em seus templos, também contribuam para as dificuldades em se
calcular com exatidão o número de fiéis e de pessoas em trânsito nos seus rituais.
Qual é o tamanho do universo pesquisado? Quantos são os iurdianos? No período de nossa
pesquisa, (1993-1995) as estatísticas mais moderadas apontavam para um número próximo
dos quatro milhões de seguidores e, as mais ufanistas faziam referência a oito milhões, que se
reuniam em mais de dois mil e cem templos, nos quatro ou cinco serviços religiosos diários,
dirigidos por cerca de sete mil pastores e mais de vinte mil obreiros. Mas, sejam quantos
forem os seus seguidores e simpatizantes, a IURD adquiriu uma enorme visibilidade social, o
que fez dela um fenômeno social impossível de ser ignorado, especialmente pelo impacto de
sua ação no interior do campo religioso e na cultura brasileira, inclusive com repercussões em
dezenas de outros países, onde implantou seus templos.
O crescente número de estudos acadêmicos dedicados as organizações religiosas de corte
pentecostal é indício de que, não somente a Igreja Universal, mas todo o universo pentecostal

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Usamos o termo iurdiano para designar, não somente os que freqüentam assiduamente a Igreja Universal do
Reino de Deus e nela ingressam através do batismo por imersão, mas também os que mantêm identificações
parciais com seu sistema de crenças e práticas, que transitam por seus templos, comungam nas suas idéias e
ajudam, com a presença e apoio financeiro, a manutenção desse empreendimento. Quanto à história da IURD,
por falta de um maior espaço, remetemos o leitor a textos de Paul Freston (1993) e Ricardo Mariano (1995) e a
Alberto Antoniazzi et alii (1994).

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está deixando de ser um fenômeno exótico e periférico, para se tornar um objeto “respeitável”
e um tema preferido de dissertações e teses na área de estudos da religião, quer sejam na
perspectiva da sociologia, antropologia, história eclesiástica, comunicação social e mesmo da
psicologia social. De qualquer forma, a história da performance e das mutações do campo
religioso brasileiro nos anos 90 não poderá ser escrita sem se levar em consideração a origem,
trajetória, boom e até possível decadência da Igreja Universal. Em outras palavras, gostem ou
não os seus detratores, a IURD já faz parte da história do campo religioso brasileiro.
A gênese e expansão dessa originalmente pequena Igreja pentecostal, que inicialmente se
reunia num salão comercial, que antes sediara uma empresa funerária no Rio de Janeiro e,
mais adiante, transformada numa “grande igreja pentecostal”, trouxeram para o palco do
campo religioso brasileiro um novo ator social, cujas características pretendemos reunir num
tipo ideal, aqui batizado de iurdiano, mas que por sua vez, faz parte de um universo mais
amplo - o neopentecostalismo - uma remodelação do pentecostalismo norte-americano,
surgido em meios protestantes no início deste Século.
Esta opção metodológica nos propõe algumas perguntas fundamentais a que este texto
pretende responder: Que motivos possibilitaram a transformação de um pequeno grupo
neopentecostal em uma grande organização religiosa, com mais de dois mil templos no Brasil
e alguns milhões de seguidores? Qual é o seu perfil organizacional e que tipo de pessoas são
os seus seguidores? Que forças sociais têm impulsionado esse empreendimento? Que
transformações ocorreram internamente, em sua administração, liderança e relações de poder,
no decorrer do processo de institucionalização? Que papel o marketing e os sistemas de
comunicação têm desempenhado nessa história de crescente aglutinação de tantas pessoas e
interesses ao redor de um mesmo ponto, num momento histórico tão peculiar como o atual?
Que mudanças, no contexto sócio-cultural e no campo religioso, permitiram tal sucesso?
Como reagem os demais concorrentes e parceiros do campo religioso? Finalmente, que
critérios são empregados para caracterizá-la como uma organização religiosa de sucesso?
Queremos analisar, além do crescimento, as tensões entre continuidade e mudança, bem como
os nexos existentes entre os sistemas de comunicação e de marketing empregados pela Igreja
Universal em seu processo de expansão.
Nos últimos quinze anos a IURD ultrapassou em crescimento todos os pequenos
empreendimentos pentecostais iniciados no mesmo espaço e tempo, tais como Casa da
Bênção, Cristo Vive, Cruzada Profética Mundial Sinais e Prodígios, Igrejas em Obra de
Restauração, Igreja Evangélica Maranata, Igreja Evangélica da Renovação, Salão da Fé
(Cruzada do Caminho Eterno), Igreja Internacional da Graça de Deus e até mesmo a Igreja de
Nova Vida, de onde saíram Edir Macedo, Romildo Ribeiro Soares, Roberto Augusto Lopes,
fundadores da Igreja Universal do Reino de Deus. Essa expansão fez da Igreja Universal, num
curto espaço de tempo, uma das grandes denominações pentecostais brasileiras. Nesse rápido
processo de crescimento, deixaram-se também para trás as denominações pertencentes ao
protestantismo histórico, assim como aquelas expressões religiosas classificadas como
“pseudo protestantes”, tais como as testemunhas de Jeová e os mórmons. É bom relembrar
que alguns desses empreendimentos e movimentos religiosos, quando do surgimento da
IURD, já atuavam no País desde a segunda metade do Século XIX e atualmente conseguem,
quando muito e a duras penas, manter somente um crescimento vegetativo.

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O tema da mudança e da metamorfose do campo religioso brasileiro tem sido objeto de vários
estudos e pesquisas, recentemente levadas a cabo entre nós. Por exemplo, Paul Freston (1993)
analisou as transformações ocorridas na prática política dos protestantes brasileiros; Ricardo
Mariano (1995) enfatizou as mudanças, que o próprio pentecostalismo tem experimentado;
André Corten (1995) focalizou o crescimento do pentecostalismo e do movimento carismático
em relação ao esvaziamento da “teologia da libertação”; Cecilia Mariz e Maria das Dores
Machado (1994a e 1994b) têm relacionado o pentecostalismo com a questão da pobreza,
feminismo e exclusão social e, um grupo de pesquisadores brasileiros (Alberto Antoniazzi et
alii, 1994) produziu uma instigadora coletânea de artigos, que procuram interpretar
sociologicamente esse fenômeno. Nós mesmos participamos da publicação em português
(Benjamin Gutierrez e Leonildo S. Campos, 1996), espanhol e inglês, de uma obra coletiva,
que reúne textos de 15 pesquisadores latino-americanos, na qual se analisaram as reações do
protestantismo histórico continental diante do fenômeno pentecostal, focalizando-se no caso
do Brasil o crescimento da IURD.
Há um consenso, entre esses e todos os outros pesquisadores que trabalham com esse tema, de
que o campo religioso no Brasil e no mundo deixou para trás, de uma forma definitiva, os
períodos relativamente estáveis dos monopólios e de coexistência pacífica entre os grupos e
instituições, predominando agora, nesse cenário, um clima de turbulência, pluralismo e
realinhamento organizacional. A constatação desse fato nos leva ao enfrentamento de questões
assim formuladas: Que mudanças estão ocorrendo? De onde e para onde se deslocam os
pentecostais? A partir de que lugar epistemológico essas mutações têm sido percebidas? O
que muda e o que permanece daquilo que sempre se considerou serem as marcas típicas do
pentecostalismo?
A análise de Paul Freston, embora tenha enfocado especialmente a prática e as metamorfoses
do comportamento político dos “evangélicos” brasileiros, conseqüentemente dos grupos
pentecostais, discute o fenômeno religioso a partir da teoria das “três ondas” pentecostais,
desenvolvendo categorias de periodização inspiradas em David Martin (1990) e Peter Wagner
(in Burgess,1995:810 s), teólogo do Fuller Theological Seminary, que se expressam numa
metáfora oriunda da física - “as ondas”- para periodizar esse fenômeno religioso.3
A periodização e classificação da expansão pentecostal no Continente na metáfora das “três
ondas” colocam, em primeiro lugar, o “pentecostalismo clássico”, fruto de uma “primeira

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Para uma melhor visão da periodização e conhecimento da expansão protestante em três “ondas”:
“protestantismo”, “metodismo” e “pentecostalismo” cf. David Martin (1990), os verbetes “Church growth” e
“Third wave”, assinados pelo próprio Peter Wagner, em Stanley M. Burgess (1995). Peter Wagner cunhou o
termo “terceira onda” para designar, não especificamente o que temos chamado de neopentecostalismo, mas
sobretudo, para descrever os grupos evangelicais não-carismáticos, que acreditam nos sinais e maravilhas do
Espírito Santo, entre eles a cura pela fé, falar em línguas, exorcismo etc., para o anúncio do Evangelho.
Segundo Peter Wagner, essa “terceira onda” se tornou forte nos anos 80, embora na década anterior já
houvessem crentes aos quais ele chamou de “cripto-pentecostais”. Paul Freston emprega o termo “onda” para
classificar às várias denominações pentecostais que surgiram no Brasil. Assim, ele inclui na “primeira onda”,
os movimentos pioneiros que deram origem à Assembléia de Deus e Congregação Cristã no Brasil; na
“segunda onda”, o pentecostalismo das Igrejas “O Brasil para Cristo”, Evangelho Quadrangular e “Deus é
Amor”, todas centradas na cura divina; na “terceira onda”, entre outras, a Igreja Universal do Reino de Deus,
Igreja Internacional da Graça de Deus, Comunidade Sara Nossa Terra, Igreja Renascer em Cristo e outras
menores, cf. Paul Freston (1993: 64, 82 e 95). Harvey Cox (1995:281-285 e 312) também discute a questão do
surgimento de um pentecostalismo de “terceira onda”.

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onda” de expansão, o qual foi lentamente fluindo em direção ao “neopentecostalismo” ou ao


“pentecostalismo autônomo”,4 considerado por Freston como pentecostalismo de “terceira
onda”, que resultou, entre nós, na fundação da Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e da
Igreja Internacional da Graça de Deus (1980). Entre ambos os extremos desse gradiente,
Freston propôs um estágio intermediário, no qual se situariam os “movimentos de cura
divina” e outros não menos dinâmicos, integrantes de um pentecostalismo de “segunda onda”,
cuja origem e expansão se deram entre os anos 50 e 70, enquanto o País experimentava
intensas transformações políticas, o aprofundamento do processo de urbanização,
industrialização e a deterioração das condições de vida do operariado e da classe média urbana
brasileira. O problema desse conjunto de imagens está justamente na mistura de tipos que
resulta em características que se cruzam no interior de cada um dos conjuntos classificados.
Por exemplo, as igrejas Assembléia de Deus, “O Brasil para Cristo”, Evangelho
Quadrangular” e “Deus é Amor” já trouxeram consigo várias características, que
simplesmente foram desenvolvidas pela IURD.
Já Ricardo Mariano (1995:15,190 s) procura apontar as transformações teológicas,
axiológicas, estéticas e sociais pelas quais o pentecostalismo está passando, principalmente
em sua vertente mais dinâmica, o “neopentecostalismo”. Para ele, são várias as características
peculiares desse novo estilo religioso, entre outras, o surgimento de um comportamento ético
menos rigoroso do que daquelas formas anteriores de pentecostalismo, dentro de um processo
de “dessectarização” ou de abandono das representações estereotipadas de uma postura
contracultural que operam no tipo “seita”, segundo Troeltsch.
Como veremos mais adiante ao analisarmos a teologia iurdiana, esse neopentecostalismo
tanto é resultado como produz importantes mudanças nos eixos principais da visão protestante
de mundo, tal como foram sistematizados no Século XVI por Martinho Lutero e João Calvino,
apresentando até mesmo significativas alterações na escatologia e soteriologia do
“pentecostalismo clássico”. Eclesiologicamente há formas de neopentecostalismo que
combinam os sistemas congregacionalista e episcopal de governo, num modelo de
administração eclesiástica centralizado nas figuras de “bispo”, “missionário” ou “apóstolo”.
Tais personagens se configuram como líderes carismáticos, que governam de uma maneira
personalista, centralizadora e autoritária seus movimentos, às vezes designando a si mesmos
como “apóstolos” ou “missionários”, e a seus empreendimentos como “Igreja”,
“Comunidade” ou “Ministério”.
Essa forma de exercício do poder eclesiástico, comum em vários tipos de pentecostalismos,
gerou entre os iurdianos um jeito de ser muito pouco crítico em relação às autoridades que os
governam. O fiel da Igreja Universal com facilidade, vê, identifica e aceita como seus

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A expressão “pentecostalismo autônomo” tem sido usada desde a segunda metade dos anos 80, para designar
aqueles grupos pentecostais, que se estabeleceram fora das grandes denominações brasileiras, pentecostais ou
protestantes, fundadas e lideradas por empreendedores religiosos, líderes carismáticos, que teriam preferido se
“estabelecer por conta própria”, sem vínculos, inclusive, com missões estrangeiras. José Bittencourt Filho e
outros analistas da religião no Brasil, ligados ao antigo CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e
Informação), hoje KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, do Rio de Janeiro; ao ISER (Instituto de
Estudos da Religião); Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Jesus Hortal, da PUC
do Rio de Janeiro, estão entre os que divulgaram esse termo, através de seus escritos e abordagens, para
designar o que aqui chamamos de neopentecostalismo. Contudo, em qual sentido esse fenômeno religioso é
“novo”? “Novo” em relação a quais fenômenos religiosos?

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inimigos as entidades apontadas por seus líderes. No caso da IURD, esses inimigos são o
catolicismo, kardecismo, religiões afro-brasileiras, demais protestantes e pentecostais, assim
como a mídia de um modo geral. A identidade desse movimento é construída, por meio de um
processo de oposição-continuidade a uma situação até então hegemônica no campo religioso e
cultural. Daí, a ambigüidade, pois, enquanto o neopentecostalismo iurdiano na prática reforça
o arcaico, a retórica oficial da Igreja alardeia que está promovendo uma “profunda ruptura”
com o passado.
Por esse e outros motivos, trabalhamos aqui a idéia de que não há rupturas totais nas
sociedades humanas, mas sim, continuidades retrabalhadas, sínteses recompiladas
sucessivamente, sempre a partir de materiais antigos, mas em resposta a desafios históricos e
concretos operantes sobre um grupo social em momentos específicos. Essa perspectiva
explica a nossa insistência em sempre retornar às formas históricas de se experimentarem
determinadas ênfases religiosas, algumas delas consideradas pelo neopentecostalismo como a
forma ideal, normal e necessária de ser cristão. Com isso procuramos atenuar as várias
ênfases que a IURD apresenta como suas exclusividades, reservando para ela tão somente a
maximização da comunicação e do marketing.
Aceitamos como pressuposto de trabalho a teoria do imaginário social, desenvolvida pelas
ciências sociais francesas. Entendemos como imaginário brasileiro o conjunto de
representações coletivas sedimentadas que, transmitidas de uma geração para outra, formaram
um substrato comum a todos, uma espécie de matriz religiosa, que permanece subjacente ao
catolicismo, a certas formas de kardecismo e religiões afro-brasileiras. Esse terreno contém o
húmus no qual o neopentecostalismo se alimenta tanto ritual como teologicamente, ao se
apropriar de símbolos, linguagens e visões de mundo preexistentes ao seu surgimento na
história.
André Droogers (1987:62-87) afirma haver uma fonte matricial de religiosidade mínima
brasileira, percebida na religião dos políticos, artistas, esportistas e comunicadores sociais. Se
isso for correto, então o presente religioso é resultado de um longo processo de formação
matricial, no qual uma geração reproduz hoje, com as necessárias adaptações, as soluções
religiosas culturalmente inventadas no passado. Mas onde há espaço para um salto qualitativo
e para o surgimento de um agente religioso radicalmente novo? Será que só o recurso ao
passado é suficiente para se descreverem as mutações em andamento no campo religioso do
qual o neopentecostalismo é uma de suas mais conhecidas expressões?
Por isso reafirmamos que a IURD está comprometida com a continuidade de expressões
religiosas secularmente praticadas neste Continente, às quais se adicionaram alguns elementos
novos, entre eles a lógica e a estratégia do mercado. Pressupomos também que o
pentecostalismo na América Latina, por ter lutado tanto contra as práticas mágicas de uma
cultura, cujas raízes são pré-colombianas, combinadas com influências africanas e católicas
européias, acabou por assimilar muitas dessas práticas e posturas em seu processo de
acomodação.5

5
Jean-Pierre Bastian (1994:288 ss.) tem analisado essas novas formas de religiosidade, originadas no meio
protestante, como maneiras de acomodação do protestantismo. Tal processo de acomodação teria originado um
tipo de protestantismo domesticado, no qual predomina, muito mais um projeto social e político de restauração
social, do que de reforma e transformação. O insight de Bastian se deve à hipótese sugerida em 1965 por
Pierre Chaunu, para quem os protestantismos populares seriam mais “catolicismos de substituição”.

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Talvez, por tais motivos, o iurdiano, oriundo de diversas vertentes religiosas, reconhece de
uma maneira seletiva, nas práticas litúrgicas e na visão de mundo de sua Igreja, os elos de
ligação com o seu passado, mas, ao mesmo tempo, recusa alguns outros aspectos dessa
herança. Com isso, ele assume práticas típicas de situações culturais limítrofes, passíveis de
serem caracterizadas como sincretistas, tema que será discutido mais adiante. Por enquanto
bastar recordarmos o sentido atribuído a esse termo por Roger Bastide (1970:65-108), ao
considerar que “o sincretismo (...) consiste em unir os pedaços da história mística de duas (ou
mais) tradições diferentes em um todo que permanece ordenado por um mesmo sistema (...)
um bricolage.”
É claro que, se a análise desse fenômeno permanecer apenas nesse nível, estaremos estudando
tão-somente uma igreja arcaica, que insiste em falar de forças espirituais boas e más, que
constantemente interrompem o andamento da vida cotidiana das pessoas; em praticar curas,
tal como faziam antigos taumaturgos, curandeiros ou xamãs, usando-se, para isso, práticas
semi-mágicas e exorcistas; em mandar as pessoas de volta para a casa, levando talismãs
carregados de energias “benéficas”, direcionadas à solução dos casos mais difíceis, como a
falta de prosperidade e sucesso na vida.
Insistimos em que o arcaísmo não é a única vertente da identidade construída pela Igreja
Universal, pois ela é também portadora de traços típicos da pós-modernidade. Como tal, ela se
expande num terreno cultural resultante, por um lado, da decomposição da modernidade, por
outro, pela existência de camadas populacionais que se encontram numa situação marginal ao
processo de modernização, experimentado por outras camadas minoritárias na sociedade
brasileira, nas últimas quatro ou cinco décadas. Mas, seria realmente esse um perfil de pós-
modernidade, tal como foi estudada por Giddens (1991), Touraine (1994) e Gellner (1994), ou
apenas um quadro resultante das contradições da alta modernidade, combinada com elementos
oriundos da pré-modernidade? Por isso é possível enxergar na IURD traços de uma
religiosidade pós-moderna, que permite a expressão individualista e privativista da
experiência religiosa, que valoriza o corpo a ser curado, alimentado, enfeitado e requisitado
para participações ativas em coreografias religiosas. Essa Igreja é portadora de estratégias, que
combinam ruptura com continuidade ou a pré com a pós-modernidade. Porém, nessa
discussão, mais uma vez ressurgem as características complexas e paradoxais da Igreja
Universal, as quais pretendemos descrever e compreender, a partir de alguns procedimentos, a
seguir explicitados.
Empregamos neste texto uma forma de discurso calcada na analogia e na linguagem
metafórica. Por esse motivo, grande parte do material a seguir está articulado ao redor de três
eixos metafóricos: “Teatro”, “Templo” e “Mercado”. Tentaremos fazer dessa trilogia uma
espécie de fio condutor de um discurso cuja meta é reconstruir uma realidade social que
permeia o rótulo - Igreja Universal do Reino de Deus. Entretanto, por se tratar de metáforas, a
metodologia exige que as mesmas sejam apresentadas, justificadas e interligadas neste espaço
introdutório.
A metáfora é considerada, desde Aristóteles (1967:209), uma figura que “consiste em
conceder a um objeto um nome que é próprio de um outro, fazendo-se esta transferência quer
do gênero para a espécie, quer da espécie para o gênero, quer duma espécie para outra, quer na
base de uma analogia”. Porém, para ser “o meio que mais contribui para dar ao pensamento
clareza”, a metáfora precisa ser tirada da própria atividade analisada. Certamente, há os que

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criticam e até condenam o emprego de metáforas no discurso científico e, quando admitem o


seu uso, recomendam o máximo de cautela, sob o risco de se cair no “oceano da falsa
ciência”, que está permeado de metáforas, no dizer de Max Black (1962:242). Nesse aspecto
seguimos Morgan (1996:338) para quem o uso de metáforas é um excelente instrumento para
conceber e descrever as organizações, realizando-se por intermédio delas, “uma leitura-
diagnóstico” tanto do passado como do presente de uma determinada ação social.
Consideramos, entretanto, que o simples abandono das analogias e metáforas, em tempos de
“revoluções científicas” e períodos de “anomalias”, no dizer de Thomas Kuhn (1978), não
parece ser uma boa solução. Aliás, nos momentos em que há vazios lógicos e desestruturação
de antigos paradigmas, o emprego de metáforas se torna uma necessidade, dada a urgência em
se fecundar a pesquisa e se estimular a imaginação sociológica. Com isso, o emprego de
metáforas acaba ganhando força, exatamente porque vivemos períodos confusos na produção
de conhecimentos científicos sobre a religião, em que muitos dos modelos e paradigmas
tradicionais entraram em colapso, provocando a mistura de fenômenos e interpretações. Então,
torna-se impossível o uso de velhas teorias para se construírem novos modelos explicativos,
deixando em aberto, nesse processo de reconstrução, a apresentação de palpites e de atos de
fé. Pois, como afirma Rubem Alves (1979:34,35), “o ato pelo qual o cientista abraça uma
nova teoria é um ato de fé e aposta”.
Renato Ortiz (1994:16) escrevendo sobre as relações entre a cultura e o fenômeno da
globalização, observou existir uma profusão de metáforas a respeito desse assunto, justamente
porque há “uma realidade emergente ainda fugidia ao horizonte das Ciências Sociais”. As
“metáforas”, acrescenta Ortiz, “abundam diante da falta de conceitos” e acabam se impondo
quando não há teorias formalizadas para explicar anomalias e fatos novos. Assim, neste texto
optamos pelo uso de metáforas, no sentido dado por Paul Ricoeur (1983:9,10) de um
“processo retórico pelo qual o discurso liberta o poder, que certas ficções comportam de
redescrever a realidade, ligando dessa maneira ficção e redescrição”, restituindo “a sua
plenitude à descoberta de Aristóteles (...) que a poiêsis da linguagem procede da conexão
entre muthos e mimêsis.”
Nos próximos capítulos encararemos as metáforas “teatro”, “templo” e “mercado” como
possibilidades de se aglutinarem ao redor delas, dados colhidos sobre as interações sociais
entre atores religiosos em diferentes circunstâncias sociais e as estratégias comunicativas,
mercadológicas e organizacionais, que acontecem nesse processo interacional. Essas
metáforas servirão para indicar formas pelas quais a realidade social se cristaliza em modos de
ação social, expectativas e esperanças compartilhadas coletivamente. Através das metáforas
podemos perceber as práticas sociais de uma maneira distinta, estruturadas ao longo do tempo
e que, ao serem estudadas, exigem a separação das cristalizações surgidas no tempo das
interações estabelecidas pelos atores posteriormente.
Procuraremos considerar essas instituições como estruturas sociais estruturantes que, devido
ao processo de socialização, conforme Peter e Brigitte Berger (in Foracchi e
Martins,1977:193-199), são interiorizados e passam a fazer parte do estilo de vida de milhões
de indivíduos. Queremos averiguar até que ponto as formas de dramatizar, trocar bens
religiosos e adorar, como ocorrem nos templos da IURD, condicionam a reorganização da
vida de seus seguidores, realizando as promessas contidas nos slogans dessa Igreja: “aqui um
milagre espera por você” e “a sua vida vai mudar”. Para que isso se concretizasse seria

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preciso ouvir os próprios atores, daí as entrevistas e o levantamento de material na


programação radiofônica e televisiva da Igreja Universal.
Em cada um dos capítulos a seguir, há uma introdução histórica ao fenômeno ali descrito e
interpretado, nas quais procuramos ligar o fenômeno atual às suas raízes históricas, sempre na
tentativa de mostrar que as práticas religiosas e culturais do presente se enraízam no passado,
e as suas conseqüências hão de se projetar em direção ao futuro. Isto foi feito com um certo
cuidado para não fazer do presente e do futuro, este ainda inexistente, uma mera reprodução
de práticas religiosas de outros grupos sociais, situados em momentos históricos distintos. Até
porque, quando age dessa maneira, o pesquisador sucumbe à tentação “substancialista”, já
denunciada por Pierre Bourdieu (1996:16,17).
Essa tentação revela um esforço idealista de não considerar a realidade como algo relacional e
tentar reconstruí-la como se fosse uma reprodução pura e simples, aqui e acolá, de uma
essência eternamente reproduzida, indiferente às características de cada momento histórico
vivido por um grupo social. Um outro risco é o de imaginar-se que cada nova geração
reinventa a religião, como se nada tivesse havido antes. Isso eqüivale dizer que não há
“pentecostalismo” ou “mentalidade neopentecostal” divorciada das condições concretas de
vida de uma determinada população. Nesse sentido, os cortes diacrônicos e a manipulação dos
resultados oriundos de comparações entre períodos diversos devem ser manipulados com
muita cautela. Procuramos então analisar a Igreja Universal como um fenômeno social surgido
no Brasil, dentro de certas condições específicas, que permitiram que se construísse um
espaço social no qual, as pessoas que o compõem se interagem e, entre conflitos e
acomodações, elaboram para elas mesmas e para os outros, uma forma de convivência social
tida e aceita como eficaz.
O texto está estruturado em capítulos que podem ser lidos separadamente. No primeiro deles,
Pentecostalismo e neopentecostalismo no vaivém das pesquisas e paradigmas, tentamos uma
reconstrução de nosso objeto de estudo: o neopentecostalismo da Igreja Universal do Reino de
Deus. Nesse capítulo introdutório procuramos discutir aspectos epistemológicos e
metodológicos que envolveram a pesquisa e, por isso mesmo se refletiram na redação deste
texto. Também nele discutimos questões ligadas ao processo discursivo, que pretende ser
fenomenológico; construindo-se um objeto de estudo dentro dos limites de um quadro da
sociologia da compreensão; empregando-se a metodologia qualitativa na elaboração de um
tipo ideal - o neopentecostalismo iurdiano. É um estudo de caso, mas procuramos, ao mesmo
tempo, compará-lo, exaustivamente, com outras formas de se organizar religiosamente a
experiência humana, principalmente as rotuladas de “pentecostais” ou as vividas em outros
grupos, lugares, épocas e circunstâncias, tal como os movimentos milenaristas. Procuramos
ainda, nesse primeiro capítulo, apontar as maneiras pelas quais o tema tem sido abordado, os
nexos históricos entre o neopentecostalismo iurdiano e os demais comportamentos religiosos
descritos, assim como as principais formas de classificação desse fenômeno elaboradas por
vários outros pesquisadores. Penso que, caso haja pressa ou não muito interesse no leitor por
esse tipo de discussão, esse primeiro capítulo poderá ser deixado de lado, recomeçando-se a
leitura pelo capítulo seguinte, mas voltando-se a ele, caso surja posteriormente a necessidade
de um esclarecimento suplementar.
O capítulo seguinte, Teatro e religião: a teatralização do sagrado na Igreja Universal, faz
parte de uma trilogia articulada ao redor de três metáforas: “teatro”, “templo” e “mercado”.

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Nesse capítulo, trabalhamos a hipótese de que muitas características do culto iurdiano são
típicas de uma prática teatral do sagrado, mas de uma teatralização na qual todos participam
como atores, numa espécie de teatro de arena. Nesse capítulo desejamos abordar o culto
neopentecostal como um espetáculo de fé para ser vivido e não somente apreciado
comodamente em um camarote. Trata-se de um teatro de arena.
O capítulo terceiro, Religião e templo: Espaço cúltico e ritos na Igreja Universal, centraliza a
análise no lugar onde os ritos e as representações dos atores acontecem. Nesse capítulo
ressaltamos que a primeira metáfora, “teatro”, expressa apenas uma parte daquela realidade,
pois o templo é a “casa de Deus”, um “espaço energético”, onde o tempo é repartido e
experiências místicas acontecem, interligando as pessoas, criando condições para a formação
de comunidades de culto, apesar do espetáculo passageiro que um ato teatral produz.
O capítulo seguinte, o quarto, Religião e mercado: a Igreja Universal e a teoria da
mercantilização do sagrado, discute, dentro das flexíveis fronteiras que hoje delimitam
“mercado” e “templo”, as relações entre a “mercantilização” e a religiosidade, a partir das
atividades dessa Igreja. Por um lado, nesse capítulo recusa-se a interpretação predominante na
mídia de que a IURD é apenas uma forma de se comercializar o sagrado e de transformar o
templo em “supermercado da fé”. Porém aponta para o marketing, uma postura na qual o
público religioso pode ser formado, moldado e orientado em seu “consumo”, por meio de
técnicas mercadológicas apropriadas, semelhantes às empregadas pelas empresas comerciais,
que visam o lucro financeiro. A essa altura não se pode negar que a Igreja Universal opera
com a lógica e a razão instrumental, procedimentos próprios da prática neoliberal, cuja
ideologia procura apresentar o mundo como um mercado global, estruturalmente interligado.
Mesmo assim, ainda que cada templo seja um “mercado”, no seu interior aninham-se pessoas
que, depois de reencontrarem nele um sentido para vida, formam grupos mais ou menos
comunitários, que, se não forem igrejas no sentido tradicional do termo, são no mínimo
comunidades eletivas, que cultivam formas de compartilhamento emotivo. Nesse contexto,
qual é o perfil das pessoas que freqüentam os templos da Igreja Universal? Devem elas ser
classificadas como “fiéis” ou “clientela”?
O quinto capítulo focaliza Marketing e religião: A “marketização” do sagrado na Igreja
Universal, e tem por objetivo mostrar como essa Igreja está centrada, diferentemente das
igrejas cristãs tradicionais, nas necessidades e desejos das pessoas. Por ser uma instituição
religiosa relativamente nova, ela tem a flexibilidade para mudar seus “produtos” e adequá-los
da melhor maneira possível para satisfazer a demanda de “consumo”, por este ou aquele
“produto religioso”. Como resultado dessa estratégia, a IURD assumiu, em pouco mais de
quinze anos, uma eficiente e ágil estrutura organizacional, facilmente ultrapassando todos os
seus concorrentes no campo religioso brasileiro. Encaramos o marketing como uma de suas
mais importantes e calculadas estratégias de crescimento.
O capítulo número seis, Propaganda e religião: A comunicação da Igreja Universal, analisa
as maneiras pelas quais a IURD faz a sua propaganda e emprega os meios de comunicação de
massa, quer seja ela oral, impressa, radiofônica ou televisiva. Nele, procuramos mostrar que
essa Igreja é um sistema de comunicação, que dificilmente teria qualquer chance de sucesso se
não fosse a sua determinação em adotar estratégias de comunicação adequadas a uma
sociedade de massa, tudo isso sem deixar de ser uma forma de “religiosidade oral”.

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No capítulo sete, Religião e retórica: O discurso da Igreja Universal, procurou-se apresentar


as características do discurso iurdiano e ressaltar a retórica como um dos principais meios de
legitimação dessa Igreja nas diversas situações nas quais ela atua. Assim, a retórica iurdiana é
analisada nesse capítulo a partir de sua operacionalidade, mostrando, inclusive, como ela
emprega palavras de ordem e slogans, armas de guerra, em uma linguagem usada pelos que
anunciam produtos e serviços em sua imprensa. Nesse esforço, não deixamos de lado como
essa Igreja usa as marcas, signos e exposição institucional, no processo de criação de seu
próprio espaço social, dentro do campo religioso, como cenário de luta entre atores e
instituições.
O capítulo oito versa sobre A teologia da Igreja Universal e aborda o conjunto de expressões
teóricas elaboradas por todos, e não somente pelos agentes especializados envolvidos na
experiência religiosa, conforme Joaquim Wach (1990:32). Isto é, além do exame das
realizações de um grupo religioso (dromena), é preciso que se analise também o discurso
gerado pelos atores, a partir do que se faz (o legomena). O discurso teológico sistematiza, até
com finalidades pedagógicas e apologéticas, essa visão de mundo que é tanto conseqüência da
ação efetuada como também reprodutora de novas ações. Pretende-se nesse capítulo mostrar
como os agentes procuram sistematizar e tornar, mais ou menos coerente, a sua visão de
mundo. Dessa maneira, fazemos uma interligação entre exorcismo e libertação, cura e
salvação, prosperidade e sucesso, três aspectos indissolúveis, a nosso ver, da visão teológica
dos empreendedores da Igreja Universal, que, de uma maneira bem prática, procuram
apresentar ao iurdiano mais do que uma visão de mundo, ou seja, um guia para a ação.
O capítulo nove, Organização e religião: Os dilemas administrativos da Igreja Universal,
discute o processo de institucionalização que permitiu a passagem da IURD de “movimento”
a “Igreja” organizada e instituída. Nele, é debatida a questão da cultura organizacional, os
problemas relacionados com o exercício do poder, o recrutamento e treinamento de seu clero,
assim como a atuação do pastor iurdiano e, principalmente, os desafios organizacionais e
administrativos que se fazem presentes hoje nessa Igreja, principalmente por causa de seu
crescimento em certos países na América Latina, África, Europa e América do Norte.
O décimo e último capítulo, Considerações finais:Questões que desafiam a Igreja Universal,
retoma algumas questões deixadas ao longo da discussão ou não aprofundadas naqueles
momentos. Entre elas, analisamos, de forma conclusiva, alguns dos desafios que o objeto
reconstruído enfrenta, tais como, a expansão mundial; a Igreja Universal enquanto portadora
de uma esperança de estilo messiânico-milenarista dentro da sociedade de consumo; o
machismo dos pastores iurdianos e suas dificuldades nas questões de gênero, num momento
em que o papel da mulher ganha cada vez mais destaque; finalmente, o envolvimento da
IURD com a política, criando condições para o aparecimento do “político de Cristo”. Esse
capítulo encaminha o texto em direção ao seu final.
A conclusão é resumida e nela procuramos nos ater apenas ao essencial, até porque cada
capítulo traz sua própria conclusão. Assim, muitos itens que deveriam fazer parte da
conclusão final podem ser encontrados na conclusão de cada capítulo, o que possibilita
também a leitura de cada um deles isoladamente, de acordo com o interesse do leitor.
Finalmente, registramos que, no decorrer da pesquisa de campo, procuramos nos colocar
naquela situação em que as ciências sociais classificam como “observação participativa.” Nós
nos conscientizamos de que tal postura exige o cultivo de um processo de aproximação para

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os que estão distantes de uma experiência religiosa, inclusive como forma de se provocar
simpatia em relação ao objeto; e, um distanciamento de quem se julga muito próximo dele,
até por causa da formação e experiências biográficas do observador. Tentamos abandonar a
ilusão do saber imediato, por meio da vigilância epistemológica e da ruptura com os
preconceitos existentes. Tomamos como objetivo desenvolver o que Bourdieu (1989:49;
1991b:27ss) chama de um “olhar sociológico”, lançado sobre o neopentecostalismo praticado
e pregado pela Igreja Universal do Reino de Deus.
Colocar em prática tal perspectiva epistemológica tornou-se uma exigência crucial para nós,
tanto durante a pesquisa como também na elaboração deste texto. Isso porque, tivemos uma
formação de pastor presbiteriano e nos propusemos, apesar dessa vivência como protestante
histórico, investigar um objeto tido como “adversário” do campo religioso ao qual
pertencemos. Em parte, essa tarefa foi suavizada por causa de um envolvimento profissional
que mantivemos durante mais de duas décadas, com o setor administrativo de empresas
industriais e da experiência docente na área de sociologia das organizações e da religião.
Talvez essas experiências biográficas, ao lado de procedimentos metodológicos, tenham nos
ajudado no estabelecimento de mecanismos de vigilância contra os riscos de distorções, com
alta probabilidade de acontecerem, especialmente quando tantos fatores acima citados se
associam numa só experiência de vida.
É claro que nem sempre é suficiente uma vigilância epistemológica permanente, até porque,
como Rubem Alves (1979b:38) observou: é impossível a elaboração de um discurso científico
que não seja, ao mesmo tempo, motivado por um substrato moral. No que se refere às
similaridades entre o discurso científico e o religioso, Durkheim (1989:496,507) escreveu que
“o pensamento científico é apenas uma forma mais perfeita do pensamento religioso” e que “a
ciência tem, portanto, origens religiosas”. Max Weber (in Cohen, 1982:87 e 97) foi mais a
fundo nessa discussão ressaltando que:
“Não existe qualquer análise científica puramente ‘objetiva’ da vida cultural, ou (...) dos
‘fenômenos sociais’, que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais,
graças às quais estas manifestações possam ser, explícita ou implicitamente consciente ou
inconscientemente selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objeto de
pesquisa (...) todo o conhecimento da realidade cultural é sempre um conhecimento
subordinado a pontos de vista especificamente.”
Nesse sentido não existe e, é humanamente impossível, a elaboração de um discurso científico
neutro e isento de preconceitos. Esse é o motivo pelo qual, as nossa conclusões finais, como
aconselha Myrdal (1965:186) são apresentadas apenas com uma validade hipotética, até
porque a escolha de um conjunto de hipóteses e de premissas valorativas, num outro quadro
biográfico teria provocado outras e distintas conclusões. Mesmo assim, esperamos que essa
aparente desvantagem tenha provocado efeito contrário e tenha-nos ajudado na elaboração
deste texto.
O resultado inevitável da junção de tantos fatores, da paixão que o tema desperta no
pesquisador, da ambição em abordar tantas questões de uma só vez, gerou um texto
relativamente longo e, aqui ou ali, reconhecemos haver algumas simplificações ou até
reducionismos. Por causa de tudo isso renunciamos qualquer sonho de encontrar respostas
para a totalidade dos problemas levantados. Isto porque, nem sempre nos damos conta dessa
necessidade, quando tudo começa com a identificação inicial do problema. Porém, nós nos

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sentiremos gratificados se pudermos nos capítulos a seguir, provocar discussões, levantar


questionamentos e contribuir assim para algum avanço, não somente no conhecimento do
neopentecostalismo iurdiano e de sua organização religiosa, mas sobretudo para uma melhor
visão do que está acontecendo no interior do campo religioso brasileiro e nas suas relações
com a sociedade mais ampla, neste final de século.
No entanto procuramos ao longo do texto manter o respeito que a Igreja Universal do Reino
de Deus deve merecer como fenômeno religioso. Afinal de contas, como ressaltou Durkheim
(1989:31) não há “religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras à sua maneira. Todas
respondem, ainda que de maneiras diferentes, a determinadas condições de vida humana”. É
claro que houve dificuldades na realização de nosso projeto. Primeiro, por causa da
imbricação existente no fenômeno estudado entre os aspectos empresariais e religiosos.
Depois, por causa da aversão declarada dos dirigentes dessa Igreja para com a ingerência de
estranhos, sejam eles pesquisadores, repórteres ou curiosos. Por isso, talvez por causa do
assédio da mídia, ou miopia de seus dirigentes, a Igreja Universal se tornou tão arredia,
misturando a todos em sua posição de defesa, gerando inúmeras barreiras para a elaboração de
um conhecimento a seu respeito, que pretenda ser científico. Alimentamos a esperança de que,
mais cedo ou mais tarde, as suas autoridades reconhecerão que estiveram, durante todos esses
anos, realimentando os viéses ao manterem fechado o empreendimento aos olhares “profanos”
das ciências humanas. Uma possível abertura servirá para testar algumas das hipóteses e
afirmações contidas a seguir.

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CAPÍTULO 1 - PENTECOSTALISMO E
NEOPENTECOSTALISMO NO VAIVÉM DAS
PESQUISAS E PARADIGMAS

“É imperiosa a reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e devemos tentar ser,


nós mesmos, esse artesão. Que cada homem seja o seu próprio metodologista (...) que
a teoria e o método se tornem novamente parte da prática de um artesanato” (C.
Wright Mills, 1972:240).

Faz parte dos protocolos, que regem a produção acadêmica comentar as maneiras pelas quais
se deu a reconstrução de um objeto de estudo, referindo-se nessa parte aos valores, objetivos,
paradigmas, metodologias e dificuldades encontradas na realização desse empreendimento.
Trata-se de um ritual semelhante a uma confissão do paciente ao seu psicanalista, que é
estimulada para provocar paz de espírito e tornar consciente o que até então era apenas
inconsciente. Em se tratando de análise de fenômenos religiosos, esse procedimento, ideal
para todas as ciências, se torna obrigatório, especialmente quando o pesquisador reconhece
manter com o seu objeto, duplos laços de amor ou de ódio.

Isto pode ser decepcionante para os que pretendem a plena objetividade sem se dar conta de
que a ciência é uma atividade tão humana que nem mesmo o ritual preliminar da confissão
metodológica pode minorar. Por isso mesmo concordamos com Lucien Goldman (1980:27) ao
afirmar que “o processo de conhecimento científico é ele próprio um fato humano, histórico e
social” e que isso implica, ao se estudar a vida humana, no surgimento de uma “identidade
parcial entre sujeito e objeto do conhecimento.” Na mesma linha de argumentação, Gunar
Myrdal (1963:102) contribuiu ainda mais para o desconcerto generalizado, ao afirmar que “as
perguntas expressam os nossos interesses no assunto” e que “os interesses nunca podem ser
puramente científicos”, visto serem “escolhas (e) produtos de nossas valorações.”

1. Pentecostalismo: pesquisas e paradigmas

A avaliação dos modelos teóricos, valores e paradigmas que têm orientado as pesquisas sobre
pentecostalismo é uma exigência epistemológica de fundamental importância. Esse
procedimento pode contribuir para a relativização de nossos próprios modelos de
classificação, generalização e síntese. Com isso, devolvemos a ciência ao seu locus humano e
permitimos que seus paradigmas, como observou Thomas Khun (1972), sejam vistos como
estímulos ao conhecimento de alguns aspectos do objeto pesquisado. Dessa maneira, evita-se
o surgimento da “miopia das hipóteses”, aquela “cegueira parcial” que dificulta o abandono
desta ou daquela trilha analítica, sedimentada ou petrificada pelo excesso de uso.
Pressupomos que nossas abordagens do pentecostalismo trazem consigo as marcas dos

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paradigmas adotados pela comunidade de pesquisadores (Maraschin et alii, 1995:29-54) de


um determinado momento histórico.

A busca de lacunas no conhecimento sobre o pentecostalismo nos levou a selecionarmos para


análise, de uma lista muito maior, apenas alguns paradigmas, tais como a secularização e os
pares antinômicos “seita” e “igreja”, “pobre” e “rico”, “opressor” e “oprimido”, “mágicos” e
“sacerdotes”, “modernidade” e “pós-modernidade”, “racionalidade ocidental” e “misticismo
oriental”. Essas lacunas surgem, principalmente, porque as mutações sociais de todas as
espécies tornam dinâmica a busca do conhecimento e testam a capacidade humana em
elaborar soluções e modelos teóricos para responder às mesmas. Na discussão desses
paradigmas, podemos localizar o progresso dos conhecimentos sobre o pentecostalismo e
mapear as pesquisas recentes sobre o neopentecostalismo, especificamente, a Igreja Universal.

Pentecostalismo e paradigma da secularização


Durante os anos 60, o paradigma da secularização teve uma enorme aceitação entre os
estudiosos do fenômeno religioso. Esse modelo teórico pressupunha que a urbanização era um
processo irreversível e, sobretudo, secular. Robert Adolfs (1970), nessa época, repetia a
instigante pergunta filosófica, elaborada no final do Século XIX, por Nietzsche: Os templos e
catedrais não se tornarão rapidamente “túmulos de Deus”? Tal paradigma, durante o seu
período de hegemonia, impediu que muitos pesquisadores enxergassem o que hoje parece ser
o óbvio, que a evasão do sagrado dos moldes que pretendiam contê-lo - as instituições
religiosas - para outras áreas da vida humana não é sinônimo de desaparecimento e, sim, de
transformação da religião. As anomalias nesse paradigma se exteriorizaram pela presença
barulhenta dos “novos movimentos religiosos” de origens e inspirações variadas, dos
fundamentalismos cristãos, islâmicos, judaicos, com a explosão de movimentos pentecostais e
de religiosidades de inspiração africana na América Latina, inclusive a persistência dos cultos
de santerias em Cuba e reavivamento das igrejas cristãs naquele país, conforme Rafael
Cepeda Clemente et alii (Gutierrez e Campos, 1996:121ss), após 38 anos de regime
comunista.

A partir dessa percepção, o pentecostalismo deixou de ser encarado como se fosse um mero
estertor de uma religião moribunda, uma reação inútil diante de uma irreversível tendência
universal à secularização e irreligiosidade, cuja plenitude se daria em uma sociedade
“madura”, “adulta” e “superior”, exatamente por causa da racionalidade científica. Para alguns
analistas, fundamentados em Weber (1991), tais como Bryan Wilson (1966), Berger (1973 e
1985), Harvey Cox (1969), “secularização”, “capitalismo” e “modernidade” seriam processos
históricos culturais interligados e concomitantes. Essas premissas ainda são empregadas para
estudar, aqui ou acolá, o pentecostalismo, como se os pesquisadores estivessem diante de
uma espécie rara em vias de extinção. Daí, o emprego, para se descrever o pentecostalismo, a
despeito de todas as evidências contrárias, de categorias como "minoria cognitiva",
“ignorância”, “religiosidade primitiva” e outras, cuja proliferação se dá em espaços marginais
de uma sociedade a caminho da “maturidade”.

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O crescimento rápido do pentecostalismo nos últimos decênios, na América Latina, África e


Ásia, levou os estudiosos da religião a se debruçarem novamente na análise de fenômenos
tidos como “exóticos”, religião de grupos minoritários ou popular, tendências essas apontadas
por Maria Isaura Pereira de Queiroz (1972:517 e 523) e Rubem Alves (1978b:119). Essa
“redescoberta” do pentecostalismo pelos próprios latino-americanos e a sua transformação em
objeto de estudo privilegiado, pode ser visualizada no aumento crescente da produção
intelectual sobre ele, na forma de livros, artigos e teses acadêmicas, cuja tabela abaixo,
elaborada a partir de lista bibliográfica reunida por André Droogers (Boudewjinse et alii,
1991), pode nos dar uma idéia geral.

Quadro n° 1 - Produção intelectual na América Latina sobre pentecostalismo e carismatismo


Década da produção intelectual N°s absolutos % da produção

Antes de 1950 13 1,50

1950 - 1959 44 5,09

1960 - 1969 133 15,38

1970 - 1979 191 22,08

1980 - 1990 457 52,83

Sem indicação de data 27 3,12

TOTAL 865 100,00

Nessa lista parcial de produção podemos notar que, nos primeiros 40 anos, o tema foi
analisado em apenas 1,50% do total de textos coletados. Porém o aumento da produção escrita
nas décadas seguintes ultrapassou algumas vezes a marca de 200% sobre a década anterior.
Por exemplo, o boom no crescimento pentecostal dos anos 70 fez com que a produção
intelectual, que era de 22,08%, aumentasse para 52,83% do total de textos escritos.
Possivelmente, o crescimento da visibilidade do pentecostalismo na mídia, na literatura dos
concorrentes, catolicismo e protestantismo histórico seja também um fenômeno correlato ao
incremento do interesse na área da produção erudita sobre o referido tema.

Essa tendência de incremento continuou durante os anos 90, o que pode ser observado no
interesse de teólogos, pastoralistas e missiólogos ecumênicos que, reunidos ao redor da revista
Concilium (1996/265) produziram um número especial sob o título Movimentos pentecostais:
Um desafio ecumênico, no qual reconheceram a necessidade de se levar a sério um
movimento que, em apenas 90 anos, conseguiu arrebanhar mais de 400 milhões de fiéis em
todo o mundo, apesar de seu relativo fracasso na maior parte da Europa. Por esse motivo, é
significativa a insinuação que faz o especialista em comunicação Quentin J. Schulze (in
Daniel R. Miller, 1994:66), ao perguntar se a melhor titulação do famoso livro de David Stoll
(1990), Is Latin America Turning Protestant?, não seria “Is Latin America Turning
Pentecostals”? Na mesma linha de argumentação, Donald Dayton (1988:401) escreveu que,
atualmente “os evangélicos (históricos) devem considerar-se como um subgrupo dos
pentecostais e não o contrário.”

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Portanto, como resposta totalizante, a profecia da morte da religião falhou e, duas décadas
depois, o problema é exatamente o contrário, pois experimenta-se justamente uma explosão de
religiosidades novas por toda parte, o que tornou complicada a manutenção da tese da
secularização, como analisam, entre outros, Luis Alberto Gomes de Souza (1986:2-17),
Robert N. Bellah (1986:18-37), S.S.Acquaviva (1961), Stefano Martelli (1995), Ferrarotti et.
alii (1990). O que está na ordem do dia não é mais a extinção e, sim, a efervescência da
religião, exatamente no interior de uma civilização que, ao menos teoricamente, deveria ter
obstaculizado tal sobrevivência. Rompida a hegemonia do paradigma da secularização, alguns
de seus próprios entusiastas, por exemplo Cox (1994) e Rubem Alves (1975), procuraram
rever suas posições e passaram a considerar os fundamentalismos e pentecostalismos os mais
importantes fenômenos religiosos do século. No entanto, na época da predominância desse
paradigma, como confirmação da teoria de Khun sobre os paradigmas, a atenção de Cox e
Alves estava voltada para uma outra direção, o que provocou uma tardia volta deles e de
outros autores para uma avaliação mais realista da realidade religiosa latino-americana.6

Esse aparente retorno da religião - enfatizamos “aparente”, pois como pode retornar o que
nunca se foi? - tem sido descrito pelos estudiosos como um processo de "reencantamento" do
mundo, após um breve período de aposta no "desencantamento". Numa significativa
expressão, muito usada por S.S.Acquaviva, houve apenas um “eclipse da religião”, talvez uma
“dessacralização” e não uma “secularização” ou, no dizer de Thomas Luckmann (1973), a
religião simplesmente se tornou invisível. São muito estimulantes os comentários de Steve
Bruce sobre esse assunto, nos quais ele mostra que a religião no mundo atual tanto expressa
um processo de esvaziamento institucional do estilo “cathedrals” como também aponta para o
surgimento de cultos mais apropriados aos novos tempos, entre eles a “new age”. Segundo
Bruce (1996:234) as denominações religiosas tradicionais não mais podem “produzir
melodias que excitam as massas”.

É possível, porém, que a aceitação pouco crítica do paradigma da secularização teria sido a
responsável pelo caloroso debate que provocou, entre pesquisadores brasileiros, no final dos
anos 70, a publicação de um artigo de Leszek Kolakowski (1977:153-162) sobre “a revanche
do sagrado na cultura profana". Há também uma significativa contribuição para esse debate,
de autoria de Gilles Kepel (1992), intitulado A revanche de Deus, onde se analisa o
ressurgimento dos fundamentalismos cristãos, islâmicos e judaicos na segunda metade deste
século. O pentecostalismo, particularmente em sua versão neopentecostalista, participa desse
processo de “reencantamento” do mundo e de “revisibilização” da religião em nossa
sociedade. Como assinalaram José J. de Queiroz et alii (1996) são interfaces do sagrado em
plena véspera de milênio.

6 Uma experiência pessoal que tivemos em 1969 ilustra essa mudança de perspectiva. Por ocasião de uma visita ao Brasil,
após uma palestra no antigo Seminário Teológico da Igreja Episcopal, em Santo Amaro, São Paulo, Cox, tendo ao lado
Rubem Alves como tradutor, foi interpelado por um grupo de seminaristas presbiterianos independentes, do qual fazíamos
parte, sobre a "pentecostalização do protestantismo histórico". Não me recordo se H. Cox deu ou não a sua opinião.
Porém, Alves afirmou: "Esse é o tipo de problema que não nos interessa no momento". Realmente o predomínio de um
paradigma cria um círculo de exclusão temática, bloqueando reflexões que posteriormente acabam por tomar conta da
comunidade dos pesquisadores. hoje o próprio Cox (1994) se encontra muito interessado nas experiências pentecostais.

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Entretanto, mesmo com a perda da hegemonia, o paradigma da secularização continua


provocando discussões, agora particularmente nos debates sobre os processos culturais de
pluralismo, as mudanças dos papéis sociais das organizações religiosas, a exacerbação da
competição entre agências produtoras de sentido, a possibilidade de se escolherem estilos
religiosos à partir dos resultados observados, constituindo-se, a partir dessa escolha, uma
apropriação subjetiva e individualizante do sagrado. Peter Berger (1993) acentua que esse é o
contexto, pós-secularizado para uns, e, em secularização para outros, favorável ao
aparecimento de técnicas de marketing para conquistar e manter adeptos.

Daí, a nossa insistência em colocarmos para discussão o sistema de comunicação e de


marketing como categorias centrais para se entender o sucesso de certos grupos
neopentecostais, entre eles, a Igreja Universal do Reino de Deus. Pressupomos que o excesso
de oferta de produtos religiosos, disponíveis para todos os gostos e preferências, bem como a
constatação de que vivemos numa era de muita credulidade, não nos permitem um abandono
definitivo das discussões, que geraram o aparecimento do paradigma da secularização, embora
tenhamos abandonado a extensão de tendência universalizante desse pressuposto.

Isto porque, numa sociedade em que a religião institucionalizada perdeu a capacidade de


aglutinar ao seu redor as múltiplas dimensões da vida, o processo gerador de sentido foi se
transferindo para os meios de comunicação de massa, espaço social no qual se dá a gestação
de novos heróis modelares, que tentam convencer os outros que a sua escolha deve ser
assumida por todos os destinatários, justamente por ser uma escolha “lógica”, “funcional” e
“prática”. Esses comunicadores, por sua vez, se tornam pivôs de novas maneiras de se viver o
sagrado, reformulando-se assim, no cadinho desses veículos de comunicação de massa,
antigas formas de religiosidade, agora recombinadas com outras tendências.

Pentecostalismo, ajustes e desajustes sociais


Ao lado, antes e depois da predominância da teoria da secularização, realizaram-se também
pesquisas sobre o pentecostalismo como fator de ajuste social, num contexto de intensas
mudanças provocadas pelos processos de urbano-industrialização. No geral, usavam-se
critérios funcionalistas, e alguns pesquisadores, entre eles Emilio Willems (1967), Lalive
D’Epinay (1970), Cândido Procópio Ferreira de Camargo (1973), Beatriz Muniz de Souza
(1969) e outros, empregaram teorias sociológicas oriundas de Durkheim, Weber e Troeltsch
(1931), tais como anomia, integração, solidariedade e o gradiente seita-igreja, para explicar as
relações do pentecostalismo com uma sociedade que deixava de ser rural para se tornar
urbano-industrial.

Nas décadas seguintes, mesmo divididos entre as teorias de conflito ou de consenso, vários
analistas do fenômeno religioso apontavam o pentecostalismo como alienação e ópio do povo.
O argumento era simples e expresso da seguinte forma: se o Continente caminha para um
tempo de libertação da opressão colonial do Norte sobre o Sul, dos ricos sobre os pobres, o
pentecostalismo também só pode ser uma expressão religiosa dessa situação de violência e
escravidão ou, quem sabe, um sinal ainda débil de que as massas estariam empregando a

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religião para expressar, de uma forma pré-revolucionária, o seu descontentamento com a


situação de opressão.

Visto de uma perspectiva dialética, a alienação religiosa acirraria o processo de opressão e


provocaria a chegada dos tempos de mudança. Por isso havia, quem visse no pentecostalismo
e na “religião dos oprimidos” os “sinais revolucionários” de um sentimento que, embora débil,
indicava que os pobres estavam se despertando para a chegada da revolução. À luz desses
paradigmas, procurou-se resgatar (Rolim, 1995) a participação de alguns pentecostais das
Ligas Camponesas, no Nordeste brasileiro, da guerrilha sandinista, na Nicarágua, e da
oposição a Pinochet, no Chile. Tal como Hobsbawn (1978) e Lanternari (1974) pensava-se
que em cada pentecostal estaria latente e de forma embrionária um “pré-revolucionário.”
Dentro dessa perspectiva, o desafio maior seria descobrir as melhores maneiras de se canalizar
o “protesto pentecostal” para projetos de transformação social.7

Posteriormente, a esperança de que havia no pentecostalismo um potencial revolucionário,


capaz de provocar rupturas na sociedade latino-americana, foi desaparecendo. Assim, como a
classe operária foi ao paraíso da sociedade de consumo, o pentecostalismo encontrou formas
de acomodação no interior da velha cultura latino-americana e da nova sociedade de consumo,
incorporando, no decorrer desse processo, símbolos, discursos e forças que emanam da
religiosidade popular de origem ibérica, nativa dos indígenas e africanos, mesclada com o
fundamentalismo dos televangelistas norte-americanos. Em suma, os pentecostais de classes
populares e médias, passaram a historicizar a idéia do milênio, sob o suporte ideológico da
“teologia da prosperidade”8.

Por outro lado, os modelos teóricos empregados por alguns analistas com ênfase na libertação,
que consideravam o pentecostalismo uma religiosidade escapista e um mero ópio do povo,
perderam popularidade e hegemonia. Tal como o capitalismo, que procurou se alterar depois
do advento da crítica marxista e da implantação do regime comunista em algumas partes do
mundo, o pentecostalismo também foi forçado a abandonar a postura contracultura e a
caminhar em direção a uma religiosidade acomodada em uma sociedade dominada pelo
mercado neoliberal. Foi nesse locus que surgiu o neopentecostalismo, nome dado a uma série
de manifestações religiosas, mais ou menos em processo de distanciamento daquele padrão
original disseminado, a partir de 1906, dos Estados Unidos para o mundo todo.9

7 Vittorio Lanternari (1974:337,338), depois de exaustivamente analisar movimentos religiosos nativistas na África,
Melanésia, Polinésia, Ásia e América, terminou seu livro saudando o caráter inovador, antitradicionalista, anticonservador
e voltado para a ruptura da sociedade colonial dos movimentos proféticos, messiânicos, milenaristas e de salvação dos
“povos oprimidos”. Esses movimentos, segundo o seu ponto de vista, “visam pois o futuro e a regeneração do mundo”.
Por sua vez, Hobsbawn (1972) também procurou ver nos rebeldes primitivos milenaristas, comportamentos sociais “pré-
políticos”, precursores de movimentos revolucionários posteriores, mais bem elaborados. De maneira semelhantes, Peter
Worsley (1980:318), depois de avaliar com profundidade os “cultos cargos” da Melanésia, observou que: “Assim, o culto
milenarista é típico das fases primitivas da organização política dos camponeses” e que tais cultos unem as pessoas, dando
a elas um projeto coerente pelo qual devem lutar, isto é, por um futuro que será uma inversão do presente.
8 Damos o nome de “teologia da prosperidade” a um conjunto de idéias formuladas nos Estados Unidos, popularizada pelos
televangelistas e por protestantes sul-coreanos, a qual valoriza e considera o consumo de bens e serviços, típicos da
sociedade de consumo, como sinais visíveis de que o fiel convive com Deus.
9 Neste texto não pretendemos traçar um perfil histórico do pentecostalismo. Porém, para uma melhor localização do leitor
não especializado, registramos que o pentecostalismo é um movimento religioso que eclodiu nos Estados Unidos no início

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Pentecostalismo, “seita” e “igreja”


Uma outra forma de se abordar o pentecostalismo decorre da aplicação da tipologia “seita-
igreja”, modelo analítico desenvolvido por Ernest Troeltsch, que fez dos três grandes tipos de
organização religiosa, “igreja”, “seita” e “misticismo”, o eixo fundamental de sua obra Social
teachings of the christian churches. Para Troeltsch (1931:993,443) a “igreja” é uma
“instituição que foi, como resultado da obra de redenção, dotada de graça e salvação; pode
receber as massas, e ajustar-se ao mundo,” enquanto “seita” é uma instituição formada de
voluntários, “composta de crentes cristãos, rigorosos e explícitos, unidos entre si pelo fato de
todos terem experimentado o novo nascimento”.

Ao longo do tempo essa tipologia tem sido exaustivamente discutida. Jean Séguy (1980:100)
escreveu sobre a sociologia da religião de Troeltsch uma excelente introdução. Entretanto,
R.H.Niebuhr (1992) preferiu empregar o termo “denominações” para estudar os grupos
religiosos norte-americanos e Bryan Wilson (1970:26 ss) tem chamado a atenção para as
dificuldades em se aplicar tal conceito fora das áreas culturalmente dominadas pelo
cristianismo.

Mesmo assim, nos estudos sobre pentecostalismo elaborados no Brasil, desde o final dos anos
60, ainda se usa esse gradiente para mostrar como funciona a religião na sociedade, entendida
por eles como um processo de adaptação das massas rurais num mundo urbano,
experimentado por elas como fonte de hostilidade. Com mais força nos primeiros tempos
reservava-se o termo "seita" para designar um grupo que se afastava da sociedade, e "igreja",
para o movimento inverso de interação social entre o grupo religioso organizado e a sociedade
que o contém.

O primeiro texto acadêmico publicado no Brasil e que se tornou um marco pioneiro foi escrito
por Beatriz Muniz de Souza (1969). Souza focalizou a tensão vivida pelos novos grupos
pentecostais na cidade de São Paulo e se apoiou exatamente no gradiente “seita-igreja” para
descrever a funcionalidade dessa expressão religiosa, num contexto de rápido crescimento da
sociedade urbano-industrial. Devido a esse pioneirismo, o texto de Beatriz M. de Souza

deste século, após dois séculos de avivamentos espirituais e de movimentos de santidade com ênfases nas emoções e na
busca da santidade. As manifestações oficialmente consideradas pentecostais aconteceram na Escola Bíblica Betel, na
cidade de Topeka, Kansas, em 1901. O diretor da escola, Charles Parham, realizou uma série de reuniões de oração com
seus alunos e alguns deles passaram a expressar seus sentimentos em glossolalia, isto é, em “línguas estranhas”. Para
aquele diretor, o “falar em línguas” era a primeira evidência de que a pessoa havia recebido o “batismo com o Espírito
Santo”. Entre os pregadores oriundos dessa escola havia um jovem negro, de origem batista, W.J. Seymour, que em 1906
levou esse novo modo de interpretar a fé cristã para Los Angeles, onde se estabeleceu num antigo templo metodista com o
nome “Igreja Apostólica da Fé”. A 312 Azusa Street se tornou a meca do pentecostalismo, de onde o movimento se
expandiu para todo o País e concomitantemente para todo o mundo onde havia missionários protestantes norte-
americanos. Vindos de Chicago, os suecos Daniel Berg e Gunner Vingren, de origem batista, fundaram em Belém, PA,
(1911), a Igreja Assembléia de Deus e o ítalo-americano, Luigi Francescon, fundou em São Paulo e Santo Antonio da
Platina, a Congregação Cristã no Brasil (1910). Nos anos 50 e 60 surgiriam as primeiras igrejas pentecostais fundadas por
líderes brasileiros, entre elas a Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo” (1956) e Igreja Pentecostal “Deus é Amor”
(1961). Julgamos que os motivos que favoreceram o crescimento do pentecostalismo em todo o mundo cristão foram, entre
outros: a) crescimento da indiferença religiosa entre os cristãos; b) mudanças sociais rápidas que levaram as pessoas a
perda da identidade; c) crescimento da insensibilidade das pessoas devido as características da vida isolada das grandes
cidades industrializadas; d) aumento dos problemas sociais ligados à falta de assistência médica adequada, de sentido para
a vida e desamparo diante da burocracia da vida moderna; e) medo de se enfrentar o dia de amanhã, angústia e sensação de
que alguma coisa está para acontecer, etc.

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continua, mesmo trinta anos depois de sua elaboração, a ser uma citação obrigatória nos
estudos sobre pentecostalismo no Brasil.

Devemos reconhecer que os conceitos "seita” e “igreja", a despeito de terem sido inicialmente
empregados conforme procedimentos acadêmicos, logo se tornaram conceito-armas, ou
melhor, instrumentos de luta, usados para desmascarar os fenômenos religiosos não
assimiláveis dentro das fronteiras estabelecidas pela ortodoxia das instituições religiosas. Por
esse motivo há estudiosos, entre eles Wilson Gomes (in Antoniazzi, 1994:254), que têm
preservado o termo “seita” muito mais por “razões exclusivamente didáticas”. Possivelmente
devido a sua funcionalidade esses dois conceitos ainda não desapareceram do âmbito da
sociologia da religião.

Uma simples avaliação da linguagem atual pode nos mostrar que ela se encontra eivada de
usos ideológicos e políticos do gradiente “seita-igreja”, quase sempre empregados para
expressar preconceitos e posicionamentos políticos incompatíveis com a análise científica.
Portanto, ao se falar que "as seitas vêm do Norte" e que são movimentos religiosos e políticos
“financiados pela CIA", com a finalidade de “enfraquecer a resistência latino-americana
contra a dominação dos Estados Unidos”, como faz Délcio Monteiro Lima (1985), ou ao se
misturar “seitas” fundamentalistas e pentecostais que “invadiram a América Latina”, tal como
faz Florencio Galindo (1994), contribui-se para aumentar a confusão atual, responsável pela
inoperância do paradigma “seita-igreja”, que se tornou um enorme guarda-chuva impreciso,
de difícil aplicação no estudo do fenômeno pentecostal. Daí o acerto da expressão de Júlio de
Santa Ana (1992:11-34) ao concluir que “ parece-nos claro que não mais é possível afirmar
que ‘seita’ e ‘igreja’ sejam realidades completamente diferentes.”

Recordemos também que, mesmo os próprios pentecostais, empregam tal gradiente para
delimitar internamente seus respectivos espaços no campo religioso, porque, dada a variedade
de grupos, visões de mundo, modelos doutrinários e litúrgicos, mutuamente eles se acusam de
“cismáticos” e “heréticos”. Por exemplo, é muito divulgado pela IURD o texto “seitas e
heresias” de J.Cabral (1994), considerado “teólogo da Igreja Universal”. De modo semelhante,
cada grupo pentecostal procura construir uma identidade que expresse à seu modo, a
fidelidade à ortopráxis da Igreja primitiva com relação ao Espírito Santo, colocando todos os
demais grupos sob a égide de “seita” e “heresia”. Nesse caso, o substantivo se transformou em
adjetivo. Tal situação tornou esse gradiente pouco aplicável à situação da Igreja Universal do
Reino de Deus, Congregação Cristã no Brasil ou até mesmo às testemunhas de Jeová ou aos
mórmons. Esses movimentos são seitas? São igrejas? São populares? Representam
movimentos de contestação ou de acomodação social?

Pentecostalismo e conflito de classes sociais


A visão da sociedade como um campo de batalha foi empregada tanto por Karl Marx como
por Max Weber. Porém o papel conflitivo, desempenhado pela religião no decorrer das lutas
entre os que detêm o capital e os que vendem o seu trabalho, foi assumido como paradigma
por Marx, Engels, Lenin e outros. Como modelo teórico, esse paradigma coloca toda a
realidade social sob o signo da dominação, classificando, conseqüentemente, as classes sociais

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em dois campos opostos: o “rico-dominador” e o “pobre-dominado”. Para os marxistas mais


ortodoxos, a construção de um mundo novo teria de necessariamente passar pela unificação
dos explorados e pela destruição dos que os exploram, bem como da ideologia religiosa que
legitimava tal processo de exploração. Embora não avancemos aqui nessa discussão, não se
pode esquecer a importância de Gramsci, conforme Hugues Portelli (1984) assinala, para uma
compreensão marxista do fenômeno religioso.

A “teologia da libertação”10 ajudou a divulgar entre os cristãos, desde o final dos anos 80,
abordagens do fenômeno religioso a partir da oposição entre "pobres" e "exploradores". Mas o
que teria levado os intelectuais cristãos a reelaborarem o discurso teológico, enfatizando a
"espiritualidade", ao invés da tradicional chave hermenêutica que fazia do "pobre" e do
"excluído", não só o alvo de seu comprometimento, mas também o motivo da manifestação
divina na história? Parece-nos que a retomada de força do capitalismo, sob a bandeira do
neoliberalismo, a desintegração do socialismo como opção de organização política de Estado
e a estratégia do Vaticano, sob a direção de papa João Paulo II, contra a “teologia da
libertação”, desempenharam importantes papéis no reaparecimento de uma “atitude mais
pastoral” por parte dos cristãos.

Sejam, porém quais forem os motivos, de qualquer forma aumentou nos anos 80 e 90 a
descrença na capacidade dos pobres de transformar revolucionariamente o destino da história.
Ironicamente, os poucos pobres que aceitaram a “teologia da libertação”, rapidamente se
entregaram aos delírios da “teologia da prosperidade” ou aos devaneios de uma mística
individualizante, das quais a Renovação Carismática Católica é um dos exemplos mais
claros. Os "pobres" e "excluídos" estavam mais interessados na sociedade de consumo do que
em ocupar um lugar de destaque na vanguarda revolucionária, que “iria mudar a face da
Terra” conforme apregoava o milenarismo marxista.. Algumas das dificuldades que cercam a
forma libertadora de fazer teologia foram estudadas por Jung Mo Sung (1993), que aponta ter
havido no paradigma da “teologia da libertação” anomalias não percebidas por alguns
teólogos, que trabalhavam com os pressupostos dessa escola teológica. Outros comentários
instigantes sobre as “emoções dos pobres” e o “romantismo teológico” de certos setores da
teologia da libertação foram feitos por André Corten (1995) em um texto publicado em
português, recentemente (1996).

Talvez a crescente pentecostalização das comunidades protestantes de classe média,


presbiterianas, metodistas, batistas e outras, e o decisivo despertar dos pentecostais para a luta
política, sinalizem que o pentecostalismo está recusando o papel a ele destinado na análise
acadêmica de ser a religião dos pobres, oprimidos e alienados, portanto, uma recusa da
sociedade e do campo religioso, tal como estão organizados. A recente descoberta da política
por parte dos pentecostais brasileiros, tal como aponta Freston (1992, 1993, 1994), demonstra

10 Para os não habituados à linguagem teológica esclarecemos que “teologia da libertação” foi o nome dado a uma grupo de
reflexões teológicas surgidas na América Latina, a partir de 1969, principalmente após o lançamento de textos do padre
peruano, Gustavo Gutierrez, que tomava como centro de reflexão a dicotomia entre “pobres” e “ricos”. Javé, o Deus dos
judeus e cristãos, era apresentado como uma divindade que fez uma opção preferencial pelos fracos, excluídos e pobres do
Continente. Essa corrente teológica entrou em decadência após a operação inquisidora do Vaticano e o fim do socialismo
real (queda do “muro de Berlin” , etc.), identificado por aqueles teólogos como um exemplo de luta dos pobres contra
todas as injustiças decorrentes do capital concentrado na mão dos capitalistas.

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que a superação desse paradigma, no que ele tinha de mais simplista, tornou possível a
afirmação, embutida no título do texto de Boudewijnse et alli (1991), de que o
pentecostalismo é "algo mais que ópio". Portanto, reduzi-lo somente a uma questão de luta de
classes sociais pode ser uma opção metodológica, empobrecedora da religião dos pobres.

Mesmo assim, não se pode eliminar a pobreza como tema fundamental para o entendimento
da realidade social, inclusive religiosa, do meio urbano e industrial. Essa antinomia “riqueza-
pobreza” continua a prestar relevantes serviços para a análise do pentecostalismo como forma
de se conviver ou de se combater a pobreza, como têm demonstrado os trabalhos de Cecília
Loreto Mariz (1988, 1994, 1995 e 1996) e de Maria das Dores Campos Machado (1996).
Mariz (1996:175) enfatiza que “a extrema privação material gera uma sensação de
‘powerlessness’, baixa estima, de exclusão, de insegurança, medo, fatalismo e anomia” e que
“numa situação de extrema pobreza, de marginalização cultural e material, por vezes agravada
pelo racismo, o senso de dignidade pessoal fica muito abalado” e que “problemas como o
alcoolismo, desemprego, abandono pelo companheiro reforçam esse sentimento de
autodepreciação”. Para ela, “as diferentes religiões oferecem experiências que ajudam a
superar esses sentimentos e fortalecer a dignidade pessoal”, portanto elas ajudam a
“restabelecer a dignidade do pobre de diferentes maneiras.”

Dentro desse contexto, Mariz também analisa a questão da melhoria na vida material, a
restauração do senso de coerência da vida, por meio da crença na providência de Deus, a
descoberta de uma rede de apoio pessoal e a reorganização da vida familiar, por meio de
redefinições do papel de homem e mulher. Percebe-se que Mariz, embora coloque a pobreza
no centro de análise do pentecostalismo, em momento algum aparece em sua análise a ligação
entre pentecostalismo e alienação dos pobres por intermédio da ideologia religiosa Em outras
palavras, Mariz recusa aceitar que a alienação seja o fator preponderante na relação do
pentecostalismo com a pobreza. De acordo com o seu ponto de vista, o pentecostalismo é
também uma das principais formas de se superarem os efeitos perversos de uma situação
econômico-social insustentável, na qual vivem milhões de brasileiros. Essa posição é
reforçada em seus últimos textos (1995:37-52 e, in Gutierrez & Campos, 1996: 169-187)
quando Mariz chega a denunciar várias formas de se analisar o pentecostalismo como
maneiras de se usar o discurso científico para se expressar preconceitos contra a religiosidade
das camadas mais pobres da população.

Pentecostalismo, magia e sincretismo


As ciências sociais, desde as análises de Frazer (1991), Durkheim (1989), Mauss (1974) e
Evans-Pritchard (1978) têm discutido com muito interesse as relações entre magia e religião.
De uma maneira geral, os maiores expoentes dessas disciplinas aceitaram com tranqüilidade a
existência de uma oposição entre religião e magia. Para Levy-Brühl a magia seria uma
conseqüência de uma mentalidade pré-lógica, primitiva ou selvagem. Durkheim (1989:74)
encarava a magia como um conjunto de procedimentos que persegue “fins técnicos e
utilitários” e, para atingir seus objetivos, invoca forças, inclusive demoníacas, para fazer delas
“instrumento de ação mágica”. Para Durkheim, a magia inverte os rituais da religião, se
opondo a ela em algum ponto, estabelecendo assim oposição entre mágicos e sacerdotes. Por

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isso, mágicos não formam igrejas, no máximo associações, sindicatos de mágicos, para defesa
dos interesses em jogo.

Porém, há uma corrente antropológica, da qual Maurice Godelier faz parte, que se opõe à
distinção entre magia e religião. Godelier (in Carvalho, 1981:153) afirma que não há uma
diferença essencial entre ambos os pólos, pois, “a religião existe espontaneamente sob uma
forma teórica (representação-explicação do mundo) e sob uma forma prática (ação mágica e
ritual sobre o real)..”

Nos textos de James Frazer (1991:34), a magia é encarada como um conhecimento bastardo
ou ainda inferior em relação à ciência, uma falsa associação de idéias e sentimentos, embora a
magia já fosse o início da crença numa “natureza coordenada e uniforme”. O ser humano,
segundo Frazer, antes de ser animista e religioso, foi mágico, idéia essa recusada por Marcel
Mauss e Hubert, que advogavam ter existido, antes da religião e magia, um período de
confusão entre elas. Mauss (1974) contribui para a nossa discussão aqui exposta ao considerar
as três leis da magia: contigüidade, semelhança e oposição. Isto é, a simultaneidade,
identidade e oposição, são características que consideramos relacionadas com alguns rituais
do neopentecostalismo, o que será mais adiante considerado.

Também não se pode nessa discussão deixar de lado as reflexões de Max Weber (1991:294)
ao assinalar que a religião se caracteriza pela submissão e serviços prestados à divindade,
enquanto a magia é uma “coerção de Deus”, na medida em que constrange os poderes da
divindade a servirem aos fins utilitários de sua clientela. Jérôme-Antoine Rony (1957:111)
considera o egocentrismo e o exercício da vontade humana a qualquer custo, algumas das
fontes originárias da magia. Para Weber, a eliminação da mágica é uma conseqüência natural
do processo de racionalização do mundo, enquanto a magia resultaria da existência da
incerteza, condição segundo ele, mais própria dos camponeses. Daí, a tendência camponesa
para a prática da magia ou de uma religião com maior presença de traços mágicos. É claro que
a vida urbana de nossa época, experimentada em situações de pobreza e violência, provocou
nos seres humanos incertezas ainda maiores do que as vividas pelo homem rural. Haveria,
então, uma permanente e maniqueísta oposição entre magia e religião? Weber reconhece que
“na realidade, a oposição é inteiramente fluída” e que, mesmo no cristianismo, o conceito de
sacerdote “inclui precisamente a qualificação mágica”, embora, para ele, a racionalização da
prática religiosa leve a um crescente enfraquecimento do espírito mágico diante do religioso.

Pensamos que os ritos, práticas e visão de mundo, cultivadas na Igreja Universal, nos sugerem
que as relações entre magia e religião são às vezes muito mais de continuidade e
complementaridade do que de exclusão. Possivelmente, nessa Igreja, a visibilidade do mágico
e a tensão existente entre ambos os pólos sejam mais perceptíveis porque o seu público alvo é
formado de pessoas em situações-limites. Tais indivíduos experimentam intensamente as
incertezas da vida urbana, nos quadros de uma economia capitalista em processo de
remodelação, aliado a um processo de desarticulação dos modos de vida provocado pelo
avanço de um estilo "pós-moderno". Isso tudo cria oportunidade para o emprego de rituais que
reduzem as incertezas e restauram nos indivíduos a crença de que o mundo pode deixar de ser
não-manipulável e arbitrário.

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Nesse sentido não podemos concordar com Peter Fry e Howe (1975:81) que atribuíram apenas
à umbanda uma certa perspectiva mágica nessa busca de coerência e sentido para a vida no
meio urbano, isentando-se o pentecostalismo dessa perspectiva mágica. Consideramos a
magia como uma das possíveis chaves de interpretação do fenômeno neopentecostal, desde
que não se atribua ao termo “magia” um sentido negativo ou depreciativo. Por isso, não
compartilhamos do medo de afirmar que algumas práticas iurdianas podem ser interpretadas
como ações mágicas, particularmente pelos que aderem a essa Igreja e ainda mantêm a visão
de mundo mágica das religiões populares, de origem cristã ou afro-brasileira.

Aliás, a mistura entre práticas cristãs e mágicas já ocorreu entre as populações camponesas da
Europa, por ocasião da transformação do cristianismo em religião de Estado, no Século IV, e,
mesmo depois da Reforma protestante do Século XVI, conforme demonstra Keith Thomas
(1991:55) ao apontar para a resistência e vitalidade da perspectiva mágica nos séculos
posteriores à Reforma. Também, nesse aspecto discordamos de Mariz (1995:43) quando
coloca no rol dos “preconceitos racionalistas” a afirmação de que o mágico faz parte do
repertório proposto pela Igreja Universal. Tais preconceitos podem existir somente se
considerarmos a magia uma mera depravação da religião. Conseqüentemente, não vemos
demérito algum no fato de pessoas e instituições sociais terem experiências de vida situadas
na fronteira entre a magia e religião.

Há, porém, uma nostalgia do mágico dentro da religiosidade cristã popular, conforme escreve
Luis Maldonado (1975), na qual podemos incluir o neopentecostalismo. Isto é para nós mais
um motivo para desconfiarmos da inteira aplicabilidade dos paradigmas, que opõem magia e
religião no âmbito do cristianismo protestante. Mas, certamente a sobrevivência desses
elementos mágicos distancia, na visão de muitos analistas, o neopentecostalismo do
protestantismo histórico. Segundo alguns deles, por exemplo, Reginaldo Prandi (1991:188), o
protestantismo histórico teria um compromisso natural com o processo de “desmagicização”
do mundo moderno, o que faria da Igreja Universal, a propagadora de uma mensagem
religiosa “falsificadora” do protestantismo histórico, logo “anti-protestante”.

A interpenetração entre os pólos “religião” e “magia” foi também observada por Evans-
Pritchard (1978:257), no decorrer dos anos 20 entre os azande. Esse povo criou associações
para a prática da magia em grupo, com características semelhantes as de uma “igreja”, tais
como "organização, liderança, graus, taxas, ritos de iniciação, vocabulário e saudações
esotéricas". O surgimento desses agrupamentos mágicos teria sido causado pela interdição da
prática da magia determinada pelos brancos conquistadores daquela região. Em reação, os
nativos não somente passaram à prática secreta da magia, como também copiaram os modelos
organizacionais e administrativos trazidos pelos europeus. Para aquele povo, a distância entre
"magia" e "religião" foi abrandada, colocando-se, por isso mesmo a pergunta: Há, realmente,
um abismo entre o “mágico” e o “sacerdote”, no decorrer de seus respectivos relacionamentos
com as forças transcendentais? De que maneira esses dois elementos coexistem na prática da
Igreja Universal ?

A oposição entre “mágicos” e “sacerdotes” também aparece na reinterpretação da teoria


weberiana da religião feita por Pierre Bourdieu (1982:79). Mas, seria essa situação

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permanente ou transitória? Mágicos podem construir comunidades e profetas e sacerdotes não


podem lançar mão de uma visão mágica da vida e de seus rituais para atrair, congregar e
atender as necessidades de seus “clientes”, perdão, de seus “fiéis”? Uma clientela da magia
não pode evoluir na direção de práticas comunitárias, tipo igreja, sistematizando visões de
mundo, dando origem a doutrinas, gerando até mesmo um tipo de clero especialista no
manuseio do ritual apropriado? Assim, de semelhante modo, clérigos não podem também
praticar atos mágicos para aumentar a capacidade de atração de seu templo?

Sugerimos aqui que a Igreja Universal estimula um tipo de religiosidade, que facilita o
cruzamento, em determinados momentos, das fronteiras flexíveis da religião com a magia.
Talvez, a opção pela satisfação das necessidades e desejos dos que procuram seus templos
provoque o surgimento de uma atividade pastoral-mágica, possivelmente mais escamoteada
em outra formas de pentecostalismo. Por causa dessa ênfase, a Igreja Universal incentiva que
os pastores descubram em que as pessoas crêem, para, a partir dessa crença, realizar um
trabalho pedagógico de aproximação. Nesse sentido, a demanda sobre determinados bens
simbólicos, no campo religioso, também pode provocar homogeneidades, facilmente
interpretadas como sincretismo religioso.

Daí, o emprego nos templos iurdianos da "água abençoada", "óleo ungido", "manto
consagrado", "mesa branca energizada", "rosa ungida", "areia do deserto do Sinai" e outros
elementos, aos quais se atribuem eficácia mágica. Os fiéis crêem que tais objetos têm a
capacidade de proteger a casa, o indivíduo e as relações sociais de todos aqueles males
atribuídos e personalizados na figura de satanás. Trabalhamos com a idéia de que esses rituais
e procedimentos estão contidos numa relação de continuidade com o mundo mágico das
religiões afro-brasileiras e do catolicismo popular. Tais observações demonstram as
dificuldades, que existem para se manter o paradigma da separação entre ambas as esferas e
agentes, quando se trata do neopentecostalismo iurdiano.

As mesmas dificuldades conceituais são enfrentadas com o uso do termo “sincretismo”,


palavra condenada e evitada por vários pesquisadores. Porém, consideramos esse termo útil e
de difícil substituição e que o seu uso mais ajuda do que atrapalha, principalmente quando se
trata de comparar fenômenos religiosos em diferentes estágios de integração e aculturamento.
O neopentecostalismo corresponde à fase mais recente de integração do pentecostalismo à
sociedade latino-americana e ao sistema de mercado.

Plutarco atribuía aos cretenses uma desunião somente superável quando surgia um inimigo
comum a todos eles, e desde então, ser sincretista é agir como os cretenses. Roger Bastide
(1970:65-108) empregou o termo “bricolage” para designar o fenômeno da aculturação de
religiões africanas no Brasil. Leonardo Boff (1981:146,149) reuniu várias maneiras de se
conceituar “sincretismo”, afirmando ser o sincretismo uma “adição”, “acomodação”,
“mistura”, “concordismo”, “tradução” ou uma “refundição” das formas de se viver uma fé
religiosa. Para Boff, o “cristianismo é um grandioso sincretismo”, propondo assim uma
aplicação positiva desse conceito, dentro de um processo contínuo e legítimo de
enriquecimento de uma determinada religião. Porém, como todo discurso teológico, o de Boff

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não foge à regra e também trata valorativamente a questão ao analisar os “verdadeiros” e os


“falsos” sincretismos.

Renato Ortiz (1980:100) escreveu que o sincretismo é uma forma de “unir pedaços das
histórias místicas de duas tradições diferentes em um todo, que permanece ordenado por um
mesmo sistema”. A Igreja Universal, mais do que outros tipos de pentecostalismo, por causa
de seus rituais, linguagem e alguns lances de sua visão de mundo, tem sido tratada por alguns
analistas como uma modalidade de “protestantismo sincrético”. Contudo, como sustentar um
critério de separação do “puro” e “impuro” sem uma correspondente relação de poder?

A coexistência no protestantismo pentecostal entre “magia” e “religião” levou José


Bittencourt (in Beozzo,1993:107-119) a considerar o pentecostalismo “autônomo” uma forma
de protestantismo sincrético. Antônio Mendonça (1994:158) também chama a atenção para as
dificuldades em se separar magia e religião, nos grupos pentecostais praticantes da cura
divina. Mendonça considera tais agrupamentos “igrejas mágicas”, mantendo inclusive as
aspas ao se referir a elas como “igrejas”, atitude esta que levou Ricardo Mariano (1995) a
sugerir que tal posição de Mendonça fosse resultante de uma vinculação muito forte com o
protestantismo histórico.

O emprego desse par antinômico na análise da religiosidade neopentecostal pode ser


favorecida através das observações de antropólogos culturais como Roberto Da Matta (1979)
e Gilberto Velho (1994) de que a cultura brasileira desenvolveu a capacidade de unir
realidades separadas e inventar relações, criando pontes entre espaços sociais distantes. Como
conseqüência de tal processo, as fronteiras religiosas perdem a nitidez, o que pode ser
percebido em afirmações como esta: “toda religião é boa”, à qual a IURD acrescenta o
seguinte: “desde que apresentem bons resultados”.

Pentecostalismo, modernidade e pós-modernidade


Os estudiosos têm vinculado o protestantismo ao processo de modernização do mundo
ocidental. Então, que transformações a religião experimenta se aceitarmos a substituição do
período da modernização pelo advento de uma era de pós-modernização? Há alguma relação
entre o surgimento do neopentecostalismo e a pós-modernidade?11

Ao se discutir o neopentecostalismo nesse contexto é preciso um certo cuidado metodológico.


Porque há muitos que tentam efetuar tal análise sem perceber a existência de uma
controvertida discussão sobre a oposição “modernidade” e “pós-modernidade”. Anthony
Giddens (1991), por exemplo, prefere contrapor à modernidade, um estilo de vida iniciado na
Europa a partir do Século XVII, e que se tornou mais ou menos mundial em sua influência, o
conceito de alta-modernidade, que para ele designa um período de radicalização e de
universalização da modernidade . Para Giddens, a propalada pós-modernidade ainda não

11 Sobre as relações entre religiosidades populares e o projeto de modernização capitalista da América Latina veja Cristian
Parker (1993). Esse autor defende a idéia de que o processo de urbano-industrialização capitalista provocou na América
Latina o surgimento de um tipo particular de secularização que, ao invés de destruir o tecido religioso do Continente,
construiu uma sociedade pluralista, na qual as religiosidades populares, entre elas o pentecostalismo, reconstroem as
relações sociais dentro de novos moldes, obviamente, mais adaptados ao novo contexto economico-social.

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chegou, mas tende a se tornar hegemônica na cultura mundial, principalmente naquela


veiculada pela mídia, um estilo de vida que era, até então, um fenômeno localizado. A sua
chegada nas várias regiões do mundo vai provocando o "desencaixe dos sistemas sociais" e
uma posterior reordenação das relações sociais, influenciadas pela entrada contínua de novos
conhecimentos. Nessa mesma linha Featherstone (1995) prefere falar em “desencaixe” e
“desmanche” de culturas tradicionais diante do processo de globalização

Em ambos os caos o emprego do conceito de pós-modernidade pressupõe uma perspectiva de


descontinuidade e de rompimento das fronteiras anteriormente delimitadas. Assim, o ser
humano estaria vivendo um processo social de atomização, tornando-se mais individualista,
desprovido de historicidade, voltando-se para si mesmo, na busca de referências para o viver
diário. Nesse contexto, valoriza-se o lúdico, enfatiza-se o irracionalismo, e descrê-se da
modernidade e de tudo que a caracteriza. Para o indivíduo, pouco lhe interessa o passado e o
futuro, pois a sua ênfase privilegia o presente.

Segundo esse paradigma, a pós-modernidade teria trazido profundas implicações para a


religiosidade tradicional, inclusive para o pentecostalismo, como discutem Vitor Westhelle e
Paulo Siepierski (in Maraschin:1993). Seria a partir da irrupção da pós-modernidade que se
poderiam explicar as diferenças existentes entre o pentecostalismo clássico e o
neopentecostalismo. A Igreja Universal se prestaria, nesse sentido, para ilustrar bem como se
dá a sobrevivência da religião no interior de uma cultura pós-moderna, e até como se pode
tirar proveito dessa nova realidade cultural, por intermédio da prática de um pastoral
adaptativa, tal como observa Paulo F.C. de Andrade (1993:99-113). Através desse paradigma,
pode-se explicar também o surgimento de novos movimentos contestadores das instituições
religiosas tradicionais, de seus rituais e processos de institucionalização.

A pós-modernidade tem sido apresentada como uma das causas do surgimento de novos
movimentos religiosos no Ocidente. G.K. Nelson (1987) relaciona a penetração de visões de
mundo entre nós, vindas do Oriente, à necessidade que as pessoas têm de reordenar a vida
numa sociedade materialista e secularizada. Nessa mesma linha podemos analisar o
neopentecostalismo, enfocando a passagem de um cenário cultural ocidental, racionalista e
científico, no qual predominou a influência de Newton-Descartes na produção de uma visão
analítica e desagregadora da vida, para uma visão mais integralizadora, à qual se atribui a
qualidade de ser "holística”. O advento dessas novas opções de misticismo e de religiosidade,
em substituição às ênfases na ação social, acabou por beneficiar também os novos
movimentos religiosos de origem cristã, entre eles os movimentos carismático na Igreja
Católica e o neopentecostalismo protestante.

Possivelmente, as principais características dessas transformações culturais e religiosas


venham a lançar algumas luzes sobre o neopentecostalismo da Igreja Universal, entre eles:

■ Valorização da energia e da potencialidade do homem individual, interligado com as forças


vivas do cosmo e do universo. Na Igreja Universal, a entrega da vida ao poder do Espírito
Santo é vista como uma reintegração do ser humano no próprio centro da natureza, pois
“quem procura a Igreja Universal procura o Espírito da criação”, repete a propaganda iurdiana.

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■ Globalização do sentimento religioso, com predomínio dos padrões universais sobre os


particulares. A IURD é uma igreja que aspira à universalização de seu discurso. O termo
“universal” em seu nome não é, portanto, um mero acaso. Muito pelo contrário, apresenta
uma genuína “vocação universal”, porém fortemente assentada sobre tradições particulares, o
que acaba por provocar contradições e tensões nem sempre resolvidas nessa passagem do
particular para o universal.

■ Localização do transcendente dentro das pessoas, com o retorno da idéia de que o sagrado
não pode ser atingido exclusivamente por meio das mediações religiosas tradicionais, mas
também através de formas extra-sensoriais e de recursos como meditação, concentração,
exercícios físicos, florais de Bach, pirâmides e outros procedimentos mais. Quanto à
existência de fragmentos divinos no interior do ser humano, a IURD assimilou essa
característica da nova situação cultural, mas desenvolveu suas próprias técnicas de provocar
êxtases e despertar nas pessoas um sentimento de busca interior da divindade.

■ Rompimento do monopólio ocidental e cristão sobre as expressões religiosas, trazendo


profundas implicações inclusive para o ecumenismo. Enfraquece-se a rígida separação entre
"fé cristã" e "paganismo", implicando, segundo alguns, em uma "hinduinização",
"maometanização" ou "budinização" do cristianismo. No caso da Igreja Universal, tem havido
uma certa “umbandinização” de sua visão de mundo e discurso.

É possível estabelecer alguma ligação entre a Igreja Universal do Reino de Deus e a New Age
no contexto da mediação da cultura pós-moderna? É claro que essa resposta é imediatamente
negativa no discurso oficial dessa Igreja. Basta um rápido exame em escritos de J.Cabral
(1994), teólogo da Igreja Universal, para verificarmos o quanto essa Igreja recusa tal hipótese.
Todavia, por trás desse discurso apologético há práticas e teorias iurdianas, que refletem
preocupações típicas da pós-modernidade da New Age. Por exemplo, a filosofia da Nova Era
ressalta alguns pontos também presentes nas pregações da Igreja Universal, vejamos alguns:

■ A vida material é uma manifestação de um Espírito eterno, uma energia que interliga todos
e tudo sob a sua influência e se manifesta por meio de objetos. O locus privilegiado para a
morada dessa força é o interior de cada um.

■ Os seres humanos são de uma dupla natureza, material e espiritual. Os males vêem de fora e
produzem um EU inferior, por isso eles devem ser exorcizados pela força do EU superior -
Jesus Cristo, representado fisicamente pelo Pastor-exorcista.

■ O mundo se encaminha para um novo período no qual as contradições serão superadas. Para
uns é a “nova era”, para a Igreja Universal, o “reino de Deus”.

■ A ascensão social e a prosperidade está intrinsecamente ligada à espiritualidade. Leonardo


Orr e Sondra Ray (1983: xiv) escreveram que: “toda riqueza humana é criada pela mente
humana, e ser rico é função da iluminação (...) o mundo material é o mundo de Deus (...)
quanto mais espiritual você se torna, mas prosperidade você merece (...) Deus é ilimitado. As
compras podem ser ilimitadas”. O ponto de ligação entre a prosperidade e a vida espiritual se
dá por intermédio da manutenção de um pensamento positivo. F. Jameson (1985) observou

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que a New Age é “a lógica cultural do capitalismo tardio”, levando as pessoas a se deliciarem
com o consumo, como se as mercadorias tivessem sobre elas uma ação psicotrópica.

■ O sofrimento é estranho à lógica da vida e deve ser evitado, até porque não há valor
pedagógico algum na doença, no mal-estar, na pobreza e na dor.

É claro que a aproximação da Igreja Universal com a New Age é uma hipótese sedutora e
ressalta os aspectos pós-modernos dessa Igreja, mas o simples anunciar dela pode criar
arrepios no principal teólogo da IURD (pastor J.Cabral), que tem escrito vários textos para
mostrar exatamente o caráter demoníaco da New Age. Por outro lado, há necessidade de
melhores pesquisas sobre esse assunto, principalmente porque tanto a IURD como a New Age
se situam dentro de um clima cultural de respostas a desafios históricos, e da existência de
uma forte demanda por fórmulas comuns de enorme sucesso, tais como cura interior e
exterior, prosperidade e sentido para a vida. Nesse caso, talvez haja mais coincidência entre
elas do que conexões em termos de causa e efeito.

Nesta pesquisa, procuramos aplicar um paradigma, que no Brasil foi usado pela primeira vez
por Duglas Teixeira Monteiro (1977 e 1979), no estudo da religiosidade popular, conforme se
apresentava em concentrações de cura e milagres, pequenos templos e alguns santuários
pertencentes a um catolicismo sectário. Sem dúvida, como veremos adiante, Monteiro partiu
de teorias desenvolvidas por Peter Berger e Thomas Luckmann (1966 e 1967).

2. As tipologias e reconstruções do pentecostalismo

Que tipologias e reconstruções são empregadas nas análises do pentecostalismo? A esta altura,
é possível percebermos que a variedade de paradigmas e metodologias empregados nas
abordagens do pentecostalismo provocou um enorme emaranhado de termos e teorias. É
possível que a luta de paradigmas tenha contribuído para a criação de um labirinto conceptual,
tipológico, de termos e modelos teóricos, nem sempre conciliáveis, empregados na construção
do pentecostalismo como objeto de pesquisa. Para muitos, a confusão já é percebida logo no
primeiro momento de estudo, que é a designação e a constituição do objeto. Pois, para se falar
desse fenômeno, empregam-se constantemente termos como “neopentecostalismo”,
“pentecostalismo autônomo”, “pentecostalismo da cura divina”, “evangélicos carismáticos” e
outros mais. A estes a mídia acrescenta outros conceitos e termos que, eivados de
preconceitos, espalham ainda mais confusão ao discurso do senso comum.

Por isso precisamos especificar o que temos em mente quando juntamos o prefixo neo ao
termo pentecostalismo, supostamente claro para todos. Entretanto, até mesmo essa palavra,
usada para designar um movimento religioso surgido nos Estados Unidos, no início deste
século, que prega o batismo com o Espírito Santo, evidenciado por meio de reações físicas,
preferencialmente pela glossolalia ou o balbuciar de sons inarticulados, precisa de, a todos os
momentos, ser melhor explicitada. Desde 1906, o movimento pentecostal se irradiou, dando
origem, em várias partes do mundo, a “grupos pentecostais”, uns autóctones, outros
resultantes da chegada de missionários norte-americanos ou europeus. Portanto, seguindo o

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critério histórico, “pentecostais” são todos aqueles que, vindos de classes sociais mais baixas,
aderiram aos grupos religiosos, que fizeram dessa experiência mística, o seu caráter distintivo.

Nos Estados Unidos, há uma outra expressão - “movimento carismático”- para caracterizar
grupos semelhantes aos pentecostais. Essa expressão, às vezes, é empregada indistintamente
para designar todos aqueles que, mesmo não fazendo parte das denominações pentecostais e
até recusando o aspecto distintivo da glossolalia, se consideram ligados às experiências com o
Espírito Santo. Mas tais pessoas são oriundas de camadas mais altas do estrato social,
geralmente classes médias, e eclesiasticamente ainda mantêm alguma vinculação com as
denominações históricas daquele país. Muitos desses grupos desenvolveram teologias
próprias, métodos peculiares de evangelização e de organização, assim como padrões flexíveis
e entusiásticos de liturgias, provocados, talvez, pela diversidade de origens dos grupos que
aderiram a essa forma de ser pentecostal. David B. Barrett (in Burgess et alii, 1995:810-830)
ao trabalhar estatisticamente tais movimentos, criou vários neologismos e categorias
estatísticas como “pré-pentecostais”, “quase-pentecostais”, “pentecostais-nativos”, “pós-
pentecostais”, “pós-carismáticos”, “cripto-pentecostais”, “pentecostais-radiofônicos”,
“isolated-radio-pentecostals”, “carismáticos do rádio e da televisão”, “carismáticos
independentes”.12

Naquele país, atribui-se o termo “neopentecostalismo” a pessoas com mentalidade


pentecostal, mas que se consideram adeptas de uma “renovação espiritual” dentro dos
próprios quadros denominacionais a que pertencem. De uma maneira geral, esse
“neopentecostalismo” enfatiza o exorcismo, cura divina, dons espirituais, continuidade da
revelação divina através de líderes carismáticos, e uma parte dele aceita a “teologia da
prosperidade”. Esse “neopentecostalismo” ganhou força no mundo religioso norte-americano
nos anos 70, período em que também começou a penetrar na América Latina, provocando o
surgimento de novas igrejas, seitas e denominações, assim como cisões nas principais
denominações protestantes brasileiras, entre elas, Metodista, Batista, Presbiteriana,
Congregacional e outras.

