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Recife, 2021
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE
REITOR Prof. Dr. Pedro Henrique Falcão
VICE-REITORA Profa. Dra. Socorro Cavalcanti
Esta obra ou os seus artigos expressam o ponto de vista dos autores e não a posição oficial
da Editora da Universidade de Pernambuco – EDUPE
ISBN: 978-65-86413-56-4
CDU: 574:37.02
Silvio Almeida
APRESENTAÇÃO
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mos “humanizados(as)” neste mundo. E, recorrendo ao Patrono da
Educação Brasileira, Paulo Freire, defendemos que a humanização é
uma vocação ontológica.
Com isso, enfatizamos que é necessário e possível promover um
Ensino de Ciências e Biologia numa perspectiva antirracista e, conse-
quentemente, mais sustentável e humanizado. Neste sentido, comba-
ter o racismo e empreender esforços por meio da Educação para as Re-
lações Étnico-Raciais não podem ser encaradas como funções apenas
das escolas e de algumas disciplinas. Tais funções competem ao Esta-
do e precisam estar presentes nos processos formativos de professores
e professoras de todas as áreas, ou seja, carecem constar na formação
inicial e continuada.
Frente ao exposto, entendemos que a presente obra se insere
em contexto atual, relevante e pertinente que pode contribuir para o
incentivo de novos processos formativos e práticas pedagógicas em
todo o país. Pensamos que, nesta perspectiva, seguimos cumprindo
nosso papel de pesquisa e divulgação da Ciência tendo como objetivo
apontar caminhos factíveis de implemento de políticas afirmativas e
pedagógicas.
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PREFÁCIO
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mentos científicos levados a cabo pelos nazistas em campos de con-
centração, origem de grande parte daqueles saberes1.
A partir daí, venho dedicando meus esforços no estudo de rela-
ções entre a educação em Ciências e a educação de relações étnico-ra-
ciais positivas, mesmo que esse termo só fosse cunhado alguns anos
depois, por meio da Lei 10.639-03 e do Parecer CNE-CP 003 de 2004.
Na época, uma das grandes dificuldades que encontrávamos, educa-
dores em Ciências comprometidos com o estabelecimento de relações
étnico-raciais justas, era a ausência de materiais em língua portugue-
sa. Fiz parte do Doutorado nos Estados Unidos, e trouxe duas caixas
de livros e outros materiais em inglês, o que me ajudou bastante. Pude
também descobrir, quase que como um investigador de ficções, expe-
riências levadas a cabo no Brasil na área, como a experiência do GT-
TAB2 em São Paulo, lá no final dos anos 1980, mostrando o protagonis-
mo e criatividade do Movimento Negro (educador, como explica Nilma
Lino Gomes) também nesse campo de discussões.
É um prazer e grande emoção poder testemunhar o avanço da
produção nacional comprometida em divulgar conhecimentos, pro-
postas, perspectivas e projetos de educação das relações étnico-raciais
no ensino de Ciências e de Biologia. Em 2008 publiquei um texto sin-
gelo, propondo ações pedagógicas por meio da análise da mídia. Havia
pouca coisa do tipo. Desde então, vejo, com alegria imensa, crescer e
prosperar, não sem dificuldades, é claro, a produção na área. Textos
muito melhores, mais críticos, pautados em ações concretas junto a
estudantes e docentes, com referenciais anticoloniais estão agora dis-
poníveis a todas as pessoas interessadas, como estes presentes nesta
1 Ver, por exemplo: Lifton, RJ. 1986. The Nazi Doctors: Medical Killing and the Psychology of Genocide,
New York: Basic Books. London: Macmillan, 1986.
2 GTAAB. Cor e Gen/te. In.: Ensino de Biologia: dos fundamentos às práticas. São Paulo: CENP Vol. II,
1988.
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obra que prefacio. Somos testemunhas do emergir de uma literatu-
ra brasileira que se dedica a (re)pensar a educação em Ciências numa
perspectiva antirracista, mais humana e humanizadora, cumprindo
com as ideias freirianas de uma educação que problematiza e desvela
a realidade3.
Na minha concepção, o escopo deste livro é o que temos de mais
precioso e revolucionário na educação brasileira contemporânea: o
intuito de (re)educar relações sociais vividas, no caso, étnico-raciais.
Dando sustentação a esse intuito há um projeto distinto de sociedade,
muito mais justo e de futuro viável. Talvez, essa seja a ideia mais po-
tente e menos percebida nos documentos normativos citados antes,
principalmente as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais4. Mais do que transmitir conteúdos sobre
história e cultura africana e afro-brasileira, o que é fundamental dada
nossa história, é preciso (re)educar a forma como nos relacionamos. E
isso é muito mais profundo. Envolve convivência e diálogo, saberes,
fazeres e valores, exige construir, juntos, projeto de sociedade comum.