Mas, mesmo o observador atento corre o risco, ao cruzar as fronteiras teológicas e


eclesiológicas dos “pentecostais clássicos”, “carismáticos” e “neopentecostais”, de se perder
por causa da multiplicidade de “mentalidades” e de “práticas pentecostais”. Assim, o
panorama, que já era confuso, se tornou ainda mais complicado com o surgimento, nos anos
60, do “movimento de renovação carismática” na Igreja Católica. As siglas e nomes fazem
parte de uma listagem interminável, alimentadas por novas cisões, cuja maioria se dá mais por

12 Segundo os cálculos estatísticos de Barrett, talvez os mais amplos já publicados, os pentecostais poderiam ser assim
quantificados segundo sua filiação, em todo o mundo, em 1988: Pentecostalismo de “primeira onda”, 176 milhões;
Pentecostalismo de “segunda onda”, (movimento carismático) 123 milhões; Pentecostalismo de “terceira onda”
(movimento de renovação espiritual dentro das igrejas históricas), 28 milhões. O total de “pentecostais” em todo o mundo,
naquele ano, incluindo-se os 27,9 milhões que não pertenceriam a nenhum grupo pentecostal organizado, seria de 360,9
milhões, perfazendo cerca de 21,4% dos cristãos do mundo, arrecadando algo ao redor de 880 bilhões de dólares/ano.
Segundo esse mesmo cálculo, no ano 2000 essa cifra atingiria, respectivamente, 619,3 milhões de fiéis, cerca de 29,1%
dos cristãos, movimentando em doações, aproximadamente 1.550 bilhões de dólares. Contudo as estatísticas, no que se
referem ao pentecostalismo, não são precisas. Há grupos que manipulam os seus números, para mostrar mais o tamanho
desejável de sua Igreja do que a realidade, o que também aponta o verbete “statistics global”, em Stanley M. Burgess and
Gary B. McGee (1995: 810-830)

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questões administrativas e organizacionais do que teológicas, não param de acontecer,


exigindo dos analistas a elaboração de enormes coleções de nomes e tendências
“pentecostais”.

No Brasil, o sub-campo religioso pentecostal pode ser classificado de várias maneiras,


dependendo do critério adotado pelo analista. Assim, encontramos referências a um
“pentecostalismo clássico”, cujos representantes principais são a Igreja Assembléia de Deus e
a Congregação Cristã no Brasil; um pentecostalismo de “segunda onda”, para Paul Freston
(1993:36,ss), “de cura divina” para Mendonça (1989), formado pelas Igrejas “O Brasil para
Cristo”, “Deus é Amor” e “Evangelho Quadrangular”. No extremo da escala, encontramos a
Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Comunidade Sara a
Nossa Terra, Igreja Renascer em Cristo, Igreja Nacional Palavra da Fé e outras, todas
consideradas, no modelo de Freston, pentecostalismo de “terceira onda”, “pentecostalismo
autônomo”, pelo grupo do CEDI, ou “neopentecostalismo”, segundo Mendonça (1994) e
Mariano (1995).

As tipologias empregadas para a classificação do fenômeno religioso no Brasil,


principalmente o pentecostal, tomam por base a data da chegada de seus pregadores ao País ou
a de fundação do movimento. Portanto, são critérios históricos e de antigüidade, o que fica
bem claro na tipologia de Paul Freston, que usa uma analogia física - “ondas” - para se referir
ao início, expansão e reversão desses movimentos religiosos no decorrer do tempo. A
dificuldade do modelo está na difícil separação entre as igrejas e movimentos de “segunda
onda” dos de “terceira onda”. Pois, além da Igreja do Evangelho Quadrangular (Cruzada
Nacional de Evangelização), as igrejas fundadas por Manoel de Melo, Igreja Evangélica
Pentecostal “O Brasil para Cristo”, e David Martins de Miranda, Igreja Pentecostal “Deus é
Amor”, já trazem em si muitas das características desenvolvidas posteriormente pelas igrejas
de “terceira onda”, principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus.

Ao modelo tricotomista de Freston, podemos contrapor os modelos dualistas de tipologias


propostas por Mendonça (in Landim,1990:37-86) e pelo grupo articulado ao redor do CEDI,
no sentido de que o “pentecostalismo clássico” é colocado em oposição a uma situação nova,
que, para Mendonça, parece ser um “pentecostalismo de cura divina” e, para o grupo do
CEDI, segundo Bittencourt (in Beozzo, 1993:107-119) um “pentecostalismo autônomo”.
Freston e Mariano discutem tais classificações e ambos observam que Mendonça considera as
novas igrejas, oriundas desse novo momento de expansão pentecostal, meras “agências de
cura divina”, incapazes de gerar comunidades, dada a existência de uma massa portadora de
interesses utilitários.13

13 Num texto mais recente, Mendonça (1992:51) escreve que o “pentecostalismo da cura divina” mal “resiste à análise mais
rigorosa quanto à sua identidade cristã”. Que características chamaram a atenção de Mendonça? Entre outras, ele cita:
“pelas características empresariais de prestação de serviço” religioso “mediante recompensa pecuniária”, “distanciamento
da Bíblia”, “inexistência de comunidade” e uma prática de “culto” com características de “ajuntamento de interessados na
obtenção imediata dos favores do sagrado”.
Mendonça afirma também que seria preciso rever “o proposto gradiente, igrejas tradicionais/ pentecostalismo-clássico/
pentecostalismo da cura divina ou autônomo”, pois na passagem do clássico para o último teria havido uma “ruptura
essencial”. A partir dessas constatações, o autor propõe uma nova nomenclatura: “empresa mágica” ou “sindicato de
mágicos”. Começamos a pesquisa com esse mesmo sentimento, porém no decorrer da mesma passamos a perceber que as

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Por sua vez, o uso da expressão “pentecostalismo autônomo” também pode gerar equívocos,
caso não seja melhor explicada. Isso porque uma autonomia só se concretiza em relação a
alguma coisa. O “pentecostalismo” da Igreja Universal é “autônomo” em relação a quê?
Logicamente, o modelo só se torna compreensível, se tais movimentos forem considerados
“autônomos” em relação às missões pentecostais estrangeiras, ao controle das denominações
protestantes ou aos pentecostais “clássicos”. Talvez o modelo dualista tenha a vantagem de
melhor facilitar a compreensão, na medida em que contrasta ambos os grupos de fenômenos
ao empregar com maior nitidez os critérios teológicos, históricos e organizacionais,
ressaltando-se, ao mesmo tempo, a origem social dos fiéis.

Em todos os modelos construídos, a Igreja Universal do Reino de Deus, como parece ser
óbvio para todos, é classificada como uma Igreja “neopentecostal”. Preferimos considerá-la
também como um pentecostalismo tardio, cuja especificidade está justamente em adequar a
sua mensagem às necessidades e desejos de um determinado público. Trata-se de uma Igreja
que atua dentro de um quadro de pluralismo religioso, cuja estratégia é localizar nichos de
pessoas insatisfeitas, provocando nelas estímulos diferenciados a fim de atraí-las para novas
experiências religiosas.

A Igreja Universal é um empreendimento religioso ligado ao surgimento de um capitalismo


tardio e a um quadro cultural, em que as ferramentas de marketing desempenham um
importante papel. Por isso, a Igreja Universal não possui um conjunto de produtos a serem
empurrados, de qualquer jeito, para públicos indiferenciados. Muito pelo contrário, ela
procura conhecer as demandas do público, segmenta e escolhe os grupos que deseja satisfazer
com intensidade, oferecendo-lhes produtos diferenciados. Alguns dos cooptados então contam
a sua história, que, num segundo momento, é inserida na propaganda televisiva e passa, por
sua vez, a contribuir no processo de atração de outros, que ainda não tiveram a oportunidade
de receber os benefícios descobertos pelo novo convertido.

A verbalização e a demonstração dessa hipótese principal exigem o emprego de toda uma


terminologia importada, tal como, “mercado”, “marketing”, “campo religioso”, “pluralismo”,
“competição”, “empresa”, termos corriqueiros nas disciplinas como Economia, Administração
de Empresas, Sociologia das Organizações e outras. É claro que a transposição de conceitos,
próprios de uma disciplina para outra, nem sempre é bem vista por todos. Entretanto, os vários
ramos da ciência têm empregado analogias entre diversas classes de fenômenos,
principalmente quando se trata de classificar fenômenos ainda não devidamente agrupados.
Por causa disso, não há ciência que dispense a contribuição e o apoio de outras formas de
classificação no estabelecimento de suas próprias maneiras de se analisar, como observou
Pierre Duhen (in Bourdieu,1975:284). O emprego de termos oriundos de outras áreas do

continuidades do neopentecostalismo com o “pentecostalismo clássico” e com o protestantismo, são maiores do que as
rupturas, apesar de todo o sincretismo com mentalidades de cultos afro-brasileiros. Por outro lado, a afirmação da
“inexistência de comunidade” talvez tenha sido mais a percepção por Mendonça e Duglas T.Monteiro (1977) de um
momento histórico dos grandes espetáculos públicos de cura e exorcismo. Isto porque, no dia a dia, a IURD está
construindo pequenas, embora segmentadas comunidades de adoração e compartilhamento. Além do mais, acreditamos
que o emprego de “modernos sistemas de administração e ‘marketing’ não são suficientes para descaracterizar a Igreja
Universal como uma Igreja cristã. Portanto, considerando a época da elaboração do artigo de Mendonça (1992:49-60) e os
dias de hoje, certamente o próprio autor há de convir que os pentecostais estão mudando rapidamente.

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conhecimento exigem que se ofereçam pelo menos, algumas explicações do sentido atribuído
aos termos no novo contexto de discurso. É o que fazemos a seguir.

Por mercado, entendemos aquele espaço social no qual produtores e consumidores se


encontram e, por meio da comunicação, efetuam as trocas de mercadorias e dinheiro. O que
caracteriza um determinado mercado são as ações dos agentes, seus interesses e necessidades
e o tipo de mercadorias nele trocadas. Como já afirmava W.S. Jevons (apud FGV, 1987:745),
“mercadoria é qualquer objeto, substância, ação ou serviço que possa proporcionar prazer e
afastar a dor.” Podemos então considerar a ação religiosa da Igreja Universal um produto
cultural por excelência, uma mercadoria? Na lógica da produção e circulação do mercado
capitalista tudo tende a se transformar em mercadoria. Porém, como ligar o nível dos preços
com os custos de produção de um produto religioso?

Empregamos aqui o conceito de “mercado de bens simbólicos”, desenvolvido por Pierre


Bourdieu, e, encaramos os “bens religiosos”, como salvação, cura, libertação das culpas,
sentido para a vida e outros mais, como elementos “produzidos” graças à instrumentalidade de
pastores colocados à disposição de um laicato que, convocado por eles, se mostra disposto a
adquirir tais “produtos”. A escassez é grande, porém a IURD descobriu formas peculiares de
atender a demanda por seus produtos. Nesse aspecto, revelou-se a sagacidade de sua liderança,
que percebeu a existência de um desequilíbrio entre “produção” e “consumo” de “bens
religiosos” e que as entidades tradicionais de atendimento da demanda não mais estavam
dando conta dessa situação de privação. Uma vez descoberto o que uma massa desejava por
meio de seus vários segmentos, o passo seguinte foi o de procurar oferecer às pessoas o que
elas estavam ansiosas por adquirir.

No início, Edir Macedo e seus companheiros começaram a se apropriar de coisas desprezíveis


no mercado religioso e a transformá-las em produtos desejáveis, auferindo com isso um
capital simbólico, que foi crescendo como uma bola de neve. O êxito inicial foi, portanto,
determinante no desencadeamento do processo de acumulação de capital. Assim, graças ao
êxito inicial em satisfazer os desejos de um significativo número de indivíduos, é que o
empreendimento foi se tornando viável. Porém, ao contrário de outros empreendedores,
Macedo foi transferindo para a nova “empresa” religiosa os rendimentos do capital simbólico
adquirido, e, parte desse capital, se transformou em recursos financeiros aplicados, primeiro
em imóveis, depois, em estações de rádio e de televisão.

A estratégia de aquisição de veículos de comunicação de massa começou a ser praticada a


partir do sétimo ano de funcionamento da Igreja, quando Macedo passou a aplicar as rendas
auferidas pelo empreendimento na aquisição de uma tecnologia “mediática”, que aumentaria
ainda mais o alcance da propaganda de sua Igreja. O investimento nas emissoras de rádio e de
televisão se tornou mais um elemento no processo de diferenciação da maneira iurdiana de
agir no mercado de bens simbólicos. Esse crescimento afetou as relações de força, não
somente no campo religioso como também no campo das comunicações e da produção de
bens simbólicos. Daí, a reação dos concorrentes religiosos, simbolizada pela AEVB
(Associação Evangélica Brasileira), por exemplo, e da empresa que mantém, desde os anos
70, o monopólio da comunicação televisiva no País, a Rede Globo de Televisão.

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Diante disso, temos concluído que a autonomia do “campo religioso” se torna cada vez mais
discutível numa sociedade marcada pela presença controladora do mercado. Isso faz com que
a religião perca o seu dossel, isto é, aquele espaço sacral delimitado, e se torne, ela mesma,
uma peça integrante no jogo de interesses que se situam entre a “oferta” e a “demanda”.
Assumimos, com Berger (1985:149), que o caráter pluralista da sociedade se expressa no
aumento de uma demanda por religiosidade, cuja satisfação, como foi afirmado acima, não
tem sido atendida pelas agências, que tradicionalmente ofereciam sentido à vida.

É exatamente esse vazio que gera a oportunidade para a ação de novos agentes “vendedores”,
verdadeiros empreendedores que vão disputar com outros “empresários simbólicos” um lugar
dentro do “mercado de bens simbólicos”. O clima é de concorrência, porque diversas
instituições e movimentos lutam pelos melhores resultados, sem os quais não se pode ocupar
um lugar honroso nessa sociedade de desiguais. Por isso mesmo, em virtude do empreendedor
inicial não conseguir se legitimar diante de seus pares, ele passa a acumular um capital
religioso próprio, fazendo dos resultados alcançados sua própria fonte de legitimação. Nesse
quadro, a lógica predominante vai se tornando a preferência do “comprador”, na medida que a
demanda convalida a forma de ação desses empreendedores religiosos.

Aqui inserimos a discussão sobre as estratégias de marketing criadas pelo “vendedor”, que, a
nosso ver, se destinam a moldar as decisões de “compra” de “bens religiosos” por parte do
“comprador”. Nesse ponto o círculo se fecha, pois o processo de diferenciação que operou na
demanda provocou, por sua vez, uma diferenciação similar na oferta. Nesse aspecto, o
dinamismo aparentemente autônomo do campo religioso começa a se atrelar ao dinamismo do
mercado, provocando a erosão dos limites tradicionalmente mantidos entre “empresa
comercial” e “empreendimento religioso”.

Por isso o leitor está sendo convidado a participar de uma “invasão” do campo religioso,
tendo como arma os recursos das ciências humanas. No entanto, é bom que se saiba que
muitas imagens preconceituosas que criamos sobre a Igreja Universal possivelmente venham a
ser reformuladas. Porém, os que se posicionam nos extremos quanto a essa Igreja deverão
ficar desconcertados. Porque a IURD, nesta reconstrução que fazemos, não é uma empresa
comercial montada para “ganhar dinheiro”, embora as suas ligações com a lógica do mercado
nos impeçam de a consideremos apenas um grande e singular empreendimento espiritual. Em
outras palavras, a Igreja Universal não é uma “ave de rapina” que se alimenta da pobreza, mas
nem tampouco uma obra-prima de uma ação “desinteressada” do Espírito Santo de Deus no
mundo. É justamente essa simbiose entre “comércio” e “religião”, “templo” e “mercado”,
“evangelização” e “marketing”, que nos estimulou a tentar mostrar como se dá essa passagem
da “religião pela religião” - se é que um dia existiu - para o exercício da religião de um modo
“comercial” e utilitarista.

É certo que o surgimento e a rápida expansão dessa Igreja não aconteceram no vazio; muito
pelo contrário, como analisaremos em um outro capítulo, havia todo um cenário propício para
o seu aparecimento e crescimento. Mas, estaremos falando de “teatro”, “templo” ou de
“mercado”? Tentamos falar dessas três metáforas porque pressupomos que a Igreja Universal
tanto é “teatro” como também é “templo” e “mercado”. São essas características que dão

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eficácia à sua comunicação, o acerto às estratégias de marketing e uma capacidade de


persuasão que, em menos de vinte anos atraiu mais de quatro milhões de adeptos para o seu
reduto.

3. O esforço da pesquisa e as implicações do método

Todos os discursos, inclusive os que pretendem atingir um status científico, surgem de


experiências pessoais e exigem explicações que, se escondidas, podem negar ao leitor
elementos fundamentais para o julgamento do assunto exposto. Em várias pesquisas
empreendidas no Brasil sobre os fenômenos religiosos, temos encontrado um esforço para
pontuar histórica e biograficamente seu discurso acadêmico, apresentando as dificuldades
experimentadas no decorrer dos trabalhos de campo. 14

Às vezes, esses esclarecimentos se tornam enfadonhos para o leitor. Porém eles devolvem o
conhecimento científico ao seu contexto original, isto é, à vida cotidiana e faz do discurso
científico um “artesanato”. É graças a tais desabafos que se recupera o sentido histórico e
humano das pesquisas, fazendo com que elas surjam diante do leitor como procedimentos
involucrados em situações concretas, nas quais seres humanos se motivam e, ao mesmo
tempo, experimentam dificuldades e obstáculos na coleta de dados sobre seus respectivos
objetos de estudo.

Portanto, o avanço do conhecimento sobre determinado objeto nem sempre pode contar com a
boa vontade dos que deveriam ser observados. Muitas vezes, se constroem, ao redor dos
atores, um espaço indevassável, desconfiando-se de todos os estranhos munidos de máquinas
fotográficas, gravadores, filmadoras e até mesmo de bloco de anotações. Como tantos outros
pesquisadores, também enfrentamos tais problemas. Numa ocasião, nos dirigimos ao Rio de
Janeiro, na tentativa de entrevistar alguns integrantes da cúpula iurdiana. Queríamos conhecer
um pouco mais dessa Igreja a partir da visão dos que a dirigem. O ponto de contato seria,
imaginávamos nós, um antigo colega de magistério, hoje o influente pastor iurdiano J. Cabral.
Fomos bem recebido; contudo, muito educadamente, ele nos desencorajou, afirmando:
“Sinto muito por não poder fazer nada quanto ao seu pedido de entrevistas na Igreja
Universal. Estamos proibidos de dar entrevistas ou informações sobre o nosso
trabalho. Essa proibição vem de cima. O bispo Macedo proibiu terminantemente
quaisquer entrevistas e ele tem os seus motivos. Temos recebido muitas pessoas com
solicitações idênticas; todos vêm com a mesma ‘conversa’, prometendo que vai ser um
trabalho ‘neutro’, ‘honesto’, porém, você e todos sabem, não existe neutralidade. Por
exemplo, uma vez recebi em casa uma repórter da Folha de S.Paulo; gastei horas
conversando com ela, e tudo o que saiu publicado não condizia com a realidade. Nós,
na Universal, estamos cansados desse tipo de tratamento. Por isso, infelizmente, não
podemos dar ou autorizar entrevistas. Hoje, até a presença de pesquisadores em nossos

14 Por exemplo, a pesquisadora Mônica do Nascimento Barros (1995), apresentou em sua dissertação de mestrado, uma
descrição, a nosso ver longa demais para os objetivos propostos, das agruras enfrentadas para coletar entrevistas, das
viagens entre Minas Gerais e Rio de Janeiro e muitos outros esforços empreendidos em vão, para tentar entrevistas com
pastores e fiéis da IURD.

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templos, ostensivamente anotando, gravando ou fotografando, poderá ser encarada


como provocação, e não serão bem recebidos pelos obreiros. Não posso garantir como
pessoas nessas circunstâncias serão tratadas.” 15
Alguém poderia imaginar que tais palavras são apenas desabafos de um pastor que,
atormentado entre os trabalhos eclesiásticos, é perturbado pela presença e perguntas de
estranhos em cujas motivações não se pode confiar. O caso, porém, vai mais longe, pois tais
situações são mais comuns do que imaginamos e indicam haver resistências dos fiéis ao
estudo científico de suas respectivas religiões. Durkheim (1989:508) assinala que, por isso
mesmo, “o mundo da vida religiosa e moral ainda continua fechado. A grande maioria dos
homens continua a acreditar que existe aí uma ordem de coisas, nas quais o espírito só pode
penetrar por vias muito especiais”.

Outras dificuldades na análise de nosso tema se referem à passagem do pentecostalismo da


fase da oralidade para um tipo de religião que faz do rádio e da televisão, ao lado da escrita,
suas principais formas de expressão. Essa nova realidade exige que o pesquisador desenvolva
maneiras mais apropriadas de coletar os dados, ultrapassando-se assim a antiga e fundamental
prática do exame de documentos escritos. Com isso evitam-se distorções no manuseio de
documentações relativas à comunicação social e análise da história oral, para as quais Antônio
Luís Garcia Gutierres (1984) nos chama a atenção. Porém, tal metodologia cria outras
dificuldades no que se relaciona à história oral e ao registro das representações elaboradas
pelos seguidores da Igreja Universal. Para darmos conta desse desafio, procuramos conhecer e
manipular melhor as técnicas desenvolvidas pelos especialistas em história oral,
especialmente as recomendadas por Paul Thompson (1992), que foram para nós de grande
valia no decorrer dessa fase da pesquisa.

É claro que na aplicação dessa metodologia encontramos outros obstáculos. Um deles, por
exemplo, decorre do fato de que os iurdianos não cultivam a memória, o que é próprio de
todo movimento novo, em rápida expansão. Nos templos dessa Igreja há um constante rodízio
de pastores assim como de “campanhas” e “dias especiais”. Esse ambiente de mobilização
permanente afeta o registro na memória dos eventos religiosos, vividos por um indivíduo. A
passagem de um pastor, ao qual um seguidor se ligou emocional e espiritualmente, é
facilmente apagada pelos feitos de seus sucessores, de modo que, quando um agente pastoral
sai de cena, não se fala mais nele. Na realidade iurdiana vale apenas a dimensão presente. Tal
como na televisão, onde as imagens têm vida curta, as emoções marcantes do dia de hoje são
rapidamente substituídas por outras, continuamente aparentando, às vezes, que a dinâmica dos
fenômenos deve ocultar a perenidade do nômeno.

Ao lado disso, há também a questão de como apresentar, no texto final do relatório de


pesquisa, dados que poderiam complicar a vida do entrevistado dentro da Igreja. Esta também
não é uma discussão nova e nem envolve somente o nosso trabalho. Sérgio Figueiredo Ferreti
(1995:28) as experimentou ao pesquisar os cultos afro-brasileiros da Casa das Minas, na
capital do Maranhão. É difícil o pesquisador escapar do questionamento sobre o seu direito de
interferir na realidade observada. Que limites circunscrevem a observação participante e a

15 Entrevista com o pastor José Vasconcelos Cabral, Diretor-Presidente da Gráfica Universal, Rio de Janeiro, em 20.7.95.

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publicação de uma pesquisa sugerindo mudanças num ambiente já montado quando da


chegada do estudioso e que, certamente, após a sua ida permanecerá tal e qual?

Quanto ao aspecto metodológico, optamos pela construção dos tipos ideais -


“neopentecostalismo” e “iurdiano”. Isso porque, encaramos o universo pentecostal e o campo
religioso brasileiro como um cenário onde fenômenos complexos acontecem, cujos rótulos
“seitas”, “denominações” ou “igrejas” não nos servem com facilidade. Daí, concordarmos
com a atitude de Rubem Alves (1979:35ss), que escolheu o tipo ideal por ser, segundo ele,
uma das melhores maneiras de se apreender, no protestantismo brasileiro, aqueles traços
fundamentais para a sua devida compreensão, construindo dessa maneira o protestantismo da
reta doutrina.

Dessa maneira é possível nos colocarmos dentro de uma tradição que vem de Max Weber, que
fez dos tipos ideais um método de trabalho apropriado para se captarem aquelas “idéias” que,
de forma difusa, dominam os seres humanos em momentos históricos apropriados. Diante
dessa complexidade, “podemos representar e tornar compreensível pragmaticamente a
natureza particular dessas relações mediante um tipo ideal”, acrescenta Weber (1991:105,109
e 111). A formação do tipo ideal exige que se dê ênfase unilateral em traços, pontos de vista e
síntese de um grande número de fenômenos individuais, difusos, mais ou menos presentes
numa determinada realidade social. Mas, por se tratar de um construto mental, um tipo ideal
não pode ser encontrado empiricamente em parte alguma da realidade.

Considerando, portanto, a complexidade do movimento pentecostal no Brasil e na América


Latina, desde o início procuramos acolher as sugestões metodológicas de Paul De Bruyne et
alii (1982:139,180). Por isso pensamos que a nossa pesquisa fluiu dentro de um quadro de
referência fornecido pela sociologia da compreensão. Por outro lado, construímos um tipo
ideal, através de um estudo de caso, possibilitando assim a comparação diacrônica entre vários
tipos de pentecostalismos. Tal procedimento só se tornou possível graças às perspectivas da
sociologia compreensiva, porque ela faz do motivo, o fundamento da ação. A compreensão de
uma ação exige que se valorizem as intenções dos agentes, quer elas sejam conscientes ou
inconscientes. Isso coloca ao pesquisador o aventurar-se nas fronteiras da hermenêutica, aqui
encarada como ciência da interpretação, não só do discurso, mas também dos atos praticados
pelos agentes em processo de interação.16

O desafio colocado diante de nós foi o de entender a vida social de milhões de pessoas que
participam, embora em grau desigual, de um empreendimento como a Igreja Universal. A
partir desse contexto procuramos fazer uma reconstrução da realidade segundo uma
metodologia qualitativa, na qual se privilegiou o discurso produzido pelos agentes iurdianos
enquanto participantes da Igreja.17 Nesse processo, fomos forçados a reunir dados que
possibilitassem uma reconstrução da visão de mundo, tanto do grupo como de pessoas

16 Para uma análise mais ampla das questões hermenêuticas relativas à pesquisa em ciências sociais, veja William Outhwaite
(1985). Por sua vez, a proposta de uma metodologia fenomenológica é avaliada em profundidade por Robert A. Gorman
(1979). Sobre o conceito de verstehen, “compreensão interpretativa” e a constituição de uma sociologia compreensiva
veja Max Weber (1991:3-35).
17 Veja, Howard Schwartz e Jerru Jacobs (1984) sobre as melhores formas de se empregarem técnicas qualitativas como
método de reconstrução da realidade.

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comprometidas com a Igreja Universal do Reino de Deus. Buscamos também amparo teórico
nas contribuições da sociologia do conhecimento de Berger, Luckmann e Mannheim. Com
Mannheim (1976:30,31) aprendemos que “existem modos de pensamento que não podem ser
compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais”. Dessa
e de outras formulações tiramos da sociologia do conhecimento a inspiração para
compreendermos o pensamento dos fiéis dessa religião, no “contexto concreto de uma
situação histórico-social.”

Com esse objetivo, entrevistamos simples membros da Igreja Universal e analisamos


depoimentos gravados de programas religiosos de rádio e televisão, dados que mostram como
pessoas concretas entendem, compreendem e descrevem o “mundo da vida” antes e depois da
experiência de conversão, que tiveram. As entrevistas, trabalhadas para a montagem do perfil
do iurdiano, no quarto capítulo, continham perguntas fechadas e outras abertas. Mesmo assim,
fomos obrigados a trabalhar com dados secundários, colhidos na mídia. O objetivo era
apreender o que as pessoas dizem que está acontecendo com elas, em suas relações com a
IURD.

Pensamos que o artesanato de idéias que se constituiu neste texto poderão oferecer ao leitor
algumas sugestões de como desmistificar aqueles preconceitos inseridos no senso comum,
inclusive pelo trombetear da mídia, que focaliza unicamente o “escândalo” das coletas e
exorcismos na prática da Igreja Universal. Isto porque, a Igreja, que transparece da análise da
vida de seus fiéis, é muito mais do que a reconstrução elaborada pela mídia secular, porque as
pessoas com ela envolvidas, em sua grande maioria, realmente acreditam que a Igreja as
ajudou na solução de problemas pessoais. Tal forma de percepção para elas vale mais do que
quaisquer contra-argumentações, consideradas por elas, como tentativas de denegrir a imagem
da Igreja e de seus pastores à revelia dos bons resultados ali conseguidos.

Sem dúvida alguma, a pedagogia empregada pelo empreendimento de Edir Macedo, que leva
cada indivíduo a dramatizar coletivamente seus anseios e sofrimentos, e a vivê-los intensa e
emocionalmente, tem sido muito eficaz nesse aspecto. É justamente isso que analisaremos no
próximo capítulo.

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CAPÍTULO 2 - TEATRO E RELIGIÃO: A TEATRALIZAÇÃO DO


SAGRADO NA IGREJA UNIVERSAL

“Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na imanência pagã das
imagens, no espetáculo que a Igreja lhes oferecia. Desvio fantástico do princípio
religioso. As massas absorveram a religião na prática sacrílega e espetacular que
adotaram (...). Nenhuma força pôde convertê-las à seriedade dos conteúdos, nem
mesmo à seriedade do código (...) elas querem apenas signos, elas idolatram o jogo dos
signos e de estereótipos (...) desde que eles se transformem numa seqüência
espetacular...” (Jean Baudrillard, 1994:13-15).
“Trata-se de todo um meio social que se emociona porque num de seus setores realiza-
se um ato mágico. Forma-se em volta desse ato um círculo de espectadores
apaixonados, que o espetáculo imobiliza, absorve e hipnotiza, que, tanto quanto
espectadores, sentem-se também atores da comédia mágica, como o coro no antigo
drama.” (Marcel Maus, 1974:160)
O teatro é uma das possíveis metáforas para se falar das relações que os seres humanos,
enquanto atores religiosos, estabelecem entre si e com os entes invisíveis. Isso porque, a
dramatização, além de mediar as relações entre o visível e o invisível, traz à tona os elementos
fundamentais que sustentam a unidade e os propósitos dos grupos sociais. Jean Duvignaud
(1966:11) ao analisar sociologicamente o teatro, escreveu que a sociedade recorre ao “teatro
cada vez que quer afirmar a sua existência ou realizar um ato decisivo que a consolide”. Por
isso, nenhuma outra arte provoca tanta adesão e participação entre os membros de
determinada sociedade como o teatro.

A inspiração para a aplicação da teoria da dramatização à Igreja Universal do Reino de Deus


veio da leitura de um conjunto de textos produzidos por autores que vão desde Victor Turner
(1974), Arnold Van Gennep (1978), Erving Goffman (1975), Gilberto Velho (1994), Claude
Rivière (1989), Roberto Da Matta (1979) e Jean Duvignaud (1966,1972,1973). Todos eles se
preocuparam, uns mais outros menos, com as relações humanas mediadas por ritos e
dramatizações e não é difícil perceber que paira sobre eles a influência de Durkheim (1989),
para quem o rito exprime o ritmo da vida social, na medida em que as pessoas se reúnem em
sociedade para reavivar as percepções e sentimentos que têm de si mesmas. Isso pode ser visto
com facilidade nas assembléias religiosas, particularmente na liturgia iurdiana.

No Brasil, Roberto Da Matta, dentro de uma perspectiva macro-antropológica, tem se


destacado na captura de algumas características dos processos sociais dos brasileiros,
expressas em ritos socialmente dramatizados e em alguns tipos ideais. Da Matta (1979:34)
insiste que os ritos são “momentos especiais de convivência social”, e devem ser analisados
no contexto mais amplo no qual são praticados. Isso porque, a dramatização é um processo de
visibilização de poderosas forças sociais que se fazem presentes também no teatro-templo.
Ali, as forças se cristalizam, enquanto promovem o drama, exteriorizando-se assim crenças e
pressupostos até então invisíveis. Por sua vez, Duvignaud (1966:11) mostra que a ação
dramatúrgica ocorre tanto no palco do teatro como também dentro da rotina da vida cotidiana,

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dada à associação de pessoas, seja “em reunião política, missa, festa familiar ou bairro”, elas
colocam em prática, “em grau diferente, atos dramáticos”. Mas, até aqui nada de novo, pois a
antropologia cultural está reafirmando o que Shakespeare por intuição já afirmava, há quatro
séculos, que o mundo é um grande teatro.

A teatralização permite uma fácil visualização das maneiras pelas quais as forças sociais
atuam, quando transferem para os indivíduos determinações e exigências que, uma vez
incorporadas, passam a fazer parte dos projetos de vida ancorados em programas de ação
social. É por tal motivo que consideramos a dramatização uma porta de entrada privilegiada,
para uma análise das maneiras dos seres humanos vivenciarem as suas relações com o
sagrado. No entanto, é bom insistirmos no caráter de metáfora social aqui atribuída ao teatro,
cuja finalidade é estabelecer nexo entre dois eventos surgidos em contextos diferentes -
religião e espetáculo teatral.

A metáfora dramatúrgica, como todas as outras, é capaz de despertar nossa imaginação


sociológica e nos levar a uma melhor identificação das variedades de interações sociais, que
envolvem pessoas e instituições, palcos onde as ações sociais acontecem. Essa estratégia
metodológica poderá causar alguma estranheza em quem possui poucas informações sobre as
origens religiosas do teatro, ligações que se tornaram mais evidentes após o Século V a.C.
quando os gregos, em conseqüência da urbanização, política e comércio, estabeleceram dentro
da cidade, teatros, templos e mercados. Desde então, teatro e religião se tornaram maneiras de
religar as esferas do visível e do invisível, com o objetivo de mover pensamentos, sentimentos
e ações dos seres humanos.

Inicialmente, mostraremos a interligação entre teatro e religião; depois, analisaremos as


possibilidades de se aplicar a teoria dramatúrgica à análise dos fenômenos religiosos; e,
finalmente, examinaremos a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) enquanto um espaço
privilegiado de representação.

2.1 Religião e dramaturgia

Que relações a prática religiosa tem mantido com o teatro? Como ambos os tipos de prática
social têm interagido desde o surgimento do teatro, como instituição social, na Grécia?
Historicamente, nem sempre essas relações se deram de forma pacífica. Essa relação é
importante e serve socialmente como canal de expressão tanto para a religião como também
para a manutenção da coesão social. Duvignaud (1966:471) mostra que no teatro, até mesmo a
revolta e o descontentamento contra a ordem podem se manifestar, pois “assim como a magia
é uma rebelião contra o sagrado, o teatro é uma rebelião contra a ordem estabelecida.”

Uma abordagem das relações entre religião e teatro requer um rápido recuo do olhar para o
passado. Isso porque, foi naquele tempo, que diante de novas necessidades resultantes da vida
em grupo, os seres humanos sofisticaram a comunicação e desenvolveram a capacidade de
abstração, e de se colocarem no lugar de outros. Dessa forma, o processo de interação social

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atingiu a sua dimensão total envolvendo, além dos órgãos do sentido, a linguagem verbal,
relegando os gestos a uma posição secundária no processo de comunicação.

Há quem veja, nas primeiras pinturas rupestres, os sinais de uma ação mágica dos caçadores
primitivos, que ao imitarem e representarem os animais, pensavam poder facilitar sua captura
e abate. Por outro lado, há antropólogos que acreditam no surgimento simultâneo da magia,
religião e teatro. Esses fenômenos teriam se tornado mais complexos posteriormente, devido à
sedentarização e à prática da agricultura, elementos estimuladores de rituais mágicos e de
fixação de pessoas ao redor dos santuários. Com isso, introduziram-se práticas destinadas a
canalizar as forças sagradas para o aumento da fertilidade da terra e dos rebanhos.

Essa antiga união entre o altar e o palco também pode ser percebida nos registros de atos
cênicos do culto do deus egípcio Osíris, por volta do terceiro milênio antes de Cristo, e
também dos hititas, que na Mesopotâmia, realizavam atos de encenação cúltica para, logo em
seguida, destruírem cenários, móveis e utensílios usados, numa tentativa talvez, de purificação
do santuário contaminado pela proximidade do profano. Pierre-Aimé Touchard (1970:9) relata
uma lenda cultivada pelos hindus de que o teatro surgiu após uma luta entre o deus Indra e os
demônios, logo após uma apresentação de atores, cuja dramaturgia revivia uma batalha
original entre ambas as partes. No decorrer da teatralização, os demônios tentaram colocar
obstáculos cênicos, mas, o próprio deus ali presente invadiu a cena, destruiu os demônios e
dedicou para si o edifício do teatro.

O teatro Ocidental tem uma história mais recente e passa pelos templos gregos, romanos e
católicos. Porém, o seu berço foi montado ao redor dos rituais do culto a Dionísio, o popular
deus da uva, do vinho e da alegria. Esse culto, possivelmente, surgiu no Oriente Médio, na
Assíria, ou entre os habitantes das montanhas da Trácia, e dele já se encontram referências em
Homero, quando escreveu sobre rituais dirigidos por mulheres asiáticas que, no auge de um
culto ao seu deus, sacrificavam um touro, símbolo de Dionísio. Na Grécia, no decorrer desse
culto, uma procissão de jovens carregava, junto com os ramos de oliveira, os primeiros frutos
da terra. Eles se faziam acompanhar de uma multidão, muita música e de um sacerdote, cuja
função era presidir a cerimônia. As grandes peças teatrais escritas por Ésquilo, Sófocles e
Eurípedes eram homenagens ao deus Dionísio. No Século V a.C., dos seis dias de festas
dedicados a Dionísio, como relata Borba Filho (s/d), a metade era reservada às representações
dramáticas.

Algum tempo depois, as representações trocaram os templos pelos teatros, consagrando-se


assim uma separação dos espaços, inclusive aproveitando-se para isso o desnível de terreno
nas encostas dos montes. Nessa passagem, algumas mudanças ocorreram, tais como a
introdução dos comentaristas - hypokrites - que dialogavam com o coro e, colocados entre os
atores e a platéia, funcionavam como coadjuvantes, dançavam ou cantavam. Esse espaço
recebeu o nome da própria atividade, theatron, lugar onde se podia ver uma representação. A
palavra portuguesa que designa “teatro” vem do grego theastai, que significa ver, contemplar
e olhar. Theatron, portanto, era tanto o espaço geográfico, onde a ação acontecia, como
também a própria ação, síntese para onde fluíam as várias maneiras de comunicação.

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No theatron, os atores tornavam presente algo ausente, interpretando, encenando e


apresentando, sob outras formas, uma realidade invisível aos olhos, apreendida por meio da
imaginação e ativada pelas palavras, música, gestos e ação dos intérpretes.
Conseqüentemente, ao “fazerem teatro”, os atores declamavam, cantavam, representavam e
dançavam. A platéia também participava ativamente, inclusive dialogando com os atores.
Dessa maneira, o teatro foi-se tornando um lugar obrigatório para quem queria ver os dramas,
tragédias e comédias, e até para discutir o sentido da vida. Durante o espetáculo, os atores, ao
representarem um personagem, usavam máscaras, assumiam características de outros seres,
encarnavam condutas imaginárias, provocavam reações na platéia e, às vezes, até mudanças
na vida das pessoas. Tudo isso fez com que o teatro grego atingisse uma notável profundidade
psicológica, a ponto de ser considerado por Aristóteles (1967:299) além de diversão, uma
forma de se provocar katharsis na platéia.18

Também, por sua capacidade de efetuar a ligação do real com o imaginário, o teatro se
transformou num dos principais canais pelo qual emergem, das profundezas do ser humano,
desejos e fantasias. Daí, o sentido de recolhimento que se dava à ida ao teatro, onde se podiam
ouvir histórias e pensar nas realidades fundamentais da vida humana. Esse costume levou
Brecht, dezenas de séculos depois, a considerar o teatro como um lugar privilegiado para
convencer as pessoas a se decidirem pela transformação da sociedade.

Por isso o teatro, ainda hoje, funciona como um centro de representação e local onde se dá um
processo socio-cognitivo fundamental para o ser humano, que é a mudança de mente por meio
da transformação dos sentimentos. O verbo “representar”, que vem do latim repraesentare, se
tornou, nesse contexto, palavra-chave para a compreensão do comportamento social dos seres
humanos. Filosoficamente, Lalande (1993:995) define representação como o ato de
“apresentar aos sentidos, de uma maneira atual e concreta, a imagem de uma coisa irreal,
ausente ou impossível de perceber-se diretamente”.

Teatro e religião são processos sociais em que as coisas intangíveis se revestem de


tangibilidade, e às visíveis, se atribuem valores invisíveis. Ambos se alimentam da
necessidade humana de encontrar, além do visível, uma razão que dê sentido às ações sociais
e um objetivo pelo qual se possa viver e até morrer. A dramatização permite o abandono da
passividade e a reafirmação de que é possível a cada um intervir na vida cotidiana, graças à
ajuda de uma dimensão recém-descoberta, e que se tornou um eficiente instrumento para se
moverem as dificuldades concretas da existência.

Talvez seja esse o motivo pelo qual nem mesmo o individualismo moderno, a sensação de que
a vida escapa pelos vãos dos dedos, ou a falta de um motivo central, que organize a
experiência rotineira, chegaram a eliminar a atração exercida pelo espetáculo teatral. O
próprio cinema, a televisão e a política, para não dizer os espetáculos de rock, assimilaram

18
A palavra katarsis é de origem médica e significava “ato de evacuação” ou de “descarga emocional”. Segundo
Aristóteles (1967:299), a katarsis provoca no ser humano um efeito de purgação de suas paixões nocivas. A
tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo
emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada não com a ajuda de uma
narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas
emoções.”

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métodos e um ar sacral da religião teatralizada, nas suas maneiras de se comunicar com as


massas. Seria, portanto, de admirar que a religião na sociedade dos meios de comunicação de
massa continuasse desprezando o teatro.

A visibilização do invisível nas encenações teatrais, apesar da linguagem diferente do cinema


e da televisão, continua atraindo pessoas. Por isso, fracassaram aquelas profecias segundo as
quais o advento dos modernos meios de comunicação de massa, rádio, cinema e televisão,
iriam provocar a morte do teatro. A despeito delas, o teatro não somente continua vivo, como
também revidou, e invadiu todos os setores da comunicação humana, inclusive retomando a
centralidade do culto, agora um espetáculo religioso. Dessa forma, o ser humano continua a se
aproximar do espetáculo, do teatro e do show, com aquela expectativa de que, no palco, o
invisível vai lhe aparecer. Segundo Peter Brook (1970:39), essa “idéia tem um grande poder
sobre os nossos pensamentos”, em particular na teatralização do religioso, grande “teatro do
invisível”, que procura tornar visíveis os aspectos intangíveis da experiência religiosa.

O culto católico, principalmente o medieval, deu continuidade ao teatro clássico, grego ou


romano, pois a sua religiosidade estava saturada de ações teatrais, que aconteciam dentro e
fora do templo. Porém, em 1210, as encenações no interior dos templos foram proibidas,
preservando-se apenas a missa, forma de se encenar a paixão, morte e ressurreição de Jesus de
Nazaré. Mesmo proibidas, as encenações continuaram fora dos templos, nas procissões e
romarias, que se tornaram importantes expressões de religiosidade popular. Contudo, esses
atos litúrgicos eram encarados por muitos, inclusive mais tarde pelos protestantes, como
sobrevivências dos elementos das religiões de mistério, dos diversos povos europeus, que
antecederam ao cristianismo.

A herança pagã levou alguns analistas sociais a considerarem as romarias e procissões como
as principais preservadoras de antigas ligações entre o teatro e a religião, subsistindo como
cenários privilegiados para uma reconstituição das encenações de outrora. Atualmente, as
romarias aos santuários são acompanhadas de músicas, danças e outras manifestações
dramatúrgicas, construindo-se, ao redor dos atores, espaços cênicos de notável valor folclórico
e religioso. Obviamente, isso provocou muitas vezes, conflitos entre a religiosidade popular e
a oficial, motivo que levou, desde o início da Idade Média, o clero católico a se opor ao teatro
e a tolerar as romarias, como nos mostra Pierre Sanchi (1979:18).

Para muitos de seus críticos, as romarias eram foco de desordem profana no interior de um
espaço sagrado, motivo pelo qual, séculos mais tarde, católicos e calvinistas se uniram no
combate aos atores de teatro, conforme registram Duvignaud (1972:96) e Albert Reyval
(1924:1-110). Além do mais, os atores eram considerados meros simuladores de paixões não
vividas por eles. Por isso mesmo, durante muito tempo, o teatro não somente esteve fora do
espaço sagrado dos templos cristãos, como também proscrito da vida social. Em Portugal, em
várias oportunidades, lançaram-se anátemas sobre o teatro e seus atores, enquanto se
realizavam cruzadas de “recristianização das romarias”. Muitas festividades religiosas
brasileiras, como demonstra Brandão (1987), surgiram das festas e romarias ibéricas.
As romarias pressupõem uma distância entre o sagrado, localizado num ponto geográfico
santificado, tido, na linguagem de Mircea Eliade (s/d:37,38), como o “centro do mundo”, e os

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“romeiros” ou “peregrinos”, pessoas distantes daquele ponto, cuja meta é ressantificar a sua
vida por intermédio da peregrinação. Assim, para haver peregrinação, escreve François-
Bernard Huyghe (UNESCO, 1993:7), “é preciso haver ao mesmo tempo, um vínculo, um
caminho e um alvo sagrado”. As peregrinações fazem parte da maioria das religiões,
justamente porque elas mantêm o espaço da criatividade e do lúdico.

Rubem César Fernandes (1982) acompanhou uma romaria masculina em direção a um


santuário brasileiro, registrando algumas das peculiaridades, coreografias e representações dos
“cavaleiros do Bom Jesus” no decorrer da caminhada. Na estrada, os romeiros se alternavam
entre a fuga do cotidiano, a festa e a esperança do encontro com o sagrado, que lhes rompia a
rotina da vida. Em geral, as romarias são viagens para “pagamento de promessa”, envolvem
“sacrifícios” e são encaradas como expressão da gratidão pelas graças alcançadas. Na
península ibérica medieval havia romarias que incluíam, além da procissão, encenação de
batalhas contra os mouros e desfiles com objetos de culto, tais como imagens, santíssimo
sacramento e até relíquias sagradas.

O protestantismo eliminou o culto aos santos, propôs a secularização dos lugares onde o
“serviço” religioso deveria acontecer, ridicularizou o comércio de artesanato e de bens
religiosos associados aos santuários católicos. A Reforma colocou, no lugar da devoção em
movimento, uma platéia de boca fechada e ouvidos abertos, estacionada ao redor do púlpito,
lugar de onde o sagrado se irrompe através da palavra articulada racionalmente. O
protestantismo também delimitou a criatividade litúrgica e, mesmo condenando a missa
católica, impôs sobre o culto um script rígido. O resultado foi o culto ritualista, que, no caso
brasileiro, o protestante histórico aprendeu a prestar à divindade com os missionários norte-
americanos, a despeito de todas as influências católicas sobre ele exercidas, conforme
observação de Carl J. Hahn (1989:223).

Porém, a despeito de tentativas da catequese católica de empregar o teatro, o cristianismo


oficial no mundo moderno manteve uma certa distância do lado teatral e espetacular de
expressar a fé. Entretanto, esse aspecto dramático de se representar, de uma maneira até
sanguinária a fé, floresceu entre os islâmicos do Irã. A festa xiita do Muharran, quando se
celebra o martírio de Hussain, neto de Maomé, ocorrido em 680 d.C., é um bom exemplo do
poder da representação sobre as condutas individuais. Nessa festa, multidões de peregrinos
invadem teatros para permanecerem em oração e apreciarem pregações, cânticos e cenas de
violências. Nas ruas, ocorrem procissões para encenar o martírio de Hussain, cujo corpo foi
pisoteado por animais, e a cabeça cortada, a mando do Califa de Damasco. No ápice da
procissão, em direção ao túmulo do mártir, pessoas golpeiam a própria cabeça, dilaceram a
carne, ensopam as roupas de sangue e muitos morrem. Elias Canetti (1995:150) reproduz
descrições comoventes dessas cenas, mostrando como a excitação provocada pelo xiismo
consegue uma total participação do público nesse espetáculo, de uma forma desprezada pelos
maometanos sunitas, ocorrida poucas vezes entre os cristãos e ainda mais, raramente entre os
judeus.

Mas, se o teatro nasceu dentro ou à sombra dos templos, ao lado das liturgias religiosas,
quando e por que ele se secularizou, e o que o neopentecostalismo tem a ver com ele? É claro

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que essa secularização do drama e o abandono das amarras religiosas do teatro ocorreram na
Grécia, por motivos diferentes daqueles, que acabaram por expulsá-lo do interior dos templos
católicos. Essa ruptura é importante para ser deixada de lado, pois houve um período da
história em que a arte, teatro, música e dança estiveram mais próximos da religião do que
atualmente. Naquela época, escreveu Gerardus Van der Leeuw (1963:11), a “canção era
oração, drama era divino desempenho, dança era culto... [e cada] ação do homem primitivo
(...) um ato mágico”. Coube, portanto, ao cristianismo, particularmente em sua modalidade
popular ou como religião de massas, a manutenção de uma certa continuidade entre a estética
e a religião.

O pentecostalismo, mais do que o protestantismo histórico, tem mantido no seu culto uma
maior proximidade entre religião e espetáculo, o que facilita analisá-lo do ponto de vista
dramatúrgico. Nesse sentido, as observações de Luis Maldonado (1975:247), sobre a
religiosidade popular nos ajudam, principalmente quando afirma que “a liturgia é, de algum
modo, representação cênica” e que [a representação] “popular-religiosa tem muito de teatral, e
o teatro tem muito de festividade religiosa-popular”. A presença do teatral nos cultos
neopentecostais, contudo, provoca situações litúrgicas ambíguas, nas quais não há definição
clara entre culto e teatro, espetáculo de auditório e manifestação sagrada, enfim, entre templo
e teatro.

Diante de tudo isso podemos perguntar: Onde se podem estabelecer os limites entre teatro e
templo? Quando se teria iniciado a antipatia entre a religião cristã e o teatro? Por quê o
cristianismo institucionalizado, em especial o protestantismo histórico, rompeu com o teatro?
Por qual motivo o culto iurdiano e de outros grupos neopentecostais se deram tão bem com a
prática teatral? Para respondermos a essas questões, principalmente à última delas, será
preciso fazer um apanhado das principais contribuições oferecidas pelas teorias sociológicas,
com enfoque dramatúrgico.

2.2 Religião e teatro nas teorias sociológicas

Se o teatro surgiu do esforço humano para melhor se comunicar com os seus semelhantes,
torna-se desafiante o emprego da dramaturgia na apreensão desse processo complexo de
interação social e de comunicação, até por envolver múltiplos emissores e receptores. A
versão acadêmica da perspectiva dramatúrgica é o construcionismo, que se desenvolveu na
primeira metade deste século. Para seus defensores, a interação entre os agentes e a construção
de uma dimensão simbólica, a partir dessas relações, é um pressuposto básico. Para eles, as
organizações de um modo geral, inclusive as religiosas, são redes de interação, centros
produtores de culturas que, como teias, sustentam e são sustentadas por símbolos e signos
compartilhados por seus integrantes na vida rotineira.

Dentro dessa perspectiva encontramos três correntes. A primeira é a do interacionismo


simbólico, na qual se incluem R.E.Park, W.I.Thomas, G.H. Mead, H.S.Becker e E.Goffman,
que enfatizam a existência de relações coercitivas entre as instituições e seus membros. Para

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eles, a questão mais importante é verificar como os indivíduos, a despeito da coerção, podem
transcender as instituições e criar novas realidades sociais. A segunda corrente é a
etnometodologia, da qual Alfred Schutz é um dos principais representantes, que analisa as
atividades rotineiras das pessoas para, através delas, captar o etno, isto é, a maneira pela qual
o membro de uma organização conhece e descreve o mundo que o circunda. Na terceira
corrente, o construcionismo estruturalista, incluem-se os nomes de Peter Berger, Thomas
Luckmann e E. Goffman. Esses sociólogos pressupõem que as definições socialmente
compartilhadas em pautas de significados são moldadas pelos papéis e paradigmas que afetam
a interpretação de cada agente. É justamente essa corrente que nos interessa, em especial as
contribuições de Goffman (1975:71), que levou até as últimas conseqüências, nas ciências
sociais, a afirmação que “a própria vida é uma encenação dramática”. Consideramos essa
teoria dramatúrgica um eficaz instrumento na compreensão da teatralização do culto
neopentecostal, tal como pode ser visto na Igreja Universal.

Para Goffman, os limites institucionais constituem o palco no qual a vida quotidiana acontece,
e os atores e platéia se interagem, através de papéis construídos socialmente. Nesse processo
de interação, atores e platéia se influenciam mutuamente, sob o manto de significados,
símbolos e sinais comuns, resultando numa impressão que deve ser manipulada com técnica e
arte. Porém, a noção de papel tem sido empregada na sociologia, desde Charles Cooley e
George Herbert Mead, para explicar o funcionamento do mundo social.19 Berger (1974:104)
considera o papel uma “resposta tipificada a uma expectativa tipificada”. Assim, se os papéis
forem compartilhados pelos atores sociais, eles “tornam possível a existência das instituições
continuamente como presença real na experiência de indivíduos vivos”, conforme Berger &
Luckmann (1978:108). Isso significa que o processo dramatúrgico é um dos meios
fundamentais de sobrevivência das organizações na história, pois é através dele que, atores e
platéias, revivem e reinventam, continuamente, a instituição à qual pertencem.

Na dramatização, as partes são ligadas ao todo, e a representação de cada um se reporta a um


drama maior, cósmico e eterno, do qual cada participante é apenas um coadjuvante. O agente
intermediário religioso, no caso o pastor neopentecostal, desempenha a função de coordenar o
drama local, de conectá-lo ao universo de valores propostos pela igreja, assim como vincular o
todo da mensagem às necessidades de cada participante. É no interior desse processo de
interação social que uma comunidade neopentecostal se constrói, culto após culto,
representação após representação.

O papel social refere-se a esse conjunto de direitos e deveres, que garantem a execução de
ações destinadas a mostrar que “as coisas são o que parecem ser”, cuja realização implica em
representações homogêneas e a existência de uma fachada com cenário, aparência e maneiras

19
É impossível falar em dramaturgia social sem uma referência às contribuições de H.G. Mead, para quem o
exercício do papel permite a realização do “EU” na outra pessoa. Em seu conceito, é fundamental que no
processo de socialização o “eu” se realize através dos outros. Porém uma das maiores contribuições para o
estudo da sociedade pelo prisma da dramaturgia social viria com E.Goffman. Seu livro The presentation of self
in everyday life, aparecido pela primeira vez em 1956, e numa edição reformulada em 1959, abriu caminho
para novas maneiras de se encarar a adaptação dos indivíduos, nos novos contextos culturais da sociedade
urbano-industrial.

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61

típicas de dramatização.20 Goffman (1975:27,55,67), afirma que fachada é “o equipamento


expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo
durante a sua representação”. Cabe aos atores o zelo pela manutenção do controle expressivo,
evitando-se com isso que uma só nota em falso venha quebrar “a harmonia da representação
inteira”. Isso pode exigir, eventualmente, o emprego de cinismo e dissimulação, misturando-
se, na encenação coletiva, realidades e artifícios, tudo combinado para o brilhantismo da cena.

A preocupação com o sucesso da dramatização, às vezes, exige que os atores escondam do


público tudo o que contrarie as expectativas, que corrijam os erros antes da representação, e
coloquem para o público, no final delas, apenas o produto pronto para ser adquirido. Esse
empenho em obter os melhores resultados pode até dar origem a condutas “desviantes” e,
eventualmente, o emprego de algum “trabalho sujo”. Dentro dessa lógica, o sucesso é um fim
que justifica quaisquer meios empregados para atingi-lo.21

Há um outro aspecto importante para se fundamentar a aplicação da dramaturgia na análise do


culto neopentecostal. Refiro-me à atuação das “equipes de representação”, formadas, segundo
Goffman (1975:78,94,126) por um “grupo de indivíduos que cooperam na encenação de uma
rotina particular”. Seus membros precisam estar ligados pelos laços de reciprocidade e de
familiaridade, evitando-se a passagem para a platéia de informações sobre aquelas interações
típicas de bastidores. A pluralidade de atores na cena exige a presença de alguém com funções
de “diretor de espetáculo”, cuja tarefa, além da orientação de todos os aspectos da encenação,
é também a de “trazer de volta à linha adotada qualquer membro de equipe, cuja representação
se torne inconveniente”.

Nessas condições, cabe ao coordenador do espetáculo a distribuição de papéis, a representação


de cada ator e a manutenção da fachada do espetáculo. Essa pessoa cuida também dos que
podem apresentar um papel discrepante, das atividades do “farol” e da “claque”, pessoas que,
na linguagem de teatro, são de confiança da direção e se inserem no meio da platéia para
mudar os rumos ou estimular a eficiência da ação dramatúrgica. Espera-se ainda desse
dirigente, o controle da situação, mesmo que se faça presente alguém capaz de complicar o
esperado sucesso do espetáculo, na figura de um “colega desleal”, “renegado”, “vira-casaca”,
“traidor” ou, até mesmo, um estranho inconveniente.

20
Ao interrogarmos um pastor da IURD (pastor A.) sobre se havia diferença entre o que “parece ser” e a
“realidade que é” na sua igreja, o pastor respondeu: “A IURD não tem nada escondido. Ela é o que aparenta
ser em seus cultos e cerimônias. Não há necessidade de o pesquisador querer penetrar nos bastidores para
conhecê-la. Assista aos programas de televisão, de rádio ou leia os nossos jornais. Ela é o que ali está” (julho
de 1995).
21
Conforme notícias dos jornais, Edir Macedo e outros bispos da Igreja Universal andam acompanhados de
guarda-costas. Há denúncias de que esses acompanhantes sejam os responsáveis pela prática de “trabalhos
sujos”, porém necessários para o brilho da representação iurdiana. Num desses episódios, o então bispo em
São Paulo, Von Helde, ao depor na polícia, após o episódio dos “chutes na santa”, teve um de seus guarda-
costas (ex-presidiário) preso por porte ilegal de arma e envolvimento no espancamento de jornalistas. Carlos
Magno Miranda, ex-pastor da IURD, denunciou publicamente Edir Macedo, através dos jornais e de
depoimentos na Polícia Federal, como tomador de dinheiro de traficantes colombianos para a compra da Rede
Record de Televisão, em 1989; que nesse “trabalho sujo” o bispo usou pastores que, com suas respectivas
mulheres, teriam escondido dólares sob as roupas íntimas para fugir aos exames da alfândega brasileira (veja.
Folha de S.Paulo, 17.9.95).

61
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2.3 O templo-teatro, cenário, objetos cúlticos e símbolos

Da análise dos cultos da Igreja Universal, assim como de outras liturgias neopentecostais,
pudemos observar que eles são espetáculos a serem assistidos e com a participação dos
presentes. Neles, a coreografia, luzes, atores são elementos que se unem num festival de
ações, gestos e palavras, mediados pela música e poesia, em uma peculiar exteriorização do
sagrado. No decorrer do culto, o espaço litúrgico se torna um teatro, onde o sagrado é
construído socialmente por todos os atores, indistintamente posicionados, no palco ou na
platéia.

Graças a tais características, o culto iurdiano é fortemente expressivo e sensitivo, porque nele
se valoriza o visual e o auditivo, reservando-se o tato apenas para alguns rituais como a
imposição das mãos, seja para abençoar, ungir com óleo, curar ou exorcizar, ou para o abraço
entre os casais. Entretanto, talvez pela presença de alguns pouquíssimos resíduos do
puritanismo de origem protestante, a aproximação corporal na Igreja Universal é limitada, e
somente há danças rituais de pessoas, isoladamente. Observamos abraços, ao som de uma
música romântica, com trocas de juras de amor, somente às quintas-feiras, na “corrente da
família”, quando o pastor ora pela reconciliação dos casais presentes. No decorrer das
manifestações de possessões espirituais e no exorcismo há também manifestações corporais
intensas, e algum contato do pastor com o corpo do possuído. Mesmo assim, apesar desses
estímulos ao corpo, o culto dessa Igreja ainda está muito longe daquelas expressões corporais,
presentes nos cultos afro-brasileiros.

Contudo, por privilegiar os sentidos, o culto iurdiano contrasta com algumas práticas
litúrgicas do pentecostalismo clássico e do protestantismo histórico. Entre esses contrastes
está o rompimento com o modelo tradicional de dois sacramentos, que, no protestantismo
histórico, são o batismo e a santa ceia. A IURD incluiu na sua prática litúrgica novos “sinais
visíveis da graça invisível”, inserindo expressões rituais e gestos relativamente originais para
pontuar o tempo litúrgico, como também propõe novos eventos e ciclos de festas religiosas.
Assim, surge na Igreja Universal um calendário litúrgico centrado em “campanhas de fé”,
eventos sazonais e mais amplos que contêm as “correntes de fé”, uma atividade diária na vida
ritual da Igreja. Suas dramaturgias são padronizadas para todos os templos e planejadas pelas
autoridades centrais, o colégio de bispos, geralmente em reuniões por telefone, comandadas
por Edir Macedo.

A administração central da Igreja oferece, contudo, apenas a matriz com um enredo principal,
cabendo aos responsáveis regionais dar cores locais às dramatizações e espetáculos. É dentro
desse espaço que o pastor local exerce a sua liberdade e criatividade, incorporando à liturgia
elementos da religiosidade popular local. Dessa forma, o neopentecostalismo faz brotar de um
tronco matricial, no qual se misturam tradições “pagãs”, católicas, afro-brasileiras, judaicas e
protestantes, uma forma aparentemente original, mas não tanto, como veremos, de se cultuar a
Deus. Daí, a influência de antigos cultos da natureza, a atração pelos topos sagrados, lugares
altos, cachoeiras e praias, bem como a tendência em se usarem símbolos universais, como

62
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água, ar, terra e fogo, ao lado de ritos herdados dos períodos de nomadismo ou da antiga
civilização agrária, inesgotáveis fontes de símbolos e mitos.22

A liturgia da Igreja Universal traz à tona uma festividade, que nos lembra a alegria do culto a
Dionísio, que quase desconhecia a repressão, a negação das coisas boas da vida ou, até
mesmo, a manifestação de uma consciência de culpa. Com isso, essa Igreja abandona a ética
herdada pelo pentecostalismo dos movimentos holliness e do puritanismo inglês, que por mais
de sete décadas influenciou decisivamente a prática e o culto pentecostal.23No lugar da
pregação da ética repressiva, como acontece na Igreja Pentecostal “Deus é Amor” ou na Igreja
Assembléia de Deus, colocou-se como eixo litúrgico, o estético. Nesse sentido, se o
protestantismo dessacralizou a missa católica, eliminando símbolos, luzes, cores e vestes,
desencantando o culto, a Igreja Universal, ao estetizar o culto, propõe um meio-termo entre os
rituais católicos e protestantes. Isso propicia a transformação do culto num espetáculo do qual
os fiéis participam intensamente. Talvez pudéssemos aqui relembrar o padre Vieira (cf.
Sermão da Sexagésima, in Gomes, 1972:120,121), que embora lamentando a aproximação
entre o púlpito e o teatro afirmava que muitos sermões de sua época eram “comédia, porque
os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como
comediantes”. Vieira, nesse mesmo sermão, referia-se a idéia corrente de que haviam acabado
as comédias em Portugal, a qual ele contestava dizendo: “não se acabaram, mudaram-se;
passaram do teatro ao púlpito.”

É claro que a participação em rituais desse tipo provoca nas pessoas um maior senso de
satisfação e de alegria do que os cultos ritualistas e, às vezes opressivos, do protestantismo
histórico. Waldo Cesar (1992:48) captou bem o comportamento do fiel ao sair de um culto
pentecostal, em observações que valem principalmente para o culto-espetáculo da Igreja
Universal:
“Aparentemente ninguém sai frustrado de um culto pentecostal, por mais que se
conheça o ritual, os cânticos e a mensagem. O que se espera que aconteça no púlpito
(no palco) é apenas o primeiro ato. Depois, todo o auditório se transforma no palco da
ação. Ou há uma inversão: o líder se transforma em assistente, em espectador do
êxtase que toma as almas e os corpos de um plenário sempre lotado, manifestação
coletiva e pessoal. Cada um para si e Deus para todos. Desde a chegada, tudo é
submissão; mas na saída o que conta é a missão.”
No templo iurdiano, através da ação dos pastores, o espaço sacralizado, os objetos de culto e
os símbolos se unem para oferecerem aos participantes um espetáculo alegre e atraente, que

22
Às vezes, em cerimônias iurdianas há sincretismo entre ritos e símbolos oriundos do judaísmo e do
cristianismo. Por exemplo, usa-se suco de uva, representando o sangue de Cristo, “o Cordeiro de Deus”, para
embeber um chumaço de algodão, que, levado dentro de um envelope de plástico, é usado para passar no
umbral externo da porta de entrada da casa, tal como os hebreus fizeram no Egito. Essa ação simbólica serve
para impedir a entrada de demônios no interior da casa do crente.
23
Todavia, esse abandono da ética puritana, que o pentecostalismo de origem holliness manteve, não é radical na
IURD. Nada nessa Igreja e em nossa pesquisa ratifica a conclusão a que chegou Gualberto Gouvêa, (1995) de
que a Universal é “a igreja dos prazeres” e muito menos, afirmações dele reproduzidas pela Folha de S.Paulo
(2.1.96) dando conta de que “A Universal não prega a promiscuidade, mas, dentro do casamento, tolera todo
tipo de atividade sexual, inclusive a sodomia”, e que “Os bispos chegam a sugerir que o marido dê um banho
de vinho na esposa antes de beijá-la, conforme os salmos de Salomão”.

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iniciado há menos de vinte anos, já seduziu e persuadiu milhões de pessoas, no Brasil e no


mundo. De que maneira esses quatro elementos teatrais se unem nessa Igreja para conseguir
tanto sucesso?

O templo como espaço cênico

Na dramatização do espetáculo de fé, o cenário é aquela parte do espaço demarcada pela


presença de atores, platéia e objetos de culto, tornando-se um lugar apropriado para a
encenação. O cenário sempre foi um elemento fundamental para a experiência de culto,
mesmo após o surgimento do alto grau de abstração e individualismo do homem moderno.
Até o mágico, escreveu Marcel Mauss (1974:77), necessita de um lugar qualificado para o seu
cerimonial e, na falta desse espaço, ele “traça um círculo ou um quadrado mágico - um
templum - ao seu redor e é ali que ele trabalha”, reunindo ao seu redor um “imenso conclave”.

Na magia e na religião, para a captura ou contato com o sagrado, há rituais, espaços e objetos
próprios, assim como meios apropriados para unir atores e platéia ao redor do
empreendimento. Em se tratando de culto religioso, é indispensável uma descrição de como
esse cenário é arrumado, e do papel desempenhado pelos objetos no desenrolar da encenação.
Tais cuidados são importantes, dado à nossa dificuldade em imaginarmos as relações entre o
humano e o sagrado sem levarmos em conta a mediação material desempenhada pelos objetos
no culto. Pois, se a religião começa com a delimitação do espaço, o culto acontece num
cenário material, onde entre objetos demarcadores, os atores executam ações específicas. Que
lógica preside a classificação e a reunião dos objetos no interior desse cenário?

Mircea Eliade (s/d:35-39) cunhou a palavra hierofania para designar a manifestação do


sagrado dentro das categorias espaço-temporais. Para ele, a manifestação de um poder
transcendente, deixa ao redor do ser humano um território marcado pelos sinais e objetos,
verdadeiros rastros da presença do invisível no interior de um espaço, agora, por causa dessa
manifestação, dividido em sagrado e profano. Surge dessa maneira uma experiência
primordial, a “fundação do mundo”, um “ponto fixo”, um centro capaz de proporcionar aos
humanos a visão de uma nova realidade, que necessariamente, não se esgota no objeto
material.

Porém, ao analisarmos a função dos objetos no culto, não podemos deixar de recordar uma
palavra de origem melanésia, objeto de intensas discussões nas ciências sociais, empregada
por Marcel Mauss (1974:137-150) para explicar o poder atribuído aos objetos mágicos: mana.
Em culturas da Oceania, os objetos têm mana quando possuem uma qualidade ou um estado
diferenciado dos demais, cujas características são expressas pelas palavras: “poder espiritual”,
“força sobrenatural”, “influência não-física”. Os melanésios acreditavam que tais objetos eram
dotados de um “fluído vago e impessoal”, o que lhes garantia a capacidade de gerar
impressões favoráveis no decorrer de um rito mágico ou religioso. Mauss também observou
que, para ser eficaz, o mana só pode “ser manejado por indivíduos que tenham mana, num ato
mana, ou seja, por indivíduos qualificados e durante o rito”. Naquela cultura, é justamente
essa legitimidade que garante a transmissão de poder de um objeto para outro, bem como lhes

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dá a capacidade de alterar circunstâncias adversas da vida, mesmo à distância. Assim, “o


mana é a força por excelência, a verdadeira eficácia das coisas (...) que faz a rede apanhar, (...)
que a casa seja sólida, que a canoa vá bem no mar...”

Ainda para Marcel Maus (Ibid.:154,158), a força dos objetos dotados de mana não está neles
próprios, e sim no grupo social que os nomeou e os escolheu, objetos singulares, projetando
sobre eles uma realidade invisível aos olhos. São essas necessidades coletivas, que geram um
conjunto de representações, das quais os objetos são fragmentos. Nesse sentido, religião e
magia são duas formas de se organizarem representações próximas entre si, e que têm por
função atender “a necessidade sentida por todos” e exteriorizar a “força mágica do desejo”
coletivo. Já Duvignaud (1983:71) afirma que o mana é “uma substância coletiva que se
exterioriza e se dramatiza ao longo de cenas de representações mais ou menos teatralizadas, a
que a magia ou a religião proporcionam uma imagem diversificada”.

Um espaço cênico está ligado a um contexto geográfico, no qual se localizam os templos,


locais onde se dá a interação entre os atores, objetos e símbolos. Os templos iurdianos
externamente se assemelham muito mais a um salão comercial, cinema ou teatro do que aos
modelos arquitetônicos de um templo católico ou protestante. Na sua fachada nunca falta um
amplo painel, contendo em letras góticas, o moto da Igreja: “Jesus Cristo é Senhor”, e logo
abaixo: “Igreja Universal do Reino de Deus”. Ao lado, o insubstituível símbolo iconográfico,
um coração vermelho e dentro dele uma pomba branca em pleno vôo, ambos estilizados. No
átrio, em quase todos os templos, há um balcão chamado “livraria”, onde se vendem a Folha
Universal e, eventualmente, livros de Edir Macedo, discos, fitas e CDs da gravadora da Igreja,
Lines Records, e publicações, bonés e adesivos da Associação Beneficente Cristã.

Internamente, o espaço é dividido entre palco e platéia. O palco, também chamado de “altar”
na retórica iurdiana, pertence aos pastores e obreiros, está separado do espaço dos
“assistentes” e se eleva alguns centímetros acima do piso destinado à platéia. No templo do
Brás, o palco está a quase dois metros acima da platéia. Entre o palco e as cadeiras destinadas
aos demais fiéis, há um amplo corredor, usado antes dos cultos como uma espécie de
confessionário. Nesse corredor, frente a frente, os pastores ouvem as pessoas, lhes dão
conselhos, oram com elas, ungem-nas com óleo e às vezes, impõem-lhes as mãos
esconjurando maus espíritos. Tudo acontece publicamente, entre ruídos de uma multidão em
movimento, de uma maneira natural, tal como faz uma cartomante, que atende pessoas no
meio do corredor de um shopping center.

No centro, dominando a paisagem, está o palco-altar, ornamentado pelos objetos que, isolados
ou conjuntamente, também desempenham funções retóricas. Bem no centro, está a tribuna; ao
lado dela, uma grande cruz de madeira, um órgão eletrônico, aparelhos de som e, às vezes, no
caso do templo do Brás, pinturas na parede atrás do púlpito e nos vitrais localizados nas
paredes laterais, contendo figuras de cachoeiras e águas em movimento, elementos
importantes na geografia do sincretismo religioso afro-brasileiro. O palco é decorado com
cortinas e um carpete vermelho cobre todo o chão. Sobre o púlpito, no centro do palco, um
exemplar da Bíblia permanece aberto. Ao lado, uma mesa da comunhão com um candelabro
para sete velas, cálice de vinho, pão, jarras de água e óleo, um cajado de pastor e objetos

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ligados à “corrente de fé” daquele dia. Freqüentemente, coloca-se na cortina, atrás do púlpito,
uma faixa com dizeres alusivos à “campanha” da semana. Tudo é colocado de uma maneira
organizada, porém, se faltar algum objeto no decorrer da dramatização, o pastor-celebrante
solicita e, rapidamente, a equipe de obreiros providencia, criando-se assim um ambiente
cênico apropriado para o êxito do ritual.24

Uma coisa que chama muito a atenção de alguém, que visita um segundo templo da Igreja
Universal, é a semelhança visual com o templo visitado anteriormente. Quem visitou um
deles, praticamente conhece todos os demais, pois há uma padronização de cenários,
aparências e maneiras de se atender o público. Assim também acontece com as estruturas
cênicas, linguagem, ideologia e posturas dos agentes em todos os lugares onde há templos
iurdianos.

Muitas vezes, essa padronização gera situações artificiais e curiosas. Assistimos, por exemplo,
em novembro de 1994, a um culto no templo da Igreja Universal, na Second Avenue, em Nova
York, onde o pastor, um português, com sotaque levemente “cariocado”, esconjurava
demônios usando uma mistura de português com espanhol. O templo, embora pequeno,
possuía um palco com cruz de madeira, fotografias de pessoas enfermas ou “enfeitiçadas”,
garrafas de água “orada”, ao redor do qual cerca de vinte pessoas ouviam o que se dizia e
participavam diretamente do exorcismo, acompanhando a oração, numa língua intermediária
entre o português e o espanhol, ampliada pelo sistema de som.25 Vimos cenas e rituais
semelhantes em outras metrópoles mundiais como em Santiago, Genebra, Paris, Madrid e
Lisboa, nas quais são mantidas, mutatis mutandis, muitas características do que se faz ou se
diz nos templos iurdianos brasileiros.

Os objetos de culto e o simbólico num templo-teatro

O observador, ao chegar a um templo iurdiano pela primeira vez, se impressiona com o


ambiente relativamente despojado se comparado com a suntuosidade dos templos católicos ou
a profusão de imagens nos terreiros de umbanda ou candomblé. Entretanto, tal despojamento é
apenas aparente, pois há uma riqueza simbólica escondida atrás do aparente e funcional “salão
de supermercado” ou de “teatro”.

Pois bem, nesse cenário os objetos vão surgindo durante o culto, em função da dramatização
proposta. A maioria deles já se encontravam sobre a mesa, no início da cerimônia, outros são
trazidos dos bastidores pelos obreiros ou obreiras. Assim, aparecem a “rosa abençoada”, o
“óleo da benção”, a “água orada”, as “pedras do Sinai”, o “pão de Israel”, a “água do Rio

24
Erika Fischer-Lischer (1992) elaborou uma significativa descrição semiótica do teatro alemão dos séculos
XVIII e XIX. Há várias partes de sua análise perfeitamente aplicáveis à religião teatralizada da IURD.
25
Cenas semelhantes podem ser vistas no templo iurdiano de Santiago, Chile, na Nataniel Cox 59, em cuja
fachada amplos painéis anunciam as “cadenas de oraciones que cambiarán su vida”, por isso, “pare de sufrir”,
pois há uma “oración fuerte al Espiritu Santo”.

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Jordão”, a “areia do Sinai”, o “galho de arruda” e uma infinidade de objetos distribuídos


gratuitamente, mas disponíveis após a participação das pessoas no ritual do ofertório.

Por isso, julgamos ser importante acrescentar algumas palavras sobre o estatuto ocupado pelos
objetos, tanto na comunicação humana como também no culto prestado aos deuses. Assim
podemos recordar inclusive que há uma “sociologia dos objetos”, na qual Abraham Moles
(1972) analisa, tanto a disposição como o manuseio deles no ato comunicativo. Uma
sociologia desse tipo nos ajuda a melhor compreendermos as interações com o sagrado,
articuladas no templo da Igreja Universal.

Mas, o que é um objeto? Na filosofia, é tudo o que se opõe ao sujeito, o ser pensante por
excelência, que afeta os sentidos. Na sociedade industrial, as coisas são objetos apropriados
somente ao se tornarem úteis, através da manipulação do homo faber. Em outras palavras, um
objeto não possui valor em si mesmo, mas somente quando ele representa e contribui para
localizar e dar status ao homem, num determinado espaço social, isto é, pelo seu valor de uso.
O indivíduo não deseja ardentemente o objeto em si mesmo, mas tão somente o bem
intangível do qual se acredita ser ele portador. Baudrillard (1973:207) observou que as
pessoas não consomem o objeto e sim o signo que o substituiu, isto é, a idéia de relação, um
objeto-signo. O valor de uso é atribuído, graças a sua funcionalidade e utilidade, o que torna
alguns deles uma espécie de talismã mágico, indispensável para a interação social.

Essa constatação acima denota a importância que há em se observar, em cada um dos objetos
de culto, as marcas da cultura que o produziu e a lógica que orientou a sua inserção no
cenário. Até porque, a sua inclusão não é uma obra do acaso, e sim conseqüência de uma
lógica classificadora e diferenciadora, estabelecida pelos grupos sociais, levando-se em conta
o poder de consagração desses sujeitos, e as regras estabelecidas por eles para a taxionomia.
Como observou Mauss (1974:77,78), a inserção dos objetos no cenário cúltico passa pela
consagração mágica.26 Na Igreja Universal, por exemplo, antes de derramar o azeite santo
sobre a cabeça dos novos pastores, o bispo consagra o óleo a ser usado, pedindo as bênçãos de
Deus para que, através dessa unção, os novos pastores recebam a presença do Espírito Santo
em sua vida.27

Tais considerações provocam perguntas como estas: Que sentido os objetos inseridos no culto
neopentecostal comunicam? Eles transmitem os mesmos significados para todos os
participantes da cena? A lógica que permite leituras diferenciadas dos mesmos objetos de

26
Vimos cenas semelhantes às que acontecem na IURD num santuário pertencente à dissidente Igreja Católica
das Santas Missões, visitado por nós em 4.1.95. Durante a “missa de exorcismo”, o “padre-exorcista”
interrompeu o ritual para as pessoas irem até um balcão nos fundos do templo e comprarem o “bálsamo
sagrado” por R$1,00 (cerca de um dólar norte-americano). O padre disse que aquele “bálsamo é muito valioso
e não há preço que pague o trabalho, que o “padre” Francisco Silva [titular da Igreja] tem para fabricá-lo,
porque é necessária muita concentração, oração e jejum para torná-lo apropriado para com o seu cheiro
espantar os demônios de uma casa”.
27
A Folha Universal (31.12.95) trouxe uma fotografia e a notícia sobre a consagração de quinze pastores e um
bispo na Colômbia. Na foto todos os pastores e suas respectivas esposas estavam ajoelhados, e, embaixo, a
legenda: “Bispo José Luís apresenta o óleo santo para em seguida consagrar o novo bispo e os pastores.” Com
a consagração a Deus, óleo, pão, vinho, água, etc. assumem novos significados para a comunidade de crentes.

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culto é exógena ao ritual de culto, brota da própria experiência litúrgica, ou é uma imposição
arbitrária do grupo de fé?

Nas observações realizadas, pudemos notar que a mentalidade mágica, presente em vários
grupos neopentecostais, nunca considera que seus objetos são portadores de poderes mágicos,
mas sim meios para que ocorra uma manifestação divina. Na lógica religiosa de um grupo, os
seus próprios objetos são sempre “consagrados” e “santificados”, ao passo que os artefatos
manipulados pelos concorrentes são e estão apenas a serviço da “sede de lucro” ou até dos
“demônios”. Em outras palavras, os objetos cúlticos dos concorrentes estão carregados de
magia negativa, enquanto os próprios conseguem ser um eficiente meio de comunicação com
Deus. Os exemplos a seguir ilustram bem tais formas de se encararem os objetos materiais nos
vários cultos:
“Muitas pessoas dizem que a angústia e brigas em casa são coisas da época em que
vivemos. Isso é falso. São coisas resultantes da presença dos demônios. Às vezes,
querem ir a Igreja, mas na hora de ir perdem a coragem ou acontece alguma coisa.
Tudo o que impede as pessoas de ir a Igreja é demônio. Venha, vamos ungir o seu pé
direito e desamarrar a sua vida” (Pastor Lana, Rádio Morada do Sol, 23.6.95).
“Participe da campanha da arruda contra os maus espíritos na última sexta feira do
mês. Temos a oração de descarrego com arruda, uma oração forte, muito forte para a
sua vida” (Rádio São Paulo, 29.9.94).
“Venha receber o pão da cura, o pão da bênção, o pão do Espírito. Leve um pedaço de
pão para um doente. Ele vai ser curado!” (Rádio São Paulo, 19.12.95).
“Venha à Igreja Universal receber uma fita para colocar no seu braço. Você que hoje
está com uma fita vermelha venha na próxima semana receber uma fita azul em que
está escrito: ‘persegui os meus inimigos e só voltei depois que os esmaguei’. Venha,
pois no domingo você vai receber a fita azul em todas as igrejas universal. Largue a
fita do Senhor do Bonfim, dos santinhos e venha receber a nossa fita azul da cor do
céu.” O pastor entrevistava uma família de quatro pessoas, às margens do lago
Paranoá, em Brasília, e diz (sic): “Veja só! Esta família toda está ‘enfitada’ (bispo
Gonçalves, TV Record, 31.8.95).
“Na Comunidade Cristã Paz e Vida nós não distribuímos galhos de arruda, óleo orado,
rosa perfumada, sal grosso, etc. Tudo isso é comercialização da fé, picaretagem em
nome de Jesus. Tais pastores deveriam ter vergonha de falar em nome de Jesus (....)
prometem coisas que não estão na Bíblia (pastor Rodney Paglarim, Rádio Morada do
Sol, 22.2.95).
“Há uma igreja aí que distribui a ‘rosa ungida’. Uma mulher recebeu uma rosa nessa
Igreja e deu para um homem que se apaixonou por ela. Agora são amantes. É claro,
irmãos, que essa rosa não tem o poder do Espírito Santo e sim dos demônios! (Ereni
Miranda, Rádio Universo, programa a “Voz da Libertação”, Igreja Pentecostal Deus é
Amor, 10.4.95).
Percebemos nessas declarações, a operação de uma lógica que nega aos objetos simbólicos a
existência de qualquer valor em si mesmo. Aliás, até mesmo os seus significados são
atribuídos em função das intenções dos agentes. Daí ser sugestiva a idéia de Baudrillard
(1973:207;1972:42ss) sobre a insuficiência em se pinçar o objeto para analisá-lo em seu

68
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aspecto físico. Pois é preciso ir além, isto é, contextualizá-lo, para que se torne explícito que a
chave do significado do objeto não está na dimensão sensível, mas sim no interior dos atores e
na lógica resultante das interações simbólicas. Ao fazermos essa leitura notamos ainda o peso
sedimentado das maneiras inventadas por uma tradição cultural para dar algum sentido aos
seus próprios objetos.

Da mesma maneira, os objetos de culto encontráveis no cenário iurdiano trazem consigo as


marcas católicas, judaicas, protestantes, afro-brasileiras, isto é, os sinais de outros cenários,
tempos e lugares. Isso exige que uma sociologia dos objetos cúlticos realize uma análise
“arqueológica” dos mesmos, e que se observem as características antigas, dentro da dimensão
histórico-cultural. Através dessa análise perceberemos que os significados atuais de modo
algum foram aqueles atribuídos, nas origens. E isso nem poderia ser diferente, porque os
atores mudaram junto com as necessidades da platéia. Além do mais, as novas demandas
forçaram o aparecimento de objetos diferentes e a recuperação de outros usados
anteriormente, em circunstâncias diferentes, mas agora recolocados em circulação, graças ao
emprego de novas chaves hermenêuticas.

Possivelmente, mais do que as igrejas pentecostais tradicionais, a Igreja Universal já mereça,


somente por causa de sua ênfase nos objetos como meios para se alcançar o sagrado, uma
atenção especial em nossa análise, embora, como vimos anteriormente, essa Igreja não
empregue tantos objetos cúlticos quanto os de cultos afro-brasileiros. Mesmo assim, justifica-
se o levantamento deles e a análise dos significados a eles atribuídos. Afinal de contas, os
objetos exteriorizam, nas formas e cores, mundos pensados pelos indivíduos que os criam e os
manipulam. Por que não se pensar então na combinação das cores das toalhas, cortinas,
tapetes, fitas distribuídas para os fiéis, cor dos impressos, bandeirolas agitadas em certas
cerimônias, forro das bandejas e sacolas de ofertas, iluminação e letreiros, próprios da Igreja
Universal?

Vários analistas, como Rosa Maria Bernardo (1994), têm classificado objetos e cores nos
cultos afro-brasileiros. No candomblé, por exemplo, predominam o branco, preto e vermelho,
cores relacionadas com o seu respectivo Orixá. As cores se relacionam também com os quatro
elementos naturais: água, ar, fogo e terra. Nos templos iurdianos, a cor vermelha predomina
no cenário e está presente em muitas partes, objetos e impressos. A sua retórica faz constantes
referências ao vermelho do sangue de Cristo, cor essa empregada até mesmo nos objetos de
plástico de pequeno valor comercial, vendidos à porta dos templos e que trazem o logotipo da
Igreja, como por exemplo, os porta-moedas e chaveiros.

Na Igreja Universal, os objetos valem pelo uso e são considerados “pontos de contato” para
“despertar a fé” nas pessoas. “Pontos de contato” é uma expressão aplicada a “tudo aquilo que
venha a ser útil para despertar a fé de alguém, de modo que através dela venha receber uma
resposta de Deus”. Para sustentar biblicamente essa conceituação, o Manual do Obreiro
(IURD, s/d: 65-68) cita dois trechos bíblicos. O primeiro se refere ao episódio em que Jesus
misturou saliva com pó da terra, fez lama e passou nos olhos de um cego para curá-lo. O
segundo texto atribui ao apóstolo Paulo, milagres realizados à distância, empregando-se para
isso, lenços e aventais de uso pessoal.

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De semelhante modo, na IURD esses procedimentos são encarados como artifícios para se
“colocar a fé em ação”. O que diferencia uma pessoa tradicionalmente religiosa, de um fiel da
Igreja Universal, é a capacidade deste último de colocar a fé em ação para atingir os objetivos
propostos para a vida. Portanto, é importante que o pastor os empregue eficientemente para
despertar as milhares de pessoas, que “crêem no Senhor Jesus e têm vontade de serem
abençoadas, mas que no entanto não sabem colocar a sua fé em ação”. O culto deve,
portanto, antes de mais nada, ser um estímulo para despertar a fé de católicos, afro-brasileiros,
protestantes históricos ou pessoas de quaisquer religiões, que nada conseguem na vida mesmo
tendo fé, porque não conseguem transformar essa fé em ação. Daí campanhas como a da
primeira semana de dezembro de 1995, intitulada “semana da ação de Deus”, que culminou
com o “domingo da ação” (10.12.95). Entretanto, ter uma fé que age é algo identificado com a
“tomada de uma decisão na vida”, no vocabulário iurdiano, tornar-se membro ativo da igreja,
participar de suas “correntes de fé” e desafios, fazer “sacrifícios de fé”, isto é, contribuir
financeiramente para a Igreja. É curioso que o neopentecostalismo da Igreja Universal,
intuitivamente, sem quaisquer interferências de cientistas sociais, apoiando-se em objetos,
descobriu maneiras de puxar os fios invisíveis da memória, e ligar o presente ao inconsciente
coletivo, onde estariam conforme a teoria junguiana, os arquétipos produtores de mitos e de
toda a mística religiosa.

Por outro lado, a IURD também usa com sucesso a força da linguagem simbólica para
transpor os limites da experiência imediata e avançar para além do visível. Com isso, dois
níveis de significação se interligam, o material e o simbólico, propiciando uma linguagem
inteligível a pessoas procedentes de várias culturas, desenvolvendo-se dessa forma, um tipo de
sincretismo ou de uma religião montada pelos fiéis, a partir de um kit básico.

A construção da linguagem neopentecostal é facilitada pela disseminação de uma cultura


globalizada, mais ou menos homogeneizada, levada a todos os recantos do mundo por
intermédio dos meios de comunicação de massa. Talvez haja, nas diversas culturas, a presença
profundamente arraigada de uma simbologia de inspiração universal, que facilita a superação
das fronteiras culturais, geográficas e políticas. O sucesso da mensagem dessa Igreja é maior
ou menor, na medida em que faz descobrir os símbolos das culturas locais, e estabelece uma
conexão com a sua retórica. Uma vez descoberto o veio, rapidamente ali se estabelece um
fecundo processo de comunicação, acrescentando-se-lhe também que os símbolos são
polissêmicos, intuitivamente captáveis, sugerindo várias leituras simultâneas, e criando
condição para pessoas com visões diferenciadas conviverem numa mesma comunidade de
culto, afetiva ou de idéias.

A ênfase nos símbolos, metáforas e alegorias levou essa Igreja a se distanciar do


fundamentalismo protestante, e de sua leitura literal da Bíblia. Esse livro, central para
protestantes e pentecostais tradicionais, pareceu-nos ocupar um lugar secundário em toda a
dramatização iurdiana, justamente porque, para seus pastores, a Bíblia é muito mais um
depósito de símbolos, alegorias e de cenas dramáticas, ou até um amuleto para exorcizar
demônios e curar enfermos, do que a “palavra de Deus”, encarada por outros grupos
protestantes como “regra única de fé e prática”, e para os fundamentalistas, “a regra
infalível”.

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71

Mas, não haveria algo de mágico no uso de objetos pela liturgia iurdiana? Que diferença há
então entre ambas as formas de se conseguirem os resultados? Mesmo sem a pergunta ser
formulada, a IURD explica: “Usamos coisas e objetos, não como fetiche, mas para que
ajudem a despertar a fé de uma pessoa”. Na perspectiva iurdiana, os “pontos de contato” são
úteis, principalmente para pessoas em fase inicial de fé, e nem todas precisam dessa “muleta”.
Aliás, a visão que Edir Macedo tem das pessoas que procuram os seus templos, aparentemente
não é muito lisonjeira. Pois, escrevendo para esposas de pastor, descontando-se o machismo
embutido nas palavras, que mais adiante comentaremos, aconselha ele:
“Não se envolva com o povo que chega na igreja, porque o povo chega cheio de
problemas; são pessoas de diferentes classes, com diferenças de educação. É preciso
ter sensibilidade. A pessoa precisa estar no altar de Deus para lidar com o povo. São
muitos problemas e você, esposa, não está acostumada; não tem o espírito que tem o
seu marido, porque o cajado está com ele (...).”28
Para a Igreja Universal, as pessoas devem ser atraídas com “iscas” apropriadas. Um povo
“supersticioso, idólatra e ignorante, como o povo brasileiro”, precisa receber iscas ao seu
nível, porque, como diz o bispo, segundo Mário Justino (1995:74), “para cada peixe deve ser
usada determinada isca” e o Manual do Obreiro (s/d:66,67) reconhece que:
“nem todas [as pessoas] necessitam de ‘pontos de contato’ para despertarem fé
suficiente”. [A maioria delas] “precisa, razão pela qual realizamos nas reuniões as
correntes e distribuímos gratuitamente coisas ligadas à Palavra de Deus direta ou
indiretamente, literal ou simbolicamente, para trazer às pessoas uma confiança; pelo
menos um fio de esperança, de fé, e assim levá-las a serem abençoadas”.
Os objetos, tanto na experiência religiosa mais ampla, como assinala Mircea Eliade (s/d:41),
como também na Igreja Universal, são sinais detonadores de emoções e de estados místicos
subjetivos e, como tal, provocam a reorganização de sentimentos e de significados naqueles,
que têm uma percepção confusa ou pouco apurada do mundo que os rodeia. Os “pontos de
contato” agem dialeticamente, pois permitem uma espiritualização do material e uma
materialização do espiritual. São autênticos símbolos na medida em que servem de ponte entre
duas realidades, uma visível e outra, não menos importante, invisível aos sentidos, captadas
intuitivamente pela fé. O mesmo “Manual” (s/d:67) registra o sucesso dessa estratégia e
afirma que:
[A despeito dos] “opositores, muitas vezes ‘bíblicos’, o Espírito Santo tem se utilizado
de coisas simples em nosso meio e abençoado continuamente a Igreja Universal (...)
milhares e milhares de pessoas têm sido abençoadas em correntes de fé através de
coisas físicas que temos distribuído graciosamente, sobre as quais oramos para que
através desses mecanismos as pessoas sejam abundantemente abençoadas.”
A Igreja Universal tem razão em atribuir parte de seu sucesso ao emprego desses pontos de
contato, porque essa estratégia permite a retomada de uma atividade coletiva de fundamental
importância para o ser humano, abandonada pelo protestantismo histórico, ou seja, a
capacidade de elaborar e readaptar os símbolos cúlticos. O processo de simbolização

28
Edir Macedo, A mulher segundo o coração de Deus - controle a sua língua, Folha Universal, 2.4.95.

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72

recolocado nas mãos do povo restabelece as ligações humanas com o transcendente.


Estabelece-se assim uma alquimia social e por meio dela o crente se sente outra vez ligado à
dimensão sagrada, muitas vezes perdida no meio de uma vida quotidiana fragmentada, e
ameaçada pelo processo crescente de secularização. Agora, através de um objeto material, se
estabelece uma ligação com o sagrado, o milagre acontece, e do fundo da psique humana,
emergem certas figuras ou arquétipos geradores de novas formas de comportamento religioso.

A lucratividade simbólica da Igreja Universal está no fato de ela poder, através do


despertamento da fé, contabilizar para si mesma, o privilégio da atribuição de significados a
tais símbolos. É por meio dessa “legitimidade”, respaldada pelos “resultados positivos”, que
palitos de madeira são percebidos como a “vara de Jacó”, e simples rosas personificam o
próprio Senhor Jesus. Em outras palavras, pela capacidade de dotar os objetos de significado,
a Igreja proclama que um pão não é simplesmente um pão e uma pedra é muito mais do que
uma simples pedra. 29Dessa forma o objeto, ao receber um segundo sentido, permite a invasão
da vida rotineira, fria e desinteressante, pelas forças do imaginário. Assim, transfigura-se a
realidade material pela instalação, dentro e através dela, do sagrado invisível. Para que isso
aconteça é preciso banalizar os símbolos de outros grupos religiosos e, eventualmente, até
agredi-los ou destruí-los, como aconteceu em 12.10.95, quando do rumoroso caso de “chute
na santa”. 30

Tradicionalmente, os cristãos consideram que os sacramentos são “meios de graça” e “sinais


visíveis de uma graça invisível”. A palavra “sacramento” não é bíblica, pois entrou para o
vocabulário religioso cristão apenas no terceiro século. Tertuliano, ligado ao montanismo, um
ilustre antepassado do pentecostalismo, foi um dos primeiros a falar em “sacramento da água”
e “sacramento da fé”. Jerônimo empregou a expressão “sacramentum” para traduzir a palavra
grega “mysterium”. A Igreja Universal, todavia, sacramentalizou elementos até então tidos
como banais e destituídos de valor ritual, fazendo surgir uma multidão de objetos que
aparentam ter força de sacramento, além dos sete sacramentos católicos ou dos dois
protestantes. Dessa maneira, ampliou-se o leque dos objetos sacramentáveis, permitindo

29
Obivamente esse mecanismo não é compreendido pelas autoridades policiais e judiciais, que insistem na
análise química de objetos apreendidos em cultos da IURD. No Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, por
exemplo, amostras de “óleo santo de Israel” e “água do rio Jordão” foram confiscadas e encaminhadas ao
Instituto Adolfo Lutz para exame e instrução de processo criminal por comércio ilegal de produtos com “efeito
medicinal”. O certificado OR-17.207/89 desse Instituto, datado de 4.1.90, reproduzido pelo Jornal da Tarde
(29.10.90), concluiu que o líquido apreendido era “uma mistura de óleo de soja e azeite de oliva, usualmente
destinado à alimentação humana e não para fins medicinais, impróprio para o consumo por estar rançoso”. É
claro que os produtos distribuídos em rituais religiosos e mágicos estão sob a lógica de uma economia
simbólica, possível de ser captada apenas pelos que fazem parte desse círculo lógico.
30
O episódio do “chute na santa” ocorreu em 12.10.95, feriado nacional no Brasil, dedicado ao culto da
“padroeira do País”. Num programa matutino de televisão, o bispo Von Helde, da Igreja Universal, em São
Paulo, levou para o estúdio uma imagem de gesso da santa padroeira dos brasileiros e, para demonstrar a
“falsidade” do culto aos ídolos chutou com os pés algumas vezes a estátua de gesso. Esse acontecimento, a que
assistiram algumas dezenas de milhares de pessoas apenas,tonou-se nacionalmente conhecido, graças à
reprodução dessas imagens pela Rede Globo de Televisão, concorrente da Record e de sua proprietária, IURD.
Foi então que dezenas de milhões de pessoas tomaram dele conhecimento, criando-se uma comoção nacional,
fartamente noticiada pela imprensa interna e externa, cuja divulgação se fez ao redor do conceito “guerra
santa”.

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incluir nessa lista: pedra, areia, sal, flores, água, óleo, perfume, ramos e folhas de árvores e
outras coisas mais.31

Os modos iurdianos encontram certa correspondência em alguns ritos das igrejas ortodoxas
orientais, que mantiveram, mais do que a igreja latina, a herança religiosa grega de afeição aos
ícones. Essa temática, entretanto, provocou intensas controvérsias iconoclastas no Ocidente,
tão bem estudadas por Alain Besançon (1994), que no decorrer dos séculos oitavo e nono
resultou numa vitória das tendências helenistas.32

Desde então, para os cristãos orientais, há um mundo inteligível (kosmos noetós), em oposição
ao mundo sensível (kosmos aiszetós). Arnold Toynbee (1984:13,14) ao estudar a cultura grega
ressaltou que a percepção humana no presente, tanto do kosmos noetós como do aiszetós, é
influenciada pelo karma, isto é, por um conjunto de receitas transmitidas de uma geração a
outra por intermédio da educação. Portanto, os sacramentos e os ícones estão ligados ao
mundo sensível e têm a função de permitir o trânsito entre o sagrado e o profano, facilitando-
se a transferência dos objetos de uma “província de significado” para uma outra. O não-
sensível é alcançável pelo sensível, exigindo-se que o adorador eduque a sua percepção e,
assim possa encontrar num objeto sensível, como a “pedra do rio Jordão”, a “pedra filosofal”
que explica, dá sentido, força e coragem para a vida.33Conseqüentemente, repetem-se no culto
iurdiano algumas ênfases da liturgia ortodoxa, como a valorização dos órgãos do sentido e

31
A Vulgata Latina traduziu o termo grego mysterium pela palavra sacramentum, dando origem à palavra
portuguesa sacramento. O termo mysterium era empregado por helenistas e religiões esotéricas dos primeiros
séculos da Era Cristã, com o significado de “segredos fechados”. Os autores bíblicos, todavia, o usavam no
sentido de “segredos desvendados”, para indicar as relações de lealdade que envolviam um juramento feito à
divindade. A definição aceita pelos cristãos foi formulada por Santo Agostinho e fala em sacramento como
sendo o “sinal visível e externo”, ordenado por Cristo, para significar uma graça invisível. Durante a história
da Igreja houve muita discussão sobre o número de sacramentos. No Século XII d.C., Hugo de São Vitor
chegou até a afirmar que eles eram trinta. A Igreja Católica aceitou apenas sete, e os protestantes, dois. Além
desses sete, a Igreja Católica tem também os sacramentalia, ritos comparáveis aos sacramentos, mas que não
são considerados essenciais para a fé. Entre eles estão as consagrações, atos de bênção, exorcismos e outros
mais. Para os cristãos, o sacramento é uma promessa de bênção, quando corretamente recebido. A IURD
oficialmente aceita a teoria protestante dos dois sacramentos. Seu Manual do Obreiro (Cap.1, Art.2°, item 11 e
12) registra que o “batismo nas águas é a imersão do convertido, em água, em Nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, não como meio exclusivo de salvação, mas como parte dela”, e a “Santa Ceia é uma festa
espiritual, através da qual os cristãos, pelo uso do pão e do vinho (suco de uva), relembram juntos a morte do
Senhor Jesus”. Entretanto, a Igreja Universal ultrapassa alguns limites do protestantismo histórico, ao
estimular uma atitude mágica, ao enfatizar o emprego do pão e do vinho da Santa Ceia, para afastar maus
espíritos ou proteger a soleira da porta contra o azar. Nesses casos, o pão e o vinho recebem outros
significados e funções, além de símbolos da morte de Jesus de Nazaré.
32
Naquela época, houve até mesmo cristãos, João Damaceno (675-749) por exemplo , que chegaram a dizer que
o Espírito Santo habitava na imagem dos santos. A IURD prega hoje que as imagens dos santos católicos são
habitadas por demônios que se escondem dentro delas. Nesse caso, a destruição de imagens é um ato de
exorcismo iconoclasta.
33
A valorização nos elementos materiais no processo de conhecimento parece-nos retroagir a Epicuro (341-270
a.C.), que defendeu a teoria sensista do conhecimento e a colocação da sensação como o critério mais alto da
verdade. Por outro lado, introduziu a idéia de que o ser humano deve buscar o prazer negativo, um estilo de
vida que não traga dor para o corpo, nem perturbação para a alma. Edir Macedo (Veja,6.12.95:65,73), o
fundador da IURD, comparando a experiência mística da conversão, afirmou que o prazer desse encontro foi
“mais gostoso do que o gozo de homem e mulher”. Nessa mesma entrevista, o citado bispo afirma que “o sexo
é para você ter prazer. Dentro do casamento, é claro. Penso que Deus criou o sexo também para você tirar a
sua ansiedade, descarregar sua carga um com o outro e assim ficar aliviado. Por isso a mulher é perigosa. É
um perigo! Tem de tomar muito cuidado com ela. Pode ser uma bênção ou uma maldição” (sic).

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dos “objetos-ícones”, embora essa Igreja exclua o culto às imagens, talvez devido à tradição
protestante, um pouco diluída, sim, mas ainda nela predominante.

A Sociologia da Religião tem como uma de suas metas ligar o simbólico-religioso e o


universo cultural à realidade social, em que essa interação se concretiza. Esse universo,
todavia, não é algo dado para sempre, mas herdado e continuamente reconstruído. Nele, uma
instituição religiosa encontra a sustentação para sua rede de símbolos e atividades típicas,
símbolos esses que mantêm uma eficiente capacidade funcional de mediação, quando
ancorados numa cultura que os garante e os legitima. Nesse sentido, é significativa a
afirmação de Tillich (1967:254) “os símbolos religiosos não são pedrinhas caídas do céu, mas
se enraízam na totalidade da experiência humana.”

Os símbolos, aos quais os objetos de culto da Igreja Universal se referem, fazem parte daquele
grande número de símbolos figurativos e cósmicos, tais como: água, fogo, alimento, luz,
natureza, que cada religião, à luz de suas características sócio-culturais específicas,
expressam, vivenciam, ordenam, adaptam e classificam, dentro de quadros culturais próprios.
Às vezes, como observou Juan-Eduardo Cirlot (1984:5), um símbolo pode sair de circulação
por séculos e voltar a ser usado, em um momento que dele se necessite. Possivelmente, as
condições culturais brasileiras, mais do que as de outros lugares, ofereceram melhores
oportunidades, situações “climáticas” ou o húmus necessário, para a recuperação de símbolos
até então em desprestígio, desde o início da onda secularizante, cuja primeira vaga foi
provocada pela urbano-industrialização. Foi nesse terreno que se tornou possível reatualizar
antigos símbolos, agora dispostos em redes culturais diversificadas, porém homogêneas, no
que tange à herança e origens nas antigas religiões e práticas mágicas.

Com isso, a Igreja Universal conseguiu superar a frieza litúrgica protestante, e trazer de volta
a teatralidade original do culto, a força expressiva, a originalidade e a criatividade à um
serviço religioso que perdeu quase que toda a carga lúdica e festiva, tendo-se transformado,
por isso mesmo, em serviço religioso, entendendo-se aqui o lúdico e o serviço como coisas
opostas, para o senso comum. O protestantismo cometeu o engano de excluir de suas liturgias
quase todo o conteúdo estético e abandonou os símbolos, os atos cênicos, a poesia e até
mesmo as luzes e roupas coloridas. Em suma, como sugere Mendonça (1985:31-60), o
protestantismo histórico, ao tentar se aproximar do modelo ideal da “Igreja Primitiva”, acabou
por eliminar resquícios teatrais e o lugar da sensibilidade global e completa do ser humano em
situação de culto.

No final desse processo de iconoclastia, restou apenas um palco vazio e no meio dele o
púlpito, de onde o pregador sozinho proclama racionalmente a palavra de Deus. Já nos
templos neopentecostais, com maior evidência, apesar de o púlpito ainda ocupar um lugar
destacado no palco, a centralidade litúrgica está nos rituais de cura e exorcismo, no “falar em
línguas”, e em alguns deles, no “dançar no espírito” ou no recebimento do “dom da risada no
Espírito”, isto é, na recuperação do riso e da gargalhada, mediante a imposição das mãos de
um pastor.34

34
Tal hábito parece ter se disseminado a partir de uma Igreja neopentecostal de Toronto, célebre pela prática de
ritos considerados “esdrúxulos” pelos demais pentecostais.

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Os cultos na IURD, poucas vezes acontecem fora dos templos. Os batismos, com exceção de
presidiários, ocorrem dentro dos templos.35 As encenações fora, quando acontecem, são nos
grandes estádios ou em locais a céu aberto, ruas e praias, realizadas talvez mais para
demonstrar força à opinião pública e inflar de orgulho seus seguidores do que para arrecadar
dinheiro. Como prova disso, podemos citar um pastor da Universal que, no rádio, reclamava
terem realizado uma concentração no Maracanã e sequer foi a mesma noticiada pela mídia.
Seu desabafo voltou contra a Globo, que teria anunciado em seu noticiário que “estava
havendo um congestionamento de trânsito na área do Maracanã e que por isso mesmo, os
motoristas deveriam evitar aquela região”. Indignado, o locutor dizia que o congestionamento
era devido à presença de quase 200 mil pessoas e cerca de cinco mil ônibus fretados pela
Igreja, estacionados ao redor do estádio, evento que a Globo insistia em não reconhecer, não o
noticiando. Dizia ele ainda: “Se fosse uma missa da Igreja Católica para cinco mil pessoas
teria dado manchete no Jornal Nacional”.

Edir Macedo continua uma tradição iniciada por Manoel de Melo, fundador da Igreja
Pentecostal “O Brasil para Cristo”, que no final dos anos 50, realizava sessões de cura e
exorcismos em estádios de futebol, conforme documentou Jorge Buarque Lyra (1960).36
Contudo, apesar do sucesso dessas apresentações, a Igreja Universal tem preferência pelo
templo, como cenário de seus rituais, talvez porque, um local fechado permite um maior
controle da dramatização encetada, um aumento da densidade, proporcionando-se assim um
maior contágio à multidão reunida, mecanismo, segundo Neil J. Smelser (1995:94, passim)
fundamental para se criarem crenças generalizadas, tensões, e mobilizar as motivações
coletivas. No templo, os resultados são melhores e o cenário já está montado, não dependendo
portanto, de adaptações, porque reúnem-se ali alguns dos elementos fundamentais para a
dramatização, como cenário, auditório, atores e palco.

Portanto, não é um mero acaso que grande parte dos templos iurdianos e de outros grupos
pentecostais como Igreja Renascer em Cristo, Igreja Internacional da Graça de Deus e outros,
sejam antigos e desativados cinemas ou outras casas de espetáculos. Porque, para a realização
de seus cultos, exige-se, além do palco, todo um conjunto de aparelhos eletrônicos, tais como
mesa de som, microfones, alto-falantes, luzes, amplificadores de som, aparelhos musicais e
outros mais, bem como um amplo espaço para a acomodação da platéia. No decorrer da
encenação há deslocamento de pessoas, movimentos corporais, formação de filas e realização
de procissões internas.

35
No interior das cadeias situadas nos distritos policiais, o batismo é feito por aspersão. Mas, havendo espaço
para introduzir uma pequena piscina, então o batismo se dá por imersão. Na Casa de Detenção de São Paulo, a
Igreja Universal construiu salas próprias para seus templos, deixando de usar os espaços “ecumênicos”,
compartilhados com todas as demais igrejas que atuam nos presídios da cidade de São Paulo.
36
Edir Macedo tem uma apreciação especial por reuniões em estádios e praças públicas. Assim também procedia
Manuel de Melo que, em 1958, conseguiu levar para o estádio do Pacaembu, numa “tarde da bênção” cerca de
150 mil pessoas. Nessas concentrações, embora os seguidores de Melo dissessem haver milagres, jornais da
época o denunciavam por charlatanismo, (O Estado de S.Paulo, 8.7.1959), o que custou a Melo processos na
justiça. Todavia, esses processos acabaram sendo arquivados por falta de provas. Em 13.3.1960 Melo realizou
na Praça da Sé uma “tarde da vitória”, atraindo 50 mil pessoas para comemorar o despacho da 8ª Vara
Criminal de São Paulo, arquivando um processo aberto contra ele por charlatanismo e prática ilegal da
medicina.

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Exemplos significativos desses rituais podem ser vistos em templos da Igreja Universal, em
vários dias da semana, conforme a “corrente de fé” daquele dia. Na terça-feira, a “corrente dos
milagres” exige uma intensa movimentação de pessoas, na passagem pelo “corredor dos
milagres”, formado por “setenta pastores”. Em outros dias, há a “travessia” do “rio Jordão”, o
entrar pelas “portas abertas”, a passagem pelo “arco do amor”, o toque de trombetas na “queda
dos muros de Jerico”. Essas e outras formas de participação dos fiéis exemplificam a alta
mobilidade corporal, que o culto da Igreja Universal exige das pessoas.37

Essas ações simbólicas são vividas com muita intensidade, proporcionando a cada fiel a
oportunidade de reviver eventos do passado, tidos como essenciais para a fé, de uma maneira
existencial. Rememoram-se, em cada encenação, eventos primordiais carregados de força
simbólica. O ambiente é de festas, o que facilita a transformação de cada um em
“contemporâneos dos deuses e dos seres semidivinos”. As dramatizações proporcionam às
pessoas uma saída momentânea do presente e um reencontro com as dimensões sagradas da
existência, confirmando observações de Mircea Eliade (s/d:102,117). A presença do
transcendental na vida quebra as rotinas, sendo experimentada com festas efervescentes, que
segundo Roger Caillois (1988:96,97), fazem com que cada indivíduo se sinta realizado,
confortado e amparado por uma força superior a si mesmo.

Assim, a Igreja Universal traz para dentro do templo o espírito das festas populares e das
procissões católicas. É como se estas deixassem as ruas e acontecessem no interior de um
templo, onde os fiéis dramatizam, em micro-procissões, uma trajetória que vai da aflição ao
milagre, do profano ao sagrado, apresentando à divindade as ofertas, pagando suas promessas
e recebendo as dádivas divinas para a vida. No ritual dessa Igreja, a plasticidade do sagrado se
exterioriza nos movimentos corporais dos participantes. O sagrado ali deixa de se manifestar
tal como na Igreja Católica, através da presença muda e petrificada das imagens e da
arquitetura. Mas, ao contrário da Igreja Católica, na Igreja Universal cada adorador crê ser ele
mesmo a imagem e semelhança do sagrado, na medida em que obedece ao “Deus vivo” e
demonstra estar entregue a Ele integralmente no culto, de corpo e alma.

Alguns objetos cúlticos colocados no palco-altar testemunham o lugar fronteiriço ocupado


pela Igreja Universal no campo simbólico. Na frente do palco, uma cruz de madeira, vazia,
sem a imagem do Cristo crucificado, se posiciona entre o rigor protestante, que excluiu de
seus templos os crucifixos, e a Igreja Católica, que faz deles sua marca distintiva. No pé da
cruz estão a “água abençoada” e uma discreta tigela de “azeite orado”, marcas dos cultos

37
No domingo, dia 31.12.95, no templo do Brás, em São Paulo, foram distribuídas espadas de plástico,
brinquedos de crianças, para as pessoas reviverem a disposição do profeta Elias de abandonar a caverna e
enfrentar a corrupta rainha Jezabel. É importante relembrar que essa campanha foi lançada para dramatizar a
luta da Igreja Universal e de sua rede de televisão contra a Rede Globo de Televisão, que havia atingido
grande intensidade naquela semana, conforme noticiou a Folha de S.Paulo, em 3.1.95. Numa quinta-feira, na
“corrente da sagrada família”, foi colocado no meio do corredor um arco com flores artificiais, uma espécie de
caramanchão, por onde as pessoas carentes de amor e de paz no lar deviam passar. Num outro dia, as pessoas
formaram filas para passar por uma porta aberta dentro de uma enorme cruz de madeira. Era a “campanha das
portas abertas”, que prometia uma efusiva presença do poder de Deus na vida de quem passasse por essa
porta. Uma mulher, que não pôde ir ao templo naquele dia, simulou a passagem pela “porta aberta” em casa
mesmo, e telefonou para o programa de rádio para dizer que também tinha sido atingida pelas “bênçãos de
Deus” (Rádio São Paulo, 30.8.95).

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kardecistas e afro-brasileiros. Sobre a mesa está a menorah, castiçal judaico de sete velas,
cujas velas raramente são acesas. 38

A teatralização e o predomínio da estética sobre a ênfase ética precisam ser vistos no contexto
das dificuldades experimentadas pelo culto praticado no protestantismo histórico, que se
afastou desde seu início, da religiosidade popular. Mais do que isso, o culto protestante
assumiu uma postura elitista, pois se atrelou a uma cultura burguesa, individualista,
capitalista, de supervalorização da racionalidade. Esse clima de decomposição cúltica entre os
cristãos tradicionais provocou entre muitas pessoas um aumento na demanda por rituais,
experiências místicas e formas de culto diferenciadas. Dessa maneira, enquanto as liturgias
protestantes perdiam a capacidade de estabelecer pontes entre o palco e a platéia, e de
estimular o comportamento e emoções das pessoas, crescia o movimento pentecostal e o
neopentecostal.

Essa é uma das causas do crescente esvaziamento da platéia que participa dos cultos nas
igrejas pertencentes ao protestantismo histórico. Dentro de seus templos, um pequenino grupo
de pessoas desmotivadas repetem um script, que se assemelha a um esqueleto sem vida. Neles
fazem sucesso somente aqueles agentes, que empregam técnicas desenvolvidas por ativistas
de auditório. Alguns desses agentes pastorais, simplesmente copiam as maneiras pentecostais
de lidar com o público, pois, o problema do pastor protestante tradicional agora é o de saber
como manter uma carreira numa situação de rarefação de “clientela”. Enquanto isso, o pastor
neopentecostal precisa controlar o seu tempo para não ser esmagado por um atendimento a
multidões, que procuram seu templo, das seis horas da manhã às dez da noite. Ele tem que
atender no “varejo” e cuidar também do “atacado”.

Tamanha reviravolta exigiu novos intermediários, especialistas em mediação simbólica.


Espera-se agora que o pastor seja, além de um bom public relations, também um “animador
de auditório”. Começou-se então a abandonar a idéia de se ter um “pastor-doutor”, conforme
observa Jean-Paul Willaime (1992:141). No bojo de uma crise da liturgia e do campo dos
clérigos, conforme Pierre Bourdieu (1996a:93ss), a sociedade passou a exigir um novo perfil
de pastor, no qual inclui-se o conhecimento prático do public relations, a simpatia do show
man dos programas de auditório das redes de televisão, o calculismo do administrador de
empresas, a acuidade de gerente de marketing, a capacidade de ouvir e orientar do
psicoterapeuta, a facilidade de representação de um ator profissional e a eficiência de um
mágico. Há, por trás dessas exigências, a crença de que os que se aproximam de um templo,
no caso iurdiano, buscam soluções para necessidades concretas e não palavras ou teorias
sobre a fé. Além desses novos intermediários, há outros atores sociais, que disputam com o
clero tradicional a manipulação dos bens simbólicos, o que atesta ter o campo religioso se

38
A cruz de madeira vazia, presença obrigatória em todos os templos da Universal, possivelmente seja uma
herança da Igreja de Nova Vida, freqüentada por Edir Macedo por mais de dez anos. No templo central dessa
Igreja, no Botafogo, Rio de Janeiro, há na parede do tanque de batismo uma cruz de jacarandá. A menorá,
símbolo judaico, aparece também em vários terreiros de umbanda; segundo Teixeira (1994) a presença de
símbolos judaicos e cristãos nos cultos afro-brasileiros, tal como a menorá é uma herança do judaísmo, via
catolicismo. Vimos também, num templo iurdiano do bairro da Luz, uma bandeira de Israel, com dezenas de
assinaturas de pessoas que gostariam de receber “orações forte”, na semana em que os bispos iriam visitar a
Terra Santa.

77
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tornado, como escreve Bourdieu (1990.121,123), “um campo de manipulação simbólica mais
amplo” do que as fronteiras da religião institucionalizada.

Resta analisarmos os objetos de culto iurdiano no contexto das práticas mágicas. Isso se torna
uma questão importante porque aparentemente, os objetos nessa Igreja são distribuídos,
empregados e apropriados dentro de uma mentalidade mágica. Os que se apropriam dos bens
distribuídos em seus cultos querem-se defender dos ataques simbólicos de outras poderes.
Assim também ocorre no mundo da magia, onde os amuletos são objetos aos quais se
atribuem poder curativo e de defesa. Esses objetos são individuais ou coletivos, podem ser
criados para um indivíduo especificamente ou, como é praxe na sociedade de consumo,
reproduzidos em massa e estandardizados. Mas, seja qual for a sua forma, o poder de um
amuleto se deve tanto à força coletiva como também à auto-sugestão de quem o recebe.

Há quase um século, sociólogos e antropólogos discutem as relações entre magia e religião.


James Frazer (1982,1991) orientou o debate durante muito tempo por intermédio da divisão
entre a magia homeopática e contaminante. O primeiro tipo se baseia no postulado de que “o
semelhante produz o semelhante”, e o segundo advoga a contaminação de um objeto por um
outro, sintetizado na seguinte frase: “As coisas que estiveram em contato continuam a agir
umas sobre as outras, mesmo à distância, depois de cortado o contato físico.”39

Em outro lugar, iremos considerar as implicações da magia para o ritual iurdiano. Aqui basta
ilustrarmos a distribuição de objetos encarados por muitos freqüentadores da Igreja Universal
como amuletos mágicos, sem a preocupação de se esgotar o estoque de exemplos colhidos no
decorrer da pesquisa, até porque isso seria muito cansativo.
O “corredor dos setenta pastores”, cena que acontece nos maiores templos da
Universal todas as terças-feiras, segundo o jornal oficial da Igreja, tem estimulado
muitos milagres. No templo do Brás, o pastor Clodomir Santos, distribuiu a miniatura
de um cajado para as pessoas passarem no local da enfermidade ou estenderem nos

39
James George Frazer (1854-1941) escreveu a sua magistral coletânea no final do Século XIX e início deste
século. Consultamos a edição resumida, publicada no México (1991) e, um resumo do resumo, editado em
português (1982). Nessa enciclopédica obra, Frazer reflete as preocupações e preconceitos de seu tempo com
relação à magia. Para ele, a “magia é um sistema espúrio de lei natural, bem como um guia enganoso de
comportamento (...) própria (...) à tosca inteligência não só do selvagem como também dos ignorantes e dos
obtusos em toda a parte” (1982:35). Para Frazer, Lévy-Bruhl (1857-1939) e outros, a magia fazia parte de
uma infância da raça humana e seria superada com o desenvolvimento da ciência, porque esta iria remover esse
conhecimento “bastardo”, baseado numa falsa associação de idéias e sentimentos. As pesquisas posteriores de
Jean Piaget concluem que a criança, nos primeiros estágios de crescimento, passa por uma fase mágica. A
magia, portanto, não seria uma fase superada da humanidade e sim uma parte importante de uma consciência
humana em desenvolvimento.
Durkheim (1989:74,76,77) também discute longamente a tendência humana para a magia e as suas relações com
a religião, considerando que a magia persegue “fins técnicos e utilitários” e, por isso mesmo, “não perde o seu
tempo com especulações”. Para atingir os seus fins, a magia estabelece rituais, invoca forças, até os demônios
se for necessário, fazendo de todos eles “instrumento de ação mágica”. Por esse e outros motivos, “religião” se
opõe a “magia”. Para Max Weber (1991:293,294), a religião se caracteriza pela submissão do homem ao
sagrado, serviços prestados à divindade, súplicas, sacrifícios e adoração; já a magia, pela manipulação e
coerção do sagrado. A partir dessa distinção, Weber propunha uma diferenciação entre o mago e o sacerdote
como tipos ideais opostos. Porém, apesar de Weber reconhecer a presença de uma qualificação mágica no
sacerdote cristão, tem prevalecido entre os sociólogos a idéia de que há uma oposição entre magia e religião.
Pois bem, diante do emprego de objetos como amuletos na IURD e em outros movimentos neopentecostais,
podemos manter essa distinção?

78
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lugares considerados “amarrados pelos demônios”, como a vida financeira, por


exemplo. No meio do corredor, foi jogada “água do rio Jordão”, e as pessoas deviam,
tal como Moisés, apontar o cajado para aquela água, “determinando” o tipo de vitória
que gostariam de obter. No mesmo culto, estendeu-se o “manto consagrado” no
túmulo de Jesus. “Com isso”, relata a Folha Universal (28.11.93) “o diabo, causador
de todos os males, foi cercado por todos os lados”. No culto de 24.8.93, após uma
leitura alegórica de Atos 19.11-12, o pastor concitou o povo a fazer com o bispo
Renato o mesmo que o povo fazia com os apóstolos, pois o bispo foi “consagrado por
Deus” e tem “autoridade para abençoar as pessoas que enfrentam todo tipo de
problema” e iria orar “para arrancar o principado que tem atuado no Brasil”. A seguir
foi formado “um corredor de setenta homens de Deus e o povo tocava na camisa do
bispo Renato”.
No templo do Brás, dia 7.3.94, no “corredor dos setenta pastores”, vimos pessoas em
busca de cura passarem as mãos ou beijarem um manto branco, intitulado “manto
sagrado”. Posteriormente, esse manto foi retalhado em pequenos pedaços distribuídos
às pessoas, que deram uma “oferta de amor” para a Igreja.40
Numa das Igrejas da Zona Sul de São Paulo, em 19.12.95, vimos pessoas receberem
fitas azuis para serem amarradas nos pulsos, adquirindo-se assim sorte e proteção
contra os malefícios demoníacos. Em outras oportunidades, foram distribuídas fitas
vermelhas, fazendo-nos recordar da significação das cores azul e vermelha nos cultos
afro-brasileiros. Numa sexta-feira, na “Vigília da Mesa Branca”, as pessoas em fila,
passavam as mãos sobre uma toalha branca, estendida sobre a “mesa energizada”, para
adquirirem bênçãos e proteção para a vida. Essa mesa teria sido energizada pela
imposição de mãos de pastores, que ali teriam passado 24 horas em “oração e santo
jejum”.
No programa matinal Despertar da Fé e à hora da oração especial de meio-dia e seis
da tarde, há o momento em que o pastor ora com um copo de água nas mãos. Ele pede
que Deus “fluidifique” com o Espírito Santo aquela água e “que ela seja, em cada uma
de suas moléculas, carregada com o poder do Espírito”. No final, ele convida as
pessoas que tiveram o seu copo abençoado por causa do contato com o aparelho de
televisão, a beberem daquela água com ele.
O locutor anuncia num programa de rádio da IURD (Rádio São Paulo, 7.8.95): “Venha
para o nosso templo e você vai receber a ‘vara de Jacó’. Com ela você poderá apontar
para o carro, para a empresa que você quiser trabalhar e Deus vai-lhe dar tudo o que

40
Há nas pregações da Igreja Universal, Igreja Palavra da Fé, da pastora Valnice Milholm, e de outras igrejas
neopentecostais, uma predileção por lugares de Israel considerados “santos”, “fortes” e “carregados de
bênçãos”. Poderíamos, se houvesse maior espaço, elaborar uma longa lista desses lugares “impregnados do
sagrado”. Contudo, entre os vários “lugares santos” cita-se muito o monte Sinai, o deserto da Judéia, o mar
Morto, as minas do rei Salomão, o túmulo de Jesus. Obviamente, nunca se diz que há “lugares santos”
meramente convencionais e que não existe qualquer garantia de que os eventos registrados na Bíblia tenham
acontecido naqueles exatos lugares. Tampouco, afirma-se qualquer coisa sobre os polêmicos túmulos de Jesus,
em Jerusalém. Na visão desses crentes, Israel é inteiramente uma “terra santa, pois nela Jesus pisou e, com a
sua presença, santificou pedras, areia, água, etc. Por isso, levar para casa uma pequena pedra, supostamente
tirada do rio Jordão, é levar um pouco daquele contágio com o próprio corpo de Jesus. Essa perspectiva de ser
Israel uma terra mágica leva, todos os anos, milhares de pessoas a fazerem uma peregrinação para Israel,
viajando através de várias empresas que atendem ao mercado evangélico, entre elas a New Tur, de propriedade
da própria Igreja Universal.

79
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você lhe pedir. Toda maldição e amarração que estiver no seu caminho serão
queimadas ou afastadas.”
Em setembro de 1994, apareceram em programas televisivos da Igreja Universal,
pastores contando que se banharam sete vezes no mar com roupas de pessoas doentes,
dizendo que garantiam a cura para os que viessem a usar tais peças de roupas. É
comum as pessoas trazerem para as reuniões garrafas com água, fotografias de
ausentes e roupas de enfermos e colocá-las sob a cruz de madeira para receber a
bênção. Chegamos a presenciar isso, como já relatamos acima num dos templos
iurdianos em New York, quando vimos ao pé da cruz, fotografias, roupas de
familiares ausentes, pão e água para serem comidos ou ingeridos pelas pessoas
enfermas, impossibilitadas de estarem presentes naquele dia naquele ritual de cura.
Em certos templos da Igreja Universal é comum as pessoas receberem em troca de
cédulas verdadeiras de R$50,00 ou R$100,00, “xerox abençoadas”, que devem ficar
juntas com as demais cédulas para provocar a multiplicação das riquezas. Aqui
aparece dissimuladamente uma crença mágica na capacidade de uma moeda “sagrada”
de gerar outras iguais a si mesmas, dando muita sorte ao portador. Michael Taussig
(1987:18-31) mostra como essa crença se manifesta no interior da Colômbia, onde
pessoas escondem dinheiro na hora de se batizar uma criança na Igreja Católica, na
esperança de poder obter dessa forma uma cédula abençoada. Não seria uma versão
religiosa do mito da “moedinha n° 1” dos desenhos de Walt Disney?
Em todos esses casos, é fundamental que o espaço cênico e a ação dos atores sejam mediados
pela presença de uma simbologia, devidamente compartilhada por todos os participantes.
Assim, o estoque de símbolos acumulados no imaginário popular é sacado de acordo com a
procedência do fiel, o que é facilitado pelos aspectos polissêmico, sintético, relacional e pré-
hermenêutico que os símbolos têm. No ritual e na dramaturgia, os símbolos que se diluem no
discurso racional reaparecem livremente, porque ali há poesia, música e criatividade. O culto
iurdiano, conseqüentemente, atinge com muito mais intensidade os sentimentos, a imaginação
e os desejos de seus participantes do que os demais cultos praticados por outras correntes
cristãs.

2.4 A dramaturgia religiosa em ação: Atores, equipes e platéia

Na dramaturgia, além do cenário e dos objetos, é fundamental a atuação do ator que com
presença, voz, gestos e dramaticidade provoca atitudes, reações e mudanças no
comportamento da platéia. Porém, de modo algum, essa ação é isolada, pois o culto
neopentecostal exige a participação de todos, algo nem sempre possível numa sociedade
atomizada e fragmentada.

O pastor-ator, por meio de suas palavras e gestos, procura integrar todos os presentes no
processo de exteriorização-interiorização coletiva da fé. Como tal, ele é um personagem
limítrofe, que se desloca entre as fronteiras do sagrado-profano e detém, por isso mesmo, as
técnicas de bem conduzir a todos nesse processo de êxtase. Nas várias culturas, é normal o
respeito pelos mágicos, sacerdotes, videntes, profetas, feiticeiros e outros indivíduos
especializados em encaminhar pedidos dos leigos, endereçados às instâncias sagradas. Eles

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são indivíduos fronteiriços, que, por terem se colocado nos limites de universos de
significado, se tornam admirados, atribuindo-se a eles privilégios, que normalmente não se
reconhecem nas demais pessoas.

Com essa liberdade, o pastor-ator cria, a partir de um cenário apropriado, um ambiente


“mágico” no qual os membros do grupo são convencidos de que seus desejos e vontades
poderão se tornar realidade, graças à intervenção de forças visíveis apenas, através de quem
pode enxergar com os “olhos” da fé. Para que a persuasão aconteça, assinala Arturo
Castiglioni (1993:111), é fundamental a manutenção da homogeneidade grupal, porque é
através dela que a força grupal atua sobre cada indivíduo, inibindo eventuais raciocínios
independentes e críticos.

No culto da Igreja Universal, assim como em outras formas de teatralização, há uma trama
que envolve atores em equipe e estimula um processo de interação social surpreendente com a
platéia. O que faz o pastor-ator conseguir sucesso em suas relações com a platéia? O que se
espera dele, antes, durante e após a encenação cúltica? Que preparo ele recebe para o
desempenho de suas funções dramatúrgicas? A resposta a tais questões exige uma análise
parcial do perfil do pastor iurdiano, pelo menos no que se relaciona ao exercício da
dramaturgia no culto, e em suas participações em programas de rádio ou de televisão.

O pastor enquanto ator

O papel de mediação entre o sagrado e o profano, pretendido pela Igreja Universal, toma
corpo através da ação de atores concretos, entre os quais está o pastor que preside o ritual. Ele
é o ator-mediador que, vestido como um moderno executivo, no dizer do bispo Macedo, “põe
para quebrar”. Com a sua entrada no palco, a dramatização se inicia. Ele tira o paletó e o
coloca sobre o espaldar da cadeira central, e então, de camisa com mangas compridas e
gravata, assume a direção de mais um culto-espetáculo.

Nesse instante, a multidão é convidada para o louvor, enquanto os obreiros se postam à frente,
tendo ao lado as obreiras, com seus uniformes padronizados, formados de saia azul e blusa, de
uma cor intermediária entre o branco e o azul claro, contendo estampas de fundo, pequenas
imagens estilizadas de um coração com a pomba dentro, símbolo da IURD. Um auxiliar
produz no teclado, ou no piano eletrônico, músicas compostas por pessoas da própria Igreja.
Quando não há organistas, coloca-se uma gravação, reproduzida por um toca-fitas conectado
ao sistema de som, criando assim um fundo musical propício para o desenrolar da ação
litúrgica.41

41
Quando visitamos o pequeno templo iurdiano da Segunda Avenida em New York, em novembro de 1994, não
havia órgão. A música era produzida por um aparelho de som operado por um pastor negro, com cerca de 60
anos de idade. O pastor dirigente do culto, no meio de uma “fervorosa” oração, dizia para o auxiliar, afastando
do rosto o microfone: “mais alto, coloca mais volume, mais alto, por favor! Ainda não está bom!”. É difícil
imaginar o andamento de um culto da IURD sem música. Assistimos às dificuldades de um pastor em Lençóis
Paulista, S.P., que na véspera do Natal de 1995 não podia contar com obreiros ou organistas em seu templo,
aberto quinze dias antes. Um seu irmão católico, pedreiro e negro como ele, explicou que o irmão pastor
“conseguiu a franquia há pouco tempo e ainda esta ajeitando as coisas” (sic).

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No primeiro ato, o pastor se ajoelha, e coloca o rosto no chão, e de costas para a platéia, com
o microfone nas mãos, inicia uma longa oração, que pode durar até quinze minutos,
percorrendo durante esse período de tempo os pólos litúrgicos situados entre a prece e o
cântico. A sua voz incisiva e chorosa é amplificada pelo sistema de som, elemento
imprescindível num culto neopentecostal. Assim, paulatinamente, os presentes vão sendo
integrados num mesmo clima, e, alguns minutos depois, o pastor está em pé, e a oração
continua, transformando-se numa canção cantada por ele e exaustivamente repetida pela
platéia.

Com essa prece inicial, o pastor coloca em movimento forças poderosas, baseadas no poder da
fé do “povo de Deus”, uma verdadeira massa, que nos noventa minutos seguintes, serão
controladas e “domesticadas”.42Porém, a oração e os louvores têm por finalidade, como todo
rito inicial, chamar a atenção do sagrado para o que irá ocorrer naquele lugar. Edir Macedo
(1994:56) escreveu: “A verdade é que os louvores que ministramos a Deus são o seu alimento
(...) Por isso mesmo, antes de fazermos qualquer pedido ao Senhor, devemos atraí-lo com os
nossos louvores...” 43

Assim, sem nervosismo e demonstrando segurança, o pastor vai abrindo picadas entre o
monturo de insensibilidades acumuladas pela rotina secularizante da vida, “amarrando” e
afastando os demônios para que eles não venham atrapalhar o ritual de culto, prática que
iremos analisar posteriormente. Depois de alguns minutos, o pastor-ator se comporta como
um show man, que detém um domínio quase completo sobre um auditório submisso. Com o
sucesso obtido até então, ele já pode ser encarado como o guardião de forças que regulam e
dão sentido à vida. Na platéia, os fiéis em pé, com as mãos cruzadas sobre o coração e olhos
fechados, balançam o corpo ritmicamente, enquanto oram ou levantam as mãos para cima e
cantam. Aparentemente, os fiéis flutuam entre músicas, oração e fragmentos de discursos
ensaiados pelo pastor. Está em curso um embebedamento místico das massas.

Esteticamente, o auditório se apresenta como se todos estivessem praticando uma ginástica


aeróbica ou um balé coletivo. O ritmo dos corpos e braços imita os movimentos oriundos dos

42
A inserção das massas, potencialmente tendente à desordem, dentro de uma fronteira, é um elemento de
fundamental importância para Elias Canetti (1995:16,23,24). Para ele, a religião institucional busca o controle
das massas e o estabelecimento de uma fronteira que “impede um crescimento desordenado, mas também
dificulta e adia a desintegração” da massa. Através desse controle, a massa se torna um rebanho obediente. “É
comum contemplarem os fiéis como cordeiros e louvarem-lhe a obediência”. Porém as massas, uma vez
habituadas a encontrar no templo essa experiência de unidade e de sentido para a vida, tornam-se dependentes
delas, assim como dependem do próprio alimento para viverem. Roger Bastide (1975), por sua vez, se refere a
esse fenômeno como a domesticação do “sagrado selvagem”, segundo ele um elemento importantíssimo para o
estabelecimento de formas institucionais permanentes de controle dos fiéis.
43
O emprego dos ritos para chamar a atenção da divindade é um procedimento normal nos rituais cúlticos de
muitos povos. Entre os astecas, o culto servia para revitalizar os deuses, que podiam envelhecer ou fraquejar
na atividade contínua de produzir chuva e alimentos. As atividades litúrgicas eram mais intensas a cada oito
anos. Periodicamente aconteciam sacrifícios humanos que, em outras culturas também, tinham por finalidade
influenciar a decisão dos deuses e mudar as suas determinações. A comida e demais oferendas nos altares
serviam para alegrar os deuses. Os cananeus contentavam os deuses com a oferta em metais preciosos, e tais
dádivas em ouro e prata eram guardadas em arsenais fortificados, nos palácios ou templos. Os próprios
hebreus, conforme pesquisa de Norman Gottwald (1986:552) atribuíam a Javé a expressão, muito repetida nos
templos iurdianos: “minha é a prata, meu é o ouro”. Essa crença, aliada à pregação do dízimo, acumulou
muitas riquezas no templo de Jerusalém, constituindo-se os famosos “tesouros de Iahweh”.

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modelos propostos pelo pastor ou obreiros. Rapidamente o clímax é atingido, pessoas caem
no chão, algumas são “tomadas pelos demônios”, outras “manifestam enfermidades”. A
tensão coletiva diante do sagrado e a sensação de carência, características do primeiro ato
cênico, começam a ceder lugar para um segundo momento, marcado por episódios de catarse,
colapso psicológico de alguns e cenas de exorcismo. Algumas pessoas são atendidas no
próprio local onde caíram, por obreiros e obreiras, que tentam exorcizar os casos mais fáceis.
Já os de mais difícil solução ou que apresentam uma excelente performance para continuar a
encenação são levados até o palco, onde essas pessoas serão exorcizadas. A platéia então
assiste a um espetáculo de alto poder dramatúrgico e dele participa.

O exorcismo faz parte de um sem-número de rituais e cerimônias religiosas, mágicas e até


terapêuticas, praticadas pela medicina popular de vários povos, conforme demonstram as
pesquisas de Michel Leiris (1958) e Ioan M. Lewis (1977). Como ritual, o exorcismo caminha
pari passu com as crenças em magia, feitiçarias, bruxarias e demônios. É um ritual em que o
ator-exorcista lida com forças emocionais muito profundas da psique humana, vindas à tona
em momentos de alta concentração dramática. Por isso mesmo, a Igreja Católica procurou
controlar atores e procedimentos durante o exorcismo e, no período de maior intensidade da
luta contra as bruxarias, publicou um manual contendo o diagnóstico e as recomendações
litúrgicas para disciplinar a ação de seus exorcistas.

Duvignaud (1966:33) observou que “o teatro trágico ou cômico começa com o espetáculo de
um indivíduo supliciado por ter transgredido as regras comuns”. No culto iurdiano, acontece
também coisa semelhante, pois os endemoniados foram tomados por forças rebeldes à vontade
de Deus e de seus propósitos de dar saúde, sucesso e prosperidade para as pessoas. A vítima
está sob pressão e contribui para a reprodução da desordem no mundo. Somente o exorcismo
poderá fazer dela outra vez uma pessoa livre. A platéia participa, projetando no possuído
aquelas forças demoníacas, que têm atrapalhado sua própria vida e dramatiza o exorcismo,
colocando as mãos sobre a própria cabeça ou sobre a do companheiro ao lado, enquanto o
exorcista realiza o seu trabalho na vítima vicária.

Tamanho poder dado ao pastor-ator pode gerar nele a sensação de onipotência e a admiração
de todos, sentimento que, ao ser interiorizado, pode gerar vaidade e orgulho. Edir Macedo, em
suas falas, insiste na idéia de que quem faz a obra é Jesus e não o pastor ou bispo,
intermediários que pouco significam. Os próprios testemunhos de fé, veiculados na mídia
iurdiana, mesmo referindo-se ao fato de terem resolvido seus problemas somente quando
“encontraram Jesus na Igreja Universal”, são enquadrados pelo entrevistador, principalmente
quando se referem a nomes de pastores ou bispos, com os quais sua experiência religiosa
estiveram vinculadas. Nas narrativas de fé, os nomes são banidos ou banalizados, ressaltam-se
somente o da Igreja ou da pessoa de Jesus Cristo.

Os dividendos dos milagres são canalizados para a ligação Jesus/Espírito Santo/ Igreja
Universal. Isso demonstra haver nessa Igreja um formidável mecanismo inibidor de
personalidades fortes, carismáticas, que possam desestabilizar o funcionamento normal da
Igreja. Conseqüentemente, o divisionismo, próprio do pentecostalismo de transição, (aqui
entendido como as igrejas e movimentos situados entre o pentecostalismo clássico e o

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neopentecostalismo, embora também presente na Assembléia de Deus), cede lugar para o


surgimento no neopentecostalismo das mega-igrejas, centralizadas em líderes fortes, mas que
funcionam até sem eles. Combinam-se assim, na prática religiosa cotidiana, os tipos ideais
descritos por Weber (1984), a autoridade carismática e a racional-legal, às vezes,
combinando-se também como no caso da Igreja de Nova Vida, com a autoridade tradicional,
transmitida entre gerações.44

Mecanismos inibidores do “vedetismo” pastoral

No palco do teatro convencional, espera-se que atores brilhem e, através do carisma


arrebatador, novas platéias sejam atraídas para as representações. O culto-espetáculo da
“igreja eletrônica”, de origem norte-americana, se caracteriza pela personalização do pastor-
ator, astro principal cuja ascensão, sucesso e queda levam consigo toda a equipe de produção.
É claro que o astro-rei impede o inflar de algum auxiliar e a concorrência de satélites, cuja
missão é girar ao redor do televangelista. Essa centralidade na pessoa do pregador gera um
império, em certos casos transmitido de pai para filho, analisado no âmbito das “igrejas
eletrônicas” por Quentin J. Schultze (in Abelman & Hoover:1990:41-52).

Essa situação não ocorre na Igreja Universal, que possui fortes mecanismos em seus templos e
meios de comunicação de massa, para impedir a personificação do carisma. Ao pastor
iurdiano é dado apenas o “carisma de função”, reservando-se mais para Edir Macedo, um dos
poucos remanescentes do grupo original que fundou a Igreja, o direito ao “carisma pessoal”.45
A ele se tem dado, até agora, total obediência, o que tem gerado dificuldades, às vezes, em se
conciliar a sua vontade soberana com a lealdade ao papel preestabelecido aos pastores. Trata-
se de uma estratégia que tem produzido bons resultados e impedido estragos divisionistas, dos
quais mesmo quando acontecem, seus participantes são isolados e ficam circunscritos a
espaços delimitados no campo religioso. Talvez seja esse o motivo pelo qual até agora, poucas
cisões provocadas por ex-líderes da Igreja Universal tenham obtido grande sucesso. A falta de
crescimento dessas igrejas dissidentes, com exceção da Igreja Internacional da Graça de Deus,

44
Nós nos referimos a sucessão do bispo Robert McAlister, da Igreja de Nova Vida, berço de líderes de várias
novas igrejas, tais como: Igreja Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Cristo Vive e
outras, o qual ao morrer, passou a liderança da Igreja a seu filho, descartando nessa sucessão um outro antigo
líder, o bispo Tito Oscar, pastor do templo de São Paulo. Essa sucessão acabou gerando conflitos internos e
cisão naquela denominação em 1995. Manuel de Melo também tentou fazer o seu filho, pastor Paulo Lutero de
Melo, sucessor de seu carisma na Igreja “O Brasil para Cristo” sem, contudo, conseguir realizar esse projeto.
Entretanto, Edir Macedo só têm filhas e um menino adotivo. Porém, David Miranda, da Igreja “Deus é Amor”
está transferindo parcela de seu prestígio a o filho, as filhas e genros.
45
É significativo o que um pastor da IURD nos disse sobre Macedo: “Todo mundo adora o bispo Macedo. Ele dá
uma ordem aqui e, lá no extremo do Brasil, e mesmo numa igreja distante, a ordem é conhecida e obedecida
(..) Macedo é uma espécie de líder ‘autoritário’ no bom sentido da palavra (...) ele é um homem que tem tudo
nas suas mãos dentro da igreja (...) as suas decisões são rápidas e inquestionáveis na Igreja. Ele falou e tá
falado (...) a unidade da IURD é garantida pela autoridade única e centralizada do Bispo Macedo. Assim temos
uma Igreja, que tem mais unidade do que a própria Igreja Católica.” (Entrevista, pastor A).

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demonstra o acerto de Macedo, em atrelar o sucesso da dramatização nunca ao ator ou a si


próprio, mas ao enredo implícito, do qual a sua Igreja detém honrosa mediação simbólica. 46

No entanto, em determinados momentos, a fidelidade ao papel estabelecido pode gerar


conflitos, principalmente quando as regras são mudadas repentinamente pelo diretor supremo
da dramatização ou o script sofre uma repentina alteração. Isso ficou evidente no episódio do
“chute na santa”. Tão logo a Rede Globo multiplicou as imagens trabalhadas do bispo Von
Helde, chutando a imagem da padroeira do Brasil, o então influente pastor da IURD, Ronaldo
Didini, saiu em defesa de Von Helde. Ambos estavam habituados a brigar com o catolicismo e
habituados com atos de iconoclastia no interior dos templos iurdianos, porém dessa vez, o ato
tinha sido captado por uma câmara de televisão, o que faz uma enorme diferença, numa
sociedade de massas. Didini, sem considerar a centralização hierárquica, deu uma entrevista
coletiva, afirmando que “a Igreja Universal estava solidária com o bispo Von Helde”. De
imediato, através do rádio, desde os Estados Unidos, onde se encontrava, Macedo retomou o
controle da situação como diretor do espetáculo, e segundo a Folha de S.Paulo (16.10.95),
proferiu as seguintes palavras:
Nós queríamos declarar para todo o povo católico, espírita e evangélico, a todas as
pessoas que direta ou indiretamente, foram atingidas por uma atitude impensada, (...)
insensata do bispo Von Helde (...) que pensou e agiu como um menino, trazendo esse
fato novo e inconseqüente para todo o povo brasileiro (...) queremos pedir então
perdão a todos vocês, católicos, que foram atingidos por essa atitude do bispo Von
Helde (...)”.
De imediato, no auge da crise, Macedo afastou do cargo Von Helde, pastor e bispo do templo
do Brás, e Didini de suas atividades à frente da Associação Beneficente Cristã e do “25ª
Hora”, um programa noturno de entrevistas sobre assuntos variados, transmitido pela televisão
da Igreja. A IURD anunciou então que Helde seria transferido para os Estados Unidos, e
Didini, para a África, segundo o jornal O Estado de S.Paulo (19.10.95). Esses homens foram
remanejados para outras áreas de atuação da Igreja, a despeito da absoluta lealdade ao papel
de iconoclastas que sempre foi praticado e exigido dos pastores da IURD.

Contudo, menos de 60 dias depois, Didini, que fora substituído no programa pelo bispo
Gonçalves, braço direito de Macedo, voltou ao País e ao ar, primeiro discretamente, depois,
assumindo abertamente o lugar que fora anteriormente seu. Didini, porém, deixou de falar em
nome da Igreja e passou a moderar o seu radicalismo com relação à Rede Globo.47 Macedo
percebeu que a Record estaria ameaçada, caso tal processo continuasse, na melhor das
hipóteses a perder anunciantes e na pior delas, a ter cassada a sua concessão. Todavia, a
“guerra santa” travada contra a Rede Globo somente cessou depois de uma intervenção direta
da Presidência da República, no início do ano seguinte.

46
Carlos Magno de Miranda, o dissidente mais famoso, fundou em Recife a Igreja do Espírito Santo de Deus,
cujo templo tem capacidade para 800 pessoas e atende, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, cerca de
1.500 pessoas semanalmente. Confira, “Pastor dissidente repete prática da Igreja de Macedo”, Folha de
S.Paulo, (29.12.95). Porém essa Igreja não teve até agora tanto sucesso quanto a Igreja Internacional da Graça
de Deus, do cunhado de Edir Macedo, exemplo de uma das cisões da IURD, que mais sucesso obteve.
47 No final do ano seguinte, depois de duas transferências para a África, Ronaldo Dinini rompeu com a Igreja Universal e
passou a fazer parte da Igreja Assembléia de Deus.

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A fidelidade ao papel exige ocasionais flexibilidades em coisas secundárias para se manterem


os objetivos primordiais. Edir Macedo tem passado à opinião pública a imagem coerente de
um “pastor perseguido”, vítima da Igreja Católica, que usa a Rede Globo para golpeá-lo.
Evidentemente, essa estratégia tem apresentado bons frutos e conservado unido o seu rebanho.
Porém, tudo isso é mantido através de uma encenação, que extrai o brilho individual de cada
pastor e canaliza os sucessos para a organização, ou em outras palavras, personalizando-se
contudo os erros e fracassos. Nesse sentido, o exemplo vem do próprio Macedo, que disse em
entrevista (Veja, 6.12.95:70-75) considerar-se “o estrume do cavalo do bandido (...) um monte
de nada (...) um lixo”. Seus detratores dizem que essa humildade é falsa, e não passa de uma
jogada de marketing, porém o público interno vê nessa manifestação uma atitude de
humildade e mansidão, mais um sinal desse carisma.

Seriam, entretanto, essas declarações de Macedo uma estratégia para desvincular a


organização de sua própria pessoa, preparando-a para um processo de rotinização do carisma a
curto prazo? Num número especial da Folha Universal (31.12.95), no auge da luta contra a
Rede Globo, seus redatores elaboraram uma significativa manchete: “Igreja Universal está
acima do Bispo” e no corpo da matéria:
“O Bispo Macedo tem afirmado inúmeras vezes que a Igreja Universal do Reino de
Deus é maior do que ele. Na condição de ser humano, o bispo comete suas falhas.
Assim também todos os demais bispos, pastores, obreiros e membros. Errar é
simplesmente humano. O importante é que reconheçamos nossos erros, nos
arrependamos deles diante do Senhor Jesus Cristo....”
É possível que essa centralidade da administração nas mãos do empreendedor inicial, a nosso
ver, seja o principal motivo a impedir uma eventual vedetização de alguns atores, porque,
quando alguém na Igreja, mesmo por cumprir com sucesso todas as exigências de seu papel,
começa a receber louvores e a se tornar mais visível que o próprio Macedo, rapidamente esse
ator é removido do palco e colocado em posições subalternas, numa espécie de “geladeira
eclesiástica”. Talvez esse seja o caso do ex-bispo Renato Suhett, a ser analisado mais adiante
neste trabalho.

A avaliação do pastor-ator: produtividade

Um ator de teatro é avaliado pela sua capacidade de representar, sensibilizar e atrair as


massas, assim como o vendedor também o é através das faturas emitidas pela fábrica aos
clientes. A IURD, por causa de sua ambigüidade organizacional, Igreja-Empresa, faz da
mensuração das coletas e da presença física de fiéis, as principais formas de avaliação do
trabalho de um pastor. Os pastores elaboram mapas semanais, contendo o número de
freqüentadores em cada horário e as respectivas coletas. Assim, o culto-espetáculo é avaliado
em função dos milagres realizados, dos exorcismos concretizados e, principalmente, em
função dos dízimos e ofertas arrecadados.

O pastor, no momento de culto, é o elo de ligação entre Deus e os homens. Seu sucesso se
deve a Deus, mas o progresso da Igreja depende de sua habilidade em arrecadar aquilo que

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Edir Macedo diz ser “o sangue da Igreja”, isto é, o dinheiro. Portanto, a capacidade de
aumentar o total arrecadado é que distingue o “pastor de sucesso” do “pastor improdutivo”.
Aos que se habituam a superar as metas, há promessas de uma carreira próspera, exteriorizada
em participação nos rendimentos do templo, e na promoção que pode levá-lo a se tornar um
líder estadual ou bispo.

Mas, para ser bem sucedido, o pastor deve por meio de sua ação integrar as práticas, anseios e
expectativas, que se acham dispersos na platéia. O “bom pastor” é aquele que consegue
provocar em seu auditório emoções, uma participação contínua nos cultos e nas “campanhas
de fé” e na decisão de se envolver em compromissos financeiros mais ou menos permanentes,
na Igreja. Ele é admirado e querido pelo seu auditório, não porque fale corretamente a língua
pátria ou porque use um discurso, que denote sabedoria, mas sobretudo, pelos resultados de
sua “intimidade com Deus”. Tal como o ator teatral, ele provoca o momento de efervescência,
desperta aquelas forças supostamente adormecidas no interior de cada um, gerando assim uma
integração das consciências, no sentido dado por Durkheim, fundindo-as todas numa nova
ordem proposta pela Igreja. Para conseguir tais resultados, o pastor-ator precisa dominar a ars
ou a techné, produtoras de persuasão e realizar o que Berger & Luckmann (1973:104,105)
atribuem ser importante para o ator, isto é, corporificar os papéis e efetivar “o drama ao
representá-lo em um determinado palco.” Pois nem “o drama nem a instituição existem
empiricamente separados desta realização repetida”.

Por tudo isso, é que se pode afirmar que, na Igreja Universal, o processo de avaliação do
pastor passa obrigatoriamente pela análise de sua performance teatral e produtividade. Esse
pastor é treinado para conseguir resultados, prioritariamente monetários. Os exemplos a seguir
são confirmações desse aspecto, embora devam ser examinados com certo cuidado, pois
vieram a público durante a polêmica entre a Rede Globo e a IURD, no segundo semestre de
1995. 48

O primeiro deles faz parte de uma fita de vídeo gravada pelo ex-pastor Carlos Magno de
Miranda e levada ao ar pela Rede Globo de Televisão, no horário nobre, poucos dias antes do
Natal de 1995. O segundo faz parte do livro-depoimento escrito por Mário Justino, um outro
ex-pastor, em que ele relata as maneiras como se cobravam resultados e se excluíam os
pastores “improdutivos”, no final dos anos 80.

Cena n° 1.

48
Desde há muito, suspeitava-se que o pastor iurdiano era avaliado em função de sua produtividade, isto é, do
valor das coletas arrecadadas. A comprovação dessa suspeita tem sido confirmada no bojo da onda de
denúncias, irrompida na imprensa brasileira, no mês de dezembro de 1995. Orquestrando a Rede Globo de
Televisão, denúncias do Jornal Nacional, nos dias 24 e 25 de dezembro, muitos jornais e revistas reproduziram
denúncias sobre esse tema. A revista IstoÉ, (27.12.95), reproduziu, para comprovar “eficiência empresarial”,
relação de prêmios pagos a pastores da IURD em porcentagem, sobre a arrecadação de seus respectivos
templos, apresentando também um relatório analítico das contribuições de vários templos paulistanos, da
IURD em 1990. Em primeiro lugar, estava o templo do Brás, com uma arrecadação em outubro, de
US$1,354,638.03 (dólar no paralelo). Segundo denúncias de ex-pastores, pastores têm sido demitidos por não
conseguirem atingir as cotas estabelecidas para seus templos. A Folha de S.Paulo (2.1.96), apresentou o caso
de Hamilton Luciano Almeida, que foi pastor dos 23 aos 37 anos na IURD e de lá foi expulso porque não teria
alcançado a meta estipulada para o seu templo no Rio de Janeiro, a qual era de R$60 mil mensais. O ex-pastor
entrou com uma ação na 11ª Vara Civil da Justiça do Rio, pedindo uma indenização de R$ 7,2 milhões.

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O episódio se passa num campo de futebol, onde Edir Macedo jogava em 1990, segundo
Carlos Magno, uma partida de futebol com a maior parte da liderança de sua Igreja. No
intervalo, informalmente, ele orienta os pastores de como eles devem agir para conseguir
levantar uma boa coleta:
“ - Você tem que chegar e dizer: ó pessoal! Você vai ajudar agora na obra de Deus. Se
você quiser ajudar, amém. Se você não quiser ajudar, Deus então vai ajudar outra
pessoa ajudar, amém! Entendeu como é que é? Se quiser, amém. Se não quiser, que se
dane! Ou dá ou desce! Entendeu como é que é? Agora é isso aí. Porque aí o povo vê
coragem em você. O povo tem que ter confiança no pastor. Se você mostrar aquela
maneira ‘chocha’, o povo não vai confiar em você.
- Tem que ser o super-herói do povo, não é? (Alguém de fundo)
- Exatamente, tem que ser o super-herói para o povo e dizer: Olha pessoal, vamos
fazer isto aqui? É o grande desafio. Eu fiz isso. Eu peguei a Bíblia e disse: Oh! Deus!
Ou o Senhor honra a sua palavra (...) e então joguei a Bíblia, que se despedaçou no
chão. Fiz isso na igreja e na televisão. Então isso chama a atenção. O povo diz: Esse
aí, pô, briga até com Deus! Cuidado, hem! Aí, o que o pessoal.. então tem aqueles que
são tradicionais e dizem: Hi! Esse aí é um falso profeta, esse aí vai ser amaldiçoado,
agora tem outros que dizem: Puxa, há quanto tempo que eu queria isso, “poxa”, eu
estou cansado de ler a Bíblia, de ler tantas palavras e não acontecer nada na minha
vida. Então esse vai ficar do nosso lado. É tudo ou nada! E ele põe tudo lá. Quem
embarcar nessa está abençoado. Quem não embarcar fica. Entendeu como é que é?
Então você nunca pode ter vergonha, timidez. Peça, peça, peça. Quem quiser dar dá,
quem não quiser não dá. Se tem alguém que não quer dar, há um montão que vai dar.
- Tem que ser no peito e na raça? (Alguém de fundo)
- Sim, tem que ser no peito e na raça. Porque o povo quer o pastor com coragem. O
povo quer ver o pastor brigando com o demônio.
- O povo está cansado de falsa humildade! (Alguém de fundo)
- O povo está cansado de falsa humildade. O padre é tão humilde e não dá nada, não
oferece nada. O padre com aquela maneira (...) e nós vamos lá, é isso mesmo, e bota
pra quebrar, e vira cambalhota, e faz o povo ficar louco (...)
[A partir desse ponto, Macedo começa a ilustrar contando a história de Moisés.]
- Então Moisés foi lá, com o mesmo cajado que ele tinha aberto o mar Vermelho e
tinha visto tantos milagres, e ele chegou e perguntou: Por acaso, desta rocha pode sair
água? E tocou na rocha assim [fazendo gestos com as mãos] e saiu água! Há! Ha! Ha!
[todos acompanham com gargalhadas a ação de Edir Macedo, imitando Moisés]. Por
acaso, saiu água! Então Deus ficou chateado, porque você (sic) tinha que me honrar eu
não te dei um cajado, uma fé? Isso é o que a gente tem que falar para o povo!
- O nosso cajado é a nossa fé! (Alguém de fundo)
- Aí, eu pergunto assim [para o povo]: Quem é que gostaria de ter o cajado de Moisés?
O povo diz: “Eu!” [imitando o povo] Pois você tem; é só usar o seu cajado; entendeu
como é que é? A fé?

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89

[Um jovem pastor de fundo conta como conseguiu convencer trezentas pessoas a
darem o nome, pegar envelopes e assumir o compromisso de dar um mil cruzados
durante três meses. Ele diz (sic): “Olha que todo dia aparece dois, três mil na oferta”.]
-Vê se não tem dinheiro esse cara! Quem vê a cara dele na igreja não dá nada por ele!”
A seguir a Rede Globo apresentou a última parte: uma montagem em que se eliminou
o audio em que Edir Macedo abre o cofre da Igreja em Nova Iorque e vai, entre
sorrisos de outros pastores, contanto o dinheiro arrecadado. (Gravações, Rede Globo,
22.12.95).
Cena n°2

O autor do depoimento, ex-pastor Mário Justino (1995:59-62), conta como aconteciam as


reuniões dirigidas pelo responsável estadual da IURD na Bahia, Carlos Alberto Rodrigues,
nos anos 80. Rodrigues, hoje bispo, fora enviado à Bahia a fim de “resgatar a Universal baiana
da desmoralização e evitar a perda dos poucos fiéis, que teimavam em continuar na Igreja.” A
seguir, Justino registra o que, em sua maneira de ver, estava acontecendo na Igreja Universal,
naquela região do Brasil, naquele momento:
“... prisão de pastores por envolvimento com drogas, (....) adultérios, rebelião de
pastores, que em massa, abandonavam a Universal para abrir seus próprios templos.
Afinal de contas, templo é dinheiro (....). Havia também aqueles (....) que desviavam
dinheiro da Igreja para as suas contas pessoais. (...) As primeiras reuniões de pastores,
que Rodrigues realizou, foram basicamente uma enxurrada de ameaças e baixarias. A
mensagem foi curta e grossa: O pastor que não atingisse a meta de oferta que ele
havia estipulado levaria um chute no traseiro (prefiro usar esta palavra). Sabendo de
nossa origem humilde, ele prometeu fazer cada um de nós voltar à antiga vida dura de
pedreiros, garis e padeiros, caso não levantássemos o dinheiro que ele queria. (....) Na
sua gestão, o dízimo, secularmente 10%, passou para 30%. Ele criou também o ‘Pacto
da Comunidade’, um carnê com doze prestações, que as pessoas pagavam
mensalmente. Muito parecido com o Baú da Felicidade, com a desvantagem de que,
caso os milagres não acontecessem, o fiel não teria direito a eletrodomésticos nas lojas
Tamakavi. Sob a nova direção, a Igreja Universal do Reino de Deus da Bahia voltou a
ser o pátio dos milagres (...) Toda semana ele [Rodrigues] mandava pastores
‘improdutivos’ embora. Mas, para não passar aquela imagem de a-gente-só-pensa-em-
dinheiro, ele lançou mão de um plano maquiavélico: durante as reuniões, lia cartas
anônimas de veracidade duvidosa, em que alguém relatava a má conduta daquele
pastor, que Rodrigues já pretendia mandar embora. Depois de lidas as cartas, era feita,
na base do ‘levante a mão’, uma eleição que decidia a sorte do pobre coitado (.....)
covardemente levantamos as mãos pela saída (....) muitos não concordavam com seus
métodos, mas, por amor a seus empregos, não tinham coragem de se manifestar...”
Reafirmamos que o pastor iurdiano tem em comum com um ator a incumbência de encarnar e
fazer visível diante da platéia, personagens invisíveis. Para tornar isso uma realidade concreta,
o pastor precisa confirmar no decorrer do culto, com ações, que ele é o “homem de Deus”,
embora esse título seja um pressuposto aceito pela platéia desde o início da dramatização. O
reforço contínuo gera uma tautologia, pois o pastor é o “homem de Deus” porque é
instrumento de “cura”, “milagres” e “prodígios” e, por outro lado, ele faz todas essas
maravilhas porque é o “homem de Deus”. O argumento usado é semelhante ao empregado por

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Levi-Straus a respeito de um famoso feiticeiro de nome Quesalid, que tirava o seu carisma e
prestígio de atos milagrosos que estaria realizando. Claude Levi-Straus (s/d:208) registrou:
“Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava os doentes, ele curava seus
doentes porque se tinha tornado um grande feiticeiro”.

É por esse motivo que se exige na Igreja Universal obediência absoluta aos pastores. A sua
palavra deve ser acatada sem críticas, e todas as suas diretrizes, seguidas com rigor. A
obediência plena é um dos elementos mais importantes na estrutura e funcionamento dessa
Igreja. Tanto que, em um dos depoimentos, anotamos: “Acho que as ordens de um pastor é
(sic) para ser obedecida; afinal de contas, ele é o homem de Deus. E a mim não cabe discutir a
ordem de um homem de Deus.” Por esse motivo, não basta ao pastor simular crença, embora
haja alguns que conseguem praticar bem esse jogo. O sucesso do show é proporcionalmente
dependente da capacidade de levar a platéia a acreditar em sua sinceridade. O “bom pastor”
demonstra experimentar as emoções religiosas que passa para o público. 49

Uma observação mais atenta dos fenômenos, que ocorrem no meio neopentecostal, não
confirma a versão daqueles que ingenuamente colocam todos os atores-pastores na vala
comum dos “farsantes”, “manipuladores” e “fingidos”, cuja única finalidade seria simular
identificação com o sagrado para “arrancar dinheiro” do auditório. Esse preconceito, aliás
alimentado por convincentes argumentos, serviu para colocar esses pastores na defensiva. No
final de 1995, após as contínuas denúncias de “charlatanismo” e de “exploração econômica”
do povo pobre, os pastores passaram a iniciar e terminar o culto, explicando o porquê de se
pedir tanto dinheiro na Igreja Universal.50

As equipes e o monitoramento do “espetáculo de fé”


Entre outras contribuições de Goffman ao estudo da sociedade, está a análise do papel
dramatúrgico desempenhado pelas equipes na administração de uma impressão criada. Ele
49
O título de “bom pastor” foi atribuído por um nosso entrevistado ao ex-bispo Renato Suhett, quando este em
janeiro de 1996 já participava de um dos quadros do programa semanal “Pare e Pense”, apresentado na TV
pelo adversário de Edir Macedo, reverendo Caio Fábio. Suhett era na Igreja Universal um verdadeiro show
man. Dele, disse o entrevistado S.: “Esse é realmente um homem de Deus. O bispo Suhett é muito espiritual,
suas canções falam bem de perto ao coração de cada um, e quando ele foi removido para os EUA, a nossa
Igreja no Brasil sentiu muito a sua falta. Ele é realmente muito espiritual e imprimiu essa característica à Igreja
no período em que esteve à frente dela....” A revista Vinde (Ano 1, n°2, dezembro de 1995, pp. 6-10)
entrevistou Suhett e o apresentou assim: “o bispo do amor revela por que deixou a Igreja do Reino de Deus”.
50
A observação seguinte esclarece bem essa questão. Num dos templos da Av. Cupecê, Zona Sul da cidade de
São Paulo, no dia 19.12.95, o pastor estava no púlpito há mais de uma hora e passou a levantar ofertas. Eram
16h10, e o pastor disse: “Olha pessoal, estou dirigindo esse culto há uma hora e dez minutos. Eu pedi dinheiro
para vocês alguma vez nesse tempo?” A resposta veio com um sonoro “não”, gritado por todos. “Quem
concorda com os que dizem por ai que na Igreja Universal os pastores só servem para pedir dinheiro levante a
mão!” Uma senhora desatenciosa levantou a mão, e o pastor chamou a sua atenção e refez a pergunta. Não
houve nenhuma manifestação, o que o levou a continuar dizendo: “Pois é! Hoje recebemos tantas coisas boas
de Deus e nada demos para ele em troca. Agora é o momento de darmos a ele tudo o que pudermos e até o que
não pudermos. Se você não quiser dar o dízimo para Deus, você vai dar para as farmácias, para as fábricas de
remédios, para os comerciantes de cigarros, enfim, você vai dar para o diabo. Por que então não dar para
Deus? Olha pessoal, não é o pastor que pede, não! É Deus mesmo que está exigindo um sacrifício de sua parte.
Quem trouxe o envelope pesado de moedas venha para a frente. Não! Não! Deus não quer moeda! É muito
pouco para ele. Sim ou não? Quem não trouxe o dízimo, mas se compromete trazer amanhã no culto das três
da tarde venha buscar o envelope. Se tem dinheiro para receber de alguém, force o recebimento dando já para
Deus 10% daquela quantia. Deus vai honrar você e levar a pessoa a lhe pagar o que está devendo (...)”

90
91

definiu (1975:78) equipe como um “grupo de indivíduos, que cooperam na encenação de uma
rotina particular”, a fim de ajudar a manter uma determinada definição da situação.

A existência de auxiliares nos rituais de cultos ou de magias é uma coisa normal. Há sempre,
ao lado do ator principal, atores “secundários” que mantém a ordem durante o decorrer do
cerimonial, desempenhando a função de “guardiães” de fronteiras ou de “porteiros” de
cenário. Eles vigiam, inclusive para evitar que haja alguma ruptura no crescente clima
emocional, importante elemento para o sucesso do serviço religioso, a ponto de ser
interpretado pelos seus participantes com expressões semelhantes a esta: “o culto hoje foi uma
bênção”. Assim, no catolicismo há os “sacristãos” ou “coroinhas”; no templos presbiterianos,
os “diáconos”; nos cultos afro-brasileiros, o “cambono”, que auxilia os médiuns
incorporados, na comunicação com os consulentes ou o “samba”, auxiliar de “mãe pequena”,
que por sua vez contracena com a “mãe-de-santo”. Tais indivíduos funcionam como vigilantes
de um determinado “território social”, conceito colocado em circulação, no final dos anos 60
por Robert Sommer (1969).

No culto-espetáculo, o pastor iurdiano raramente se apresenta sozinho. A sua atuação está


atrelada a ação de outros figurantes, também importantes para o sucesso do empreendimento.
É praxe haver em seus templos, além do pastor titular, dois pastores auxiliares ou, então,
homens ou mulheres que atuam como obreiros, formando juntos uma equipe de trabalho
possível de desdobramento em outras equipes de propaganda ou ação social. Conforme o
Manual do Obreiro (IURD,s/d:81,100,101) há na Igreja Universal somente duas “ordens
sagradas”, a ministerial, constituída de pastores, e a leiga, formada por evangelistas. Os
pastores e evangelistas são itinerantes e estão sempre sujeitos a remoções periódicas. Em cada
templo local há um pastor-titular, que escolhe ou exclui os “obreiros da Igreja”, levando-se
sempre em conta as qualidades religiosas de cada um.

Os obreiros e obreiras atuam como voluntários e não têm vínculos empregatícios com a Igreja,
não recebendo por esse trabalho qualquer ajuda financeira. No entanto eles se reportam aos
pastores, pelos quais são escalados, respeitando-se suas respectivas atividades profissionais na
vida cotidiana. A função deles é auxiliar o pastor antes, durante e após as reuniões, atender as
pessoas que chegam para os cultos, aconselhá-las, ungi-las com óleo, cuidar das crianças,
enquanto os pais assistem às reuniões, e dirigir algum dos departamentos em que se divide a
igreja local. O obreiro atua nos templos como se fosse um “vendedor” de uma loja ao receber
os possíveis “clientes”. O bispo Paulo Roberto Guimarães (TV Record, 11.2.96) assim
caracteriza o obreiro: “Ele deve ter sempre um sorriso nos lábios, acolher as pessoas com
carinho (...) deixar os problemas que tem em casa e não trazê-los para a obra de Deus (...)
você está trabalhando para Jesus e não para o bispo.” Em certos templos, no do Brás por
exemplo, temos visto obreiros cuidando da limpeza do salão de culto, o que na prática, vem a
ser uma espécie de mão-de-obra gratuita para a IURD.51

51
O emprego de mão-de-obra gratuita em organizações religiosas fundamenta-se em motivação “meramente
espiritual” e isto têm sido muito comum. A própria Igreja Católica ainda faz uso freqüente desse tipo de
trabalho. Leonardo Boff (1981:58 ss) chegou, inclusive, a se referir ao trabalho gratuito na Igreja Católica
como manifestação de uma espécie de exploração humana, afirmações essas que lhe causaram inúmeras
dificuldades na relação com a hierarquia da Igreja. Em entrevistas, encontramos um membro da IURD que

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92

No decorrer do culto há um realinhamento constante entre pastor, evangelistas e obreiros. Às


vezes, um precisa cobrir a falta ou o insucesso do outro. Alguns exemplos a seguir, ilustram
melhor esse aspecto da interação social entre os vários atores, no decorrer da representação:
Assistimos pessoalmente, no templo do Brás (culto do dia 28.7.95, 15 hs), um pastor-
auxiliar, ainda muito jovem, aparentemente com cerca de 18 anos de idade,
participante da equipe de serviço no culto daquela tarde, na hora do apelo, em prol das
ofertas, ir até a frente e entregar uma oferta no valor de trezentos reais, após o pastor-
titular ter dito e insistido várias vezes em que o “Espírito Santo está me revelando que
há uma pessoa aqui disposta a dar trezentos reais para Deus”. Contudo, a despeito da
insistência ninguém aparecia. O jovem pastor aparentemente “salvou” a encenação,
quando então foi apresentado pelo pastor-titular da seguinte forma: “Olhem, só
irmãos! Ele é ainda muito jovem, está começando o seu trabalho na Igreja, mas não
mede esforços e está dando para Jesus quase tudo o que ele está ganhando nesse mês.
Ele é um exemplo para todos nós que estamos aqui nesta tarde.”
Numa outra oportunidade, vimos o então bispo Von Helde, na direção do culto chamar
a atenção de um pastor que, embora estivesse no “corredor dos milagres” agitando os
braços e orando em alta voz, não demonstrava muito entusiasmo pela representação.
Ele disse no microfone: “Mais entusiasmo, pastor! Assim Deus não vai ouvir os
nossos pedidos! Deus não gosta de desânimo!” O membro da equipe, mais que
depressa, se recompôs e imprimiu maior entusiasmo à sua atuação.

No programa “Despertar da Fé” há um quadro em que vários pastores são convidados


a dizer o próprio nome, o horário dos cultos e o endereço de seu templo. Um deles,
possivelmente nomeado nos dias anteriores, disse diante das câmaras, para desolação
do Pastor Gerson Cardoso, âncora do programa: “Esqueci o endereço da igreja!”
Rapidamente a produção corrigiu a falha, jogando na tela o endereço daquele templo.
Nas semanas posteriores, não mais vimos na televisão o desatento pastor.

estava trabalhando na reforma de uma casa e abandonou o serviço, desaparecendo por cinco dias. No sexto
dia, retornou para dizer que iria descansar, para reiniciar o trabalho somente no dia seguinte. Indagado pelas
razões de seu comportamento, explicou ter permanecido durante todo esse tempo trabalhando, dormindo e
comendo, dentro de um templo da IURD, como pedreiro. Perguntado pela forma de pagamento desse trabalho,
que se prolongava pelas madrugadas, ele disse ter feito tudo por “amor à Igreja e como uma oferta a Deus, que
tem me dado tantas coisas boas através da Igreja Universal”.
Mário Justino (1995:27) conta que o seu dia-a-dia na IURD era o seguinte: “Levantava às seis horas da manhã.
Começava por lavar os banheiros. Depois, limpava o piso e tirava o pó das dezenas de bancos (...) procedia
essa limpeza depois de cada uma das quatro reuniões diárias. Também fazia as vezes de segurança, tanto à
noite como ao longo do dia. Tudo isso, além de atuar como obreiro nas reuniões. Geralmente, eu fechava a
igreja às 23 horas, encerrando assim uma jornada diária de dezessete horas de trabalho, cumprida
religiosamente de segunda a segunda. Entretanto, eu nada recebia por esse serviço, quer dizer, não recebia
nada em dinheiro. Meu pagamento era basicamente a comida: café da manhã, um PF (prato feito) no almoço e
o jantar, que consistia normalmente em um sanduíche e uma sopa. Por causa desse uso do trabalho religioso
quase gratuitamente, vários processos trabalhistas foram abertos contra a IURD. Porém tudo inutilmente, pois
há uma legislação trabalhista no Brasil que coloca pastores e trabalhadores “vocacionados” fora dos vínculos
empregatícios. Tal legislação diz que as relações pastor-igreja são de caráter espiritual, sujeitas a um
sentimento subjetivo de vocação sacerdotal, imune, portanto, à legislação secular, e que a remuneração do
pastor é considerada “múnus eclesiástico”. Por esses motivos todos os processos de pastores contra igrejas
exigindo indenizações, conforme noticiário da imprensa (Folha de S.Paulo, 2.1.96) tais processos têm sido
derrotados na justiça. Mesmo assim, novos processos trabalhistas e indenizatórios continuam surgindo, alguns
deles mais como necessidade de um acerto de contas do ator com o seu passado iurdiano.

92
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No início da implantação ou consolidação de um novo templo, tem havido denúncias do uso


de simulacros para substituir a falta ou o insucesso de uma equipe de trabalho. Os exemplos a
seguir, tirados entre tantas denúncias e depoimentos, alguns de difícil comprovação, servem
como indício de que nem sempre a Igreja Universal emprega somente a persuasão baseada na
propaganda para convencer os doentes e problemáticos a se manifestarem em seus cultos.
Devido à quantidade deles, penso ser importante citá-los:
No Paraná, um ex-pastor da IURD contou que, ao iniciar um trabalho numa pequena
cidade no sul do País, estimulava o público presente na hora da coleta oferecendo
como sua oferta pessoal uma nota de alguns mil cruzados, a cédula de maior valor na
época. Mas depois, ao contar o dinheiro, antes de mandá-lo para a sede em São Paulo,
tirava aquela “nota indez” para ser usada novamente em outros cultos. Disse também
ter praticado outras fraudes para estimular o surgimento de milagres, como por
exemplo, contratar uma equipe de “falsos doentes” na cidade vizinha, para simular
milagres e prodígios. Os problemas se tornaram incontornáveis quando os simuladores
se tornaram chantagistas do pastor, ameaçando contar na cidade o que realmente teria
acontecido se não lhes fosse dado mais dinheiro. Sem outra alternativa, o pastor teria
abandonado a cidade e também a Igreja Universal.
Um informante nos contou que há meses não mais encontrava com uma jovem
freqüentadora de seu templo. Ao se defrontar com ela, num determinado dia, lhe
perguntou: “Por onde você anda, que sumiu?” E ela lhe respondeu: “Tenho viajado
muito. Estou trabalhando de ‘pomba-gira’ em várias igrejas.” E o informante disse não
estar entendendo o que ela estava dizendo. Ao que a moça completou: “Percorro várias
igrejas fazendo de conta que sou possuída pela ‘pomba-gira” (sic).
Num dos processos contra a IURD, aberto em São Paulo há, segundo relato do Jornal
da Tarde (12.10.90), o depoimento de Márcia Spósito, comerciante na Zona Oeste de
São Paulo, que ouviu de dois fregueses que freqüentavam um templo próximo da
IURD, contarem que eram pagos para se infiltrarem entre os fiéis e, com recursos da
própria igreja, fazerem donativos, incentivando as demais pessoas a fazerem o mesmo;
contaram também que às vezes simulavam doenças ou possessões demoníacas.
Todavia, tais processos quase sempre acabam sendo arquivados por falta de provas
(Jornal da Tarde, 12.10.90).52
Numa cadeia de São Paulo, alguns nigerianos, presos por tráfico de drogas, após se
“manifestarem” com demônios num dos cultos da Igreja Universal foram vistos
recebendo de alguém encarregado do culto naquela prisão maços de cigarro em
pagamento pela boa performance daquele dia.53
O curioso é que, a despeito de alguns desses casos terem se tornado públicos por intermédio
dos jornais, não temos conhecimento de quaisquer desmentido por parte da Igreja Universal

52
A publicação dessa notícia, entre outras que foram consideradas negativas por Edir Macedo, acarretou em
processo na justiça contra o Jornal da Tarde. Macedo alegou que tais notícias visavam “retirar-lhe o prestígio
que goza no meio da população brasileira, buscando destruir a instituição a que pertence”. Em 1.7.92, o juiz
Antônio Celso Aguilar Cortez decidiu julgar improcedente a ação penal, pois aquelas matérias, inclusive a
denúncia pelo uso de “falsos doentes para simular curas milagrosas”, foram consideradas “reportagem-
denúncia” cuja “essência é a defesa do interesse público, frente à qual há de ceder a suscetibilidade
individual”, (Sentença Processo 1620/90, 1° Ofício Criminal Regional Santana, SP, pp. 6 e 7).
53
Depoimento de um agente penitenciário sobre a atuação da IURD nas cadeias de São Paulo.

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94

do Reino de Deus quanto à falsidade deles. E, quando há alguma referência a tais denúncias,
elas são enquadradas no rol das “mentiras de nossos perseguidores”. Essa atitude de negar
sempre desperta o surgimento periódico de outras denúncias semelhantes. A repetição dessas
histórias, até por seguidores da Igreja Universal, indica pelo menos a existência de algumas
dúvidas quanto à extensão e qualidade de milagres. Tais versões apontam para a possibilidade
de existirem nessa Igreja claques, que funcionam para garantir por meio do contágio, o
surgimento de entusiasmo no público, mesmo que seja artificialmente induzido. Isso parece
confirmar Jean-Marie Domenach (1955:79), que escreveu: “A ação do condutor da multidão
multiplica-se quase sempre por intermédio das coortes de adeptos organizados.”

Tchakhotine (1967:562,563) e alguns outros estudiosos do comportamento coletivo têm


apontado a existência na multidão, de pessoas ativas e passivas. Os passivos, segundo ele
cerca de 90%, somente assumem determinados tipos de comportamento se forem estimulados
ou arrastados pelos ativos. Ora, os dados colhidos através de observação nos estimulam a
identificarmos esses ativos com as equipes de monitoramento do espetáculo de fé. Tais
“funcionários regulares do culto” ajudam nos templos neopentecostais na geração de uma
impressão, que age sobre os participantes. Resulta portanto, dessa ação em equipe, uma
interação social intensa, que pode até, no dizer de Charles Lindholm (1993), provocar o êxtase
e a perda da identidade do EU na veneração ao líder.

Infelizmente, nem todos os analistas dos fenômenos religiosos coletivos, que ocorrem no
pentecostalismo, têm dedicado maior atenção ao papel das estratégias racionais, resultantes da
articulação entre equipe e dirigentes na criação de mecanismos geradores de experiências
místicas coletivas.

2.5 Estranhos: os atores indesejáveis

Em virtude da intensa participação da platéia na encenação e de suas brigas com a mídia, a


Igreja Universal do Reino de Deus tem-se mostrado cada vez mais desconfiada com pessoas,
que queiram fazer algum registro do que ocorre em seus templos. A presença de jornalistas,
pesquisadores e curiosos é rapidamente percebida. Há indivíduos que funcionam como
“receptores de informações” e transmitem ao “diretor do evento” a existência de anomalias,
durante a sessão de culto. A partir daí, alguém é destacado para acompanhar e manter sob
vigilância o estranho, impedindo-o de ultrapassar o limite de tolerância. Por outro lado, a
intensa participação gestual permite a identificação rápida e precisa, mesmo no meio de
milhares de pessoas, dos que não apresentam sinais próprios da pertença religiosa.54

54
No programa 25° Hora, dia 27.12.95, o bispo Gonçalves disse que, por causa das “armações que a Rede Globo
estava preparando para eles”, a IURD estaria colocando em seus principais templos um sistema de segurança,
que incluiria câmaras ocultas para vigiar pessoas estranhas e suspeitas. Promessa ou não, tal afirmação é um
espécie de termômetro a indicar o nível de tensão ora reinante nos templos iurdianos. Realmente a presença de
uma câmara de televisão é um olhar estranho e devassador da intimidade religiosa de um templo. A câmara
cria uma outra realidade diferente da que está sendo dramatizada e pode receber montagens posteriores,
fazendo com que, pela editoração, a realidade inicial se configure numa outra realidade. Num culto transmitido
pela televisão, o bispo Paulo Guimarães interrompeu seu sermão e perguntou para um câmera-man, não

94
95

Em várias oportunidades, tem havido conflito entre jornalistas, pesquisadores e obreiros da


IURD. Um deles foi assim relatado pela própria vítima, Armando Amenore:
“Queima! Queima! Queima! Quando ouvi o grito inquisitorial da multidão, pensei:
‘não saio vivo desta’. O medo fez os meus braços adormecerem e os joelhos quase
dobrarem (...) dezenas de obreiros me cercaram (...) o pastor cada vez mais
empolgado, ordenou: ‘vamos expulsa-lo do templo’ (...) achei que iriam me linchar
(...) pedi a um obreiro que me protegesse. Ele me abraçou e, caminhando lentamente,
implorando calma à multidão, conseguiu me tirar dali.” (Folha de S.Paulo , 17.9.95).
Acontecimentos como este demonstram haver uma forte tensão entre os iurdianos e a mídia, e
têm provocado o surgimento de sistemas de segurança, nos principais templos em São Paulo e
Rio de Janeiro. Há, por outro lado, técnicas apropriadas para identificar estranhos no culto.
Por exemplo, indagado como percebia estranhos um pastor (M.) afirmou: “Logo dá para sentir
que o indivíduo não tá (sic) batendo palmas, orando ou contribuindo. Mesmo que ele não
esteja anotando nada, a gente sente que ele está por fora do que está acontecendo no culto.”

A mídia interpreta a desconfiança iurdiana como sinal de que realmente há algo escondido,
que não pode ser revelado à opinião pública. Mas, a teoria dramatúrgica permite uma análise
da reação iurdiana de uma outra maneira. Pois, se pensarmos no culto neopentecostal como
uma dramaturgia em ação, é muito simples concluir que a presença de estranhos à dramaturgia
é um risco à representação como um todo. No culto iurdiano, não há espaço para assistentes
isolados na platéia, e tudo o que atrapalha o bom andamento do culto é imediatamente
encarado como a presença dos demônios. O bispo Macedo (1989:24) escreveu que:
“por incrível que pareça, o diabo ataca mais dentro da igreja do que em qualquer outro
lugar. Durante as reuniões, é muito comum acontecer de uma criança chorar, alguém
chegar apressado e pedir informações, outros manifestarem demônios, antes mesmo da
oração; enfim, uma série de coisas acontecem para desviar a atenção das pessoas da
mensagem.”55
Esses episódios confirmam a importância da função do diretor de espetáculo desempenhada
pelo pastor, de quem se exige a distribuição de papéis e a supervisão de todo o processo
dramatúrgico, o que às vezes, implica em afastar ou construir barreiras de segurança ao redor
do estranho.56Portanto, o pastor funciona como um controlador do clima teatral. No culto-

reconhecido por ele naquele momento: “Você é da Record, hein? Se for, o.k., pode continuar filmando. Porque
os outros vêm aqui, filmam e depois distorcem tudo” (TV Record, O Santo culto no seu Lar, 7.1.96).
55
Essa observação de Macedo indica a fragilidade da ação dramatúrgica em certos momentos. Sobre isso Peter
Berger (1980:155) escreveu: “Qualquer pessoa que traga para a situação a gravidade de interesses externos
‘sérios’, imediatamente despedaça esse frágil artifício de simulação. Berger (1979:126-128) exemplificou a
quebra do processo de representação social ao analisar um episódio intitulado “question de lustrar zapatos”. A
quebra do ritmo dramático do culto, dentro da visão de Macedo, só pode ser uma obra diabólica a ser
enfrentada com o exorcismo e amarração de demônios.
56
Outros pesquisadores têm relatado como enfrentaram enormes barreiras, em distintas regiões do País, para
observar os cultos da Igreja Universal. Um deles, Mônica do Nascimento Barros (1995), por exemplo, gastou
muitas páginas de seu trabalho para relatar as agruras enfrentadas no relacionamento com um objeto que “fala”
e “não fala”. A IURD é um exemplo típico de um objeto que se recusa a falar e faz do silêncio uma estratégia
de confronto com a sociedade. Em parte essa estratégia nasceu dos conflitos anteriores de seus pastores com a
imprensa de um modo geral. Por outro lado esse silêncio pode ser interpretado como um esforço para se
preservarem os “segredos do negócio” em um contexto de concorrência. Um de seus pastores nos afirmou que
“cada empresa tem os seus assuntos particulares, os seus segredos e nós também temos os nossos.” (Pastor A.).

95
96

espetáculo, todos ficam dependentes de sua orientação e de sua equipe de trabalho. É ele
quem encaminha a encenação, com a ajuda do grupo de obreiros, como se não houvesse uma
ordem litúrgica pré-fixada, isto é, a encenação aparenta não possuir um sistema de “auto-
regulação” em si mesma, o que exige, na ausência do pastor, que alguém assuma a função de
controle de fronteiras. Nesse caso, assume a direção do culto qualquer pessoa, que tenha
experiência na condução de um espetáculo e que seja portador de uma visão mais ampla dos
vários mecanismos, que regem as trocas simbólicas.

Os obreiros e obreiras, no decorrer do culto, percorrem continuamente os corredores,


estimulando a platéia a participar com emoção das cenas vividas no palco ou propostas pelo
pastor. Às vezes, os obreiros são usados para completar o número 70 para a realização do
“corredor dos setenta pastores”. Trata-se de uma tarefa importante, porque a participação de
todos é fundamental para a concretização do ritual da IURD. Além do mais, é a participação
da platéia que garante a fusão culto-teatro e a transformação do espaço de culto num teatro
total.

Como todo trabalho realizado coletivamente é natural o surgimento de intrigas entre os


membros de uma equipe de obreiros. Às vezes, tais conflitos surgem por causa dos lugares
mais proeminentes no decorrer do espetáculo. Soubemos de conflitos e até a difusão de relatos
falsos aos pastores sobre a idoneidade espiritual de outros obreiros, no templo da Lapa, por
ocasião da compra da Rede Record de Televisão, pois vários deles eram candidatos a um
emprego naquela emissora. Todavia esses conflitos internos são quase sempre resolvidos pelo
pastor nos bastidores, e raramente a platéia deles toma conhecimento.

Conclusão

Procuramos mostrar nas páginas anteriores que o culto iurdiano se aproxima da estrutura dos
shows e dos espetáculos teatrais. Nele, atores e platéia se interagem, entre objetos que fazem
parte de um cenário. O pastor-ator com a sua voz comanda um espetáculo em que a
modulação de sua voz, a entonação, o ritmo e velocidade se tornam uma metalinguagem e
assim ele cria novas realidades. Os pastores, trajando ternos da moda, simulam uma posição
financeira bem resolvida. Não usam no palco efeitos luminosos como os televangelistas norte-
americanos, e nem conjuntos corais. O pastor conduz o cântico, cujas letras são de fácil
memorização, e eventualmente, no templo do Brás algumas das estrelas contratadas pela
gravadora Line Records surgem, principalmente quando estão lançando um novo disco no
mercado religioso.

Contudo, a teatralização e a transformação do culto religioso num espetáculo é o preço pago


pelos religiosos, por submeterem suas ações à soberana vontade do público. Concordamos
com Baudrillard (1994:13,14 e 15) quando escreve que:

Restam também outras hipóteses, comentadas por Henri Desroche (s/d:15-16). Uma delas é decorrente do
clássico tabu contra o recenseamento, presente com mais intensidade na Congregação Cristã no Brasil. Esses
tabus são um obstáculo para as ciências da religião e têm levado alguns pesquisadores ao desespero ou então à
tática de policial que se infiltra entre os membros do grupo de onde se pretende levantar informações. Já no
começo do século Durkheim (1989:508) observava que “(...) o mundo da vida religiosa e moral ainda continua
fechado (...) Vêm daí as fortes resistências encontradas todas as vezes em que se procura tratar cientificamente
os fenômenos religiosos e morais.”

96
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“Para as massas, o Reino de Deus sempre esteve sobre a terra, na imanência pagã das
imagens, no espetáculo que a Igreja lhes oferecia. Desvio fantástico do princípio
religioso. As massas absorveram a religião na prática sacrílega e espetacular que
adotaram (...). Nenhuma força pôde convertê-las à seriedade dos conteúdos, nem
mesmo à seriedade do código (...) elas querem apenas signos, elas idolatram o jogo dos
signos e de estereótipos (...) desde que eles se transformem numa seqüência
espetacular...”
Por isso, o protestantismo elitista, de origem norte-americana e européia, fez sucesso no Brasil
apenas entre os que tinham condições sociais de aceitar a sua mensagem racionalizadora de
mundo, e esses eram um grupo minoritário da população. A aproximação dessa mensagem às
massas não se fez senão, através da entrega a elas de muitas características, que somente
naquele momento eram tidas como essenciais. Depois vieram as mudanças socio-econômicas,
e as transformações nas formas das massas vivenciarem a religião. Nesse contexto, chegou a
mensagem pentecostal, que foi acolhida, transformada e reestilizada dentro de novos moldes.

A dramatização neopentecostal nada mais é do que um momento em que tais transformações


são experimentadas no palco da vida, em nível simbólico. Nesse sentido, a Igreja Universal é
um teatro permanente, e seus pastores, obreiros e fiéis, atores que são, ao participarem
integralmente dos shows, que ultrapassam as paredes do templo, espraiando-se na vida
cotidiana de cada um deles.

O teatro cúltico participa da criação de uma realidade, que se sobrepõe a realidade social mas,
ao mesmo tempo, procura fazer com que a vida imite a arte. Pierre-Aimé Touchard
(1970:201) termina seu livro registrando :
“Sim, o teatro, eterno exorcista de demônios, que pacifica as paixões, que junta as
solidões; o teatro que - exatamente porque torna o irreal mais verdadeiro que o real -
faz de nossos mais vagos sonhos, de nossas mais difusas aspirações, de nossas mais
inconscientes necessidades, não mais testemunhos de impotência ou de fugas estéreis,
mas um trampolim para uma humanidade mais lúcida e mais violentamente ávida de
sua própria realização.”
Por esse motivo, a Igreja Universal conseguiu unir, por meio da teatralização do culto, a
necessidade de participação dos fiéis, a oferta de novos produtos simbólicos e as emanações
originadas das profundezas do imaginário social. Decorre daí o fato dessa Igreja ser
“moderna” e “antiga”, porque ela concilia e rompe com o passado, mas reunifica os
fragmentos de mundos, o que lhe garante a possibilidade de atuação num quadro de “pós-
modernidade”.

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98

CAPÍTULO 3 - TEMPLO E RELIGIÃO: ESPAÇO


CÚLTICO E RITOS NA IGREJA UNIVERSAL

“Sob a sua forma elementar, o sagrado representa pois, acima de tudo, uma energia
perigosa, incompreensível, arduamente manejável, eminentemente eficaz. Para quem
decida recorrer a ela, o problema consiste em captá-la e utilizá-la da melhor maneira
para os seus interesses, sem esquecer de se proteger dos riscos inerentes ao emprego de
uma força tão difícil de dominar. Quanto mais considerável é o objetivo que se
persegue mais a sua intervenção é necessária, e mais a sua aplicação é arriscada. Ela
não se doma, não se dilui, não se fraciona” (Roger Caillois, 1988:22).
“A domus Dei é, por excelência, a domus nostrae, onde, mais do que as memórias da
família e dos primeiros sonhos, se concentram os sonhos da raça humana, da
comunidade jamais experimentada, e da felicidade sempre procurada. A domus Dei é
construída de memória e fantasia. É nessa memória e nessa fantasia que nossa vida
particular se integra numa estória teológica que, no fim das contas, é muito mais a
nossa história do que as pretensas ‘histórias universais ou de civilização’...” (Jaci C.
Maraschin,1985:167)
O sistema de culto da Igreja Universal, como todo ato dramatúrgico, exige de cada assistente
uma intensa participação, e para a sua realização é necessário um espaço físico apropriado,
além de atores, script e platéia, tal como no teatro convencional e profano. Mas, são esses
locais de culto tão-somente um mero espaço voltado para representações dramatúrgicas? Que
eventos credenciam esse espaço geográfico a ser também um templo e, como todos os demais,
uma “morada do sagrado”?

O objetivo deste capítulo é descrever e interpretar o local de culto iurdiano, a partir da


dinâmica relação entre o sagrado e o profano, em um determinado espaço e assim tentar
entender os rituais, liturgias e festas desse locus e de suas interações com o socius, à luz da
pergunta básica motivadora: de que maneira os agentes, pastores e fiéis, constroem as suas
representações coletivas e interagem no espaço e no tempo, através dos atos cúlticos da Igreja
Universal?

Iremos tratar, em primeiro lugar, das maneiras pelas quais o espaço e o tempo são delimitados,
sacralizados e interpretados. Assim, estaremos relacionando as formas de classificação com as
maneiras pelas quais nessa Igreja, as atividades são organizadas e o mundo entendido. Em
segundo lugar, analisaremos a sacralização do espaço e do tempo, bem como as formas de
pontuá-los com rituais e festas, indagando também sobre os aspectos da arquitetura,
organização do espaço e elaboração de um calendário peculiar ao planejamento do tempo
litúrgico. Em terceiro lugar, pretendemos analisar os ritos religiosos como “momentos
especiais de convivência social”, que conseguem “colocar em close up as coisas do mundo
social” e assim reforçar, inverter ou neutralizar aspectos do mundo diário. Acompanhamos
nessa parte, a argumentação de Roberto Da Matta (em Rocha,1990:7), ao argumentar que: “a
ritualização do mundo é diretamente equivalente a uma produção cultural porque ritualizar é

98
99

inventar o drama, e dramatizar é chamar a atenção para alguma coisa que passava
despercebida.”

3.1 O templo enquanto “hospedaria” do sagrado

As maneiras pelas quais o “sagrado mora” ou é “hospedado” pelos seres humanos ao longo da
história foram, entre outros, objeto de análise de Gerardus van der Leeuw (1963), de
coletâneas organizadas por S.Anita Starffer (1994) e de Frank J. Glendenning (1960). Os
templos e santuários, concebidos para acolher o sagrado são construções mais ou menos
recentes, na milenar história das relações dos homens com os seus deuses. Isso porque,
inicialmente, a natureza foi o primeiro espaço cúltico de que se tem notícia.

Para o homem primitivo, todo o cosmo era um sacramento e cenário de manifestação do


sagrado. Tais representações se davam em pontos geográficos, onde a monotonia espacial se
quebrava, entre eles os rios, os altos das montanhas, a beira-mar, as regiões pedregosas, os
oásis, as cavernas e as florestas. Esses espaços atraíam, como ainda hoje acontece, seres
humanos necessitados de uma intervenção de forças transcendentes em sua vida e ali invocam
o sagrado, solicitam a graça e o auxílio para os mais variados desafios e empreendimentos.

Posteriormente, surgiram os santuários móveis, montados e desmontados pelos adoradores em


contínuas mudanças. Podemos apontar como exemplo disso as tribos israelitas, que
construíram para o Deus Javé um santuário em pleno deserto, colocando no centro a “arca da
aliança”. Javé era um Deus nômade, tal como os seus adoradores, e só posteriormente os
hebreus construíram-lhe um templo, ao lado do palácio real. Isso aconteceu também com
outros povos, os cananeus, por exemplo, cujos deuses se tornaram sedentários, habitando em
territórios especialmente reservados para eles, recebendo o nome de Baal, que significa
“possuidor”, “proprietário”, “habitante” de um determinado lugar. Por isso mesmo, uma
guerra de conquista territorial implicava sempre num conflito de deuses.

Semelhantes conceitos se desenvolveram também entre os maometanos, que crêem que Alá
habita no santuário de Caaba, em Meca. Nesse lugar há uma pedra escura, considerada um
presente que o patriarca Abraão recebeu do anjo Gabriel. Dessa maneira, um antigo lugar de
culto, anterior à era maometana, recebeu novas designações, agora dentro dos referenciais
islâmicos. Os romanos e gregos tinham o hábito de construir um templo sobre um topoi, lugar
sagrado, e alguns deles eram vedados ao público, especialmente o núcleo, onde estava a
imagem da divindade, lugar exato da manifestação do sagrado. Muitas dessas tradições se
mantiveram intactas após a cristianização da Europa.