Re-educar relações étnico-raciais positivas é o esforço amoroso,
no sentido freiriano, que parte do principio da educabilidade de todos
e todas, da ideia de que ninguém nasce racista, e que se é possível
aprender a odiar, é possível aprender a amar. Ele não ignora as dimen-
sões estruturais e institucionais do racismo, as traz à compreensão dos
envolvidos, desejando que também se comprometam, conosco, com
sua transformação.
Ideias diversas sobre essa (re)educação, no campo da educação
em Ciências: é o que trazem os textos aqui unidos pela sabedoria e es-
3 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1978.
4 BRASIL. Parecer CNE/CP n.º 3, de 10 de março de 2004: Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Conselho Nacional de Educação, Ministério da Educação, Brasília.
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forço de Joaklebio Alves da Silva e Monica Lopes Folena Araújo, orga-
nizador e organizadora do livro. Com eles aprendemos, logo no início,
que a “formação de professoras e professores precisa se consolidar en-
quanto base estruturante para a efetivação de práticas comprometidas
com a causa étnico-racial.”
Com Waldemar Borges de Oliveira Júnior e Wilma de Nazaré Baía
Coelho vi reforçada a necessidade de ampliar a discussão no sentido de
visibilizar o discurso acadêmico produzido em torno do tema da edu-
cação das relações étnico-raciais, a fim de “promover possibilidades e
objetos de estudo ainda pouco sondados em relação à Diversidade e ao
Ensino de Ciências no Brasil”.
O autor Antonio Novaes da Silva (Baruty) chama a atenção para o
fato de que a Biologia tem profundas raízes eurocêntricas, mas, que “...
ela também apresenta uma série de conteúdos que podem ser introdu-
zidos permitindo uma abordagem decolonial...”, neste caso, apresen-
tando exemplos muito interessantes ligados ao campo da Citologia.
Joaklebio Alves da Silva e Monica Lopes Folena Araújo analisam
o Projeto Pedagógico de um curso de licenciatura em Ciências Bioló-
gicas e conseguem identificar nele “temáticas e pontos importantes
e necessários para a formação inicial de professoras e professores de
Ciências e Biologia...” nos fazendo esperançar mudanças importantes
nos cursos de formação inicial de professores/as no país.
Já Christiana Andréa Vianna Prudêncio, Dayane Ferreira dos
Santos e Krisnayne Santos Ribeiro, nos alertam para a importante rea-
lidade de que “... nossa visão de ciência precisa ser mais desconstruí-
da para que possamos (re)conhecer e (re)valorizar os conhecimentos
científicos e tecnológicos de matriz africana e afrodescendente”.
Bruno Oliveira Cova, Uiré Lopes Penna e Bárbara Carine Soares
Pinheiro, tecendo considerações com forte raiz em nossa ancestralida-
de africana, desvelam uma “... encruzilhada entre a colonialidade e a
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decolonialidade”. Nela, temos a oportunidade de seguir outros rumos,
compreendendo “... lógicas coletivas e individuais, entrecruzadas e in-
terrelacionadas por culturas outras”.
A pesquisadora Denise Gonçalves da Cruz, refletindo a partir do
contexto contemporâneo, evidencia que, mesmo em meio às conse-
quências trágicas de uma sociedade erguida em lógicas coloniais, exis-
tem experiências que “... nos ajudam a oxigenar nossas imaginações
sobre as ciências naturais e permitem projetar no cotidiano constru-
ções de novos mundos possíveis.”
A partir de um estudo bibliográfico, Joaklebio Alves da Silva,
José Antonio Novaes da Silva (Baruty) e Denise Maria Botelho nos
mostram, tanto generosa quanto rigorosamente, que há “inúmeras
possibilidades da promoção de uma educação para as relações étni-
co-raciais no ensino de Ciências e Biologia, e que essa disciplina possa
contribuir criticamente para a implementação da Lei 10.639/2003 no
âmbito educacional”.
A reflexão trazida por Leni Vieira Dornelles e José Luís Ferraro
nos toca para a necessidade de fortalecer, em nossas aulas de Biologia,
uma pedagogia da racialidade, que aborde “componentes específicos
como o respeito ao diferente e a diferença, o respeito à diversidade
étnica e cultural, a proteção ao meio ambiente, a história das comuni-
dades, a promoção de valores étnico-culturais e o fortalecimento das
identidades e subjetividades”.
Com Flávio Henrique de Oliveira Santos, Karla Cunha Pádua e
Emmanuel Duarte Almada é possível aprender sobre possibilidades
da etnobotânica no ensino de Ciências, a relação entre as plantas e a
cultura indígena, suas memórias, vivências e experiências (encarna-
das em dois detentores de saberes ancestrais Pataxó), destacando que
“todas as contribuições oriundas deste estudo reverberem para a sal-
vaguardar dos saberes ancestrais...”.
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Alexsandro Alberto da Silva, Rita Patrícia Almeida de Oliveira e
Monica Lopes Folena Araújo, apontam para a premência de processos
de tomada de consciência pautados na práxis crítico-humanizadora
e transformadora, na ação-reflexão-ação, investindo no conceito de
interculturalidade crítica e seu potencial para questionar “ideias he-
gemônicas, padronizadas e binárias, bem como a desconstrução, as
problemáticas sociais, ambientais, culturais, econômicas e o modo re-
lativista das estruturas e práticas sociais”.
Por fim, Kelly Meneses Fernandes in-venta viveres no trabalho
com a educação das relações étnico-raciais, dando ênfase à criação de
espaços de conversas que “nos ajudem a sobreviver, compreendendo
nosso fazer na educação como possibilidades de desobedecer aos pen-
samentos racistas, combustíveis de uma educação colonizadora”.
Certamente cada um produzirá suas próprias aprendizagens e
reflexões, espero ter dado apenas um “gostinho” da profundidade e re-
levância dos textos aqui reunidos. Registro aqui minhas felicitações
aos organizadores, autores e autoras, e meu convite a que leitores e
leitoras mergulhem nesta empreitada, que começará na leitura, mas
que se estenderá para mudanças que ela produzirá nos sentidos de
educar que cada um possui. Boa leitura!
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
A questão relacionada à formação docente no Brasil, de acordo
com os estudos de Demerval Saviani (2009), surge explicitamente após
a independência do país, na qual se evidencia por meio de análises dos
períodos históricos que vai desde os Ensaios intermitentes de forma-
ção docente (1827-1890) até o advento dos Institutos Superiores de
Educação, Escolas Normais de Superiores e o novo perfil para o curso
de Pedagogia (1996-2006).
Conforme aponta Dourado (2015), a formação dos/as profissio-
nais do magistério para a Educação Básica no país tem se configurado
1 Este capítulo é uma tradução revisada e ampliada do artigo “Education for Ethnic-Racial Relations
in the new Curriculum Guidelines and in the Common National Base for the Initial Training of Brazilian
Teachers: implications for the teaching of anti-racist Science and Biology”, submetido à Revista Science
Education International.
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enquanto um campo de disputa que envolve concepções dinâmicas,
políticas e curriculares. Junta a isso, as inúmeras mudanças de cunho
social, político e econômico que impactam a prática docente nas esco-
las requerem do processo formativo de professoras e professores de-
terminadas mudanças em decorrência das demandas externas e inter-
nas da área que acabam refletindo na estrutura curricular dos cursos
de formação inicial e na formação continuada.
Dito isto, é importante ressaltar que a formação docente no Bra-
sil é orientada por documentos que dispõe de diretrizes nacionais com
viés curricular que fundamentam as propostas de formação no âmbito
das políticas educacionais nas Instituições de Ensino Superior (IES)
que ofertam cursos de licenciatura em diferentes áreas do conheci-
mento. Esses cursos precisam atender a um conjunto de legislações
que advém, por exemplo, de discussões das entidades responsáveis e
representativas de grupos sociais, como é o caso do Movimento Social
Negro com a luta para a inserção da História e Cultura Africana e Afro-
-Brasileira nas escolas que configura uma proposta educativa voltada
à diversidade cultural.
García (1999) advoga acerca da necessidade de discutir, na for-
mação docente, conhecimentos, competências e atitudes face à diver-
sidade cultural por meio da educação intercultural, já que a atual for-
mação, da forma que é ofertada, tende a caminhar por uma ótica mo-
nocultural, ou seja, voltada a uma cultura específica sem dialogar com
outras culturas, inclusive a local. Da mesma maneira, o autor destaca
que a educação intercultural não se limita apenas a inserir grupos ét-
nico-raciais no processo formativo, mas existe a necessidade de inte-
grar o conceito de diversidade cultural nos conteúdos e metodologias
de ensino e passar a compreender que esta diversidade também cor-
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responde a questões relacionadas à raça, sexo, religião, classe social,
entre outras vertentes (GARCÍA, 1999).
António Nóvoa discute sobre algumas disposições que são es-
senciais à definição dos/as professores/as na atualidade, entre elas
está o compromisso social que se refere a princípios, valores, inclusão
social e diversidade cultural. Para o autor, o processo de educar con-
siste em levar a criança a ultrapassar os limites impostos, muitas ve-
zes, pela família e pela sociedade, justamente por haver uma cobrança,
para nós docentes, de irmos além dos muros da escola em relação ao
processo educativo (NÓVOA, 2009) justamente para dá conta da de-
manda formativa dos indivíduos relacionados a vários aspectos, entre
eles é válido pontuar a questão da diversidade cultural com ênfase nas
relações étnico-raciais que surgem no âmbito social e que adentram
nas escolas.