O protestantismo, embora seja considerado um dos agentes do processo de secularização,


conseguiu fazer do templo um espaço apenas semi-dessacralizado. Do interior dos templos
protestantes, na Europa luterana e calvinista, foram tiradas as imagens, e os fiéis perderam até
o hábito de fazer o sinal da cruz ao passarem diante deles. Com isso, o protestantismo
permitiu realizar no interior de seus templos coisas, que até o Concílio Vaticano II, eram
impossíveis de acontecer em templos católicos. Certas alas do pentecostalismo levaram até às

99
100

últimas conseqüências essa atitude de dessacralização do espaço religioso. Os exemplos a


seguir expressam bem essa tendência dessacralizadora. No primeiro deles, Manuel de Melo,
em 1968, declarou:
“O povo precisa sentir-se à vontade no templo. Por exemplo: na minha igreja eu permito
que até a hora do culto o povo converse quanto queira. É um verdadeiro mercado lá
dentro. Todo mundo conversando: ‘como vai a tua mãe? E aquele cavalo que você
comprou? Todos conversam. Na hora do culto entro no assunto sério. Aquela idéia do
sujeito entrar no templo e pensar que está num túmulo, num cemitério, já acabou (...) Eu
não permito que o meu povo veja o templo como coisa sagrada. Para o povo do ‘Brasil
para Cristo’ o templo não é sagrado. É sagrado o que se faz lá dentro. O templo em si tem
apenas uma finalidade: ampara do sol e da chuva (...) quando começa o culto, todo o
mundo está satisfeito (...) Fiz muita coisa radical que hoje não faria mais. Mas percebi que
o culto participativo é o culto de que o povo brasileiro gosta.”57
O Bispo Robert Mc Alister (1977:128), da Igreja de Nova Vida, descreveu o comportamento
sem barreiras de seus fiéis no templo, da seguinte forma:
“Ela [a comunicação] começa no saguão de entrada com abraços e palavras de estima
mútua. Ao entrar e esperar a hora do culto, os membros da família de Deus trocam
experiências da semana, contando as bênçãos de uma cura recebida ou sobre um
pedido de oração (...) No culto de domingo pela manhã acontece, neste lindo templo, a
mesmíssima coisa que acontece nas igrejas pentecostais humildes, de madeira, nos
bairros do subúrbio da mesma cidade. Como o salmista Davi, nós batemos palmas para
comunicar a nossa alegria. O corpo começa a balançar. Uma fila de pessoas de braços
dados fazem ‘aquela dança’, que não perturba quem entende esta expressão de gozo e
prazer na presença de Deus...”
A lógica de Melo e Mc Alister aparentemente é a mesma de outros grupos protestantes, que
vêem o templo como um espaço sagrado, somente quando nele se instala um grupo de
adoradores. Possivelmente, esta seja uma herança das experiências acumuladas por ambos nos
anos 50, com o movimento das “tendas de cura divina”.58 As palavras deles talvez expressem
uma tradição acumulada pelo pentecostalismo desde as suas origens, quando acumulou
conflitos com as demais igrejas protestantes. Lembremos que a explosão pentecostal de 1906,
em Los Angeles, se deu num antigo e abandonado templo da Igreja Metodista Africana e que,

57
Manoel de Melo, em uma entrevista dada ao jornal metodista, Expositor Cristão, (Ano 83, v. n° 19, 1.10.68,
pp. 1 e 11), procurou mostrar o quanto o povo brasileiro gosta de culto participativo, contando então uma
experiência que teria feito. No primeiro dia fez um culto litúrgico, estilo presbiteriano ou metodista, como
afirmou, e contou 2.500 pessoas. No segundo dia ele anunciou que o culto seria do mesmo tipo e somente
mudaria o pregador. Vieram 1.000 pessoas. No terceiro dia, mediante idêntica promessa somente vieram cerca
de 400 pessoas. Algum tempo, depois fez um culto com muita participação. Na primeira noite havia 2.500
pessoas. Prometeu para o dia seguinte um culto igual àquele e vieram 5 mil pessoas. Na terceira noite o
trânsito da rua precisou ser interrompido para recolher a multidão no local de culto.
58
Estratégia empregada por pentecostais que enfatizavam a “cura divina”, no início dos anos 50 e que, por
entrarem em conflito com as demais denominações brasileiras, perderam o acesso aos templos e passaram, sob
a liderança dos norte-americanos Williams e Boatrigth, a realizar campanhas de “cura divina” em tendas de
lonas, montadas nos centros das grandes e médias cidades brasileiras, o que já era uma tradição entre os
pentecostais de cura divina dos Estados Unidos, no pós-guerra. O “movimento das tendas”, Cruzada Nacional
de Evangelização, deu origem tanto à Igreja do Evangelho Quadrangular como à Igreja Pentecostal ‘o Brasil
para Cristo”, na metade daquela década.

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101

no decorrer de sua expansão, houve uma oposição ferrenha das principais denominações
protestantes.

Por outro lado, os primeiros pregadores pentecostais não davam nenhuma importância ao
espaço e, sim, aos eventos que neles aconteciam. É possível que a aversão à arquitetura
luxuosa também esteja ligada ao desenvolvimento da idéia de que o abandono do antigo
cenário eclesiástico seria uma condição sine qua non para o renascimento religioso e que, o
ressurgimento de uma fé cristã poderosa, semelhante à dos primeiros apóstolos, somente seria
possível fora dos esquemas tradicionais de expressão da religiosidade cristã, inclusive as de
caráter arquitetônicas. Walter Hollenweger (1976:431,432) cita Horton, que admitiu serem
“os aposentos altos os que sustentam o poder do Pentecostes e não os templos”. Hollenweger
registra:
“O renascimento se produz no Pentecostes - mas não nas igrejas suntuosas, onde o
ritual de Pentecostes está desnaturalizado, senão no aposento alto, localizado não nas
ruas centrais, senão nos bairros pobres, onde o poder do Espírito divino se manifesta
em dons espirituais que transbordam e satisfazem as almas.”
O pentecostalismo, salvo exceções, fez com que o espaço de culto abandonasse a arquitetura
gótica ou rebuscada e se instalasse em antigas garagens, lojas comerciais e desativados
galpões industriais, comerciais ou áreas de lazer. Buscava-se então o Deus dos místicos, que
habita o interior de seus adoradores, não importando que a sua invocação se dê num espaço às
vezes dedicado à apresentação de filmes pornográficos ou num prédio comercial. A Igreja
Universal, durante o seu período inicial, usou com muita freqüência espaços de cinemas
decadentes, nos quais horas antes do culto eram projetados filmes pornográficos, conforme
notícias do Jornal do Brasil (30.3.88).

É claro que, ao longo das últimas décadas, alguns segmentos pentecostais no Brasil
construíram templos luxuosos. Um exemplo de “luxo pentecostal” é o templo da Igreja de
Nova Vida, construído pelo seu fundador, bispo Robert Mc Alister, no bairro de Botafogo,
Rio de Janeiro. Esse templo foi assim descrito pelo próprio Mc Alister (1977:128):
“Nosso templo em Botafogo, Rio de Janeiro, é dotado de ar condicionado, tapete azul
nos corredores e plataforma, luz indireta, móveis de veludo vermelho na plataforma, a
cruz de madeira jacarandá na parede do tanque de batismo. A congregação é em sua
maioria da classe média, gente profissional, muitos de educação superior. Enfim,
pessoas que em sua maioria, já têm resolvido seus mais urgentes problemas
financeiros”,
Conhecemos alguns templos pentecostais em cuja construção foi usado mármore ou granito,
seguindo projetos artísticos, que contrastam violentamente com a pobreza de seus
freqüentadores e que provocam perguntas como estas: Estaria havendo entre os pentecostais
de classes sociais mais altas e mais avançados no processo de institucionalização, uma volta à
arquitetura religiosa de maior luxo e suntuosidade? Em que sentido não se trata da
exteriorização de um complexo de pobreza de um grupo minoritário, que precisa provar, no
esplendor de seus templos, a riqueza do Deus dos pobres?

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Mesmo assim, há entre os pentecostais brasileiros uma tensão entre a sacralização e


dessacralização do espaço cúltico, e alguns tabus têm sido empregados para delimitar a
experiência do sagrado, como indicam os exemplos a seguir:
Nos anos 60, em Sorocaba, um templo da Igreja Assembléia de Deus, no bairro de
Barcelona, foi construído sem banheiros. O grupo que ali se reunia alegava que a
presença deles no espaço dedicado, exclusivamente ao culto divino, seria fonte de
impurezas. A decisão posterior, por medidas práticas, de incluir na construção os tais
banheiros, gerou um cisma, e várias pessoas abandonaram aquela Igreja por esse
motivo.
Na Congregação Cristã no Brasil e na Igreja Pentecostal “Deus é Amor”, homens e
mulheres só se sentam separadamente. Nos templos da primeira, “Casa de Oração”,
não é permitida a entrada de homens sem que estejam vestidos de paletó e gravata. Já
na segunda, é impossível a participação no culto de mulheres com calças compridas ou
outros sinais de estarem seguindo a moda. Há outros templos pentecostais, e
eventualmente até alguns ligados ao protestantismo histórico, em que se colocam
auxiliares do pastor para impedir a entrada daqueles que, segundo julgamento do
grupo, estariam por causa da roupa, barba ou cabelo, faltando com o “devido respeito”
para com a “casa de Deus”.
Essa tensão entre a sacralização e a dessacralização do espaço de culto se deve à existência de
duas lógicas que insistem, uma na desterritorialização do sagrado, outra na sacramentalização
do lugar, onde o Espírito Santo se manifesta. A lógica racionalizadora encara o lugar de culto
como um espaço qualquer, onde se misturam livraria, cantina e espaço de adoração. A outra
lógica expressa aquela mentalidade, que considera um lugar purificado tanto o terreno quanto
as construções, tomando-se como modelo o relato bíblico de Moisés, que segundo a Bíblia, ao
se encontrar com o Deus-Javé precisou tirar as sandálias dos pés, porque “estava pisando terra
santa”. Talvez essas tensões, também existentes no pentecostalismo, sejam sobrevivências de
uma prática católico-romana de sacralização do espaço.

Mas, isso ocorre no pentecostalismo de um modo geral e, em particular na Igreja Universal?


Antes de mais nada, é preciso retomarmos a idéia de Gramsci (1978:144) de que “toda
religião, inclusive a católica (...) é na realidade uma multiplicidade de religiões distintas,
freqüentemente contraditórias.” A Igreja Universal, por resultar de um processo de
justaposição de crenças, práticas e atores portadores de mentalidades ecléticas, e também pelo
fato de ser uma Igreja nova em explosivo crescimento, apesar de toda a padronização
discursiva e ritual, imposta por sua direção, ainda é um conglomerado e possui uma unidade
apenas aparente. Possivelmente, “várias IURDs” coexistem nos mesmos espaços geográficos
e simbólicos, ao contrário do que as primeiras impressões indicam.

Essa multiplicidade pode ser percebida na prática e discurso de seus agentes, oriundos de
tradições diversas e contraditórias, refletindo assim maneiras distintas de percepção do espaço
cúltico. Por isso, em suas reuniões há pessoas que conversam, riem, se locomovem e
demonstram até sinais de cansaço, principalmente na hora dos sermões, enquanto outras
pessoas se dirigem até o “altar” e ali beijam a cruz ou o “manto sagrado”, quando colocado
sobre a cruz. Nos cultos televisionados, nas manhãs de domingo, percebe-se claramente ser o
sermão a parte mais enfadonha do culto, pois, durante a sua apresentação, nem sempre os fiéis

102
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reagem aos incessantes estímulos do pastor com as perguntas: “Sim ou não, irmãos?”, “vocês
entenderam, sim ou não?”, “então amém, irmãos!”. Sem dúvida, essa parte do culto apresenta
um quadro próximo ao que acontece nos cultos de várias igrejas protestantes históricas.
Todavia, os cultos solenes das manhãs de domingo (O Santo Culto no Seu Lar) são
transmitidos apenas parcialmente, deixando-se de lado possíveis cenas de cura, exorcismo e,
principalmente, as coletas.

Entretanto, como veremos mais adiante, a concepção iurdiana de sacralidade do templo se


fundamenta sobre bases distintas das usadas pelo protestantismo tradicional. Na Igreja
Universal o templo, a despeito da teatralização que nele ocorre e da sua semelhança com um
mercado, é um espaço especial para o adorador. Mas podemos considerá-lo uma “morada do
sagrado”? Que sagrado “reside” nos templos iurdianos? É a força sagrada da coletividade
“efervescente”, como quer Durkheim, a força mágica, como sugeriu Mauss, ou a força do
Espírito como crêem os pentecostais?

3.2 O templo como um espaço “energético”

De todas as experiências que os grupos sociais mantêm com o sagrado, um lugar é separado
para a repetição do ato cúltico. Esse é o lugar em que se estimula a fé com rituais apropriados.
Rapidamente, ele se torna um lugar especial, irradiador de energia. As pessoas passam a
procurá-lo na ânsia de se conseguir acolhimento e proteção numa entidade maior do que todos
os adoradores.

O templo: lugar de uma fé efervescente


Os sociólogos da religião adeptos de Durkheim, colocam como ponto inicial da religião não o
surgimento da idéia de Deus ou de alma, mas a capacidade humana de experimentar
intensamente um período de efervescência e a insistência em abandonar a rotina da vida,
gerando-se assim novas formas de classificar o espaço e o tempo em porções sagradas e
profanas. Para Durkheim (1989:75,76), a igreja é “uma comunidade moral formada por todos
os crentes da mesma fé, fiéis e sacerdotes”. Assim, Durkheim exclui dessa categoria os
mágicos e seus seguidores ao afirmar que

“não existe igreja mágica (...) o mago tem clientela, não igreja; e seus clientes podem
muito bem não ter entre si nenhuma relação, a ponto de se ignorarem uns aos outros:
até as relações que têm com o mago geralmente são acidentais e passageiras”.

Conforme a teoria de Durkheim, sagrado e profano estão em mundos separados, protegidos e


isolados por interditos, exigindo-se ritos apropriados para a passagem de uma dimensão para
outra. Porém, o sagrado pode ser expresso por crenças e ritos que reúnem indivíduos, “que se
sentem ligados uns aos outros pelo simples fato de terem uma fé comum”. Nesse caso, surge a
igreja, “uma sociedade cujos membros estão unidos pelo fato de conceber, da mesma maneira,
o mundo sagrado e suas relações com o mundo profano, e de traduzir essa concepção comum
em práticas idênticas.”

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A religião, resultante da interação social, nascida naqueles momentos de efervescência e de


grandes abalos coletivos, possibilita aos indivíduos se elevarem acima de si mesmos, a fim de
conseguirem uma autoridade moral capaz de colocar um ponto final na anomia, e satisfazer às
suas necessidades. Portanto, para Durkheim, a sacralização do tempo e do espaço não seria
resultante de quaisquer manifestações divinas na natureza, em objetos ou nos topoi sagrados.
O sagrado, originado na própria sociedade, uma vez irrompido e delimitado, se torna uma
força “sempre pronta a derramar-se para o exterior, a escapar-se como um líqüido, a
descarregar-se como a eletricidade”, diz Roger Caillois (1988:20). É a sua explosão, que torna
necessária a administração desse poder, pois caso contrário, como afirma Roger Bastide
(1975:214-236), será uma manifestação selvagem, passível de implodir os moldes, nos quais
os humanos pretendem guardá-lo. A religião, nesse caso, é o exercício da domesticação
continuada desse sagrado rebelde e perigoso.

A manifestação dessa realidade “de ordem diferente”, segundo Mircea Eliade (s/d:35ss), se
constitui na essência da hierofania. É assim que para ele se produzem dois modos de ser no
mundo, o sagrado e o profano, graças à quebra da homogeneidade espaço-temporal provocada
pela teofania, permitindo-se o surgimento de uma oposição entre “espaço e tempo sagrados” e
“espaço e tempo profanos”. Dessa experiência primordial surge um “ponto fixo”, algo capaz
de reordenar o caos, instaurando no espaço e no tempo um mundo organizado, ou seja, o
“cosmo”.

A religião, conforme sugestão de Peter Berger (1985:15,20,21), é o resultado dessa atividade


humana fundamental de contínua busca, no meio do caos, de um mundo pleno de sentido e
ordem. Sobre isso, ele escreveu que “toda sociedade humana é um empreendimento de
construção de mundo” e que a “religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento”.
Porém, como todas as atividades de construção de mundo, a religião acontece dentro de uma
sociedade que “estrutura, distribui e coordena as atividades de construção do mundo,
desenvolvidas pelos homens”. A religião, portanto, se fundamenta nesse “cosmo sagrado”
construído pelo homem, que depois é experimentado como se fosse algo colocado fora dele
mesmo.

O templo é o espaço geográfico, onde o céu parece ter-se encontrado com a terra e como tal
está carregado de sinais estimuladores de experiências com o sagrado. No templo, crentes
pentecostais de inúmeras denominações cantam: “Neste dia feliz, neste santo lugar, eu
marquei um encontro com Deus.” Essa experiência com o sagrado põe fim às incertezas,
angústias e tensões provocadas pelos problemas da vida, fundando dessa forma uma nova
ordem, na qual o pentecostal encontra sentido para a vida. O elemento fundante é a
experiência religiosa horizontal e vertical e não simplesmente, o contato com os aspectos
físicos da religião. Contudo, o fiel pode confessar que é “graças ao Templo que o Mundo é re-
santificado na sua totalidade”, como escreve Eliade (s/d:71). Daí, o seu desejo de querer estar
sempre no templo, participar de suas atividades e oferecer o seu próprio dinheiro para ajudar o
sagrado a se expandir em direção ao mundo profano.

Por outro lado, para o crente da Igreja Universal, o templo está associado ao milagre da
conversão; por isso, ele deseja estar ali mais do que em qualquer outro lugar, para reforçar

104
105

continuamente, por meio dos rituais, aquela experiência fundante que originou a nova vida.
Do templo, ele sente emergir uma energia, que circula entre todos os participantes dos rituais
e que, segundo seu ponto de vista, mantém e sustenta a comunidade. Nesse sentido, a Igreja
Universal é, ao contrário de observações que se faziam por ocasião do período de seu
surgimento, uma comunidade de fiéis, mantida e sustentada pelos ritos que integram
indivíduos isolados, num grande espetáculo de fé, independente de qualquer espírito de
comunidade.

Para a realização da vontade de ir ao templo, o fiel iurdiano não precisa esperar dia e hora
apropriados, porque os templos da Universal são uma espécie de “templos-conveniência”, que
funcionam das sete da manhã às dez da noite.59 Em outras palavras, eles atuam como se
fossem um “pronto-socorro espiritual” ou uma “igreja de conveniência” onde, conforme
propaganda, “há sempre um pastor e um milagre que esperam por você”. Há, ainda mais,
linhas telefônicas à disposição, um S.O.S. espiritual e a possibilidade de participação, por
telefone, dos programas mantidos em emissoras da Igreja, no rádio e na televisão, muitos
deles ao vivo.

O comparecimento a um desses templos, na retórica dos pastores, é fundamental para que o


fiel continue recebendo as bênçãos divinas na vida. Sobre isso afirma o bispo Rodrigues
(Folha Universal, 6.8.95):
“Lembrem-se de que cristianismo envolve compromisso, comunhão com Deus e a Sua
obra (...) É impossível alguém se envolver na obra de Deus sem sua igreja. Já que a
mesma é instrumento usado na pregação do Evangelho, organizando e comandando a
evangelização (...) é impossível que um cristão se mantenha firme sem assistência
espiritual da igreja e o recebimento do alimento divino que ela dá.”
As citações a seguir apontam para a necessidade de se criar no fiel iurdiano o hábito de
comparecer ao templo sempre e não somente quando surgem as necessidades. A primeira
delas expressa bem os motivos pelos quais o fiel necessita de vincular-se ao templo. Já a
segunda citação, embora do mesmo teor, reflete uma outra situação em que a IURD está na
defensiva, diante as denúncias e pressões da mídia:
“Por quê ir à Igreja? Em Hebreus 10.19-25 está escrito que não podemos deixar de
congregar (...) Tenho pena da pessoa que assiste às reuniões apenas pela TV ou rádio e
nunca vai à Igreja. Ela vive cheia de problemas mas gostando de Jesus. A Bíblia diz
que temos de congregar-nos porque aqui há uma junção da fé, uma união de propósitos
em torno do Senhor Jesus (...) A pessoa só deve se cuidar com o perigo de se apegar ao
pastor. Às vezes, devido ao carinho, à Palavra que aquele pastor deu na primeira vez
que ela entrou na Igreja, ela se apega ao homem de Deus. Isso é que não pode
acontecer (...) você deve se apegar a Jesus (...) Acontece da (sic) pessoa se apegar tanto
ao pastor, que, quando é transferido, a pessoa vai atrás. Isso é errado. Esta (sic) pessoa

59 Quanto a localização, os templos da IURD, pelo menos na cidade de São Paulo se situam em corredores de
trânsito e de comércio. Ao contrário dos templos pertencentes ao protestantismo histórico ou pentecostalismo
“clássico”, eles se situam longe do lugar no qual a pessoal mora (bairro dormitório) e próximo ao local de
trabalho ou de um lugar próximo as linhas de ônibus, metrô ou trem. Uma distribuição geográfica dos mesmos
não coincidiriam com o “mapa da exclusão social” da cidade de São Paulo, elaborado por um equipe
coordenada por Aldaíza Sposati (1996).

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não nasceu de Deus ainda; ela nasceu da carne...” (bispo Suhett, Folha Universal,
21.11.93)
“Você vem a semana toda à igreja, participa de todas as correntes, mas não vem no
domingo à igreja; ora, o domingo é um dia muito importante...” (Pastor Júlio Cezar)
“A igreja é nossa mãe, é nela que nós nascemos e nos alimentamos. Devemos amar a
igreja e nunca deixar de congregar (sic). Mas, a igreja não é o caminho. O caminho é
Jesus. O bispo, o pastor não são o caminho e eles servem apenas para nos orientar na
palavra. A nossa fé só deve repousar na pessoa de Jesus. Porque só Jesus é perfeito.
Você deve confiar no bispo ou no pastor, mas a sua fé só deve repousar em Jesus. Ter
fé não é confiar. Porque só Jesus é perfeito. Você deve confiar no pastor ou no bispo e
reservar a fé só para Jesus (...) Há pessoas hoje decepcionadas, caídas, no mundo,
perderam a fé porque um dia se apegaram a um pastor ou bispo, e esse homem caiu, e
eles caíram juntos (...) Jesus não cai, ele está sempre de pé (...) nós sempre temos sido
sinceros aqui em dizer para vocês que não somos nada (...) somos sujeitos a falhas. O
bispo Macedo não é nada e ele mesmo disse que é ‘o cocô do cavalo do bandido’,
numa entrevista. O bispo Macedo não é perfeito, ele é homem e não Deus (...) só Jesus
é perfeito (...) Hoje a igreja está sendo purificada pela perseguição, aquele que é
covarde está caindo fora (...) esta obra é do Espírito Santo e não vai acabar, porque ela
é Deus e não do bispo Macedo (palmas do auditório)...” (bispo Paulo Roberto
Guimarães, TV Record, 28.1.96)
O templo iurdiano não é um lugar sagrado o tempo todo e sim o espaço onde o ritual acontece,
e um clima propício é criado através de um conjunto de sinais, que conduzem o indivíduo a
um encontro com o sagrado milagroso. Às vezes, essa primeira experiência é assim relatada:
“Quando cheguei pela primeira vez à Igreja, o pastor pregava sobre o tanque de Siloé
(...) e disse que, assim como o cego de nascença foi curado, a pessoa que tocasse
naquelas águas que estavam dentro do tanque, crendo, seria curada. Coloquei a minha
fé em prática, fui à frente e toquei nas águas. Depois disso consegui mover os braços
(...) e, quatro meses depois, já podia andar normalmente” (Folha Universal, 12.11.95).
“Quando entrei na igreja, percebi na hora que realmente poderia ser feliz. Descobri que
tinha encontrado um lugar que verdadeiramente poderia me levar até Deus (...) depois
daquele dia em que estive na igreja, tudo foi mudando para melhor” (Folha Universal,
28.1.96)
Os templos e santuários têm origem nesse esforço humano de criar canais para uma
manifestação “organizada” do sagrado. As religiões precisam desse espaço para evocar e
repetir ritualmente acontecimentos, tidos como centrais para a fé.60 O espaço traz as marcas e
os sinais provocadores do sagrado, suscitam emoções e estimulam a repetição da hierofania
fundadora. A presença do sagrado ali fez com que o espaço fosse transfigurado e se tornasse
uma “fonte inesgotável de força e de sacralidade, que permite ao homem na condição de que
ali penetre, tomar parte nessa força e comungar nessa sacralidade”, conforme observou Mircea
Eliade (1993:296,297), a partir de comentários de Lévy-Bruhl e A.R.Radcliffe-Brown sobre as

60 Sobre as vinculações entre a distribuição sagrada do espaço e a geografia humana cf. Zeny Rosendahl, Espaço
& religião: Uma abordagem geográfica, Rio de Janeiro, EDUERJ, 1996. Sobre o pentecostalismo e a questão
do espaço recomendamos: M.Machado, Territoriedade pentecostal: um estudo de caso em Niteroi,
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.

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culturas australianas. Daí o anseio das pessoas por permanecerem “em comunicação direta
com um ‘centro’ produtor de sacralidade”. Porque o espaço profano é o lugar do caos,
habitado por demônios, mas o templo é a “casa de Deus”, e nele reina uma ordem que perdura
porque está centrada no poder de um Deus exorcista, curador e milagroso, que é “o mesmo
ontem, hoje e para sempre”, como repetem constantemente todos os pentecostais.

Todavia, na Igreja Universal já começam a surgir sinais típicos de uma situação de religião
institucionalizada, ou seja, a deserção e cansaço de fiéis. Os responsáveis sabem que é preciso
oferecer alguma coisa além das emoções despertadas em rituais apropriados para momentos
de crise. Daí, o início de estudos bíblicos e de doutrinação para os mais assíduos e a
insistência em chamar para tais momentos o maior número possível de pessoas. As igrejas do
protestantismo histórico, nesse sentido, possuem muito mais know how e com elas a IURD
têm muito a aprender. A palavra de um dos bispos iurdiano é um bom exemplo do que
estamos dizendo:
“Nós não temos que viver pelas emoções e sim pela fé (...) quantas pessoas passaram
por aqui [templo do Brás] choraram ao som das músicas e saíram daqui com os
mesmos problemas que tinham; elas se deixaram envolver pelo clima emocional
somente (...) é preciso viver pela fé e não pelas emoções ou pela canção (...) é preciso
ter cuidado com as emoções, o coração engana a gente à beça (...) mas quem dá a
resposta é Deus...” (TV Record, 28.1.96).

A questão atual é como transformar a efervescência em algo duradouro, ritualisticamente


mantida e controlável. A consolidação dessa Igreja como denominação religiosa dependerá
muito mais das maneiras pelas quais esse processo será conduzido. Mas, como nos disse um
de seus pastores (pastor A., entrevista), “se depender do bispo Macedo, a Igreja não deixará de
ser um movimento, e para isso ele está disposto a lutar até o fim”. A efervescência é típica do
movimento, porém a institucionalização exige um assentamento dos ânimos, a divisão e
delegação de poder. É nesse momento que os problemas administrativos se avolumam, como
nos mostra Thomas O’Dea (1969:128,131), pois o processo de institucionalização traz
consigo a burocracia, os cargos, o dilema das múltiplas motivações dos agentes, e o conflito
entre as necessidades particulares das pessoas e as exigências da organização.

O templo: espaço que irradia energia


Para os neopentecostais de um modo geral, o espaço onde o homem vive está pleno de
poderes divinos em luta com os rebeldes poderes diabólicos. O território está longe de ser
neutro na terrível guerra entre Deus e os demônios, porque um “guerra espiritual” está em
andamento, exteriorizando-se através de lances, em que os poderes, divinos ou satânicos,
conquistam pessoas, populações e territórios.61

61
No templo do Brás, ouvimos algumas pessoas cumprimentando-se. da seguinte forma: “Como vai fulano?”
“Em guerra”, responde o outro. Bem diferente da forma dos demais pentecostais brasileiros, que se
cumprimentam com a tradicional expressão “A paz do Senhor, irmão”. Os iurdianos querem com isso indicar o
seu grau de comprometimento numa guerra, contra os demoníacos poderes do mal: Igreja Católica, cultos afro-
brasileiros e Rede Globo de Televisão.

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Essa concepção se fundamenta na crença, comum entre os pentecostais, nos “demônios


territoriais”, a qual aceita a idéia de que existem espíritos malignos distribuídos sobre a face
da terra, acompanhando as divisões geográficas. Havendo, conseqüentemente, demônios que
cuidam de países, estados, cidades, bairros, quarteirões e que se organizam num grande
exército, obedecem a uma hierarquia e estratégias bem definidas, sempre com o objetivo de
cegar as pessoas de uma área geográfica e impedi-las de conhecerem a verdadeira pregação
cristã, a priori centrada na libertação de todos os cativos do demônio.

A pregadora Neuza Itioka e a pastora Valnice Milhomens têm sido umas das principais
expressões dessa teoria no Brasil e advogam que as forças demoníacas representam uma
“força invasora”, pois
“Satanás tem instalado seus príncipes, governadores e forças nas nações, cidades e
povoados. O exército de Deus não respeitará muros e invadirá cada povoado, vila,
cidade, estado, nação e continente. É tempo de tomar os reinos para Jesus (...) é tempo
de conquistar territórios, alargar as fronteiras (...), o exército do Senhor tem que
reconquistar todo o território invadido pelo inimigo. O limite de nosso território é o
mundo inteiro (...) É pela força invasora do exército que Deus levanta que o inimigo
será subjugado. Não deporemos armas até que todas as nações da terra se rendam ao
Senhor Jesus” (Valnice Milhomens, s/d,:12, 15).
Essa crença nos poderes demoníacos instalados no espaço terreno abre caminho para a idéia
de que os templos são espaços conquistados para Deus, o que lhes proporciona o status de
serem lugares saturados de um poder vitorioso e libertador. A imagem estimula a lembrança
daquelas estratégias das forças armadas norte-americanas, no século passado, quando
instaladas num forte em meio ao território indígena ou mais recentemente, em bases aéreas em
território inimigo no Vietnã. A ação miraculosa de Deus é vista de semelhante modo. Pois, a
partir dos templos, os pastores se posicionam em “correntes de oração” e “santos jejuns”, para
invadir o território adversário, distribuir a energia que vem de Deus, e energizar todos os
objetos ligados ao templo, dotando-os de um poder que se expande para fora. É comum
pessoas testemunharem, no rádio ou na televisão, que a sua vida mudou e um milagre lhes
aconteceu, “só por terem entrado num templo iurdiano”. Esse lugar se torna, na mente das
pessoas, um centro irradiador de “energias positivas”, a “sede da felicidade”; logo, a “morada
do sagrado”.

Essa concepção de um poder que se expande faz dos grupos de evangelização, dos sons e
imagens da mídia iurdiana, células retransmissoras de energia espiritual. Conseqüentemente, o
espaço sagrado é mais do que um lugar; é uma construção coletiva, elaborada por um conjunto
de atores, pastores, obreiros e platéia, num processo de interação social efervescente. Por esse
motivo, os endereços dos templos são sempre anunciados como “o local da bênção”, o
“endereço da felicidade” ou então, “em tal lugar um milagre espera por você”. A bênção, cura
e libertação têm lugar certo para se realizarem, um espaço geográfico peculiar, que é o templo
da Igreja Universal.

Essa percepção da sacralidade do espaço de culto é reforçada por meio de “campanhas de fé”,
tais como a “campanha de Israel” ou “fogueira santa de Israel”, que fazem a ligação
simbólica com o espaço idealizado, o solo “sagrado de Israel”. Israel está à espera de uma

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peregrinação, real para os que tiverem condições ou por procuração da maioria dos fiéis,
bastando para isso preencher uma folha de papel com os seus “pedidos de fé”, cujas cinzas
são, segundo os pastores, levadas para Israel. A conexão entre Israel e templo se faz por meio
de objetos como água, pedra, sal, óleo, trazidos pelas caravanas de pastores e fiéis, que
periodicamente fazem turismo naquele país. Nesse imaginário, Israel é mais do que um
território, pois ele transcende as fronteiras geográficas e adquire uma dimensão mítica nas
pregações dessa Igreja. Israel é a terra “abençoada”, onde tudo dava certo para os que temiam
a Deus, está pontuada por locais “carregados de poder”, tais como os montes Carmelo e Sinai,
o rio Jordão, os “mares” da Galiléia e Morto, as minas do rei Salomão e o túmulo de Jesus,
entre outros. 62

Esses pontos geográficos são conectados com os ”espaços sagrados” daqui, o espaço dos fiéis,
por meio de ritos que, mais uma vez, conseguem transformar pessoas distantes no tempo e no
espaço em “contemporâneas dos deuses”, tal como conceituou Mircea Eliade (s/d:101).
Assim, eventos perdidos no tempo, como o batizado de Jesus no Jordão, sua peregrinação
pelas estradas pedregosas da Palestina e seu suplício, morte e ressurreição em Jerusalém, se
ligam existencialmente à biografia de cada iurdiano, que se apropria desses espaços, inserindo
neles seus sonhos e fantasias. Israel, como espaço mítico, serve de suporte para neles se
apoiarem as necessidades e desejos concretos a serem satisfeitas. O exemplo a seguir foi
tirado de uma propaganda (TV Record, 2.2.96) para as atividades religiosas especiais, no
domingo posterior:
“Não perca a ‘unção dos dizimistas’. No próximo domingo, haverá a consagração dos
dizimistas com óleo santo, que o Bispo Paulo estará trazendo de Israel e na segunda-
feira iremos apresentar as imagens das peregrinações, que 300 pessoas de nossa Igreja
fizeram a Israel. Foram momentos inspiradores, inesquecíveis mesmo, tal como a
Santa Ceia no Getsêmane, com a participação do Bispo Macedo.”
A crença na saturação de poder sagrado num determinado espaço, comum na religiosidade
popular, aparece de uma forma muito visível na “corrente da libertação”, realizada às sextas-
feiras, dia considerado muito “carregado” de “energias espirituais” nos cultos afro-brasileiros.
Em (24.6.94) assistimos à cerimônia da “mesa branca”, em que os fiéis formavam uma coluna
e passavam as mãos sobre uma mesa, coberta por uma toalha branca, sobre a qual os pastores
e obreiros teriam imposto as mãos, após um período de oração e jejum. Enquanto as pessoas
desfilavam, os pastores colocavam as mãos sobre a cabeça delas, orando em altas vozes.

Vimos num outro templo (Vila Mariana, 30.1.94) também sobre a mesa, localizada no “altar”,
uma pedra que, segundo um obreiro, havia sido trazida do monte Sinai e, numa outra
oportunidade (templo do Brás, 26.2.96), uma pedra que havia sido tirada das “minas do Rei
Salomão”. Mediante uma oferta especial, as pessoas tinham o direito de colocar as mãos sobre
essa pedra, quando então se transferiam para os fiéis energias de origem divina que, no
62
A impressão que nos dá é a de que a “campanha de Israel” vem a ser uma forma de sensibilizar e cooptar
clientes dentro dos seguidores da Igreja. As chamadas promocionais, inseridas nas programações radiofônicas
e televisivas da Igreja, orientam as pessoas interessadas nessas peregrinações a procurarem o pastor da Igreja
Universal, cujo templo estiver mais perto de casa. Para a caravana de 24.1.96, incluía-se o direito de o turista
se batizar no rio Jordão e participar da Santa Ceia no jardim do Túmulo, conforme publicidade na Folha
Universal (31.12.95).

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passado, teriam gerado a riqueza de Salomão. Num programa da Rádio São Paulo (8.7.94), o
locutor prometia: “Venha para o nosso templo, há poltronas energeticamente abençoadas,
esperando por você. Há também uma ‘mesa branca’ energizada. Vamos passar essa energia
para você, e a sua vida vai mudar.” Após uma música clássica ligeira, a emissora transmitiu
mais um “testemunho de fé” diretamente do Brás, onde tinha acabado de acontecer a “corrente
dos setenta pastores”, entrevista esta que aqui reproduzimos, porque expressa bem a crença na
existência de um espaço carregado de energia, nos templos iurdianos:
- Qual é o nome da senhora?
- Maria Pereira da Silva.
- A senhora sofria de quê?
- Eu tinha um caroço na garganta, aqui, ó!
- Há quanto tempo?
- Há um mês mais ou menos.
- A senhora foi ao médico?
- Não, não fui. Quando eu entrei aqui na porta da Igreja, o meu filho disse: “Mãe, a
senhora não vai ao médico por mor (sic) desse caroço aí?” Então eu disse: Filho, eu
não vou porque é Jesus que vai me curar! Então, quando entrei na porta, o caroço
sumiu!
- Só de entrar na Igreja?
- Só de entrar na Igreja!
- Por que a senhora está chorando?
- De alegria! ( com voz baixa)
- De quê?
- De alegria! (voz mais alta que antes)
- Quem curou a senhora?
- Foi Jesus!
- Quem mesmo?
- Foi Jesus! (com mais entusiasmo)
- Foi Jesus! Amém, Aleluia, Graças a Deus! (pastor gritando).
(música triunfante e palmas do auditório).

Essa forma de percepção do espaço é alimentada pelos próprios pastores. A palavra de um


deles, pastor Mário Luís, dita num programa de rádio, comprova isso: “Alô, gente amiga,
gente querida, a nossa Igreja tem uma energia positiva para você. Nesta quinta-feira é o dia
da prece pela família, da oração energética da Igreja Universal”. E a seguir usou várias vezes
em sua fala termos como: “oração forte”, “oração energética”, “aliança energética com Deus”.

A ligação entre a energia acumulada no templo e a vida cotidiana dos fiéis pode ser feita com
o intercâmbio de objetos “abençoados”, como foi registrado anteriormente. A propaganda da
“rosa ungida”, transcrita a seguir, foi transmitida em várias terças-feiras, em julho de 1994,
nas programações das rádios São Paulo e Record, ilustra bem a crença de que há um poder
concentrado no templo e que se irradia, através de objetos levados para a casa ou por meio
das ondas hertzianas de rádio:
“Igreja Universal do Reino de Deus, onde a vitória espera por você! Um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, (...) setenta, são setenta pastores orando e jejuando
por você. Na Igreja do Brás, venha participar da reunião mais forte da Igreja Universal,

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você que tem problemas insolúveis (...) Terça-feira, corrente dos setenta apóstolos. A
rosa ungida! Para você que está doente, procurou os médicos, tomou remédio e nada
adiantou. A rosa ungida. Para você que é uma pessoa deprimida, triste, tem problemas
interiores, vive perseguida por lembranças do passado. A rosa ungida. Para você que
tem problemas nas suas finanças, está endividado, envolvido com apostas, indo à
falência e não sabe mais o que fazer. A rosa ungida. Para você que tem problemas na
vida sentimental e nunca foi feliz no amor! Terça-feira, corrente dos setenta apóstolos.
Hoje, distribuição da rosa ungida, Igreja Universal do Reino de Deus, Av. Celso
Garcia, 499, no Brás, em S.André (...) e em S.Amaro (....) você estará recebendo a rosa
ungida, que representa o próprio Jesus, porque na Bíblia diz: “Eu sou a rosa de
Sarom”. Eu sou é o nome de Deus, de Jesus (...) você vai colocar essa rosa no lugar
mais alto de sua casa, porque, assim como Jesus foi levantado e colocado no lugar mais
alto, que havia em Jerusalém na época, no Calvário, assim você vai colocar a rosa
ungida no lugar mais alto de sua casa, e todo o mal vai ser atraído para essa rosa, todo
espírito de vício, contendas, homossexualismo, espírito de prostituição, de adultério, de
doenças (...) É hoje que você, meu amigo, vai receber a rosa ungida (...) vai receber a
rosa ao pé da cruz e pelo poder da fé todo o mal, que atormenta a sua vida vai
desaparecer aqui, já na Igreja (...) não se esqueça de trazer o envelope com as pétalas
secas da rosa da semana passada, será queimada na fogueira santa ...., (música clássica,
outra vez). Igreja Universal do Reino de Deus, lugar de paz interior (...) onde o milagre
acontece. Domingo (...) Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima. Venha (...) Deus
quer mudar a sua vida” (música).
A “rosa ungida” é distribuída também em outras ocasiões, recebendo reinterpretações
adaptadas a outras circunstâncias. O jornal Folha Universal (26.11.95) relata que em Porto
Alegre

“onze pastores, representando os apóstolos, oram pelo povo e o abençoam com


imposições de mãos sobre o altar” e que “foi distribuída a rosa, que representava a
perseguição (...) e por intermédio dela, ao ser colocada em cada lar, conseqüentemente
trazer-se-á independência familiar” (sic).

O argumento usado pelos neopentecostais iurdianos, para explicar a “energia espiritual”


acumulada pelo templo, obedece à mesma lógica das explicações de Franz Anton Mesmer
(1734-1815), que ensinava existirem campos invisíveis de energia transmitida por fluxos e
ondas. Para ele, era possível controlar e dirigir tais fluxos invisíveis de energias, visto estarem
todas as coisas na natureza ligadas entre si, inclusive o corpo humano. Portanto, milagres
podem acontecer, desde que as pessoas manipulem e direcionem as energias para suas
próprias finalidades, como escreve Arturo Castiglioni (1993:310).

A mesma lógica acompanhou Allan Kardec, que algumas décadas depois, ao codificar os
ensinamentos de mestres anteriores a ele, incluiu em seus trabalhos alguns pontos das
explicações mesmerianas, principalmente a “teoria da água magnetizada”, procurando dar-lhes
um embasamento “científico”. Os teóricos kardecistas, entre eles José Lhome (s/d:59,65),
acreditam que há um magnetismo agindo na natureza, que faz seres e coisas se atraírem ou se
repelirem, obedecendo à “lei da afinidade”. Entre os vários magnetismos, se destaca o
“espiritual”, cuja atuação se dá pelo pensamento, veículo do fluido vital, que contém
qualidades boas ou más, com o auxílio de entidades espirituais superiores.

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Magnetizar é a ação de direcionar o “fluido vital” sobre um objeto ou pessoa. A doença


resulta do desequilíbrio das tensões magnéticas entre os pontos positivos e negativos do
organismo. O curador, através de sua atitude, restabelece o equilíbrio, curando dessa forma o
doente. Portanto, o “fluido vital” pode ser orientado a vibrar deste ou daquele modo. A ação
magnética resulta de uma relação por contato entre o curador e o paciente, o que pode ocorrer
mesmo à distância, tendo por meio intermediário um objeto que pertença ao enfermo/aflito,
um documento ou mesmo fotografia. A ação mediúnica pode-se fazer através de uma
“dispersão de fluidos malévolos, o descarrego, ou da concentração e aplicação de fluidos
benévolos, o tratamento.”

Tais práticas fazem parte de uma cosmovisão muito disseminada, mas são facilmente
encontradas nos textos dos teóricos kardecistas brasileiros. As recomendações a seguir,
reproduzidas de José Lhomme (Ibid.:66), sobre as melhores maneiras de “magnetizar a água”,
e manter as suas virtudes terapêuticas nos mostram o quanto essas crenças são levadas a sério
pelos atores:
“Magnetiza-se uma garrafa destampada ou um copo com água, segurando-se o
recipiente com a mão esquerda e fazendo-se passes do alto para baixo. Por vezes,
também as pontas dos dedos da mão direita, reunidas em cima do gargalo, servem para
dirigir, para o líqüido, o fluido benévolo... (reconhece-se que) “a água absorve, com
facilidade o fluido ambiente e, com mais forte razão, o que o médium curador projeta
fortemente para saturá-la (...) a água magnetizada, absorvida pelo doente afastado, leva
longe um pouco da emanação mediúnica e constitui um laço invisível entre o enfermo
e o médium curador.”
No kardecismo, a “água magnetizada” pode levar consigo os sentimentos positivos ou
negativos, que provocaram a sua vibração. Porém, se houve nesse processo a interferência de
impurezas, elas devem ser eliminadas, através da purificação e do aperfeiçoamento dos
sentimentos do agente magnetizador. Atitude semelhante é encontrada no neopentecostalismo
quando diz que o pastor, antes de curar ou exorcizar, precisa de estar “preparado
espiritualmente”, isto é, praticar jejum e orações. Somente assim o toque de sua mão sobre o
enfermo e a aplicação do “óleo abençoado” surtirão efeito.

As curas pelas mãos são práticas e crenças tanto antigas como sincréticas, mágicas e religiosas
e que combinam em si mesmas tradições xamânicas orientais, judaicas e cristãs, até elementos
das religiões animistas, mediúnicas e afro-brasileiras. Aliás, as mãos ocupam papel importante
nos rituais e liturgias. Jaci Maraschin (1985:173) escreveu que “seria impossível a liturgia
sem as mãos”. Os pentecostais usam as mãos, acompanhadas ou não de óleo, para tocar a
cabeça ou a parte enferma de um corpo humano, ato que inclui “muita fé” em quem cura, nos
assistentes e de quem deseja ser curado. 63

63
Luís, 60 anos, ex-mendigo e então semiparalítico, testemunhou a sua cura no programa “Despertar da Fé” (TV
Record, 19.1.96), dizendo que no começo ela foi muito difícil de acontecer, pois “os pastores impunham as
mãos e não conseguiam nada porque eu não acreditava no que estava vendo. Com isso, eu não ajudava na
cura”. Também no kardecismo exige-se também o preparo psicológico do paciente e do curador para “reduzir
a incredulidade e a desconfiança”. José Lhomme (s/d.76) observa que, quando o paciente “não vibra torna-se
impermeável à ação magnética”.

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Novamente, alguns exemplos ilustram algumas dessas práticas:


Há pastores neopentecostais, como Estevan Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo,
Benni Hynn, televangelista norte-americano, que empregam a força das insuflações,
sopro quente ou frio, para curar enfermos. R.Soares, da Igreja Internacional da Graça
de Deus, coloca as suas mãos espalmadas na frente da câmaras e pede para o
telespectador fazer o mesmo sobre a imagem da mão do pastor na tela. Com isso diz
Soares: “Você receberá pela imposição de mãos a graça de que está precisando” (TV
Gazeta, 13.1.96).
A IURD emprega ad nauseam o copo de água sobre o aparelho de TV, que deve ser
bebido após a “oração da fé”. Essa terapia pentecostalista, já usada nos Estados Unidos
por Oral Roberts e outros pregadores da cura divina, logo após a Segunda Guerra
Mundial, nos faz recordar as táticas do padre Donizetti, que em 1955 era pároco da
cidade de Tambaú, S.P., quando atraiu a atenção de todo o País, por causa de uma série
de milagres que ali estariam acontecendo. Esse padre recomendava, segundo Maria
Isaura Pereira de Queiroz (1978:135-208) que, à hora da bênção das seis da tarde, as
pessoas colocassem as suas mãos, garrafas de água ou roupas de enfermos sobre os
aparelhos de rádio, afirmando também que, naquela hora, cada aparelho de rádio se
transformaria numa “sucursal de Tambaú”, podendo-se receber os milagres em casa.
Dirigir-se ao lugar da bênção, na linguagem do fiel iurdiano, é um ato de subir, vocabulário
também usado pelos antigos israelitas em peregrinação a Jerusalém. Ele crê ter vivido
anteriormente no “fundo do poço”, lugar de onde foi tirado pela instrumentalidade dos
pastores, quando então ele resolveu e “subiu” para a “casa de Deus”, e todos os seus
problemas “foram resolvidos”. Estar continuamente ligado ao templo é uma condição
necessária para se adquirir e manter a energia necessária para o viver diário. Afinal de contas,
como afirma a propaganda iurdiana, “quem procura a Igreja Universal procura o Espírito da
criação”.

O templo, dentro dessa visão, é o locus privilegiado para a realização do milagre e, mesmo
que o prodígio aconteça em casa, é no templo que ele é aprovado, legitimado e divulgado.
Essa Igreja vincula os milagres ao templo, espaço onde opera o mesmo Espírito presente na
criação do mundo. Por isso mesmo, só uma Igreja conectada com o Espírito da criação está
capacitada para reorganizar um mundo desorganizado pela presença do pecado e de satanás.

Toda a publicidade da Igreja Universal, na sua própria mídia, está voltada para uma única
meta: levar pessoas para o templo. Daí serem freqüentes expressões como estas: “Você
precisa tomar a decisão”, sinônimo de “ir a Igreja”. Você “tem que ir ao templo”, “vença o
diabo, que não quer que você vá até a igreja”, assim por diante. Por isso, Edir Macedo critica a
“igreja eletrônica norte-americana”, pois, segundo o seu ponto de vista, os “televangelista
eletrônicos” oferecem espetáculos, que geram pessoas acomodadas em casa e por comodismo
deixam de ir aos templos.64

64
A liderança da IURD não aprecia o modelo norte-americano de “igreja eletrônica”. Possivelmente, porque não
se pode confiar em que pessoas sentadas em casa rompam as dificuldades para apresentar o seu “sacrifício”
financeiro a Deus ou se disponham a irem até o templo. Nesse sentido, a concepção iurdiana de dinheiro, a
centralidade da oferta nas reuniões, exige a presença do fiel no templo. É a interação dos fiéis entre si, nos
rituais e ofertas, que lhes dá uma identidade iurdiana. O ficar em casa é encarado nas programações da Igreja

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O templo: lugar que oferece proteção


O templo proporciona um espaço acolhedor, um ambiente de proteção e de conforto espiritual,
itens muito valorizados numa sociedade como a brasileira, em que houve, no último quartel de
século, mudanças profundas, que alteraram a sua fisionomia. Entre elas, citamos o êxodo rural
intenso, a urbanização acelerada e a industrialização incompleta. Atualmente, o País se
encontra numa fase de assimilação da tecnologia de ponta, recentemente surgida no mundo, e
de inserção na economia mundial globalizada. Isso tem criado complicações no mercado de
trabalho, com a imposição de novos interesses no interior das intricadas redes sociais nas
micro-regiões econômicas, justamente no momento de chegada de milhões de jovens ao
mercado de trabalho. Essa coincidência de fatores multiplicou o número de desempregados e
excluídos do sistema econômico vigente.

Nos últimos cinqüenta anos, desmontou-se um cenário que, bem ou mal, oferecia às pessoas
um mínimo de integração, proteção e conforto. Como resultado disso a pessoa comum
atualmente experimenta, nessa sociedade, um alto grau de desconforto e desproteção,
principalmente nas camadas médias e pobres da população, entre as quais cresce o sentimento
de desamparo e de incertezas quanto aos rumos da vida. Tal perspectiva provoca uma cômoda
entrega das esperanças nas mãos de planos econômicos “milagrosos”, “Plano Cruzado”,
“Plano Collor” e “Plano Real”, na eleição de políticos neopopulistas, como Collor, na crença
fácil em palavras de milagrosos “homens de Deus”, dos quais Edir Macedo é o melhor
exemplo, na enorme popularidade de livros esotéricos de Paulo Coelho e de filosofias
otimistas de auto-ajuda, como as de Lair Ribeiro. Por outro lado, a classe média experimenta
o risco concreto do descenso social e da falta de saídas para a recuperação de antigos símbolos
de status e de prestígio, gerando por isso mesmo a procura por opções religiosas tão diversas.

Max Weber limitou somente aos camponeses, a incerteza como fonte geradora de magia.
Porém, a situação de incerteza não desperta somente neles a necessidade da magia, mas
também em todas as pessoas, que experimentam semelhante situação, em quaisquer formas de
organização socio-econômica. Por esse motivo, reverteu-se o quadro de secularização que, nos
anos 60, foi apressadamente considerado um processo irreversível. Busca-se, de novo, na
magia e na religiosidade menos convencional, um conjunto de soluções práticas e
instrumentais, que dêem às pessoas novas certezas e programações de vida. Aspira-se por uma
teodicéia, que explique e ofereça soluções para os desajustes, incertezas e violências do
cotidiano. Pessoas cansadas de tanto transitar entre os vários mundos da vida cotidiana,
conforme Lewis Coser (1978) se entregam a “instituições autoritárias” e “lideranças fortes”,
na expectativa de que estão trocando liberdade por proteção, acolhida e carinho.

Universal como “coisa do diabo”, pois dissolve o entusiasmo, e isso inegavelmente se reflete na freqüência e
na entrega das ofertas para a “casa de Deus”. João Batista Ramos da Silva, bispo e dirigente da Rede Record,
ao ser entrevistado pela Folha de S. Paulo (12.2.95) sobre os “telepastores” norte-americanos, afirmou:
“somos frontalmente contra a igreja eletrônica. Se você quiser comprar carne, vai ao açougue. Se quiser
comprar um remédio, vai à drogaria. Se quiser um encontro mais íntimo com Jesus, precisa ir à igreja. Caso se
comunique só pela televisão, o pastor se distancia de suas ovelhas”. Sobre essa mesma questão, o bispo Edir
Macedo já havia afirmado cinco anos antes, na revista Veja (14.11.90): “sou contra a igreja eletrônica do tipo
das existentes nos Estados Unidos, em que o pastor fica no vídeo e as pessoas o (sic) assistem em casa,
distraindo-se com a campainha da porta ou com o gato que mia. Na minha igreja preferimos o contato direto
com o povo”.

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Essas transformações provocaram o abandono ou reduziram a atratividade daquelas opções


religiosas, que mantinham o “indivíduo-fora-do-mundo”, como foi o próprio pentecostalismo
inicial, para usar uma categoria de Louis Dumont (1993:35). A busca do novo céu e da nova
terra, fora do mundo e da história, é uma opção limitada e não mais atrai a totalidade dos
excluídos econômica e socialmente. Há, neste momento, uma massa emergente de indivíduos
que se sentem à margem do mercado, querem usufruir do conforto proporcionado pelo
consumo e, por tal motivo, optam por uma ética centrada no “aqui-e-agora”. Tendem estas a
abandonar todo templo, que proponha uma “comunidade renunciante” e preferem outras
alternativas, que lhes acenem com uma “comunidade integradora” e lhes prometa uma
alternativa tipo “indivíduo-no-mundo”, porém que mantenha uma retórica levemente rebelde,
do tipo “indivíduo-contra-o-mundo”.

Esta é a causa do surgimento de novas posturas pentecostais, analisadas por Ricardo Mariano
(1995) em: “Neopentecostais: os pentecostais estão mudando”. Sim, mudando, mas de onde e
para onde? O pentecostalismo está abandonando uma ética de desvalorização do mundo e
voltada para objetivos extra-mundanos, uma escatologia apocalíptica e uma moralidade
subjetiva, optando pela idéia da aceitação de que é natural a fluição das riquezas da vida, da
saúde, da prosperidade, e de todas as coisas boas da existência. Dissemina-se entre a classe
média baixa a crença na antecipação do paraíso, não mais deslocado para o final dos tempos,
num futuro incerto e indeterminado. Para os iurdianos, o templo é o início de uma vida no
paraíso a ser construído dentro da história, pelo esforço de cada um, mas com a criatividade
do Espírito Santo.

Depois de passar pelo templo, o iurdiano sai do espaço sagrado e volta para o mundo profano,
agora agindo como um propagandista eficiente da nova fé, enquanto se delicia no que for
possível, com tudo o que a sociedade produziu para o conforto e bem-estar do ser humano.
Parece-nos que a experiência do consumo de bens religiosos, nos templos neopentecostais,
“amacia” as pessoas para uma participação mais eficiente no mercado de consumo de bens
tangíveis e intangíveis, de caráter secular. Ao sair do templo, agora, recarregado de energias,
esse indivíduo volta à sociedade disposto a “exigir”, “determinar” e “lutar” pelos seus
“direitos de filho de Deus” - isto é, uma vida de sucesso e conforto.

A Igreja Universal opera dialeticamente, pois recebe “indivíduos-fora-do-mundo” e envia de


volta para a sociedade “indivíduos-no-mundo”, agressivos, tenazes, dispostos, otimistas,
desejosos de assumir a parte, que pensam lhes caber, na distribuição de riquezas e benefícios
desse “estar-no-mundo”. É dessa força motriz que brota, tanto o veio consumista, a
participação em campanhas assistencialistas, como a disposição para um engajamento político
dos iurdianos. Só quando os renunciantes se sentem “indivíduos-no-mundo” é que conseguem
participar das transformações das condições objetivas de vida social. O templo é, para o
iurdiano, um espaço de mobilização para um “estar-no-mundo”, mais efetivo e prazeroso.

É exatamente esse tipo de pessoas que busca o templo iurdiano, não como espaço de fuga,
alienação do mundo e de refúgio, como eram muitos dos espaços cúlticos do pentecostalismo
clássico, mas como lugares onde se pode recarregar “a bateria da vida” com otimismo,
esperança e certeza de que é possível uma vida melhor, aqui e agora. Para o iurdiano, não é

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um mero slogan de sua Igreja, a expressão repetida pela propaganda: “Igreja Universal do
Reino do Deus, onde uma vida melhor espera por você” e, sim, uma realidade
existencialmente experimentada.

Na IURD há uma relativização daquela concepção de que o santuário é o lugar dos sonhos
inconseqüentes, e do refúgio contra as frustrações da vida. Não se aplica satisfatoriamente ao
caso dela o modelo marxista do espaço sagrado como “lugar da alienação”. O indivíduo não é
alienado da crueldade e violência do cotidiano, e nem se tenta fazer do templo uma caverna
cômoda a se opor ao caos externo, onde predomina a doença, insucesso, confusão e
desamparo. Muito pelo contrário, ali, toda a miséria da vida é nominada, citada e revelada,
porém as explicações dadas, as terapias oferecidas também se encontram muito longe da
proposta marxista de conscientização e luta. O templo é o lugar da prestação de serviços de
cura, libertação, dotação de significados e aprendizagem do caminho para uma vida de
sucesso.

A arquitetura dos templos da Igreja Universal reflete essa perspectiva ao propor um modelo
voltado a participação e não a contemplação. Os templos católicos convidam os fiéis para a
contemplação do transcendente, por meio dos vitrais coloridos, imagens, altar, altas torres, o
toque do sino, colunas majestosas e de outros estímulos visuais. Os templos neopentecostais
contêm sempre um palco e uma platéia e, muitas vezes, um corredor por onde o animador da
platéia passa distribuindo bênçãos, toques sanadores e palavras abençoadas. Assim, junto com
os pastores e obreiros, o povo participa e constrói o momento litúrgico, com muita ação e
pouca contemplação. Nesse espaço, é possível encontrar os “oráculos de Deus” e gozar de
uma intimidade com ele, graças às palavras e ações dos pastores, “homens de Deus”. É nesse
sentido que o lugar de reuniões e cultos é considerado “casa de Deus”, metáfora que traz
consigo uma promessa que, para se concretizar, exige uma interferência de um “Deus dos
milagres”.

Podemos aprofundar essa perspectiva citando Gaston Bachelard (1978:201,202,203 e 207),


que propôs uma análise da “poética do espaço”, um exercício intelectual por ele chamado de
“topoanálise”, no qual, entre outras coisas, apresenta a casa como lugar de refúgio e descanso.
Essa abordagem fenomenológica da casa deveria ser também um “estudo psicológico
sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima”, do “espaço que retém o tempo
comprimido”, da casa que “abriga o devaneio”, “protege o sonhador” e “permite sonhar em
paz”. A casa é aquele “grande berço” onde a “vida começa bem; começa fechada, protegida e
agasalhada” e representa, para esse autor, o ponto geográfico integrador do ser humano. Sem
ela, o “homem seria um ser disperso”, porque a “casa natal, mais que um protótipo de casa, é
um corpo de sonhos” integradores. A casa, por esse motivo, se relaciona com a centralidade
da vida, o “umbigo do mundo”, servindo até de ponto fixo para apoiar a alavanca que move o
mundo da vida. Além do mais, a casa tem a função de integrar as lembranças e motivar a
esperança, fazendo com que o homem, ao psicanalisar o “inconsciente entrincheirado nas
moradias primitivas”, faça uma “leitura da casa” e nela descubra o “ninho vivo”, onde vidas
frágeis são escondidas num meio adverso.

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A homologia entre a imagem da “casa humana” e a “casa de Deus” facilita para o ser humano
a compreensão do templo como um centro doador de proteção, segurança, nutrição e
descanso, além da recarga das energias gastas na “rua”. Nesse espaço sagrado, reina a nova
ordem, centrada numa ação espetacular da divindade, que exorciza as interferências vindas do
espaço caótico, que é a “cidade do homem”. Com o passar das gerações, esses espaços se
tornam lugares de sacralidade indiscutível. Por isso, pode-se dizer com Eliade (1993:297) que
no templo não só as hierofanias se repetem como também elas permitem que o homem
permaneça em
“comunicação direta com um ‘centro’ produtor de sacralidade. Por isso esses centros
se deixam muito dificilmente despojar dos seus sortilégios e passam, à guisa de
herança, de um povo para outro, de uma religião para outra. Os rochedos, as nascentes,
as grutas, os bosques venerados no decurso da proto-história continuam, sob formas
variadas, a ser tidos como sagrados pelas populações cristãs de hoje.”
A mobilidade cúltica dos neopentecostais, assim como dos cultos afro-brasileiros, pode
deslocar o lugar sagrado para o alto de um monte, rochedos e beira-mar ou para a praça central
de uma cidade ou ainda, para um estádio de futebol. Deus faz morada, onde os seus fiéis se
reúnem. Porém é no templo, com seus rituais específicos, que se cria um clima propício para o
indivíduo descobrir as possibilidades de condensar sonhos e aspirações e o faz, através
daqueles rituais propostos pelos “guardiões da casa de Deus”, os bispos, pastores e obreiros.

3.3 Templo, tempo e ritos na Igreja Universal


“Pertencer ao grupo significa ter no mesmo momento do dia e do ano o mesmo
comportamento de todos os outros membros do grupo” (Pierre Bourdieu,1979:48)
De que forma se dá a sacralização e a partilha do tempo na Igreja Universal? Que peso têm os
ritos em suas práticas litúrgicas? Como se dá a articulação desses ritos num calendário
coerente e planejado de atividades? Que postura essa Igreja assume em relação aos ritos dos
demais movimentos e instituições religiosas?

As considerações a seguir retomam como fio condutor, a teoria da sacralização do espaço e do


tempo, formulada por Mircea Eliade. Para ele, a hierofania provoca a fragmentação do espaço
e do tempo em áreas sagradas e profanas. A essa bifurcação seguem os tabus que delimitam a
área do sagrado, evitando-se possíveis contaminações e, para regular a passagem de uma
esfera para outra, surgem os ritos, formas fixas, repetitivas e prescritas de atitudes para com o
sagrado. Assim ocorre com os territórios ao redor dos santuários e templos, e daquele espaço
que circunda o altar, demarcado por objetos tidos como especiais, pelas suas ligações com o
transcendente.

Ritos que motivam e confortam


A concepção que as pessoas têm de tempo e as formas de reparti-lo são elementos
importantíssimos para se desvendar o mundo da vida e os projetos de vida de cada uma delas.
Sobre isso escreveu Karl Mannheim (1976:233) que “a estrutura interna da mentalidade de um
grupo nunca pode ser mais claramente captada do que quando tentamos compreender sua

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concepção do tempo, à luz de suas esperanças, aspirações e propósitos.” Por tal motivo, seja
tempo sagrado ou profano, o discurso elaborado pelos atores sobre ele é mais complicado que
o do espaço, cuja percepção é ajudada pela dimensão material. Daí, a quantidade de
discussões filosóficas e psicológicas ao redor das formas humanas de se perceber o tempo e as
maneiras controvertidas de experimentá-lo nas diversas culturas humanas construídas ao
longo dos séculos.65

Por isso, há tremendas limitações nas comparações entre a forma de povos tribais ou urbanos
industriais, de concepção do tempo e de sua duração. Mircea Eliade (1993:314; s/d:81)
percebeu o quanto essa questão está ligada às necessidades humanas de festas, e de ritos
provocadores de repetições desencadeadoras de um “eterno retorno”. A participação nos ritos
é, portanto, um mergulho nos tempos imemoriais, no caso da Igreja Universal, nos “tempos
bíblicos”, mediados por uma leitura dos pastores através da Bíblia, e dos fiéis por meio do
conteúdo do imaginário popular moldado pela tradição católico-afro-brasileira.

Nesse sentido, o rito é uma grande ação simbólica, em que os grupos ou indivíduos revivem
experiências fundamentais, geradoras de sentido e de certeza para a vida presente. Porém,
trata-se de uma atividade repetitiva e, como observa Jean Cazeneuve (s/d:10,14), pode ser
aplicada tanto a cerimônias relacionadas com o sobrenatural como também com os hábitos,
usos e costumes sociais, significado mais facilmente captável se analisarmos como a língua
latina empregava a palavra ritus para designar indistintamente tanto uma categoria como
outra. A nós interessa o rito como repetição de algo feito anteriormente pelos deuses ou ações
a serem empreendidas a mando deles, para se conseguirem certos resultados, inclusive o de
penetrar em espaços e tempos dominados pelo sagrado invisível.

A discussão dos ritos traz de volta a antiga questão das relações entre religião e magia.
Cazeneuve dedica um amplo espaço a esse debate, ressaltando que na magia, os ritos estão
muito mais a serviço da manipulação das forças sagradas com objetivos utilitaristas do que na
religião, onde há um esforço de participação humana naquele poder transcendente, originador
da salvação. Mesmo assim, há na religião a necessidade de o adorador encontrar na divindade
a solução para problemas práticos da vida, o que gera a permanente tentação de colocar as
forças sagradas a serviço de tal objetivo, tal como ocorre na magia.

Os ritos religiosos têm função semelhante à do texto numa ação dramatúrgica, porque ela liga
as partes e dota o caos da vida cotidiana de um sentido que a transcende. Por isso, o rito não é
apenas um produtor de solidariedade social, mas também um centro produtor de significado e
de certezas. Victor Turner (1974) observou, na sociedade africana por ele analisada, que havia
uma relação entre o crescimento dos conflitos e a demanda social por rituais, e que essas
buscas se intensificavam em momentos de colapso das formas tradicionais de comportamento
65
Em 1975, Paul Ricoeur (1975) a serviço da UNESCO reuniu textos de um grupo de especialistas para
confrontar as concepções de tempo nas várias culturas humanas. Nesse texto, filósofos, teólogos e
antropólogos, especialistas em culturas gregas, africanas, orientais e outras, expuseram as formas peculiares de
cada cultura perceber e expressar as suas relações com o tempo. Entre eles, A.Y.Gourevitch (in Ricoeur. pp.
263-283) especialista russo, mostrou que o tempo é um problema ligado muito de perto à história cultural da
humanidade. Ricouer (p.39) procurou mostrar que a multiplicidade de maneiras de se experimentar o tempo,
conforme as culturas, leva o analista a sentir a necessidade de perceber que a sua própria percepção e discurso
sobre o tempo também fazem parte de um determinado campo cultural.

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religioso. No caso do Brasil, o regime militar pretendia abafar os conflitos sociais com a
imposição de uma ordem militar que pudesse engessar esses conflitos. Contudo, encerrado o
seu ciclo, as tensões se tornaram ainda mais graves, até por causa da concentração de rendas
proporcionadas pelo modelo econômico adotado.

Um conjunto de ritos forma o ritual, e no caso dos ritos religiosos, há a liturgia que prescreve
as maneiras pelas quais os fiéis se articulam entre si, quando em situação de relacionamento
com o sagrado. Os gestos, palavras e, às vezes, a música entram na composição do rito.
Porém, nem sempre a interação entre essas partes é pacífica. Na liturgia dos protestantes
históricos, mais os de tradição calvinista ou luterana, por exemplo, há uma supervalorização
das palavras sobre os demais elementos, enquanto no pentecostalismo, em especial na sua
vertente neopentecostal, a palavra falada é, muitas vezes, devorada pelos gestos e música. Na
IURD, de uma reunião de 90 minutos, não mais do que dez minutos são dedicados ao sermão.
O restante do tempo é dedicado ao cântico, às orações, levantamento de coletas, realizações de
rituais de cura e de exorcismo.

Porém, o que faz de um ato ou ações um rito é a repetição. Por esse motivo, o
neopentecostalismo valoriza tanto o rito, porque, por intermédio dele, se estabelece um
conjunto de modelos que garantem a repetição correta de formas de sucesso, na aproximação
e captura do sagrado. A predominância da ortopraxis é uma decorrência direta do
desmantelamento da ortodoxia, o que faz do neopentecostalismo algo distante do modelo
protestante norte-americano da “seita fundamentalista”. Isto porque o fundamentalismo se
caracteriza pela crença no dogma como expressão racional e correta da fé, enquanto o
neopentecostalismo prima pela prática rigorosa da devoção.

Aqui, uma pergunta perturbadora: não seria essa ênfase na prática mais um sinal da influência
da magia, que exige a práxis correta sob pena de não se conseguirem bons resultados? O
campo de análise pode-se mostrar confuso se relacionarmos a ênfase neopentecostal nos
resultados com a repetição dos ritos, elementos importantes na caracterização da prática
mágica. Pois, para uma mentalidade mágica, essas duas características servem de reforço, até
porque Mauss (1974:48) observa: “Atos que não se repetem não são mágicos.” Seria esta mais
uma das causas do sucesso do neopentecostalismo entre as massas despojadas daquela magia,
que as circundaram anteriormente no meio rural?.

Porém, é fundamental observarmos que o homem, como um ser histórico, se relaciona com os
outros e também com o sagrado, dentro de estruturas espaço-temporais. Os ritos constituem,
nesse sentido, “moradas do sagrado”, construídas dentro do tempo através de gestos, palavras
e músicas. Saint-Exupéry, citado por Cazeneuve (s/d:278), observou que “os ritos são no
tempo o que a morada é no espaço.”

Por isso é que, por meio da execução dos ritos, segundo Eliade (1993:313) ocorre a reversão
do tempo e a volta do homem àquele tempo mítico primordial, aos momentos fundadores, o
que o torna um “contemporâneo dos deuses”, mitos e heróis. Esse tempo sagrado é percebido
pelo homem como indestrutível, isento de contradições, desordem e misérias.
Conseqüentemente, voltar a ele nos rituais e festas é mergulhar na força primitiva, geradora de
ordem, lógica, coerência, isto é, incorpora-se nos ritos o “espírito da criação”. Os ritos são

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portadores de uma chave usada para abrir espaços temporais, que muitas vezes, residem
apenas no imaginário das pessoas. Eles permitem a invasão do presente por forças do passado
embutidas em si mesmas, alterando o presente.

Ritos e repartição do tempo: As “campanhas” e “correntes” de fé


A Igreja Universal transmite ao observador uma unidade ritual e litúrgica maior do que outras
denominações protestantes ou pentecostais. Essa sensação de unidade é partilhada pelos fiéis
aos quais se aplica bem a frase de Pierre Bourdieu (1979:48), citada na abertura deste
capítulo: “pertencer ao grupo significa ter no mesmo momento do dia e do ano o mesmo
comportamento de todos os outros membros do grupo”. Por isso a observação de como as
pessoas, enquanto fiéis de uma religião, organizam o tempo permite que o analista tome
consciência de toda uma maneira de se enxergar o mundo. Karl Mannheim (1976:233) expôs
isso da seguinte forma:
“A estrutura interna da mentalidade de um grupo nunca pode ser mais claramente
captada do que quando tentamos compreender sua concepção do tempo à luz de suas
esperanças, aspirações e propósitos. Com base nestes propósitos e expectativas, uma
dada mentalidade ordena, não somente os acontecimentos futuros, mas também os
passados”.
A aceitação dos ritos como ponto de passagem entre os tempos sagrado e profano tem
conseqüências na organização e contagem do tempo cronológico. É justamente por isso que
judeus, maometanos e cristãos contam e repartem o tempo de maneiras distintas. Mas, nas
sociedades agrárias, o homem vive sob o impulso da natureza, de onde partem os ritmos e
cadências. O próprio calendário eclesiástico, com suas liturgias e rituais, era tributário dos
ciclos da natureza, de suas estações, de onde eram extraídas as motivações e temas para a sua
elaboração. Sobre essa ordem natural se constituíram as festas judaicas, as inúmeras
comemorações das religiões da Europa pré-cristã, depois, a liturgia católica e bem mais tarde
a liturgia protestante.
Entretanto, a cultura moderna está ligada à capacidade humana de criar medidas artificiais de
tempo, e de impor a si própria, novos parâmetros de medição. Por isso, com o “homem
mercador” e a sua racionalidade, para usar uma expressão preferida de Jacques Le Goff
(1963), surgiram os relógios, os calendários, e abandonou-se o “tempo bíblico”, sobre o qual a
Igreja organizava a sua liturgia. Herdeira dessa cultura moderna, a Igreja Universal regula os
tempos e movimentos em ritmos e cadências programados racionalmente, refletindo assim a
concepção urbana de tempo, em que a mensuração está nas mãos do homem. Para que isso
ocorra, ela propõe uma reorganização dos tempos fragmentados pelo impacto da modernidade
em ritos próprios, as “correntes” e “campanhas”, que se tornam maneiras atualizadas de
expressão das obrigações a serem cumpridas pelo homem para com Deus e deste, para com o
homem.
Na Igreja Universal, os dias e horas são padronizados, arbitrariamente divididos,
incorporando-se na sua linguagem ritual a idéia já presente na religiosidade popular, como
prazos, dívidas, pagamento de promessas, peregrinações, novenas e sacrifícios. Dessa
maneira, ela propõe uma divisão do tempo, na qual as tradições litúrgicas do cristianismo

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histórico, centradas nos eventos marcantes da vida de Jesus, nascimento, batismo, morte,
ressurreição e ascensão ao céu, não são prioritárias. Na Igreja Universal, pelos menos nos
jornais que analisamos e cultos a que assistimos, há muito menos referências ao Natal,
Quaresma, Pentecostes ou outras festividades cristãs tradicionais, do que nos jornais católicos
ou protestantes históricos.66
Fig. 1 - Folheto com as “correntes de fé”

Qual seria a origem das formas empregadas pela


Igreja Universal para repartir o tempo? Seria a
sua perspectiva mercadológica dos bens
simbólicos? Essa maneira de repartir o tempo
teria se disseminado, com mais facilidade no
ambiente urbano, justamente por permitir o
atendimento segmentalizado de um grande
número de pessoas? Estaria certo, Paul Freston
(1993) por exemplo, ao afirmar serem tais
“correntes” uma adaptação das novenas
católicas? É possível que sim, porém estamos
mais propensos a acreditar que a Igreja Universal,
por privilegiar as necessidades concretas das
pessoas, procurou organizar a “oferta” de acordo
com a “demanda”, da maneira mais racional e
objetiva possível, empregando em sua marcação
de tempo - “correntes” e “campanhas” - já
comuns em outras igrejas pentecostais. O folheto
aqui reproduzido demonstra haver uma sintonia entre as necessidades de uma classe média
baixa, e os “produtos” ofertados diariamente em qualquer templo iurdiano.

O calendário litúrgico da IURD se divide em “correntes” e “campanhas”, que agregam a elas


“reuniões”, “vigílias” , “concentrações de fé” e atividades em “semanas especiais”, dedicadas
a este ou aquele tema, dependendo das relações institucionais dessa Igreja com a sociedade
naquele momento. Essa divisão é resultante de consultas feitas, como já foi afirmado acima,
às vezes, telefonicamente, entre os bispos. Todavia, há uma preocupação em se legitimarem as
atividades litúrgicas, com uma fundamentação situada além do cálculo e das decisões
racionais de seus dirigentes. Isso pode ser percebido na semana entre 12 e 18 de fevereiro de
1996, quando a ênfase nos templos da Igreja Universal, no mundo todo, foi a “purificação”.
Todas as atividades giraram ao redor dessa temática e terminaram no domingo 18 de
fevereiro, com o dia do “reencontro com Deus”. Segundo Edir Macedo (TV Record, 7.2.96),
aquela semana objetivou atrair de volta “os que se afastaram da Igreja por causa do que falam

66
Há na IURD festividades ligadas às estações do ano, por exemplo, “festa tropical” num dos templos de Belo
Horizonte, quando houve distribuição frutas tropicais a jovens que vinham ao culto pela primeira vez ou aos
que a ele retornavam depois de um longo período de ausência (Folha Universal, 31.12.95, p. 5b). Nesse
mesmo número do jornal há um editorial sobre “feliz ano novo”, no qual emprega-se quase que totalmente a
retórica profana para desejar aos seus leitores saúde, bem-estar e prosperidade. Porém, em alguns templos
iurdianos, no final do ano, há árvores de natal, embora nenhuma reprodução de presépios.

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dela”, insistindo em que os que “estão se reencontrando com Deus nunca mais irão se afastar
da Igreja (...) por causa de coisas inventadas pelo inimigo”, que a idéia da “Campanha da
Purificação” nasceu de uma “vigília de oração”, realizada pelos bispos presentes à
peregrinação a Israel, no monte Getsêmane, no final de janeiro daquele ano. Ainda segundo
Macedo: “Recebemos uma revelação divina no Jardim, e isso vai ser apresentado às igrejas
nos próximos dias. A Igreja Universal vai virar uma página de sua história com esta
campanha.”

A unidade mínima do calendário iurdiano é o dia consagrado a este ou aquele tema, sendo as
atividades, reuniões e cultos segmentados por áreas de interesses das pessoas, que se unem nas
“correntes”, “campanhas” e “dias especiais”. Uma estratégia de marketing consegue atrair as
pessoas “preparadas” para se inserirem no templo iurdiano nesta ou naquela outra atividade,
atraídas pela publicidade do rádio, televisão ou convites dos atuais freqüentadores. Por outro
lado, a Igreja Universal soube trabalhar estrategicamente e atrair para si grande parte da
demanda por serviços religiosos, que aumentou consideravelmente na região da área
metropolitana da Grande São Paulo, na primeira metade dos anos 90 e, possivelmente em
outras regiões brasileiras, proporcionando assim uma notável expansão no número de seus
templos.67

Atualmente, a estratégia de se usarem “correntes” e “campanhas” não é mais uma


exclusividade da IURD, pois várias outras pequenas igrejas e seitas as copiaram, dado à sua
praticidade e adaptabilidade às correrias da vida urbana.68 O quadro 1, reproduzido a seguir,

67
No Brasil, a freqüência aos templos religiosos aumentou consideravelmente, na primeira metade dos anos 90.
Segundo pesquisa do SEADE (Folha de S.Paulo, 20.4.95) enquanto a participação de atividades políticas
partidárias e sindicais caiu para a metade, a freqüência a alguma igreja proporcionalmente dobrou em quatro
anos. Portnto, enquanto a freqüência a partidos políticos e sindicatos (1990) caiu de 23,1% para 11,8% em
1994, a participação nas atividades de alguma igreja subiu, nesse período, de 16% para 34,3%.
68
A Igreja Internacional da Graça de Deus emprega as seguintes “correntes” e atividades: Segunda-feira:
prosperidade; Terça-feira: saúde, louvor e imposição de mãos; Quarta-feira: saúde e unção com óleo;
Quinta-feira: família; Sexta-feira: libertação; Sábado: prosperidade, reunião das crianças, libertação;
Domingo: louvor, busca do Espírito Santo e oração pela vida sentimental. No dia 18.12.95, no templo-cinema
da Av. São João, em São Paulo, às 15h30 min, cerca de 10 pessoas assistiam a reunião. Um cartaz na saída
informava as datas e temas das próximas correntes: “3.12: o lenço - a volta por cima, Dt 28.12; 10.12: o trigo -
a prosperidade com Deus, Ec 3.13; 17.12: a cruz - o livramento de Deus, Cl 2.15; 24.12: a corrente - a quebra
dos grilhões, At. 16.25.”
Na Rede Católica de Missões, Paróquia do Cristo Redentor, (Av. Rangel Pestana, 1897, Brás,) o milagre
esperado só é possível após a freqüência a nove missas, quando, mediante a apresentação de um cartão com
carimbos comprovando a freqüência, a pessoa poderá entrar na “tenda das vidências”, uma barraca de lona
montada ao lado do altar, onde está a imagem de Nossa Senhora da Rosa Mística. É no interior dessa tenda que
o padre Francisco Silva atende às pessoas e oferece reza e unção ao pretendente ao milagre. A pequena folha
de papel distribuída para controlar a presença vem com o seguinte timbre carimbado: “Novena. Assistir nove
missas, intenção de seus problemas, uma vez por semana” (sic). Abaixo, o espaço para o carimbo: “fui fiel
em...”. As atividades desse santuário católico dissidente são assim divididas: rosa de Sarom, todos os dias às
nove horas; missa do exorcismo, às três da tarde; noite milagrosa e roda de fogo, sete da noite; sábado, azeite
consagrado; domingo, corrente da família.
No programa “Portas Abertas”, Rádio “Morada do Sol”, 24.1.96, o pastor Lana, da Casa da Bênção, prometia
para aquele dia “corrente para a quebra das maldições”, quando seriam afastadas com a “unção perfumada
Jeová Jireh” e com objetos a serem levados para a casa. A Igreja Universal emprega também em certas
correntes perfumes, conforme anúncio no programa “Despertar da Fé”, TV Record (12.1.96) por meio do qual
se prometia a distribuição, na “reunião dos empresários”, de mirra, o “perfume da prosperidade”. A Igreja
Internacional da Graça, missionário R.Soares, anunciava em 12.1.96, TV Gazeta, “correntes de fé” centradas

122
123

permite uma visualização da distribuição dos rituais iurdianos ao longo de uma semana, bem
como os objetivos e alguns testemunhos apresentados em folhetos, jornal ou programas de
rádio e televisão da Igreja sobre os resultados conseguidos por pessoas, que participaram
dessas atividades em outras ocasiões.
Contudo, é preciso separar nas atividades da Igreja Universal as “correntes”, atividades que
obedecem a um calendário semanal uniforme e fixo, só excepcionalmente flexível, uma
espécie de repetição contínua (exemplo na Fig.1); das “campanhas de fé”, atividades
sazonais, realizadas conforme as exigências e circunstâncias, adaptadas às condições locais de
aplicação.69 As “campanhas” duram vários dias,
geralmente, uma semana, e nem sempre atingem a todas os
templos locais. Porém, no período de sua vigência, o seus
temas e retórica prevalecem sobre as “correntes”. Assim a
IURD está em campanha o ano todo, pois termina uma e
geralmente começam-se outras.

Fig. 2 - Folheto convidando para uma das mais populares correntes da


IURD.

Ao lado dessas atividades e períodos rituais, há também as


“festas”, “semanas especiais” e “dias especiais”, que, ao
serem realizados, despertam a criatividade dos grupos
locais, especialmente dos mais jovens, que em muitos
templos marcam as reuniões de uma forma dinâmica e
criativa. Entre outras, anotamos as seguintes “festas”:
“festa tropical”, “festa da primavera”, “festa do amor” e a
“tarde do amor”70

no “desafio das misérias” e “desafio das doenças”, num culto que seria “uma grande festa em nome de Jesus
de Nazaré”. Esses exemplos mostram o atual grau de mimetismo, que tomou conta do campo religioso.
69
Em Nova York, a IURD distribui um folheto em espanhol, anunciando as seguintes “cadenas”: “Lunes,
cadena para la prosperidad, para bendiciones financieras en su vida y trabalho; Martes, cura divina, unción
con aceite, enfermedades incurables, cancer, sida, tumores, etc.; Miercoles, estudio biblico; Jueves, cadena
para la familia, traer fotografias, ropas de familiares, agua, pan; Viernes, cadena de liberación (nerviosismo,
depresiones, insomnio, miedo, constantes dolores de cabeza, de estómago, mareos, mala suerte en el amor y
dinero, víctima de santería, brujería, pensamiento suicida, mal de ojo, envidia, celos, pesadillas, perturbaciones
mentales, vidas que están maldecidas.); Domingo, recibimiento del Espirito Santo, 10 a.m. e campaña de
milagros, tarde de las 7 oraciones, 3 p.m. e 6 p.m. Obs: Lhegar media hora antes de la reunión, para hablar con
el pastor.” Em letras maiúsculas: “SU VIDA PUEDE CAMBIAR” (sic). No templo da Igreja Univeesal em
Santiago, Chile, há um cartaz anunciando a cadena de oración assim distribuída: “Domingo, victoriosos;
Lunes, prosperidad; Martes, sanidad; Miércules, vicios; Jueves, familia; Viernes, liberación total; Sábado,
trabajadores.” Naquele templo fomos hostilizados pela mulher do pastor que impediu quaisquer fotografias,
mesmo no hall do teatro transformado em templo, na Calle Nataniel Cox, 59. Já num folheto que o pastor nos
entregou constavam as seguintes cadenas de oración: “Lunes, cadena de las grandes realizaciones; Martes,
gran cadena de sanidad; Miercoles, reunion de los hijos de Diós; Jueves, gran cadena de oración por la familia;
Viernes, gran cadena de liberación total por aquellos que no tienen suerte con nada, estan enbrujados,
trabajados, envidiados y desean ser felices; Sabado, cadena de los trabajadores, hacia la bendición economica
de los trabajadores para el progresso de los grandes, medianos e pequeños empresarios; Domingo, gran dia de
la victoria, una reunion especial donde la plenitud del Espiritu Santo es derramada en la vida de sus hijos (a las
9:30 y 18:00 hrs) y a las 15:00 hrs. una bendición para su vida amorosa, para Ud. que desea ser feliz
sentimentalmente.”
70
A “tarde do amor” faz parte, em alguns templos, da “corrente sentimental” que objetiva atender pessoas
desejosas de “bênçãos divinas” sobre a sua vida sentimental. Geralmente, ocorrem em final de semana, quando
as necessidade de uma convivência amorosa com alguém é mais intensa. A Folha Universal, respectivamente
de 5.7.92 e 13.11.94, descrevem o ocorrido nos templos da Olavo Bilac, Margarida II e em outros locais, a

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124

A rigidez, todavia, com que são programadas as “correntes”, “campanhas” e “semanas


especiais” 71, excluindo-se as “festas”, oferece muito pouco espaço para o imprevisto, e
quando ocorrem, os próprios dirigentes ficam “desprogramados”, como no caso citado a
seguir.
Era o dia 18.6.94, um sábado, estávamos no templo do Brás, e havia no Rio de
Janeiro, naquele mesmo horário, uma grande concentração no Aterro do Flamengo. Foi
colocada no palco uma enorme tela para projeção das imagens do evento, geradas pela
Rede Record de Televisão. Porém, no início das transmissões, essas imagens
começaram a apresentar problemas, e o pastor dirigente pediu que as pessoas se
ajoelhassem para orar. No meio da oração, as imagens começaram a ser projetadas,
quando então o período de oração se interrompeu para um grande aplauso para a figura
do bispo Macedo, que desceu de um helicóptero e subiu até o palco montado na praia
do Flamengo, em frente ao monumento aos mortos da 2ª Guerra Mundial. Os pastores,
a esta altura, não sabiam como continuar a reunião, pois todo o esquema cotidiano de
reuniões havia se quebrado com o imprevisto. A partir daí, a reunião se tornou apenas
uma sessão de cinema, até o final.
Ao lado das “correntes” mais voltadas para os adultos, há também as adaptações para as
crianças na “Escola Bíblica Infantil” (EBI), que funciona nos moldes da escola dominical
protestante ou do catecismo católico, porém com menos formalismo e mais festividade.72 A
EBI só funciona no decorrer das reuniões mais concorridas, nos maiores templos, e depende,
para sua realização, do número de obreiras disponíveis. Essa atividade é incentivada com a
publicação semanal de uma página toda do jornal da Igreja, endereçada às crianças, que traz

passagem dos casais pelo “arco do amor”, com o recebimento dos pastores de perfume “nardo”, “coração
perfumado”, “maçã do amor” ou “chá do amor”. Muitas pessoas que freqüentam esses templos são muito
carentes da presença de um companheiro ou companheira. Em duas entrevistas que fizemos no ABC paulista,
encontramos dados, que confirmam a ligação entre essa “corrente” e a necessidade da vida sentimental das
pessoas. Na primeira, uma mulher com 35 anos, manicura domiciliar, que tinha um irmão homossexual
espírita, disse que não arrumava namorado, até que na “reunião do amor”, o pastor indicou-lhe um namorado,
que já freqüentava aquele templo, há vários anos. Na segunda entrevista, o namorado daquela mulher disse que
“seu pior problema era a solidão, vida vazia e se sentia muito só”. Para ele, a reunião mais marcante que teve
na Igreja foi a “reunião do amor, onde encontrei minha namorada”. Ele mora num quartinho no fundo do bar
onde trabalha, tem mais de 40 anos de idade, ganha um salário mínimo por mês e está, junto com a namorada,
que ganha cerca de dois salários como manicura, procurando uma casa para se casarem, mas que estava difícil
de conseguirem isso com os rendimentos que tinham naquela época. Particularmente, ela disse ser contrária a
prática do sexo antes do casamento, mas que, apesar da idade, estavam esperando pelo casamento.
71
Dentre inúmeros eventos registrados, destacamos os seguintes: “Semana da perseguição” (3 a 10.9.95);
“Semana dos sonhos” (7 a 13.5.95); “Semana da ação” (2 a 9.12.95); “Domingo da ação” (9.12.95);
“Domingo da fé”, com distribuição de azeite dourado de Israel, (12.3.94); “Dia da Visão”, quando as pessoas
levaram a botija de azeite vazio para encher (20.2.95); “Domingo do fôlego de Deus”, distribuição do “santo
óleo”, (25.6.95).
72
A existência da Escola Bíblica Infantil representa mais um sinal do avançado processo de “dessectarização” da
IURD, pois através dessas atividades está havendo um processo de integração sócio-religioso de uma segunda
geração de iurdianos, formada por filhos de pais que optaram pela Igreja e desejam uma formação religiosa de
seus filhos dentro dessa tradição na Igreja. Segundo Michel Hill (1976:94), que se baseou em Max Weber,
E.Troeltsch e outros autores, o deslocamento das preocupações com os adultos, para uma ênfase na formação
religiosa das crianças, é um dos primeiros sintomas da existência de um processo de dessectarização de um
grupo religioso. É significativa a palavra de uma mãe: “Minha filha Karina, de onze anos, sempre inventava
uma desculpa para não ir à igreja. Era rebelde e muito nervosa. A muito custo, consegui fazer com que ela
participasse das aulas da EBI. Hoje, minha filha está completamente mudada”. Roseane da Silva, 31 anos,
IURD de Campos, RJ, (Folha Universal, 24.9.95).

124
125

histórias bíblicas, cartas, fotografias de crianças, atividades para colorir e até lembretes como
este:
“Atenção, pais! Dia 27, muitas crianças atraídas e iludidas pelos supostos ‘santos’
conhecidos como cosme e damião (sic), sairão às ruas em busca de doces e
brinquedos, que foram oferecidos aos demônios. Por isso, durante esta semana, em
todas as IURD serão realizadas a unção de proteção, com a finalidade de quebrar a
‘maldição’ deste dia. Pais, procurem levar seus filhos à Igreja Universal, para que
Jesus as abençoe” (Folha Universal, 24.11.95).
A Escola Bíblica Infantil procura seguir a mesma programação das “correntes” dos adultos. A
página especial para o público infantil, acima citada, assim divulga a programação das
“correntes” para as crianças:
“Segunda: Chuva de bênçãos na sua vida. Terça: Se você está doentinho, participe
das orações realizadas na EBI. Quarta: Seja forte e corajoso no Senhor para enfrentar
a rebeldia, a preguiça, a desobediência (...) Quinta: Dia da sagrada família. A EBI
estará lutando em oração pela paz no lar. Sexta: Se você anda desanimado, sente que
anda muito agressivo dentro de casa, não fique assim, não! As professoras estarão
guerreando contra todo mal! Sábado: É muita alegria! 10 horas nas IURDs, Jesus
espera por você! Domingo: Vamos juntinhos dizer: Obrigado, Jesus!” (Folha
Universal, 7.1.96).
O quadro n° 1, no final do capítulo, nos oferece uma visão geral de como a semana é repartida
e organizada na Igreja Universal do Reino de Deus, tomando-se para isso como unidade
básica cada dia da semana. Essa padronização no uso do tempo permite que os freqüentadores
dos templos da IURD, em qualquer parte do Brasil e do mundo, se sintam parte integrante de
um corpo reunido ao redor dos mesmos ritos. Periodicamente, novas “campanhas de fé” são
introduzidas e o Quadro n° 3 (no final do capítulo) nos oferece alguns exemplos de como elas
são colocadas em prática, que objetivos buscam e que resultados alcançam. Diante do
exposto, podemos perceber que as “correntes” e “campanhas” se tornam na IURD ciclos de
produções simbólicas, que orientam as atividades dos fiéis, plasmam os ritos e direcionam as
reuniões e cultos.

Quanto ao clima reinante nos templos, no decorrer dessas campanhas, pode ser percebido na
descrição a seguir de duas delas: “Saquitel de Deus” e “Loucuras da fé”:
A “Campanha do Saquitel de Deus”, foi realizada no período de 16 a 22.5.94 e tomou
por base bíblica o texto de Ageu 1.6, que diz: “Semeais muito e recolheis pouco:
comeis, mas não vos fartais; bebeis, mas não vos saciais; vesti-vos, mas ninguém se
aquece; e o que recebe salário, recebe salário num saquitel furado”. Num dos anúncios
da campanha pela televisão, registramos: “Campanha do Saquitel de Deus, destinada
às pessoas que estão com problemas financeiros que desencadeiam outros problemas,
chegando até ao suicídio. Há pessoas que já foram grandes empresários e hoje estão
numa situação pior que antes. Venha hoje, retire o saquitel que está abençoado. Não
está furado. A sua sorte financeira vai mudar. Depois, traga, na segunda-feira o
saquitel com o seu pedido para a presença de Deus. Nós iremos descer com a vitória.
O propósito é mudar a sua vida de empresário falido.” A seguir apresentou um
saquinho de plástico a ser distribuído aos fiéis (TV Record, 21.5.94).

125
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A “Campanha das Loucuras da Fé”, com duração de duas semanas, de 1° a 14.8.94,


enfatizou o comportamento tido como louco de se esperarem milagres de Deus em
condições em que tudo indica o contrário. A propaganda da “campanha” prometia a
distribuição de dois objetos que iriam, segundo os pastores, despertar a fé das pessoas,
recebidos, contudo, por muitas delas como se fossem objetos mágicos: dia 7.8 a “vara
de Jacó”; e, dia 14.8, o “óleo de Israel”. O programa na televisão de 4.8.94 entrevistou
uma mulher, que colocou a varinha na garagem e recebeu um carro. Disse o pastor:
“ela possuía só uma varinha, não tinha mais nada; com uma varinha que nós damos na
Igreja Universal, ela colocou na garagem e ganhou um carro... (mostrando então no
vídeo a varinha e acrescentando) ... vá também domingo e receba a sua varinha e
conquiste o que você deseja (...) você vai determinar e Deus vai atender”. A finalidade
dessa campanha é mostrar que o milagre se encontra acima do senso comum, na
dimensão da fé, instância inatingível pela lógica rotineira da vida (TV Record, 4.8.94).
As dramatizações são elementos importantes nessas “campanhas de fé”. Numa delas,
“Campanha de Jerico”, periodicamente realizada, foram distribuídas aos fiéis cornetas de
plástico, que deveriam ser tocadas durante o ritual, para simbolizar Josué, que segundo a
Bíblia, liderou os israelitas na conquista de Canaã, cercando Jericó, cidade que teria sido
conquistada pelo barulho e movimentação de seus adversários a mando de Javé. No
imaginário iurdiano, Jerico é o obstáculo aparentemente intransponível que somente pode ser
superado com as forças divinas.

A natureza e funções dos ritos na Igreja Universal


As atividades de um grupo religioso se ligam a um determinado espaço, e dele não se pode
escapar. Os lugares, contudo, se tornam mais importantes quanto maior for o estágio atingido
no processo de institucionalização, pois, ao se atingir essa fase, entre outros fenômenos
organizacionais, estabelece-se uma relação dialética entre os adoradores, os ritos e o desenho
físico dos templos. Relacionar as ações humanas e o design tem sido um tema importante nos
estudos teóricos de sociologia das organizações. Jeffrey Pfeffer (1992:282), um desses
especialistas, embora tenha escrito sobre organizações não-religiosas, registra algumas
observações aplicáveis às interações entre os fiéis de uma religião e o espaço religioso, da
seguinte forma:
“As organizações são, em muitos casos, entidades físicas, pois têm escritórios,
edifícios, fábricas, mobiliário e certo grau de dispersão ou concentração física. Elas
chegam a definir distâncias, tanto espaciais como sociais, entre os indivíduos e as
subunidades da organização e variam não somente em termos de seu desenho
organizacional, nem da rede formal de relações entre papéis, áreas e atividades, senão
também em suas adaptações físicas.”
Os locais onde os iurdianos se reúnem, aparentemente, possuem espaços superiores às
necessidades da maior parte das atividades ali desenvolvidas e, por serem amplos, impedem a
privacidade e impõem uma religiosidade pública. Nesses templos, tudo é público, e as ações
de cada um são alinhadas e delimitadas pela movimentação dos demais participantes. Ali, o
atendimento particular dado pelo pastor é à vista de todos, assim como a oração, imposição de
mãos, exorcismo ou unção com óleo aos enfermos. Há, de uma certa maneira, com linguagem
e aparências diversas, a reconstrução simbólica do antigo confessionário católico, e das

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consultas aos guias para se receberem passes, tal como no kardecismo e nas religiões afro-
brasileiras.

Porém, o pastor iurdiano sempre procura receber as pessoas publicamente, ali à frente, à vista
de todos, quando então os que o procuram poderão receber a imposição de mãos, oração ou a
unção com óleo. Dessa maneira, reconstrói-se, embora com uma nova linguagem, a antiga
versão do confessionário católico-romano, e da consulta aos guias, para recebimento de
“passes” do kardecismo e da umbanda. Mesmo esse ato de tornar público os sentimentos, não
impediu o aparecimento de acusações a pastores, que teriam mantido casos amorosos com
fiéis.

Isso demonstra que nem a desprivatização das relações pastor-fiéis e a retórica herdeira do
puritanismo e dos movimentos de santidade das origens pentecostais, que promete exclusão
imediata de casos comprovados de adultério, têm impedido o surgimento de denúncias desse
envolvimento de pastores com mulheres de suas igrejas. Todavia, segundo Mário Justino
(1995), nos anos 60, na Bahia, houve vários escândalos envolvendo pastores e mulheres da
Igreja. 73 A não observância dessas regras, no período inicial de rápida expansão da IURD,
possivelmente tenha dado origem a certo afrouxamento nas regras, o que daria a tais
denúncias certa plausibilidade.

Na Igreja Universal, os ritos e liturgias se refletem também nos móveis dos templos. O
mobiliário, fabricado por uma das empresas da própria igreja, facilita a movimentação grupal
no decorrer das cerimônias. Dessa forma, o espaço está a serviço dos ritos, e, mesmo quando
os bancos estão fixos no piso, há amplos corredores para permitir a fácil mobilidade das
pessoas. Na Igreja Universal, os corredores têm uma importância muito grande no layout dos
templos, porque é através deles que as pessoas se movimentam para realizar os rituais
propostos, e os obreiros se deslocam durante todo o tempo de reunião. 74

Isso é importante porque um ritual, ao prever atos devocionais em grupo, força as pessoas a
interagirem com todos e não só com os que estão próximos. Ir à frente, formar um grupo
denso para orações e cânticos, desfilar enquanto leva as ofertas até o “altar”, apresentar-se

73
Embora se deva ter muito cuidado com depoimento de dissidentes, principalmente pelo caráter vingativo das
denúncias, incluímos aqui mais uma referência a Mário Justino (1995:68), que registra ter acontecido na Bahia,
no final dos anos 80, uma série de escândalos amorosos envolvendo pastores e mulheres iurdianas. A IURD
confirmou parte dessas denúncias, ao incluir no clima dos escândalos, o próprio Mário Justino, que se teria
envolvido sexualmente com uma obreira de sua Igreja. Ela foi, no final de dezembro de 1995, entrevistada
pelo programa “25ª Hora”, programa especial para rebater críticas veiculadas pela Rede Globo, e confirmou
ter mantido relações sexuais com o então pastor Mário Justino, por exclusiva insistência dele, que a teria
“seduzido”, usando para isso sua autoridade de pastor. Uma nota publicada na Folha de S. Paulo, (26.9.90),
dava conta de que o pastor Paulo Gomes de Oliveira havia estuprado uma moça de 18 anos e alegado, na
polícia, que realmente cometeu aquele ato a mando de uma força demoníaca, que havia tomado conta de seu
corpo.
74
Nós observamos, pessoalmente, no templo da Igreja Metodista Pentecostal do Chile e Peter Wagner
(1994:108) também registra que os pentecostais chilenos inovaram o mobiliário das igrejas, ao inventarem um
tipo de banco, cujo encosto possui dobradiças. Na hora da oração, os de trás empurram o encosto do banco da
frente e, graças à dobradiça, encontram ali um apoio para o corpo na hora das orações. Esses movimentos
precisam ser feitos rápida e simultaneamente, sob o risco da pessoa levar uma pancada nas costas. Porém, o
barulho de milhares de dobradiças ao mesmo tempo, como observou Wagner, aumenta a dramaticidade do
culto.