Retomando a discussão sobre a luta do Movimento Social Ne-
gro no Brasil, trazemos o argumento de Nilma Lino Gomes, doutora e
professora Titular Emérita da Faculdade de Educação da Universida-
de Federal de Minas Gerais, quando ela nos diz que esse movimento
conquistou um lugar de existência afirmativa no país, a partir do mo-
mento que trouxe o debate acerca do racismo para o contexto público,
passando a questionar as políticas públicas, entre elas a de formação
docente, acerca do seu papel frente à superação das desigualdades ra-
ciais (GOMES, 2017). Gomes (2017) ainda complementa a discussão
relembrando que em 2003, no Governo do Presidente do Brasil Luiz
Inácio Lula da Silva, foi sancionada a Lei 10.639/2003, alterando a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação brasileira (LDB), tornando obriga-
tório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na rede
de ensino pública e privada do país. Cinco anos depois foi aprovada a
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Lei 11.645/2008 que modifica a Lei 10.639/2003, incluindo a História e
Cultura Indígena.
Como desdobramento da Lei 10.639/2003, em 2004, foi publica-
da a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE); Conselho
Pleno (CP) de nº 01, de 17 de junho, instituindo as Diretrizes Curri-
culares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que também
traz orientações para inserção da temática nos currículos da formação
de professores/as da Educação Básica e Superior (BRASIL, 2004).
Corroboramos com conceito de Relações Étnico-Raciais apre-
sentado por Verrangia e Silva (2010), ao dizerem que se trata de re-
lações estabelecidas entre diferentes grupos sociais e as pessoas que
os compõem, pautados em conceitos e ideias acerca das diferenças e
semelhanças referentes ao pertencimento racial dos indivíduos e, con-
sequentemente, do grupo ao qual fazem parte. Já o objetivo da Educa-
ção para as Relações Étnico-Raciais, conforme a Profa. Dra. Petronilha
Gonçalves e Silva, é formar “[...] cidadãos, mulheres e homens empe-
nhados em promover condições de igualdade no exercício de direitos
sociais, políticos, econômicos, dos direitos de ser, viver, pensar, pró-
prios aos diferentes pertencimentos étnico-raciais e sociais” (SILVA,
2007, p. 490).
Os estudos em torno da Educação para as Relações Étnico-Ra-
ciais precisam perpassar por todas as instâncias da Educação Básica
e isso também depende da formação docente nas universidades e de-
mais IES. Os cursos de formação de professores/as buscam cumprir
com o que está posto na legislação, principalmente as de caráter cur-
ricular, na qual consideramos enquanto oportunidade pertinente para
que haja a abordagem de orientações que caracterizam uma proposta
de Educação para as Relações Étnico-Raciais em todas as áreas do co-
19
nhecimento, inclusive as Ciências Biológicas por meio do ensino de
Ciências e Biologia nas escolas.
Até dezembro de 2019 tínhamos em vigência as Diretrizes Curri-
culares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada em Nível Su-
perior de Profissionais do Magistério para a Educação Básica, através
da Resolução nº 2 de 1º de julho de 2015, que garantia a abordagem
das relações étnico-raciais a partir da diversidade étnico-racial nos
cursos de formação inicial e continuada de professores/as no Brasil,
conforme analisamos em um estudo anterior (SILVA; ARAÚJO, 2020).
O referido documento foi aprovado após 12 anos da Lei 10.639/2003
e definiu “princípios, fundamentos, dinâmica formativa e procedi-
mentos a serem observados nas políticas, na gestão e nos programas
e cursos de formação, bem como no planejamento, nos processos de
avaliação e de regulação das instituições de educação que as ofertam”
(BRASIL, 2015, p. 3-4).
Em 20 de dezembro de 2019 foi aprovada uma nova Resolução
de nº 2 do Ministério da Educação; CNE/CP que definiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a
Educação Básica e instituiu a Base Nacional Comum para a Formação
Inicial de Professores da Educação Básica (BNC- Formação). Este do-
cumento surge para revogar a Resolução 2/2015, trazendo mudanças
nos fundamentos, objetivos, conteúdos e no projeto de formação que
implica na estrutura curricular da formação inicial de professores/as
e estabeleceu o prazo de dois a três anos para que as IES adequem
os cursos de formação docente através das competências profissionais
previstas no documento.
Considerando que as novas diretrizes e base nacional comum
passam a orientar os cursos de formação docente no Brasil, entre eles,
o de Licenciatura em Ciências Biológicas/Naturais; e considerando
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que as diretrizes de formação de professores/as postas por meio da
Resolução 2/2015 garantiam uma abordagem de Educação para as Re-
lações Étnico-Raciais na formação docente, procuramos analisar, em
uma perspectiva comparativa, indícios de uma proposta de Educação
para as Relações Étnico-Raciais presentes ou ausentes nas novas Dire-
trizes Curriculares e na Base Nacional Comum para a formação inicial
de professores/as e as possíveis implicações para o ensino de Ciências
e Biologia antirracista.
De acordo com Santos e Coelho (2015), existe uma preocupação
com os impactos oriundos dos conteúdos/estudos acerca da formação
da identidade racial dos grupos que foram historicamente discrimina-
dos, como é o caso da população negra e indígena no Brasil. As autoras
ainda acrescentam que a estrutura do currículo é criticada por ocultar
temas relacionados à história da África e do/a negro/a no país e acaba
estereotipando as pessoas negras nos livros didáticos, assim como, na
formação docente quando deveriam abordar questões étnico-raciais
(SANTOS; COELHO, 2015).
Pesquisas voltadas à formação de professores/as de Ciências e
Biologia, como as realizadas por Verrangia (2009, 2013); Souza (2014);
Sousa e Pedrosa (2016); Jesus (2017); Oliveira Júnior (2018); Silva
(2018); Cruz (2019) e Silva (2020), convergem para a necessidade dos
cursos de formação inicial e a formação continuada de docentes consi-
derarem de forma efetiva os estudos acerca das relações étnico-raciais
para a promoção da Educação Étnico-Racial no ensino de Ciências e
Biologia.
Segundo Araújo (2015, p. 101), “a sociedade está requerendo pro-
fissionais aptos a atuar na docência que enfrentam tensões no campo
do trabalho docente, o que exige conhecimentos aliados ao compro-
misso profissional, que é também social”. A escola vista enquanto
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campo de trabalho do/a professor/a é palco de tensas relações sociais
onde precisamos promover um processo educativo para as relações
étnico-raciais, o que demanda conhecimento por parte do/a docente.
Isso significa que “a formação docente é um campo profissio-
nal movido por muitas necessidades formativas no sentido de prepa-
rar pessoas com conhecimentos e atividades profissionais específicas”
(ARAÚJO, 2015, p. 102). Logo compreendemos que o currículo dos cur-
sos de formação de professores/as precisa abordar a diversidade cul-
tural, em especial, a diversidade étnico-racial. Neste ponto de vista,
concordamos com a afirmação de Barzano e Melo (2019, p. 205), quan-
do destacam a urgência de “[...] (des)construir o currículo do ensino de
Biologia, desde a escola à universidade, possibilitando novos enfoques
epistemológicos e metodológicos, a partir da promoção de discussão
e visibilidade a vozes de resistências que, na maioria das vezes, são
subalternizadas”.
A desconstrução do currículo nesta perspectiva implica em pos-
sibilidades de propiciar uma educação antirracista no ensino de Ciên-
cias e Biologia, ou seja, uma educação que busque educar para as re-
lações étnico-raciais de forma a lutar e resistir contra toda forma de
preconceito e discriminação étnica e racial que estrutura o racismo na
sociedade.
Uma pesquisa publicada por Marín e Cassiani (2021), com estu-
dantes da Colômbia, demonstra que as práticas pedagógicas no ensino
de Biologia são construídas em espaços em que discentes e docentes
podem reconhecer o racimo enquanto problema atual e que permane-
ce em todos os contextos sociais para que a partir disso possa haver
o planejamento de estratégias para combatê-lo através do ensino de
Biologia em uma perspectiva de educação antirracista, já que as ques-
tões étnico-raciais estão diretamente relacionadas com elementos fi-
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losóficos e epistemológicos da Biologia (MARÍN; CASSIANI, 2021). As
inferências apresentadas pelo autor e pela autora são válidas para o
contexto brasileiro, visto que o racismo encontra-se estruturado so-
cialmente, não sendo diferente em nosso país onde a estrutura opres-
sora não se esconde e é identificada nos variados contextos, principal-
mente na escola.
Entendemos por racismo o conceito defendido por Silvio Almei-
da, advogado, filósofo, professor e doutor, ao dizer que o termo se re-
fere a uma “forma sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou
inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para in-
divíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA,
2020, p. 32).
Para Gomes (2012) a mudança estrutural proposta pela Lei
10.639/2003 no Brasil abre possibilidades para a construção de uma
educação antirracista que resulta na ruptura epistemológica e cur-
ricular a partir do momento em que torna público e legitima a fala,
pautada no diálogo intercultural entre conhecimentos, a questão afro-
-brasileira e africana na educação. Sendo assim, voltamos a afirmar e
destacar a importância dos cursos de formação inicial de professoras e
professores considerarem os estudos relacionados à Educação para as
Relações Étnico-Raciais em seus currículos.
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professores/as de Ciências e Biologia no tocante a Educação para as
Relações Étnico-Raciais.
O levantamento de dados se deu de duas maneiras complemen-
tares: a primeira delas consistiu na pesquisa documental, enquanto
fonte primária, uma vez que a coleta de dados foi por meio de um docu-
mento do arquivo público do Ministério da Educação. O tipo do docu-
mento, em conformidade com Marconi e Lakatos (2003), se caracteriza
enquanto oficial escrito por se tratar da Resolução CNE/CP nº 2/2019
que define as Diretrizes Curriculares Nacionais e a Base Nacional Co-
mum para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica.