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para ser exorcizado ou curado, participar das atividades da “corrente de fé” programadas para
aquele dia, desfilar no “corredor dos setenta pastores”, passar pela “porta aberta”, ou pelo
“corredor de sal”, todas essas atividades são formas de relacionamento dos fiéis entre si. Mas,
nessas oportunidades, ocorrem “relações secundárias” e não “relações primárias” entre as
pessoas. Assim, mesmo fisicamente próximas, as pessoas continuam distantes umas das
outras, como convém aos modos de comportamento urbano. Isso mostra o quanto os rituais
iurdianos se adaptam às características do contexto urbano. 75 Até porque tais ritos permitem a
manutenção entre as pessoas de formas fluídas de relacionamento, impedindo a invasão da
privacidade de cada um, mas, contraditoriamente, expondo as intimidades psíquicas nos
“testemunhos de fé”, entrevistas dadas em público ou gravadas para os programas de rádio e
televisão da Igreja.

Essas observações podem nos levar à conclusão de que o culto iurdiano, enquanto espetáculo
de auditório, não constrói comunidades plenas de unidade, como acontece em outros grupos
pentecostais, onde os fiéis a organizaram em pequenas comunidades de louvor e adoração.
Dessa maneira, evita-se a perda de energia e o ônus do viver em situações em que tudo é
comum. Pois, a construção de uma comunidade de pessoas muito próximas exige concessões
inadmissíveis ao moderno individualismo urbano. Nas demais igrejas pentecostais, a
freqüência diária aos cultos e a forte ênfase na observância dos códigos grupais de
comportamento geram a intromissão de uns na vida de outros, o que provoca atritos que, ao
escapar do controle da liderança, podem até provocar cisões. Nesses casos, a necessidade de
se mediar um conflito transforma a liderança numa mera administração de conflitos pessoais e
comunitários.

Os iurdianos, em seus cultos-espetáculos, assim como os católicos romanos em suas missas,


deixam de experimentar o ônus desse viver comunitário. Isso faz com que alguns problemas
potencialmente explosivos sejam evitados, e o que seria para os críticos da Igreja Universal
um fato negativo, se torne, na pós-modernidade, uma grande vantagem na competição por
novos fiéis. Por isso, a IURD pode afirmar que não tem problemas sérios de conflitos em
nível comunitário, e isso é verdade, porque esses tipos de dificuldades são incomuns em
agrupamentos flexíveis e temporários. Mas, mesmo assim, observamos que se encontra em
andamento a formação de um núcleo comunitário ao redor de cada templo, resultado e resíduo
da convivência continuada de fiéis, obreiros e pastores, em certas “correntes”, “campanhas” e
cultos. É claro que se trata de comunidades segmentadas por interesses, portadoras de algumas
características diferentes das comunidades tradicionais, criadas pelos protestantes e
pentecostais de uma maior tradição histórica.

75
Louis Wirth, num texto clássico, O urbanismo como modo de vida, (in Otávio Guilherme Velho,1979: 90-
113), ressaltou que a cidade, devido ao tamanho do agregado populacional, “envolve modificações no caráter
das relações sociais” e que os contatos da cidade podem ser “face a face, mas são, não obstante, impessoais,
superficiais, transitórios e segmentários”. Daí, o superficialismo, o anonimato, a sofisticação e racionalidade de
tais relacionamentos do homem urbano. Os grupos que se reúnem na cidade nessas condições são passageiros e
que “uma permanência transitória não gera tradições e sentimentos de união, só raramente ele é um vizinho na
verdadeira expressão da palavra”. Ora, a IURD é um movimento religioso tipicamente urbano, fruto de
processos de urbanização, que criou cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. É possível, portanto, explicar
algumas das características de seu culto, através da análise do modo urbano de se organizar a vida, agora
adotados por antigos habitantes das zonas rurais brasileiras.

128
129

Na Igreja Universal, o peso da comunicação pública e padronizada abafa e desestimula as


tentativas de respostas individuais e a comunicação entre os participantes da liturgia. O poder
dos alto-falantes, os exercícios devocionais comunitários de oração e movimentos ritmados do
corpo impedem a interação das pessoas, a formação de pequenos grupos de oração, estratégias
empregadas com sucesso em outras igrejas pentecostais, para a criação de uma comunidade de
relacionamentos primários. Essa falta de uma ligação maior entre as pessoas provoca um
fenômeno descrito por Duglas Teixeira Monteiro (1979:81-110) como sendo “relações de
clientela”, em que as pessoas estão unidas mais por interesses utilitários. A hipótese de
trabalho, defendida por Monteiro, prevê a dificuldade, senão a impossibilidade de se criarem
comunidades nesses ambientes saturados de utilitarismo e até de magia, justamente por causa
da fluidez e trânsito das pessoas. Com idêntica hipótese, Mendonça (1992:49-60) discute as
“agências de cura divina” e a magia praticada por agentes reunidos dentro do que ele chama
de “sindicato de mágicos”.

Portanto, a criação de uma comunidade iurdiana ao redor de seus templos, enfrenta alguns
bloqueios oriundos do tipo de comunicação e de interação colocadas em prática pela direção
da Igreja, pois ali a comunicação é pública, pasteurizada, centralizadora, unidirecional e
manipuladora. Os próprios ritos são processos interativos que, ao serem sistematicamente
praticados por atores sociais, obedecendo e ajustando-se sempre a padrões preestabelecidos,
vão abrindo caminho para um processo de institucionalização mais rápido do que, às vezes,
deseja a liderança desse movimento. Sociologicamente, pode-se afirmar que todo movimento
religioso está destinado a se institucionalizar e que a racionalização dos padrões de crenças,
ritos e doutrinas, é a maior evidência de que o processo está em andamento, questão que
discutiremos mais adiante.

É dentro desse contorno que os ritos são praticados na Igreja Universal, estabelecendo-se
assim sistemas de interações, que são tanto conseqüências do desenho espacial como também
agentes provocadores da flexibilidade territorial. Podemos então, reafirmar que o
embasamento espacial da religiosidade de um grupo se torna inevitável, por mais que isso lhe
cause repugnância. Com o passar do tempo, atos e local vão-se identificando, por causa das
encenações rituais repetitivas, gerando-se assim uma memória ligada ao espaço físico,
elemento mais durável do que as emoções e eventos. Há uma expressão significativa de
Halbwachs (1990:156), a qual afirma que um grupo religioso precisa se “apoiar sobre um
objeto, sobre uma realidade que dure...”, isto porque o cultivo de emoções e a realização de
ritos desvinculados de um processo institucional, criam situações fugidias e pouco indicadas
para servir como base fixa a uma instituição religiosa. O lugar de reunião, ligado aos ritos
praticados, pode ser esse algo durável com condições de garantir a continuidade de uma
expressão religiosa, no tempo e no espaço.

Na Igreja Universal, o ritual é mais flexível do que os praticados pelo catolicismo romano ou
mesmo pelo protestantismo histórico, ao abrir espaços para pequenas adaptações feitas pelos
pastores locais. Dessa maneira, as campanhas são vividas com pequenas modificações, nos
vários lugares, naquele mesmo dia, formando a matriz de uma institucionalização durável. A
abertura relativa dos ritos às necessidades locais faz com que novos temas e produtos sejam
agregados à matriz elaborada pelos bispos nacionais. Essa abertura traz à IURD uma enorme

129
130

vantagem frente à concorrência, em especial as igrejas históricas, que sofrem os efeitos da


desmontagem dos cenários e motivos que sustentaram, durante séculos, seus respectivos
rituais.

Este é um dos motivos pelos quais a Igreja Universal é encarada por algumas pessoas como
uma “igreja moderna”, em oposição a outras, “igrejas obsoletas”, por praticarem “rituais
ineficazes” para solucionar os problemas do “homem moderno”. Também um outro ponto de
vantagem, é o fato de a IURD ser percebida como um movimento avesso aos rituais
cristalizados, e com baixa preocupação com as sistematizações doutrinárias. Tais
características atraem pessoas, que a procuram mais por causa de suas “orações de fé
poderosas” do que pelas suas doutrinas. Em outras palavras, o atrativo está na prática ritual e
não na instância doutrinária, como ocorre no protestantismo histórico.

Ritos que desafiam um Deus desafiador


Os ritos na Igreja Universal entrelaçam os adoradores num círculo marcado pelo desafio. Eles
são desafiados em nome de Deus e, ao mesmo tempo, devem aprender a desafiar Deus com
uma decisão definida e contribuições apropriadas.76 A IURD é uma religião de provocação e
de desafios, por isso participar de um de seus rituais, seja “campanha” ou “corrente” de fé, é
ser colocado diante de um repto que exige mudança nas ações e condutas.77 Constantemente,
o fiel é desafiado a assumir papel prescrito pelos pastores e para consegui-lo procura-se mexer
com os seus brios. As palavras de um então pastor, hoje bispo Gonçalves, gravadas num
especial da TV Manchete (4 e 11.5.90), mostram como se emprega a provocação no ritual da
coleta:
“Atenção, você que está aí assistindo à TV Manchete. Vou pedir agora, e pedir não é
pecado, nem é roubo, eu vou pedir para esse povo trazer tudo o que ele tem no bolso.
Presta (sic) atenção, pessoal! Você vai agora meter a mão no bolso, vai tirar a carteira,
fazer um cheque e você vai vir aqui na frente (sic), pra mostrar pra esse mundo que o
nosso Deus não nos deixa ser covarde (sic). Ele prometeu nos dar as janelas do céu
abertas. Nós vamos mostrar que nós acreditamos nisso agora. Amém, pessoal?”

76
A idéia de desafiar Deus para realizar as palavras ditas com fé pelos homens, e exigir dele o cumprimento
daquilo que está registrado na Bíblia é o cerne da chamada “confissão positiva”, que será analisada em outro
capítulo. Ao ser colocada em prática essa teologia, segundo seus críticos, as pessoas tendem a se tornar
arrogantes, assumindo uma postura muito diferente da “humildade" O próprio Edir Macedo, freqüentemente
diz que fala para Deus: “Ou o Senhor cumpre a tua palavra ou arrebento a Bíblia no chão” (sic). Essa
perspectiva segue a lógica do desafio no relacionamento com a divindade.
77
A prática de duelos e desafios é um hábito cultural brasileiro, que se dá também na dimensão artística. Há
composições musicais e poéticas, escritas na forma de duelos, que envolvem provocações e respostas,
presentes por exemplo, nos “desafios de cururu” da cultura caipira de certas regiões do estado de São Paulo.
Isso também aparece em romarias e peregrinações, quando as pessoas expressam as suas relações com o
sagrado por meio de um duelo, que envolve promessas, necessidades e pagamento do prometido, quase sempre
por meio de sacrifícios corporais, de tempo ou de dinheiro. Expressa-se por meio delas à divindade a coragem,
ousadia e disposição dos adoradores. Rubem Cesar Fernandes (1982) se refere a tais formas de expressão
social, num estudo sobre os romeiros a um santuário católico, localizado na cidade de Pirapora do Bom Jesus.
Para alguns daqueles peregrinos, “romaria é coisa para macho”, para “pessoas ousadas” e, nunca para
“medrosos”. Carlos Rodrigues Brandão (1986a e 1987), por sua vez, relaciona a participação dos devotos em
danças ao santo com o pagamento de promessas por graças alcançadas ao serem alcançadas.

130
131

A seguir, a reportagem mostrava cenas de pessoas indo à frente e colocando sobre a mesa
numa Bíblia aberta, dinheiro, cheques e até objetos de uso pessoal como relógios. Algumas
pessoas faziam gestos de desafio às câmaras de televisão, e acompanhada por um órgão e
bateria, a platéia cantava: “Esta alegria não vai mais sair / de dentro do meu coração”.
Terminada a coleta, o pastor perguntou, em tom de desafio, às câmaras de televisão e à
platéia:
- “Eu pergunto agora para vocês: alguém foi obrigado a fazer isso?”
- “Não!”, respondeu a massa.
- “Você deu então, por quê?”
- “Porque eu quis!” (sic) responderam várias pessoas postadas ao lado da câmara de
TV.
A seguir o pastor subiu na mesa, ajoelhou-se e encostou a cabeça sobre o dinheiro, deixando
sob o tórax e ventre o dinheiro arrecadado, iniciando uma oração de consagração do dinheiro
coletado naquele momento. A imagem, vista de uma perspectiva freudiana, permite uma
imediata ligação entre sexo e dinheiro. No entanto, cenas de desafio como essas são comuns
na Igreja Universal e nos seus programas de rádio ou de televisão, pois tudo é feito de uma
forma que não resta ao receptor, de casa ou da platéia senão tomar uma atitude diante dos
demais. Essa atitude pode ser a de ir à igreja e contribuir, ou ir à frente e apresentar o seu
“sacrifício” se a pessoa estiver na platéia. A premissa básica é a de que o indivíduo não pode
ficar “envergonhado” diante de Deus ou das outras pessoas.78

O ritual de provocação é uma antiga forma de dramatização das relações entre os homens e o
sagrado, assim como também de guerras primordiais que, na imaginação popular, extrapolam
a historicidade ao se tornarem guerras míticas, cuja representação reforça a manutenção da
coesão do grupo e de sua identidade social. Participar do ritual é desafiar aquelas forças que,
apesar de terem sido derrotadas anteriormente pelo divino, ainda assim insistem em atacar os
fiéis de hoje. O rito abre, portanto, a porta do tempo e admite os participantes numa luta que já
foi e continua acontecendo e deve ser enfrentada até a vitória final.

Às vezes, o grupo perde os fios da memória, que ligam a dramatização ritual com as origens
dessa demanda, tal como as reminiscências das guerras medievais mantidas por portugueses e
mouros na Idade Média, revividas em festas populares, como “folia de reis”, “folia do divino”
e, especialmente, nas cavalhadas analisadas por Carlos R. Brandão (1974). Esses rituais
populares, relativamente profanos, são ritos de desafios e contradesafios, que podem ser
usados pelo povo como expressão de seu inconformismo com determinadas situações,
colocando de uma maneira simbólica sua disposição de vencer as dificuldades da vida, sempre
atribuídas à presença dos demônios.

78
Em outubro de 1995, uma jornalista da Rede Globo conseguiu filmar, com uma câmara escondida, uma coleta
num templo iurdiano. Naquela oportunidade, as pessoas que não levaram ofertas à frente foram desafiadas,
recebendo dos que estavam próximos uma pequena moeda. Assim, disse o pastor, “da próxima vez você terá
dinheiro para aceitar o desafio de Deus”. Essas imagens, embora de má qualidade, se comparadas com as
demais imagens dessa emissora, foram levadas ao ar no “Fantástico”, programa domingueiro da Globo.

131
132

A realização da “campanha da revolta” na Igreja Universal é um exemplo de como um ritual


pode cristalizar situações de desconforto social ainda não nomeadas, exteriorizar amarguras,
revoltas e esperanças de mudanças.79 Os ritos iurdianos assumem simbolicamente, o lugar das
“demandas” dos cultos afro-brasileiros. Por outro lado, os cultos dramatizam as “batalhas” de
uma “guerra espiritual” mais ampla, que está em andamento e diante da qual não se pode
permanecer neutro.80

A opção de cada indivíduo nessa guerra, ao lado da IURD, é expressa por meio da
apresentação de um “sacrifício” financeiro. É dando dinheiro que a pessoa expressa a sua
adesão ao exército de Deus e poderá, dependendo da época, receber um certificado de
“participante do exército de Deus”. Em outras igrejas neopentecostais, usa-se o título
“guerrilheiros da oração”. A linguagem dos ritos ressalta a guerra, as lutas, os desafios, os atos
de coragem e de loucura. Afinal de contas, Deus e o diabo estão em “guerra na terra do sol”,
guerra essa revivida em cada cerimônia proposta pela liderança iurdiana. Como se trata de
uma retórica e prática tradicional do povo brasileiro, para os fiéis, a opção por um dos lados
nessa guerra é algo perfeitamente normal. Nada impede que os fiéis assumam o seu lugar
nessa guerra, cujas derrotas são socializadas e atribuídas à “falta de fé” do lutador mas, as
vitórias sabiamente, são atribuídas às estratégias da Igreja Universal do Reino de Deus.

Conclusão

Concluímos este capítulo, sistematizando alguns pontos e insistindo em outros.

1. Os ritos religiosos aqui analisados não podem ser vistos como elementos divorciados da
sociedade, que os geraram. Há uma continuidade entre o tipo de vida experimentado pelas
pessoas na sociedade urbana, industrial e centrada no consumo e a intensidade dramática da
vivência ritual, verificada nos locais de reunião dos fiéis iurdianos. No rito, as pessoas
exteriorizam uma situação social latente, que uma vez manifesta, serve de ponto de referência
para a articulação de novos tipos de comportamento. Os ritos dramatizam visões de mundo e
também escondem em si mesmos as cosmovisões que os geraram, tornando-se assim um tipo

79
29.9.94 foi o “dia da revolta” na IURD, “campanha” proposta para as pessoas “expressarem a revolta contra o
diabo”. Nesse dia ouvimos na programação da Rádio São Paulo o seguinte quadro: (Pastor atendendo os
ouvintes ao telefone), “Alô, irmã, tá revoltada? Vá até à Igreja para manifestar a sua revolta, pegue o seu
envelope”. A ouvinte diz: “Estou revoltada contra esse diabo desgraçado, que é o responsável pelo baixo
salário de noventa reais que estou ganhando.” O pastor pergunta: “Você já pegou o envelope?” Ao saber que a
ouvinte ainda não havia retirado o respectivo envelope de contribuição e de inclusão dos motivos de sua
revolta, o pastor disse: “Então você não está revoltada nada, porque ainda não tomou a decisão”, insistindo, a
seguir, que a mesma procurasse um templo e retirasse o seu envelope, dizendo que as pessoas, fazendo isso,
estariam “pegando o diabo pelo pescoço”. Trata-se, obviamente de uma “religião dos indignados” com a
posição por eles ocupadas no interior de uma sociedade, percebida difusamente como injusta e cruel.
80
Yvonne Maggie (1977) fez do conflito e suas representações ritualísticas o cerne de um estimulante texto
sobre o ciclo de vida de um terreiro de umbanda, no Rio de Janeiro. Várias páginas ( 60-65) são dedicadas às
demandas da mãe-de-santo e as implicações simbólicas disso tudo para o ritual (127-148). Possivelmente, uma
visão dos rituais iurdianos como um campo de batalha, pode-nos ajudar a compreender algumas dimensões de
suas reuniões e cultos, nem sempre valorizadas em nossas análises. Para os fiéis da IURD, as coisas estão bem
claras, há uma guerra no mundo entre as forças de Deus e dos demônios, guerra esta, reproduzida por batalhas
externas e internas. Isto é, as batalhas estão tanto dentro como fora de cada pessoa. Os ritos são formas de
exteriorização e interiorização dessa guerra total entre inimigos irreconciliáveis. Participar dos ritos é vivenciá-
los e, principalmente, superá-los por meio da assimilação de uma vitória, que “já foi ganha antecipadamente
por Jesus, na cruz do Calvário.”

132
133

de biombo para sistemas de poderes ideológicos. Nesse caso, eles são ritos de reforço de uma
ordem social, que se pretende manter em funcionamento.

2. Parece-nos que podemos considerar os ritos praticados na IURD, principalmente os de


sacrifício, as coletas e desafios assumidos pelos fiéis, o rito do exorcismo, como formas de
manifestar e de esconder, ao mesmo tempo, processos de inserção dos indivíduos numa ordem
sócio-econômica dominada pelo mercado. Esses ritos atendem à função básica de sintonizar
os receptores individuais com aquelas dimensões transcendentais básicas, que dão sentido a
uma vida cotidiana marcada pela impossibilidade de se manter status, renda e prestígio nas
camadas médias da população, e de se aspirar pela ascensão social, nas camadas
economicamente mais baixas do espectro social.

3. Dessa maneira, os ritos comutam simbolicamente com situações sociais, despertando nas
pessoas o sonho da mudança a curto prazo, baseado numa afirmação positiva de fé, que se
expressa no “eu quero”, “eu determino” e “eu posso”, fundado na promessa de que “na Igreja
Universal do Reino de Deus um milagre espera por você”. A busca frenética dos ritos refletem
o cansaço de uma vida cotidiana fragmentada e conflitiva, dividida entre tantos círculos que se
espalham por várias “províncias de significados”.

4. Porém, ao serem vivenciados, os ritos iurdianos não exigem fidelidade absoluta dos
indivíduos a todos os demais rituais oferecidos pelo templo, o que nos parece ser a novidade
introduzida pela IURD no campo religioso. Cada um pode escolher a “corrente” ou
“campanha” que lhe interesse naquele momento, possibilitando, inclusive, o trânsito desse
indivíduo para outros momentos rituais. A lealdade, contudo, do fiel é, em última análise, à
instituição religiosa iurdiana como um todo e não somente a este rito ou agentes
desencadeadores deles. Uma vez realocada a lealdade das pessoas das tradicionais agências
prestadoras de serviços religiosos para a Igreja Universal, agora o fiel depende dos que se
tornaram “donos do rito”, uma expressão de Da Matta (1979:92), isto é, das lideranças que
determinam quando, onde, como e de que forma os ritos devem ser praticados.

5. Para conseguir essa alternação, torna-se necessário haver no templo iurdiano a banalização
e desclassificação dos demais ritos religiosos, ofertados pelas agências concorrentes. Para ela,
os ritos das demais igrejas, seitas e denominações tradicionais são “ineficazes”, e não
produzem resultado algum. Os ritos católicos e “espíritas”, termo genérico que é usado pelos
iurdianos para designar o kardecismo e todas as tendências dos cultos afro-brasileiros, são
demonizados a priori, combatidos pelos “ritos puros” e “funcionais”, criados pela IURD. O
critério é a funcionalidade do sistema e “contra fatos não há argumentos”, reafirma
continuamente a retórica iurdiana. Todavia, para ser percebida como natural, essa lógica é
incorporada pelo sujeito, através de um processo de inculcação, cuja legitimidade é atribuída
às revelações do Espírito Santo.

6. Por isso, não há nenhuma possibilidade de ecumenismo com grupos diferentes, mesmo que
possuam ritos idênticos. A fundamentação dos grupos religiosos faz a diferença, e a
legitimidade repousa nos resultados, do qual o rito é expressão e tautologicamente
confirmação. Assim, o raciocínio é circular, pois a IURD tem os melhores ritos, e eles
funcionam exatamente porque são garantidos pela Igreja Universal. Os ritos são procurados

133
134

porque, numa época de incertezas, há necessidade de regras “infalíveis” de ação coletiva.


Como botes salva-vidas e ilhas de certezas, os ritos abrem as janelas para um mundo invertido
às incertezas quotidianas. Tal como escreveu Cazeneuve (s/d:211): “Como fundamento e
garantia incondicional do devir humano o sagrado deve ser situado fora do tempo da condição
humana (...) tempo sagrado e espaço sagrado são condições para que o rito mantenha a
participação do humano no sagrado, ao mesmo tempo que a transcendência deste.”

7. Os ritos sagrados, realizados num determinado espaço, transformam esse lugar num espaço
sagrado. Está portanto, no rito, a garantia de sacralidade do templo, porém de uma maneira
dialética, por sua vez, o templo reforça a sacralidade de objetos, atos e atores, justamente
porque estão sob a sua influência. Nesse espaço iurdiano se dá a mobilização dos fiéis, por
meio da representação, elementos tão usados quanto os dogmas racionalmente elaborados pelo
protestantismo histórico. Os ritos, ao demarcarem o tempo, permitem que os fiéis separem a
sua biografia pessoal em, antes e depois de conhecer a Cristo, na Igreja Universal.

8. O abandono dos ritos do protestantismo histórico, primeiro pelo pentecostalismo e, depois,


pelos neopentecostais, é uma realidade que não pode ser deixada de lado. Temos trabalhado
com a seguinte hipótese: os ritos, como artefatos sociais, podem perder a sua força
comunicativa e geradora de vida para um grupo religioso, que sempre os praticou. Isso
porque, tal como toda linguagem, na expressão de Cassirer (1976:14), os ritos envelhecem e
deixam de captar o dinamismo da vida, tornando-se apenas uma “abreviatura morta”, isto é,
uma morphe vazia, porque o dinamismo emigrou. Quando isso ocorre, uma primeira reação
de parcelas do grupo é a de tentarem a revitalização desses ritos e até a criação de outros ritos
paralelos. Porém, usando o peso da tradição e de suas formas de estruturação do tempo e do
espaço, os “ortodoxos”, que detêm o poder na instituição religiosa, excluem ou criam
condições para os “dissidentes” tomarem o caminho da defecção e cisão.

Obviamente, essas crises institucionais e de conseqüente esvaziamento de ritos, não representa


a morte da religião e do sagrado, mas sim o momento do nascer de novas formas de vivenciá-
los. Paul Tillich (1992:241,242,244), às vésperas da Segunda Guerra Mundial, escreveu o
estimulante texto, “o fim da era protestante ?”, no qual registrou:
“Quando desaparecem as antigas formas de integração, vão surgindo desses grupos
novas massas humanas; e os indivíduos, tendo perdido os objetivos, tornam-se
acessíveis às influências de qualquer tipo de apelo.” [Nesse clima as massas] “querem
líderes, símbolos e idéias acima de qualquer crítica”, [pois acreditam] “na
possibilidade do entusiasmo, do sacrifício, e da auto-sujeição a idéias e atividades
coletivas”, [desintegradas elas] “precisam de símbolos capazes de compreensão
imediata sem a ajuda do intelecto (...) de objetividades sagradas além das qualidades
subjetivas do pregador (...).” [Porém] “quase todos esses elementos objetivos
desapareceram das igrejas protestantes (....) desenvolveu-se a racionalização da
doutrina (...) com a conseqüente dissolvição do mistério religioso”.
9. O processo de ritualização na Igreja Universal do Reino de Deus consegue estabelecer uma
ponte entre o imaginário social, a dimensão transcendental, tida como eterna, e o presente das
pessoas. Por meio de uma alquimia social essas pessoas imergem numa dimensão de
intemporalidade, dissolvendo-se assim no rito, aquelas lacunas entre passado, presente e

134
135

futuro e, com elas, a acusação de alguns críticos de ser ela uma “religião presentista”. Isto nos
faz recordar uma das frases de Ludwig Wittgenstein (1968:127): “Se por eternidade não se
entender a duração infinita do tempo mas a atemporalidade, vive eternamente quem vive no
presente.” Dai, o sucesso desses ritos, em contexto de decomposição do mundo cognitivo e
sentimental de indivíduos atravessados pelas transformações e fragmentações da vida. Os
ritos, portanto, oferecem uma âncora, que estabiliza a frágil embarcação da vida nos
ancoradouros de “certezas” e “verdades”.

10. Os templos da Igreja Universal são lugares, onde as pessoas desconectadas de um cosmo
organizado, redescobrem sentido para a vida. Mas, por outro lado eles reproduzem outros
centros simbólicos, que através dos tempos, têm proporcionado às pessoas boa sorte, saúde e
prosperidade. Trata-se de construções simbólicas de um grupo de adoradores, mas que uma
vez criados passam, por sua vez, a dar origem a novos adoradores, conforme receituário
garantido por um corpo sacerdotal. Essa função faz com que os templos iurdianos sejam
“extensões tangíveis de legados culturais intangíveis”, fortemente incrustados na cultura
popular, conforme assinala David M.Knipe (Fox,1988:107). Além dessas funções, eles
também são centros pedagógicos, nos quais se pratica a terapia divina para os males humanos,
um espaço de dramatização e de ritualização da luta contra as forças do mal, lugar da
apresentação dos sacrifícios monetarizado dos fiéis e símbolo da unidade coletiva do povo
iurdiano. E, somente à vezes, espaços de cultivo da memória dos milagres e prodígios de
Deus. Citamos apenas um caso, no templo principal da Igreja Pentecostal “Deus é Amor” há
uma “sala de milagres”, na qual inúmeras muletas testificam terem ali ocorrido milagres, ao
lado de vidros contendo substâncias vomitadas por “pessoas endemoninhadas”. São ex-votos
de uma religiosidade, que precisa dos aspectos tangíveis para a comprovação de sua eficácia.
Já na Igreja Universal, os ex-votos são eletrônicos, pois, os curados no templo prometem
gravar o testemunho tão logo possível, para divulgar as “maravilhas” operadas por Deus
naquele “santo lugar”.

ANEXOS

Quadro 2: As “correntes” na Igreja Universal do Reino de Deus

DIA NOME OBJETIVO RITO RELATOS


DA DA DA RECOMEN- DE RESULTADOS
SEMA- CORRENTE CORRENTE DADO CONSEGUIDOS
NA

SEGUND Estimular a crença na Aqueles que esti- 1. Ex-deputado


A-FEIRA prosperidade, orar verem mais de estadual em Goiás,
1. CORRENTE
pelos desempregados, acordo com os perdeu tudo, após
DA
estimular os que forem adesão à IURD e ao
PROSPERIDAD

135
136

E; microempresários que indicados pela dízimo recuperou


estão em dificuldades “campanha da tudo o que perdeu
2. CORRENTE
financeiras, estimular época” (um
DA VIDA 2. Mulher, cujos
entre os que pouco exemplo: em
REGALADA. negócios numa loja
vendem um clima de 27.9.93, as pes-
de ferramentas
otimismo, atrair soas recebiam
estavam ruins assim
também os que uma pedra
como a vida
desejam trabalhar por “igual” à que foi
conjugal. Morava
conta própria. empregada por
numa casa de 3
Davi para lutar
Procura-se também cômodos. Fez
contra Golias).
dar um atendimento “desafios”, hoje os
3. CORRENTE
melhor aos que se negócios
DOS
sentem aflitos por prosperaram, vive
EMPRESÁRIOS
causa da estagnação, bem com o marido
(Corrente
descenso social ou numa casa de 11
circunscrita
dificuldade de cômodos.
somente aos
ascensão sócio-
templos de 3. Foi executivo de
econômica.
cidades grandes uma multinacional
ou capitais, onde por 25 anos, montou
há um número negócio próprio e
maior de pessoas tinha 8 lojas de
que podem ser ótica. Faliu, perdeu
enquadradas na tudo, procurou
categoria de “centros espíritas”,
“autônomos” ou mas na IURD
de “microempre- recuperou duas
sários”) lojas, pagou as
dívidas e hoje “vive
bem”.

(Folha Universal de
21.11 e 17.12.93).

TERÇA CORRENTE Cura de todos os tipos Passar num Cura de um tumor


DOS 70 de enfermidades. corredor no útero (Marina R.,
FEIRA
PASTORES Destina-se a pessoas formado por 70 47 anos); Liberta
“desenganadas pela ou 140 pastores e dos vícios e caroços
OU
medicina”, que já obreiros; tocar no seio (Suzeli M.);
APÓSTOLOS;
gastaram dinheiro e em objetos Tuberculose,
esperança em outras “orados” ou (Elizangela M., 22
agências de cura. “relíquias” como anos); Depressão
CORRENTE
o “manto profunda (Geny A.,
DOS
sagrado” ou Advogada, 37 anos);

136
137

MILAGRES “manto Paralisia por


vermelho”, derrame (Irene R. 55
imposição de anos) e por
OU mãos, receber meningite (Luís C.
CORRENTE unção com óleo. 28 anos). Cura de
DA SAÚDE. lúpus, (Sebastiana
B. 33 anos);
Displasia mamária
(Maria G. 32 anos).
AIDS, mãe e filha
(Sandra A. 37 anos);
“útero apodrecido”,
(Luciana, 23 anos);
Câncer intestinal;
(Maria B. 70 anos);
Alcoolismo,
(Antonio L. 38 anos,
gerente de vendas),
Folha Universal de
28.1.96; 7.1.96;
24.1.96.

QUARTA CORRENTE A quem deseja Freqüentar a Advogada, ex-


DOS experiências místicas Igreja, católica, não lia a
FEIRA
mais profundas, especialmente as Bíblia e nem falava
FILHOS DE
batismo com Espírito reuniões de com Deus. Hoje tem
DEUS
Santo, estudos oração e ler a vida religiosa
bíblicos. Bíblia intensa e
resolveram-se os
problemas
familiares. (Folha
Universal, 5.11.95,
p.4a ).

QUINTA- CORRENTE Quem tem problemas Caso de Assaltava


FEIRA no casamento, filhos alcoolismo, levar residências e
DA
viciados, lares com “sal orado” para cheirava cocaína.
FAMÍLIA brigas, desunião. a casa e colocar (João E., 25 anos,
na comida do ex-interno da
viciado FEBEM, hoje dono
de lava- rápido).

SEXTA- CORRENTE Abertura dos que têm Exorcismo, Prostituía-se desde


FEIRA o “caminho passar pelo “vale os 15 anos porque
DA
amarrado” por causa do sal” e outras lhe fizeram

137
138

LIBERTAÇÃO de bruxaria, práticas macumba, na IURD


macumba, inveja, dependendo da “se manifestava se
contato com “campanha” arrastando pelo chão
entidades, ouvem daquela época. como uma cobra”.
vozes e outros (Marli C, 30 anos,
sintomas de promotora de.
possessão. vendas); Crises de
loucura por causa
das “macumbarias”
(Fátima A. 21 anos).
Cura de AIDS, por
ter participado de
bruxarias (Audi D.,
Angola e Maria L. ,
Portugal.); Morava
em cemitério,
mendigava comida,
fazia pacto com o
diabo, comia
vísceras de
cadáveres; Luiz N.
42 anos. (Folha
Universal, 14.1.96,
31.1.96, 4.6.95).

SÁBADO 1. CORRENTE Pessoas com Bênção do Na “corrente das


dificuldades material de crianças”, fazem
DA financeiras, vida trabalho; bênção reuniões específicas
profissional e sentimental; só para crianças,
GRANDEZA
amorosa complicada. passar sob um com a presença,
DE DEUS; Faz-se no sábado um arco de flores, inclusive de
resumo das estratégias receber no final palhaços (Bozo ou
e temas das reuniões da fila uma Bozolina, membros
2. CORRENTE
ocorridas durante a unção com óleo da Igreja, ex-atores
DAS semana. Atividades do pastor. de televisão),
especiais para as Oração e bênção distribuição de
CRIANÇAS crianças. para as crianças. prêmios e doces para
as crianças. (Folha
(sábados às 10 Universal, 24.9.95).

hs. da manhã).

DOMIN- 1.CORRENTE 1. Oferecer um culto 1. Receber e Ex-marginal, ladrão


DO de louvor a Deus e ao levar para casa o de carros por 5 anos,

138
139

GO ENCONTRO Espírito Santo. “óleo santo de Linderval M.;


COM DEUS; Israel”, ou outros Sancho e Katia se
2. Responder às
objetos das encontraram e
2. CORRENTE necessidades de
“campanhas” ficaram noivos no
DO AMOR (15 pessoas com
sazonais. mesmo dia, na
horas, IURD da dificuldades na vida
“corrente do amor”.
Abolição); amorosa. 2. As vezes
Ambos tinham
usam-se tocar
3. CULTO DO 3. Casamento de dificuldade de se
trombetas e
AMOR pessoas, que vivem relacionar com
movimentações
(Aracaju) juntas, mas não são pessoas de sexo
no templo para
legalmente casadas. oposto. (Folha
4. Corrente de simular o povo
Universal, 1.12.95)
Jerico (Brás) 4. Estimular a auto- de Israel liderado
estima e a vontade de por Josué
vencer na vida. cercando Jerico.

Quadro 3: As “campanhas de fé” na Igreja Universal do Reino de Deus

DATA E

TÍTULO DA CAMPANHA CITAÇÃO OBSERVAÇÕES


BÍBLICA

Campanha da restituição 25.10 a 30.10.94 Tem por objetivo levar uma pessoa a
alcançar a prosperidade. Ela deve anotar
(IURD do Brás)
o pedido do que deseja que Deus lhe
restitua e levá-lo ao pés da cruz.

Campanha das “pedras da fé” 27.9 a 2.10.93 Assim como Davi venceu o gigante
Golias com uma pedra, as pessoas que
1 Sm. 17.23
forem ao templo receberam uma pedra
capaz de derrubar os seus gigantes.

Campanha de Senaqueribe 25.10 a 30.10.94 Senaqueribe é o rei assírio, que precisa


ser derrotado. Daí a importância do
(outras IURDs) 2 Rs 19.32-37
jejum e oração. Foi uma campanha
levada a cabo nas vésperas das eleições
de segundo turno no Brasil, o que
permitia cada pastor visibilizar bem
quais eram e de que partido faziam parte
os atuais “Senaqueribes”. A campanha
anti-PT e anti-Lula daquele ano gerou
punições à TV Record e ao jornal
oficial. (Cf. Folha Universal, 25.9.94,
com publicação de direito de resposta do

139
140

PT).

Campanha das Portas 29.8 a 31.8.94 e Destina-se aos que sentem fechadas as
Abertas de 1°.02.96 a portas da saúde, da prosperidade e da
libertação. “O demônio amarra, mas
6.2.96 - Mt 7.7
Jesus abre todas as portas”.

Campanha do Saquitel de 16 a 22.5.94 As pessoas retiram no começo da


Deus campanha um saquinho de plástico e o
Ag 1.6
devolvem na segunda-feira seguinte,
com o seu pedido dentro. “Os que não
conseguem prosperidade é porque têm
um saquitel furado, onde depositam o
seu salário”.

Campanha das Loucuras da 1 a 14.8.94 Deus faz coisas que a sabedoria humana
Fé diz serem loucas. Um exemplo de fé é
1 Co 1.25
usar objetos desprezíveis para colocar a
fé em ação. Dia 7/8 distribuíram “vara
de Jacó” e 14/8 o “óleo de Israel”.

Campanha de Israel Julho de 1994 e Esta campanha está ligada ao dia da


“Fogueira Santa de Israel”. As pessoas
janeiro
preparam os seus pedidos em
de 1996. formulários especiais, que são
queimados numa “fogueira santa” e as
cinzas levadas para Israel onde, em
pontos geográficos de forte identificação
emocional dos cristãos são lançadas,
depois das orações dos bispos sobre elas.

Campanha de Gideão 9 a 16.10.94 Despertar a confiança das pessoas em


Deus e assim atingir os seus objetivos na
Jz 6.25-32
guerra contra as forças do mal, presentes
na vida financeira. Num depoimento na
TV, um senhor diz que tirou tudo que
tinha no Banco, fez voto com Deus na
IURD e ganhou casa com 10 cômodos,
carro, pois conseguiu vender uma casa
velha para a qual não conseguia
comprador (Despertar da Fé, 7/2/95).

Campanha da Arruda 29.9.94 Promessa de oração forte de


“descarrego” com o uso de arruda, na
última sexta-feira do mês. (Observe-se
que a arruda é um elemento importante

140
141

na religiosidade popular afro-brasileira e


católica).

141
142

CAPÍTULO 4 - RELIGIÃO E MERCADO: A IGREJA


UNIVERSAL E A TEORIA DA “MERCANTILIZAÇÃO”
DO SAGRADO

“Pode-se considerar suspeita uma religião que mistura tão facilmente Deus aos negócios, exige-lhe
êxitos terrestres e, talvez supersticiosamente, faz a fortuna depender da proteção divina” (Jacques Le
Goff, 1991:92).
“Sugiro que o fenômeno das empresas de cura divina deva ser compreendido segundo um modelo
econômico e não religioso. O que lhe dá a sua configuração específica é o fato da comercialização de
bens espirituais, e não o fato de serem espirituais os bens comercializados (...). A meu ver, não estamos
diante de uma manifestação religiosa que lança mão de métodos empresariais. Sugiro a direção inversa:
a mentalidade de empresa aqui começa a produzir e a distribuir bens espirituais” (Rubem Alves,
1979b:115).

A prática da Igreja Universal do Reino de Deus, além de ser passível de análise por meio das metáforas “teatro” e
“templo” pode também ser vista como “mercado”. Aliás, a mídia, em suas exaustivas coberturas ao nosso objeto
de pesquisa, tem considerado a Igreja Universal tão somente um “balcão de milagres”. Já analisamos nas páginas
anteriores as vinculações entre as práticas religiosas dessa Igreja e a teatralização do culto, suas maneiras de
sacralização espaço-temporal, seus ritos e práticas cúlticas. Agora, colocamos como meta descrever e interpretar
o seu comportamento, à luz da teoria da “mercantilização” do sagrado mostrando, inclusive, as limitações dessa
teoria e o reducionismo que ela impõe, não somente ao caso, como também aos fenômenos religiosos de um
modo geral.

As perguntas a serem respondidas são estas: Que utilidade o paradigma “mercado” tem para o estudo da Igreja
Universal? Que condições históricas e culturais estimularam a abordagem mercadológica da religião e o
aparecimento desse fenômeno, somente na segunda metade do século XX? O “sagrado” está no “balcão”? Quem
afirma isto sobre a Igreja Universal? A que tipo de “sagrado” e de “balcão” tais críticos se referem? Somente
agora, com o surgimento do neopentecostalismo, é que o púlpito-altar e o balcão se encontraram? Enfim, o que
significa dizer que a religião foi colocada “sob a égide do mercado”?

Fiéis à estratégia anteriormente definida, iniciamos com uma abordagem histórica, tentando estabelecer as
ligações das tendências atuais do neopentecostalismo iurdiano com o terreno sócio-cultural de onde ele brotou.
Em seguida, analisaremos os principais argumentos usados para caracterizar a Igreja Universal - ou seja, o viés
da “mercantilização” do sagrado. Esse conceito é empregado pelo senso comum, imprensa e alguns escritos
acadêmicos, num sentido pejorativo e estigmatizante, o que é uma forma apologética de falar das relações entre a
religião e suas relações com o mercado.

4.1 Religião e mercado: aspectos históricos

Não temos estudos específicos sobre a “mercantilização” da religião no Ocidente, assim como temos uma
“história das mentalidades”, “história da morte”, “história do medo”, “história da vida cotidiana” e outras mais.
Infelizmente, nada há que se assemelhe a uma história completa da simonia no Ocidente. Há fragmentos da

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história da Igreja Católica medieval sobre as relações econômicas estabelecidas entre a Igreja e a sociedade nas
análises de Jacques Le Goff (1988, 1991), Joseph H. Lynch (1992) e em estudos de professores norte-americanos
associados a Robert B.Ekelund (1996), da Auburn University. 81 Todavia as relações entre a religião e o mercado,
aqui entendido como o lugar onde se dá a troca de mercadorias, nunca obedeceram a padrões únicos. Isto porque,
tanto o comércio como a religião são fenômenos dinâmicos e mutantes no tempo e no espaço e, além do mais,
numa economia pré-mercado, aquelas relações eram vividas de um jeito e, com o surgimento do mercado
moderno, de outra maneira.

Porém, como foi visto anteriormente, o fenômeno religioso é tão antigo, que o seu rastreamento se perde na pré-
história. Já sobre o mercado não se pode dizer o mesmo, pois trata-se de uma instituição relativamente nova, se
encarada como “instituição que coloca todos os vendedores e compradores em contato recíproco, com a
finalidade de promover a troca de bens econômicos ou dinheiro, para entrega imediata ou futura”, conforme
afirma verbete do Dicionário de Ciências Sociais (Silva, 1987:743). O seu aparecimento só foi possível após
uma série de mudanças na sociedade, que possibilitaram o abandono do escambo, quando simplesmente se
trocavam um objeto por outro. Depois, surgiram os “mercadores itinerantes”, mais adiante as feiras, até o
estabelecimento da atividade comercial num espaço geográfico com o nome “mercatus”, palavra latina
empregada para designar mercado, comércio, negócio, assembléia ou reunião.

Os primeiros mercadores percorriam, em caravanas, portos, vilas, cidades e zonas rurais, levando mercadorias,
fortemente escoltados por soldados armados. Esporadicamente algumas cidades realizavam feiras, atraindo
multidões de pessoas. Promoviam-se então oportunistas cerimônias religiosas paralelas ao evento comercial.
Alguns séculos depois, com o comércio já devidamente estabelecido, dispensou-se o trabalho desses mascates
pioneiros. Mas muitos deles, ao se estabelecerem nas cidades, reforçaram o crescimento da burguesia, que como
classe social, alguns séculos mais tarde, iria conquistar o poder político e econômico em várias partes do mundo,
especialmente na Europa.

Cristianismo primitivo, sociedade e comércio


O cristianismo surgiu numa sociedade já habituada à “comercialização” do sagrado, porque, no primeiro século
de nossa era, em muitos santuários religiosos de tradição asiático-greco-romana praticava-se um intenso
comércio ao redor do espaço sagrado. Mesmo o templo de Jerusalém, na época de Jesus, era controlado por uma
casta sacerdotal que ali desenvolvia um comércio regular de animais destinados ao sacrifício e cambiava moedas
trazidas por judeus de todo o Império Romano, proibidas de circularem na área do templo. Como não havia um
padrão único de moedas, exigia-se a presença do cambista, cuja função era trocar o dinheiro do peregrino pela
“moeda do templo”, condição para a aceitação das ofertas. Isso, obviamente, era feito em condições vantajosas
para os sacerdotes.

Foi esse comércio no pátio dos gentios que ocasionou, segundo os evangelhos (Marcos 11.15-17), nos últimos
dias da vida de Jesus em Jerusalém, um conflito com os cambistas e certamente acelerou as conspirações já então
em andamento, provocando seu julgamento e morte. Esse episódio se tornou conhecido como a “purificação do

81 Sobre o comportamento da Igreja no campo econômico durante a Idade Média é fundamental a análise empreendida por
Robert B.Ekelund, Robert F.Hébert, Robert D.Tollinson, Gary M.Anderson e Audrey B.Davidson, Sacred Trust: The
Medieval Church as an Economic Firm, New York-Oxford, Oxford University Press, 1996; assim como partes de Joseph
H.Lynch, Simoniacal Entry into Religious Life from 1000 to 1260: A Social, Economic and Legal Study, Columbus, Ohio
State University Press, 1992 e de Jacques Le Goff, Your Money of Your Life: Economy and Religion in the Middle Ages,
New York, Zone Books, 1988.

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templo”, um espaço sagrado, que segundo os Evangelhos havia deixado de ser “casa de oração para todos os
povos” e se tornado apenas um “esconderijo de ladrões”.

Ainda nos tempos neotestamentários, a mistura de comércio e religião recebeu o nome de “simonia”, por causa
de um outro episódio narrado nas Escrituras cristãs (Atos dos Apóstolos, 8.9-23), acontecido logo nos primeiros
anos da expansão do cristianismo, então uma mera e insignificante seita judaica. O caso ocorreu em Samaria,
onde um mágico chamado Simão, ao ver os milagres que os apóstolos provocavam quando impunham as mãos
sobre as pessoas, quis comprar o “segredo” de como fazer as coisas. Sua oferta escandalizou a Pedro, um dos
apóstolos, que lhe disse: “Que Deus mande você e o seu dinheiro para o inferno! Você pensa que pode comprar o
dom de Deus com dinheiro?”82

Durante os decênios seguintes, os contatos dos cristãos com a cultura greco-romana continuaram conflitivos. A
passagem do ambiente judaico para o gentílico gerou dificuldades quanto à questão da pureza, criando-se toda
uma discussão, já nas primeiras décadas, sobre o consumo de mercadorias “ofertadas ao ídolos”. Em algumas
regiões, por exemplo em Corinto, Sul da Grécia, a carne, antes de chegar aos açougues, passava pelos templos
pagãos, provocando entre os cristãos, durante muitos anos, um problema de consciência e vários enfrentamentos
entre partidos e facções na comunidade cristã. Esses conflitos em Corinto levaram Paulo a recomendar-lhes a
abstinência do consumo de carne de “origem duvidosa”.83

Na cidade de Éfeso, na Ásia Menor, houve um outro episódio digno de nota, relacionado com o culto da deusa
Diana, divindade que, segundo aquela crença, era representada por uma imagem caída do céu. 84 Réplicas dessa
imagem eram fabricadas e vendidas pelos inúmeros ourives e comerciantes, que viviam dessa atividade.
Demétrio, um deles, liderou seus companheiros numa campanha contra os primeiros cristãos, cuja pregação
colocava, aos olhos deles, em perigo o futuro de seus negócios. Num tumulto de duas horas, a multidão
enfurecida gritava: “grande é a Diana dos Efésios”, chegando até a colocar em risco a vida de Paulo, pregador do
cristianismo (Atos dos Apóstolos, 19.22-39).

Algumas décadas depois, os cristãos enfrentaram tremenda perseguição por parte do Império Romano. Se as
denúncias do autor do livro de Apocalipse forem historiadas, isto é, aplicadas àquele momento histórico que o
“profeta” viveu, perceberemos que a pressão de Roma chegou até o ponto de impedir que os cristãos, avessos ao
culto do imperador, tivessem acesso ao comércio e assim pudessem comprar ou vender. 85 A decisão de Roma

82 Simão, o mágico, depois desse acontecimento nunca mais é citado nas Escrituras cristãs, porém a tradição manteve dele
várias referências, talvez algumas delas lendárias, dando conta de seu reaparecimento em várias regiões, sempre
disputando com os seguidores de Jesus, inclusive em Roma, onde teria tido muita influência com o título de “Simão, o
mago”. Justino Mártir (Século II), o livro apócrifo de Atos de Pedro e Hipólito fazem referência a ele. A sua importância
se deve exatamente pela tentação sofrida por muitos cristãos no ambiente pagão dos primeiros séculos, isto é, a dificuldade
em separar o cristianismo dos rituais mágicos então praticados sob o rubrica de “cultos de mistérios”. Por isso, Simão é
citado como um dos fundadores do gnosticismo cristão.
83 Gerd Theissen (1987:133-147) analisou as relações entre o que ele chama de “fortes” e “fracos” em Corinto. Nesse texto,
Theissen mostra que estava em jogo nos bastidores daquela disputa teológica toda uma rede de vinculação entre o fiel e a
sociedade na qual ele vivia e não somente os hábitos alimentares. O acesso ao mercado de carne era apenas um aspecto da
questão da ligação do cristão com a totalidade da vida social, inclusive através do mercado.
84 Diana era o nome romano da deusa grega Artêmis, cujo templo, construído entre 580 a.C. e 480 a.C., media 104 metros de
comprimento por 49 metros de largura, centralizava todas as atividades da cidade de Éfeso, sendo importante centro
político e comercial até a sua decadência no século V de nossa era.
85 Em Apocalipse 13.17-18, o vidente fala que o monstro tinha um número e obrigava as pessoas a colocarem um sinal nas
mãos e na testa, condição sine qua non para participar das atividades comerciais. Babilônia, na linguagem simbólica desse
livro bíblico, é a própria cidade de Roma vista como uma negociante prostituta. A destruição dessa cidade-símbolo foi

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estava fundamentada no costume de se exigir obediência plena dos cidadãos do Império. Mas os cristãos se
opunham, denunciavam e refutavam a força dos deuses pagãos e classificavam como mágicos todos os demais
cultos concorrentes. Essa atitude provocou o isolamento social dos cristãos, realimentou preconceitos e favoreceu
o desencadeamento de novas ondas de perseguições, o que fez os cristãos se encastelarem ainda mais numa
postura, caracterizada por Niebuhr (1967:67-108), como “Cristo-contra-cultura”. Tertuliano, por exemplo, se
opunha até mesmo à participação dos cristãos no comércio.

A complexidade do comportamento dos cristãos dos primeiros séculos, exteriorizada nesses e em outros
episódios de negação da sociedade organizada, nos impede de encararmos com seriedade as várias tentativas de
“volta à Igreja primitiva”, existentes em todos os grupos cismáticos, inclusive nos pentecostais. É preciso que
reconheçamos que “Igreja primitiva” é apenas um tipo ideal recriado muito mais a partir da imaginação do que
de evidências históricas. Daí, a violência apologética à verdade dos fatos, a reconstrução feita por grupos
pentecostais de um ponto de referência idealizado, ao qual eles dão o nome de “Igreja primitiva”, para denunciar
a “Igreja moderna”, que, entre outros pecados, estaria o de ter abandonado a ênfase carismática e a centralidade
do Espírito Santo. Essa reconstrução pentecostal, no entanto, só é possível se abandonarmos dezenove séculos de
cultura cristã, que intermediaram o aparecimento do pentecostalismo e a constituição da Igreja cristã como
movimento e instituição.

Os estudos sociológicos das comunidades primitivas permitem a observação de como foram criadas e
sobrepostas as camadas de interpretações produzidas pelos cristãos daquela época, na vivência diária da
mensagem, originalmente anunciada por Jesus de Nazaré. Por isso, não podemos esquecer que a “mensagem
inicial do Nazareno se sobrecarregou de associações e legendas inocentemente publicitárias”, como observou
Henri Guillemin (1982). Em outras palavras, os Evangelhos e cartas apostólicas, assim como a própria fixação do
cânon do Novo Testamento, obedeceram a razões ligadas às estratégias de crescimento e às exigências de
maximização da comunicação e propaganda da nova mensagem.

É claro que uma visão sociológica da produção dos textos bíblicos e da reconstrução da vida social dos cristãos
do primeiro século provocou a relativização de muitos axiomas e verdades, aceitas sem maiores discussões ou
críticas por parte dos pentecostais. Decorre daí o desprestígio dos estudos científicos da Bíblia, característica
transformada em trunfo pelos pentecostais, cujas comunidades atraem pessoas cansadas do relativismo da cultura
moderna, e que a elas se dirigem desejosas de receberem um “evangelho simples” e sem “complicações”.

Cristianismo medieval, sociedade e mercado

A postura cristã contra a sociedade e de abandono das várias instituições culturais, como arte, forças armadas e
comércio, principalmente por cristãos montanistas, entre eles Tertuliano no final do segundo século, foi-se
alterando por ocasião da oficialização do cristianismo pelo Império Romano, no Século IV. Desde então, houve
uma espécie de adaptação do culto cristão aos novos lugares de adoração, alguns deles anteriormente dedicados
aos deuses pagãos. Vários santuários locais foram reconsagrados aos mártires e santos cristãos, e com o passar
dos séculos, um comércio de imagens, ícones e relíquias sagradas se estabeleceu ao redor deles, práticas essas
que constituiriam mais de mil anos depois, aos olhos dos reformadores, evidências claras da “paganização” da

cantada em versos no capítulo 18 porque essa cidade reunia em si mesma o comércio, a prostituição religiosa, a união de
interesses entre comerciantes de todo o mundo, e a oposição à “cidade de Deus” e seus “santos”.

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Igreja cristã, e que teriam permitido o surgimento de um vasto processo de sincretismo. Evidentemente, como
mostra Guignebert (1983), o triunfo teve o seu preço.

Com a sua oficialização, o cristianismo se tornou um produtor hegemônico de símbolos, práticas e rituais
religiosos. Nesse período, a Igreja aperfeiçoou seus meios de comunicação com a sociedade, inventando o sino, a
torre, o confessionário como fonte de poder e de pesquisa, a trilha musical e outras atividades comunicativas, que
facilitavam a “venda” de seus produtos simbólicos, conforme historiou o publicitário Alex Periscinoto (Jornal da
Tarde, 21.10.95).

Todavia, após a desintegração do poder político do Império Romano no Ocidente, a Igreja continuou sendo o
único centro capaz de manter o nomos, iniciando-se assim um novo momento histórico, a Idade Média, que iria
terminar somente com o advento do mundo moderno, no século XVI. Durante os treze séculos posteriores, houve
uma imposição da fé cristã sobre uma população rural portadora de crenças mágicas e pagãs, catequese que
apenas formou uma camada de verniz sobre uma antiga realidade religiosa. A aristocracia eclesiástica não
conseguiu influenciar profundamente as massas populares, e por toda a parte na Europa, assinala Keith Thomas
(1991:36,50), multiplicavam-se os cultos às relíquias sagradas, verdadeiros fetiches milagrosos, aos quais se
atribuíam poder de curar enfermidades e proteger as pessoas dos perigos. Esses objetos, que pensavam terem
pertencido aos santos ou simplesmente por terem sido usados na missa, eram trocados, presenteados, roubados,
vendidos ou comprados. Muitos deles eram empregados com as mais diversas finalidades, desde o auxílio no
trabalho de parto até na cura de peste no gado bovino ou para afastar epidemias de seca, fome ou pragas de
gafanhotos. Por isso, ainda segundo Thomas, “a Igreja medieval mostrava-se como um grande reservatório de
poder mágico, capaz de ser empregado para uma série de finalidades seculares”.

A religiosidade dos camponeses, que segundo Weber (1968:13), sempre foi propensa à magia, e antes mesmo do
surgimento do utilitarismo dos mercadores, já havia-se estabelecido uma conexão entre a religião cristã e a
prosperidade material, por meio da qual se buscavam nos ritos soluções para estes ou aqueles problemas práticos
da vida. Com a monetarização crescente da sociedade no final da Idade Média, as relíquias, sacramentos e até
indulgências chegaram a ser trocadas por moedas. Aliás, a introdução da moeda como forma de intermediação
nas trocas refletiu-se também na religião, submetendo movimentos e ações religiosas a um processo de
racionalidade mais amplo.

Segundo Jacques Le Goff (1991:90,108,124), toma corpo nessa época um novo tipo de mentalidade, a
“mentalidade de mercador”, cujas características eram as seguintes: utilitarismo; valorização dos conhecimentos
práticos e não os teóricos; percepção das diversidades que deveriam ser atendidas, em oposição à idéia teológica
de totalidade; busca do concreto, do material e do mensurável; racionalização do tempo, por meio da elaboração
de um calendário profano, atrelado às necessidades do orçamento e não mais regulado pelas festas e liturgias da
Igreja; introdução do segredo que deve cercar o negócio, da meticulosa contabilidade que registra todas as
atividades de compra e de venda, surgindo, “uma moral terra-a-terra, feita de pendência e senso prático, ligada à
preservação do dinheiro, da propriedade, da família e da saúde.” 86

86 Segundo Le Goff (1991:90,108,124), algumas das características, depois atribuídas por Weber à ética protestante na
origem do capitalismo, já se faziam presentes nos mercadores do final da Idade Média. Entre essas idéias havia, inclusive,
a de constituir Deus como sócio de um negócio, abrindo para ele uma conta onde se creditava a sua parte nos lucros. Ao
contrário do que alguém possa pensar, contratar Deus como parceiro de negócios não foi uma descoberta da “teologia da
prosperidade” e dos “empresários”, que testemunham nos programas da IURD na televisão.

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Foi somente com o protestantismo, alguns séculos depois, que a prática comercial passou a ser encarada uma
vocação tão santa quanto o ministério sacerdotal, possibilitando ao mercador a conciliação entre o amor a Deus e
ao dinheiro. Rompeu-se assim a predominância de idéias consagradas por Tomás de Aquino de que o “comércio,
considerado em si mesmo, tem um certo caráter vergonhoso” e pelo direito canônico, que desde Graciano, século
XII, considerava impossível ao mercador agradar a Deus ou pelo menos dificilmente. 87

O protestantismo e a gênese de um sistema de mercado


Somente no século XVI é que as condições históricas propícias para o surgimento de um sistema de mercado se
solidificaram. Mas, é bom lembrarmos ter sido a reforma protestante desencadeada, entre outras causas, por um
escândalo que associava exatamente religião e mercado - à mercantilização de indulgências. Muitos católicos, tal
como Lutero, se revoltaram contra esse processo de levantar recursos financeiros, através da entrega ao fiel da
garantia futura de perdão de pecados, mediante o pagamento de uma certa quantia em dinheiro.88

Outras transformações sociais corriam paralelamente às alterações operadas na prática econômica e religiosa,
entre elas a urbanização, um fator importante na passagem do sistema de trocas para o de mercado. As cidades
procuravam desenvolver um clima de liberdade quanto aos poderes dos nobres e dos senhores feudais. Assim,
foram sendo rompidos gradativamente os interditos colocados pela Igreja ao comércio e à busca do lucro. Até
então, os comerciantes eram pessoas malvistas pela nobreza e amaldiçoados pelo clero, que as considerou
“heréticos”, em dois concílios, Lyon e Viena, respectivamente nos séculos XIII e XIV.

Atribuía-se aos comerciantes, nessa época, o pecado da usura, dando-se uma versão teológica a um preconceito
que vinha desde Aristóteles, baseado no argumento da improdutividade intrínseca do dinheiro. Walter Altmann
(1994:211) mostra que o próprio reformador Martinho Lutero não escapou de formular juízos contundentes a
esse respeito, chegando a considerar o comércio, em seu tratado Do comércio e da usura, de 1524, uma forma
pouco nobre de se ganhar dinheiro. Para ele, a prática comercial era uma atividade de difícil compatibilização
com o direito e honestidade, valores que deveriam ser exigidos dos cristãos verdadeiros.

Apesar de tudo isso, a resistência eclesiástica contra o comércio foi sendo rompida, externamente, pelo
crescimento das cidades, que sediavam feiras e mercados, locais livres, onde, longe da ingerência dos vários
códigos de ética da nobreza e do clero, os comerciantes se submetiam as suas próprias normas de conduta;
internamente, a resistência se rompia pela prática dos clérigos de muitas coisas que a própria Igreja condenava, o
comércio de dinheiro e até de coisas “santas”.89

Nesse contexto, se fortalecem o mercado e seus agentes burgueses, que encontrariam em João Calvino (1509-
1564) a sustentação teológica para as novas instituições e mentalidades. André Biéler (1970:58) analisa as

87 Não seria a enorme repulsa católico romana à mercantilização da religião um resquício dessas antigas interdições às
práticas do mercador? Excluindo-se as acusações utilitárias contra a IURD, não estaria nessa antiga postura a matriz do
escândalo, que as práticas iurdianas provocam na sociedade brasileira de hoje? Sobre as restrições ao comércio e à usura
por parte da Igreja na Idade Média e o Deo placere non potest, veja-se Max Weber (1991:391).
88 A venda de indulgência na Alemanha, segundo Gottfried Fitzer (1971:2) esteve a cargo do monge dominicano Tetzel, a
mando de Hohenzollern, arcebispo de Magdeburgo. O seu projeto incluía distribuir o valor arrecadado da seguinte forma:
50% para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma, a outra metade serviria para cobrir as despesas de arrecadação
e o pagamento dos vultuosos empréstimos feitos pelo jovem arcebispo junto ao banqueiro Fugger, para poder financiar a
compra do elevado posto por ele então ocupado.
89 Mesmo a postura eclesiástica quanto à usura e ao comércio, como demonstra Le Goff (1991:71,77), era marcada por uma
contradição básica, pois a Igreja condenava teoricamente essas coisas, fazendo da pobreza o ideal de vida, enquanto
transformava monges e mosteiros em agentes e centros distribuidores de dinheiro a juro e de comércio.

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posições de Calvino, para quem o comércio era um sinal visível da interdependência das criaturas de Deus, uma
atividade plena de dignidade, desde que estivesse a serviço da construção de um ambiente de paz e harmonia
entre os homens.90Com a ampliação do comércio e depois com a industrialização, o Ocidente deixaria para trás o
“mercado restrito” e lançava as bases para o surgimento de um “mercado amplo”, interligado, processo destinado
a se globalizar, processo ainda em andamento.

Todas essas mudanças refletiram diretamente no campo religioso, provocando a desintegração do monopólio
católico romano, o que num primeiro momento transformou a Europa num campo de batalha onde milhares de
pessoas perderam a vida. Depois, com a paz negociada, permaneceu o espírito de concorrência, tendo a
competitividade criado condições para um crescente processo de racionalização entre os protestantes, que se
expressaria também na tentativa de se reverter a diluição das diferenças entre magia e religião, causada, segundo
eles, pelo catolicismo medieval. Nessa época, os reformadores atribuíam a responsabilidade pela magia,
largamente praticada na Europa, à falta de conhecimento bíblico e ao interesse da hierarquia católico romana em
somente satisfazer os apetites materiais do povo, reforçando-se o caixa da Igreja, sem maiores preocupações com
a “pureza” da fé cristã. 91

A Igreja Católica, para os protestantes, “mercantilizava” a fé, aproveitando-se da “ignorância religiosa” das
massas, sempre tendentes à superstição e magia. Todavia, na Inglaterra, esse processo de eliminação da magia foi
tão prolongado, que, quando surgiram os puritanos, no século XVII, entre os protestantes ingleses, ainda se
respiravam os ares da magia, segundo Keith Thomas (1991:115). Nessa época, para expressar o abandono da
magia, houve puritanos que chegaram até a sepultar seus mortos sem ritos religiosos, pensando evitar, dessa
forma, quaisquer semelhanças com rituais mágicos.

Uma das conseqüências dessas atitudes foi o abandono de todas as formas de sensualismo religioso por parte dos
protestantes, que levou Weber (1981:72,81,82) a escrever que

“os católicos não levaram tão longe quanto os puritanos (...) a racionalização do mundo, a eliminação da
magia como meio de salvação (...) A conduta moral do homem médio foi, assim, despojada de seu
caráter não-planejado e assistemático e sujeita, como um todo, a um método consistente.”

A racionalidade, o método consistente ao qual se refere Weber, fez com que houvesse um abandono da tradição
como referencial de conduta, justamente por ser a tradição portadora de uma memória social impura, portadora
de conteúdos pagãos e mágicos. O critério organizador passou a ser a concorrência, eficiência e produtividade, o
que forçosamente envolve racionalidade. Nesse espaço de tempo, o capitalismo foi-se fortalecendo e imbricando-
se cada vez mais, com o modo de ser protestante.

90 Porém a ética calvinista pressupunha a parcimônia, isto é, uma abstenção consciente da poupança e da renda acumulada.
Todavia, a renda poupada era reinvestida, mecanismo gerador de um ethos favorável ao surgimento do capitalismo. Sobre
isso escreveram Max Weber (1981) e R.H.Tawney (1971) textos, que se tornaram clássicos da sociologia moderna.
91 Segundo Keith Thomas (1991:73,75), a tendência de estigmatizar as práticas e sacramentos católicos como magia vinha
desde os lombardos, fins do século XIV. Entretanto, na Inglaterra, o abandono da magia se tornou mais forte no decorrer
da reforma iniciada por Henrique VIII e na sua continuidade, na primeira metade do século seguinte. Nessa época,
analisaram-se todos os sacramentos quanto às suas ligações com práticas mágicas e, um por um, foram sendo
abandonados, até se fixarem apenas na Santa Ceia e no Batismo. Pessoas do povo consideravam a água benta tão
abençoada “quanto urina de uma égua”. Alguns davam acintosamente, o pão bento para seus cães. “À primeira vista, a
Reforma parece ter eliminado todo esse aparato de assistência sobrenatural. Ela negou o valor dos rituais da Igreja e
devolveu o devoto à imprevisível mercê de Deus” (p.75). O que fizeram a partir de então essas pessoas? Abandonaram a
magia, os ritos católicos, devido a banalização deles pelos protestantes? Segundo Thomas, é possível que isso não tenha
concretizado totalmente e faz então, no final de suas considerações sobre esse assunto uma pergunta insinuante: Teriam
aquelas pessoas recorrido a “outros tipos de controle mágico, para substituir os remédios oferecidos pela religião
medieval? Ou terá o próprio protestantismo violado suas premissas, para elaborar uma magia própria?”.

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O protestantismo, depois de passar pelos grandes avivamentos espirituais, nos séculos XVII e XVIII, ampliou a
sua participação no mercado mundial de bens simbólicos, através de missões evangelizadoras, estratégia que se
mostrou eficiente no processo de expansão, que ocorreu pari passu à expansão militar, imperialista e capitalista,
em direção às novas regiões de conquista na África, América Latina e Ásia.

No campo da filosofia da ciência, na esteira do capitalismo, surgiram algumas das mais dessacralizadoras teorias
críticas da religião, no período do iluminismo. Herdeiro dessas teorias, o positivismo relegou a religião aos
períodos mais atrasados da evolução cultural da humanidade, propondo a sua substituição pelo estágio científico,
período de maioridade do ser humano. Entretanto, Comte posteriormente, colocou no lugar da religião dos
“ignorantes”, o culto à “deusa da sabedoria”, com templos, rituais e sacerdócio, demonstrando que a burguesia
não era assim tão racionalizadora como aparentava ser.

O sistema de mercado só atingiu o seu ápice, quando conseguiu penetrar no âmago da religião e oferecer-lhe a
ilusão de ocupar um espaço privilegiado dentro dele, quando na realidade, a religião foi se transformando cada
vez mais numa de suas mercadorias. Dessa maneira, o mercado se sacralizou e engendrou a sua própria teologia,
objeto de estudos críticos de teólogos como Franz J.Hinkelammert e Hugo Assmann (1989), Júlio de Santa Ana
(1989) e Jung Mo Sung (1992), cujas contribuições têm propiciado a denúncia da sacralização do mercado e dos
mecanismos vicários aos quais se submetem as suas vítimas.

A partir desse triunfo do mercado, não se pode mais falar que a religião usa as leis do mercado para vender a sua
mercadoria, mas que ela mesma se submeteu àquelas leis e se transformou numa mercadoria também vendável no
mercado. A sua submissão aos interesses dos consumidores, fenômeno a nosso ver essencial para se entender o
neopentecostalismo, traz de volta as discussões sobre a interioridade das pessoas, suas fantasias, desejos e
sonhos, matéria-prima que sempre ligou magia e religiosidade popular.

Queremos avançar a hipótese de que a Igreja Universal encarna algumas das ambigüidades históricas acima
mencionadas, principalmente ao combater as práticas católicas e afro-brasileiras por serem mágicas, mas
propondo rituais que, ao ligar religião e prosperidade material, repõem em primeiro plano aspectos mágicos e
utilitários que escandalizam os protestantes históricos e desafiam a concorrência católico-romana.

A inserção da religião no mercado causou um curto-circuito tanto no campo religioso como no interior do
próprio mercado. No campo religioso houve reação por considerarem a religião mercadológica uma aberração
idolátrica, posição tanto de estudiosos católicos, como Ari Pedro Oro (1996:82) e Rubem Alves (1979a:115),
protestante, que considerou a “religião mercadológica” uma mera empresa comercial, em busca de lucratividade
no comércio dos bens simbólicos. Da mesma forma, reagiu a religião endógena do mercado, que se expressa em
nível vulgar com o dito: “religião é religião, negócio é negócio” e academicamente, por meio de uma
argumentação desenvolvida pelos economistas para provar que o mercado deve permanecer distante dos
compromissos éticos e dos valores morais, conforme analisam Julio de Santa Ana (1989:72) e Franz
Hinkelammert (1991).

Essa polêmica serviu para desmascarar a suposta racionalidade do mercado e trazer à tona a conclusão de que “a
irracionalidade do mercado é, também, a irracionalidade da sua teologia”, como afirma Hugo Assman
(1989:232). Por outro lado, ficou também claro que a sacralização do mercado implica na substituição de antigos
eixos da religião cristã, como o amor ao próximo, o compartilhamento e o altruísmo, pelo egoísmo individualista,
o eixo propulsor do mercado. Seria bom relembrarmos a análise do mercado, que Max Weber (1991:420,422)
deixou incompleta:

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“O mercado, em contraposição a todas as demais relações comunitárias que sempre pressupõem a


confraternização pessoal (...), é estranho, já na raiz, a toda confraternização [instituindo] uma relação
que atravessa as fronteiras do povoado, do sangue e da tribo [impondo] “a paz do mercado sob a
proteção de um templo...”

Concluímos o argumento, afirmando que há indícios de que o neopentecostalismo, em especial da Igreja


Universal, representa uma acomodação das crenças originalmente protestantes ao sistema de mercado, que agora
pode dispensar a famosa “ética protestante”, ligada às origens do capitalismo e à prática de uma poupança
ascética, segundo tese de Weber, e substituí-la por uma ética de consumo compulsório. Assim, o mercado
consegue atrair para a sua órbita até mesmo aquelas idéias e práticas religiosas, que no seu início, pareciam negar
o mundo e pregar o advento de sua destruição numa guerra de Armagedom, no final dos tempos.

4.2 A Igreja Universal e a “mercantilização” do sagrado

A “mercantilização” da religião é uma palavra que, ao ser usada, exige cuidados, pois presta-se a incompreensões
e equívocos, incompatíveis com o discurso científico, daí o fato de a colocarmos entre aspas. Isso porque
“mercantilização”, em nosso meio, se refere a algo extremamente negativo quando aplicado a religião. Dizer que
esta ou aquela religião é “mercantilista” tornou-se um estigma que, atribuído insistentemente a uma instituição, é
de difícil remoção.

Porém, diga-se de passagem, a “mercantilização do sagrado” como estigma lançado a diversas práticas religiosas
é uma incoerência do sistema capitalista porque, se tudo nele é negócio e mercadoria, por qual motivo a religião
deveria estar fora desse mercado? Afinal de contas, uma sociedade que mercantiliza o sexo, a inteligência, os
sentimentos humanos mais íntimos, por que resiste tanto à idéia de se considerarem os fenômenos religiosos bens
comercializáveis? Coerente com o sistema, Edir Macedo (Folha Universal, 15.10.95) argumenta, ao se queixar
da “perseguição” movida pela mídia contra ele e sua igreja:

“Não deveriam ser tratados como ladrões e chantagistas aqueles que dedicam suas vidas para servir o
outro. O título de mercantilista não cabe a nenhuma organização religiosa que esteja inserida em um
sistema no qual sem dinheiro nada se pode fazer; muito mais quando esse sistema é injusto, corrupto,
sujo e, pior, aceito, propagado e imposto aos cidadãos, no uso de uma racionalidade mentirosa,
hipócrita, maldosa e sem Deus”.

Em 1990, período em que as relações entre Macedo e a mídia ainda não se tinham rompido totalmente, ele
desabafou em entrevista (O Globo, 29.4.90): “Se eu fosse interessado em dinheiro não seria pastor, seria
político, com bom salário e mordomias (...) O Brasil ainda é uma província e a imprensa não traduz a verdade”.
Em outra entrevista (Veja, 14.11.90) lhe foi perguntado: “sua igreja é acusada de mercenarismo e o senhor de
usar Deus apenas como marketing para arrancar doações das pessoas que o procuram. Há alguma relação entre a
fé e o dinheiro?” Macedo respondeu:

“O dinheiro é uma necessidade do homem. Na Bíblia, ele aparece como uma ferramenta, com a mesma
função que o serrote tem para o carpinteiro e a enxada, para ao lavrador. Sem o dinheiro é impossível
viver. O próprio Jesus tinha o seu tesoureiro, Judas Iscariotes. Achar que o dinheiro é um mal não faz
sentido (...) dizer que o dinheiro é sempre um mal não é verdade. Ele pode ajudar as pessoas. Eu, por
exemplo, uso o dinheiro para o bem, coloco-o a serviço de Deus (...) Quando usado por alguém que tem
Deus no coração, não há motivo para não gostar do dinheiro, pois ele é veículo de felicidade.”

Sobre o dinheiro nas mãos de pessoas “sem Deus no coração”, Macedo afirmou, nessa mesma entrevista, que o
dinheiro “traz desgraça”, citando casos de pessoas “que ficaram ricas da noite para o dia” com loteria e que para

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elas as coisas não teriam terminado bem. “Por quê isso? Porque aquele dinheiro carecia de uma sustentação,
não tinha base, não tinha respaldo espiritual”.

Porém, apesar das contínuas declarações de boas


intenções por parte da IURD, a imprensa lhe tem
oferecido um duro tratamento, considerado por nós como
o responsável pelo aparecimento de um arraigado
preconceito público desfavorável a ela no Brasil e no
exterior e que atinge até intelectuais do nível de José
Saramago (Folha S.Paulo, 30.1.96) que afirmou: “A
Igreja Universal do Reino de Deus é uma organização
criminosa, uma quadrilha que se dedica ao crime a ao
roubo”.

No momento em que escrevemos, a Igreja Universal é


apresentada à opinião pública brasileira como uma
entidade dominada por um grupo de
Fig.3 -A IURD é uma “FÉST-FOOD” - Folha de S.Paulo, 19.9.95
pessoas, cuja finalidade é a
“comercialização do sagrado”. A charge
da Fig.3, publicada na Folha de S.Paulo (19.9.95), é um bom exemplo de como esse estigma é divulgado
publicamente. A mídia, sem dúvida alguma, é uma das maiores responsáveis pela inculcação desse estereótipo na
opinião pública, repetindo um papel semelhante ao desempenhado no período em que os cultos de procedência
africana ainda eram “casos de polícia”, ocasião em que até o aparato jurídico parecia ter “medo do feitiço”,
conforme assinalou Yvonne Maggie (1992).

Pentecostalismo e imprensa - uma relação antiga e problemática


Um excurso histórico pode avivar a nossa lembrança sobre o comportamento da imprensa por ocasião do
surgimento do pentecostalismo moderno nos Estados Unidos, em Los Angeles, em 1906. Os eventos ocorridos
no número 312 da Azusa Street eram descritos pelos jornais com pouca simpatia, através de frases como estas:
“estranho murmúrio de línguas”, “cenas selvagens” (Los Angeles Times), “brancos e negros se misturam num
frenesi religioso” (Los Angeles Daily Times), “santos esperneadores promovem loucas orgias” (Los Angeles
Record), ou com caricaturas que satirizavam o fanatismo e o caráter multirracial das reuniões de “avivamento”.92

Uma outra reportagem apareceu no dia 3.12.1906, no New York American se ressaltava a existência de
fenômenos de glossolalia, milagres, excitação religiosa, cura divina, adesão de uma maioria negra e pouco
escolarizada, ao lado de um pequeno número de pessoas “refinadas” e “cultas”. Contudo, a cobertura da
imprensa, ligada aos protestantes brancos, nada ajudou na limitação da expansão pentecostal. Muito pelo
contrário, tais coberturas serviram como propaganda gratuita para o recém-iniciado movimento, e ajudou ainda
mais os pentecostais a se unirem contra a imprensa secular e as denominações que, estabelecidas há mais de três
séculos naquele País, temiam a perda do monopólio sobre a prática religiosa. 93

92 Essas manchetes e charges foram reproduzidas por Harvey Cox (1995:59). Os jornais de então afirmavam que os eventos
avivalistas, que ali ocorriam, eram “cenas divertidas” ou “uma ameaça” à seriedade com que a religião deveria ser vivida.
93 Nils Bloch-Hell (1964:.49) registra que o primeiro número do jornal pentecostal Apostolic Faith, publicado em Los
Angeles, em setembro de 1906, identificava a imprensa secular com a figura do próprio diabo, antecipando dessa forma
um futuro de difícil convivência entre pentecostalismo e mídia. Mas a campanha da imprensa contra o pentecostalismo,

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O mesmo fenômeno aconteceu nos demais países, onde o pentecostalismo foi introduzido. A princípio, o
pentecostalismo era um movimento imperceptível à imprensa; depois, com o aumento do número de adeptos
vindos de outras religiões, ele passava a ser destratado pelos que estavam habituados a monopolizar a direção do
campo religioso local. No Brasil, o jornal O Estandarte, órgão oficial da Igreja Presbiteriana Independente do
Brasil, publicou em 1919, uma série de artigos apologéticos, de autoria do pastor Manoel Machado, contra os
pentecostais da Assembléia de Deus, então em rápida expansão no Norte do País. O título da série de 23 artigos,
“invasão pentecostista”, indicava o tipo de tratamento dado aos pentecostais, que, para o autor, eram uns
“presunçosos”, “proselitistas”, “aproveitadores”, “perigosos sectários”, com apenas “aparência de piedade”. 94

Entretanto, uma cobertura mais crítica por parte da imprensa secular, e até mesmo da religiosa, se deu no Brasil
somente nos anos 50, com a chegada a São Paulo do pentecostalismo com ênfase na cura divina e milagres. A
inauguração pública do movimento foi no ano de 1952, em sessões de milagres e curas divinas, dirigidas pelos
missionários norte-americanos Harold Williams e Raymond Boatright, ex-ator de cinema, num templo
presbiteriano independente, no bairro paulistano do Cambuci.95

O resultado dessa série de reuniões no Cambuci foi a cisão da comunidade hospedeira e a recusa das
denominações protestantes em ceder outros templos a esse tipo de trabalho. Foi então que esses pentecostais,
apelidados de “curandeiros” pelos protestantes históricos, passaram a praticar a cura divina em tendas de lona,
montadas nos centros das cidades, conhecidas por “tendas de cura divina”. O nome usado inicialmente pelo
grupo, “Cruzada Nacional de Evangelização”, transmitia uma imagem de movimento interdenominacional, mas
que se tornou o marco inicial das igrejas pentecostais, “Brasil para Cristo”, “Evangelho Quadrangular” e “Deus é
Amor”.

A imprensa religiosa detectou as mudanças que se processavam no campo religioso, isso 22 anos antes do
surgimento da Igreja Universal, e registrou:

“O Brasil é uma terra formidável. Dá de tudo (...) Deu para dar milagre agora, nesta terra. Alguém, anjo
ou demônio, andou semeando sobre as cabeças, a estapafúrdia idéia do milagre (...) formas aberrantes
do protestantismo, num completo repúdio à tradição de crítica e de equilíbrio que caracterizou a
Reforma, produzem também os seus taumaturgos. (...) O pão, o remédio, a instituição e a dignidade do
poder público são, positivamente, o maior antídoto para a Milagreirice (sic) desenfreada, que arrasta e
explora nosso pobre povo” (Luís Pereira Boaventura, pastor presbiteriano, in O Paraná Evangélico,
1955, sem indicação de mês ou página).

A revista metodista, Cruz de Malta (junho de 1955) apresentou uma contundente matéria comparando os
milagres, que estariam acontecendo nas “tendas divinas” com os da cidade paulista de Tambaú, operados pelo
padre Donizetti. Uma edição posterior da mesma revista (outubro de 1955:3-6) publicou várias cartas de leitores
furiosos, com o cotejamento entre ambos os fenômenos. Uns achavam a comparação desonrosa para o
pentecostalismo, outros, para o catolicismo. A revista atribuía os milagres a fenômenos facilmente explicáveis

como assinala Hollenweger (1976:9), serviu como propaganda gratuita e ajudou a tornar ainda mais conhecido o que se
pretendia combater como “fanatismo religioso”.
94 Para uma análise detalhada da postura presbiteriana e presbiteriana independente confira Eber Ferreira Silveira Lima, (in
Benjamin F. Gutierrez e Leonildo S. Campos (1996: 206-207) e (1995:4,7).
95 Os eventos ocorridos na Igreja Presbiteriana Independente do Cambuci tornaram-se objeto de muitos artigos nos jornais
seculares, que noticiavam o comparecimento de milhares de pessoas às sessões de cura, obrigando inclusive, a interdição
de ruas do bairro para melhor locomoção das massas. Conhecemos pessoalmente pessoas, da Igreja Presbiteriana
Independente daquele bairro paulistano, que ainda vivem e foram testemunhas oculares desse evento.

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pela psicologia. A redação dedicou o número de novembro daquele ano à defesa de sua tese, provocando o corte
de assinatura por parte de vários leitores “pentecostalizados”.

Nas duas décadas posteriores, o pentecostalismo ocupou páginas da imprensa secular apenas esporadicamente e
sempre sob o prisma de que as práticas pentecostais não passavam de “manipulação das massas ignorantes” e de
uma prática pura e simples de “curandeirismo”, reclamando-se das autoridades, medidas enérgicas. Já se falava
muito em “charlatanismo” e “curandeirismo”, mas quase nada sobre a “mercantilização” da fé. Às vezes, o
pentecostalismo ocupava as páginas policiais, como foram os casos da tragédia de Malacacheta, 96quando
pentecostais da Igreja Adventista da Promessa foram protagonistas de um movimento milenarista, que resultou
em seis mortos, e da “Igreja Pentecostal Deus é Amor”, cujo líder, David Martins de Miranda, foi processado em
1976 pela morte de vinte pessoas, ocorrida por causa de um desabamento em São Gonçalo, no Rio de Janeiro,
justamente no momento de suas sessões de milagres.97 Desde o final dos anos 50, a imprensa, mais a religiosa
que a secular, publicou inúmeras críticas a Manoel de Melo, que a muito custo conseguiu construir o templo do
Largo da Pompéia, ufanisticamente apresentado na época como o “maior templo evangélico do Brasil e do
mundo”.98

Naquele momento, a própria Igreja Católica ainda vivia o período de transição e mudanças, do qual o Concílio
Vaticano II foi um marco decisivo para o campo religioso de um modo geral. Mesmo assim, a imprensa refletia
os interesses da religião majoritária e hegemônica, num quadro político, após 1964, de ditadura militar. As
matérias imbuídas de uma maior seriedade jornalística ressaltavam a deserção de católicos e a atração que sobre
eles exerciam líderes carismáticos, geralmente tachados de “gananciosos” e “interessados somente em prestígio e
dinheiro”. Muitos críticos daquele período trabalhavam com paradigmas marxistas e conseguiam ver no
pentecostalismo apenas atores de um processo alienatório das massas a serviço dos interesses capitalistas.

Para fazer uma matéria em 1977, sobre as religiões populares em São Paulo, o jornalista Robson Costa percorreu
durante vários dias os principais corredores de milagres do centro degradado da cidade, encontrando nessa área

96 Folha da Manhã (13.4.55; 14.4.55); Folha da Noite, (15.4.55); O Estado de S. Paulo, (17.4.55); Leonildo S. Campos
(1995:53-68).
97 Veja Boletim do CEI - Centro Ecumênico de Informação, (Rio de Janeiro, n 113, abril de 1976, p.2) que registra notícias,
fotografias e um editorial sobre a tragédia ocorrida em São Gonçalo, quando vinte pessoas morreram e dezenas ficaram
feridas no tumulto que, segundo o boletim, fez a imprensa considerar o pastor Davi Miranda um “homem mau, explorador
da ignorância e da superstição popular” e que “isto é o mesmo que atacar o problema da prostituição atirando pedras nas
prostitutas”. Do ponto de vista daquele boletim, publicado pela entidade que antecedeu o CEDI, Centro Ecumênico de
Documentação e Informação e Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, “a tragédia de São Gonçalo” não era um “simples
caso de polícia”, porque havia “nas suas raízes causas estruturais que somente [seriam] superadas quando o povo
[deixasse] de ser marginalizado e [passasse] a ser protagonista ativo na solução de suas próprias misérias”.
98 Para ilustrar os tipos de críticas articuladas por católicos e protestantes à atuação de Manoel de Melo, veja O Estado de S.
Paulo, (8.7.59), no qual um repórter teceu comentários sobre o depoimento dado por Melo as autoridades policiais,
usando palavras que enfureceram o pastor presbiteriano Jorge Buarque Lyra (1960). Esse pastor procurou responder ao
repórter, por ele classificado de “repórter “padresco de O Estado de São Paulo” (sic), um “clericalista católico-romano”,
que apenas demonstrava “fanatismo pérfido e imbecil”. Em outro livro polemista, também de defesa de Manoel de Melo,
Lyra abriu espaço para o próprio Melo responder ao outro pastor também presbiteriano, Ananias James de Oliveira, que
havia escrito um artigo contra Melo no jornal O Brasil Presbiteriano (janeiro de 1964). A resposta de Melo terminava
convidando Oliveira para conhecer melhor a sua “obra de avivamento”. Sobre o projeto de construção do “maior templo
evangélico do Brasil e do mundo” e a inserção da Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo” no Conselho Mundial de
Igrejas, confira entrevista de Melo, O Expositor Cristão, (1.10.68). Todavia em 1984, o líder presbiteriano Jaime Wright,
em carta ao Estado de S. Paulo, investiu contra o triunfalismo numérico de Melo, em reportagem publicada por aquele
jornal, na qual se relaciona à quantidade de membros o tamanho de seu templo, bem como antecipando que a adesão de
Melo ao Conselho Mundial de Igrejas não passava de um utilitarismo e que dentro em breve chegaria ao fim, como de fato
aconteceu. (Confira, Jaime Wright, A respeito de seita, Estado de S. Paulo, 6.1.84, p.39).

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templos que, segundo a reportagem, possuíam “nomes extravagantes”, estavam “instalados em salas de
milagres”, prometiam “cura”, “salvação” e “infalível proteção contra feitiçarias.” Ainda, conforme a reportagem,
estaria havendo “uma explosão descontrolada”, o que lhe permitia falar “não em templo dos vendilhões, mas em
vendilhões do templo”. O repórter localizou os seguintes locais de reuniões: Igreja do Deus Vivo, Cruzada da Fé,
Igreja Evangélica Pentecostal do Reino de Jesus Cristo (Sala dos Milagres), Igreja da Fé, Nova Vida em Cristo,
Igreja Pentecostal “Deus é Amor”, Igreja de Jesus Cristo, Igreja Pentecostal “O Brasil para Cristo”. A
reportagem (Jornal da Tarde, 24.8.77) incluiu a opinião do pastor presbiteriano independente Roberto Vicente
Cruz Themudo Lessa, que dizia o seguinte:

“Consideramos um absurdo pessoas se intitulando pastores, missionários, abençoando copos de água,


gravando orações de cura divina, elementos que, tomados e ouvidos, curariam toda e qualquer doença
(...) Pior ainda: anunciam espalhafatosamente grandes concentrações em estádios, com dia marcado e
hora determinada, garantindo que o Espírito Santo estará presente para curar todas as enfermidades e
solucionar todos os problemas. Além das sedes dessas igrejas, em cuja porta é colocado o expediente
para atendimento dos interessados, como se o Espírito Santo fosse um Executivo à disposição de tais
ministros...”

Predominou nessa série de reportagens, como ainda hoje acontece, a idéia de que o pentecostalismo não passava
de seitas distanciadas das verdadeiras religiões cristãs, das quais a Igreja Católica e os protestantes históricos
seriam os melhores representantes. Essa tendência continuou a orientar matérias do Jornal da Tarde (27.1.85)
sobre o sucesso econômico do “missionário David Miranda”, fazendo inclusive levantamento em cartórios da
Capital de São Paulo das propriedades, que estavam registradas em nome do missionário ou de familiares.

A mídia acusa: “A Igreja Universal é um balcão de milagres”


A Igreja Universal herdou um histórico de relacionamento com a mídia pouco favorável a ela. Além do mais,
essa Igreja não é responsável pela fragmentação do campo religioso e, sim, fruto da atomização de agentes e
instituições religiosas existentes no País.99 Esse quadro já existia antes de seu surgimento, assim como muitas das
acusações lançadas contra ela. Todavia, o discurso da imprensa pouco mudou entre os anos 50 e 80 no que se
refere às “seitas” religiosas. Se houve alteração, foi apenas no sentido de se explicitarem com mais clareza as
ideologias dos “barões da imprensa”, escondidas sob a retórica de defesa do “povo simples e humilde”, sempre à
mercê de ser explorado por “chantagistas em nome da fé”.

99 Embora de uma forma enviesada e, às vezes até deformada, a imprensa tem registrado a ascensão e queda de movimentos e
seitas religiosas. Para isso a imprensa tem mantido um faro apurado para identificar mistura de religião e comércio. Por
exemplo, nos anos 70, a então influente revista Realidade, publicada pela Editora Abril, trouxe uma extensa e bem
fotografada reportagem sobre um fenômeno, segundo ela comercial e religioso, de um médium, dona Cacilda, que dizia
incorporar todos os sábados, em seu sítio na zona rural do Estado do Rio de Janeiro, uma entidade da umbanda que
recebia o nome de “Seu 7 Encruzilhadas da Lira”. Ao redor dela, ainda segundo essa reportagem, seus familiares tinham
montado um próspero comércio de bonés, camisetas, chaveiros, sacolas, colar, adesivos para carro, flâmulas e lenços,
todos estampados com o número 7, em preto, dentro de um círculo de cor vermelha, símbolos vinculados à magia,
umbanda e outras tendências religiosas. Para os redatores, havia naquele sítio uma profunda ligação entre lazer, devoção
religiosa e esperança de doentes, que encontravam no ritual, música, alegria do carnaval e bebida alcóolica razões de sobra
para se inserirem num modismo que, rapidamente, desapareceu. Todavia, a descrição do ritual feita pela revista, não sem
mera coincidência se aproxima muito de perto com cultos-shows montados por alguns movimentos pentecostais, um
quarto de século depois: “Mais de 5000 pessoas, braço dado, cantando. A música é lenta, um samba canção. O povo vai
balançando, no ritmo devagar, uniforme. Para quem vê de cima, é como se alguém tivesse hipnotizado toda aquela gente e
mandado que ela ondulasse, macio, leve, como se fosse um mar calmo, compacto de cabeças humanas. Todo mundo, braço
entrelaçado, palma da mão para cima, olhar para o chão concentrado, ondulado, cantando: ‘Chegou a hora grande / da
corrente do amor. / Entrelaçamos os braços, / irmanados com fervor. / Seu 7 está curando / nossos males nossa dor.”
(Realidade, São Paulo, Editora Abril, Ano VI, n° 63, junho 1971, pp. 122-129).

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Esporadicamente, há autores como Adalberto M. Cardoso (1995) e Robert Abelman & Stewart M Hoover
(1990:20-22), que têm insistido nas vinculações da mídia com os proprietários das empresas de comunicação.
Ainda sobre essa falsa neutralidade da imprensa é sugestivo citarmos um suplemento especial de “Aconteceu”,
mensário carioca de conhecida confissão ecumênica, que em 1990 elaborou uma análise muito objetiva sobre o
tratamento que a “grande imprensa” tem dado ao pentecostalismo: “Informação ou deformação?” Nesse texto
destaca-se que o mito da neutralidade e da objetividade da imprensa nos levou a uma visão distorcida do
pentecostalismo como fenômeno religioso. A maior parte da cobertura dada aos pentecostalismos repete
argumentos preconceituosos, afirmando serem “seitas importadas e copiadas dos Estados Unidos”. Tais
reportagens agem como reforço da Igreja Católica tradicional, em detrimento da religiosidade popular das CEBs,
num enfoque sensacionalista do fisiologismo dos deputados evangélicos, e da exploração financeira do povo por
“pastores caçadores de fortunas”. Dessa forma, há “omissão e deturpação de informações” através de manchetes
escandalosas e chamadas, que nem sempre refletem até mesmo o conteúdo das páginas internas desses jornais,
quanto mais a realidade dos fatos.100

Um levantamento e comparação de 31 matérias jornalísticas sobre as atividades da Igreja Universal entre os anos
de 1988 e 1989, publicados em vários jornais brasileiros, permitiu a montagem da seguinte tabela, que confirma
algumas das observações acima mencionadas:

Quadro 4 - Matérias publicadas na imprensa sobre a IURD (1988-89)

Temas abordados em 31 reportagens de jornais e revistas Porcentagem

Crescimento do patrimônio da IURD, “mercantilização” da fé e


“charlatanismo”
35,4%

Uso de meios “não-convencionais” para propagar a fé (reuniões em praia,


estádios de futebol, cinemas) e de meios “barulhentos” (alto-falantes, trio
22,5%
elétrico) provocando conflito com vizinhança

Conflito com catolicismo e religiões afro-brasileiras 12,9%

Expansionismo causador de preocupação nos concorrentes católicos e


evangélicos tradicionais
6,5%

Outros temas 22,7%

Fonte: O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Jornal do Commércio, Isto É

Algumas manchetes e reportagens, pinçadas ao acaso, oferecem fragmentos das posições assumidas pelos jornais
contrários à Igreja Universal:

Há muita facilidade para se fundar uma seita no Brasil, pois exigem-se poucos procedimentos
burocráticos e nenhuma escolaridade do líder; por outro lado, tais seitas são sustentadas com carnês
pagos pelos fiéis (O Globo, 20.7.88). Os fiéis sujam as praias em suas apresentações no Leme e
Copacabana (O Globo e Jornal do Brasil, 8.5.88). Perturbam a paz pública com o barulho (Jornal do

100 Veja, CEDI, Suplemento Aconteceu, Centro Ecumênico de Documentação e Informação, Rio de Janeiro, n° 548, 1990,
pp. 6 e 7. Entretanto, um outro suplemento, do mesmo jornal Aconteceu (n°77, junho 1989) no ano anterior publicou
como manchete: “Polícia investiga IURD” e, sob foto ilustrando matéria reproduzida de O Estado de S. Paulo, a legenda:
“a multidão de fiéis vai sendo enganada pelos missionários da seita”.

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Brasil, 19.9.88). Lotam o Maracanã e oferecem à IURD enormes quantias de dinheiro em donativo
(Jornal do Brasil e O Globo, 19.12.88); Fiéis da IURD entram em conflito com seguidores dos cultos
afro-brasileiros (Jornal do Brasil, 5.2.88, 19.9.88, O Globo, 23.10.88, Folha de S.Paulo, 27.7.89 e
Jornal do Commércio, 17.11.89); A IURD pede dinheiro, de preferência em dólares, pois o dinheiro
nacional desvalorizava-se rapidamente, “antes mesmo de sair da sacola”, dizia Edir Macedo (O Globo,
11.12.88, 18.12.88, Jornal do Brasil, 1.8.88, Isto É, 24.8.88). Os donativos são dados em troca de
exorcismo, cura e bênçãos (O Globo, 23.10.89).

Adotava-se também, em algumas reportagens, uma tese predominante na CNBB de que, por trás de tanto
progresso do pentecostalismo e das “novas seitas” na América Latina, havia um interesse político da Central de
Inteligência dos Estados Unidos (CIA) e de grupos conservadores norte-americanos em desarticular a ação das
Comunidades Eclesiais de Base, comprometidas com a teologia da libertação (Jornal do Brasil, 22.4.89 e 5.5.89,
Folha de S.Paulo, 4.11.89). Quanto ao líder da IURD, Edir Macedo, finalmente estava sendo objeto de
investigação e de processos na polícia e judiciário do Rio de Janeiro, porque “as atividades da Igreja Universal
nada têm com a difusão de crenças religiosas - cuida-se da exploração econômica de pessoas humildes”,
construindo-se à custa desses pobres “um império evangélico” com “ramificações na política” (O Globo,
11.12.88).

Muitas dessas denúncias foram usadas para instruir um processo dirigido pelo Procurador-Geral do Estado do
Rio de Janeiro, acusando Macedo e a IURD de “estelionato, charlatanismo, curandeirismo e ofensa a outros
cultos” (Jornal do Brasil, 19.12.88). Nos jornais paulistas, encontramos que a “polícia investiga doações para
Igreja carioca” (Folha de S.Paulo, 26.7.88) O teor da manchete demonstrou o quanto o tema ainda parecia
distante da mídia paulistana. Afinal de contas, tratava-se de uma “seita carioca”, cuja presença em São Paulo
naquele momento era insignificante. Alguns meses depois, o jornal O Estado de S. Paulo noticiava a abertura de
processo no Rio de Janeiro contra a IURD, acusando-a de ser uma “seita de arruaceiros”, que praticava o
“charlatanismo, curandeirismo, vilipêndio de outros cultos religiosos e estelionato contra as camadas mais pobres
da população” (2.4.89). Foi, entretanto, mais no final dos anos 80 que a Igreja Universal se tornou visível na
mídia, conseqüentemente alvo de ataques. Até o começo dessa década, ela ainda não era sequer apresentada
como um “perigo” para a Igreja Católica. Uma relação das “seitas” e denominações que afetavam o catolicismo
no Brasil, de 1982, elaborada a partir de questionários preenchidos para a CNBB por 64 paróquias, sequer citou
a Igreja Universal.101

O projeto de Edir Macedo de dotar a Igreja Universal de maior visibilidade social esteve atrelado à estratégia de
centralizar a contribuição num caixa único e acumular capital suficiente para alavancar a expansão de templos em
novas cidades, para comprar emissoras de rádio e de televisão. Como essa estratégia não foi percebida pela
imprensa de imediato, insistia-se então na hipótese das origens externas dos recursos financeiros mencionados.
Contudo, a pressão sobre o caixa da Igreja fez com que os pastores passassem a pedir dinheiro em suas reuniões,
sem quaisquer constrangimentos, o que levou a imprensa a insistir ainda mais no argumento da “mercantilização
do sagrado”. Daí, o verdadeiro frenesi que causavam na mídia palavras de Edir Macedo, como as proferidas

101 Confira lista publicada no O Globo (18.12.88), que reproduziu a relação elaborada pela CNBB, tomando-se por base
relatório de 1982, no qual 64 paróquias apontaram, em suas áreas de jurisdição, a existência de 7 igrejas protestantes
históricas, 18 igrejas pentecostais, 107 outros grupos cristãos e 38 grupos não-cristãos. A IURD não foi citada nenhuma
vez, assim como tampouco aparece nas matérias da Folha de S.Paulo (16.3.86), em matéria sobre o avanço pentecostal e a
Igreja Católica, O Globo (18.12.88), “protestantes temem por seu rebanho”. A transformação da Igreja Universal em alvo
preferido se deu, exclusivamente, pela disposição em assumir um espaço privilegiado na mídia eletrônica, primeiro
alugando horário diariamente na Rede Bandeirantes de Televisão, depois, adquirindo seus próprios veículos de
comunicação.