A segunda se caracteriza como pesquisa bibliográfica, enquanto fonte
secundária, por utilizarmos referências bibliográficas do tipo impres-
sa escrita e publicações relacionadas ao objeto de estudo (MARCO-
NI; LAKATOS, 2003), principalmente durante as discussões de cunho
comparativo que foram feitas com base em um estudo anterior no qual
analisamos a proposta de Educação para as Relações Étnico-Raciais na
Resolução 2/2015 (SILVA; ARAÚJO, 2020).
A análise dos dados foi guiada a partir de elementos da Análise
de Conteúdo proposta por Bardin (1977) no que se refere à pré-análise
do material em estudo e o tratamento dos resultados por meio da ex-
tração, descrição, interpretação e inferência de trechos da Resolução
2/2019.
A Pré-análise partiu de inquietações do pesquisador e da pesqui-
sadora por reconhecerem que os cursos de formação inicial de profes-
sores/as no Brasil são orientados por documentos que fundamentam
os currículos, o que nos levou a escolher a resolução a ser analisada.
A exploração do material também compõe a etapa da análise e com-
preendeu na leitura do material para a obtenção de impressões, como
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termos relacionados às questões da diversidade cultural/étnico-racial,
no documento.
O tratamento dos resultados só foi possível após a leitura que
permitiu extrair trechos do documento que trazem características que
configuram a presença e/ou ausência de um processo educativo frente
às relações étnico-raciais para a formação inicial docente segundo a
Resolução 2/2019, em comparação ao proposto na Resolução 2/2015.
Consequentemente tecemos interpretações acerca dos trechos extraí-
dos para que fosse possível inferir a partir do confronto entre referen-
ciais teóricos trazendo sentidos e significados para os resultados no
processo de construção do conhecimento.
25
do Conhecimento Profissional, a dimensão da Prática Profissional e a
dimensão do Engajamento Profissional. Para cada dimensão são pos-
tas quatro competência específicas e, posteriormente, são estabeleci-
das habilidades para alcançar tais competências.
É importante destacar que as diretrizes de 2015 já mencionavam
a necessidade de haver uma Base Comum Nacional para a formação
docente, porém, não é desta necessidade que se origina a BNC- For-
mação. Para Rodrigues, Pereira e Mohr (2020), a proposta de criação
da BNC- Formação de Professores menciona que o referido documento
buscará atender ao disposto na legislação educacional, entretanto, a
Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira aponta que é preciso
ter uma base nacional comum para o ensino fundamental e médio; o
Plano Nacional de Educação também traz a menção a uma base na-
cional comum dos currículos da educação básica que, apenas em 2017,
passou a ser a BNCC (RODRIGUES; PEREIRA; MOHR, 2020). Sendo as-
sim, as autoras destacam que:
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ção docente, pautada em uma concepção de educação emancipatória
e permanente, “bem como pelo reconhecimento da especificidade do
trabalho docente, que conduz à práxis como expressão da articulação
entre teoria e prática e à exigência de que se leve em conta a realida-
de dos ambientes das instituições educativas da educação básica e da
profissão” (DOURADO, 2015, p. 307).
A concepção de base comum nacional disposta nas diretrizes de
2015 busca se efetivar a partir da garantia de um processo amplo para
a formação docente considerando a diversificação curricular, sem tor-
nar a proposta de formação a um projeto que reduz a educação apenas
ao ensino (DOURADO, 2013). O que verificamos na BNC-Formação é a
configuração de uma base nacional comum ancorada em competências
e habilidades para a formação de professores/as, algo até então nunca
visto neste contexto formativo. Estruturar a formação de professores/
as para o cumprimento de competências e habilidades se configura en-
quanto tentativa de minimizar a dinâmica formativa, buscando dire-
cioná-la a uma aprendizagem meramente reduzida e acrítica.
Nos últimos tempos percebemos que a BNCC da educação bá-
sica passou a ser referência nas discussões, até mesmo no campo da
formação de professores/as. Bazzo e Scheibe (2019) fazem uma leitura
crítico-comparativa entre as diretrizes de 2015 e as de 2019 e apontam
que:
27
para todo o País, elaborado de acordo com uma visão tecni-
cista/instrumental, favorável às orientações dos grupos em-
presariais, interessados em formar um trabalhador que lhes
fosse submisso, a partir, portanto, de um currículo próximo
do que poderíamos chamar de mínimo e muito distante de
uma base curricular que lhe propiciasse formação capaz de
desenvolver sua autonomia e criticidade (BAZZO, SCHEIBE,
2019, p. 673).
28
ção básica voltada à Educação para as Relações Étnico-Raciais é posta
por meio da diversidade étnico-racial. Esta diversidade precisa per-
passar por todo currículo considerando a premissa formativa e todos
os aspectos que envolvem a formação docente como o princípio for-
mativo, o projeto de formação, o perfil do/a egresso/a e a estrutura
curricular dos cursos.