156
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numa concentração no Estádio do Maracanã (Jornal do Brasil, 18.12.88): “Sacudam bem obreiros [as sacolas de
oferta], para eles verem que estão vazias e só voltem quando estiverem tão cheias quanto um saco de pipoca.”

A quantidade de denúncias da mídia dos novos movimentos pentecostais, focalizando a questão do


“chalatanismo” e da “mercantilização”, obviamente teve um profundo efeito na opinião pública. É comum nas
várias “colunas do leitor” de revistas e jornais haver um aumento no número de “cartas dos leitores”,
aprofundando denúncias e citando casos particulares de “exploração dos pobres” pelos falsos “pastores” e
“milagreiros”. Por exemplo, um leitor do jornal O Estado de S. Paulo (17.10.84) escreveu que Davi Miranda
mantinha uma “indústria que até fabrica doentes mentais”, atraindo pessoas através de entrevistas com “falsos
doentes”. Nessa carta, Miranda é chamado de “malandro”, “safado”, um “monstro” que deveria estar na cadeia e
não “transformando humildes Geraldas [irmã do missivista] em doentes mentais”. Cartas como estas existem às
dezenas na imprensa brasileira.

Mídia e poder - ou o porquê a Igreja Universal incomoda


No final de 1989, viria a notícia que iria perturbar o mundo da mídia e acirrar os ânimos da concorrência pelo
controle da produção simbólica brasileira. Representantes de Edir Macedo compraram, segundo IstoÉ/Senhor
(22.11.89), por 45 milhões de dólares, a Rede Record de Televisão. As difíceis negociações entre os “homens de
negócios”, escondidos por trás do deputado carioca Laprovita Vieira, e os grupos Paulo Machado de Carvalho e
Silvio Santos, sobre o pagamento dos saldos em pendência, foram acompanhadas passo-a-passo pela imprensa.
Havia muito interesse nessa questão porque, embora a Record estivesse em decadência, a passagem de seu
controle acionário para às mãos de arrivistas “fanáticos”, com um enorme poder sobre as massas, era percebido
como um fator de risco aos detentores do monopólio da comunicação social no País.

Nos meses seguintes, para pagar a compra da Record e de várias outras estações de rádio, a IURD precisou
aperfeiçoar ainda mais as estratégias de captação de recursos financeiros de seu público. Afinal de contas, era
preciso pagar nada menos do que 45 milhões de dólares pelos investimentos realizados na televisão. A resposta
da imprensa foi aumentar o número de reportagens sobre as táticas “mercantilistas” da Igreja. Em 1991, surgem
as denúncias de Carlos Magno de Miranda, um pastor dissidente, que acusou Edir Macedo de ter mandado
buscar um milhão de dólares em Bogotá, dinheiro que teria sido doado por traficantes colombianos, resultando,
essas e outras acusações, na prisão do bispo Macedo em São Paulo, por onze dias, em maio de 1992.

As reportagens consideradas pela Igreja Universal mais ofensivas foram publicadas entre 1990 e 1991 pelos
jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, ambos pertencentes ao Grupo Mesquita. As de 1991 tiveram por
título “negócios da fé”, e analisavam a rápida ascensão do bispo Edir Macedo, denunciando negócios “secretos”
que teriam sido praticados para garantir a compra da Record. Porém, naquele momento, o negócio já estava
concretizado e faltava apenas a legalização da transferência da concessão do canal para o novo grupo controlador
pelo Presidente da República, o qual possivelmente fosse objeto de pressão da imprensa adversária da Igreja
Universal.

Uma dessas reportagens fazia referência a um empréstimo contraído no Banco do Estado de São Paulo,
(Banespa), para a compra da Record, cuja soma de um milhão e cem mil dólares teriam sido “perdoados” por
causa do auxílio dado pela IURD à eleição do sucessor do governador Orestes Quércia, Antônio Fleury Filho. A
vitória de Fleury, em parte foi garantida pela não-realização de debate, que seria transmitido por um pool de
emissoras de televisão. As pesquisas davam uma pequena vantagem a Paulo Maluf, e o debate marcado para as
últimas horas da campanha eleitoral seria decisivo para atuar no período de silêncio dos últimos dias antes da

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eleição. O debate televisivo não ocorreu, porque exigia a presença de todas as emissoras compromissadas, e a
TV Record, à última hora, alegou outros motivos para suspender a sua participação no grupo de emissoras. O
jornal O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, pertencentes a adversários tanto de Quércia como de Macedo,
denunciaram o acordo que teria dado vantagens financeiras no Banespa para a Igreja Universal. Curiosamente, a
102
intervenção do Banco Central da República no Banespa, três anos depois, nada esclareceu sobre esse assunto.

A compra da Record fez com que, a partir de 1990, a briga de Macedo com a imprensa se tornasse um conflito
com as principais redes de televisão. A Televisão Manchete, Sistema Brasileiro de Televisão e Rede Globo de
Televisão passaram a sustentar denúncias contínuas contra a Igreja Universal, Record e Macedo. Todas elas
levaram ao ar programas especiais denunciando a “mercantilização da fé” que estaria sendo praticada pela Igreja
Universal em todo o País. A Manchete levou ao ar, em duas semanas consecutivas, o programa “Documento
Especial” (dias 4 e 11.5.90), e a Globo veiculou denúncias contra a IURD no ar, em 15.5.90, num de seus
programas campeões de audiência, “Globo Repórter”.103 Cinco dias depois, a Folha de S. Paulo (20.5.90)
comentava que: “Quando quer, a Globo é capaz de produzir jornalismo investigativo da melhor qualidade”,
ressaltando que a “charlatanice desse culto evangélico que lotou o Maracanã na última sexta-feira santa foi
desnudada, peça por peça”, mas que agora, o motivo real era a aquisição por Macedo da Rede Record, e que a
Globo dificilmente usaria a mesma tática para desmascarar o populismo e manipulações eleitoreiras do então
Presidente da República, Fernando Collor de Mello.104

Nos anos seguintes, a Globo bancou quase que sozinha o ônus da briga contra a Record, Macedo e IURD. Nesse
sentido, ela apresentou de forma esparsa matérias no Fantástico, programa de variedades levado ao ar no horário
nobre de domingo à noite, no noticiário “Jornal Nacional” e na apresentação de uma mini-série intitulada
“Decadência”, que explorou a trajetória de um vigarista, que enriqueceu usando a religião. A forma como foi
montada a história e as falas do personagem central, “Dom Mariel”, um falso bispo, permitiram a imediata
identificação com Edir Macedo, que rapidamente ligou a si a alusão. 105

A Record respondeu com programações especiais contra a Globo, chamando para depoimentos e debates
escritores, ex-deputados e jornalistas que tiveram, ao longo de suas carreiras, alguma contenda com a Rede

102 O Jornal da Tarde (2.4.91) publicou uma matéria sobre a transferência da Record para o grupo Edir Macedo, o que
acabou provocando um processo na justiça contra alguns profissionais desse jornal, acusados entre outras coisas, de
falsificação da verdade, segundo matéria paga da IURD no jornal Gazeta Mercantil, (3.4.91). A transferência da Record
para os novos donos somente seria legalizada pelo Presidente da República Itamar Franco, em 24.2.94, embora
continuasse em andamento o processo por suspeita de fraude cambial e sonegação fiscal (Folha de S.Paulo, 16.3.94).
Alguns meses depois, a IURD adquiriu a sede e todos os equipamentos da TV Jovem Pan, investindo nessa transação
cerca de US$ 30 milhões, conforme Folha de S.Paulo (14.3.95).
103 A Bandeirantes apresentou as suas denúncias no programa “Canal Livre”, em 17.10.90 e no programa de Silvia Popovick,
no mês de junho de 1990. Até mesmo o SBT, de propriedade de um dos vendedores da Record para o bispo Macedo, abriu
espaço para criticar, aliás de uma forma contundente, os modos empregados pela IURD para “arrancar dinheiro” do povo.
104 Paul Freston (1993:10), comparou o “Globo Repórter” de 15.5.90 contra a Igreja Universal com um outro sobre a
Renovação Carismática Católica, mostrando que a Rede Globo de Televisão usava dois pesos e duas medidas, em suas
matérias sobre fenômenos religiosos no Brasil. Essa parcialidade, no final de 1995, seria um dos motivos de o conflito
IURD-Record-Globo ter se tornado um “escândalo nacional”, levando, inclusive, representantes da Presidência da
República a exigirem moderação no teor do discurso de ambas as partes, após a Universal ter apelado ao Presidente,
dizendo que estavam orando para que ele fosse “iluminado” e assim poder “julgar com imparcialidade”, de acordo com a.
Folha de S.Paulo,(7.1.96).
105 Na construção do personagem, Dias Gomes, conhecido dramaturgo, usou para montar uma das falas do “falso bispo” nada
mais do que uma entrevista dada por Edir Macedo em 1990 à revista Veja. No auge do debate, a IURD prometia um
processo na justiça contra Dias Gomes, segundo os jornais Folha de S.Paulo, (15.9.95) e O Estado de S. Paulo, (3.9.95,
Suplemento Telejornal, p.9). .

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Globo. A televisão Record foi mobilizada para a revanche, principalmente com o programa de entrevistas e
debates, das onze e meia da noite, “25ª Hora”, aparentemente independente da IURD, porém dirigido por
pastores e bispos. O argumento da defesa centrava-se na idéia de que havia um complô contra os evangélicos
brasileiros, cujo crescimento despertou ciúmes dos que sempre se beneficiaram da ignorância religiosa do povo
brasileiro. Nesse caso, a Igreja Universal era a ponta visível desse avanço evangélico, por causa da aquisição da
Record. Com esse argumento tentava-se também desmontar a versão de Caio Fábio de que a Universal nada tinha
de evangélica. A Igreja Universal tentou capitalizar para si a representatividade dos evangélicos, afirmando que o
seu crescimento e perseguição estariam atingindo a totalidade do “povo evangélico” no Brasil.

A polarização da briga atingiu o ápice no episódio do “chute à santa”, isto é, à imagem de Nossa Senhora
Aparecida. As imagens e sons da Record foram apresentadas ad nauseam, devidamente montadas, gerando
protestos do povo católico e de autoridades em todo o Brasil. A imprensa acompanhou todos os lances no que ela
chamava de “guerra religiosa”.

Às vésperas do Natal de 1995, aconteceu mais um capítulo dessa briga, quando a Globo apresentou fitas de
vídeo, adquiridas de Carlos Magno, já conhecidas da imprensa desde 1991, escandalizando novamente o público
com palavras e atitudes de Edir Macedo, que apareceu no vídeo ensinando pastores a pedirem dinheiro para os
fiéis. Essa centralização das denúncias na Globo, que segundo alguns analistas, refletiria um capricho pessoal de
Roberto Marinho, provocou um desabafo de Clóvis Rossi, (Folha de S. Paulo, 2.1.96) de que estaria em curso,
naquele momento, uma “globalização” da imprensa brasileira, pois toda a mídia simplesmente estaria
orquestrando denúncias da Globo de “mercantilização” da religião por parte da IURD, sem o menor espírito
crítico.

Talvez poucos profissionais da imprensa possam dizer com Boris Casoy, no noticioso noturno do Sistema
Brasileiro de Televisão, TJ Brasil : “É preciso muito cuidado, pois esta é uma história com mais demônios do
que anjos.” De resto, a mídia refletia a divisão de poderes políticos e econômicos existentes no Brasil, que
constróem uma vasta cortina ideológica que obstaculiza a formação de uma cidadania que controle, a partir das
bases, o comportamento dos meios de comunicação de massa. Sobre isso houve um debate em Brasília (25.1.95)
do qual participaram representantes da imprensa, deputados da IURD e o filósofo Roberto Romano (Folha de
S.Paulo, 22.2.96).

O exame das matérias produzidas pela imprensa sobre a Igreja Universal nos mostraram que as acusações da
mídia sempre giram ao redor de um ponto central, que é questão da arrecadação de dinheiro através de
“dízimos”, “ofertas de amor” e “desafios de fé” dos que passam por seus templos, sejam membros fixos ou façam
parte da população religiosa em trânsito. A “mercantilização” se tornou, nesse contexto, uma arma de guerra que
se amplia para além do simbólico religioso, instalando-se, no campo da economia real, o verdadeiro dirigente da
indústria cultural e do mercado de bens simbólicos produzidos e distribuídos pela mídia brasileira. A IURD, por
sua vez, mesmo repelindo a acusação de “mercantilismo”, assume que “pede mesmo, pois pedir não é pecado, e
que os pastores ao pedirem dinheiro, estão cumprindo a determinação da Bíblia”. Se “pedir for errado”, dizem
os pastores, “então a própria Bíblia precisa ser jogada fora e ela não é a palavra de Deus, pois é ela que nos
autoriza a pedir.” Assim, segundo esses dirigentes:

“O povo da Universal dá por livre e espontânea vontade. Está na Bíblia que diante de Deus você tem
obrigação de pagar o dízimo. A Bíblia tem mais de 640 vezes escrita a palavra oferta. Oferta é uma
expressão de fé. Se Deus não honrar o que falou há três ou quatro mil anos atrás, (sic) eu é que vou ficar

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mal (...) O Brasil ainda é uma província e a imprensa não traduz a verdade (...) Se isso [chamar para a
cura uma pessoa sem dar garantia] é contra a lei, é melhor pegar a Bíblia e jogar fora. Isto está na
Bíblia.” (Edir Macedo, O Globo, 29.4.90)
“O dízimo não é uma cota; é uma idéia, uma mensagem de Deus nos dizendo que o que temos e somos
são dele. Não pregamos que as graças recebidas são proporcionais às doações. Não seriam então
graças.” (Pastor J.Cabral, Folha de S.Paulo, 7.1.96):

Possivelmente, a imprensa reflita velhos preconceitos contra os comerciantes, enfocando agora, os “comerciantes
da fé”. Porém, os adeptos da Universal não pensam da mesma forma e a pressão da mídia sobre eles, os têm
tornado ainda mais resistentes, bem como a propaganda iurdiana tem transformado as denúncias em mecanismos
de perseguição. Entretanto, segundo a direção da Igreja Universal, pouquíssimas deserções teriam acontecido
após as ofensivas “globalizadoras” do último trimestre de 1995. 106 O que estaria acontecendo com esses fiéis?
Seriam eles impermeáveis aos argumentos da mídia? Ou será que a imprensa no calor das denúncias perdeu o
que restava de objetividade quanto a religiosidade popular?

Por isso mesmo, procuramos em nossa pesquisa ouvir o sujeito concreto com o qual a Igreja Universal lida em
seus cultos e rituais. Estávamos supondo que somente as emoções, sonhos, desejos e decisões, nem sempre
racionais, dessas pessoas poderiam explicar tanta “teimosia” em continuar sendo um seguidor de Macedo, mesmo
sob fogo cruzado da mídia como um todo. A partir dessa preocupação, passamos a entrevistar pessoas com o
objetivo de traçar um perfil dos que foram atraídos para essa Igreja. Graças a esse exercício, pudemos retornar a
uma pergunta muito importante neste trabalho: Ao falar em iurdianos, estamos nos referindo a “fiéis” ou a
“clientes”? São eles mera clientela de uma agência produtora de bens simbólicos e não apresentam uma maior
adesão a tal entidade ou são membros ativos e devotados da causa que abraçaram? Se eles se tornaram tão coesos
assim, que força cimenta essa união à organização dirigida pelo bispo Macedo?

4.3 O perfil dos fiéis da Igreja Universal

Nem todos os estudos sobre o dinamismo de um determinado mercado ou sobre o desempenho de uma
organização perguntam sobre a identidade do comprador, da seguinte forma: Quem é ele, o que pensa, o que
compra e por que compra? Para os especialistas em marketing é fundamental descobrir, tanto a motivação que
levou a pessoa à compra, como a sua disposição em continuar fiel àquele produto. Seria possível tratar da mesma
forma um “mercado religioso”? Como estabelecer o perfil do “consumidor” dos “produtos” de uma determinada
“marca” religiosa? O que essa pessoa, considerada “consumidor”, pensa? Que características ela apresentava ao
ser atraída para a Igreja e que tipo de relacionamentos passou a manter com as outras pessoas e sociedade, após
essa adesão? Nas pesquisas de mercado empregam-se, quase sempre, pesquisas quantitativas, procedimento este
mais complicado de fazer, principalmente quando uma organização religiosa se recusa a ser recenseada.

Pensamos ser possível estabelecer algumas características e tendências do iurdiano, coletadas a partir de dados
qualitativos, reunidas por meio de pouco mais de trinta entrevistas, feitas com seguidores da Igreja Universal, nas
cidades de Diadema, São Caetano do Sul, Sorocaba e região de Santo Amaro. Obviamente, esses dados indicam
mais as características e tendências de uma pequena amostra do que de todo um universo, composto por milhões

106 Estaria havendo, finalmente, uma crise na Igreja Universal? Segundo denúncias da revista IstoÉ (16.1.97, pp. 76-83), em
data posterior a redação deste capítulo, a arrecadação anual de dízimos e ofertas, em 1996, foi 50% menor do que a do ano
anterior. Da mesma forma, ainda segundo IstoÉ, a freqüência aos cultos na Igreja Universal teria caído cerca de 30%.
Corretas ou não, tais notícias não foram desmentidas pela Igreja.

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de fiéis iurdianos, e que somente poderiam ser generalizados com um extremo cuidado, sob o risco de se criarem
distorções.

Mesmo assim, ousamos perguntar: Que tipo de retrato emerge do registro das representações mentais expressas
por fiéis da Igreja Universal? Por que eles se tornaram seguidores de uma religiosidade estigmatizada,
ridicularizada pela mídia, e tida por muitos, como apenas uma forma de se “arrancar dinheiro dos pobres”? É
claro que não basta afirmar que há apenas um fenômeno de alienação coletiva, e que um grupo pequeno está
manipulando uma massa ingênua e acrítica. Ninguém engana vários milhões de pessoas, durante tanto tempo,
sem que caia no descrédito generalizado da opinião pública num momento qualquer. Além do mais, dentro do
grande grupo de pessoas, que segue a Igreja Universal durante pouco tempo, com o interesse em conseguir
benefícios materiais, há um núcleo dos que vivem intensamente essa forma de religiosidade, que dela tiram tantos
bons resultados, como mudanças significativas na trajetória de vida. Para estes, a IURD é a “verdadeira Igreja do
Senhor Jesus”.

Nos anos 70, observando o comportamento de fiéis em grandes concentrações realizadas por diversos pregadores
da cura divina, Duglas Teixeira Monteiro (1979:84) ressaltou o surgimento de laços diferentes daqueles, que
prendiam tradicionalmente pregadores, fiéis e comunidades. Essas pessoas, segundo ele, formavam “clientelas
eventuais e flutuantes”, o que levou Rubem Alves a comentar que havia nesses casos, muito mais um “fenômeno
de clientela” do que de “comunidade”. Para ambos, a reunião de fiéis à espera de milagres não era suficiente para
a “formação de congregações estáveis”, reafirmando-se assim o conceito de Durkheim (1989:76) de que mágicos
não criam igrejas, isto é, comunidades estáveis ao redor de si.

Dentro dessa mesma linha de argumentação, mais de treze anos depois de Monteiro, Mendonça (1992:51,52)
sugeriu o conceito de “sindicato de mágicos” ou de uma “empresa mágica” para descrever reuniões de fiéis que
esperam milagres e prodígios, ao redor de agentes milagrosos. Esses “sindicatos”, segundo ele, comprometem a
“identidade protestante” por vários motivos, entre estes, por não formarem comunidades. Seria então, a
“inexistência de comunidade”, o principal sinal da falta de uma “identidade protestante” em tais grupos? Do
ponto de vista de Mendonça, os freqüentadores de tais “agências de cura” são “clientes”, e a relação “entre a
‘empresa’ e o ‘cliente’ é na base do “do ut des”, o que acaba fazendo com que o culto assuma “características de
ajuntamento de interessados na obtenção imediata dos favores do sagrado”.

Mendonça, assim como Monteiro e Alves, estavam muito mais interessados em destacar a transitoriedade da
experiência religiosa dessas pessoas que passam por Igrejas pentecostais, ali permanecem durante algum tempo,
mas não se firmam na “carreira de fé”, do que enfatizar os riscos disso tudo para a prática protestante. Porém,
mesmo Monteiro, destacou que há “núcleos ativos pequenos, cercados por grandes clientelas eventuais e
flutuantes”, observação que achamos válida, também, para a Igreja Universal. Então, se há “núcleos ativos”, há
um cimento que liga as pessoas entre si e a essa Igreja, cujo centro é a autoridade carismática do pastor, o
“homem de Deus”, provocando assim o surgimento de comunidades, mesmo que estas não sigam os modelos
comunitários propostos pelo protestantismo histórico.

Mas, o que pudemos perceber nas pesquisas de campo, quanto a essa questão? Que tipo de pessoas encontramos
nos templos da Igreja Universal - “clientes” ou “fiéis”? Antes de nos referirmos aos fiéis, obreiros e participantes
assíduos das atividades de um templo há muitos anos, os quais vibram com as vitórias de sua Igreja e se sentem
ofendidos e vão à luta em defesa do bispo Macedo, diante das “perseguições da Globo”, falemos um pouco mais
das populações flutuantes.

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Na história da Igreja sempre houve cristãos, que participavam das atividades religiosas de uma maneira constante
e outros, que procuravam a Igreja apenas em ocasiões especiais. Muitos deles se deslocavam para quaisquer
santuários ou locais, onde houvesse promessas de soluções para seus males. Os peregrinos ou romeiros, em todas
as religiões, formam um espetáculo de fé e de crenças, ao se colocarem na estrada, em direção a um ponto
geográfico, tido como distribuidor de energias e de soluções para seus anseios. Há inúmeras descrições
etnográficas de situações como essas, na literatura antropológica e sociológica. 107

Com os neopentecostais também acontece a mesma coisa. Muitos deles transitam de templo em templo e
vagueiam atrás de novidades, pregadores, rituais e templos, que prometem “tardes de milagres” e soluções para
todos os “problemas familiares” ou econômicos. Para esses locais afluem, de forma segmentada na IURD, e um
pouco mais difusa em outras igrejas pentecostais, uma enorme multidão de pessoas carentes. Muitas delas, vêm
de outras decepções e consideram ser essa a última porta que se lhes abre.

Em busca do perfil do iurdiano


Qual visão de mundo, valores e tendências apresentaram os indivíduos, que entrevistamos no decorrer da
pesquisa de campo? Como afirmamos acima, as entrevistas pretendiam ser somente qualitativas, todavia usamos
formulários com questões fechadas, o que possibilitou a tabulação de dados de uma forma quantitativa.
Entretanto, como foi dito acima, tais dados indicam mais tendências do que permite a generalização dos
resultados para toda a população de iurdianos. Mesmo assim, pensamos que esses dados lançam luzes sobre
algumas conclusões tiradas a partir de depoimentos qualitativos, que registramos nas entrevistas ou colhemos em
fontes secundárias.

Entrevistamos 32 pessoas, sendo 46,8% do sexo masculino e 53,2% do sexo feminino. Desse total, 50% estavam
casados, 31,2% eram solteiros, 12,5% viúvos e 6,3% separados. Um total de 53,1% tinham filhos, o que deu uma
média de 3,2 filhos por entrevistado nessas condições. Quanto à faixa etária, 15,6% tinham idade inferior a 20
anos, 25,0% entre 21 e 30 anos, 46,8% eram maiores de 30 e menores de 60 anos. Os maiores de 60
representaram apenas 9,3% da amostra.

Foi perguntado a eles sobre o rendimento e propriedades e as respostas obtidas forneceram alguns indícios de
que estávamos lidando com indivíduos pertencentes à classe média baixa. Os resultados foram os seguintes:
64,5% disseram ser proprietários da casa onde residiam, 12,9% tinham casa financiada, 22,5% moravam em
casas alugadas ou cedidas por parentes. Nessas casas residiam em média 4,4 pessoas. O perfil da renda, medida
em reais, foi o seguinte: 65,5% ganhavam até quatrocentos reais por mês; 12,5% entre 400 e 1000 reais e 22,0%
tinham uma renda acima de um mil reais por mês. Do total de entrevistados, 53,2% se declararam insatisfeitos
com o que ganhavam, enquanto 43,1% disseram estar satisfeitos com a atual situação financeira. A teologia da
prosperidade nos pareceu exercer uma forte atração sobre os que se declararam insatisfeitos com o atual
emprego e salário, alguns usando frases como estas: “eu não aceito essa situação e estou fazendo correntes de fé
para exigir os meus direitos, como filho de Deus”.

107 A revista O Correio da UNESCO, (julho, 1995, ano 23, n° 7) produziu um número especial sobre o tema “peregrinações”
e a sua presença nas principais religiões mundiais. No neopentecostalismo, inclusive na IURD, as peregrinações adquirem
um sentido mais simbólico, pois as pessoas se dirigem aos templos dos pastores mais “cheios de poder”, realizam
“peregrinações” internas nos templos ou então, “marcham para Jesus”, anualmente, em passeatas em direção a praças
específicas, onde milhares de pessoas fazem orações e ouvem bandas de “música gospel”, como aconteceu em 18 de maio
de 1996, com apoio da Igreja Universal, em São Paulo.

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Sobre a maneira pela qual foram atraídos à Igreja Universal, 40,6% disseram que isso se deu por intermédio dos
programas radiofônicos e televisivos, enquanto 46,9% atribuíram essa adesão aos conselhos de amigos ou
parentes. No entanto, os templos, abertos o dia todo e, às vezes, com obreiros na calçada fazendo propaganda dos
serviços religiosos, atraíram 9,3% de pessoas, que disseram ter passado em frente do templo, quando sentiram o
impulso de entrar. O tempo de “membresia” era, predominantemente, de um a três anos, 63,6%; enquanto, 18,7%
estavam a menos de um ano, 9,3% há mais de três anos e 8,4% deixaram de informar há quanto tempo
freqüentavam aquele templo.

A maior parte dos entrevistados veio do catolicismo, 43,7%; todavia, 40,6% declararam não ter tido
anteriormente “nenhuma religião”, mas que eram católicos por tradição familiar. Um grupo de 12,5% vieram do
protestantismo histórico (presbiterianos, metodistas e batistas, principalmente) e somente 3,2% de religiões afro-
brasileiras. Possivelmente, este pequeno número de ex-membros da umbanda e candomblé se deva ao fato de
termos entrevistado pessoas de regiões, onde a predominância de cultos afro-brasileiros não é tão intensa como
no Rio de Janeiro e Bahia.

Para medir o grau de adesão ao proselitismo intenso e ao clima de “guerra santa”, que periodicamente é retomado
na Igreja Universal, propusemos uma questão, que dizia respeito à invasão de terreiros de umbanda e de
candomblé no Rio de Janeiro, com a finalidade de se pregar aos “espíritas” que seus “deuses” eram “demônios”.
As respostas colhidas foram organizadas entre dois pólos: “aprovação” e “reprovação”, total e parcial,
colocando-se no meio os 34,5%, que se declararam indiferentes à questão. Dos entrevistados, 43,7% aprovaram
tais procedimentos, enquanto menos da metade, 21,8% o desaprovaram.

Tentamos medir o índice de adesão à Igreja Universal por meio da opinião sobre a Igreja, contribuição
financeira, leitura diária da Bíblia, freqüência exclusiva ao templo iurdiano, leitura do jornal oficial da Igreja e
assistência aos programas de rádio ou de televisão mantidos pela Igreja. Os resultados foram os seguintes:
dizimistas, 15,6%; dizimistas e doadores de ofertas além do dízimo, 21,9%; contribuintes eventuais, 50%; nunca
contribuem financeiramente, 12,5%. Esses dados, se fossem generalizados, poderiam desmentir a idéia de que
todos os milhões de seguidores da IURD sustentam financeiramente, com seus dízimos, a instituição religiosa.
Todavia, um índice superior a 35% da “membresia” de dizimistas indica haver um alto grau de participação no
sustento da Igreja.

Durante os três anos de visitas aos templos da IURD, não ouvimos e nem vimos nenhuma orientação dos pastores
e bispos aos fiéis para que freqüentem exclusivamente os templos da Igreja Universal. Observamos apenas com
relação aos obreiros, a existência de alguns interditos desse tipo, principalmente no templo do Brás, onde os
obreiros são proibidos de freqüentarem o templo do ex-bispo Renato Suhett. Entretanto, 87,5% dos entrevistados
afirmaram não ter visitado nenhum outro lugar de culto, exceto a Universal, no mês anterior à entrevista. Mas,
12,5% admitiram ter visitado outros templos pentecostais, protestantes históricos ou católicos, naquele período.
Esses dados podem indicar que, o trânsito religioso dos iurdianos não parece ser tão intenso e que há um
processo de integração deles na vida dessa Igreja à medida que o tempo passa. Para 77,4% dos entrevistados, a
IURD é “uma excelente” ou “muito boa Igreja”. Para 16,2% ela é apenas “uma boa Igreja”, enquanto 6,4%
acharam ser uma Igreja “regular” ou “ruim”. Entre os entrevistados encontramos apenas um que achasse “ruim” a
Igreja, por causa da exacerbação em se pedir dinheiro, e, um outro que considerava exagero atribuir tudo de ruim
aos demônios e à “guerra espiritual”.

Dos entrevistados, 50% deles disseram desconhecer alguém, que tenha abandonado a Igreja, embora um de seus
pastores tenha admitido para nós que há um grande número de desistentes, fato minimizado pela crescente e

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contínua entrada de novas pessoas. Possivelmente, a alta rotatividade de fiéis e a falta de uma vida comunitária
mais profunda e até por causa da segmentação dos públicos em “correntes de fé”, impedem a percepção dessa
rotatividade por parte dos próprios fiéis. A Igreja Universal, nesse caso, tal como a Igreja Católica, por ser uma
Igreja de massa, tende a perder o controle sobre o grau de integração e de assiduidade de seus fiéis. Mas, para os
que puderam indicar casos de desistência, perguntamos quais conseqüências essa deserção teria causado na vida
dessas pessoas. As respostas, em ordem decrescente, indicam a existência de uma ligação entre a presença na
Igreja, e o recebimento de benefícios vindos de Deus, e o abandono a prejuízos vários na vida. Segundo eles,
29,5%, perderam o emprego; 23,6% tiveram doenças e morte na família; 23,6%, a vida delas piorou em todos os
aspectos; 11,7% tiveram problemas com o cônjuge e se separaram; 5,8% tiveram dificuldades com os filhos e
5,8% experimentaram perdas patrimoniais em acidentes e roubos. Essa maneira dos fiéis perceberem as coisas
reflete a visão utilitarista da religião, e a absorção da retórica dos pastores, que enfatiza uma “teologia
retribuitiva”, baseada nos méritos pessoais de cada um, contrastando com uma “teologia da graça”, que mesmo
no protestantismo histórico, quase sempre foi mais teoria do que prática.

Perguntou-se também aos entrevistados sobre seus hábitos de leitura da Bíblia, critério tradicionalmente
empregado pelos protestantes históricos, na identificação religiosa dos que se dizem protestantes. Dos indagados,
6,7% admitiram ler a Bíblia diariamente; 10% “só uma vez por semana” e 16,6% disseram “nunca ler a Bíblia”.
Afirmou, um deles: “Não preciso ler a Bíblia, quando chego na Igreja, o pastor lê para mim”. Esses dados
indicam haver uma forte tendência para uma religião utilitária e que se resume apenas no esforço da contribuição
financeira, como forma de se aproximar da divindade. Quanto à leitura do jornal oficial da Igreja, Folha
Universal, 18,7% lêem-no semanalmente; 75% admitiram o ler, “só às vezes”, e 6,3% disseram que nunca leram
esse jornal. Por outro lado, 48,3% dos entrevistados afirmaram ter em casa discos e gravações da Line Records, a
gravadora da Igreja e, 34,4%, livros de Edir Macedo.

O consumo de programações radiofônicas e televisivas da Igreja indicou as seguintes tendências: não assistem à
programação da TV Record, 29,5%; 35,3% assistem aos programas “Despertar da Fé”, “Palavra Viva” ou “O
Santo Culto no seu Lar”; 32,4% disseram que assistem ao programa “25° Hora”, comandado pelo pastor Ronaldo
Didini, uma das estrelas ascendentes na hierarquia da Igreja, neste momento e, 2,8% afirmaram que assistem
apenas aos filmes bíblicos das tardes de domingo. Os programas radiofônicos, que em São Paulo, são irradiados
pela Rádio Record e Rádio São Paulo, somente 37,5% declararam ouvi-los, contra 62,5% que admitiram nunca
ouvi-los. Mesmo excluindo os casos de Sorocaba, onde essas rádios não têm penetração, ficamos com a
impressão de que o principal meio de comunicação da Igreja com seus membros, depois do púlpito e jornal é a
televisão e não o rádio.

Quanto ao perfil eleitoral dos membros da Igreja nas eleições presidenciais, questão analisada no penúltimo
capítulo deste texto, o resultado foi o seguinte, no que se relaciona às eleições no segundo turno de 1989, quando
a Igreja abertamente apoiou Collor de Mello. Assim, 31,2% votaram em Collor; 15,7% em Lula; brancos e nulos
18,7%; não votaram, 28,2%; não declararam o voto, 6,2%. Dessa maneira os entrevistados seguiram a tendência
da liderança da Igreja, que “colloriu”, isto é optou por Collor, ao mesmo tempo demonizando o candidato da
esquerda, Luís Inácio Lula da Silva.

Fiéis iurdianos e trânsito religioso


A vida urbana pós-moderna ou num contexto de alta modernidade estimula o aumento do trânsito religioso? Há
literaturas produzidas por cientistas sociais, entre eles Luiz Roberto Bernadetti (1994:19), que enfatizam a

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existência de uma certa infidelidade das pessoas atualmente às suas origens religiosas, o que faz com que o ser
humano, que emerge dessas descrições, seja visto como alguém em constante processo de nomadismo religioso.

Se isso for verdade, o nomadismo provoca em seu interior a convivência de lógicas antagônicas e uma
interpenetração de culturas opostas. Conseqüentemente, esse ser humano experimenta uma situação de alto
“potencial de metamorfose” num campo de possibilidades variadas, para se usarem categorias de Gilberto Velho
(1994:29) e Alfred Schutz (1979). Vivendo então situações marcadas pela alternação, o “imigrante religioso”
transita, através de diversas províncias de significado. No decorrer desse processo, muitas vezes, as fronteiras
cognitivas não estão nítidas e o indivíduo se sente um estranho, até que ele se alia a um grupo e reconstrói a sua
identidade, num processo acentuado de intersubjetividade.

Giorgio Paleari (1992) ao pesquisar a religiosidade popular em favelas de São Paulo, encontrou vários casos de
trânsito ou de “infidelidade” religiosa em que a pessoa, na semana anterior à pesquisa, freqüentou terreiro de
umbanda, foi a um culto numa Igreja pentecostal e, no final de semana, se dirigiu ao Santuário Nacional de
Aparecida do Norte para pagar promessa. Mas, será que o iurdiano se enquadra em situações ambíguas como
essas? Sim e não. Se considerarmos aqueles que fazem parte da “população flutuante”, isso possivelmente venha
a acontecer. Até porque, muitos deles ainda estão em processo de transição religiosa e vêm do catolicismo, das
religiões afro-brasileiras ou de outras igrejas protestantes. 108

Esses “novos crentes” fazem parte de uma população intermediária, encontrada atualmente com maior freqüência
nos templos da Igreja Universal, e reforçam o número dos que fazem parte do núcleo ativo. Às vezes, famílias
inteiras que aderiram à IURD, participam dos encontros religiosos, levam os filhos menores e os entregam às
obreiras, que oferecem um tipo de educação religiosa, por meio da Escola Bíblica Universal. Esse departamento
funciona enquanto os pais participam dos cultos e “correntes” de fé. Os irmãos mais velhos participam dos
grupos jovens, que divulgam a fé e as atividades da Igreja nas ruas próximas aos templos ou na distribuição de
alimentos. Também estão-se multiplicando os círculos para estudo da Bíblia nos templos e nos lares. Sob a
balbúrdia da “clientela flutuante” cresce o número dos que não querem e nem podem ser considerados meros
aventureiros na fé, e que, de forma alguma, se consideram “clientes” de uma “agência de cura”.

Tais pessoas consideram encerrada a fase da peregrinação de fé, e afirmam ter colocado um ponto final no
trânsito religioso, que para muitos evoluiu de um “catolicismo de tradição” para uma “prática espírita”, até
descobrir o “Deus vivo” na Igreja Universal. Estes não mais participam de outras reuniões religiosas, como foi
visto acima. Isso indica haver uma certa exclusividade e seriedade no compromisso religioso assumido com a
IURD, à qual se atribuiu o papel de mediadora e fiadora da transformação provocada em sua vida.

Concluímos também que coexistem, no mesmo lugar, atitudes típicas de fiéis de um “templo” e clientela de um
“mercado”. Estes últimos não se integram no grupo nem formam comunidade. São pessoas em trânsito, que
buscam somente benefícios passageiros. Os fiéis permanecem e estão levando a Igreja Universal a se tornar uma
“igreja” e não simplesmente um “mercado”. Por isso, concluímos que, possivelmente as asserções de Monteiro,

108 Giorgio Paleari (1992:48,66) apresenta dois relatos que ilustram bem essa questão da transitoriedade entre várias
províncias do campo religioso: Caso 1 - Eni: “Eu era da Igreja Católica, passei pela umbanda e fiquei crente por dois anos.
Agora faz seis meses que não freqüento mais nada. Mudei de católica para crente porque queria resolver um problema.
Não resolvi nada. Saí”. Caso 2: José, natural da Bahia, participa de CEBs, recebe o ‘santo’ no terreiro e ora com os crentes
na rua. Relata: “Porque onde eu estiver e ouvir coisas de Deus, eu estou. Se passar pela rua e escutar o pessoal rezando, ali
eu paro e fico escutando. Pelo menos uma vez por semana, eu vou para o terreiro. Recebo o baiano e minha mulher a
pomba-gira. Agora a Comunidade (CEB) aqui é algo que nunca deve acabar. A gente encontra amigos e aprende a ajudar
os outros”. Entre fiéis da IURD pelo menos confessadamente, não encontramos nenhum caso semelhante, talvez devido à
forma exclusivista da guerra decretada pelos pastores contra o catolicismo e religiões afro-brasileiras.

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Alves e Mendonça sejam válidas para certos grupos, em determinadas épocas e circunstâncias, mas que no caso
da Igreja Universal, atualmente, essas observações estão perdendo a validade, pois está surgindo uma rede de
comunidades e isto poderá levar a IURD a se tornar uma denominação religiosa à semelhança de outras, que hoje
fazem parte do protestantismo.

Os fiéis reconhecem: “a Igreja Universal satisfaz”


Temos insistido que as religiões fazem sucesso quando tentam se adequar as necessidades e desejos de um
público alvo. Entretanto, palavras como “escassez”, “necessidades” e “desejos”, usadas para caracterizar
situações vividas pelos indivíduos, antes de encontrarem determinadas soluções para seus problemas, podem se
tornar conceitos subjetivos, caso não venham acompanhadas de evidências claras, que demonstrem quem tem
carência, de quê e em que circunstâncias. Isso é válido também para o contexto da satisfação religiosa. É o que
tentamos fazer ao mostrarmos as carências que as pessoas disseram ter e as quais sentiram serem satisfeitas por
ocasião da adesão à Igreja Universal. Julgamos que são as carências, que facilitam a constituição de um espaço
de trocas de bens simbólicos nesses templos/mercados.

O recrutamento religioso sempre tem sido feito a partir das necessidades não resolvidas. Isto não é peculiaridade
do pentecostalismo. Faz parte do arsenal cultural de nossa sociedade esta maneira de se buscarem soluções para
sofrimento, aflições e carências. Mas, porque procuram esta e não aquelas outras entidades religiosas? Peter Fry
e Gary Howe (1975:75-94) apresentaram uma significativa contribuição à resposta a essa questão. Para eles,
umbanda e pentecostalismo são formas diferenciadas de responder às aflições. Dizem as pessoas entrevistadas
terem se dirigido à Igreja Universal porque acreditavam na capacidade da mesma em resolver seus problemas, ao
contrário de outras agências procuradas anteriormente. A crença na eficácia de algo é, certamente, um meio
caminho andado em direção à solução daqueles problemas, o que pode ser observado nos fragmentos de alguns
depoimentos:

“Vim para a Igreja Universal numa hora em que minha filha casada estava doente e quase se separando
do marido (...) minha aposentadoria era muito pouco, e não dava nem para me sustentar, quanto mais
para ajudar a minha filha (...) freqüentava a Igreja Presbiteriana, mas não gostava da frieza do pastor,”
(viúva, 65 anos, aposentada, três anos de IURD).
“Eu estava cheio de problemas familiares, os filhos doentes, a geladeira vazia só tinha gelo. Perdi tudo.
Não tinha religião alguma, mas freqüentava umbanda (sic). Não sabia que estava seguindo satanás,”
(casada, 30 anos, vendedora, três anos de IURD).
“Minha vida estava complicada (...) minha filha estava envolvida com drogas” (casada, 40 anos,
vendedora, um ano de IURD).
“Meu casamento estava em crise, o filho doente, o salário muito baixo e não tinha nem dinheiro para
comprar remédio para o filho”, (casada, 26 anos, empregada doméstica, dois anos de IURD).
“Quando cheguei na Igreja não tinha mais amigos e vivia sozinho, desde que o meu pai foi embora de
casa (...) não acreditava muito em Deus não, achava tudo uma brincadeira (...) depois passei a freqüentar
a Igreja Batista Independente, mas achava essa igreja muito parada, com medo de lutar contra os
problemas, (solteiro, 15 anos, vendedor de gás, um ano de IURD).
“Quando descobri a gravidez de minha noiva fiquei apavorado, porque não tinha dinheiro para
casar,”(casado, 21 anos, balconista, seis meses de IURD)
“Fiquei doente e me interessei pela Igreja Universal vendo na televisão (...) ganho muito pouco, se bem
que o salário ainda dá (...) vivo muito sozinho e estou conhecendo ainda a Igreja, que me parece ser uma
excelente Igreja”, (solteiro, 26 anos, carteiro, um mês de IURD)

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“Eu cheguei à Igreja desnorteado, porque a minha esposa acabara de falecer” (viúvo, 31 anos, motorista,
um ano e seis meses de IURD).
“Eu era da Igreja Batista e me sentia bem, até que descobri o meu esposo com uma outra mulher, foi aí
que eu encontrei consolo mesmo na Igreja Universal” (casada, 35 anos, comerciante, um ano de IURD).
“Eu era muito só, não tinha ninguém ao meu lado (...) a minha vida estava totalmente atrapalhada (...) eu
era muito revoltado, tinha um problema na perna (...) acho que eu era católico, mas a Igreja Católica não
está com nada (sic) ela deveria ser neutra e não se meter em política, porque o Arcebispo de São Paulo
defende bandido e não o trabalhador, o preso que tem comida, TV, aparelho de som e ainda exige boa
alimentação e se esquece da criança abandonada (...) Na Igreja Universal, na “corrente do amor”
consegui a minha namorada, na “corrente da saúde” curei a minha perna (...) A Igreja Universal é uma
excelente Igreja porque pedi ao pastor prá me arrumar alguém e ele conseguiu, agora não estou mais
solitário” (solteiro, 45 anos, empregado de bar, oito anos de IURD).
“Eu vivia desesperado quando cheguei na Igreja Universal. Bebia muito e tinha problemas de saúde. As
minhas pernas estavam sempre inchadas (...) ia tanto a Igreja Católica como a um terreiro de benzedeira
(sic)”, (solteiro, 35 anos, vendedor de sorvete, oito meses de IURD).

O estudo das motivações que agem por trás das ações humanas levou Abraham Maslow a hierarquizar as
necessidades na forma de uma pirâmide. Na base, Maslow colocou as necessidades fisiológicas, fundamentais
para a sobrevivência, tais como, fome, sede, descanso, sono e outras. Segundo ele, somente após serem satisfeitas
tais necessidades, é que o ser humano partiria para a satisfação das necessidades de segurança. Nesse tipo de
necessidade estão incluídas tanto a segurança física como a psíquica. No patamar seguinte, estão as necessidades
de afeto de seus semelhantes, amigos e familiares. O desejo de participar de grupos e associações é uma das
formas de manifestação desse tipo de necessidade. Maslow também classificou as necessidades de status e
estima, terminando com as necessidades de realização, autoconhecimento e autodesenvolvimento.

Entretanto, não devemos nos esquecer de que as maneiras de se atenderem às necessidades humanas são
construções culturais, assim como a própria gênese dessas necessidades e desejos. 109 Entendemos por cultura,
aquela capacidade humana de construir mecanismos controladores dos apetites e doadores de satisfação. Assim, a
religião é essencialmente uma forma de cultura, na medida em que participa desse esforço de reduzir incertezas,
compensar a impotência humana e reduzir as frustrações diante da escassez e da distribuição de recursos, de
acordo com Thomas O’Dea (1969:14,15). Por outro lado, a sociedade também age culturalmente, criando ou
despertando nas pessoas desejos e necessidades suplementares. A propaganda da Igreja Universal, como iremos
analisar, atua dessa forma, trazendo à tona desejos sepultados no inconsciente, insatisfeitos, novas necessidades,
oferecendo e adaptando tais elementos à situação dos destinatários de sua mensagem.

A proposta de vida que a Igreja Universal passa aos fiéis pode ser analisada também à luz dessa hierarquia de
Maslow. A distribuição de alimentos, as promessas de cura física e mental atraem pessoas necessitadas. Aos
inseguros de uma sociedade em rápidas mudanças sociais, ela acena com a teologia da prosperidade e com a

109 Sobre os condicionamentos sociais que agem sobre o consumidor e a ligação entre as necessidades, desejos e sociedade
como agente gerador de tendências mais amplas é estimulante o estudo de Gisela Taschner Goldenstein (1990). Nesse
texto, a autora compara as tendências sociais que têm sido mensuradas, desde 1970, por publicações especializadas nos
Estados Unidos, e, que refletem as ligações entre as tendências para o consumo e às mudanças sociais. Há 25 anos, por
exemplo, as tendências mensuradas pela publicação The Yankelovich Monitor (n° 1, maio de 1971) indicavam: Tendências
relacionadas com a psicologia da afluência, cuja ênfase era ao que fazer para ter mais; tendências de anti-funcionalismo,
como forma de protesto à monotonia da vida cotidiana; Tendência de reação à complexidade da vida moderna; tendências
ligadas ao enfraquecimento da “ética protestante”, e tendências que refletem permissividade na educação dos filhos. Como
Goldenstein aponta, essa hierarquia de tendências sofreu alterações, desde então. Algumas delas caíram no ranking e
outras subiram. Um exemplo de como os especialistas trabalharam essas hierarquias de tendências para os anos 90 aparece
no livro de John Naisbitt e Patrícia Albuderne, Megatrends 2000 (1990). Pressupomos que a prática religiosa não se
encontra imune às mudanças macro-culturais de uma determinada sociedade.

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idéia de um Deus que dá segurança psíquica e espiritual, capacitando as pessoas a enfrentarem as mudanças. A
comunidade dos que cultuam, mesmo segmentadas por interesses, ou talvez por causa de seus mecanismos de
classificação do público, oferece um ambiente para o desenvolvimento de sentimentos de pertinência. Nos
depoimentos acima, apareceram em pelo menos dois casos, a superação da solidão por meio da descoberta de
amigos ou namorada, em decorrência da participação dos cultos iurdianos.

É aqui que as teorias que consideram o fiel iurdiano uma “pessoa simplória”, “explorada”, “manipulada” e
“fornecedora de recursos monetários para uma gang de exploradores da fé”, se apresentam extremamente
vulneráveis, pois não se pode negar que há resultados positivos da ação social desse tipo de mensagem, não se
tratando, portanto, de um mero processo de “mercantilização”. Nesse caso, a questão seria esta: Bons resultados
legitimam meios considerados pouco éticos ou maus por uma determinada cultura? Nos limites deste trabalho
não temos espaço suficiente para estender a discussão nessa direção, mas, registramos a pergunta, até como
estímulo para outras pesquisas nessa área.

Conclusão

Recusamos sustentar o conceito de que tudo, na Igreja Universal, não passa de um processo de “mercantilização”
da religião, entre outros motivos porque se trata de um veredicto da mídia e dos detratores do bispo Macedo, o
que tornou o conceito “mercantilização” uma arma de guerra ideológica ou apologética, que pouco esclarece a
eficácia comunicativa da Igreja Universal. Por isso nos propomos a continuar trabalhando essa questão, a partir
do pressuposto que a teoria de marketing é um critério mais seguro para se analisar a constituição de um mercado
religioso no País, assim como para avaliar o dinamismo do campo religioso e a atuação da Igreja Universal nesse
contexto.

Recordamos aqui que os modelos propostos pela teoria mercadológica, adotada por muitos como ferramenta de
trabalho, não podem ser absolutizados. Principalmente a teoria das “escolhas racionais” e do utilitarismo, que
fariam parte de todas as decisões tomadas no âmbito do consumo religioso. Obviamente, isso não pode ser o
único critério de análise. Até porque, a teoria de marketing religioso, surgiu num contexto de modernidade,
quando se valorizou excessivamente o aspecto racional, em detrimento da presença do não-racional. Há novos
desafios decorrentes da aceleração da modernidade, que trouxeram à tona novos problemas, inclusive a ruptura
das pessoas com os antigos centros geradores de sentido para a vida.

Com o fim das promessas secularizantes da modernidade, tais como a crença inabalável na ciência, progresso e
socialismo, instaurou-se uma época de incertezas. Sistemas de crenças e de referências, que aparentavam tanta
firmeza, também se esvaziaram ao lado das utopias, até então legitimadas por instituições religiosas e políticas,
algumas delas com séculos de duração. As instituições mediadoras do sagrado começaram a perder adeptos,
aumentando consideravelmente o número de pessoas sem igrejas, ou para usar um neologismo - os
“desigrejados”. Paralelamente, surgiram outras entidades e associações produtoras de sentido, trazendo consigo
diferentes estoques de símbolos religiosos. O universo simbólico-religioso se expandiu para novas direções,
extrapolando os limites institucionais anteriormente consagrados.

É ponto pacífico que a religiosidade institucionalizada sofre hoje um tremendo processo de esvaziamento. Cada
vez mais multidões se afastam das instituições que, até há pouco tempo, gerenciavam a distribuição dos bens
religiosos. Todavia, renascem por todos os lados, novas formas de apropriação do sagrado, visíveis ou invisíveis,
com pretensões de ofertarem experiências religiosas ou semi-religiosas, fora dos receituários institucionalizados e
tradicionais. Há novas demandas a serem atendidas que, a despeito da aparente separação traumática entre

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prática religiosa e tradição, emergem sob todos os escombros um alarido, segundo Berger (1973), um "rumor de
anjos”. Conseqüentemente, usando metáforas gastronômicas, afirmamos que aumenta o número de pessoas
dispostas a usarem, elas mesmas, um menu religioso, enquanto preferem uma espécie de um do it yourself em
termos de religião, segundo Jean-Paul Willaime (1992:108) ou em outras palavras, uma religião à la carte. Isto
porque, elas se sentem bem onde podem, à semelhança de um “restaurante por quilo”, se servirem do que
quiserem e na quantidade que desejarem, naquele momento.110

Nessas circunstâncias, o sagrado escapa do controle tradicional, imigrando para outras áreas como política,
esportes, instituições prestadoras de serviços, encarregadas de distribuir os bens simbólicos de uma forma
diferente das tradicionais. A nosso ver, é justamente esse deslocamento de áreas cobertas pelo sagrado e de
dispersão dos crentes, que cria espaço para o surgimento da disputa pelos "perdidos", entre novos movimentos
religiosos, descompromissados com a tradição anterior. Em outras palavras, a atomização de agentes e
instituições no campo religioso, a chegada do pluralismo, fez com que o caminho para o marketing surgisse
como uma opção prática de sobrevivência e não, como resultado de um conjunto de discussões teóricas e de um
cálculo racional.

Para especificar essa nova situação, tem se usado com freqüência o termo "pós-modernidade", que para Alain
Touraine (1994) se caracteriza como "dissociação completa da racionalidade instrumental tornada estratégica
sobre os mercados móveis, e de comunidades enfermas na sua diferença". O que corresponde, ainda segundo ele,
"à dissociação de estratégias econômicas e da construção de um tipo de sociedade, de cultura e de personalidade"
quando as condições da crença econômica, da liberdade política e da felicidade de cada um perderam a
interligação.

A transformação do “campo religioso” em “mercado religioso” é uma conseqüência da força homogeneizadora


do mercado sobre o universo religioso. A crescente aplicação do marketing na geração de atos e instituições
religiosas está elevando o gosto do “comprador”, e transformando-o na instância máxima de julgamento dos
fenômenos religiosos. É o público “consumidor”, criado, descoberto e organizado, segundo regras
mercadológicas, que determina tanto as formas de elaboração e de distribuição dos bens religiosos, como a
própria estrutura assumida pela instância produtora. Essa tendência ocorre também com as artes, tal como
apontou Pierre Bourdieu (1982:99ss) com a teoria da formação do “mercado dos bens simbólicos”, e Jean
Duvignaud (1973:527) atribuiu à sociedade industrial a mercantilização do teatro ao afirmar que “a sociedade
industrial abriu o mercado do teatro”. Podemos parafraseá-lo, dizendo que a sociedade industrial abriu o
mercado de consumo religioso, o que acabou por criar condições para o surgimento de um marketing religioso.

110 A metáfora empregada se refere a uma modalidade de restaurantes populares, existentes em várias cidades brasileiras, nos
quais o cliente se defronta com uma enorme variedade de alimentos e vai assim, compondo o seu prato, até chegar numa
balança, na qual a comida é pesada, pagando o consumidor somente a quantidade escolhida segundo seus próprios
critérios.

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CAPÍTULO 5 - MARKETING E RELIGIÃO: A


“MARKETIZAÇÃO” DO SAGRADO NA IGREJA UNIVERSAL

“O cliente nunca compra um produto. Por definição, ele compra a satisfação de um


desejo” (Peter F. Drucker,1975:90).
“Não é muito difícil persuadir as pessoas a fazerem aquilo que elas estão ansiosas para
fazer” (Aldous Huxley, in Kotler:1980:385).

Este capítulo discute a Igreja Universal a partir de uma perspectiva mais ampla do que
simplesmente a de venda, mercantilização ou charlatanismo, tal como nos apresenta a mídia.
Entendemos que marketing é muito mais do que simplesmente vender. Marketing envolve o
conhecimento do mercado, a sua segmentação e a adoção de um olhar, que inclui o ponto de
vista dos clientes, mais do que simplesmente técnicas para vender um determinado produto. Por
isso, consideramos que o pressuposto da “mercantilização” não explica de forma satisfatória o
crescimento desse empreendimento religioso, senão em nível de senso comum e ideológico.

Porém, para que isso aconteça é necessário respondermos às seguintes questões: Em que consiste
a perspectiva de marketing? Podemos falar em marketing dos bens simbólicos? Que conexões há
entre a “mercantilização do sagrado” e uma visão do fenômeno religioso do ponto de vista do
marketing? Que elos existem entre religião e marketing? Quais são as possibilidades e os limites
para se aplicar à religião, fenômeno persistente na história dos grupos sociais, um conjunto de
conhecimentos e técnicas nascidos só recentemente, na esteira do capitalismo ocidental? Que
relações podem ser estabelecidas entre as teorias surgidas para legitimar o mercado, e aquelas
auto-elaboradas por sacerdotes e leigos para explicar suas respectivas ações no âmbito do
templo? Como “templo” e “mercado”, “religião” e “comércio”, “propaganda religiosa” e
“publicidade comercial” se interligam? Que implicações uma esfera traz para o comportamento
da outra? Enfim, como se dá, de uma forma concreta, no caso da Igreja Universal essa
articulação entre valores religiosos e mecanismos de trocas, mediados pela visão e técnicas de
marketing?

O marketing é um conjunto de técnicas empregadas não somente para agir sobre os mecanismos
de troca, como também para explicar as ações humanas envolvidas nesse processo. Como tal, o
marketing traz consigo uma forma de se olhar a realidade social, que acaba por dirigir a coleta de
dados e a interpretação do comportamento humano durante as trocas. Por isso, o marketing, além
de ser um conjunto de práticas, também acaba provocando o surgimento de teorias explicativas
dos fatos sociais envolvidos na troca.

A aceitação do marketing como uma das maneiras de se explicar o comportamento humano, e


sobre ele agir, impede que se lhe atribua aquela exatidão imaginada pelos positivistas para os
conhecimentos científicos. Até porque, a perspectiva de marketing foi elaborada no bojo da
economia ocidental e buscou exatamente nas ciências humanas, tais como psicologia, sociologia
e antropologia, algumas de suas principais fundamentações. Como ferramenta de trabalho, o

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marketing está atrelado a um discurso, que busca articular esse conjunto de respostas para
problemas vinculados às relações de troca estabelecidas pelos seres humanos, oferecendo uma
visão que tenta ser lógica, coerente e capaz de explicar os fenômenos observados.

O termo “religião”, por sua vez, denota aquele sentimento que une as pessoas verticalmente a
uma esfera tida como sagrada e, horizontalmente, uns com os outros, ao redor de um centro
cognitivo, ético e volitivo de visão de mundo. Daí, serem inevitáveis as perguntas: O marketing,
como teoria e prática é apropriado para explicar, pelo menos parcialmente, o comportamento
social, as práticas e o discurso da Igreja Universal e de outros empreendimentos neopentecostais?
“Templo”, “teatro” e “mercado” sãos espaços sociais contínuos de uma sociedade, que usa a
lógica do mercado como seu horizonte de plausibilidade?

5.1 O marketing e a ação social

A palavra marketing é um anglicismo mundialmente consagrado e introduzido em nosso


universo vocabular por administradores e estudiosos norte-americanos, na primeira metade deste
século. No Brasil, se tentou, desde o aparecimento da Fundação Getúlio Vargas e de sua Escola
de Administração, em 1954, divulgar várias palavras para traduzir ou substituir “marketing”, sem
que se tenha conseguido idêntica aceitação. A princípio se propôs “distribuição” e “vendas” para
designar aquelas atividades contidas no termo inglês, bem como chegou-se a criar o neologismo
“mercadologia” para nomear as atividades relacionadas com o fluxo de bens e serviços, que
envolvem produtores e consumidores. Novamente, o sinônimo proposto não conseguiu se firmar,
possivelmente por causa da força, inclusive lingüística, do arbitrário político e econômico do
país, onde a palavra “marketing” se originou. Assim, o termo “marketing”, além de ser o nome
de certas atividades ligadas ao “mercado”, traz também gravado em si mesmo a história da
economia, da administração e da cultura capitalista dominante no mundo, neste final de século.

O marketing procura não somente estudar como também facilitar a intervenção nos processos de
troca, influenciando e alterando o comportamento dos seres humanos, envolvidos nessa situação.
A definição de marketing oferecida por Philip Kotler (1980:31) é clássica: “marketing é a
atividade humana dirigida para a satisfação das necessidades e desejos, através dos processos de
troca.” Para ele, “toda organização é uma aglutinação proposital de pessoas, materiais e
instalações, procurando alcançar algum propósito no mundo exterior”. O marketing é este
conjunto de conhecimentos e ferramentas que tem por tarefa coordenar, planejar e controlar o
processo de concretização desses objetivos. Ainda, segundo Kotler (Idem, 20, 37 e 38), para
“sobreviver e ser bem sucedida, a organização deve (1) atrair recursos suficientes, (2) converter
esses recursos em ‘produtos’, serviços e idéias e (3) distribuir esses ‘produtos’ a vários públicos
consumidores”. Por isso, o mercado, “do ponto de vista da organização, é uma arena em
potencial para a troca de recursos”, sendo como tal, formado por “um grupo distinto de pessoas
e/ou organizações que têm recursos, que querem trocar ou que poderão concebivelmente trocar
por benefícios distintos.”

Tanto nesse como em outros conceitos de marketing, enfatiza-se a palavra “troca”, que
caracteriza uma ação tipicamente humana, voltada à valorização de objetos, bens e serviços. A

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troca é uma das mais antigas atividades sociais, que acompanha o ser humano desde o período da
coleta de alimentos e, como processo, antecede até mesmo o surgimento da feira e do mercado,
permeando as atividades de todas as espécies de instituições sociais, mesmo em tribos indígenas,
como nos mostra a antropologia econômica, de Maurice Godelier (1980:265ss).

Por isso, Mauss (1974,v.2:37-184) considera as trocas, prestação, dádiva e potlatch de bens
como um “fato social total”, encarando-as como motor que coloca em movimento “a totalidade
das sociedades e suas instituições”, inclusive as religiosas. Isso porque, os membros de uma
sociedade qualquer, sempre possuem coisas desejadas e valorizadas, em graus e intensidades
desiguais. Daí, os interesses e cobiças que acompanham o processo de troca e que, em situações
de paz, geram compromissos de entrega recíproca de bens e, em época de guerras, a expropriação
violenta.

Para Max Weber (1991:43,44), a troca é “um compromisso de interesses entre os participantes
pelo qual se entregam bens ou possibilidades como retribuição recíproca.” Portanto, “toda oferta
[é] baseada num acordo formalmente voluntário, de utilidades atuais, contínuas, presentes ou
futuras, qualquer que seja a sua natureza, contra determinadas contraprestações de qualquer
espécie (...).” Mas, enfatiza Weber, nem sempre essa ação é determinada de modo racional, pois
ela pode resultar de fatores ligados ao “modo racional, referente a valores”, ao “modo afetivo,
especialmente emocional”, ou ao “modo tradicional, por costume arraigado”. Em outras palavras,
temos também de levar a sério os fatores supra-racionais e não-intencionais, embutidos no
processo de troca. Porém, em ambos os casos, pesa sempre o fator necessidade, o verdadeiro
motor do processo de troca.

Há, por outro lado, um elemento complicador no processo de troca, que é o conflito pelo poder
controlador desse processo, o que exige o aparecimento de associações reguladoras da ação dos
indivíduos, e de suas relações sociais em situações de troca. Para Weber (1984:699), a questão do
poder se faz presente na troca, quando alguém quer impor a “própria vontade numa relação
social, mesmo contra resistências” existentes. As organizações, comercial, religiosa ou política,
são instituições que fazem da continuidade das relações de troca sua meta principal e, para que
isso se concretize, elas buscam estabelecer regras “legítimas”, a fim de que as trocas sejam
pacíficas, permanentes e não resultantes da violência. Max Weber (1991:15) fez da ação
socialmente orientada o fundamento da sociologia compreensiva, porque a “ação social orienta-
se pelo comportamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro (...)”,
enfatizando que isso também ocorre com as atividades econômicas, na medida em que elas
levam em consideração “os futuros desejos de terceiros”.

O marketing toma como ponto de partida, para a elaboração de sua filosofia de ação, o axioma de
que o ser humano possui necessidades e desejos a serem satisfeitos, e que procurará essa
satisfação de uma maneira ou de outra. A troca é uma das várias formas de se atender a essas
expectativas, ao lado da autoprodução, coerção ou súplica. A palavra marketing está associada
ao espaço geográfico e social, onde as trocas se dão, isto é, ao mercado. Contudo, o conceito é
mais amplo, e se aplica a fenômenos sociais, os quais se encontram além do espaço geográfico e
englobam todos os espaços sociais, onde as trocam se dão, sejam elas de que tipo forem.

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194

A adoção de uma perspectiva de marketing implica na aplicação da racionalidade na análise,


planejamento, implementação e controle de programas, cuidadosamente formulados para se
produzirem trocas voluntárias. Daí, a importância do que Max Weber (1984:419) escreveu sobre
o mercado como o locus das “relações associativas racionais”, que dirigem o processo de troca,
desde o “regateio preparatório” até a consecução do ato de troca. Segundo ele, a racionalidade se
faz presente em todas as etapas, e o dinheiro então aparece como intermediário nesse processo,
pois é a ele que se reserva a tarefa de fazer “surgir uma relação comunitária, graças às relações de
interesses reais entre os interessados (...).” Weber, entretanto, via no mercado a realização de
uma comunidade que se expressaria numa “relação vital prática mais impessoal, que pode existir
entre os homens (...).” Para ele, existe mercado quando há “uma pluralidade de interessados, que
competem por oportunidades de troca”, conceito esse desenvolvido por Pierre Bourdieu
(1982:99ss.) em suas noções de “mercado” e “economias” de “bens simbólicos”.

Nessas afirmações sobre o papel da racionalidade, podemos fundamentar o argumento de que


uma organização orientada para o mercado, não desenvolve tentativas quixotescas de estabelecer
trocas com todas as pessoas, ofertando mensagens, “produtos” e serviços aleatoriamente. Muito
pelo contrário, as suas estratégias são cuidadosamente planejadas, pesando-se em cada troca os
interesses das várias camadas sociais, o que gera uma adequação dos seus “produtos” a interesses
assimétricos, devidamente segmentados. O resultado é a elaboração de uma teoria e técnicas, que
incluem a mentalidade racional e calculista, para interferir no processo de troca e explicá-lo,
ressalvando-se contudo, que nem sempre a decisão de compra resulta de decisões, racionalmente
tomadas pelo consumidor.

Pensar e sistematizar a prática mercadológica, a partir das necessidades e desejos dos clientes, é
algo recente na história do capitalismo, e que exigiu para se desenvolver, em seu aspecto teórico
e prático, a apropriação de conhecimentos formulados pelas ciências humanas dos dois últimos
séculos. Na prática, o marketing tem sido empregado tanto para a expansão de uma organização
como para a conservação de sua clientela. Tais processos ocorrem graças à articulação entre
meios e fins, objetivos e estratégias, todos passíveis de mensuração e planejamento. A finalidade
última é a consecução dos resultados esperados e a mobilização de todos os recursos para realizá-
los, com eficiência e eficácia. O marketing se fundamenta no pressuposto de que é possível
pesquisar, descobrir, alterar e atender as necessidades e preferências das pessoas por estes ou
aqueles produtos ou serviços.

Tal prática pressupõe ser possível classificar as organizações ou instituições entre as “voltadas
para o mercado”, que por isso conseguem bons resultados, e as que “estão de costas para o
mercado”. Estas não se sintonizam com as demandas dos consumidores e, por tal motivo, não
conseguem resultados satisfatórios em suas atividades. Estar “voltado para o mercado” significa,
na linguagem de marketing, posicionar-se de uma maneira tal, que o próprio cliente passa a
determinar, com suas necessidades e desejos, o desenho dos “produtos”, a própria produção
deles, e o contorno das ações a serem executadas nos processos de produção e distribuição. Faz
parte também desse conjunto de pressupostos a idéia de que há uma intensa competição entre as
várias agências, na produção e distribuição de produtos ao consumidor, disputa essa que provoca
um dinâmico e contínuo reposicionamento no interior do mercado.

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Conseqüentemente, o consumidor é um elemento ativo e dinâmico, e está em constante mutação,


exigindo sempre dos produtores uma flexibilidade organizacional, que favoreça um pronto
atendimento de suas carências e desejos. Além dessa disponibilidade para mudanças contínuas, a
organização também precisa manter uma permanente lucidez para perceber os desejos ainda
insatisfeitos, mobilizar os consumidores em agrupamentos por interesses, segmentalizá-los por
classes sociais ou outras formas de classificação. É assim que se consegue facilitar o
planejamento das ações produtivas, maximizar a distribuição, direcionar a propaganda e atender,
racional e rapidamente, as demandas surgidas.

Como um conjunto de práticas e teorias interessadas na explicação do comportamento social em


situação de troca, o marketing acabou extrapolando o mercado dos bens tangíveis, sendo hoje
também aplicado aos bens intangíveis. Isso fez surgirem estudos de marketing, aplicados a
espaços sociais tão diferentes como cultural, político, esportivo, social, pessoal, ecológico,
turístico, escolar, hospitalar, religioso e outros. Por exemplo, Philip Kotler (1988) estuda o
marketing das organizações não-lucrativas e, no Brasil, Gil Nuno Vaz (1995) desenvolve um
marketing institucional, no qual analisa o “mercado de idéias e imagens”. Mas, como aplicar o
conceito de marketing ao neopentecostalismo da Igreja Universal?

5.2 O marketing aplicado à religião

A criação de um sistema de mercado com pretensões totalizantes tornou inevitável que religião e
mercado acabasse por se encontrar e, em certos casos, até estabelecessem utilitárias alianças.
Como se deu essa aproximação? Que forças históricas e sociais tornaram possível tal fenômeno?
Que tipo de religiosidade resultou dessa interação? De que maneira a teoria e a prática de
marketing podem explicar o comportamento institucional da IURD e a ação de seus adeptos?

As perguntas são muitas, e as nossa considerações sobre algumas delas somente serão retomadas
ao longo deste texto. Entretanto, é preciso reconhecermos o caráter relativamente recente dessa
aproximação, assim como a existência de desconfianças mútuas quanto a este tipo de abordagem,
tanto do ponto de vista teórico e sistemático, como do aspecto prático. Mas, foi exatamente na
área prática que, paradoxalmente, as resistências foram menores, enfraquecendo assim a
insistência de teóricos especializados em religião e marketing, em se manterem fronteiras
excludentes entre os dois domínios. Ainda assim, essa aproximação tem sido um processo
demorado e conflitivo, com mútuas e recíprocas exclusões.

No que se refere ao Brasil, “marketing” é uma palavra nova nos meios religiosos, assim como
nas discussões empreendidas pelas ciências da religião. Por esse motivo, a simples menção de
“religião” e “marketing” provoca em muitas pessoas estranheza e restrições, por julgarem estar
havendo uma mistura indevida. Na França, Jean-Paul Fiplo (1984:17), escreveu que “religião” e
“marketing” são de uma certa maneira “duas palavras tabus, porque representam duas formas de
poder, cujos excessos passados ou presentes irritam muitos de nossos contemporâneos.”

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A ligação sistemática de religião e mercado, através da prática do marketing, foi feita por Philip
Kotler (1988),111 que publicou em 1971 o livro Strategic marketing for non-profit institutions no
qual, pioneiramente, reuniu considerações sobre as implicações do marketing para aquelas
organizações que não fazem da busca do ganho monetário sua meta principal. O desdobramento
dessa obra, com análises específicas sobre as organizações religiosas, principalmente igrejas e
sinagogas norte-americanas, somente seriam retomadas, por ele e outros companheiros (Norman
Shawchuck et alii, 1992), no texto Marketing for congregations - choosing to serve people more
effectively.

Esse livro tomou como objeto de estudo a religião institucionalizada e o pressuposto de que tal
tipo de religiosidade estaria em crise nos Estados Unidos, por causa da perda de “membresia” e
queda na demanda por serviços tradicionalmente prestados por aquelas agências religiosas. Esse
livro está dividido em três partes: Na primeira, tenta-se justificar o emprego de marketing na
montagem de estratégias que auxiliem as organizações religiosas a alcançarem seus objetivos. Na
segunda, os autores mostram como organizações religiosas podem desenvolver projetos de
marketing, e na terceira, o texto se completa, enfocando como projetos de marketing podem ser
colocados em ação em organizações religiosas.

Na primeira parte, os autores relacionaram os principais argumentos contra o emprego do


marketing à religião. Entre outras, focalizaram as seguintes críticas: o marketing custa muito caro
e desperdiça dinheiro “dado a Deus”; é uma atividade intrusa e manipulativa, que milita contra o
espírito de liderança, pois coloca a moda acima do líder. Além do mais, o marketing é resultante
de uma “mentalidade dessacralizadora da religião”, que está ligada à venda, publicidade, relações
públicas e trabalha com conceitos que nada tem a ver com a religião, tais como: “produto”,
“troca”, “mercado”, “público”, “macro-ambiente”, “metas”, “segmentação”, “mensuração”,
“demanda”, “ciclo de vida de produtos”, “canais de distribuição”, “promoção”, e outros mais.

George Barna (1994:14,18,23), especialista em marketing aplicado à religião, registrou em seu


livro “Marketing the church” que o marketing é um instrumento muito importante para o
crescimento da Igreja, motivo pelo qual os religiosos devem abandonar aquele espírito de
aversão e de objeções ao seu uso. Entretanto, a adoção dessa ferramenta de trabalho esbarra
naqueles que afirmam o seguinte: "O marketing não parece ser uma prática bíblica; é uma
atividade mundana, [pois] somos chamados para estar no mundo sem ser do mundo, [e] o
marketing ultrapassa esses limites." Para Barna, o principal problema que afeta as Igrejas
protestantes dos Estados Unidos é o "fato de não adotar um apoio de marketing - num meio que

111
As contribuições de Philip Kotler à área de marketing religioso se deram através da análise das “organizações
não-lucrativas”, conceito cunhado para especificar organizações que se diferenciam das empresas comerciais,
porque não fazem da busca do lucro monetário o seu objetivo básico e fundamental. Para Kotler (1988:28),
mesmo que uma igreja não vise lucro, ela é uma organização que reúne pessoas, materiais e instalações, e procura
atingir algum propósito em suas relações com a sociedade. Ela precisa, para atingir suas metas, de recursos, de
convertê-los em produtos, idéias e serviços, para finalmente transferir esses produtos aos seus clientes-
consumidores. Em uma entrevista dada em 1990 para Peter Drucker (1995:55-71), Kotler enfatiza que há
“vendas” quando a preocupação da organização se inicia no produto a ser “empurrado” para o mercado, e,
“marketing” quando o ponto de partida são os clientes, consumidores ou grupos aos quais se deseja atender bem.
Segundo ele todas as organizações estão “nadando em um mar de públicos”, o que exige o emprego de “estímulos
diferentes para pessoas diferentes”, de segmentação, determinação de alvos e posicionamento diferenciados para
cada nicho. Kotler terminou sua entrevista afirmando que “marketing é uma maneira de harmonizar as
necessidades e desejos do mundo exterior com as finalidades, os recursos e os objetivos da instituição” (p.62).

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se tornou apoiado por ele". Essa má-vontade com relação ao marketing faz com que o futuro
líder, o pastor, passe pelo treinamento no seminário teológico sem perceber que, "ao assumir a
direção de uma igreja, está sendo chamado a dirigir um negócio (...) e o negócio ao qual a igreja
se dedica é o ministério."

Essa nova tendência confirma a hipótese lançada por Peter Berger (1963,1967), já nos anos 60,
de que as organizações religiosas, num contexto competitivo, precisam produzir resultados,
provocando assim o surgimento de uma racionalização de estruturas e procedimentos. Na anterior
situação de monopólio, não se cobravam resultados das organizações religiosas. Agora, a
interação com outras organizações, similares ou não, coloca a questão da sobrevivência, que vai
exigir dos quadros dirigentes um treinamento para o desempenho de funções nas quais se espera
haver domínio de técnicas como "planejamento", "logística", "estratégia", "direção", "controle" e
outras mais. Tais atuações deverão se caracterizar por um ativismo calculista, pragmatista e
dinâmico, que inclui lutar para atingir as metas e, muita habilidade em se relacionar com o
público interno e externo.

Essa mentalidade calculista impulsionou alguns responsáveis pelas organizações religiosas a


buscarem, no universo do marketing, princípios, técnicas e estratégias, que os ajudassem a
melhorar a performance de suas organizações, no ranking do mercado religioso. É claro que essa
descoberta se deu, tanto por meio de uma opção consciente e calculista de uma assessoria como
também através de processos intuitivos.112 Todavia, a abordagem das organizações religiosas, da
perspectiva empresarial, se tornou uma hipótese de trabalho somente na segunda metade dos
anos 60, dentro das discussões sobre as relações da religião com uma sociedade em processo de
secularização.

Um ponto importante nessa discussão foi o lançamento, em 1967, por Peter Berger, do texto The
sacred canopy: elements of a sociological theory of religion, livro no qual ele analisou as
implicações da transformação das instituições religiosas em “agências de mercado” e, as
tradições religiosas, em “mercadorias para o consumidor”.113 Esse, e outros textos liberaram a
“imaginação sociológica”, e estimularem a aplicação da metáfora do mercado na abordagem dos
fenômenos religiosos. Rapidamente, a sugestão se tornou hipótese de trabalho para vários

112
Nos casos que analisamos, percebemos apenas na Igreja Renascer em Cristo, a presença de uma estratégia
calculista no uso do marketing. Possivelmente, tanto a Igreja Universal do Reino de Deus como a Igreja
Pentecostal "Deus é Amor", tenham chegado a técnicas mais ou menos elaboradas de marketing, através de uma
prática baseada muito mais na intuição de uma liderança obcecada pelo crescimento a qualquer preço e do “ensaio
e erro” do que de uma teoria, calculadamente implantada. Já o mesmo não ocorre com a Igreja Renascer em
Cristo, cujo fundador, Estevan Hernandes Filho, foi gerente de marketing de grandes empresas de computadores,
uma delas multinacional, e tem feito palestras e produziu um texto sobre “o marketing na Igreja” (s/d.). Fitas de
vídeo com suas palestras percorrem igrejas, são apresentadas e discutidas por pastores e lideranças interessadas
em estratégias de “crescimento de igrejas”.
113
“The sacred canopy...” foi publicado em português somente 18 anos após a primeira edição em inglês. Quanto à
expressão “comodidades de consumo”, usada pelo tradutor de língua portuguesa (1985:149), não nos pareceu
adequada, visto que Berger (1969:138) assim escreve no original o período todo: “The pluralistic situation is,
above all, a market situation. In it, the religious institutions become marketing agencies and the religious
institutions become consumer commodities. And at any rate dominated by the logic of market economics.”
Preferimos a tradução espanhola (Berger,1974:169) que registrou: “La situacion pluralista es, sobre todo, una
situacion de mercado. En ella, las instituciones religiosas se convierten en agencias comerciales y las tradiciones
religiosas en mercanderias para el consumidor. En todo caso, gran parte de la actividade religiosa, en esta
situacion, es dominada por la logica de la economia de mercado.”

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pesquisadores, que tomaram emprestado da linguagem econômica, suas categorias e


pressupostos. Contudo, Danièle Hervieu-Léger (1993:239) elaborou uma pesada crítica ao
reducionismo de vários desses autores, que teriam, segundo ela, introduzido “uma espécie de
esquema mecanicamente utilitarista, que empresta às instituições religiosas as categorias
explícitas de marketing simbólico”, especialmente ao aplicarem a idéia das “escolhas racionais”,
na questão da piedade pessoal.

A análise de Berger (1985:149,150), parte da questão do pluralismo e da oportunidade de


múltiplas escolhas religiosas. Pois para ele, a sociedade norte-americana está marcada pela
existência de inúmeras visões de mundo, que concorrem para atrair seguidores. O pluralismo
teria forçado as organizações religiosas a abandonarem a cômoda situação de monopólio, na qual
a submissão das pessoas era automática e voluntária, para se transformarem em entidades
competitivas, o que caracteriza a situação de mercado. Agora, a lealdade e os compromissos
individuais são resultantes de um processo de "compra" ou de uma cooptação, que beira o
aliciamento e a sedução de um “consumidor” diante de um “produto”. O predomínio dessa nova
mentalidade mostra que "grande parte da atividade religiosa nessa situação” foi capturada e
“dominada pela lógica da economia de mercado”, trazendo para a estrutura dos diversos grupos
religiosos conseqüências profundas, tanto em seu aspecto interno como em suas relações inter-
institucionais.

No Brasil, essa pista foi inicialmente explorada por Duglas Teixeira Monteiro (1979:83), quando
ele mostra que as novas seitas pentecostais, instituições umbandistas e católicas, se tornaram
“agências de serviço” e que "não raramente empregam técnicas semelhantes para atender aos
seus usuários", colocando em prática procedimentos baseados em "modelos quase empresariais
de atuação e diferenciando-se antes pelos rótulos e embalagens do que pelos “produtos”, que
oferecem". Na conclusão, Monteiro (p.106) observa que a prática dessas “agências de serviço” se
constitui dentro de
“uma situação de mercado, que tem em germe todos os problemas de 'marketing' que lhe
são peculiares, tais como a necessidade de atender às exigências variáveis do consumidor,
garantindo, ao mesmo tempo, aquela diferença marginal que distingue o produto, mas
isso sem prejuízo para a padronização imposta por uma ação racional.”
Comentando tais propostas, Rubem Alves (1979:115,117), perguntou com uma ironia de teólogo
e filósofo: "A cura divina, na medida em que é distribuída de forma empresarial, pode ser
classificada como fenômeno religioso? Onde é que a ênfase deve recair? No divino ou na
empresa?" Mais adiante, ele sugere que esse fenômeno deve ser compreendido, segundo o
modelo econômico e não religioso, admitindo que "também os valores espirituais podem ser
produzidos e distribuídos segundo a lógica dos valores de troca", e que "a cura divina se nos
apresenta, assim, como um produto natural da sociedade racional, empresarial, capitalista: uma
revelação da profunda irracionalidade incrustada em sua racionalidade operacional".

A teoria de Pierre Bourdieu (1982), sobre o “mercado dos bens simbólicos” e a de Otto Maduro
(1981), sobre as relações entre religião e classes sociais, nos auxiliou na abordagem da religião
neopentecostal, do ponto de vista do “campo religioso” como um espaço de conflito entre
produtores e consumidores de bens simbólicos. A teoria “bourdiana” estabelece três instâncias: a

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dos produtores ou fornecedores, a dos bens simbólicos produzidos ou dos “produtos”, e a dos
consumidores desses bens. Bourdieu ressalta serem os campos espaços sociais, onde ocorrem
lutas entre coletividades, agentes e instâncias, assim como a elaboração de estratégias individuais
de acumulação de capital simbólico, usados nos processos de troca. Segundo essa perspectiva, a
procura, produção e consumo de bens simbólicos devem ser vistos à luz do conflito, elemento
chave para se entenderem as relações entre agentes religiosos clericais e leigos, na disputa pelo
controle dos meios de produção e distribuição desses bens.

5.3 O marketing na expansão do cristianismo

Antes de aplicarmos essa visão ao neopentecostalismo iremos responder às seguintes perguntas:


Que tipo de leitura da história do cristianismo e do pentecostalismo podemos construir, a partir
de uma visão “marketizante”? Podemos aplicar essa perspectiva a outros momentos históricos
como foi o contexto pluralista do mundo greco-romano? A ênfase no crescimento, comunicação
e propaganda, em diversos momentos dessa história, principalmente nos de maior expansão, faz
dessa releitura uma reconstrução útil para um melhor entendimento do neopentecostalismo
praticado pela Igreja Universal?

O crescimento da Igreja primitiva


A mentalidade de marketing, predominante numa sociedade dominada pela hegemonia do
mercado, oferece subsídios para explicar a expansão do cristianismo, desde os primeiros séculos
de sua história? Foi a explosão cristã inicial uma bem-sucedida “campanha de propaganda”?
Essa pergunta perde o aparente ar insólito para quem aceita o paradigma “marketizante”. Porém,
uma análise do imperativo de Jesus para que seus discípulos “fossem, pregassem e fizessem
discípulos em todas as nações” e o ardor dos primeiros seguidores em cumpri-lo, explicam só
parcialmente o motivo principal pelo qual uma obscura seita judaica se tornou a “religião oficial
do Império Romano”, somente três séculos após o seu surgimento. É claro que houve inúmeras
causas socio-culturais que contribuíram para tamanho sucesso.

Há autores que estão reescrevendo a história do cristianismo, do ponto de vista do marketing.


Um deles, já citado anteriormente, George Barna (1994:30,33) afirmou: “Muitos atos de Jesus e
de seus discípulos representam verdadeiras lições de marketing”, pois ele era um “especialista
em comunicação (...) identificava seu público-alvo, definia as necessidades do mesmo e
apresentava a sua mensagem diretamente a esse público (...)” Para ele, Jesus foi um líder
incansável, que “trabalhou longa e duramente para transformar um bando heterogêneo de homens
da classe trabalhadora num sistema de distribuição capaz e bem informado”. Com o passar do
tempo, “seus homens abriram ‘escritórios de representações’ [igrejas locais] para poderem
distribuir mais ainda o seu artigo”.

É claro que esse assunto, se analisado dessa perspectiva, permite que se enxergue um projeto de
marketing e de publicidade, mesmo elementar, nas práticas cristãs primitivas. Afinal de contas,
aqueles cristãos usaram para expandir a fé, pregações, milagres, catequeses, conceitos helenistas,
e uma rede de comunicação, baseados em símbolos de grande poder de mobilização, gerando

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valores novos e intensas emoções nas massas até então, seguidoras de outras formas de
religiosidade. Evidentemente, havia necessidades e lacunas não-preenchidas ou atendidas pelas
religiões pagãs. Além do mais, desde Alexandre e de seu projeto de expansão da cultura grega,
da imposição da pax romana por César, segundo Klaus Wengst (1983), milhões de pessoas sem
raízes ou com problemas de identidade se encontravam à margem dos sistemas culturais, para os
quais uma mensagem devidamente aclimatada ajudaria na superação das rupturas, ansiedades e
crescente perda de identidade.

Essa visão sociológica das “origens cristãs”, desenvolvida entre outros autores por H.C.Kee
(1983), cria condições para explicar o surpreendente crescimento da fé cristã, tanto entre pobres e
escravos, como nas mais altas camadas do Império Romano, através de critérios econômicos,
culturais e sociológicos. Por outro lado, como analisa Max Pagés et alii (1987:75-140), as nossas
organizações hipermodernas desenvolveram formas de recrutamento e treinamento de seus
empregados, que se assemelham muito às maneiras usadas pelos antigos cristãos para ganhar e
formar novos adeptos.

Na expansão do cristianismo, poderosos mecanismos socializadores se conjugaram, cooptaram


pessoas, dirigiram suas ações e as levaram a um grau de comprometimento tão grande, que
milhares delas, até se deixaram martirizar pela nova fé. Nesse processo de formação, foram
empregados tanto a retórica como símbolos, amplamente conhecidos de seus receptores, aos
quais se deram novos significados. Entre eles estava a cruz, que de instrumento de tortura e
morte, se tornou expressão da vitória de Jesus sobre seus inimigos; o peixe, o pão, o vinho, o
cordeiro e tantos outros mais; até mesmo a liturgia dramatizava, domingo após domingo, o ato
primordial da nova fé - a morte, ressurreição e glorificação de Jesus de Nazaré.

Contribuiu também para tal crescimento a adoção de uma organização simples e prática, com a
atribuição de tarefas entre os primeiros seguidores de Jesus de Nazaré, em um clima de pouca
ostentação. Porém, com o surgimento de cargos e funções, iniciava-se o processo de
institucionalização, que no princípio, ainda estava sob o controle do movimento. Todavia, com o
passar do tempo, esse processo acabou sendo presa fácil de uma lógica organizadora de origem
imperial, que ajudou a Igreja a assimilar traços administrativos do Império Romano, herança
ainda persistente na Igreja Católica, caracterizada por Leonardo Boff (1981:58ss), em um texto
polêmico, como um dos principais obstáculos para a adoção por parte da Igreja, de uma prática
libertadora.

A pregação dos primeiros cristãos girava ao redor de um único ponto central - Jesus - e foi dessa
centralidade, que nasceram os primeiros slogans e palavras de ordem, facilmente memorizáveis
pelo povo: “Jesus é Senhor”, “Jesus é Salvador”, “Jesus Cristo é Deus”. Interessante estratégia
foi tentada por Saulo de Tarso, que convertido se tornou o “apóstolo dos gentios”, quando de sua
visita em Atenas para pregar aos gregos a mensagem cristã. Paulo no Areópago (Atos 17.15-34),
se correta a descrição lucana, fez um discurso incorporando argumentos geográfico-sociais como
a existência de um altar a inúmeros deuses, entre eles, “ao deus desconhecido”, do qual Paulo se
apresentou como embaixador. Ele mesmo dizia ter-se tornado grego para ganhar os gregos e
judeu para converter judeus (1ª Coríntios 9.22). Ninguém foi mais responsável que Paulo, pela
divulgação da mensagem cristã no mundo greco-romano. Todavia, ele também apresentou

200
201

posturas anti-marketizantes ao afirmar que a mensagem cristã era “escândalo para os judeus” e
“loucura para os gregos”( 1ª Coríntios 1.10-25).

No decorrer do século seguinte, devido aos conflitos com gnósticos e montanistas, textos
didáticos foram empregados para manter a reprodução da fé dentro dos cânones aprovados pelas
primeiras autoridades, episcopalmente institucionalizadas. Como resultado, desses esforços
surgiram os evangelhos e as expressões teóricas da fé, entre outros, o simples, antigo e eficiente
“Credo dos Apóstolos”, e mais adiante, inúmeras obras dos apologistas, os “pais da Igreja”. Não
se pode descartar o sincretismo resultante do uso pelos cristãos de fórmulas, símbolos, mitos e
experiências da religiosidade pagã daqueles primeiros séculos, que serviram de eficazes veículos
para a comunicação e aceitação dos “produtos” cristãos, gerando também uma vasta quantidade
de seitas gnósticas.

Porém, como toda reconstrução histórica, a “marketização” da história cristã também corre o
risco de ser apenas mais uma interpretação ex pos-facto. Pensamos, contudo, que uma
reconstrução histórica “marketizante” é útil para estudar as raízes do fervor pentecostal que
encontrou, neste final de milênio, instrumentos para a sua acomodação na sociedade de massa,
empregando justamente o exemplo dos “cristãos primitivos”. Mesmo assim, corre-se com tal
perspectiva o risco de reducionismo, cuja simplificação não permite a contemplação da dimensão
global de um complicado processo de aculturação de uma religião, no caso, o cristianismo, em
novos contextos sociais. Isoladamente, essa visão “marketeira” não permite que se percebam os
mecanismos sociais presentes por trás da difusão de um novo sistema de crenças, no caso o
neopentecostalismo, e de sua adoção por povos de culturas diferentes.

Marketing e cristianismo moderno


No cristianismo, as atividades acima mencionadas só receberam oficialmente o seu verdadeiro
nome, propaganda religiosa, em 1633, quando o Papa Urbano VIII criou a Congregatio de
Propaganda Fide, justamente numa época em que a Igreja começava a perder quinze séculos de
monopólio sobre a produção e distribuição dos bens religiosos com a griffe cristã. Os grupos
protestantes e reformados estavam solidamente estabelecidos na Europa e em certas partes da
América. Desde 1517, empregavam a imprensa, a música e a liturgia para disseminar a sua
mensagem. Assim, a despeito do culto despojado de luzes, imagens, sons, coreografia, ícones e
vestes sacerdotais, o protestantismo cresceu, fazendo do púlpito seu principal centro de
catequese.

Essa capacidade de rápida apropriação de condições propícias para o crescimento da Igreja é


mais facilmente percebida nos relatos históricos dos grandes reavivamentos religiosos, ocorridos
no protestantismo anglo-americano. Em um deles, na Inglaterra, John Wesley, no Século XVIII,
quebrava as barreiras existentes entre o povo simples e os clérigos, iniciando assim práticas, que
caracterizaram os metodistas daquele período, tais como pregar em minas de carvão, ao ar livre,
sobre caixotes em feiras e mercados e, até mesmo, sobre túmulos em cemitérios. Os pregadores
metodistas procuravam as pessoas, onde elas estivessem, e lhes pregavam de uma forma que elas
os compreendessem. O objetivo era atingir as multidões em suas necessidades morais e
espirituais. Mecanismo semelhante fez os metodistas apoiarem a educação moral e religiosa,
oferecidas às crianças de rua, empregando-se para isso os templos vazios, estimulando-se o

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202

crescimento da Escola Dominical, tornada desde então, na mais tradicional instituição


pedagógica protestante.

Essas e outras práticas fizeram com que os metodistas fossem os primeiros a tentarem adequar o
protestantismo às necessidades de uma massa urbana, que vivia sob o impacto inicial da
revolução industrial inglesa, e de intensos processos de mobilidade geográfica, em direção às
colônias inglêsas da América do Norte. Essa tentativa foi tão séria, que os pregadores itinerantes
do metodismo, através das fronteiras de penetração nos territórios indígenas norte-americanos,
mesmo sem escolaridade, saíram repetindo o refrão wesleyano: “O mundo é a minha paróquia”.
Tal disposição permitia o atendimento, naquele contexto colonial, das necessidades religiosas
surgidas da expansão de pioneiros que, desconectados dos centros urbanos, se sentiam distantes e
abandonados pelas organizações religiosas tradicionais. Havia, portanto, uma grande demanda
por práticas religiosas, impossíveis de serem atendidas pelas denominações institucionalizadas,
em função de novos desafios. Esse é o contexto da análise clássica empreendida por H.R.Niebuhr
(1992), sobre o denominacionalismo norte-americano.

Marketing e pentecostalismo
A história dos Estados Unidos, conforme Sydney E. Ahlstrom (1973), ofereceu um terreno fértil
para o surgimento de várias práticas religiosas que iriam desembocar no pentecostalismo. As
raízes históricas e teológicas (Donald Dayton, 1991) do pentecostalismo precisam ser buscadas
nesse quadro de rápidas transformações sociais e de expansão geopolítica, associadas ao
estabelecimento da civilização inglesa, no território americano. Religiosamente, esse foi um
período histórico de muita tensão entre as principais denominações ali estabelecidas e os novos
movimentos religiosos mais sintonizados com as necessidades populares, que atribuíam ao
divino, a origem de um poder e legitimidade, perfeitamente explicáveis sociologicamente.

Dessa forma, o número de adeptos, o sucesso, a capacidade de persuadir, seduzir e de mobilizar


as massas tornaram-se o critério último de julgamento deste ou daquele movimento religioso. De
acordo com análises de Herbert Aptheker (1967), emergiu naquela época um padrão utilitarista
de julgamento, acompanhado de poucas preocupações com os aspectos teóricos da fé, e menos
ainda com as questões teológico-doutrinárias. Nesse contexto, o fiel desligado das grandes
denominações religiosas, foi-se tornando o juiz supremo, tanto da “ortodoxia” como da
“ortopráxis” da religião cristã.

Algumas características dessa religiosidade prática e sensitiva se fortaleceram com os


movimentos avivalistas do século XIX. Por exemplo, Dwight Moody (1837-99), em 1860, se
tornou um pregador avivalista, renunciou a um próspero negócio no mercado de sapatos,
centralizando as suas atividades propagandísticas da fé, na Associação Cristã de Moços. A sua
fama cresceu após 1872, quando, na cidade de Londres, centenas de milhares de pessoas foram
ouvi-lo, numa série de pregações. Sua mensagem era simples, uma mistura de otimismo
americano com arminianismo, de cunho dócil, emocional e leve, que iria se tornar uma
característica do protestantismo americano posterior, conforme nos mostra Harold Bloom (1994).
Porém, Moody representava a passagem do avivalismo rural para um estilo urbano, o que ficou
bem claro no emprego de sua experiência comercial no planejamento das campanhas, e na

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203

adoção de novas técnicas de propaganda, tais como cartazes fixados nas ruas, aluguel de
bancos,114 que nos templos estavam reservados para os grandes benfeitores da comunidade,
anúncio em jornais, apresentação de corais com até mil vozes. Para dar conta de toda essa
enorme infra-estrutura, Moody nomeava pessoas para os comitês de planejamento financeiro,
cuja missão era preparar antecipadamente, em uma cidade, suas futuras campanhas.

Em 1896, um outro avivalista pré-pentecostal, Billy Sunday, iniciou suas pregações e, apesar da
falta de preparo teológico e postura anti-intelectualista, foi ordenado pastor presbiteriano, em
1903. Sunday tornou-se o maior pregador americano, até o ano de sua morte, em 1935. Vestia-se
luxuosamente, seus gestos eram teatrais, e chegava até a fazer proezas físicas no púlpito, tirando
parcialmente a roupa, no meio de uma torrente de palavras.115 Em 1900, em dez semanas de
campanha, ele atraiu em New York quase um milhão e meio de pessoas. Chegou a usar um certo
tipo de música, próxima do ritmo de jazz, nos momentos de cânticos. De acordo com registro de
Richard Hofstadter (1967), sua linguagem era popularesca, antecedendo um estilo que, meio
século depois, iria consagrar alguns “pregadores eletrônicos”, também muitos deles homens
simples, de personalidade rude e de escrúpulos duvidosos, que afetariam a reputação de
“seriedade” acumulada por muitos avivalistas norte-americanos.

No início do movimento pentecostal, usou-se com muita intensidade, como veremos em outro
capítulo, a publicação de jornais e revistas, que se tornaram elementos fundamentais na
disseminação rápida do pentecostalismo através de todo o mundo, num curto espaço de tempo.
Estimulou também o crescimento do pentecostalismo, a realização de inúmeros Pentecostal
Camp Meeting116 e as dezenas de milhares de campanhas de reavivamento espiritual realizadas
nos Estados Unidos, entre 1912-18, usando-se para isso tendas de lona, nas quais se abrigavam
milhares de pessoas, que de outra forma, dificilmente entrariam nos templos.

Logo a seguir, o emprego do rádio em escala comercial, nos anos 20, abriu novos espaços para a
divulgação da mensagem pentecostal. O emprego desse novo meio de comunicação, por
lideranças pentecostais, recebeu da pregadora pentecostal, Aimee Semple McPherson (1890-
1944), um notável estímulo. McPherson sabia empregar a mídia para divulgar o seu nome e
mensagem, e houve até episódios obscuros de sua vida, como um suposto rapto, que conseguiu
mantê-la no noticiário durante meses, nos anos 30, nos Estados Unidos, conforme S.M.Burgess e
Gary B.McGee (1995:568-571).

Todavia, o gosto pelos gestos e pelas campanhas espetaculares seria desenvolvido somente a
partir dos anos 50 pelos pregadores eletrônicos, tais como Oral Roberts, pioneiro do uso do rádio
e da Healing Waters, água para curar enfermos; M.G. (Pat) Robertson, radialista, político e
fundador da Christian Broadcasting Network, CBN; e, na televisão, James O. (Jim) Bakker, sua
esposa, Tammy Faye, Jerry Falwell, Jimmy Swaggart e tantos outros. Com alguns deles, o
114
Tratava-se de um hábito norte-americano de se manter nos templos bancos exclusivos, comprados pelas pessoas
ricas, e interditados para o uso público.
115
Possivelmente, Amime Semple McPherson, fundadora da Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular, nos
anos 20, que chegava a se lançar no palco amarrada por cordas invisíveis e luxuosamente vestida, em meio a
intensos efeitos luminosos tenha nele se inspirado e dado continuidade ao teatralismo de Bill Sunday.
116
Encontros de renovação espiritual realizados em zonas rurais, em uma espécie de acampamento improvisado,
para os quais afluíam durante vários dias, milhares de pessoas da redondeza do evento.

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pentecostalismo clássico, desde o final dos anos 40, passou a sofrer mutações, que na falta de um
outro nome se tornou conhecido como “movimento de cura divina”, do qual emergiria, nos anos
60, o neopentecostalismo, um estilo religioso mais adequado aos novos meios de comunicação
de massa.

Nesse período, houve uma explosão de movimentos e instituições, cresceu cada vez mais o
pluralismo e a necessidade de se levar em consideração, na pregação e planejamento da expansão
das igrejas, o gosto e as exigências do público. Lançam-se raízes do que temos chamado de
mentalidade de marketing, que se faz presente de um modo privilegiado, no neopentecostalismo,
em especial, no que é praticado pela Igreja Universal, como iremos analisar a seguir.