Quanto ao objeto da Resolução 2/2019, a diversidade étnico-ra-
cial não é considerada como aprendizagem essencial. Em seu artigo 2º
é apresentado que a formação, segundo as diretrizes, pressupõe o de-
senvolvimento, por parte do/a estudante de licenciatura, com base nas
dez competências propostas pela BNCC- Educação Básica “bem como
das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes,
quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional
de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno
das pessoas, visando a Educação Integral” (BRASIL, 2019a, p. 2, grifo
nosso).
Mesmo citando os aspectos cultural e social, este documento
não atende as reais necessidades da formação de professores/as no
que toca a diversidade étnico-racial como é garantida pela Resolu-
ção 2/2015. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação- ANPEd, ao publicar sua posição acerca das novas diretrizes,
afirma que o texto de 2019 considera apenas uma orientação e possi-
bilidade para a formação docente que está unicamente subjacente a
BNCC, o que torna a situação preocupante justamente por estar revo-
gando um documento construído em conjunto e após diversas discus-
sões realizadas em um período considerado satisfatório para o estabe-
lecimento das diretrizes.
Ao apresentar os fundamentos para formação docente, a nova
resolução discorre que a inclusão dos conhecimentos que são produ-
29
zidos pelas ciências para o campo educacional “contribui para a com-
preensão dos processos de ensino-aprendizagem, devendo-se adotar
as estratégias e os recursos pedagógicos, neles alicerçados, que favore-
çam o desenvolvimento dos saberes e eliminem as barreiras de aces-
so ao conhecimento” (BRASIL, 2019a, p. 3, grifo nosso).
O ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e In-
dígena sempre foi ponto de discussão para sua inserção na educação
básica e um dos motivos consiste na problemática da formação de pro-
fessores/as que se caracteriza pela percepção dos/as docentes quando
afirmam não ter contato com estudos relacionados à temática, o que
acaba refletindo nas práticas pedagógicas levando-os/as a considerar
ou desconsiderar os conhecimentos produzidos pela população negra
e indígena. Quando esses conhecimentos estão ausentes desde a for-
mação inicial de professores/as, a política pública para formação do-
cente não estará contribuindo para a eliminação de barreiras de acesso
ao conhecimento, ao contrário, estará aumentando.
Ramón Grosfoguel afirma que a abordagem dos conteúdos tra-
balhados na formação de professores/as e na educação básica no Brasil
é mediada pela ótica do pensamento europeu predominando autores
brancos e autoras brancas que estão imersos/as nas salas de aula, nos
textos e nas ciências dominando os espaços sociais (GROSFOGUEL,
2016). Existe uma tentativa constante de apagamento dos conheci-
mentos produzidos por pessoas negras e indígenas, onde a desconsi-
deração da diversidade étnico-cultural e racial perceptível neste docu-
mento acaba distanciando e impedindo a “chegada” desses conheci-
mentos nas universidades e escolas.
O documento analisado também determina princípios para a or-
ganização curricular dos cursos superiores de formação docente, entre
eles está a “adoção de uma perspectiva intercultural de valorização
30
da história, da cultura e das artes nacionais, bem como das contri-
buições das etnias que constituem a nacionalidade brasileira”
(BRASIL, 2019a, p. 5, grifo nosso). De acordo com Candau (2011), a
perspectiva intercultural favorece o diálogo entre diferentes saberes
e conhecimentos, o que não fica evidente na nova Resolução de 2019
havendo dubiedade do discurso em outros momentos do documento,
tendo em vista que a perspectiva intercultural requer uma mudança
de ótica cujo ponto de partida, quando vista no contexto das práticas
pedagógicas, precisa reconhecer as diferenças (CANDAU, 2011) entre
os grupos que constituem a sociedade brasileira.
O Brasil é um país multicultural, ou seja, um país constituído de
múltiplas culturais que precisam dialogar entre si por meio de uma
perspectiva intercultural. Para Kabengele Munanga, antropólogo e
professor brasileiro-congolês, o multiculturalismo deve estar em bus-
ca de estabelecer uma comunicação e integração entre as diferentes
culturas, inclusive as que não são reconhecidas na formação da cida-
dania (MUNANGA, 2015), como o caso da cultura africana e afro-bra-
sileira que foi posta a margem dos currículos, sendo necessário tornar-
-se obrigatório sua inserção nas escolas e na formação docente.
Posteriormente, o artigo 8º do documento traz os fundamentos
pedagógicos para os cursos de licenciatura enquanto eixo da organi-
zação curricular. O inciso VIII coloca que a formação inicial dos/as
docentes para a educação básica deve ter o “compromisso com a edu-
cação integral dos professores em formação, visando à constituição
de conhecimentos, de competências, de habilidades, de valores e de
formas de conduta que respeitem e valorizem a diversidade, os direi-
tos humanos, a democracia e a pluralidade de ideias e de concepções
pedagógicas” (BRASIL, 2019a, p. 5, grifo nosso).