5.4 O marketing da Igreja Universal

A origem e expansão da Igreja Universal ocorre num momento singular da história do


comportamento religioso do Ocidente, em que se deixa de lado a ênfase no “produto religioso”
acabado, burilado pela tradição, referendado institucionalmente, como dogmas, ritos e teologias
para uma centralização nas necessidades do “consumidor”, aqui entendido como um leigo pouco
ou altamente envolvido com as atividades religiosas. Como pudemos notar, essa movimentação,
que resultou no surgimento do neopentecostalismo, vem de longa data, e se cristalizou, não
somente na forma de denominações religiosas como também, se instalou no interior de antigas
igrejas, denominações e seitas, provocando tensões, adaptações e processos díspares de
institucionalização.

Por detrás do movimento neopentecostal iurdiano, como de outros também, há a tendência de se


construírem mecanismos garantidores da expansão e sobrevivência institucional, que se
expressam na necessidade de satisfazer os desejos e exigências do público-alvo. Esse conjunto de
estratégias levou a Igreja Universal a se distanciar rapidamente daqueles pequenos
empreendimentos, na verdade movimentos de “artesanato religioso”, que vicejavam no mesmo
solo fértil dos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro, no final dos anos 70. Talvez, o seu
dinamismo se deva, entre outros motivos, à descoberta das necessidades de certas camadas
sociais, da adaptação dos “produtos”, do despertar de um potencial de crença até então
“adormecido”, da reavaliação constante das relações com os vários nichos atraídos e organizados
por seu discurso e práticas.

A Igreja Universal colocou em prática uma forma de mediação, que impede a perda do contato
direto entre o pregador e seus ouvintes. Tal distanciamento, às vezes, é causado pelo surgimento
de uma burocracia religiosa, que se preocupa mais com a reprodução e continuidade de seus
próprios privilégios, do que com a satisfação das necessidades dos seguidores. Assim, os pastores
iurdianos conseguem se manter próximos dos seus seguidores, antecipar atitudes e mudanças de
percepção, gosto e necessidades, antes mesmo que ocorram.

Para exemplificar essa busca de sintonia, citemos dois exemplos. No decorrer das programações
especificamente religiosas da Televisão Record, o pastor-âncora é auxiliado por diversas
telefonistas, que anotam “pedidos de orações” tais como: “Maria, balconista, de Recife, pede

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oração por suas filhas, que estão começando a se prostituir e pelo marido, que é alcoólatra, e está
desempregado”. Um outro exemplo, de como os pastores sondam as necessidades de seu público,
pode ser percebido na estratégia de se colocar nos templos ou em frente deles, na calçada, mesas
nas quais os seus obreiros colocam à disposição dos que passam, o “livro de orações”. Nele, as
pessoas anotam o seu nome e motivos pelos quais estão solicitando as preces do “homem de
Deus”. Assim, num corpo a corpo com as “forças do mal”, o pastor vai mapeando as
necessidades de seu público, redirecionando automaticamente o seu discurso, em direção às
demandas ainda não formuladas claramente.

Por isso, essa Igreja conseguiu, mais do que outros movimentos congêneres, padronizar bens
religiosos adequados a cada segmento, e transformar as pessoas em participantes do processo de
produção, ou em uma espécie de sócios de um empreendimento que lhes oferece rendimentos
simbólicos, enquanto a Igreja se capitaliza monetariamente para novos investimentos na própria
expansão. Dessa forma, ela não apenas produz bens religiosos em massa, mas também passa aos
seus fiéis uma sensação de participação na produção dos bens desejados. Justamente essa
participação relativa no processo produtivo é que permitiu o estabelecimento de uma
diferenciação entre os “produtos” ofertados pela Igreja Universal e os demais concorrentes e, ao
mesmo tempo, controlar o processo de feitura de novos bens.

Enquanto isso ocorre, os concorrentes tradicionais insistem em produzir primeiro, para depois
fazer propaganda, vender idéias, símbolos e bens já prontos, alguns deles estocados desde há
muito tempo. Por isso, insistimos em que a propaganda é, para a Igreja Universal, o elemento
fundamental no processo de expansão, até porque, por meio dela é que se cria e alimenta o
mercado. Daí o porquê da afirmação que, sem rádio e televisão, a Igreja Universal jamais teria
atingido o sucesso atual, e nem teria se mantido na vanguarda do crescimento neopentecostal no
País. A mídia faz com que as barreiras geográficas, sociais e ideológicas, sejam rompidas e os
“produtos” iurdianos sejam colocados para um público necessitado, que lhe paga o preço pedido,
porque se trata de alcançar a felicidade, o bem estar físico e espiritual. Para eles, esses “bens” são
tão “preciosos”, que “não há dinheiro que os pague”, como nos disse um de seus fiéis.

Os “produtos”
Numa análise das estratégias de marketing, geralmente se valorizam os famosos quatro “Ps”:
“produto”, “ponto de vendas”, “promoção” e “preço”. Porém, a aplicação desse referencial ao
marketing das organizações não-lucrativas, especialmente as religiosas, exige uma inevitável
adaptação dessas ferramentas de trabalho, oriundas do marketing empresarial, cujo objetivo é o
lucro monetário. Kotler (1980:224), considera que produto é “qualquer coisa, que pode ser
oferecida a um mercado para satisfazer uma necessidade”, e nele inclui: “objetos físicos,
serviços, personalidades, lugares, organizações e idéias”. Nas organizações religiosas, esses
“produtos” são chamados de “ministérios”, “programas”, “serviços”, “trabalhos”, “cultos” e se
expressam em hinos, sermões, liturgias, jingles, spots, relatos de milagres, orações, enfim, tudo
aquilo que pode ser distribuído num templo, ou por intermédio de um veículo de comunicação de
massa, quando usado pela igreja.
Mas, o que alguém procura quando se dirige a um templo da Igreja Universal? Seria um produto
ou a satisfação de desejos e necessidades? Geralmente, as pessoas procuram um benefício, que

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segundo Marcos Cobra (1993:182), é tudo aquilo “que as pessoas querem que ele seja.” Essa
ênfase nos desejos do consumidor abre caminho para percebermos algumas características
importantes do produto “vendido” pela religião a sua “clientela”. Theodore A. Levitt
(1988:91;1981:49-54), criou algumas categorias para classificar os “produtos”, colocando em
primeiro lugar os produtos genéricos formados pelo principal benefício esperado pelo
consumidor, que neste caso são as “bênçãos de Deus”. Em segundo lugar, Levitt colocou que o
produto genérico é desdobrado em produtos específicos ou esperados, neste caso são as “curas”,
“prosperidade”, “sucesso”, “comunidades de apoio”, bens obtidos segundo a crença iurdiana,
graças à freqüência ao templo e ao pagamento das promessas e sacrifícios, isto é, as
contribuições financeiras.

Uma terceira categoria empregada por Levitt é a do produto ampliado, formado por meio do
acréscimo de vantagens adicionais agregadas ao produto genérico. Na Igreja Universal se agrega
à cura do corpo o cuidado com a estética, a aquisição de melhores posturas, a eliminação de
vícios, o consumo de “produtos” apropriados para a beleza e desenvolvimento corporal, viagens
e excursões; à prosperidade, um emprego que proporcione melhores salários, de preferência na
condição de chefe ou de micro-empresário, assim por diante.

Há, por isso mesmo, o produto potencial, isto é, aquele produto que extrapolou as finalidades
originais e encontrou outras utilidades. A oferta, nos cultos iurdianos, de alguns símbolos
universais como água, pão, vinho, azeite ou óleo, empregados ora para provocar cura, exorcismo,
prosperidade material ou afastamento de demônios, são exemplos do que acabamos de afirmar.
Em todos esses “produtos” encontramos a presença de um referencial fixo, que permeia toda a
pregação da Igreja, e expressa uma temática básica, que subsiste sob todas as formas de
publicidade. Portanto, cada produto iurdiano, embora faça parte de uma “família de “produtos”,
é uma espécie de iceberg que aponta para uma visão de mundo, consubstanciada num grupo de
idéias centradas ao redor da expressão “Cristo salva, cura e faz prosperar os que o aceitam na
Igreja Universal do Reino de Deus”. O produto básico é uma idéia operacionalizada por
intermédio do despertar da fé, fato possível de acontecer, principalmente nos templos, onde
todos os ritos ofertados objetivam ativar nos indivíduos, sentimentos já presentes, porém nem
sempre capazes de gerar atitudes e comportamentos, tais como otimismo, esperança, certeza de
solução para todos os problemas, pensamento positivo e a disposição de lutar e vencer.

A rigor, no universo de discurso da Igreja Universal não há “produtos” novos e sim formas
diferenciadas de “manufaturar” e expor antigos “produtos”, cuja distribuição não é monopólio
desta ou daquela Igreja ou agência religiosa. Essa grande linha de “produtos” liga práticas
mágicas e comuns na religiosidade popular a “produtos” típicos da pós-modernidade, que
enfatizam o bem-estar psicológico e social dos indivíduos. A diferença está na habilidade da
propaganda em combinar o “velho” com o “novo”, permitindo a construção de pontos de ligação
da magia e religião, do pentecostalismo com as antigas formas de religiosidade cristã ou não-
cristãs, ainda vivas na América Latina.

Obviamente, tais mecanismos forçam o aparecimento de novas posturas por parte daqueles
intermediários religiosos, ainda voltados para o produto, ou apenas centrados no esforço de
venda. O pregador iurdiano, embora se posicione ao lado do produto, é instruído a se orientar

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pelo mercado, e a fazer ponte entre o bem ofertado e as necessidades concretas e mutantes dos
fiéis, diante dos quais ele se apresenta como o “homem de Deus”. Como intermediário
“legítimo”, de forma ousada ele pede, exige e roga de Deus o cumprimento das “promessas
feitas”, defendendo os interesses dos seguidores, que participam do “pacto” por meio dos
“sacrifícios”.

Ao exercer a função de pastor do templo local, o pastor iurdiano cria um clima propício, no qual
o “produto” inicialmente planejado pelos bispos, coordenado por Edir Macedo, recebe o
acabamento final, primeiro por meio da condução do espetáculo de fé, depois, no interior de cada
fiel, em quem se fundem as características do produto com suas necessidades interiores. O
templo, por isso mesmo, não é somente o local de ritos isolados de produção, mas o locus do
“acabamento” dado ao produto, isto é, de sua adaptação e distribuição aos “consumidores”
devidamente segmentados.

As necessidades e desejos
Não há estratégias de marketing sem o reconhecimento da sazonalidade e mutabilidade histórica
das carências humanas, assim como de um esforço para uma melhor adequação dos bens e
“produtos” às necessidades do público-alvo, e a aceitação de que é possível interferir nos
processos de busca de soluções para determinadas demandas. Mas, o que é necessidade? Usa-se
geralmente este termo para designar tudo aquilo, que é tido como fundamental para o bem-estar
de um ser humano. A privação de um desses elementos causa desequilíbrios e tensões,
provocando medidas destinadas a superá-las. O ser humano, porque vive em sociedade, em
processo de interação simbólica com seus semelhantes, possui além das necessidades instintivas,
outras tantas de ordem psicossocial, geradas culturalmente.

Essas necessidades foram analisadas e hierarquizadas por vários estudiosos, entre eles Abraham
Maslow. Suas sugestões são didaticamente apresentadas na forma de uma pirâmide, em cuja base
estão as “necessidades fisiológicas”, ligadas à fome, sono, sexo e sensações de frio. Logo acima
estão as “necessidades de segurança”, representadas pela fuga das agressões físicas ambientais e
da dor, seguidas pelas “necessidades afetivas”, como as exigências de fazer parte de um grupo,
no qual se podem compartilhar experiências diversas. Além delas, o ser humano possui
“necessidades de estima e de reconhecimento”, que o leva a querer se destacar no grupo,
conquistar respeito e admiração dos demais. A pirâmide se completa com as “necessidades de
auto-realização”, expressas na satisfação por ter conseguido sucesso em fazer o que gosta e lhe
dá prazer.

Há outras maneiras de classificarmos as necessidades humanas, como por exemplo a de Sumner


e Keller (in Koenig:1976:51-53,90,91) que as dividiram nas seguintes categorias: interesse pela
autopreservação, acasalamento, gratificação pessoal e sobrenatural. Porém, os estudos sobre o
consumidor, suas necessidades e desejos, principalmente no marketing de idéias e serviços
religiosos, nem sempre ressaltam que devemos também discutir a questão da legitimidade da
agência intermediária do processo de troca. Isso está longe de ser algo secundário, muito pelo
contrário, essa questão tem um valor enorme, exatamente porque o ser humano é culturalmente
situado e busca além do produto em si, as marcas institucionais dos produtores e distribuidores.

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As instituições sociais surgem para resolverem necessidades e provocam o aparecimento de


interesses, cujo atendimento geram práticas especializadas na solução permanente dessas
carências. Mas, ao agirem dessa forma, as instituições desenvolvem discursos fundados em
ideologias, destinadas a provocação de atitudes e crenças constantes, repetidas permanentemente,
portanto, previsíveis, garantindo-se assim a recompra dos “produtos” e não apenas uma
“compra” episódica. Vários estudos sobre a motivação, percepção e decisão de compra, entre
eles os de Mary Tuck (1978) e Christiane Gade (1980) trabalham com a psicologia do
consumidor, e focalizam as várias teorias, que envolvem tais motivações na decisão de compra.

Tradicionalmente no Ocidente, as instituições religiosas seculares funcionavam como locais onde


as necessidades religiosas da população eram atendidas. Contudo, nas grandes cidades
começaram a surgir, a partir dos anos 50, ministérios “para-eclesiásticos”, isto é, agências e
distribuidores de bens religiosos, desvinculadas institucionalmente das Igrejas, especializados na
prestação de serviços a segmentos da população, que por causa da adoção de novos modos de
vida urbano-industriais, estavam se desinteressando das atividades propostas pelas igrejas, seitas
e denominações. No Brasil, nessa época surgiram a “Palavra da Vida”, entidade especializada no
atendimento de jovens e adolescentes; a Associação Pró-Evangelização de Crianças (APEC); os
Gideões Internacionais, voltados à distribuição de porções da Bíblia em quartos de hotéis,
ADONEP (Associação dos Homens de Negócios do Evangelho Pleno), entidade especialista em
reunir pequenos e médios empresários, em hotéis e restaurantes de luxo, para lhes falar da fé
cristã.

As “mega-igrejas”, entre elas a IURD que têm templos com capacidade superior a quatro mil
pessoas, acumulam um poder financeiro maior, experimentam uma centralidade administrativa
mais eficiente do que as organizações “para-eclesiásticas” e um dinamismo, até então inexistente
nas igrejas tradicionais. Com isso, essas “mega-igrejas reuniram em si mesmas”, vários
“ministérios”, ou formas de prestação de serviços, que por causa dos movimentos para-
eclesiásticos, haviam se desvinculado das organizações tipo igreja. Nesse sentido, o
aparecimento dessas instituições religiosas se relaciona com a adoção de inovações importantes
nas formas de se distribuírem o “produto religioso”. Talvez a imagem do templo como um
shopping center, com suas vielas separando as áreas de serviços e os dias de “promoção”, seja
uma boa metáfora para exemplificar tamanha mudança nas estratégias empregadas nos processos
de distribuição dos “produtos” religiosos. É significativa a afirmação de um pastor da Igreja
Universal: “se você quer comprar carne vai ao açougue, remédios vai à farmácia, bênçãos, curas
e milagres, na Igreja.”117

117
Os pentecostais brasileiros têm inovado o local de distribuição. É comum funcionar dentro de templos
pentecostais uma pequena lojinha de discos, livros evangélicos, chaveiros com versículos bíblicos, etc. Manuel de
Melo causou escândalo em muitos protestantes tradicionais, ao propor para o templo do Largo da Pompéia, que
seria segundo ele “o maior templo evangélico do mundo”, uma lanchonete, onde o fiel poderia comer o seu
sanduíche acompanhado de refrigerante, sem perder quaisquer partes do culto ou do sermão. Sobre a igreja como
supermercado, uma idéia que discutimos longamente no Brasil com o pastor sueco, Anders Ruuth (1994:296,297)
registra que: “O contato entre as pessoas [na IURD] não se caracteriza sempre por um profundo e pessoal
comunio, senão por encontros breves, típicos de shopping, uma clientela flutuante e movediça, convidada a
comparecer por uma propaganda televisiva” (os grifos são do autor). Porém, no decorrer de nossa pesquisa, foi-se
tornando forte a idéia de que não se pode dizer que os templos da IURD são meros supermercados ou agências
impessoais de prestação de serviços. Muito pelo contrário, eles também oferecem cenário para a formação de
comunidades, embora segmentadas e até fragmentadas, principalmente por causa do número de pessoas que se

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As instituições nascem da imperiosa exigência de atendimento das necessidades humanas


porque, necessidades insatisfeitas impulsionam as pessoas em direção a novos “gurus” e outras
promessas de soluções. Além do mais, as necessidades não-satisfeitas tendem a se agravarem na
medida em que novas carências invadem o campo da consciência, e se sobrepõem àquelas que já
estavam acumuladas. Por exemplo, a publicidade nos países subdesenvolvidos é considerada, por
vários estudiosos, uma atividade geradora de novas necessidades, que são depositadas sobre
desejos ainda insatisfeitos. Freqüentes e constantes frustrações podem provocar movimentos de
caráter revolucionários, messiânicos ou milenaristas, centrados em promessas de que se
aproxima uma era de abundância, e que há uma “terra que mana leite e mel”, aberta para poucos
escolhidos, recrutados entre os que sofrem de carências diversas e que, por isso mesmo, passam a
viver motivados pela esperança de melhores dias. Peter Worsley (1980) mostra como esse sonho
da abundância de bens materiais, combinando antigas e novas formas de religiosidade trazidas
pelos europeus, e a distribuição desigual de bens, fez brotar na Melanésia, formas de
milenarismos baseados na idéia da busca da prosperidade, nos chamados “cultos cargos”.

Sejam, portanto, quais forem as maneiras de se classificarem as necessidades humanas, não se


pode deixar de lado que as instituições existem para o atendimento delas, principalmente das
demandas reprimidas. Inclusive, o sucesso institucional é medido pelo número de interessados
atraídos por suas atividades e discursos. No caso estudado, a Igreja Universal oferece bens
simbólicos, que prometem soluções segmentadas num espectro muito mais amplo do que outras
religiões ativas no “mercado” religioso. Por exemplo, ela procura atacar a fome de favelados,
moradores de rua, presos, idosos em asilos e crianças em orfanatos, distribuindo-lhes cestas
básicas de alimentos, roupas e agasalhos para o frio, ao lado de uma pregação de cura divina e de
milagres para esses mesmos carentes. Dessa maneira ela consegue oferecer “a cada um de acordo
com as suas necessidades.”

Canais de distribuição
A esta altura, temos que perguntar pelas maneiras como os “produtos” iurdianos, acompanhados
do slogan “pare de sofrer”, chegam até as pessoas necessitadas. Isto é, como se dá a distribuição,
e, que tipo de intermediários operam no decorrer desse processo? O templo, como vimos
anteriormente, é um dos importantes elementos nesse esquema de distribuição. Mas, eles não são
apenas uma “agência distribuidora”, porque as pessoas que vêm a ele para receber curas de suas
aflições encontram ali pequenas comunidades, articuladas por interesses segmentados, que
satisfazem o instinto gregário e formam comunidades de consumo direcionado. Nesse sentido, as
comunidades neopentecostais, antes de serem “comunidades de idéias”, como propõe Jean-Pierre
Bastian (1994) para as minorias religiosas típicas do protestantismo histórico na América Latina,
elas são “comunidades de consumo de bens simbólicos”.

reúnem, centenas ou milhares, que tal como as missas católicas nem sempre podem oferecer espetáculos de
comunidades unidas, onde todos se conhecem, assim como nas pequenas e médias comunidades do
pentecostalismo e do protestantismo tradicional. Ainda assim, são comunidades, as quais preferimos chamá-las de
“comunidades de consumo direcionado”, nas quais as pessoas solidificam as suas ligações ao redor do produto e
da “loja”, na qual escolhem seus produtos preferidos.

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A fidelidade ao templo, como “local da distribuição”, é ressaltada sempre nos momentos de


testemunho, espaços de fabulação e relatos de milagres.118 Nele há fiéis que fazem referência ao
preço que pagaram, em termos de esforço pessoal ou contribuição financeira, para a manutenção
do templo ou expansão da Igreja. Isso lhes dá destaque, reconhecimento, estima e satisfação por
se sentirem pessoas realizadas. Por exemplo, é comum nesses cultos o pastor pedir um caloroso
aplauso para o irmão, que acabou de afirmar que a sua vida só melhorou, depois que passou a dar
vinte por cento de seus rendimentos para aquele templo, ou que tem participado desta ou daquela
“corrente”, vindo ao templo tantas vezes por semana. Evidentemente, esse fiel está acima de
outros que só fazem o “sacrifício dos dez por cento”, ficam apenas nas “ofertas de amor” ou vêm
ao templo somente uma vez por semana.

Mas, o produto distribuído é o bem percebido e desejado pelo comprador? Não podemos nos
esquecer de que há mecanismos de apreciação dos objetos, de formação dos hábitos e desejos de
compra, ligados ao imaginário social, depósito de onde o consumidor saca elementos, que
detonam idéias e fornecem estímulos para a ação. É justamente essa ida ao imaginário, que
aponta para a continuidade dos mecanismos de percepção de um fiel iurdiano, em relação
àqueles que esperam milagres nos terreiros das religiões afro-brasileiras ou nos santuários do
catolicismo popular. Todos atribuem os seus males a entidades espirituais e, a solução dessas
aflições ao “descarrego”, “exorcismo” ou “pagamento de promessas”.

Nesse sentido, há instituições e, entre elas a Igreja Universal, que procuram diferenciar o seu
“produto” da concorrência, realizando o que Gil Nuno Vaz (1995:59,60) chama de “sintonia
fina”, ou uma espécie de “ajuste ideológico”, entre o atendimento a tais necessidades e o fracasso
de outras agências religiosas em realizá-las. Então procura-se passar, através da mídia iurdiana, a
idéia de que ela é, ao contrário de outras, uma Igreja de resultados, “fato contra o qual não há
argumentos”, repete constantemente a sua propaganda. Dessa forma, para tornar o seu “produto”
desejável, a IURD explora e provoca o descontentamento das pessoas para com as suas opções
religiosas anteriores, mostrando a precariedade dos resultados até agora conseguidos nas agências
concorrentes. Realmente, do ponto de vista “mercadológico”, a Igreja Universal tem bons
“produtos”. Porém, isso não basta por si só, pois muitos outros também os têm. O seu sucesso se
deve também ao emprego dos canais de divulgação e de mecanismos de distribuição ágeis, pois
permitem a chegada do produto ao consumidor certo, no momento exato, e na proporção
desejada.

A distribuição dos “produtos” Universal é feita por intermédio dos meios de comunicação de
massa, rádio, televisão, revistas, jornais e, especialmente, por sua rede de templos, que no Brasil
ultrapassou a marca dos dois mil e cem “pontos de venda”. Contudo, essa, como toda
distribuição, é afetada pelas características do canal escolhido. Por exemplo, o produto ofertado
na mídia (rádio e televisão, principalmente) é apresentado de uma forma mais extraordinária do
que o é no templo. Principalmente, porque a televisão e o rádio operam com emoções e
expectativas diferentes daqueles sentimentos despertados, numa enorme concentração “de fé e de
milagres”. Na mídia os “produtos” são estandartizados e padronizados, embalados para o

118
“Dar testemunho” é o ato, nas igrejas pentecostais”, de verbalização diante de todos das “graças obtidas” pelo
fiel. Geralmente, destina-se a essa ação uma parte significativa do culto ou do programa radiofônico ou televisivo.

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consumo em massa, enquanto que nos templos, ao lado do espetáculo de massa há o marketing
de relacionamento pessoal, insubstituível quando se trata de “produtos” religiosos.

A mídia adversária da Igreja Universal espalhou notícias de que essa Igreja pratica uma espécie
de franchising. Em nossas pesquisas poucas informações conseguimos sobre este assunto,
principalmente porque, pastores e bispos não concedem entrevistas. Entretanto, numa pequena
cidade do interior de São Paulo, o irmão de um pastor da IURD, que continuou fiel à Igreja
Católica, disse que o seu irmão havia aberto o templo, depois de um treinamento de três meses,
usando para isso um sistema de franchising. Segundo ele, seu irmão estaria remetendo
mensalmente para a sede da Igreja, certa quantia em dinheiro, muito acima do que estava sendo
arrecadado naquele momento, por ser o templo ainda novo na cidade. Porém, essa e outras
denúncias não puderam ser comprovadas. Portanto, a falta de maiores evidências fez com que
concluíssemos não haver franchising na Igreja Universal, pelos menos numa quantidade
significativa, que pudesse ser comprovada e mensurada. Possivelmente, esse exemplo acima
citado, se for verdadeiro, deve ser esporádico porque essa Igreja usa um sistema direto de
distribuição de seus “produtos”, alugando ou comprando o seu próprio “ponto”, treinando os
pastores e fornecendo-lhes as orientações necessárias para a expansão das atividades daquele
templo.

O monopólio do processo de distribuição, por parte da direção da Igreja Universal, facilita a


padronização dos procedimentos e a administração do comportamento dos agentes, por meio da
imposição de padrões semelhantes para as atividades do culto; assim como, a implantação de
condições próprias de “venda” e política de “preços”, delimitação territorial do templo e
procedimentos quanto à concorrência no “mercado religioso” local. Ao distribuir seus “produtos”
a Igreja Universal não se prende ao “ponto de vendas”, porque equipes de cada templo se postam
nos cruzamentos de avenidas movimentadas para distribuição de folhetos e de jornais da Igreja,
assim como visitam bairros, casa por casa, à semelhança das “Testemunhas de Jeová”.

Tem se aplicado na IURD, com sucesso, a idéia de que todos são “promotores de venda” do
“Reino de Deus” e não somente os obreiros, pastores e bispos, o que permite o envolvimento de
um grande número de propagandistas convictos e a formação de um corpo externo de vendas,
recrutado, ativado e preparado por meio de um eficaz processo de marketing interno. Assim, as
pessoas são energizadas e funcionam como um braço externo, realimentando continuamente o
fluxo de pessoas aos templos.

Preço e sacrifício
Qual é o preço dos “produtos” distribuídos pela Igreja Universal? No “mercado” religioso, os
leigos oferecem ao corpo de especialistas, força, autoridade e remuneração, em troca de prédica e
cura das almas. Para que essa economia funcione, e se estabeleçam preços atraentes, é preciso
que ambos os lados, “vendedor” e “comprador”, compartilhem de uma quantidade das mesmas
categorias de percepção e de avaliação. Na análise econômica dos bens simbólicos devem entrar
tanto o valor de troca como o de uso? Seria a economia dos bens simbólicos, principalmente dos
“bens religiosos” uma “economia de coisas sem preço”? Inspirados em Bourdieu (1982:83;
1996:165ss) podemos perguntar: o que acontece quando o espírito de cálculo invade as relações
religiosas? A aplicação pura e simples dos conceitos da economia no campo dos “produtos” e

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“bens” religiosos é uma tarefa muito complicada e que mexe com tabus seculares. Entretanto, se
temos considerado a Igreja Universal uma organização “religiosa-empresarial”, é impossível
deixarmos de discutir a questão do preço de suas “mercadorias”.

Aliás, o termo “preço” é uma palavra muito significativa no vocabulário cristão. Geralmente,
emprega-se “preço” para indicar que as relações entre o homem e Deus não têm preço, pois estão
fundadas na gratuidade do ato de dar e receber. Por outro lado, no meio religioso-cristão, “preço”
lembra mercantilização ou transação envolvendo dinheiro, especialmente nas igrejas oriundas da
Reforma do Século XVI, que enfatizam a salvação como algo gratuito, graças ao sacrifício
vicário do Filho de Deus na cruz e que, por isso mesmo, nenhum outro sacrifício seria requerido
dos homens. Essa supervalorização da gratuidade da salvação foi em parte provocada pela luta
contra a distribuição de indulgências e a ênfase na salvação pelas obras que, segundo Lutero,
seria o centro de um edifício religioso fundado na autoridade papal. Por esse motivo, os
protestantes crêem que a salvação vem pela graça e pela fé no sacrifício vicário de Jesus.

Entretanto, as instituições religiosas e seus agentes vivem uma contradição ao se situarem numa
dupla dimensão; a do universo econômico, e a de um subuniverso antieconômico, cuja teologia
valoriza a graça e nega a economia. Bourdieu (1996a:191ss), lembra que “a Igreja é também uma
empresa econômica (...) que só pode funcionar como funciona porque não é verdadeiramente
uma empresa, porque se nega como empresa.” Assim, essa negação é permanente e se efetiva por
meio de uma linguagem eufemizada. A “verdade econômica, isto é, o preço, deve ser escondida,
ativa ou passivamente, ou deixada vaga (...) se apoia no tabu da explicitação (...)” Por isso, notou
Bourdieu, os bispos riem quando ouvem falar que a Igreja é uma empresa; e o sacristão e padres,
assalariados; preferem falar em apostolado, fiéis, serviço sagrado e nunca em marketing, clientela
e trabalho assalariado.

Como essas questões aparecem no discurso e na prática da Igreja Universal? Antes de mais nada,
é preciso observar que o tabu da explicitação é frouxo no neopentecostalismo, de um modo geral.
É uma religião que fala muito em dinheiro e, abertamente, no que se refere à apresentação de
uma contra-oferta a Deus, por causa da “grande dádiva” dada por ele aos homens - seu filho
Jesus Cristo. Macedo (1993:75,79) é bem claro quando afirma: “a lei de dar para receber não é
apenas uma lei física; é, também uma lei espiritual” e nem o próprio Deus “escapou dessa lei,
quando deu o seu próprio filho (...)”, portanto, “dar o dízimo é candidatar-se a receber bênçãos
sem medida (...)” Esse é o preço a ser pago pelos “candidatos às bênçãos divinas.”

O preço é uma medida relativa de valores, atribuído a um determinado produto e que pode ser
visualizado por meio dos valores materiais ou de outras formas de representação do esforço
desprendido para conseguir a satisfação de determinadas necessidades. O preço a ser pago pela
satisfação delas depende, contudo, do conceito que o cliente tem de valor, pois como nos lembra
Drucker (1975:91), “o preço é somente uma parte do valor”. Preço também se refere ao
investimento feito por alguém para adquirir algo desejado e pode ser medido em dinheiro,
esforço físico, mental ou pelo tempo gasto para a realização desse desejo. Fonts (in
Silva:1987:962) assim o define: “preço é a medida do valor de troca de um bem ou serviço em
termos monetários ou em termos de outro bem, que tenha grande aceitação.”

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Contudo, a referência ao “preço” de um “produto” religioso torna as coisas um pouco mais


complicadas, pois estamos lidando com um “produto” intangível, cujo “preço” depende, em
grande parte, da reação e atitudes do “consumidor”, e da capacidade dos “vendedores” em
converter bens espirituais e serviços religiosos em moedas. Isso é feito com maior sucesso,
quando os “vendedores” conseguem tangibilizar os aspectos intangíveis do “produto”. O “preço”
de um “bem de salvação” é fixado, tanto pela agência que o distribui, bem como pela reação da
“clientela”. A Igreja Universal adota um critério já existente no meio religioso e estabelecido
pela sociedade ocidental, ou seja, a fixação do preço em bases monetárias e a crença de que - o
objeto do desejo, isto é, as bênçãos - são alcançadas por meio do sacrifício de “freqüentar a
Igreja” e participar das “correntes” e “campanhas”. Nessa transação ganha importante lugar o
dinheiro que, segundo Weber (1991:53), “é o meio de cálculo econômico ‘mais perfeito’, isto é,
o meio formalmente mais racional de orientação da ação econômica.”

É por esse motivo que o dizimo se torna a pedra de toque de todo esse processo de
monetarização do sacrifício, pois facilita a transação entre ambas as partes, enquanto esconde,
por trás da aparente igualdade de condições, uma fundamental distorção de “preços”. Isto porque,
dez por cento para assalariados, cujas rendas se situam ao redor de três salários mínimos por mês,
é muito mais sacrificial do que idêntica taxa para quem ganha mais de vinte salários mínimos
mensais. O dizimo, ao contrário do que os pastores afirmam, não nivela os contribuintes,
justamente porque coloca sobre o doador pobre um tributo, que compromete uma parcela
considerável de uma renda por si só insuficiente até para a alimentação familiar. O sacrifício
imposto aos de salários mais altos implica tão somente em uma possível redução de consumo de
bens considerados “de luxo”. Por isso, soa como que extremamente injusto aos que não
participam da lógica do sacrifício monetário, à mídia secularizada em especial, afirmações de
pastores iurdianos, que após pedirem para as pessoas darem para Deus tudo que elas têm no
bolso naquele momento, inclusive o dinheiro da condução para voltar para a casa, afirmarem:
“Você vai voltar para a casa a pé, mas irá sabendo que Deus está contente com o seu sacrifício, e
irá recompensá-lo por isso”.
Essa perspectiva fica bem clara em afirmações de Macedo (1993c:passim), que nos indicam
como essa Igreja encara o “produto” e o “preço” a ser pago pelo fiel, enquanto candidato ao
recebimento das bênçãos de Deus:
“Decida-se agora mesmo. Dê adeus às doenças, à miséria e a todos os males, tenha um
reencontro com Deus e assuma novamente a sua posição na família de Deus (...) A vida
abundante que Deus, pelo seu grande amor, nos garante através de Jesus Cristo, inclui
todas as bênçãos e provisões de que necessitamos, ou mesmo que venhamos a desejar (...)
Não perca a oportunidade de ser sócio de Deus. Coloque-se à sua disposição com tudo o
que você tem e comece a participar de tudo o que Deus tem. (...) O dinheiro é uma
ferramenta sagrada usada na obra de Deus (...) o dinheiro, que é humano, deve ser a nossa
participação, enquanto que o poder espiritual e os milagres, que são divinos, são a
participação de Deus. (...) Dar o dízimo é candidatar-se a receber bênçãos sem medida
(...) quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na obrigação de cumprir a Sua Palavra.”
Na Igreja Universal há um “contrato social”, uma “aliança com Deus”, fundados na decisão
individual de adesão ao pacto por meio da conversão completa, e que resulta na prática convicta

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da contribuição sistemática na forma de dízimo. Por meio desse sacrifício consegue-se a atenção
divina, enquanto se desvia a ira para os demônios presentes no bode expiatório - o
endemoninhado. O sacrifício do outro é a contrapartida da oferta monetarizada, o sacrifício do
próprio bolso. Nessa prática há um aspecto utilitarista e de coação mágica do humano sobre o
divino, que tornam tentadoras as observações de Max Weber (1991:292,293):

“(...) a antropomorfização tende (então) a transladar ao comportamento dos deuses a


graça livre de um poderoso senhor mundano, a ser obtida mediante súplicas, presentes,
serviços, tributos, adulações, subornos e, por fim e nomeadamente, mediante um
comportamento agradável que corresponde à vontade do senhor, concebendo os deuses,
em analogia com este, como seres poderosos e inicialmente mais fortes apenas em termos
quantitativos”. (...) Do ut des é o dogma fundamental por toda a parte (...) caráter inerente
à religiosidade cotidiana e das massas de todos os tempos e povos e também de todas as
religiões.”
Teoricamente, a Igreja Universal (IURD, s/d:49,50) afirma não ser obrigatório que o membro da
Igreja seja dizimista, porém na prática, ser dizimista é a melhor prova de que alguém se
converteu de fato. Pois o dízimo é
“uma contribuição estritamente voluntária na qual o dizimista assume um compromisso
diante de Deus em colaborar com a Sua Igreja. Em troca, Deus lhe promete abrir as
janelas do céu e derramar bênçãos sem medida (...) qualquer pessoa pode dar o seu
dízimo na Igreja Universal do Reino de Deus. Não é um privilégio apenas dos membros e
nem deve ser considerado como um pagamento, do qual se exija recibo, pois dado
voluntariamente (...) e não existe nenhuma pena ou ‘disciplina’ para aquele que não
contribui dessa forma (...). É claro que a partir do momento em que a pessoa ‘rouba a
Deus’, então ela passa a ter crédito com o ‘devorador’. E esse devorador jamais sairá da
vida dela enquanto ela não acertar a sua vida com Deus (...) Nunca alguém amou a
outrem sem que expressasse o seu amor com um presente, uma oferta; E a qualidade de
oferta que se dá exprime a qualidade do amor que se tem.”119
Observemos o aspecto ambivalente da linguagem iurdiana e a adoção de uma lógica capitalista,
que considera a dádiva material como forma privilegiada de expressão dos sentimentos, valores
estes entregues a uma instituição, que se apresenta como representante divino na Terra. O preço a
ser pago a Deus se relaciona também com as ênfases da chamada “teologia da prosperidade”. A
falta de sucesso financeiro e material na vida é vista como resultado da ação demoníaca. O diabo
é o “devorador”, simbolizado na retórica da Igreja pelo gafanhoto, cuja praga aterrorizava os
antigos hebreus. O não-pagamento da dívida para com Deus, contraída individualmente em
função de um “contrato” imemorial, torna o fiel, que disso tem conhecimento, um candidato à
miséria, ao desemprego, excesso de trabalho e pouco sucesso e, principalmente, doenças.

119
Esse guia estatutário também faz referência aos donativos feitos por pessoas tais como, terrenos, jóias, máquinas,
automóveis etc. e afirma: “A Igreja Universal do Reino de Deus aceita donativos desde que eles sejam feitos
sempre em nome da Igreja e nunca em nome de seus pastores, obreiros e representantes [mas que] deve-se ter todo
o cuidado com o recebimento de donativos.” Quando do recebimento deles devem-se exigir escrituras em cartório,
declaração assinada pelo cônjuge ou de duas testemunhas se a pessoa for solteira. Na edição consultada dos
Estatutos, possivelmente de 1993, a Igreja Universal procura se eximir de possíveis demandas judiciais futuras,
oriundas de pessoas que, passado o período de euforia se arrependem do “alto preço pago” e solicitam a
devolução de um bem, a essa altura, já comercializado pela Igreja.

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O rompimento desse círculo vicioso se dá por meio do pagamento da parte humana da dívida,
isto é, da entrega dos dízimos, e isto deve ser feito de uma forma generosa, pois como se lê em
alguns envelopes de contribuição dessa Igreja: “Deus ama quem dá com alegria.” A mídia,
escandalizada com o “despojamento do dinheiro dos pobres”, se esquece de observar que fazem
parte do “preço” pago pelo fiel da Igreja Universal, outras coisas importantes como o sacrifício
das idéias próprias, dos padrões tradicionais de comportamento e, até mesmo, da liberdade de
ação, com a entrega a outrem do direito de pensar livremente. Não se tem pesquisado muito
sobre esse assunto. Contudo, as obras de Erich Fromm (1975) e Charles Lindholm (1993) são
importantes para averiguar os mecanismos psicossociológicos, que operam na produção de uma
personalidade carente e no surgimento de uma liderança absoluta, como foram as de Adolf
Hitler, Charles Manson e Jim Jones.

No entanto, a despeito de todas as críticas da mídia, os fiéis da Igreja Universal não se afastaram,
pelo menos na proporção desejada pelos seus adversários. Essa adesão, pelo contrário, tem se
tornado ainda mais forte, mesmo naquelas ocasiões em que a opinião pública tem sido
bombardeada pelas campanhas de “esclarecimento” da Rede Globo, contra as “seitas que
exploram o povo desavisado”. Os resultados dessas campanhas têm reforçado ainda mais aqueles
mecanismos arraigados na religiosidade popular, que séculos após séculos têm levado as pessoas
a recitarem, com segundas intenções, muitas vezes, a oração de S. Francisco de Assis que
afirma: “é dando que se recebe”. A solidificação dessa religiosidade se deu também por causa da
ausência de clérigos entre o povo, e que por isso mesmo, colocou em prática inúmeras formas de
negociação com os santos, expressas na formulação do ut des.

Conclusão
A ligação entre marketing e religião, na prática religiosa neopentecostal iurdiana introduziu entre
nós, alguns ingredientes e estratégias responsáveis por novos surtos de expansão e dinamismo do
campo religioso, os quais, a título de conclusão deste capítulo queremos ressaltar:

■ A descoberta de oportunidades de mercado e cálculo de seu potencial para se planejarem novas


comunidades, como os casos da Igreja Renascer em Cristo, no Brasil e Willow Creek Community
Church, nos Estados Unidos.120

120
Willow Creek Community Church é uma comunidade situada em Barrington, subúrbio de Chicago e que teve o
seu primeiro culto num cinema alugado, no dia 12.10.75, ao qual compareceram 125 pessoas. Treze anos depois,
cerca de 15 mil pessoas participam de seus serviços religiosos em cada semana. Não se trata de um comunidade
pentecostal e sim, de uma comunidade independente, dentro dos moldes do movimento evangelical norte
americano. O seu crescimento se deve à aplicação de estratégias de marketing tanto na sua origem como na
expansão. Inicialmente, quatro pastores partiram para entrevistas porta-a-porta, perguntando às pessoas: “Você
freqüenta ativamente alguma igreja?” Se a resposta era positiva, diziam eles: “Obrigado, que Deus o abençoe e
tenha um bom dia.” Porém, se a resposta era negativa, perguntavam eles: “Por que não? O que há na igreja que
dificulta a sua freqüência?” As razões pelas quais as pessoas não participavam dos serviços religiosos das igrejas
da região eram entre outras, as seguintes: “É irrelevante para minha vida; eles usam palavras que não entendo e
falam a respeito de coisas que não me interessam; a Igreja e a Bíblia não têm aplicação prática em minha vida; é
chato, é rotineiro, eles querem é meu dinheiro; eles não cuidam de mim; eu sempre saio de lá deprimido ou
culpado por alguma coisa; eles invadem a minha vida privada e me aborrecem, querem me classificar num livro de
membros como se fosse um rótulo. Ao concluírem a entrevista, os pastores então apresentavam uma questão
hipotética: “Se existir uma igreja com características diferentes dessas, você freqüentaria? Ou, se nós abrirmos
uma igreja com características diferentes, podemos chamá-lo?”.

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■ A segmentação de mercado por meio de uma classificação das pessoas de acordo com suas
necessidades físicas, espirituais, psicológicas, comportamento religioso e benefícios desejados.
Isso faz com que a heterogeneidade da demanda seja relativizada por meio da separação dos
auditórios, propiciando a seleção dos segmentos objetivos e a reação homogênea da demanda ao
redor deste ou daquele produto..

■ Apresentação de “produtos” simbólicos padronizados, adaptáveis aos vários segmentos,


possíveis de reelaboração segundo as necessidades de cada um, o que gera um equilíbrio entre
padronização e personificação do produto oferecido.

■ Desenvolvimento de uma retórica apropriada para diferenciar um produto de similares,


apresentados pela concorrência, e oferecer ao segmento-alvo “produtos” aumentados,
“oferecendo-lhe mais do que ele pensa necessitar ou do que se acostumou a esperar”, conforme
palavras de Theodoro Levitt (1988:150).

■ Levar a sério as necessidades do “comprador”, inovando continuamente o perfil do produto e


os mecanismos de distribuição.

Dos resultados eles concluíram que as pessoas até iriam a uma igreja que: Primeiro, preservasse o anonimato e não
aborrecesse; Segundo, apresentasse uma mensagem introdutória niveladora; Terceiro, evitasse pressionar a pessoa
a decidir alguma coisa, até que ela se sentisse pronta para isso; Quarto, apresentasse uma excelente programação.
A partir dessa pesquisa, foi então elaborado o plano “Christianity 101”, voltado para pessoas que visitariam a
igreja pela primeira vez, com o perfil chamado de “Unchurched Harry”: Homem sem igreja, idade entre 25 e 50
anos, desconfiado da tradição religiosa, com pouca ou nenhuma necessidade de religião. Algum tempo depois,
desenvolveram o plano “Unchurched Mary”, voltado para as mulheres dos “Harrys”. Consolidada esta etapa, eles
lançaram o projeto “Christianity 201” destinado a atrair pessoas para os serviços religiosos de quarta e quinta-
feira, chamado “Nova Comunidade”, para atender pessoas com desejo de compartilhar vida comunitária além dos
domingos de manhã. Este trabalho começou em 1975, com cerca de trinta pessoas e em 1993 já atendia mais de
cinco mil fiéis. As reuniões são descontraídas, as pessoas vêm com bíblias e cadernos para anotações, elas cantam
(enquanto os Harrys não gostam de cantar). Nessas reuniões não se falava em dinheiro, mas havia lugares, onde as
pessoas podiam ajudar, depositando seus valores. Enfatizava-se que “esta igreja não precisa de dinheiro”.
A Willow Creek Community Church tem uma filosofia e visão de ministério, muito bem articulada. Seu projeto é
reavaliado anualmente, e pede-se que cada um expresse o que ele espera de sua igreja naquele novo ano. Nessa
oportunidade, ele toma conhecimento dos objetivos da igreja que são: Exaltação, voltado a encorajar pessoas a
adorar a Deus na nova comunidade, em pequenos grupos e particularmente; Edificação, cada um deve ajudar o
outro a compartilhar dúvidas e dificuldades; Evangelismo, comissiona cada fiel a ganhar um outro; Extensão, ação
social voltado para pessoas enfermas, presas, casamento desfeitos e outros mais. Em 1993, essa comunidade
mantinha 90 ministros trabalhando em ministérios voltados para todas as idades: crianças, jovens, adultos solteiros
e casados, atividades divididas em áreas tais como: Exaltação, koinonia, evangelismo e ação social, cada uma com
sua própria linha de produtos disponíveis. Por exemplo, entre outras atividades, há acampamentos para mocidade,
visitação, cursos de orientação sexual, oferta de um serviço de fitas de vídeos, pequenos cursos (6 a 8 sessões),
que abordam problemas familiares, casamento e divórcio, pequenas células, com oito a dez pessoas, que se
reúnem para oração, estudo bíblico e compartilhamento e assim por diante. O arrolamento de novos membros não
é fácil. É preciso ser maior de 12 anos, preparar-se por um ano no conhecimento das doutrinas, história, missão e
expectativa da igreja. Porém, é fácil de deixar de sê-lo. Cada membro, anualmente, é convidado a renovar o seu
compromisso, através de um cartão preenchido. Se não quiser devolvê-lo, o seu nome é automaticamente excluído,
porque nessa igreja não há membro inativo. As estratégias de marketing da Willow Creek Community Church
foram estudadas com detalhes por Norman Shawchuck (1992) Philip Kotler, Bruce Wrenn, Gustave Rath, que
produziram o texto Marketing for congregations: choosing to serve people more effectively. Essa experiência nos
mostra o quanto é possível avançar no campo do marketing aplicado a Igreja, numa experiência histórica e
concreta. Estamos convictos de que a IURD, embora sem tanta sofisticação, aborda a religiosidade urbana de
modo semelhante ao empregado pela. Willow Creek Community Church

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■ Insistir no uso de veículos apropriados para a difusão em massa dos “produtos” típicos de sua
grife, reelaborando continuamente as estratégias, pois como afirmam (Al Ries e Jack
Trout,1989:203): “marketing é uma série de batalhas”, cujo “truque consiste em vencer mais
batalhas que seu concorrente”

■ Inibir e desestimular perspectivas críticas quanto aos próprios “produtos”, enquanto em sua
propaganda e veículos se fustigam as demais agências e “produtos” concorrentes no mercado.

■ Evitar o crescimento dos imitadores, dissidentes e descontentes internos, que eventualmente


possam se apropriar de parcelas dos lucros simbólicos acumulados.

Dessa maneira, por tudo o que foi apresentado, afirmamos que a Igreja Universal do Reino de
Deus se tornou um campo excepcional para a observação de como um movimento religioso pode
permanecer dinâmico, e crescer continuamente, graças às estratégias de marketing, num ambiente
que a princípio lhe parecia desfavorável, dada a hegemonia exercida sobre o mercado de bens
simbólicos por grupos, já tradicionalmente instalados no campo religioso.

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CAPÍTULO 6 - PROPAGANDA E RELIGIÃO: A


COMUNICAÇÃO DA IGREJA UNIVERSAL

“Fides publicidade: Não é milagre / Nesta hora de milagres./ Um sacerdote me indica o


melhor banco./ O papa vende conhaque em cada esquina./ Santa Maria anuncia letras de
câmbio./ Até Jeová lançou uma nova edição das tábuas da lei./ Os tempos são outros,
Senhor./ E os templos também” (Carlos Queiroz Telles, Anuário Brasileiro de
Propaganda, Edição 71/72).
“Um messianismo sem uma agência de notícias não dispõe dos meios para atingir seu
fim” (Regis Debray, 1991:115).

A relação entre um campo religioso e a sociedade não se dá de forma mecânica, daí ser
impossível pensá-lo como um terreno independente do contexto sócio-cultural mais amplo do
qual, querendo ou não, ele faz parte. Pressupomos que o processo de globalização, em seu
aspecto econômico e cultural, provocou sérias mudanças no universo religioso, exigindo assim
que as organizações e instituições adaptassem suas maneiras de funcionar, cooptar e controlar
adeptos.

Até então, as organizações religiosas funcionavam atreladas à tradição, principal forma de se


transmitirem os valores e práticas religiosas. Após essas mudanças, as pessoas deixaram de
orientar suas ações pelos programas embutidos nas instituições tradicionais e se tornaram
dependentes da mídia, como fonte de modelos para regular seus comportamentos. Por isso, é
impossível visualizarmos o drama social, as relações humanas ao redor do sagrado e as trocas
dos bens religiosos, sem uma análise do papel desempenhado pela propaganda e publicidade na
montagem de um sistema religioso orientado pelo marketing.
Na sociedade norte-americana essas mudanças se tornaram visíveis tão logo terminada a Segunda
Guerra Mundial. David Riesman, Nathan Glazer e Reul Denney identificaram tais alterações
através de pesquisas em 1950, que resultaram no famoso texto, The Lonely crowd, onde fez uma
avaliação das transformações ocorridas no caráter americano, nos papéis sociais, na vida
econômica, no exercício do poder e no lazer. Para descrever essa nova realidade, Riesman (1971)
criou três tipos ideais: o “traditivo-dirigido”, o “introdirigido” e o “alterdirigido”. O primeiro
tipo corresponde às pessoas, cujas ações sociais são orientadas pela tradição. O segundo, àquelas
dirigidas por valores internalizados pelo processo de socialização. Já o terceiro tipo representa a
adoção de um novo estilo de vida, que brota da sociedade urbana e industrial, em que o indivíduo
assume um comportamento social tipo radar, pois sempre está procurando uma receita
automática para um comportamento mais moderno, que houver. No decorrer do aparecimento do
“alterdirigido”, os meios de comunicação se tornaram o principal fornecedor desses modelos.
Graças à capacidade de persuasão da propaganda e publicidade, o “alterdirigido” pode se ajustar
e ajudar a construir uma nova realidade cultural. Também, nessa época e não por mera
coincidência, ressurgia naquele país o “movimento de cura divina” e o emprego do rádio e da

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televisão por Oral Roberts e outros para a disseminação de uma religiosidade, adaptada aos
novos meios de comunicação de massa.

A discussão dessa temática se faz, muitas vezes, por meio do enfoque da conformação passiva
dos indivíduos à nova realidade. Nessa perspectiva, há críticos que enfatizam apenas o aspecto
manipulativo da propaganda, publicidade e marketing sobre as pessoas, ressaltando tão-somente
a capacidade delas em tirar das massas algum proveito, enquanto criam nelas necessidades
ilusórias e artificiais. Essa discussão insiste na ligação entre a propaganda, publicidade e a
mentira, o que talvez ainda seja uma conseqüência do escandaloso emprego da propaganda, na
Segunda Guerra e no período posterior à “guerra fria”.

Guy Durandin (1983:19,21), um dos analistas desse tema, indica que há propaganda mentirosa,
quando se tenta dar “voluntariamente a um interlocutor uma visão da realidade diferente da que
alguém mesmo tem por verdadeira” ou quando se apresenta ao receptor uma visão parcial da
realidade. Para conseguir manter a separação entre verdade e mentira, o autor se apoia numa
posição filosófica de condenação do relativismo porque, “privados do critério da verdade, os
interlocutores já não estão em condições de se defenderem” da versão a eles apresentadas. Ora,
segundo Durandin, a propaganda é exatamente a tentativa de se “exercer uma influência sobre os
indivíduos e grupos” e isso pode incluir o ato de esconder aspectos fundamentais para o
julgamento de um fato, a dissimulação de objetivos, sempre com vistas à perturbação do livre
exercício do julgamento racional.

Ora, a propaganda existe exatamente porque há conflitos entre grupos e visões de mundo
diferenciadas. Sem tais conflitos, não haveria necessidade de se elaborarem técnicas para
conquistar outras pessoas para uma determinada atitude ou visão, tidas como “verdadeiras” e
“únicas”. Mas, análises como a de Durandin ou de Serge Tchakhotine (1967) trouxeram algo de
positivo, à medida que apontaram para a ligação íntima entre propaganda e poder, desnudando os
discursos que pretendiam fazer dessas técnicas instrumentos “inocentes” a serviço tão-somente
da informação, oferecida ao público.

Os analistas da propaganda e da publicidade moderna têm, entretanto, se mostrado pouco


complacentes quando analisam a desenvoltura do neopentecostalismo na mídia, esquecendo-se
de que a propaganda nasceu exatamente no campo religioso. Novamente ressurgem muitas
acusações sobre a “mercantilização do sagrado”, cujas propostas colocam como prioridade
discutir as relações entre o verdadeiro e o falso, a mentira e a verdade no interior da propaganda
religiosa. Somos da opinião de que pouco adianta discutir se a propaganda, quando usada por
religiosos, trabalha com afirmações verdadeiras ou falsas, porque se trata de afirmações voltadas
para a provocação de resultados e situações. Em outras palavras, os propagandistas religiosos não
estão preocupados com os aspectos lógicos e evidentes de uma afirmação e sim, com o resultado
prático delas. A posição deles se assemelha ao dos pragmatistas norte-americanos, que
afirmavam que o “verdadeiro é o que é vantajoso, não importando de que maneira” o seja.

É fácil observar que a propaganda se tornou, em nossa época, um elemento fundamental nas
atividades das organizações religiosas. A sua importância salta aos olhos e é tão evidente a sua
utilidade, que independe de um julgamento especial da academia. Daí a necessidade de descrevê-
la e compreendê-la, ressaltando-se nessa análise as conseqüências que a redescoberta da

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propaganda, publicidade e marketing representam para a configuração da Igreja Universal e do


neopentecostalismo, no campo religioso brasileiro.

6.1 Propaganda, publicidade e religião

Aplica-se usualmente o termo publicidade às atividades comerciais, que envolvem a divulgação


ou venda de um determinado produto no mercado, reservando-se a palavra propaganda para as
técnicas voltadas à mudança de idéias, comportamentos e sentimentos, principalmente no que se
refere às crenças religiosas, ideológicas ou políticas. E.R.A. Seligman (1933:521) considera que
a propaganda é, em seu “sentido mais amplo, a técnica de influenciar a ação humana através da
manipulação de representações”. Jean Cazeneuve e David Victoroff (1982:498) definiram
publicidade como a “técnica de persuasão destinada a suscitar ou aumentar o desejo de adquirir
este ou aquele produto ou apelar para determinado serviço”. Em ambas as conceituações fica em
evidência a idéia de mudança do comportamento ou da atitude do outro, significados também
presentes nos verbos “persuadir” e “influenciar”. Em outras palavras, as técnicas de persuasão
surgem exatamente porque há possibilidade do destinatário da mensagem dizer “não”!

Por isso não há necessidade de propaganda ou de publicidade religiosa, quando existe uma
situação de monopólio ou de estabilidade no campo religioso. Elas surgem quando há pluralismo,
conflito e formas diferenciadas de se organizar a vida. Fazer propaganda implica no
reconhecimento da insuficiência da mera informação sobre as qualidades deste ou daquele
produto, idéias ou sistema de crenças, assim como também significa aceitar como evidente, o
colapso das formas até então vigentes de inculcação de valores. A propaganda e a publicidade
despontam naturalmente, quando se constata haver uma guerra pela fidelidade do público, que
precisa ser persuadido a mudar seus hábitos ou opções. A propaganda tem por objetivo delimitar,
classificar e hierarquizar o mundo da vida, assinalar os marcos fronteiriços entre as “províncias
de significado”, e indicar quais metas deverão ser atingidas e que inimigos devem ser
combatidos.

Fazer publicidade implica no reconhecimento do mundo como um mercado de trocas, no qual os


produtos são comprados e os serviços contratados. Procura ela valorizar profusamente um
produto, com o objetivo de tornar a sua aquisição um ato inevitável e indesculpável, por parte do
consumidor. Para que isso ocorra atribuem-se aos produtos valores adicionais, imagens que os
diferenciam dos concorrentes, oferecendo às pessoas o consumo, não do objeto em si, mas do
signo que o substitui, como sugere Baudrillard (1973:207). Desta forma, ao diferenciar os
produtos por meio de uma linguagem própria, a publicidade cria o público, reúne os
consumidores ao redor de seu produto, proporcionando intercâmbios entre produtores e
consumidores, isto é, constrói-se uma rede entre eles, tendo por centro um determinado produto.
Nesse processo, a linguagem e a retórica desempenham, como mostra Eulálio Ferrer (1984), um
papel fundamental.

É importante então que se observe à aproximação dos interessados na troca, a forma como a
publicidade liga os desejos, necessidades, sonhos e fantasias dos consumidores, às promessas de
que o produto apresentado irá realizá-los plenamente. É justamente aqui que entram as técnicas

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221

de marketing, e a necessidade de um conhecimento mais amplo da psicologia do consumidor.


Normalmente, nesses estudos enfatiza-se muito o poder da mídia religiosa, valoriza-se
excessivamente o papel do líder, quase sempre apresentado como o sujeito, que corrompe as
massas e o faz sem quaisquer escrúpulos. Raramente, tais analistas pensam haver na Igreja
Universal algo mais que manipulação. Observamos em nossa pesquisa que nessa Igreja, as
pessoas ouvem o que lhes é comunicado, se identificam e obedecem às determinações dessa
mídia, a maioria aparentando muita satisfação e alegria em fazê-lo. A este propósito, recordamos
uma afirmação atribuída a Alexis de Tocqueville: “se quisermos conhecer o poder da imprensa,
nunca devemos prestar atenção ao que ela diz, mas ao modo como é escutada”.

Por este motivo pretendemos, além de descrever a maneira pela qual a Igreja Universal emprega
a mídia, considerar que, tanto a sua como outras propagandas, se situam cada vez mais nas
fronteiras entre a realidade, desejos e sonhos de um público ávido por realizá-los. Portanto,
interessam-nos as conseqüências provocadas pela comunicação iurdiana e os processos de
mudanças, que ela provoca ou deixa de provocar no seu público alvo.

Faz parte também deste nosso conjunto de intenções, responder às seguintes questões: Como
uma organização religiosa se articula para influenciar as atitudes e comportamentos de uma
multidão de pessoas? Que papel a mídia controlada pela IURD, rádio, televisão, jornais e
revistas, desempenha na atração de milhões de pessoas que, semanalmente, passam pelos seus
mais de dois mil templos? Que mitos e representações coletivas subjazem neste esforço de
propaganda? Que técnicas de persuasão são empregadas pelo marketing iurdiano? Que
características próprias seus televangelistas desenvolveram, que os destacam dos demais
concorrentes?

Mas, como afirmamos acima, a discussão destes temas exige que se deixe de lado a tendência
generalizada de se ligar necessariamente a propaganda à mentira, fraude e desumanização. É
preciso ter em mente que a propaganda, aqui no sentido amplo, incluindo publicidade e
estratégias de marketing, é uma conseqüência direta de um sistema de se articular a vida ao redor
do mercado, pois como escreveu Renato Ortiz (1994:119), “no mundo em que o mercado torna-
se uma das principais forças reguladoras, a tradição torna-se insuficiente para orientar a cultura.”

Ao lado disso, aumenta a importância da mídia no processo de reengenharia do campo religioso e


da cultura de um modo geral. Mais do que nunca é preciso reconhecer que a cultura é um
conjunto de receitas determinadoras do comportamento humano, e que pode também ser
compreendida à luz da teoria do mercado regulador. Até porque, como conseqüência da
globalização, emerge com dinamismo uma “cultura internacional-popular”, portadora de um
“imaginário coletivo mundial”, ainda conforme expressões de Ortiz (1994:105). Tudo isso
resulta na recusa à cultura de folk, à alta cultura e na preferência por uma cultura kitsch e popular,
que incorpora em sua visão de mundo aspectos da religiosidade mínima do público. Isto eqüivale
dizer que está em andamento uma vasta operação de fusão do velho com o novo em cadinhos
culturais, que combinam todos os aspectos e dão ao produto resultante uma nova roupagem,
porém sem perder o seu aspecto popularesco.
A Igreja Universal se constituiu como movimento religioso num contexto de globalização, que
tornou possível o emprego da propaganda, publicidade e marketing religioso em seu processo de

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expansão. Esta prática mercadológica repousa no pressuposto de que é no ato de consumir


individualmente que o ser humano adquire a sua humanização e não na preocupação com os
excluídos desse processo. Nesse sentido, a propaganda tende a desempenhar nos sistemas
religiosos função semelhante ao do sangue no corpo humano, fazendo circular a mensagem do
centro às extremidades; daí, a ganância em se adquirir espaço na mídia e em se comprarem
emissoras de rádio e de televisão. Essa estratégia de crescimento na mídia reforça o que assinalou
Baudrillard (1994:27): “hoje é preciso produzir os consumidores, é preciso produzir a própria
demanda, e essa produção é infinitamente mais custosa do que a das mercadorias.”

A Igreja Universal tem tido muito sucesso, tanto em se adequar à demanda por sentido que já
existe no mercado, como também na constituição de sua própria demanda. Ela reorganiza a
demanda, combate outras agências oferecedoras de sentido e, assim, vai cavando para si um lugar
ao sol, por meio da propaganda e do marketing, no disputado mercado dos bens simbólicos, em
que se transformou o campo religioso no Brasil. É claro que, o emprego da propaganda hoje é
indispensável a qualquer movimento, com pretensões de expansão e não há religião que deixe de
lançar mão dela, seja desta ou daquela forma.

Porém, os grupos pentecostais brasileiros não aceitaram de igual modo, automática e


pacificamente, o emprego da propaganda e marketing. Há aqueles que jamais usaram jornais,
revistas, livros, rádio ou televisão para se expandirem, como por exemplo, a Congregação Cristã
no Brasil. Outros aceitam somente o rádio, como a Igreja Pentecostal Deus é Amor, e atingem
maciçamente pessoas ainda ligadas à cultura oral. Um terceiro grupo, os neopentecostais da
Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Renascer em
Cristo, Comunidade Sara a Nossa Terra e outros mais, empregam freqüentemente, telefone,
imprensa, rádio e televisão, com maior ou menor grau de profissionalização, usando-os na
divulgação de seus princípios, na atração de novos fiéis, na aculturação de sua “membresia”,
assim como também para se defender ou atacar outros grupos religiosos.

De onde, contudo, teria surgido essa percepção nos neopentecostais de que a cultura humana
estava caminhando para a era da informação? Para respondermos a tal indagação precisamos
analisar as origens históricas das estratégias e ênfases pentecostais, no campo da propaganda e
comunicação. Até porque, as estratégias de comunicação não resultam de uma decisão
espontânea de um movimento religioso ou político, pois são práticas que surgem num contexto
histórico e dão continuidade a formas anteriores de se responder aos desafios propostos pela
sociedade ao grupo ou movimento recém-organizado.

É possível reconstruirmos a trajetória no tempo de qualquer movimento religioso, inclusive o


cristão, do ponto de vista da história de sua propaganda e práticas publicitárias. Este não é o
objetivo primordial deste estudo, até porque ao fazê-lo, corremos o risco de projetar sobre o
passado tendências só recentemente desenvolvidas nas teorias sociais. Para o estabelecimento de
um nexo entre fenômenos do passado e do presente e compará-los, é importante que haja uma
visão, ainda que resumida, de algumas práticas propagandísticas adotadas pelos cristãos no
passado que, como pequenos córregos de água, desembocaram na prática atual dos
neopentecostais, agora sob a égide do mercado.

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6.2 A propaganda religiosa: entre a voz e a letra

Alguns teóricos da comunicação, incluindo-se McLuhan (1969) e Walter Ong (1967,1982,1992),


têm trabalhado com o pressuposto de que há uma mudança substancial na visão de mundo das
pessoas ao passarem do círculo cultural do falar e ouvir para um outro que privilegia a visão,
quer seja do texto escrito, ou das imagens geradas e distribuídas pelos meios eletrônicos de
comunicação.

Por isso, é difícil escrever sobre este assunto sem que se retomem algumas das contribuições de
McLuhan (1969), para quem a cultura moderna se situa entre o advento da “Galáxia de
Gutenberg”, centrada na escrita, e a “Aldeia Global”, síntese da revolução da tecnologia
eletrônica aplicada à comunicação. Porém, devido à ausência de estudos sobre isso, na área das
ciências da religião, só podemos dar razão a McLuhan (Babin,1978:42) ao reclamar da falta de
interesse dos teólogos e liturgistas em discutirem com mais profundidade as implicações dessa
revolução para a comunicação da fé cristã.

À perspectiva anterior acrescentamos as observações de Walter J.Ong (1992:182) que, entre os


anos 60 e 80, apresentou estimulantes contribuições para a discussão do contraste entre a
oralidade e a cultura da escrita. Segundo Ong, “muitos dos nossos problemas litúrgicos são
identificáveis em termos de ajuste à nova oralidade de nossa era (...)”, ou melhor, da oralidade
resultante da tecnologia, uma “oralidade secundária, contrastada com a oralidade primária de
culturas pré-literárias.”

Essas considerações provocaram em Quentin J. Schultze (Daniel R.Miller,1994:65-88),


observações importantes para o estudo do pentecostalismo latino-americano, intitulado Orality
and power in Latin American pentecostalism. Nesse texto, Schultze trabalha o argumento de que
o sucesso do pentecostalismo na América Latina está ligado à existência de uma sólida e
tradicional cultura oral-auditiva, que tem predominado sobre a cultura literária e que, por isso
mesmo, “os pastores pentecostais, como condutores de uma cultura oral, são conhecidos mais
por suas habilidades de mover e agitar a congregação, emocionalmente, do que por seus
conhecimentos ou cultura” (Ibid.:78).

Essa perspectiva apresentada por Schultze nos ajuda a melhor valorizarmos o emprego da cultura
oral nos programas radiofônicos ou televisivos, pelos pentecostais: “Parece que o
pentecostalismo latino-americano é altamente oral e que a sua oralidade tem se mesclado
eficazmente com a oralidade indígena da região, bem como com necessidades específicas dos
pobres urbanos.” (Ibid.:83). Aliás, Walter Hollenweger (1976:131,139), também emprega a
“oralidade” como uma categoria importante para se compreender a Congregação Cristã no Brasil,
como um exemplo de religiosidade oral. Em outro texto, Hollenweger (1986:1-12) insiste em que
a comunicação pentecostal privilegia a espontaneidade no culto, os testemunhos, fazendo com
que cada fiel participe, criativa e espontaneamente, de uma longa cadeia de tradição narrativa
oral, da qual o seu relato de milagre e conversão é uma pedra a mais, nessa grande construção de
mundo.

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David Martin (1990:188) argumenta, na mesma linha ao afirmar que foi exatamente na América
Latina que as características de uma sociedade pré-literária se uniram às de uma sociedade pós-
literária para provocar conjuntamente, uma super-valorização da cultura oral-auricular. A
oralidade no pentecostalismo, portanto, une práticas antigas e modernas, fazendo o itinerário
contrário das demais denominações que, ao se expandirem pelo Continente, esperavam que o
convertido rompesse com a cultura oral para aceitar a cultura literária e escolarizada, por elas
propostas. Por este motivo, ainda segundo David Martin (Ibid.:167), “enquanto as antigas
denominações protestantes enfatizam a literalidade”, os pentecostais “trabalham com a tradição
oral auxiliada, às vezes, por ícones visuais do cinema e televisão religiosos.”

Para compreendermos melhor a postura oral do pentecostalismo e a ênfase neopentecostal na


audição e visão, voltemo-nos um pouco para aquele período no qual se gerou a necessidade dos
documentos escritos. Assim, poderemos verificar o quanto o cristianismo dependeu das
escrituras, num período posterior à perda da centralidade no elemento oral. Porém, a maior parte
da história da expansão da fé cristã se deu num mundo dominado pela cultura oral, quando o
privilégio do domínio das letras era reservado a poucos, entre eles os clérigos. A Igreja
estabeleceu ao redor da palavra fundadora, princípio de tudo, uma cultura que pretendia
equilibrar a ação dos pregadores, dos recitadores e trovadores, com uma rede de tradições cuja
voz erudita era registrada nos livros pelos escribas de plantão. Assim, durante toda a Idade
Média, a retórica do púlpito, das festas, dos palcos e mosteiros conviveu com vetustos
manuscritos. Nesse clima se expressaram as tensões entre a religiosidade popular dos analfabetos
e o autoritarismo da religião oficial dos letrados, como analisa Paul Zumthor (1993).

Muitos protestantes, em especial os fundamentalistas, têm por hábito tomar como começo de
tudo, algo que veio depois, as escrituras sagradas. Entretanto, não podemos nos esquecer de que
os evangelhos e escritos neotestamentários são resultantes da ação propagandística das primeiras
comunidades cristãs. Naquela época, os grupos de fé se articulavam ao redor das narrativas
piedosas, transmitidas oralmente, situação que possivelmente, perdurou durante as três ou quatro
décadas posteriores à execução de Jesus de Nazaré.

Com o desaparecimento da primeira geração de fiéis cristãos, surgiu a necessidade de


sistematizar as narrativas, de coordenar algumas versões em fase primária de produção escrita,
quase sempre com finalidades catequéticas, resultando desses esforços uma coleção de escritos
considerados canônicos pela Igreja, no final do século seguinte. Sintomaticamente, o
“fechamento” do Cânon esbarrou nas exigências dos “carismáticos” que, reunidos ao redor de
Montano, defendiam que o cânon se mantivesse aberto às novas comunicações vindas de Deus.
O montanismo gnosticista foi uma das tentativas de se recuperar a força criadora do Espírito, que
transcende a “letra que mata” em nome do “Espírito que vivifica”.

Naquela época, já se vivia o momento da apologética e da luta contra as influências da cultura


greco-romana sobre a fé cristã. Ao defenderem a fé, os pais da Igreja produziram mais uma
coleção de documentos escritos - a patrística. Assim, a oralidade foi colocada em segundo lugar,
tendência que na Idade Média provocou a cisão entre a religião oficial, da qual a instituição e os
documentos eram a exteriorização, e a religião popular, sustentada por tradições que incluíam

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225

revelações particulares de místicos visionários, mitos, símbolos e práticas sincretizadas com as


antigas religiosidades pagãs.

A valorização dos escritos seria retomada com muito vigor pela reforma protestante do Século
XVI, quando então o livro, resultante da invenção da imprensa no século anterior, se tornou a
alavanca principal da estratégia protestante de combate a instituição católica. Por esse motivo, o
protestantismo deve muito de sua expansão ao advento da imprensa, pois as idéias de Lutero
ganharam enorme influência, graças à ampla e rápida divulgação de seus escritos na Europa. Da
mesma forma Calvino se notabilizou, tanto pela reforma empreendida em Genebra, como
também pela publicação do livro Instituição da Religião Cristã, em 1536.

Naquele século e também no posterior, a comunicação escrita se tornou uma arma muito
importante nas guerras religiosas. A Igreja Católica respondeu a essa nova conjuntura com a
publicação do Index, lista de livros proibidos para os católicos (1559), com o Concílio de Trento
(1562) e com a divulgação da constituição apostólica Dominici Gregis (1564). Nos novos
domínios católicos na América procurou-se estabelecer um campo religioso monopolizado e
fechado à penetração protestante. No Brasil, isso implicou no controle da circulação de escritos,
tanto que, no final do período colonial, o País tinha pouco mais de três milhões de habitantes,
uma alta taxa de analfabetos e pouquíssimas escolas. A circulação dos valores religiosos e
culturais, de um modo geral, passava necessariamente pelos conventos e igrejas, ou então pelos
agentes leigos da religiosidade popular, cuja produção era respeitada pelo povo e tolerada pelo
clero, desde que não colocasse em risco os mecanismos de poder. Desta forma, a própria Igreja
Católica criou um clima de oralidade, da qual o pentecostalismo iria posteriormente se aproveitar
para se instalar e crescer vertiginosamente.

A irrupção do protestantismo no Brasil e de outras forças modernizantes no Século XIX, foi


antecipada pelo aumento da circulação de textos escritos, de inspiração não-católica. Antes da
chegada de Robert Kalley, congregacionalista, e de Ashbel G. Simonton, presbiteriano, na
metade do século, viajantes distribuíam bíblias, livros devocionais e panfletos protestantes no
interior do País. Com o estabelecimento definitivo dos protestantes históricos, conforme análise
de Emille-G.Leonard (1963), surgiram os jornais e editoras, instaurando-se no Brasil um tipo de
protestantismo conhecido como a “religião do livro”, que pouco atingiu as massas de pobres,
analfabetos e excluídos, do círculo da cultura da escrita.

Por isso, a propaganda do protestantismo histórico não teve no Brasil a mesma repercussão da
pentecostal, justamente por ter-se tornado herdeiro de uma cultura, que quis encerrar a força do
verbo nos moldes frios da escrita. Em outras palavras, o protestantismo atuou aqui com a sua
criatividade reduzida, diante da força da celebração e do dinamismo de uma outra linguagem, por
ocasião do advento da comunicação eletrônica. Além do mais, essa nova era trouxe de volta a
proeminência da palavra, ritmo e som, coisas intrinsecamente ligadas à comunicação oral-
auditiva. Foi nesse contexto, que os “credos tipográficos” e as estratégias escritas de
comunicação religiosa perderam a competitividade, cedendo lugar a novas expressões de fé, que
pudessem aproveitar a “cultura da oralidade”.
Daí ser importante a apreensão global das formas de comunicação e propaganda, usadas pelo
pentecostalismo na imprensa, rádio e televisão, práticas essas presentes nas estratégias da Igreja

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226

Universal do Reino de Deus. Este excurso histórico mostra que a IURD está ligada a uma
tradição do neopentecostalismo de cura divina, de procedência norte-americana, não
representando então nenhuma novidade em suas ênfases no emprego do rádio, televisão e
jornais. Insistimos também em que as estratégias de propaganda e publicidade iurdianas não
resultam de uma idiossincrasia empresarial de Edir Macedo ao insistir em adquirir emissoras de
rádio e de televisão; muito pelo contrário, esta opção é resultante da própria lógica de um
movimento religioso voltado para as massas e que, para atingi-las ou tentar moldá-las, necessita
ter um acesso imediato e sem obstáculos aos meios de comunicação preferidos por elas.

O pentecostalismo, que aqui surgiu no início deste século, foi gerado num grande laboratório de
novos movimentos religiosos - os Estados Unidos - iniciado no Século XVII. Ressaltamos
também que a capacidade de atração do pentecostalismo tem algo a ver com a força da cultura
oral-auditiva dos negros, hispânicos e brancos pobres, conforme Quentin J. Schultze (1994:67).
Assim, no Brasil, o pentecostalismo, como “religião do espírito”, empregou com sucesso formas
de propaganda que combinam o ouvir e o falar, no púlpito, no contato face à face e, mais tarde,
no rádio. O pentecostalismo nasceu daquele ímpeto de novidade, que estimula rápidas
divulgações, que exigem serem contadas de qualquer forma. David Martin (1990:163) escreveu
que o “Evangelicalismo, e mais particularmente sua variante Pentecostal, é um sistema de
comunicação.” Contudo, essa comunicação foi durante muito tempo uma “comunicação fática”,
que fazia da linguagem emotiva e direta, maneiras de se criar gregarismo e convívio comunitário.
Vejamos então como se deu a montagem desse “sistema de comunicação” no Brasil.

O pentecostalismo, inicialmente, divulgou seus princípios, através da infra-estrutura montada


pelo protestantismo histórico, usando os templos, onde fiéis ansiosos esperavam a chegada de um
“avivamento espiritual”. Assim aconteceu em Belém quando Berg e Vingren usaram como base
inicial de pregação pentecostal um templo batista, cujo pastor era um sueco como eles. Da
mesma forma, agiu Franciscon, um ítalo-americano, que fez do templo presbiteriano do Brás,
então um bairro italiano de São Paulo, o primeiro lugar onde se pregou o pentecostalismo no
Brasil. A disseminação do novo movimento se deu especialmente através da aldeação, quando
famílias migraram para outras regiões, levando com elas a mensagem pentecostal, seguidas
depois pelos pastores. Predominava a propaganda pessoal. Foi assim que a Assembléia de Deus
se deslocou do norte-nordeste para o centro-sul do País e a Congregação Cristã no Brasil, no
sentido inverso, expandindo-se por meio do contato familiar, mecanismos de expansão
analisados em profundidade por Red E. Nelson (1983:29-37;1993:653-682).

A situação somente se modificou nos anos 50, quando surgiram nos Estados Unidos novas
modalidades de propaganda e publicidade pentecostal, popularizadas pelo ”movimento de cura
divina”, entre elas as grandes concentrações em praças públicas, estádios e tendas de lona e o uso
maciço do rádio na publicidade de milagres e prodígios. Paralelamente a isso, no caso brasileiro,
houve uma modernização dos meios de comunicação de massa a partir dos anos 50, quando
entraram em funcionamento no Rio de Janeiro e em São Paulo as primeiras emissoras de
televisão e, na década seguinte, a introdução de novas tecnologias na transmissão em microondas
e depois via satélite, possibilitando a montagem de redes de rádio e de televisão. Dessa forma,
parcelas do pentecostalismo se instalaram na mídia radiofônica e televisiva.

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6.3 Pentecostalismo, uma “religião oral” e a sua imprensa

O tratamento dado pela imprensa ao pentecostalismo, por ocasião de seu surgimento nos Estados
Unidos, criou desconfianças que, oito décadas depois, ainda perduram. Por esse motivo, os
pentecostais rapidamente perceberam ser impossível confiar na imprensa secular, menos ainda na
religiosa, e reagiram, fundando seus próprios jornais e revistas. Todavia, a criação de uma
imprensa própria aconteceu mais entre os pentecostais norte-americanos do que entre os latino-
americanos, pois os primeiros não dispensaram, ao contrário dos brasileiros, durante o período de
expansão, o uso da comunicação impressa. Como resultado disso, vários grupos fundaram jornais
e editoras, publicaram revistas e livros, assim como organizaram seus próprios institutos
bíblicos, destinados a formar pregadores e apologistas de um movimento que a princípio
assumira posturas antiacadêmicas. Um dos primeiros seminários pentecostais surgiu em 1916, no
Estado de Arkansas e, grande parte do sucesso da Igreja do Evangelho Quadrangular se deve ao
instituto bíblico, criado por Aime S. McPherson, em 1923.

As primeiras publicações eram quase artesanais e incluíam além dos jornais, revistas e livros,
também folhetos e panfletos, que passavam de mão em mão com rapidez. Muitos livros e
tratados foram enviados a várias partes do mundo, provocando em leitores distantes experiências
espirituais, que os tornavam ligados em espírito à irmandade de Azusa Street. Um desses textos,
The baptism of the Holly Ghost and fire, escrito por Minnie F. Abrams, missionária pentecostal
na Índia, foi remetido por ela mesma a Willis C. Hoover (1856-1936), pastor metodista em
Valparaiso, desencadeando no Chile um grande movimento pentecostal autóctone que, 85 anos
depois, ainda permanece dinâmico.

Grande parte desses primeiros escritos enfatizavam as práticas e ensinos peculiares do


movimento pentecostal. Alguns jornais e revistas já existiam quando seus diretores ou donos se
tornaram pentecostais. Assim aconteceu com o jornal Apostolic Faith, fundado no final do século
XIX, por Charles F. Parham (1873-1929), diretor da escola bíblica de Topeka e com a revista
Triunphs of Faith, publicada a partir de 1881 durante 65 anos, por Carrie Judd Montgomery
(1858-1946), cujo objetivo era divulgar a cura divina e a promoção da santidade.

A multiplicação de material impresso por pentecostais foi tão rápida quanto o movimento, pois já
em 1908, J. Roswell Flower, na revista The Pentecost listou 21 publicações pentecostais que
circulavam naquele momento, a maioria delas publicadas nos Estados Unidos e algumas outras
no Japão, Índia, África do Sul e Europa. Em 1917, a pioneira de várias atividades pentecostais,
Aimee S. McPherson (1890-1944), percebeu o valor da imprensa e iniciou a publicação de
Bridal Call, que após a sua morte se fundiu com Crusader, dando origem ao Foursquare
Magazine.

Esta falta de unanimidade de pensamento entre os líderes pentecostais refletiu-se em suas várias
publicações. Os jornais e revistas espelhavam as tensões existentes entre as lideranças que,
apesar das experiências místicas semelhantes, desenvolveram muitas vezes, maneiras opostas de
interpretar vários aspectos da fé cristã. Assim, os temas, que dividiram os pentecostais
inicialmente também foram encampados pelos jornais sob a influência de seus defensores. Isto
aconteceu com a questão racial, que dividiu os pentecostais em negros e brancos; os modos de

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batismo, se seria em nome de Jesus ou da Trindade; a lavagem dos pés na liturgia de culto, o
emprego dos dons do Espírito, e até o conflito entre Seymour e Durham, batista de Chicago,
sobre a questão da existência de dois ou três estágios na vida do cristão.121

Porém, sob o calor das primeiras disputas, alguns jornais mudaram de direção. Por exemplo, o
próprio jornal Apostolic Faith, fundado por William J. Seymour (1870-1922), que em 1906
divulgava por toda parte os eventos de Azusa Street e tinha então cerca de 50 mil assinantes,
escapou ao controle de suas mãos. Em 1908, Florence Crawford (1872-1936), branca, também
uma das líderes de Azusa Street e que ajudava Seymour na publicação do jornal, rompeu com ele
e levou a lista de assinantes para a cidade de Portland, Oregon, de onde o jornal continuou a ser
editado, enquanto ela fazia surgir ali uma nova denominação pentecostal.

A princípio no Brasil, os dois grupos pentecostais mais antigos, a Assembléia de Deus (AD) e a
Congregação Cristã no Brasil (CCB), não se preocuparam com publicações. Aliás, a CCB, fiel à
tradição da religiosidade oral, continua até os dias de hoje avessa a qualquer tipo de divulgação
impressa, radiofônica ou televisiva. Esta denominação mantém apenas um hinário, dois pequenos
panfletos que relatam a chegada no Brasil de Franciscon, o fundador, e um relatório anual com o
número de batizados, endereço dos templos e o nome dos responsáveis por eles. Com a AD
aconteceu diferente, pois, em 1917 um de seus missionários já editava um pequeno jornal, e, em
1930 entrou em circulação o, hoje sexagenário, Mensageiro de Paz. Em 1937, foi fundada a Casa
Publicadora da Assembléia de Deus, entidade com um importante papel no processo de
institucionalização dessa denominação brasileira.

6.4 A Igreja Universal e a mídia impressa

A Igreja Universal, quanto ao uso da imprensa, também reproduz a trajetória dos demais grupos
pentecostais. A princípio privilegia-se apenas a oralidade, depois, combina-se a confecção de
pequenos jornais e panfletos, de cartas endereçadas à redação dos jornais e compra de espaços na
imprensa, material publicado sob o título “publicidade”. Mais adiante, por causa dos ataques dos
concorrentes e adversários, o grupo é forçado a montar gráfica e editora, dando início a sua
própria imprensa.

Revista “Plenitude”
O primeiro instrumento de mídia impresso pela Igreja Universal, Plenitude, surgiu em 1983, seis
anos após a fundação da Igreja. Em julho de 1990, essa revista já estava em seu no seu 50°
número com uma tiragem de 200 mil exemplares, publicada bimestralmente. Mas, nos anos 90,

121
A polêmica teológica sobre a quantidade de estágios na vida do cristão colocou de um lado os que aceitavam a
fórmula “conversão”, “batismo do Espírito Santo” e “santificação” e de outro, os que aceitavam a tese endossada
por C.H.Durham, que afirmava haver apenas duas fases: “conversão-santificação” e “batismo com o Espírito
Santo”. O conflito levou Seymour a excluir Durham da obra Apostholic Faith, mesmo depois de ter profetizado
que “onde quer que esse homem [Durham] pregue o Espírito Santo cairá sobre as pessoas”. Imediatamente,
“revelações” surgiram para explicar que o diabo estava agora usando Durham para divulgar ensinamentos falsos
quanto a ação do Espírito Santo, de acordo com transcrições de W. Hollenweger (1979:11, 12)

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com a ênfase dada ao jornal Folha Universal, a revista deixou de circular, com a promessa de
retornar logo mais, o que até o final de nossa pesquisa ainda não tinha ocorrido.

Analisamos o número 50 da revista Plenitude (Ano VII, n.50:1990), cuja capa trouxe a
fotografia de uma concentração realizada no Estádio do Maracanã, em abril daquele ano. De
joelhos, orando sobre os pedidos escritos pelo povo, aparecem na foto os pastores Gonçalves e
Renato Suhett, ao lado de Edir Macedo. A primeira página contém uma “carta ao leitor”, escrita
pelo diretor da revista, o bispo Macedo. Nela, atribui-se à Igreja Católica o início de uma
perseguição a IURD, porque aquele “gigante adormecido” estaria perdendo adeptos para uma
Igreja, que “tem trabalhado pela transformação de viciados, alcoólatras e outras pessoas de vida
perdida”.
“Um padre só sabe dizer: ‘reze minha filha’. Ora, o povo já cansou de rezar! O povo quer
ver a sua vida mudada. [Os] doutos junto com suas teorias [não podem entender como]
um ‘pastorzinho’, com a sua ‘ridícula 4ª série do primeiro grau’, impõe sua mão sobre a
cabeça do dito cujo, e a pessoa é liberta, não voltando mais ao vício.”
Do ponto de vista do articulista, a causa da perseguição movida a IURD se deve justamente a sua
eficiência. Para confirmar essa tese, logo em seguida, vinha a matéria principal daquele número,
a concentração que a Igreja Universal realizou em maio na pequena cidade de Itu, no interior
paulista, a despeito da pressão do clero católico e da descrença de algumas pessoas que ali
compareceram. Fotografias mostram Macedo de joelho orando no palco, cenas de exorcismo e
reprodução de folheto espalhado pela cidade nos seguintes termos:
“O Desafio à Fé do Povo de Itu. Está anunciado uma explosão de Milagres no Estádio
Municipal neste domingo. NÃO COMPAREÇA. É uma exigência da fé em que os nossos
pais nos educaram. Deus não cura nossas doenças por explosão. Fiquemos só com o
Cristo e a fé de nosso Batismo. Assinam: Os PADRES, seus amigos da Igreja Católica.
[Abaixo, em letras maiúsculas] “Cuidado com falsos profetas” (sic).
A reportagem de Plenitude afirma que aquela concentração “abalou os mais profundos pilares do
diabo, que reinava naquele lugar”, concluindo com o registro de uma bravata entre o bispo e
alguns incrédulos, acontecida logo após a “oração forte”, quando Macedo desafiou “quem tivesse
coragem e ‘fosse macho de verdade’ que viesse conferir caso duvidasse se as pessoas no altar
estavam realmente incorporadas com espíritos ou estavam fingindo”. A revista informou que
dois homens foram a frente e que um deles saiu “mordido por um espírito” (sic) e o outro acabou
incorporando um “Exu do lodo”, o que teria exigido mais um exorcismo.

No mesmo número de Plenitude há uma reportagem sobre uma noite de vigília, realizada na
Praia de Copacabana, no Posto 2, em 1.7.90, intitulada “vigília da justiça”, a qual durou das dez
da noite até o amanhecer, com muitos cânticos, orações e exorcismos. Esse evento tinha por
objetivo mobilizar os fiéis contra denúncias, que a televisão e os jornais estavam fazendo
naqueles dias contra a IURD. Mas, durante essa vigília não ocorreram conflitos com moradores
da região, como em outras oportunidades. Isso porque, a Igreja usou pela primeira vez uma nova
estratégia, que constava da transmissão do evento pela Rádio Copacabana, de propriedade da

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Igreja, que, captada pelos seguidores com fones nos ouvidos, lhes permitia acompanhar tudo sem
necessidade do emprego do sistema de som com alto volume.122

Além da luta contra a Igreja Católica, aquele número também trazia matérias contra os cultos
afro-brasileiros. Sob o título “contra fatos não há argumentos” a revista apresentou o caso de uma
adolescente, que teria sido sacrificada num ritual satânico na Bahia, assim como também
reproduziu notícia publicada em o “O Globo” sobre a prisão de um pai-de-santo no estado de
Mato Grosso do Sul, acusado de ser responsável por cerca de trinta mortes, em cerimônias
religiosas junto a cachoeiras.

Percebe-se o alinhamento da revista à apologética da Igreja Universal que busca, além de atacar
os adversários do campo religioso, reforçar as crenças dos leitores, ressaltando neles o orgulho de
fazer parte de uma Igreja que, por causa dos resultados apresentados, sofre perseguições das
forças diabólicas, através do catolicismo ou das religiões afro-brasileiras. Divulgavam-se ainda
nesse número, livros editados pela Gráfica Universal, como por exemplo Orixás, Caboclos e
Guias, e os programas radiofônicos produzidos pela Igreja. Um anúncio publicitário apresentava
um aparelho telefônico, com o nome do programa da Rádio São Paulo, “Boa noite amigos. Ligue
pelo ‘D.D.D.’, discagem direta com Deus, à partir das 22 hs. no 843-5815” (sic).

Revista “Mão Amiga”


A revista Mão Amiga tem um perfil diferente da revista Plenitude. Até porque Mão Amiga é
publicada pelo braço assistencial da Igreja Universal, “Associação Beneficente Cristã”, (ABC),
entidade que analisaremos mais adiante. Essa revista possui estratégias ambíguas, pois, de um
lado procura se desvincular da imagem pública da Igreja Universal, fazendo propaganda da
distribuição de alimentos pelo “Movimento Brasil 2000 - Futuro Sem Fome”; de outro lado, se
empenha em mostrar a “face oculta” da IURD, uma Igreja que além de recolher ofertas ajuda aos
pobres, famintos e miseráveis. Desta maneira, a ABC torna viável uma política de marketing
institucional, necessidade premente para uma Igreja bombardeada constante e violentamente pela
mídia, no que se refere às suas relações com o dinheiro. 123

Atualmente (1996) o editor dessa revista é um presbiteriano independente, Nehemias Vassão,


que fez brilhante carreira no jornalismo secular, dirigindo por décadas, até a sua aposentadoria, a
revista Quatro Rodas, da Editora Abril. O número seis de Mão Amiga traz um encarte
publicitário de quatro páginas com publicidade de produtos estéticos comercializados por Sand

122
Obviamente a revista Plenitude nada diz sobre as concentrações anteriores na Praia do Leme (7.5.88) e em
Copacabana (19.7.88), quando houve conflitos com os moradores da região por causa do excesso de barulho e de
sujeira nas praias, conforme O Globo (8.5.88). O barulho provocou também dificuldades nas relações com a
vizinhança, no templo da Rua Riachuelo, episódio rotulado pela imprensa de “batalha do Riachuelo”, de acordo
com Jornal do Brasil (19.9.88).
123
Pesquisa realizada pela Folha de S. Paulo, (14.1.96) que comentaremos em outra parte deste trabalho, concluiu
que a IURD tem uma imagem negativa para 70% dos paulistanos. Esse alto índice de negatividade exige de
qualquer entidade um esforço propagandístico e retórico de recuperação. A contra-ofensiva de propaganda
desencadeada pela IURD, após dia 22.12.95 (data em que a Rede Global divulgou cenas de uma gravação de
vídeo, que retrata os bastidores da vida cotidiana de pastores e bispos da Igreja Universal) para passar da situação
de vilania para uma de vítima é um bom exemplo de como uma imagem pode ser revertida. Por isso pressupomos
que a atuação da ABC também faz parte da reconstrução da imagem dessa Igreja diante do opinião pública, por
meio da assistência social.

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231

Lake e na contracapa, publicidade da Rádio Record e do projeto de “disk-prêmios”, da Prefeitura


de Santana de Parnaíba. A última capa, em quatro cores, assim como a revista toda, apresenta os
últimos lançamentos de livros da Editora Gráfica Universal.

Mão Amiga é uma revista de diagramação moderna, papel brilhante, fácil de ser lida. O número
aqui analisado traz na capa o mapa do Brasil, fragmentado em sete pedaços e, cada um deles,
representando um dos grandes problemas do País: violência, miséria, fome, greves, desemprego e
corrupção, impunidade e idolatria. Sobre esse mapa estão impressas em vermelho as palavras:
“Cristianismo Já”. Na entrada do templo do Brás o material da ABC, fitas de vídeo, revista,
bonés, chaveiros e camisetas, não são vendidos na livraria da Igreja e sim à parte, no corredor.
Quando alguém comenta que o preço de algum desses objetos está caro, o responsável, um
obreiro da IURD diz que “o resultado da venda desta banca é encaminhado direto para a
campanha contra a fome e a miséria da ABC”.

No início de 1996 a Igreja Universal informava ter distribuído no ano anterior mais de sete
milhões de quilos de alimentos. Segundo o pastor Mário Luiz, (Folha Universal, 28.1.96) “este
trabalho não é lobby, é comida no estômago da família”. Contudo, o esforço assistencial da ABC
se concentra em São Paulo e Rio de Janeiro, onde ela concorre com empreendimentos da VINDE
(com a sua Fábrica Esperança, do pastor Caio Fábio Jr. e a campanha “Ação da Cidadania Contra
a Fome e a Miséria Pela Vida”, iniciada pelo sociólogo Betinho, com apoio da Rede Globo de
Televisão).

Matéria paga: apologia e publicidade


Além de usar apologeticamente a sua própria imprensa, em determinados momentos, a Igreja
Universal, a título de “restauração” da verdade “distorcida” pela imprensa “sem Deus”, compra
espaço em jornais de grande circulação nacional. Analisemos a seguir pelo menos dois exemplos
dessa prática publicitária.

A execração pública de um dissidente - “O beijo do Judas”


Carlos Magno de Miranda foi, até o início dos anos 90, responsável pelo trabalho da IURD no
nordeste brasileiro. Possivelmente, como se concluí através de publicações da Igreja, Miranda
tinha pretensões de ascender rapidamente dentro da hierarquia iurdiana e chegou, à revelia de
Macedo, a se candidatar a deputado federal. Sem nada conseguir, ele entrou em atrito com o
bispo Macedo e abandonou a Igreja, quando então convocou a imprensa para apresentar uma
série de denúncias, algumas delas envolvendo a compra da Rede Record, e uma possível
captação de recursos financeiros vindos do tráfico de drogas da Colômbia. Essas denúncias
tiveram alguma repercussão na mídia, conforme Jornal da Tarde (5.4.91), porém, apesar de
fazerem referências a gravações em áudio e vídeo, essas imagens viriam a público apenas a partir
de 22.12.95, quando a Globo as transformou em “escândalo nacional” (IstoÉ, 27.12.95:20-24).

Para responder a tais denúncias a IURD publicou na Folha de S.Paulo (2.6.91) uma matéria
paga, intitulada “o beijo de Judas”, cujo teor se resume numa tentativa de expor à execração
pública um ex-pastor, agora estabelecido com um templo dissidente. Nessa peça publicitária a
Igreja Universal se identifica com Jesus, que tal como a mesma também foi traído. Até então essa

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Igreja ainda não tinha experimentado o “sabor amargo do beijo de um Judas”. Mas, essa traição
tinha vindo justamente de alguém que, “durante dez anos se escondeu sob a capa de cristão” e
que agora, sob a imagem de “dissidente” estaria apenas com “intento de extorquir” dinheiro da
Igreja. Ainda, segundo aquele texto, Magno não conseguindo realizar seus planos “lançou-se
desesperado numa campanha infame contra a Igreja que tão bem o acolhera”. Agora ele estaria
“decaído e (sic) transloucado (...) doente e necessitado de amparo”, pois não passava de um
“lunático”, portador de um “caráter deformado”. Carlos Magno não era só “traidor da Igreja”,
mas também da esposa, cuja imagem teria sido denegrida por ele na mídia ao acusá-la de
“conduta desonrosa” e do próprio irmão, ao qual Magno teria dado ordem de assassinato. A
mensagem invisível era bem clara: “O que se pode esperar de um homem que traiu Deus, a
Igreja, sua mulher e até o irmão?”

No final de 1995, com a retomada das denúncias acima, pela Rede Globo, que teria comprado de
Miranda as fitas de vídeo, fez ressurgirem nessa Igreja os mecanismos de execração pública de
um de seus dissidentes, criando assim um “inimigo comum” de origem interna, um novo
“Judas”. Na edição especial de apenas duas páginas da Folha Universal, (31.12.95), publicada às
pressas para responder a esses ataques, na parte inferior da página há uma fotografia do “Judas” e
a chamada de capa: “Carlos Magno condenado por calúnia e difamação” a um delegado de
polícia. Obviamente, a matéria não diz que os fatos que provocaram a condenação de Miranda se
deram enquanto ele ainda era pastor da Igreja Universal. Além do mais, os argumentos
articulados contra o “dissidente” são do tipo argumentum ad hominem, pois destinam-se a
denegrir a credibilidade de quem fala sem que haja qualquer discussão sobre o mérito das
denúncias feitas.124

Essa edição de 31.12.95 trouxe como manchete principal: “Igreja Universal está acima do
Bispo”, uma demonstração de que está em andamento um processo de desvinculação entre o
carisma de Macedo e a instituição IURD. Sob a manchete, fotografia de uma multidão de mais de
duas mil pessoas num templo, ocupando quase a metade da página, acompanhada da legenda: “O
Bispo assusta, a Igreja incomoda e a Record preocupa”. Na parte inferior da primeira página, ao
lado da fotografia de Carlos Magno a do pastor, Caio Fábio Jr., da AEVB e VINDE, também
considerado “inimigo da causa iurdiana”, acusado de enviar carta a membros da própria Igreja
Universal, pedindo dinheiro para seus projetos de assistência social e de comunicação.

Na segunda página, a Folha Universal reproduz a fala de Macedo, a qual que fora dirigida dos
Estados Unidos pelo rádio, para toda a Igreja, no auge das denúncias de Magno na Rede Globo.
A fala do bispo destacava: “Carlos Magno quis vender a fita para nós por 300 mil dólares, disse
que se não comprássemos ele iria mostrar à Globo” (sic). Estas formas de argumentar deixam
claro como funcionam os mecanismos de estigmatização nas organizações religiosas ou políticas,
principalmente quando centradas numa autoridade carismática incontestável. Além do mais, tal
estratégia traz de volta a velha tática propagandística da criação e manutenção de inimigos

124
Os jornais do final de 1995 informavam que outras fitas comprometedoras de Macedo, as quais estavam sendo
levadas para serem entregues a jornalistas, tinham sido roubadas, no decorrer de um mal explicado seqüestro de
sua mulher e sogra, em Salvador., conforme Folha de S.Paulo, (28.12.95). Segundo esse mesmo jornal, (9.3.96)
alguns meses depois, Magno, a mulher e a sogra foram autuados em flagrante por terem inventado a história
desse seqüestro.

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comuns, com a finalidade de se fortalecerem os vínculos entre os participantes de um grupo. A


individualização do inimigo permite que a luta política pela hegemonia do campo religioso seja
vista como uma rivalidade pessoal, reduzindo-se dessa maneira as discussões de teses
complicadas a fáceis palavras de ordem e a alguns slogans.

Os inimigos são Carlos Magno, Papa João Paulo II, Caio Fábio, Mário Justino ou Roberto
Marinho, que na propaganda iurdiana se igualam numa mesma conspiração, cuja meta é
prejudicar o avanço da Igreja Universal, no Brasil e no mundo, mas que “acabam ajudando a
Igreja em seu progresso”, como gosta de afirmar Macedo. Esse mecanismo, em situações de luta
política, foi analisado por Raoul Girardet (1987) e Jean-Marie Domenach (1955).

Igreja Universal na Justiça contra o “grupo Mesquita”


Uma série de denúncias publicadas nos jornais pertencentes ao “Grupo Mesquita” de São Paulo,
principalmente pelo “Jornal da Tarde” no período de novembro de 1990 a abril de 1991, acabou
provocando um processo judicial. Novamente em matéria paga a IURD anunciava, em 25.11.90,
sob o título de “Comunicado”, assinado pelo “Presbitério Geral” da Igreja, a sua decisão de se
defender na justiça, pois seus pastores e fiéis estavam “cansados de sofrer uma campanha
difamatória empreendida pelo “Jornal da Tarde” do grupo ‘O Estado de São Paulo’ (sic)”.

Para isso, a IURD anunciava que tinha entrado no Fórum Regional de Santana com um processo
por “crime de calúnia e difamação contra o jornal e seus diretores responsáveis”. A queixa-crime
tomava por base a Lei de Imprensa, devido à publicação de uma “série de reportagens contra a
pessoa de nosso pastor Edir Macedo e a instituição da Igreja Universal do Reino de Deus”. Por
outro lado, o “Comunicado” afirmava ter por objetivo, “esclarecer a opinião pública sobre os
reais motivos que nos leva a tal procedimento” (sic).

Em abril de 1991, uma nova matéria paga era publicada na Gazeta Mercantil (3.4.91) e fazia
referência à reportagem do dia anterior, novamente no Jornal da Tarde, contendo “uma relação
de mentiras, preconceitos, desinformação, um desrespeito ao leitor do jornal e à própria
imprensa”. O título do comunicado era: A bem da verdade, e pretendia jogar os leitores contra o
jornal, acusando-o de praticar um “mau jornalismo”, insinuando que o “Grupo Mesquita” teria se
beneficiado de contrabando, remessa de divisas para o exterior, cartelização da impressão de
listas telefônicas e de operações fraudulentas para a construção da sede dos jornais em São Paulo.

As denúncias feitas pelos jornais citados envolviam questões relativas à empréstimos bancários,
que a Rede Record teria renegociado com o Banco do Estado de São Paulo S/A, no valor de um
milhão de dólares. Segundo o “Comunicado”, desta vez assinado pelo “Conselho Diretivo da
Rede Record de Rádio e Televisão”, a matéria do Jornal da Tarde, além de ser exemplo de “mau
jornalismo”, agredia “os profissionais da Rede Record ao dizer que ela estaria a serviço da
IURD” e que isso seria mentira porque a
“Rede Record está a caminho da profissionalização total e em franca expansão. É uma
rede de televisão comercial e como tal busca nada mais nada menos do que a viabilização
empresarial e sem dúvida a liderança, como é próprio de uma empresa competitiva (...) A
Igreja Universal tem apenas dois horários na programação, um no início e outro no final
das transmissões. E só.”

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Desta vez a matéria tocava no ponto fundamental, as relações entre a Igreja Universal e a
sociedade, por meio de seu canal de comunicação social, naquela época ainda um negócio
pendente de aprovação por parte dos órgãos competentes do governo federal. Era preciso uma
postura firme com os adversários, pois estava em jogo um negócio da alçada dos 100 milhões de
dólares e o futuro de uma Igreja, que optara por fazer da propaganda televisiva sua principal
estratégia. Mas, seria exatamente esta estratégia, que iria posteriormente provocar conflitos com
os demais integrantes do campo religioso e da mídia no Brasil, como veremos a seguir.

É bom ressaltar que tanto no affaire IURD x Carlos Magno como nos confrontos com a empresa
jornalística O Estado de S.Paulo, a Igreja Universal soube tirar proveito das rivalidades
comerciais existentes entre os vários grupos, que detêm o controle de jornais em São Paulo. A
escolha dos veículos foi sábia, pois publicou as matérias pagas em veículos envolvidos numa
competição pelo domínio do mercado jornalístico, tais como na Folha de S. Paulo (Grupo Frias)
e na Gazeta Mercantil (Grupo Levy), contra o Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde (Grupo
Mesquita).

Assistência social, representatividade e poder


A Associação Evangélica Brasileira (AEVB) pretende suceder à antiga Confederação Evangélica
do Brasil, entidade interdenominacional surgida em 1934 e desaparecida no final dos anos 60,
cuja meta era reunir as forças protestantes no Brasil ao redor de alguns projetos comuns.
Atualmente, essa reunificação de forças se torna cada vez mais difícil, devido às divisões
existentes no campo religioso, que colocaram barreiras muito sérias entre protestantes
“fundamentalistas”, “conservadores”, “históricos”, “evangelicais”, “carismáticos” e
“pentecostais” de várias vertentes. No início da AEVB houve uma tentativa de filiação por parte
da Igreja Universal, mas a sua entrada foi barrada sob a alegação de que havia dúvidas sobre a
identidade da IURD como “igreja evangélica”. Essa negativa provocou a ira da liderança da nova
Igreja, pois mesmo em nível internacional, como nos Estados Unidos, ela tem buscado aliança
com grupos evangélicos para consolidar a sua posição no campo religioso contemporâneo.

Rapidamente a frustração foi canalizada para a personificação de mais um adversário da IURD,


exteriorizado em sua propaganda, na figura do presidente da AEVB e da VINDE, Visão Nacional
de Evangelização, o pastor presbiteriano Caio Fábio de Araújo Filho, que exerce uma liderança
carismática, conseqüentemente forte, nessas duas entidades, assim como também Macedo exerce,
com poderes absolutos a autoridade última na IURD. A princípio o embate se deu mais em nível
regional, pois a assistência social promovida por Caio Fábio Jr. tem uma maior penetração no
Rio de Janeiro com a sua “Fábrica Esperança” e uma forte presença nos morros cariocas,
território “livre” da presença do Estado constituído, sob domínio do tráfico de drogas.

As escaramuças entre AEVB-VINDE e Igreja Universal ganharam força e se exteriorizaram na


mídia secular, após sondagens da IURD para dela se tornar sócia. Também a Igreja Universal se
queixa de não ter recebido apoio suficiente da AEVB por ocasião da prisão de Macedo, em 1992.
À partir de então, Macedo sentiu necessidade de costurar uma aliança com os que lhe ofereceram
algum apoio no episódio. Assim, ele se uniu a setores dissidentes da Assembléia de Deus, entre
eles o Ministério de Madureira, no ano seguinte ao pastor batista Nilson Amaral Fanini, hoje
presidente da Aliança Mundial Batista e a algumas pequenas denominações pentecostais,

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formando o Conselho Nacional de Pastores do Brasil (CNPB), entidade com intenções de


reproduzir o modelo da CNBB da Igreja Católica, e articular uma estratégia de oposição a
AEVB. Desde então, o CNPB encontrou na Rede Record um espaço para se expressar, assim
como na Folha Universal.125 Em 1994 foi fundada a Associação Beneficente Cristã, com a
finalidade de atuar de modo semelhante a VINDE-AEVB na área assistencial. Sobre isso,
denunciou Caio Fábio Jr. (O Estandarte, outubro 1993:10) que havia intenções político-
partidárias e imediatistas e que uma unidade desse tipo poderia comprometer os cristãos, em caso
de escândalos futuros.

Porém, em 1992, no período posterior à prisão de Macedo e dentro do clima criado pela
Conferência do Meio Ambiente no Rio de Janeiro, ECO-92, a AEVB divulgou com certo
estardalhaço na mídia o Manifesto à Nação Brasileira Acerca de Charlatanismo, Curandeirismo
e Estelionato (Jornal A Raíz, junho/julho 1992:8), que colocava em pé de igualdade práticas do
catolicismo popular e da IURD, entre elas: trato dos milagres, mecanismos de arrecadação de
dinheiro, festas populares e emprego de comunicação de massas. Portanto, segundo o
“Manifesto”, não havia sentido que a ação da justiça se desse somente contra a IURD,
endossando-se assim, indiretamente, a tese de que, por trás da prisão do bispo Macedo, estaria a
influência da Igreja Católica.

A AEVB porém, reconhecia a subjetividade das acusações e, para recuperar a objetividade de


julgamento recomendava que a Igreja Universal abrisse “a sua contabilidade a uma auditoria
independente, contratada pela AEVB”, a qual posteriormente viria “a público trazer os
resultados”, pois o que passasse disso seria tão-somente uma “caça às bruxas” a serviço de
“interesses escusos”. O texto, contudo, tocava numa questão de honra da Igreja Universal, que é
o sigilo de seus negócios, fechado inclusive às ações da Polícia Federal, cuja ação espetacular
seqüestrou documentos contábeis dessa Igreja, de seu Banco e da Rede Record, no início de
1996, todos devolvidos algumas semanas mais tarde por força de mandato judicial. 126

A partir desse “Manifesto” da AEVB, as relações com a IURD se tornaram mais tensas até que,
na esteira da mini-série “Decadência”, levada a cabo pela Globo em setembro de 1995, o conflito
veio à tona novamente. Caio Fábio deu entrevistas para a televisão e jornal O Globo (20.9.95)
sobre a IURD, ressaltando mais uma vez a “voracidade” da Igreja Universal por dinheiro. Nos

125
O Conselho Nacional de Pastores do Brasil, que foi fundado para servir como espaço de articulação político-
eclesiástico de Edir Macedo, parece não ter vingado. Ao escrever estas últimas notas, no final de 1996, não mais
observamos quaisquer referências a essa entidade, mesmo na programação da TV Record ou nos jornais da Igreja
Universal.
126
Sobre isso confira, Sérgio Torres, Operação conjunta faz busca na Universal. P.F., Receita, Banco Central e
Procuradoria da República ocupam as sedes das empresas ligadas à Igreja, (Folha de S.Paulo, 18.1.96) A IURD a
princípio dizia aguardar um rápido julgamento, porém, depois entrou com um mandado de segurança, n°
96.02.02938-2 no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, contra a decisão de intervenção em seus espaços e
documentos. O Juiz deu ganho de causa para a Igreja, usando em seu despachos frases como essas: “A Igreja
Universal do Reino de Deus e suas empresas têm razão em afirmar que estão sendo vítimas de uma devassa
criminal, desde que, concreta e especificamente, não se lhes imputou nenhum fato que constituiu crime da
competência da Justiça Federal”. Comprovando a parcialidade da imprensa sobre a questão constatamos que
nenhum órgão da imprensa secular que consultamos fez quaisquer referências a essa vitória da IURD na Justiça
Federal. Obviamente o assunto foi ampla e justamente explorado pelo jornal da própria Igreja com uma manchete:
“Fez-se justiça” (Folha Universal, (18.2.96).

235
236

dias seguintes, houve um novo “Manifesto” da AEVB, embora com certa moderação na retórica
anti-Macedo, articulada dias antes na entrevista de seu presidente.

Em primeiro de outubro de 1995 foi publicada matéria paga da IURD, que no caso da Folha de
S.Paulo chegou a ocupar 50% de uma página toda, sob o título: Manifesto ao Povo Evangélico
do Brasil. Isso aconteceu depois de uma série de programas especiais na TV Record, de ataques à
Globo e à pessoa de Caio Fábio, agora tratado pela propaganda da Igreja Universal de “reverendo
sem igreja”, “pastor da Globo” e “reverendo Balaão”, (um personagem bíblico que tentou
confundir o povo de Israel na peregrinação pelo deserto, com profecias falsas). Sobre Caio Fábio
Jr., um pastor da Igreja Universal nos disse (entrevista, pastor A.) que lamentava o acontecido
pois “tínhamos bons projetos para desenvolver junto com ele”.

Agora, o “Manifesto” iurdiano tinha por objetivo isolar Caio Fábio de suas bases de sustentação,
mostrando que a idéia da dificuldade de enquadrar a Igreja Universal no rol de “igrejas
evangélicas” era uma estratégia política muito pessoal dele, e nunca uma posição generalizada
entre os demais ramos protestantes. Uma charge publicada na Folha Universal (7.7.96), na
edição comemorativa dos 19 anos da IURD, é significativa e coloca no centro de uma mesa um
bolo de aniversário, assoprando as velas estão os “adversários” da Igreja Universal: o Papa, Caio
Fábio e Roberto Marinho. A idéia desenhada expressa o argumento principal do “Manifesto” que
afirma estarem, o “povo evangélico” e a IURD, sendo perseguidos pela Rede Globo e Igreja
Católica, e que Caio Fábio, ao aparecer na televisão, atacando a Igreja Universal, estaria
automaticamente posicionando-se contra o povo que dizia representar, o que lhe teria roubado o
direito de representação do “povo evangélico”.127Para confirmar tal argumento o “Manifesto”
apresentava a assinatura de pastores que se diziam representantes, respectivamente, da
Assembléia de Deus, Igreja Universal, Igreja Batista, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja
Presbiteriana, Metodista e o próprio presidente da Aliança Batista Mundial, pastor Fanini.

Concluímos, ressaltando mais uma vez a importância da mídia como espaço de batalhas
religiosas, de defesas e ataques para a Igreja Universal. Nele ocorrem estratégias de
sensibilização da opinião pública representada pelas autoridades administrativas, políticas,
policiais e judiciais do país, das quais a IURD espera o voto de desempate em sua briga com a
mídia, segundo ela, totalmente “globalizada”. Assim, faz sentido a manchete da Folha Universal
(18.1.96), que registrou o acolhimento de seu mandado de segurança por ocasião da apreensão de
documentos da Igreja Universal, levado a cabo pela Polícia Federal. “Ainda há justiça neste país:
acabou a devassa criminal contra a IURD”. Na realidade, a devassa não havia acabado e sim a
documentação contábil fora devolvida sem que o processo ainda tivesse sido arquivado, nas
várias esferas da justiça.

127
A representatividade é um problema do qual a sociologia não pode escapar, principalmente ao se analisar o
funcionamento de entidades religiosas baseadas na representatividade dos escolhidos. O representante é aquele
que recebeu um crédito dos representados, um capital atribuído. Bourdieu (1989:188) diz que é um poder
simbólico, entendido como um “poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com o
qual ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança”. No campo religioso,
a desclassificação de alguém do papel de representante é um ato político muito significativo, porque, por meio
dele, despoja-se alguém do capital simbólico adquirido e o declara incapaz de elaborar ou impor quaisquer
representações do mundo social. Por isso, o pastor-deputado da IURD, Aldir Cabral, afirmou na Câmara Federal
que Caio Fábio não representa ninguém, pois é “um líder de si mesmo” (Folha Universal, 10.6.94).

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“Um jornal a serviço de Deus” - Folha Universal


Depois do púlpito, do rádio e da televisão, o jornal Folha Universal é o principal meio de
comunicação usado pela Igreja Universal, tanto para marketing interno como externo. Trata-se de
um jornal semanal, publicado em quatro cores, no mesmo formato dos jornais tradicionais do
eixo Rio-São Paulo e chega em cada templo sempre aos sábados, com uma tiragem registrada na
primeira página, ao lado do título. Segundo cálculos que fizemos, baseados em 31 edições das 52
tiradas em 1995, a Folha Universal teve uma tiragem de 39,3 milhões de exemplares naquele
ano, o que dá uma média de 755,9 mil exemplares semanais. Trata-se de um indicativo da
importância desse jornal nas atividades da Igreja. Este número é tão significativo para os próprios
editores que, pelo menos até 1994, publicavam-se esporadicamente, ao lado do nome do jornal,
expressões como estas: “Só para lembrar: A circulação por domingo da Folha Universal é maior
que a do Jornal do Brasil” e, em outras vezes, citou-se o “Estado de Minas” e o jornal “O Povo”,
de Fortaleza.128

A Folha Universal, que tem por slogan a expressão “um jornal a serviço de Deus”, surgiu em
1992, sucedendo à “Tribuna Universal”, que possuía poucos recursos gráficos, e figurando como
seu diretor o ex-bispo da IURD, Renato Suhett. Atualmente, o jornal tem uma excelente
composição gráfica, e está dividido em dois cadernos, cada um com oito páginas. Como veículo
impresso de uma Igreja voltada para a pregação do evangelho com ênfase na cura, exorcismo e
prosperidade, a Folha Universal é um jornal extremamente lógico e coerente, alinhado com as
diretrizes da Igreja e em nenhum momento traz matérias, que possam ser classificadas como
expressão de uma religiosidade escapista da realidade vivida pelo leitor. Não se fala de céu,
inferno ou vida pós-morte. Transcrevemos abaixo, somente algumas manchetes, classificadas por
temas e chamadas de capa, que por si só podem dar uma idéia aproximada do conteúdo da Folha
Universal.129
Expansão da Igreja: A IURD na América Central (178), Na África a IURD está em
guerra (173,156); Combate a pobreza no México (171); A IURD no Japão, e na
Venezuela (162, 165), em Portugal (129); IURD se agiganta em todo o mundo (195);
Igrejas superlotam em todo o mundo, apesar da perseguição (199);
Assistência social: Em todos os números há uma página especial sobre a atuação da
Associação Beneficente Evangélica nas várias fronteiras como: Distribuição de alimentos
na África (165); Coleta de sangue em Portugal (165); Recuperação de presidiários (168,
170, 193); Combate ao vício de drogas por meio da conversão de viciados e de traficantes
(127, 202); ABC socorre instituições espíritas (174); Atendimento a favelados nos morros
cariocas (197) e tantos outros exemplos.
Guerra contra os cultos afro-brasileiros e espiritismo: Violação de sepulturas e de
cadáveres (156, 196); Exus exigem que médium se retalhe (175); Necrofilia de ex-pai-de-
santo (130); Lula apela para o candomblé (118); “Espiritismo” estimulava Jocemar a ser

128
A edição da Folha Universal de 25.2.96 por exemplo, teve uma tiragem de 806 mil exemplares, em dois cadernos
com 8 páginas cada um. Sobre a comparação de tiragens da Folha Universal e demais jornais e o uso das
expressões citadas, confira Folha Universal, números 124 e 125, de agosto de 1994.
129
Os números entre parênteses referem-se às edições do jornal Folha Universal.

237
238

Gay (129); Reveillon de Iemanjá promove sujeira, violência e maldição (195); Falsos
milagres espíritas (113).
Anti-catolicismo: Arcebispo Católico preso por sedução de meninos (clérigo de uma
Igreja Católica dissidente) e doença do Papa (146); Padre católico abusava de meninos
(130); Desvios e poder do clero católico em Portugal (120, 158); Fundador de Movimento
Carismático acusado de abuso sexual (125); Padres perseguem IURD em Piedade (124);
O papa não é infalível e declínio do papado (127, 174); IURD aniversaria sob perseguição
católica (118); A perda de fiéis e desespero da Igreja Católica (171, 178); Bispo Católico
se torna pai (170); O culto de Maria na Igreja Católica (168); Padre Católico estuprava
mulheres em Ruanda (174); Cardeal-primaz destila ódio contra IURD (193).
IURD e Política: Os políticos da IURD (173); Dep. Eraldo Macedo contra a Globo (178,
196); Atuação dos políticos eleitos com o aval da IURD (178, 156, 162, 168); Cuidado
com os candidatos sem o aval da IURD (130); Campanha para câmara, assembléia e
senado (130, 120,125,127); Campanha contra o PT, Lula e o candomble (118,120), Lula
“camaleão” (124); “Ação do PT restaura a verdade”(129); A IURD e a política em
Portugal (156, 158); Políticos defendem IURD contra perseguição (197); São Paulo tem
bancada forte (196).
Luta contra hegemonia da Rede Globo: Eraldo Macedo contra a Globo (178); A Globo
em decadência (175); Os evangélicos e a obscenidades na TV (168); A verdade sobre as
fitas da Globo (196); Fez-se justiça e a Globo não gostou (202); CPI contra trambiques da
Globo e “explode coração”, o mais baixo nível da Globo (197); A guerra continua (199).
Saúde, aparência e mulher: O cabelo no inverno e no verão (165,193); Celulite (168,
146); Moda para o verão (130); O poder medicinal das plantas (113); Sexo no casamento
(118); Emagrecimento e remédio para a impotência masculina (129); A mulher e a IURD
(156); Sou mulher e sou crente, e daí? (178); Planejamento familiar (170); Boas maneiras
à mesa (162); Previna-se da micose (197); Cura pela natureza e congresso de moda deixa
a desejar (202); Estresse, o mal dos tempos modernos (199); Combate às rugas após os 40
(199);
Outros temas freqüentes: Em nenhuma edição falta a página de esportes, onde se noticia
tudo sobre os vários campeonatos e modalidades, assim como há uma página dedicada às
crianças, com exercícios e histórias para elas, aos presidiários, aos militares e uma charge
assinada por Max, cuja reprodução em anexo, pode nos oferecer algumas pistas para um
melhor entendimento da ideologia da IURD.
Esse jornal, devido a sua penetração dentro e fora da Igreja e número de leitores que tem, presta
um importante serviço ao empreendimento porque integra a instância dos produtores e dos
consumidores de seus bens e serviços, num mesmo círculo de linguagem e preocupações e, ao
mesmo tempo, estandartiza os produtos e eventos regionais. Em cada templo a Igreja Universal
nomeia responsáveis pela expansão do jornal, e freqüentemente premia-se com eletrodomésticos
pessoas que se destacaram em sua divulgação. Em 1993, esse jornal era enviado para agências de
publicidade com um recado: “Um milhão de pessoas irão conhecer o seu produto no domingo
seguinte. Para isso, bastará anunciá-lo na Folha Universal” (26.9.93). Possivelmente, essa
proposta não tem surtido muito efeito, pois numa edição qualquer, cerca de 20% do espaço,
geralmente na parte inferior de cada página, são ocupados por anúncios e publicidade de
profissionais liberais, pequenas lojas comerciais e microempresas. Não há nenhum anúncio

238
239

originado de agências de propaganda e que indique alguma fonte de renda extra para a Gráfica
Universal.

6.5 Pentecostais, neopentecostais e radiodifusão

Até aqui, já deve ter ficado bem claro que o pentecostalismo é um fenômeno amplo demais para
se restringir a uma análise rápida. Além do mais, como movimento, há dentro dele inúmeras
tendências e isso acontece desde o seu início. As maneiras pelas quais os pentecostalistas
montam suas estratégias de comunicação também refletem tal variedade. Mas, para uma
abordagem mais completa das relações do pentecostalismo com o rádio recordemos a tipologia
proposta anteriormente, que separa pentecostalismo “clássico” de “neopentecostalismo”.

Historicamente, entre a invenção do rádio e seu uso comercial houve um espaço de 20 anos. Data
de 1901 a sua invenção, de 1909 a homenagem prestada a Guilherme Marconi, seu inventor,
com o Prêmio Nobel e de 1920, a primeira estação comercial. Mas em 1909, quando o pioneiro
Reginald Fersenden fez a sua transmissão experimental histórica, nos Estados Unidos, a religião
marcou a sua presença e o pioneiro inaugurou o rádio lendo uma passagem bíblica. 130

O pentecostalismo e o rádio - antecedentes de uma união eficaz


Comercialmente, o rádio nasceu no dia 2 de novembro de 1920, em Pittsburgh, iniciando-se,
apenas dois meses depois, em janeiro de 1921, a transmissão de programações religiosas,
colocando-se no ar os cultos da Calvary Episcopal Church. No ano seguinte, entrou em operação
a primeira emissora ligada a uma igreja, a National Presbyterian Church de Washington e, em
1922, a controvertida líder pentecostal e fundadora da International Church of the Four-Square
Gospel, Aimee McPherson, empregava o rádio para transmitir as suas pregações, conseguindo
inclusive colocar no ar em 1924, a sua própria emissora, a KFSG, que transmitia diretamente do
majestoso Angelus Temple, de Los Angeles. Em 1925 Robert Craig, das Assembléias de Deus,
em San Francisco, obteve licença para operar a KGTT, assim como também a 1ª Igreja Batista,
na vizinha cidade de San José, que havia experimentado um reavivamento pentecostal alguns
anos antes. Nesse ano, já eram 600 emissoras em operação nos Estados Unidos, das quais 63
pertenciam às igrejas ou movimentos religiosos.

Entretanto, se muitos pentecostais perceberam de imediato ser o rádio um excelente meio para a
divulgação de suas mensagens, houve também os que não pensavam da mesma forma, pois
encaravam o ar como “morada dos demônios” e que não se deveria misturar pregação com
entretenimento, conforme registro de Burgess, McGee, (1995:754). Possivelmente, Franciscon

130
O uso comercial do rádio sofreu um atraso, pois, em 1909, Guglielmo Marconi havia ganho o Prêmio Nobel em
função de suas experiências de 1901 no campo da radio-telegrafia. A primeira estação comercial funcionou a
partir de 2.11.1920, Estação KDKA, Pittsburgh, coroando uma série de inventos que vinha desde James
C.Maxwell e H.Hertz, na segunda metade do Século XIX, de acordo com observações de Michell Stephens, 1993.
No Brasil, a primeira transmissão radiofônica, segundo Maria E.Bonavita, (1982), foi para irradiar aos 800
aparelhos importados as comemorações do primeiro centenário da proclamação da independência, em 7.9.1922.
No ano seguinte, surgiu a primeira estação comercial, Radio Sociedade do Rio de Janeiro. Porém, até o final dos
anos 30, os evangélicos ficariam fora do emprego das estações de rádio para suas respectivas propagandas
religiosas.

239
240

tenha recebido influência dessas idéias, porque a denominação iniciada por ele, a Congregação
Cristã no Brasil, não somente não usa até os dias de hoje o rádio para a propaganda religiosa,
como até os anos 60, em muitas regiões do país, ainda proibia que seus membros possuíssem
receptores de rádio e de televisão em casa.

Essa tendência, no entanto, foi rapidamente superada nos Estados Unidos, e vários pregadores
pentecostais fizeram muito sucesso através do rádio. Entre eles, podemos citar: F.F. Bosworth
(1877-1958) que fundou em Chicago a Radio Revival Missionary Crusaders, emissora WJJD,
ainda nos anos 20, no auge de suas participações em campanhas de cura divina. Todavia, o
emprego maciço do rádio pelos pentecostais se daria nos anos 40, quando o movimento de cura
divina retomou força, trazendo a fama para novos rádio-evangelistas. Nessa relação também
havia Oral Roberts e seu programa Healing Waters, em que recomendava aos ouvintes o contato
direto com o aparelho receptor, usando-o como “ponto de contato” para “liberar” a fé e Gordon
Linday, com o programa Voice of healing. Havia nessa época, pregadores que curavam pelo
rádio, outros falavam línguas e aqueles que, segundo os críticos mordazes, “mais pediam
dinheiro que pregavam o evangelho” (Burgess e McGeee, 1995:755).

O modelo de mercado livre, colocado em prática nos Estados Unidos, em especial na área de
comunicação, favoreceu a compra de espaço e de emissoras de rádio e de televisão, assim como
até a montagem de redes por parte de muitos pregadores norte-americanos, conforme historia
Steve Bruce (1990). Como essas redes geralmente não tinham atrás de si denominações
religiosas, elas levavam o carisma de seu fundador e apresentador, mas mantinham seus
programas com recursos captados do próprio público. Vários desses televangelistas se tornaram
hábeis na arrecadação de volumosos recursos financeiros e parte deles foram desviados para
outros empreendimentos como universidades, hospitais e até para a montagem de parque de
diversões especiais para crentes.

A acumulação de tanto dinheiro nas mãos de uma liderança, nem sempre afeita a problemas
administrativos e financeiros, e a transformação dessas redes de comunicação e ministérios em
grandes empresas, exigia cada vez mais recursos, o que acabou por provocar vários escândalos
financeiros, inclusive noticiados por jornais brasileiros, como Estado de S.Paulo (28.2.88) e
Folha de S.Paulo (8.3.88). Alguns ministérios simplesmente faliram e um de seus líderes, Jim
Bakker, acabou na prisão, onde permanece desde 1986. Isso tudo aconteceu apesar da iniciativa
dos pregadores norte-americanos envolvidos com o rádio, que já em 1944, preocupados com o
aspecto ético e para consolidar suas conquistas no campo da comunicação radiofônica, fundaram
a National Religious Broadcasters (NRB). Essa entidade, em 1988, analisou e aprovou um novo
código de ética para os seus participantes por causa dos problemas decorrentes dos escândalos
dos televangelistas James O. (Jim) Bakker e Tammer Bakker (Tammy Faye), Marvim Gorman e
Jimmy Swaggart. As controvérsias desse período foram analisadas por Robert Abelman e Hoover
(1990:14,15,277) e CEDI (1988).

O sucesso no rádio envolveu também outros pregadores importantes que, embora não fossem
pentecostais, criaram modas e influenciaram a muitos pregadores pentecostais posteriores, como
por exemplo, Billy Graham e Norman Vincent Peale. O programa de Billy Graham, The Hour of
Decision, em 1951, chegava a receber 178 mil cartas mensais, e Peale teve um ministério todo

240
241

voltado para a aplicação do “pensamento positivo” na solução dos problemas da vida, inclusive
através de programa de rádio, apresentado por ele desde 1936, Art of Living que, em 1950,
recebia de 6 a 8 mil cartas semanais, de acordo com informações de Carol V.R. George
(1993:85,86,99).

Nos anos 50, também faziam sucesso pregadores que depois se tornaram ainda mais conhecidos,
ou por causa da televisão como Oral Roberts e Rex Humbard, ou por causa do envolvimento com
a “teologia da prosperidade”, como Kenneth Haggin (programa Faith of Seminary of the Air) e
Kenneth Copeland (programa Believer’s Voice of Victory), também com grande audiência. As
Assembléias de Deus, desde 1950, mantêm no ar o influente programa Revivaltime, que em 1985
era transmitido por cerca de 600 estações de rádio. Contudo, apesar do surgimento da televisão, o
rádio nunca perdeu o seu lugar na vida diária das pessoas, e isso pode ser percebido pelo número
de estações em funcionamento nos Estados Unidos em 1985, nove mil estações de rádio e pelo
menos um mil de televisão.

O emprego do rádio como forma de propaganda protestante na América Latina se deve à


presença de missionários, que se instalaram no Equador em 1931.131 De semelhante modo, os
adventistas do sétimo dia iniciaram em 1943 a programação em língua portuguesa e espanhola,
do ainda hoje irradiado, A Voz da Profecia, que desde o início procurou empregar conjuntamente
rádio e correio. 132A Igreja Presbiteriana Independente, denominação religiosa a qual este autor

131
O protestantismo começou a empregar o rádio na América Latina no dia 25.12.31, quando entrou no ar em
espanhol, uma emissora da Word Radio Missionary Fellowship, em Quito, Equador, com estas palavras: “Esta é a
Voz dos Andes, Radiodifusora HCJB”. Essa emissora, além do espanhol, passou a transmitir em quíchua (1932),
em sueco (1937) e, dez anos depois, em português. Ao longo dos últimos 65 anos, a história de a “Voz dos Andes”
tem demonstrado uma profunda identificação com o evangelismo conservador e conversionista, mas não pode ser
considerada uma emissora a serviço do pentecostalismo. Seus dirigentes colocaram no ar a primeira emissora de
televisão daquele país, em 1961. Em 1993, a “Voz dos Andes” contava com 3,2 milhões de watts de potência e
irradiava sua programação religiosa em 18 idiomas, inclusive grego, chinês e árabe. Uma outra emissora, de
tendência conservadora, que também tem programações em português e espanhol é a Radio Trans Mundial, que
opera a partir das Antilhas Holandesas. A rigor trata-se de um conglomerado de emissoras independentes, cuja
história começou em 1953, no Marrocos, norte da África, com uma pequena rádio transmitindo pregações
protestantes à Espanha católica, então sob regime franquista. As transmissões em português começaram em 1965,
irradiada por uma estação situada na Ilha Bonaire, no Caribe. Atualmente, ela opera em ondas médias e curtas,
com seis milhões de watts e transmite a sua programação em 100 idiomas diferentes. Somente nos dois primeiros
meses de 1995 a RTM no Brasil recebeu 606 correspondências endereçadas aos seus programas, dos quais 55,4%
eram provenientes do norte-nordeste do País. Seus cursos por correspondência, ligados aos programas
radiofônicos, possuem 1106 alunos. Estão em estágio avançado os estudos para a transmissão dos programas por
meio de satélites. (Informações prestadas pessoalmente, em 1995, por José Eduardo Dias, Gerente Geral da Rádio
Trans Mundial, em São Paulo).
132
Os adventistas, de acordo com informações de Roberto César de Azevedo (1977) foram pioneiros no emprego do
correio, ao lado do rádio, para remessa de propaganda e atendimento de milhares de pessoas em sua “escola radio-
postal”. Certamente, essa estratégia de propaganda foi uma das responsáveis pelo grande sucesso dessa
denominação de origem norte-americana. Em 1945, nos EUA, havia 12.374 pessoas inscritas no curso radio-
postal; em 1949, esse número era 70.937. Somente no Brasil, no período de 1968 a 1975 houve 405.076
matriculados ativos, 70.518 diplomados, 48.510 visitados, 13.925 que prometeram guardar o sábado e 2.041
batizados que perfizeram o total de 2,89% dos diplomados. Nesse mesmo período, houve 26.755 batizados no
Estado de São Paulo, dos quais 7,62% atribuíram o seu desejo de seguir o adventismo à audição desse programa.
Em 1962 inaugurou-se no Rio de Janeiro a sede própria de “A Voz da Profecia”, quando então o número de
emissoras pelo qual o programa era irradiado subiu de 184 emissoras em 1961 para 327 em 1964. No ano
seguinte, esse índice ainda era de 345 emissoras, o que indica ter havido uma diminuição no ritmo de crescimento.
Mas em 1965, de cada 100 pessoas que se matricularam no curso da “Escola Radio-Postal”, 60 souberam do
curso, através do programa “A Voz da Profecia”. (Dados fornecidos por Sônia Maria Mastrocola Gazeta,
responsável pelo arquivo da Igreja, situado no Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia).

241
242

pertence, nos anos 60 tentou sem sucesso colocar no ar um programa com alcance nacional, A
Voz do Estandarte. Os luteranos ainda hoje mantém a sua Hora Luterana, transmitido em ondas
curtas. Mas, no geral, os protestantes tradicionais, presbiterianos, metodistas e batistas, embora
não tenham criado programas nacionalmente unificados, estimularam a geração de programas
ligados às igrejas locais.

Para apoiar essas atividades, em 1952, organizou-se em São Paulo o Centro Audiovisual
Evangélico (CAVE), sob a liderança de Roberto McIntire, com a finalidade de produzir material
padronizado para as igrejas pertencentes ao protestantismo histórico. Quatro anos depois o
empreendimento foi transferido para Campinas e passou a ser gerenciado por brasileiros que,
devido a má administração, envolvimento com o regime militar, interferência de política
eclesiástica, acabou desagradando os mantenedores do exterior, o que provocou a escassez de
recurso financeiro e o encerramento das atividades do CAVE.133

Pentecostalismo e rádio no Brasil: primórdios de uma história de sucesso


Os pentecostais, possivelmente por falta de recursos e de estratégias de propaganda unificada, até
os anos 50, ainda não ocupavam qualquer espaço significativo no rádio brasileiro. Faltava-lhes
uma visão “dessectarizada” para encarar o desafio do rádio e os recursos necessários para investir
num veículo, que embora mais barato que a televisão, ainda assim estava muito além de seus
recursos financeiros. Por isso, as incursões pentecostais no rádio, foram se dando paulatina e
vagarosamente, através da compra de tempo, nos horários noturnos em estações decadentes.
Segundo Tárcis Prado (1969), no final dos anos 60, dos 64 programas radiofônicos religiosos
irradiados na Grande São Paulo, 53% eram pentecostais. Em certos casos, a agonia de algumas
rádios, como a Rádio Tupi de São Paulo, que pertencera ao grupo “Diários Associados”, se
prolongou graças à participação de nomes importantes do pentecostalismo brasileiro em sua
programação, tais como Manoel de Melo e Davi Miranda, de acordo com reportagem do jornal O
Estado de S.Paulo, (2.8.81).
No Brasil, a ligação sólida do pentecostalismo com o rádio se deu nos anos 50, com a fusão de
características do “pentecostalismo clássico” com o movimento “de cura divina”, cuja expansão
gerou imediata resistência do protestantismo histórico. Impossibilitados de continuarem usando
templos pertencentes às denominações já estabelecidas e aproveitando-se da experiência do
movimento da “cura divina” dos Estados Unidos, os missionários Harold Williams, Raymond
Boatright e outros pregadores estimularam o emprego com intensidade das emissoras de rádio
como estratégia de apoio às concentrações, então realizadas em tendas de lonas, divulgação das
133
Os arquivos do CAVE foram doados à Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP e os laboratórios e
estúdios à Faculdade de Comunicação Social do Instituto Metodista de Ensino Superior, de São Bernardo do
Campo. Quanto ao envolvimento com o regime militar, o ponto de contato era o próprio presidente do CAVE,
Theodoro de Almeida Pupo, também um coronel de exército e, segundo denúncias na época, chegou a usar as
instalações do CAVE para gravar propaganda encomendada pela ditadura militar. Em 1971, com o fim do
empreendimento, esse coronel assumiu a direção da Rádio Cometa, depois Rádio Jornal de São Paulo, que havia
pertencido a um grupo fundamentalista. Essa mesma rádio, nos anos 90, foi adquirida pela Igreja Universal do
Reino de Deus, agora sob o nome Radio São Paulo e com maior potência de irradiação que antes. Anteriormente
à sua aquisição pela IURD, essa rádio se especializou em programas radiofônicos protestantes, excluindo-se de
sua programação os programas pentecostais que, segundo Pupo “só pediam dinheiro e viviam com a mão no bolso
dos pobres” (testemunho de Richard William Irwin, ministro presbiteriano, norte-americano, de Campinas, que
trabalhou na Rádio Jornal de São Paulo naquele período).

242
243

curas divinas e contato com um rebanho disperso por inúmeras cidades no interior do País.
Naqueles primeiros dias do movimento de cura divina no Brasil, no ABC paulista, um pregador
alemão, Ernesto Grimm divulgava pelo rádio as principais idéias do movimento.

Foi no decorrer do ano de 1954 que Manoel de Melo, um ex-diácono da Assembléia de Deus se
integrou no movimento Cruzada Nacional de Evangelização, combinando as funções de pregador
das multidões nas tendas, com o de empresário de construção civil. No início de 1955, Melo
iniciou um programa radiofônico na Rádio América e alguns meses depois passou a transmiti-lo
pela Rádio Tupi de São Paulo, então a mais poderosa emissora paulista. O programa durava
apenas quinze minutos e ia ao ar entre 6h30 às 6h45 da manhã. Logo em seguida falava, por
cinco minutos somente, o pastor presbiteriano José Borges dos Santos Júnior. Em seguida,
entrava no ar o Matutino Tupi, um famoso noticiário comandado pelo lendário Corifeu de
Azevedo Marques, o qual atingia todo o País, através das ondas curtas da emissora.

Assim nasceu o programa A Voz do Brasil para Cristo, talvez um dos poucos casos de um
programa radiofônico a gerar uma Igreja que recebeu o mesmo nome, Igreja Evangélica
Pentecostal “O Brasil para Cristo” fundada em 1956, na esteira do sucesso anterior de Melo,
inclusive no rádio. Manoel de Melo continuou usando o rádio e a mesma emissora, Tupi de São
Paulo, até a falência dessa emissora, no início dos anos 80. O sucesso de Melo pode ser
explicado, entre outras coisas, pelas suas pregações radiofônicas, que provocavam uma interação
espiritual entre o locutor e o ouvinte, capaz até de resultar em cura divina e milagres por
intermédio do rádio, o que aliás era uma prática comum entre os adeptos da cura divina nos
Estados Unidos. 134

A fragmentação do pentecostalismo nos anos 50 e 60 tornou possível a acumulação inicial de


carisma ao redor de vários pregadores, até então rigorosamente desconhecidos, que por
intermédio do rádio construíram a legitimidade de seus ministérios. Por exemplo, enquanto
viveu, Eurico de Matos Coutinho, fundador da Igreja Apostólica, manteve com relativo sucesso a
sua denominação por meio do programa “A Hora Milagrosa”. Após a sua morte, a denominação
perdeu o ímpeto e o programa, até então transmitido por várias emissoras, se resume hoje apenas
à fraca e pouco ouvida “Rádio Boas Novas” de Guarulhos, na Grande São Paulo. As relações
entre rádio e lideranças carismáticas no Brasil têm sido de complementação mútua, criando-se
um autêntico círculo vicioso envolvendo a mídia, o público e a liderança.

É certo que naquela época, metade dos anos 50, os pentecostais não eram os únicos a
empregarem o rádio para divulgar ou provocar milagres. Podemos citar dois casos: o primeiro é o

134
Nessa época, as duas principais denominações pentecostais brasileiras, Assembléia de Deus e Congregação Cristã
no Brasil, desestimulavam até mesmo a posse de aparelhos de rádio, em casa. Ainda na XIX Convenção Geral das
Assembléias de Deus (Revista “Mundo Cristão”, outubro de 1961) os pastores foram proibidos de ter aparelhos
de TV em casa e solicitava-se que os membros procurassem se desfazer deles. Igrejas protestantes
pentecostalizadas, como a Igreja Presbiteriana Renovada, em 1977, também chegou a proibir pastores, presbíteros,
diáconos e líderes leigos de possuírem receptores de televisão em casa. Possivelmente, essa restrição aos meios
de comunicação de massa tenha sido herdada por Davi Miranda das Assembléias de Deus e da Congregação
Cristã no Brasil, pois na Igreja Pentecostal “Deus é Amor” fazem-se críticas constantes à televisão, e os seus
seguidores são proibidos de possuírem TV em casa, embora essa seita empregue maciçamente cadeias de rádio
para pregar a sua mensagem de milagres e exorcismo. Ouvimos de Miranda, a seguinte recomendação: “Aquele
que tem TV em casa perde o prazer de buscar e louvar o Senhor (...) ter TV em casa é ter o mundo dentro de casa.
Por isso, não vamos dar Santa Ceia para quem recusar esta determinação de Deus” (Rádio Universo, 4.5.95).

243
244

de Alziro Zarur, fundador da Legião da Boa Vontade (1.1.50), que desde março de 1949
mantinha um programa de sincretismo religioso entre kardecismo e catolicismo, enfatizando
também o uso de “água fluidificada” para provocar curas. O segundo caso, estudado por Maria
Isaura. Pereira de Queiroz (1978:135-208) aconteceu em 1955 e tornou nacionalmente conhecido
o padre Donizetti Tavares de Lima, vigário da pequena cidade de Tambaú, interior de São Paulo.
No auge de um ciclo de milagres, aquele padre abençoava diariamente as pessoas através do
rádio, insistindo com seus ouvintes, tal como faziam Oral Roberts, nos Estados Unidos e Manoel
de Melo, no Brasil, a colocarem roupas, fotografias e água sobre os aparelhos receptores,
provocando-se assim curas milagrosas por meio das ondas hertzianas .

A expansão rápida do rádio tornou possível que a humanidade pensasse em deixar para segundo
plano a “era Gutenberg” e ingressasse na “era eletrônica”. A sua eficiência, como meio de
comunicação de massa se deve, segundo Marshall McLuhan (1969:339,344), à capacidade de ser
“uma câmara de eco subliminar cujo poder mágico fere cordas remotas e esquecidas”, porque
“as profundidades subliminares do rádio estão carregadas daqueles ecos ressoantes das
trombetas tribais e dos tambores antigos. Isso é inerente à própria natureza desse meio,
com o seu poder de transformar a psique e a sociedade numa única câmara de eco”.
Na mesma linha, para ressaltar a cultura auditiva, Walter Ong (1967:256) escreveu que o rádio
consegue “explorar ao máximo as antigas estruturas orais-auditivas, construindo ao redor dos
ouvintes, ressonâncias, fidelidade personalistas, fortes sentimentos e respostas tribais ou sociais
(...)” Foi justamente a facilidade de gerar simpatia entre emissor e receptor, a manutenção da
oralidade e a liberação da imaginação, que fez do rádio um veículo de comunicação preferido
pelos pentecostais latino-americanos. Mas todos esses investimentos anteriores no rádio pouco
significam perto do que aconteceu a partir do final dos anos 70, com o advento da programação
radiofônica da Igreja Pentecostal “Deus é Amor” (IPDA) e da Igreja Universal e outros
evangelistas menos conhecidos.

A IPDA foi fundada em São Paulo em 1961 por Davi Martins de Miranda, um paranaense então
recém chegado à capital paulista. Nessa época, a Igreja Evangélica Pentecostal “O Brasil para
Cristo”, de Manoel de Melo, era a mais conhecida igreja pentecostal a usar o rádio. Miranda
empregou a mesma técnica de comunicação de Melo, fazendo do rádio o seu principal veículo de
propaganda, mantendo-se fiel até hoje, trinta e cinco anos depois, a este meio de comunicação.
Dos estúdios localizados em sua “sede mundial”, uma antiga fábrica desativada próxima da Praça
da Sé, no centro de São Paulo, a voz do “consagrado homem de Deus”, missionário Davi
Miranda, de seus presbíteros, evangelistas, filhas, genros e obreiros ecoam, através de 581 horas
diárias de programação radiofônica, e são transmitidas por cerca de vinte emissoras de
propriedade do próprio grupo e por centenas de outras emissoras com horários pagos, em todo o
Brasil e América Latina.135 Também a aquisição de emissoras de rádio por parte de IPDA sofreu

135
Segundo dados colhidos por Paul Freston (Antoniazzi et alii,1994:127), em julho de 1991, a Igreja de Davi
Miranda reivindicava ter 5.458 templos, 15.755 obreiros e dizia estar presente em 14 países na América Latina,
além de Portugal, Estados Unidos e Cabo Verde. Quatro anos depois (1995), o crescimento dessa Igreja preocupa
grupos pentecostais dos vários países latino-americanos. Somente no Paraguai há 62 templos, 59 no Uruguai e 43
na Argentina e uma forte penetração no Peru e Bolívia. De São Paulo, a IPDA irradia por meio de satélite a
“Cadena de la Liberación”, programas com pregações em espanhol e português, assim como testemunhos “Conta a
benção irmão”, gravados nas duas línguas. Atualmente, a programação da IPDA pelo rádio se modernizou, se

244
245

forte oposição da mídia, principalmente da região onde se localiza a emissora comprada. Por
exemplo, a compra da Rádio Itai, na área metropolitana de Porto Alegre, RS, foi muito
contestada e tentou-se inclusive fechar aquela rádio, sob a acusação de incentivo à prática do
curandeirismo. Jornais paulistas, Folha de S.Paulo (4.12.84) e O Estado de S.Paulo (27.1.85)
deram amplo espaço para tais acusações.

No início dos anos 80, fizemos um levantamento das técnicas persuasivas empregadas pelo
programa A Voz da Libertação, de Miranda (Campos,1982:92-115) e registramos: o emprego da
entonação emotiva de voz pelos locutores, (uma técnica de comunicação observada pelos
analistas desde os anos 30, na propaganda política de nazistas, fascistas, comunistas e líderes
populistas, como Vargas, por exemplo); a simplificação do discurso, maniqueísmo, criação de
um inimigo comum, amplificação, desfiguração dos acontecimentos; farto uso de slogans,
palavras de ordem; enfim de toda uma sorte de técnicas reunidas numa estratégia, que preferimos
chamar de “marketing do sagrado”.

Neopentecostalismo e rádio: o “milagre no ar”


O emprego profissional do rádio e da televisão entre os evangélicos somente se tornou possível,
através da colocação em prática de uma mentalidade empresarial na captação de recursos
financeiros, o que propiciou a centralização do gerenciamento desses recursos e a implementação
de estratégias pragmáticas de expansão. Edir Macedo, um antigo membro da Igreja de Nova
Vida e ex-funcionário da LOTERJ é um dos grandes expoentes dessa nova fase.

Macedo começou suas pregações na mídia através da Radio Metropolitana e da extinta Televisão
Tupi, no final dos anos 70. A primeira emissora adquirida foi a Rádio Copacabana (1984), ponto
de partida de um grande império de comunicação que inclui redes de rádio, televisão e jornais.
As emissoras de rádio da IURD são cerca de trinta e as de televisão, concessões próprias são
catorze, mais de uma dezena de afiliadas. Em 1989 Macedo adquiriu as três primeiras emissoras
de televisão por 45 milhões de dólares. Nos anos posteriores foram compradas mais algumas
outras. Em 1995 a Igreja adquiriu oito emissoras, investindo cerca de 30 milhões de dólares na
compra dos modernos equipamentos e sede da TV Jovem Pan, pagando aos antigos proprietários
cerca de 15 milhões de dólares. Adquiriu também em 1995 a TV Rio, uma operação que
envolveu cerca de 20 milhões de dólares e faz parte de seu projeto para 1996 a aquisição de mais
cinco emissoras, respectivamente em Brasília, Belém, Recife, Fortaleza e Natal, de acordo com
Folha de S.Paulo (10.3.96).

Em termos de rádio a IURD, conforme dados da Folha Universal (5.11.95), possui uma rede de
pelo menos trinta emissoras espalhadas pelo País, estando prevista para breve a montagem de
uma rede via satélite, composta por quinze emissoras, cujo nome será chamada “Rede Aleluia”.
Para a concretização dessa idéia, foi preciso que se adquirisse em São Paulo uma rádio FM, a
Scala, porque, ao contrário do Rio de Janeiro, a Igreja Universal ainda não tinha nenhuma
emissora operando em FM em São Paulo. A compra foi feita depois de uma disputada

comparado com os tipos de programas apresentados no início dos anos 80 (Campos, 1982:92-115) os quais foram
objetos de nossa análise naquela época.

245
246

negociação, que envolvia a Rede Globo, no final de 1995, por 8,5 milhões de dólares, pagos em
cinco parcelas (Folha de S.Paulo (3.1.96).136

A Igreja também possui emissoras de rádio em Portugal e Angola, um jornal semanário, Folha
Universal, com uma tiragem próxima de um milhão exemplares, um jornal diário em Minas
Gerais, gráficas, um pequeno banco, Banco Crédito Metropolitano, (BCM), e até mesmo
empresas para produzir móveis e equipamentos para seus templos. Nos Estados Unidos, ela
compra espaço numa televisão a cabo e imprime um jornal com uma tiragem de 15 mil
exemplares, bem como outro jornal na África do Sul. Contudo, essa expansão da Igreja Universal
exacerbou a busca de recursos internos, por meio de coleta, o que gerou na opinião pública a
idéia de que ela é uma Igreja que está apenas “extorquindo dinheiro dos fiéis”. Em maio de 1992,
Macedo foi preso em São Paulo, conforme ampla reportagem de O Estado de S.Paulo (25.5.92),
sob a acusação de charlatanismo, sonegação de impostos e suspeita de lavagem de dinheiro
oriundo do tráfico de drogas. O processo contra Edir Macedo de Bezerra e Honorilton Gonçalves
da Costa, de número IPL 2.0255/91, relatado na Polícia Federal em 29.5.92, encontra-se nesta
data em moroso andamento.137

A estratégia de comunicação da Igreja Universal não segue a prática dos televangelistas norte
americanos, a qual não provoca a reunião de seus telespectadores ou simpatizantes numa rede de
templos. O rádio ou a televisão, para a IURD, são apenas meios para atrair as pessoas a um de
seus mais de dois mil templos. Os exemplos a seguir ilustram bem esse tipo de interdependência
entre a mídia, templo e pastores:
A advogada Geny A.Gouveia, 37 anos, solteira, vítima de depressão e solidão, tornou-se
simpatizante da IURD somente por ouvir um programa da Record, numa madrugada de
insônia: “Nos primeiros dias, tive vontade de ligar para a produção e pedir a orientação
das moças, que atendiam o telefone. Até que um dia resolvi ir a Igreja Universal em
Moema (...) cheguei na igreja mal vestida, descabelada, feito louca (...) lá conversei com
o pastor e saí mudada (...) o Senhor Jesus restituiu-me a vontade de viver” (Folha
Universal, 28.1.96).
Alzira Vargas, ex-mãe-de-santo durante 25 anos, foi atraída pelas pregações da Televisão
Record e conta que, depois de ter tido algumas frustrações com as religiões afro-
brasileiras ficou na seguinte situação, da qual saiu através de uma experiência de

136
A transferência das emissoras dos antigos proprietários para a IURD nem sempre tem ocorrido de forma pacífica.
Na Rádio Atalaia, Curitiba, por exemplo, a insistência do político e radialista Luis Carlos Martins em inserir em
seu programa a voz do Papa, impetrando a bênção gerou um conflito com o bispo João Batista e provocou a
suspensão definitiva de seu programa, veja-se O Estado de S.Paulo (1.4.89). Em Portugal, a aquisição da Rádio
Miramar, uma das quatro emissoras que a Igreja possui naquele país, gerou conflitos com os funcionários, noticia
amplamente divulgada pela Radio Televisão Portuguesa, no final de 1995. Nesse mesmo país, ex-funcionários da
Universal lançaram em Lisboa um livro intitulado “Igreja Universal do Reino de Deus - Tentáculos de um Polvo
Monstruoso para a Tomada do Poder”, objeto de reportagem da Folha de S.Paulo (19.1.96). Na televisão Record,
em São Paulo, houve problemas com o apresentador Atayde Patreze que, por causa de conflitos com o bispo João
Batista, acabou sendo demitido (Folha de S.Paulo, 26.2.95). Por outro lado, o fato da TV pertencer à Igreja tem
estimulado o surgimento de autocensura que estaria ditando regras para cortar cenas de sexo e violência de filmes
adquiridos pela emissora , conforme denúncias publicadas em TV Folha (Folha de S.Paulo, 10.12.95).
137
Há outros processos correndo na Justiça contra a Igreja Universal e seus dirigentes. Possivelmente, os processos
oriundos das fiscalizações do Ministério da Fazenda, que envolvem acusações de não-pagamento de imposto de
renda, poderão futuramente criar maiores problemas econômicos e administrativos para o empreendimento
dirigido por Edir Macedo.

246
247

conversão: “Passei a ter insônia; audição de vozes; desejo de suicídio; perdi a minha casa
e os meus carros; fiquei com uma dívida altíssima no banco que me mandou para
cartório; enfim eles [os orixás] me tomaram tudo. Aí foi o meu fundo de poço”. A sua
chegada na igreja se deu da seguinte forma: “Foi no dia que tentei suicídio.
Completamente louca e decidida, apanhei o revólver e liguei a televisão para abafar o
som do tiro, porque meu filho estava dormindo. Quando liguei a televisão caiu no canal
13 [TV Record no Rio de Janeiro]. Não sei porquê, mas fiquei hipnotizada, assistindo à
oração do pastor (...) fui gradativamente abaixando o revólver e chorei compulsivamente
(...) passou no rodapé da televisão ‘pare de sofrer’ e o telefone. (...) Fiquei desesperada
para ir lá querendo falar com o pastor (...) Apanhei um táxi naquele momento e fui a
IURD de Botafogo (...) O pastor me atendeu com paciência, me orientou, fez uma oração,
a qual me fez sair dali leve e com uma força incrível (...) quando cheguei em casa tive
forças para quebrar todo o barracão (...) destruí tudo” (Folha Universal, 2.4.95).
José Adalberto Silva diz que tocava atabaque num “Centro Espírita” (sic). No meio de
uma crise se embriagou e foi para a casa com o objetivo de praticar o suicídio. Foi então
que ouviu no rádio uma oração de Edir Macedo, que o fez procurar um templo da IURD,
localizado no bairro do Guarani, em Belo Horizonte e ali, diz ele, “comecei meu processo
de libertação” (Folha Universal, 26.11.95).
É dessa forma que a Igreja colhe os frutos de um grande investimento na mídia. Há,
conseqüentemente, uma troca de favores, pois se os meios de comunicação de massa servem à
Igreja, ela por sua vez, providencia os recursos para a manutenção desse enorme império radio-
televisivo. Possivelmente, a manutenção das emissoras da IURD, boicotadas pelas empresas de
publicidade, se dêem por meio da transferência de recursos, a título de “compra de horário de
programações”, da Igreja para as emissoras. Se essa hipótese for correta, há então, uma troca de
favores entre os dois braços da Igreja Universal - o templo e o estúdio de rádio e TV. O que
explica a invasão da programação religiosa na Rede Record sobre as demais programações
diárias de caráter secular, ao contrário do que a direção da Record desejava ao adquirir essa
emissora, conforme Gazeta Mercantil (3.4.91).

Nesse caso, no seu esquema de marketing, o rádio e a televisão caminham juntos e se


subordinam a estratégias religiosas, cujas funções são levar a qualquer custo as pessoas, para o
“endereço da bênção”, transmitir os rituais realizados nos templos e fora deles, inserir durante a
programação vinhetas, spots e jingles ressaltando milagres, prodígios e os resultados alcançados,
através de sua mediação com o sagrado. A insistência nos resultados, o oferecimento de soluções
para uma classe média premida pela crise econômica e para camadas pobres em busca de
ascensão social, acrescido das mutações provocadas pela “pós-modernidade”, fez com que a
comunicação dessa Igreja assumisse como fim, a satisfação dos sonhos e desejos do público-
alvo.

Entre outras estratégias de comunicação está o emprego de símbolos tradicionais da religiosidade


popular como, água, sal, óleo, pão, vinho, pedras-símbolos, flores, manto abençoado e outros
mais. A IURD assume também as lógicas e a linguagens operantes no kardecismo, catolicismo e
protestantismo popular, assim como nas religiões afro-brasileiras. Todos esses elementos
apresentados como “pontos de contato”, são oferecidos exaustivamente pela mídia iurdiana ao
público. O sucesso de tais ofertas tem proporcionado às emissoras iurdianas um lugar de

247
248

destaque no ranking, das rádios que operam na capital de São Paulo, como podemos observar no
quadro abaixo:

Quadro 5 - As emissoras da IURD no ranking das rádios AM em São Paulo.

EMISSORA POSIÇÃO AUDIÊNCIA% EMISSORA POSIÇÃO AUDIÊNCIA%

GLOBO 01° 1,31 RECORD 08° 0,12

CAPITAL 02° 0,71 NACIONAL 09° 0,08

AMÉRICA 03° 0,52 ATUAL 10° 0,05

BANDEIRANTES 04° 0,35 MORADA SOL 10° 0,05

JOVEM PAN 05° 0,27 CULTURA 10° 0,05

CBN 06° 0,24 ELDORADO 11° 0,04

SÃO PAULO 07° 0,18 OUTRAS 13° >0,04

FONTE: Ibope, SP, janeiro de 1995.

Para efeito de comparação, colhemos dados das rádios São Paulo e Record, pertencentes à IURD
e da rádio Morada do Sol, em que a maior parte do tempo é alugada para pequenos grupos
pentecostais e empreendedores autônomos do campo religioso, que coincidem na divulgação de
milagres e exorcismos, os quais dizem acontecer em seus respectivos templos. Inclusive, na rádio
Morada do Sol há programações de uma igreja dissidente da Igreja Católica Apostólicas
Romana, “Igreja Católica das Santas Missões”, do “padre exorcista” Francisco Silva,138 que
ocupa cerca de três horas diárias do horário dessa emissora, pregando o exorcismo, cura e
prosperidade, exatamente como fazem os pentecostais. Da mesma forma acontecem em alguns
programas produzidos por agentes religiosos ligados à Renovação Carismática Católica. Há, por
exemplo, um programa dirigido por um padre católico de Itapecerica da Serra, cujo discurso se
assemelha ao de um pastor pentecostal .

Quadro n° 6 - Comparação trimestral de audiência das rádios São Paulo, Record e Morada do Sol

EMISSORA NOVEM- Números DEZEM- Números JANEIRO Números


BRO BRO

138
O “padre exorcista”, Francisco Silva, copiou métodos consagrados pelo falecido “padre” Jair Pereira, assim
como técnicas empregadas pelo neopentecostalismo. Sobre Jair Pereira e seus métodos situados nas fronteiras
entre catolicismo popular, pentecostalismo e religiões afro-brasileiras verifique-se Hugo Assmann (1986:110-
117). Deles nos disse M.T. um antigo “padre exorcista”, que cumpre pena na Casa de Detenção de São Paulo, hoje
obreiro da IURD: “são todos uns picaretas e que estão-somente a fim de arrancar dinheiro fácil das pessoas”
(Entrevista, 3.4.96). É curioso, entretanto observarmos como essas pessoas, facilmente transitam de uma prática
religiosa para outra. Por exemplo, Carlos de Souza Oliveira, que diz ter participado da fundação da IURD quando
trabalhava na Rádio Copacabana junto com Edir Macedo e que teria ajudado Macedo na “elaboração do primeiro
estatuto da empresa” (sic). Em 1990, Oliveira estava preso no Manicômio Judiciário, em Curitiba, após o
assassinato de um seu companheiro, também “padre exorcista”, num dos dois templos “estourado pela polícia”,
conforme Jornal da Tarde, 29.10.90.

248
249

absolutos absolutos absolutos

São Paulo 0,17 21,7 0,18 23,0 0,18 23,0

Record 0,16 20,4 0,13 16,6 0,12 15,3

Morada Sol 0,11 14,1 0,08 10,2 0,05 6,4

TOTAL - AM 4,44 567,4 4,29 548,3 4,16 531,6

Total da 14,42 1842,9 15,77 2015,4 14,74 1883,8


audiência

FONTE: IBOPE - Rádio AM - Tab.1: Cobertura 3 meses, nov. 94 a jan. 95 - Faixa: das cinco
horas a meia-noite. (Os números absolutos estão em milhares de ouvintes).

A partir dos dados acima, colhidos pelo IBOPE, é possível estabelecermos uma ligação entre o
consumo da “religião de milagres” e os cinturões de pobreza existentes na grande São Paulo,
verdadeiros nichos onde se situam os consumidores desse tipo de programação. A Rádio São
Paulo, por exemplo, atinge mais as mulheres, as classes C, D e E, as pessoas com mais de 30
anos de idade, com instrução até a oitava série incompleta ou analfabetos e, proporcionalmente,
mais os inativos e aposentados do que os trabalhadores ativos. A maioria de sua audiência se
situa nos bairros da Zona Leste (39,8%); Periferia Sul, Diadema, Mauá, ABC e Periferia Oeste,
Barueri, Carapicuíba e região de Osasco, (18,3%) e Zona Norte (12,9%). No Centro de São
Paulo, a sua audiência cai (2,6%), assim como na Zona Oeste (5,3%) e Sul (8,4%), redutos de
classes médias.

Os programas que enfatizam milagres empregam, constantemente, histórias exemplares ou


“testemunhos de fé”, gravados logo após a “realização” desses “prodígios”. É comum
apresentarem pessoas que testemunham, sob fortes emoções, dizendo terem sido curadas
repentinamente de alguma doença, como foi um dos casos anotados, cuja depoente afirmou ter
sido curada de um câncer “após dez anos de sofrimento”. Logo após a história exemplar vêm o
slogans do tipo “sua vida vai mudar”, e seguem os relatos de aumentos milagrosos de rendas,
salários e propriedades, tão-somente porque a pessoa resolveu se tornar “dizimista ou trizimista
(sic) da Casa do Senhor”.139 Porém, o quadro abaixo nos indica a penetração dos programas, que
enfatizam milagres e principalmente, a audiência dos que veiculam mensagens otimistas e
relacionadas com a “teologia da prosperidade”.

139
Muitos dos programas pentecostais. apresentados na TV, na Grande São Paulo, por outros “ministérios”
independentes, de grandes igrejas pentecostais, também trabalham a temática da “cura, exorcismo e prosperidade”.
Podemos citar os programas: Palavra da Fé, da pastora pentecostal Valnice Milhomens, que também enfatiza a
“batalha espiritual” e atingia com seu programa semanal 38 mil pessoas, fazendo da “batalha espiritual” e da
“teologia da prosperidade” seus eixos temáticos e Sara Nossa Terra, produzido pelo pastor goiano Robson
Rodovalho. Este pastor em 1973 atuava no movimento para-eclesiástico “Mocidade para Cristo”. A Comunidade
Sara Nossa Terra é resultado de uma reorganização administrativa de seu trabalho religioso em 1994. Esse
movimento possui 150 templos no país, uma emissora de rádio em Brasília e um programa semanal na Rede
Manchete que atinge cerca de 38 mil telespectadores na grande São Paulo. A força da temática “prosperidade” é
muito melhor sentida nos segmentos das classes AB e C. Os dados do Quadro n° 11 confirmam a fácil penetração,
que todos os programas voltados para a solução de problemas financeiros e materiais, têm sobre as pessoas que
mais sentem perigos em sua situação de classes média-média ou média-alta.

249
250

Realmente, seria impossível uma ampla compreensão do desenvolvimento histórico do


pentecostalismo e das “religiões de milagres” no Brasil, sem uma análise das relações entre o
rádio e o imaginário social de uma população, que tem experimentado, ao longo deste meio
século, inúmeras formas de desintegração de suas maneiras de vida. Agora, num contexto urbano
e industrial, elas são obrigadas a empreender a não menos penosa tarefa de reconstrução
simbólica dessa visão duramente golpeada pelos processos de mudanças sociais.140Talvez a
enorme popularidade do rádio, como veículo de comunicação social, se deva ao espaço que ele
deixa para ouvintes tão carentes, como o homem urbano, acionar a imaginação e gerar em seu
cérebro, da forma como deseja, suas próprias imagens mentais. Nesse processo de comunicação,
o destinatário se torna um cúmplice à medida em que preenche, com as suas fantasias e desejos,
os claros do discurso e da linguagem falada

Nesse sentido, a oralidade desempenha uma importância fundamental ao servir de fonte de


formação, informação e de prestação de serviço, inclusive religioso. Como exemplo, podemos
citar o programa “A Hora do Presidiário” na Rádio Record, que serve como ponto de ligação
entre ouvintes pertencentes à população carcerária e seus familiares. O pastor-âncora do
programa coloca no ar esposas, mães e familiares que, através do telefone e ao vivo, passam aos
presos notícias da família, procedimentos jurídicos para libertá-los, palavras de estímulo, alguns
trechos da Bíblia e, principalmente, apelos para a conversão. É comum também que se ofereçam
aos presos hinos especiais, todos gravados pela Line Records, gravadora da Igreja. Não é de
admirar, portanto, que essa estratégia resulte numa intensa penetração da IURD entre os
prisioneiros recolhidos nas celas situadas tanto nos distritos policiais, como nas penitenciárias de
São Paulo .141

6.6 Os neopentecostais na televisão

A televisão representa o advento da “civilização da imagem”, que segundo McLuhan é “um meio
frio de comunicação”, porque oferece ao receptor imagens prontas. Esta passividade teria

140
Na Grande São Paulo tem se multiplicado, principalmente a partir de 1987, o número de “emissoras
clandestinas”, que operadas por amadores vão para o ar sem quaisquer controles do DENTEL (órgão que durante
o regime militar foi encarregado de fiscalizar e reprimir o ilegal das faixas de rádio). Na faixa de freqüência
modulada (FM) foram observadas pela Folha de S.Paulo em 1992, (dia e mês não anotado), cerca de 15 emissoras
clandestinas entre as quais Nova Jerusalém (93,3 Mhz), Paulistana (99,7 Mhz), Terra (106.7 Mhz), Livre
Independência (102.9), Guaianazes (87,7) e Itaquá (98.1), que se dedicavam à transmissão de música pop
evangélica, sermões, música gospel, forró cristão, etc. Um desses “microempresários” comparava a sua
clandestinidade à ação dos cristãos, nos subterrâneos do Império Romano. Na época a Folha de S.Paulo calculava
que operavam cerca de 400 “emissoras piratas” no Brasil e que cerca de 90% delas estavam ligadas às várias
seitas evangélicas, na maioria pentecostais, todas desvinculados das denominações hegemônicas no campo das
emissoras legalizadas.
141
A “Hora do Presidiário” é um programa levado ao ar diariamente, pelas rádios Record em São Paulo e
Copacabana, no Rio de Janeiro, com conteúdos próprios a cada cidade. Ambos se caracterizam como uma
prestação de serviço aos seus ouvintes, assemelhando-se às funções desempenhadas pelo rádio na região
amazônica brasileira. Chegamos a assistir a uma transmissão desse programa ao vivo, direto da Casa de Detenção
de São Paulo, com a participação dos presos. Nessa oportunidade, observamos que a IURD tem oferecido aos
presos assistência jurídica, e cestas de alimentos às suas famílias. “Com tais técnicas, a penetração da Igreja
Universal na cadeia é imbatível” nos afirmou um guarda-penitenciário, e, “estão querendo comprar os presos com
comida” reclamou um dos detentos em entrevista em 4.3.96.

250
251

acarretado, segundo alguns filósofos da comunicação, o abandono do discurso falado e o


aparecimento de uma ditadura da imagem. Um desses críticos, Jacques Ellul (1984), fala em
“desvalorização”, “humilhação” e “ódio” à palavra. Possivelmente a crítica de Ellul represente
um certo saudosismo da cultura escrita, mas mesmo assim, temos de aceitar que a hegemonia da
televisão, como meio de comunicação de massa, trouxe profundas implicações para a
convivência das pessoas e também para a comunicação religiosa.142

Televisão e programas religiosos no Brasil


A televisão no Brasil, desde o seu início em 1950, acompanha o modelo comercial consagrado
nos Estados Unidos. No que se relaciona à religião, a sua postura é secularizante. Há redes de
televisão, cujo espaço cedido a programas religiosos, não atinge quinze minutos de programação
semanal. Notemos que o tempo ocupado por católicos, protestantes e pentecostais na televisão
em São Paulo, quando de nossa pesquisa, era de 110 horas e 22 minutos semanais, o que pode ser
visualizado no Quadro 3. A IURD, por motivos óbvios, ocupa pelo menos 85% do tempo
disponível na Record, sem se incluírem nesse total, programas parcialmente religiosos, como é o
caso do 25ª Hora e de um programa de músicas evangélicas, nos domingos à tarde, atrelado à
Line Records, as inserções dos “casos de milagres” no decorrer da programação, assim como
eventuais transmissões de concentração ou emprego de espaço nos noticiários para propaganda
ou defesa da Igreja, das “más informações”, segundo seus pastores, divulgadas pela Rede
Globo”.

Quadro n° 7 - Programação religiosa semanal na televisão paulistana

Emissora Junho 95 Agosto 96

Record 40 60

Gazeta/ CNT 20 19

Bandeirantes 10 11h20

Manchete 10 17h50

Cultura 1 1

Globo 1 1

SBT 14 min.. 12

TOTAL 82 h 14’ 110 h 22’

Jacques Ellul (1984:183,238) faz uma relação entre esse fenômeno de “esvaziamento” do discurso falado e a
142

“vitória” da civilização da imagem, ressaltando as conseqüências dessa realidade para a transmissão da visão
religiosa de mundo. Para ele há um “conflito religioso da imagem e da palavra”, à espera da reconciliação
proposta no “reencontro do ícone”, e na retomada do movimento dialético entre a verdade e a falsidade, liberdade
e escravidão.

251
252

O quadro n° 7 indica um aumento em 50% no tempo de programação religiosa oficial da Igreja


Universal, na Rede Record. Porém, emissoras com problemas financeiros, como é o caso da
Rede Manchete, também aumentaram, de 10 horas para 17 horas e 50 minutos o tempo semanal à
disposição das igrejas evangélicas.

Os intelectuais católicos e protestantes têm insistido na necessidade de que ambos os grupos, não
somente aumentem suas respectivas presenças na mídia, mas que também as usem corretamente.
Um deles, Luis Roncari (CEDI,1984) escreveu:
“Se Deus quiser existir, tem que aparecer na televisão, e se quiser se fazer ouvir, não é
mais suficiente a palavra, ela tem que converter-se em imagem, (...) se a Igreja não
conseguir se fazer presente nas telas deixará de participar do mundo criado pela TV, um
mundo quase à parte, que forma hoje o imaginário da maior parte da população.”
A penetração das “igrejas eletrônicas” na América Latina coincidiu com a expansão do
capitalismo, que causou, entre outras coisas, o rápido crescimento da televisão de estilo norte-
americano, neste continente.143 No Brasil, apesar da televisão ter iniciado as suas atividades na
década anterior, até os anos 60, os pentecostais ainda se mantinham longe desse novo e
revolucionário veículo de comunicação. Pois, foi somente a partir de então é que houve as
primeiras tentativas em se usar a TV para a transmissão de cultos e mensagens religiosas.

Essa inserção inicial, contudo, foi apenas uma forma de transposição do que acontecia no templo
para o estúdio de televisão, sem qualquer preocupação com as peculiaridades da linguagem
televisiva. Por exemplo, a 1ª Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo chegou a produzir
alguns programas na TV Gazeta, Mensagem Real, no início dos anos 60, projeto frustrado por
causa da inexperiência e falta de uma visão mais ampla das exigências da linguagem televisiva.
Relembramos que essa igreja levava para o estúdio o seu coral, vestido a rigor, o velho púlpito e
o pastor que discursava, usando toga preta, para uma imaginária congregação. Essa também foi a
conduta, do então estreante programa Um Pouco de Sol, da Igreja Batista de Vila Mariana,
liderado pelo Rev. Rubem Lopes, que continua no ar, há 35 anos, sempre na mesma emissora,
Gazeta, e sobreviveu à morte de seu fundador.

As primeiras investidas pentecostais na televisão esbarraram em outros tipos de problemas como


o pouco recurso financeiro para bancar um programa e a falta de experiência com o veículo. Nos
anos 60, Manoel de Melo, também por pouco tempo, chegou a usar a televisão, assim como o
pregador pentecostal, Josias Joaquim de Souza, “missionário Josias”, da Cruzada Evangélica “A
Volta de Jesus”, sucessora da Igreja “Viva Jesus”. Souza pregava a cura divina e chegou a
transmitir ao vivo cenas de exorcismo que causaram muita reação e provocaram o fim de sua
aparição na TV. 144

143
Hugo Assmann (1987) condensa material publicado nos EUA e América Latina sobre o assunto, contemplando a
atuação de muitos televangelista norte-americanos, alguns deles hoje em desgraça, tais como: Oral Roberts, Rex
Humbard, Jimmy Swaggart, Jerry Falwell e outros. Há também um texto curto, porém significativo, de Roland
Barthes (1985), sobre a passagem de Billy Graham pela França. Veja-se também outros comentários sobre esse
fenômeno comunicativo por Ben Armstrong (1979); Flo Convay e Jum Siegelman (1982), Peter Elvy (1986),
Peter G. Horsfield (1984), J.Harold Ellens (1974) e até mesmo Harvey Cox (1976).
144
Nos anos 60 e 70 no Brasil, ainda predominava uma moral herdada do mundo rural, conservadora e tradicional,
usada politicamente pela ditadura militar como apoio à “moral cristã ocidental”. Essa reação moralista facilitava o

252
253

No Rio de Janeiro, nessa mesma década, o batista Nilson do Amaral Fanini montou seu próprio
programa de TV, Reencontro, que chegou a ser transmitido por 88 emissoras. Fanini conseguiu
levar para o estádio do Maracanã, em 1982, mais de 120 mil pessoas, inclusive o último
presidente do ciclo militar, General João Figueiredo. Como resultado da colaboração prestada ao
partido oficial da ditadura nas eleições parlamentares, Fanini foi agraciado em 1983 com a
concessão do Canal 13 do Rio de Janeiro, por 15 anos.145 A estação de Fanini, montada em parte
com recursos nacionais e também com donativos norte-americanos da Billy Graham Evangelistic
Association, da Convenção Batista do Sul e, possivelmente, com ajuda da World Vision,
somente entrou no ar cinco anos depois, sem contudo ter conseguido decolar. Alguns anos mais
tarde, pressionado por enormes dívidas, Fanini e seus sócios, Múcio Athayde e Cláudio Macário,
venderam suas participações na TV Rio a representantes da IURD.146 Só mais tarde, depois do
aparecimento de Fanini no ar, é que o pastor presbiteriano, Caio Fábio Jr. iniciaria também no
Rio de Janeiro, seu programa Pare e Pense, apresentado durante 90 minutos aos sábados, em
vários blocos direcionados para grupos de interesses, pela Rede Manchete.

Atualmente a VINDE (Visão Nacional de Evangelização), dirigida pelo Rev. Caio, trabalha a
todo vapor para colocar no ar, ainda em 1996, o canal Vinde TV, que será o primeiro canal
evangélico por assinatura. Essa emissora usará a infra-estrutura da Net Brasil, que opera através
do satélite Brasilsat B2, da Embratel. Em São Paulo, a Igreja Renascer também adquiriu uma

acionamento da censura praticada pela Polícia Federal, encarregada da fiscalização dos meios de “diversões
públicas” e espetáculos. Essa ligação explica toda a ebulição criada pela presença na TV de agentes religiosos
umbandistas. Em 1971, Cacilda de Assis, que se dizia encarnar “Seu Sete da Lira da Encruzilhada”, era
proprietária de um sítio onde instalou o seu centro de culto afro-brasileiro, no Rio de Janeiro e mantinha um
programa de rádio diário, na Rádio Metropolitana (RJ). No final de agosto daquele ano, essa médium, se
apresentou nos programas de auditório de Abelardo Barbosa (Chacrinha) e de Flávio Cavalcanti, respectivamente
nas TVs Globo e Tupi. No programa do Chacrinha, não somente D.Cacilda caiu em êxtase, como também o
apresentador caiu em convulsão de choro, as suas ajudantes (“chacretes”) entraram em transe, junto com várias
pessoas no auditório. O acontecido criou uma comoção nacional.
Os bispos católicos reagiram, através da voz de D. Eugênio Sales no programa “A Voz do Pastor”, e através dos
jornais O Globo (3.9.71) e Tribuna da Imprensa (4.9.71). Até mesmo os demais umbandistas condenaram o
delírio causado na TV, conforme matéria publicada sob a manchete “Umbandistas manifestam sua repulsa por Seu
Sete”, A Notícia, (9.9.71) e mesa redonda de líderes, Última Hora, (13.9.71). Houve também debates entre
deputados na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro Esse episódio, ao lado de outros, analisados por Yvonne
Maggie (1992), foi usado pela ditadura para estabelecer a censura dos programas de auditório, então transmitidos
ao vivo. Tecnicamente, a televisão brasileira já havia incorporado os recursos do video-teipe, o que facilitou tal
exigência e, ao mesmo tempo, facilitaria mais tarde o surgimento dos programas religiosos na TV.
145
Hugo Assmann descreve os bastidores da cessão desse canal ao pastor batista, Fanini. Entre as ações
“sensacionais” está a compra da TV-Rio, antiga concessionária do Canal 13, pelos padres capuchinhos,
proprietários da TV Difusora, em Porto Alegre. Como a TV-Rio possuía muitas dívidas, os capuchinhos foram
obrigados a vender a TV Difusora para a Rede Bandeirantes. Mesmo assim, a TV - Rio acabou indo à falência e
os capuchinhos perderam dois espaços estratégicos, duramente conquistados pela Igreja Católica no espaço
televisivo. Fanini, segundo Assmann (1986:85-87), prometia ser o Pat Robertson brasileiro.
146
Ainda sobre a concessão desse canal a Fanini, as dificuldades encontradas, que fizeram o seu projeto entrar em
crise, além de Hugo Assmann confira Paul Freston (1993:138). A aquisição das ações restantes da TV Rio, por
representantes da IURD (Folha de S.Paulo, 10.1.96), talvez explique a reconciliação pública que Edir Macedo fez
com Fanini, em plena concentração pública no aterro do Flamengo, em junho de 1994, reaproximação amplamente
divulgada pela mídia. A partir de então, as relações amistosas entre ambos os líderes, principalmente por ser
Fanini, presidente da Aliança Mundial Batista, tem sido amplamente cultivada por Macedo. Em fevereiro de 1996,
por exemplo, Macedo abriu espaço na Record para Fanini apresentar seu programa, procedimento incomum, que
até então-somente favorecia alguns aliados da Assembléia de Deus, entre eles os pastores Silas Malafaia, Jabes de
Alencar e Fernando Takayama, da pequena Assembléia de Deus Nipo-Brasileira.

253
254

concessão de canal UHF, a TV Gospel, que deverá entrar no ar até o final de 1996. Os objetivos
dos comunicadores evangélicos podem ser resumidos numa frase de Estevan Hernandes Filho,
fundador da Igreja Renascer em Cristo, “quem não souber fazer TV vai ter a igreja vazia” (Vinde,
Ano 2, n° 13:16).

A presença protestante no ar, portanto, ao longo dos primeiros 35 anos da história da televisão
brasileira, foi apenas esporádica e sem criatividade nenhuma. Por isso, o estudo pioneiro sobre os
pentecostais em São Paulo, de Beatriz Muniz de Souza (1969), talvez por ser publicado no final
dos anos 60, não faça referência alguma ao uso da televisão por parte dos pentecostais. Porém,
essa situação mudou durante o regime militar (1964-1985), quando então houve a modernização
das telecomunicações brasileiras, a ampliação do número de estações e a unificação eletrônica do
País, a despeito do aumento do controle estatal sobre os meios de comunicação de massa. A
partir daí, surgiram condições para a formação de redes e afastou-se da televisão a concorrência
da Igreja Católica, que então, se opunha ao regime militar por causa dos direitos humanos.147

A demanda do regime militar por legitimação e fidelidade valorizou práticas religiosas, que
enfatizavam a obediência às autoridades. Nesse vazio, cresceram várias seitas pentecostais e
movimentos conservadores católicos como Tradição Família e Prosperidade e Movimento
Cursilho de Cristandade.148 Mesmo líderes pentecostais como Davi Miranda, de quem temos
várias gravações de programas de rádio do início dos anos 80, ofereciam respaldo ideológico ao
regime autoritário. Numa dessas orações (24.8.81 e 22.10.81) Miranda orava pelas autoridades
do País e, especialmente pelo governo Maluf em São Paulo (que naquela época procurava
petróleo, por meio da companhia estatal Paulipetro, uma aventura que deixou um prejuízo de
500 milhões de dólares), usando as seguintes palavras:
“Que as autoridades possam tomar decisões sábias e pagar a dívida externa (...) Abençoa
as pesquisas para encontrar petróleo, pois tu fizestes todas as coisas e sabes onde o ouro
negro está escondido e também sabes Senhor, o quanto o Brasil precisa disso” (sic).
Por sua vez, a Igreja Católica enfrentava um clima político adverso e também resistências
internas, quanto à exposição na televisão da sacralidade da missa. Para muitos clérigos, a missa e
a celebração da eucaristia seriam eventos impossíveis de se transformarem em imagem, sem que
o milagre se perdesse. Estes e outros motivos fizeram com que a primazia ficasse com os

147
Essa postura católico-romana custou a cassação de concessões de emissoras de rádio, entre elas a Radio Nove de
Julho de São Paulo. Mesmo assim, em 1996, a Igreja Católica possui, através de irmandades, fundações
controladas pelas dioceses e associações compostas de pessoas físicas, padres e bispos, cerca de 181 emissoras de
rádio no Brasil, das quais, 58,6% se situam no centro-sul do País, assim distribuídas: Rio Grande do Sul, 31; São
Paulo, 27; Paraná, 26; Minas Gerais, 22; outros estados, 75. Participam da Rede Católica de Rádios (RCR) 159
emissoras e católicos carismáticos mantêm uma rede própria, a “Rede Canção Nova”, da qual fazem parte 11
rádios interligadas por satélite.
148
Cabe relembrar que, durante alguns anos do regime militar eminentes nomes evangélicos detiveram cargos
importantes no País e de confiança dos militares. Alguns foram nomeados governadores indiretos ou colocados em
cargos chaves na manutenção do regime. Em São Paulo, num determinado momento, o responsável pela
propaganda do regime militar era o pastor presbiteriano independente Sérgio Paulo Freddi e o chefe do Serviço
Secreto do Segundo Exército, o seu presbítero Coronel Walter José Faustine. Também o encarregado do DENTEL
no mesmo Estado, órgão voltado para aprovar e fiscalizar o funcionamento das estações de rádio e televisão, era o
presbiteriano conservador Coronel Ner Augusto Pereira, que foi premiado pela sua participação ativa na luta
contra a militância comunista. Tais ligações políticas também existiam em outros Estados e, possivelmente,
prestaram alguma ajuda para a expansão protestante na mídia.

254
255

pentecostais, a despeito do atual esforço da Rede Vida e do movimento de Renovação


Carismática Católica (RCC), bem como da transmissão da missa dominical pela Rede Globo e
Televisão Cultura, de São Paulo.

O programa da RCC, “Anunciamos Jesus”, produzido pela Associação do Senhor Jesus, desde
1986, quando foi observado por Hugo Assmann, até os dias de hoje, tem assumido cada vez mais
um nível profissional. Rapidamente, esse programa se aproxima de um padrão televisivo
considerado “excelente” pela crítica especializada, incorporando algumas técnicas de sucesso dos
movimentos pentecostais de origem protestante.149 Talvez, por esse motivo, “Anunciamos
Jesus”, embora com um menor número de telespectadores do que a Missa de Aparecida,
transmitida pela Rede Cultura ou Santa Missa no seu Lar da Rede Globo, tem melhor penetração
nas camadas pobres da população da Grande São Paulo. O quadro n° 8 indica como essa
audiência está dividida, na região da Grande São Paulo.

Quadro n° 8 - Audiência de programas religiosos na televisão paulista.

PROGRAMA 10-14 anos 15-24 anos 25-39 anos + de 40 anos TOTAL

Clip Gospel - - 6 (60%) 4 (40%) 10

Espaço Foursquare 3 (11%) 1 (3%) 5 (18%) 18 (66%) 27

Clube 700 - 3 (25%) 3 (25%) 6 (50%) 12

Despertar da Fé - 3 (17,6%) 7 (41,2%) 7 (41,2%) 17

Oração do Meio Dia 6 (12,3%) 7 (14,3%) 17 (34,6%) 19 (38,8%) 49

Oração das Seis 9 (8,9%) 9 (8,9%) 47 (46,6%) 36 (35,6%) 101

25° Hora 2 (5,3%) 4 (10,5%) 10 (26,3%) 22 (57,9%) 38

Total de 20 (7,9%) 27 (10,6%) 95 (37,4%) 112 (44,1%) 254


telespectadores

149
O ano de 1995 assistiu à implantação no Brasil de um Rede de televisão católica, em oposição à rede montada
pela IURD. Assim surgiu a “Rede Vida”, que entrou em operação no final do primeiro semestre. Sua principal
emissora é a TV Independente (Canal 11 de São José do Rio Preto, SP) e cobria no seu início cerca de 30 cidades
do interior de São Paulo, três do interior de Minas Gerais, Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba e
Florianópolis. Todavia, essa Rede transmite no canal UHF, que depende de antenas especiais para recepção, o que
impede a sua popularização, de acordo com a Folha de S.Paulo (18.4.95). A montagem dessa rede de televisão
deve, segundo cálculos do INBRAC (Instituto Brasileiro de Comunicação Cristã) consumir um total de US$ 100
milhões de dólares, resultando numa rede com retransmissores em cerca de 300 dioceses, (Folha de S.Paulo,
10.3.96). Ainda no início de 1996, a congregação dos Clareteanos adquiriu uma emissora de televisão em Rio
Claro, SP, filiada a TV Educativa Brasil, (Folha de S.Paulo, 6.1.96). Todavia, a crítica especializada tem
comparado as formas católicas de usar a mídia televisiva e as da Igreja Universal do Reino de Deus e, na opinião
deles, a IURD “faz da TV instrumento vibrante”, até porque seus pastores aproveitam a experiência adquirida nas
atividades com auditórios. Enquanto isso, a Rede Vida, segundo um desses críticos, é “um sonífero formidável”, o
que demonstraria que os padres ainda não estariam dominando as características próprias desse meio de
comunicação (Folha de S.Paulo, 01.10.95). Em 1996, a Igreja Católica lançou também pequenas novelas
dramatizando a vida de alguns santos, como “Irmã Catarina”. A CNT-Gazeta também colocou no ar a novela
“Antônio dos Milagres”, fazendo publicidade em jornais com a imagem de Santo Antônio e a legenda: “Agora tem
milagre na TV todos os dias. E não é na Record.” (Folha de S.Paulo, 18.4.96).

255
256

Total da população 1.528.526 3.025.536 4.223.144 4.254.466 13.031.672

Fonte IBOPE: Grande São Paulo: 7.11 a 4.12.94. Observação: Os números entre parênteses
referem-se à audiência em cada faixa etária, em relação aos milhares de telespectadores daquele
programa, cujo total estão expressos em números absolutos.

Quanto aos programas católicos na mesma região, o quadro n° 9 permite uma visualização do
tamanho dessa audiência, assim como a sua segmentação em classes sociais, conforme os
critérios adotados pelo IBOPE.

Quadro n° 9 - Audiência de programas religiosos católicos na Grande São Paulo

PROGRAMA Classes A e B Classe C Classes D e E Em milhares

Missa de Aparecida 4,4% 49,2% 44,2% 136


(Cultura)

Anunciamos Jesus 6,7 % 37,3% 56% 75


(Bandeirantes)

Santa Missa 14,5% 56,5% 29% 76


(Globo)

Fonte: IBOPE - SP, (semana de 7.11 a 4.12.94).

Excluindo-se a programação da Rede Vida de Televisão, que entrou em operação após a


confecção desses quadros, observamos a absoluta hegemonia em horas de programação, que o
pentecostalismo exerce na televisão paulista.

A Igreja Universal e a televisão: um casamento perfeito


A imprensa, antes de 1989, pouco se preocupava com pregações pentecostais na televisão ou no
rádio, assim como não percebia nessa propaganda religiosa qualquer ameaça ao empresariado da
indústria cultural. Isso porque, a mídia estava sob controle de empresários seculares, de quem os
pastores e missionários compravam espaço, pagando por isso elevadas quantias, sempre
dependentes de condições impostas pelos proprietários, nem sempre consideradas justas. Com a
aquisição da Rede Record pelo bispo Edir Macedo, a mídia se tornou agressiva em relação a
IURD e passou a questionar a legalidade de toda transação.150

Porém, isso não deveria ter acontecido, pois com essa compra introduzia-se no Brasil uma
estratégia pentecostal surgida nos Estados Unidos, nas décadas anteriores, pela qual os líderes
religiosos pretendem reconquistar um lugar mais privilegiado no principal centro gerador de

150
Foi exatamente nessa época, 1990, como analisamos anteriormente, que tanto a Rede Globo como a Rede
Manchete, prepararam programas especiais com denúncias de “manipulação do público”, de “charlatanismo”, da
“extorsão de dinheiro”, que estariam acontecendo em seitas “exploradoras da credulidade do povo brasileiro”.
Surgia a “grande ameaça” que seria a IURD de Edir Macedo, que acabara de adquirir a Rede Record, e cujo
processo de transferência de concessão estava em andamento junto à Presidência da República. Afinal de contas,
pensava-se que uma certa pressão poderia ajudar a inviabilizar essa transferência, possibilidade tida como certa na
época por alguns burocratas de Brasília, que pensavam que mais cedo ou mais tarde, a Record iria sumir das mãos
de Macedo (Veja 17.7.91).

256
257

símbolos da cultura ocidental - a televisão. Para apaziguar a opinião pública, Macedo afirmava
ser a sua meta transformar a Record numa rede profissional, moderna e bem colocada no
mercado de comunicação. É claro que a prática posterior tem demonstrado haver nessa emissora,
uma programação voltada para a aquisição de dividendos religiosos e políticos, como veremos
posteriormente.

Na Record há uma programação estritamente religiosa em O Despertar da Fé, diariamente das


6h00 às 8h30; “Palavra de Vida”, a partir da uma hora da madrugada; O Santo Culto no seu Lar,
aos sábados das 6h30 às 8h00. Há uma programação aparentemente destinada a debates não-
religiosos de temas de interesse geral, 25° Hora, originalmente transmitida de segunda a sexta-
feira, das 23h30 à 1h00 e, a partir de abril de 1996, no horário nobre, ou seja, das 20h00 às
21h30.151 Esse programa reúne pastores, membros e simpatizantes da Igreja ou outros
profissionais convidados para o debate de assuntos polêmicos como sexo, aborto, desemprego,
miséria, problemas de casamento e outros mais. Porém, às vezes, há orações, citações da Bíblia
e promessas de milagres.

Há também programações de filmes sobre “heróis bíblicos” e “enlatados” norte-americanos, nos


domingos à tarde. No decorrer das programações há publicidade institucional da IURD, spots
com “histórias de vida” de pessoas, que aderiram à Igreja Universal e “reportagens objetivas”
sobre a sua atuação assistencial, por meio da Associação Beneficente Cristã (ABC), entidade
dirigida em São Paulo pelo pastor Ronaldo Didini, ex-oficial de Exército e responsável pelo
programa 25ª Hora.152

Nos horários “críticos” da vida diária (meio-dia, seis da tarde, meia-noite) há pastores que fazem
preces especiais pelos ouvintes. Às seis da manhã, a “oração do trabalhador” infunde otimismo
em quem sai para trabalhar; ao meio dia, na “oração do meio dia” pede-se proteção a todos e, às
seis da tarde, na “oração das seis”, agradece-se pelo dia, usando-se como fundo a música
instrumental “Ave Maria” de Gounod. Nesse caso, a IURD se apropria de um antigo programa
católico, a “Hora da Ave Maria”, que em outros tempos foi dirigido pelo falecido radialista
católico, Pedro Geraldo Costa.153

151
O programa 25ª Hora passou a ser transmitido no horário nobre da televisão, das 20h00 às 21h30, enquanto
estávamos redigindo este texto. A Record, para vencer a concorrência com as TVs Manchete, Gazeta-CNT e
Bandeirantes, primeiro tentou investir, no final de 1995, na área dos noticiosos. Porém, essa é uma atividade que
possibilita o surgimento de atritos dos jornalistas profissionais com a visão particular de mundo dos proprietários
da empresa. O conflito veio à tona com a demissão do conhecido radialista Francisco (Chico) Pinheiro, recém-
contratado da TV Bandeirantes. A partir de então, a Record passou a investir pesado no esporte, montando uma
equipe com profissionais que têm salários milionários e que antes trabalhavam para emissoras concorrentes. Afinal
de contas, esportes não é uma área tão perigosa quanto os noticiosos, principalmente para a manutenção de mitos
e autoritarismo político-religioso.
152
A Associação Beneficente Cristã (ABC) realiza eventos para arrecadar alimentos e impressionar a opinião pública
com sua capacidade de convocação de massas. Num desses eventos, ocorrido no Vale do Anhangabau, Macedo
conseguiu reunir cerca de 300 mil pessoas e arrecadar aproximadamente 700 toneladas de alimentos. Segundo o
coordenador da ABC, do final de 1994 até março de 1995, a ABC já teria distribuído mais de 3000 toneladas de
alimentos (Folha de S.Paulo, 15.4.95). O jornal Folha Universal, a revista Mão Amiga e o programa 25ª Hora
sãos os principais divulgadores do que o outro braço faz. A IURD também mantém instituições como a Sociedade
Pestalozzi de São Paulo (250 crianças), gastando ali cerca de US$ 15 mil mensais. Talvez esse seja um outro
excelente exemplo de marketing social.
153
Oração do Meio Dia, tem na Grande São Paulo uma média de 61 mil telespectadores, ou cerca de 6% de
audiência e a Oração das Seis, 77 mil telespectadores ou 5% de audiência nesse horário. A divisão do dia em

257
258

A maneira pela qual a Record e as demais emissoras dividem o seu tempo de programação entre
as várias expressões religiosas cristãs, a forma como se segmenta essa audiência também pode
ser visualizada no quadro n° 10.

Quadro n° 10 - Programas religiosos na TV - Grande São Paulo (audiência por classe social)

PROGRAMA E EMISSORA CLASSE CLASSE C CLASSE Audiên- Entidade


POSIÇÃO NO cia em mantene-
AB DeE
RANKING mil dora

Missa Aparecida Cultura. 9 67 60 136 Igreja


(1) Católica
(66%) (49,2%) (44,2)

Oração das Seis Record 33 41 44 118 IURD


(2)
(28,0%) (34,8%) (37,2%)

Santa Missa em Globo 11 43 22 76 Igreja


Seu Lar (3) Católica
(14,5%) (56,5%) (20%)

Anunciamos Jesus Bandeirantes 5 28 42 75 Renovaçào


(4) Carismática
(6,7%) (37,3%) (56%)
Católica

Programa Carlos Bandeirantes 1 23 44 68 Assembléia


Apolinário (5) de Deus
(14%) (33,8%) 64,7%)

Oração Meio Dia Record 11 27 20 58 IURD


(6)
(19%) (46,5 %) (34,5%)

Palavra Viva (7) Bandeirantes - 22 26 48 Igreja


Palavra
(45,8%) (54,2%)
Viva

25° Hora (8) Record 17 16 11 44 IURD

(38,6%) (36,4%) (25%)

Santo Culto no seu Record 5 8 31 44 IURD


Lar (9)
(11,4%) (18,2%) (70,4%)

Espaço Foursquare Manchete 3 6 31 40 Igreja do

horas nefastas obedece a costumes milenares. Os judeus, por exemplo, consideravam o meio-dia, um momento em
que o ar estava carregado de energias demoníacas, havendo inclusive reflexo desse temor por certas horas
“perigosas”. Nos Salmos se lê: “Deus livrará você de perigos escondidos e de doenças mortais (...) você não terá
medo dos perigos da noite nem de assaltos durante o dia. Não terá medo da peste que se espalha na escuridão nem
dos males que matam ao meio-dia” (Salmo 91.3,5 e 6).

258
259

Gospel (10) (7,5%) (15%) (77,5%) Evangelho

Quadrangu-
lar

Sara Nossa Terra Manchete 4 (10,5%) 3 31 38 Comunidad


(11) e Sara
(7,9%) (81,6)
Nossa Terra

Despertar da Fé Record 4 (18,2%) 6 12 22 IURD


(12)
27,3%) (54,5%)

Palavra da Fé Bandeirantes 1 11 7 19 Ministério


(13) . Valnice
(5,2%) (57,9%) (36,9%)
Milholm

ClClube 700 Manchete 1 12 4 17


(1)
(5,8%) (70,6%) (23,6%)

Clip Gospel Manchete 1 6 4 11 Renascer


(15) Em Cristo
(9%) (54,6%) (36,4%)

Espaço Renascer Manchete 5 (45,5%) 5 1 11 Renascer


(16) Em Cristo
(45,5%) (9%)

Igreja da Graça Bandeirantes 3 1 2 6 Igreja da


(17) . Graça IIGD
(50%) (16,6%) (33,4%)

Igreja da Graça Gazeta 1 4 1 6 IIGD


(17)
(16,7%) (66,6%) (16,7%)

Fonte: IBOPE - SP (Semanas de 7.11 a 4.12.94).

Raramente, a Record cede espaço em seus veículos de comunicação para outras denominações
ou seitas religiosas. Aliás, ao adquirir uma emissora de rádio ou de televisão, a primeira
providência de Macedo foi elevar absurdamente o preço de seus veículos, tornando inviável o
uso de seus veículos de comunicação pelos concorrentes.154 No entanto registramos na Record
algumas poucas exceções, entre elas: o programa Renascer, transmitido aos sábados, das 8h00 às
8h30, com 14 mil telespectadores, ou seja, apenas 4% da audiência desse horário, dirigido pelo
pastor da Assembléia de Deus, aliado de Edir Macedo, Silas Malafaia. Outros beneficiados são:

154
O rev. Guilhermino Cunha, presidente da Igreja Presbiteriana do Brasil, nos relatou que quando Macedo adquiriu
a Rádio Copacabana aumentou abusivamente o preço das transmissões como meio para eliminar do ar todos os
programas que diversas igrejas mantinham nessa emissora. Assim, a transmissão direta de seu culto dominical,
cel