31
Mais uma vez a diversidade étnico-racial não é mencionada dire-
tamente assim como era priorizada nas diretrizes revogadas. Durante
o capítulo III que versa sobre a organização dos currículos dos cursos
superiores de formação de professores/as não se tem subsídios neces-
sários que orientem as IES a estruturarem os cursos de licenciatura
que busquem formar docentes capazes de identificar e considerar a
diversidade no meio escolar, o que fere o compromisso de promover
uma educação integral para os/as licenciandos/as e, consequentemen-
te, para os/as estudantes da educação básica.
Entre as vinte páginas da Resolução, em apenas um momento
quando se fala da carga horária dos cursos de licenciatura, é orienta-
do que entre as 800 horas destinadas ao estudo dos conhecimentos
científicos, educacionais e pedagógicos (Grupo I), devam ser tratadas a
temática Currículo e seus marcos legais trazendo a “LDB, devendo ser
destacado o art. 26-A”, no entanto, a partir da integração das dimen-
sões das competências profissionais como organizadoras do currículo
da formação de professores/as à luz das competências e habilidades da
BNCC da educação básica para todas as suas etapas (Educação Infantil,
Ensino Fundamental e Ensino Médio) (BRASIL, 2019a, p. 6, grifo nos-
so). De forma indireta, a Resolução camufla a Lei 10.639/2003 e acaba
mencionando, quase que obrigada, o artigo 26-A da LDB que dispõe da
obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira.
Indo de encontro com a defesa de Santos e Coelho (2015), co-
mungamos da afirmação das autoras uma vez que destacam que a Lei
10.639/2003 contribui para a inserção de questões raciais e direitos
humanos no âmbito da política curricular brasileira, “sendo um dos
mecanismos para contestar a ausência da história e cultura afro-bra-
sileira no currículo escolar, Projeto Político Pedagógico, planos de en-
sino e as desigualdades “raciais” introduzidas no imaginário da Escola
32
Básica” (SANTOS; COELHO, 2015). Deixá-la de fora de uma diretriz
responsável por orientar a estruturação curricular de cursos de forma-
ção de professores/as nas IES, é uma reafirmação da tentativa política
de retroceder a educação frente ao avanço que a mesma vem tendo nos
últimos anos com relação às discussões que consideram a Educação
para as Relações Étnico-Raciais na formação e prática docente.
Ainda acerca dos cursos de licenciatura, quando mencionada
sobre as 1.600 horas destinadas para a aprendizagem de conteúdos
das diversas áreas específicas, de componentes, unidades temáticas e
objetos do conhecimento conforme disposto na BNCC (Grupo II) “e
para o domínio pedagógico desses conteúdos” (BRASIL, 2019a, p. 6),
o artigo 13 parágrafo 1º apresenta algumas habilidades que devem ser
consideradas ao decorrer da referida carga horária na formação dos/as
professores/as para a Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio.
Entre elas estão:
33
este que está ausente na Resolução 2/2019, mesmo diante da exigência
dos cursos promoverem a articulação entre as áreas da BNC- Forma-
ção com os fundamentos que se referem à equidade e igualdade. Para
que os/as professores/as estejam comprometidos/as com as relações
interpessoais e sociais, o currículo precisa fundamentar sua formação
ao ponto de oferecer-lhe conhecimentos necessários para a prática
educativa no que toca as relações étnico-raciais que estão imersas nas
relações sociais e interpessoais.
Concorda-se com a assertiva de Bazzo e Scheibe (2019) quando
dizem que precisamos combater publicamente este documento, pois
fica evidente que seus pressupostos descaracterizam a formação de
professores/as que as entidades representativas vêm defendendo há
anos (BAZZO; SCHEIBE, 2019), inclusive o Movimento Social Negro
que reivindica a inserção da temática étnico-racial na formação docen-
te. Segundo as autoras, esta legislação fundamenta-se em princípios
incompatíveis com o proposto na Resolução de 2015, principalmente
quando percebemos que parte da legislação educacional não é cum-
prida efetivamente, como o caso das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
Em consonância com as dez competências gerais da BNCC da
educação básica, o documento traz em anexo a BNC- Formação ini-
ciando com a apresentação de dez competências gerais docentes. En-
tre as competências, apenas duas (a de número 1 e 9) serão destacadas
a seguir conforma a ordem em que aparecem no documento. Vejamos:
34
direitos humanos com acolhimento e valorização da diver-
sidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes,
identidades, culturas e potencialidades, sem preconceito
de qualquer natureza, para promover ambiente colabora-
tivo nos locais de aprendizagem (BRASIL, 2019a, p. 13, grifo
nosso).
35
que, a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana são basicamente
excluídas e/ou camufladas ao decorrer das diretrizes aprovadas em
2019. Consequentemente, o respeito ao outro e a valorização da diver-
sidade étnico-racial, representada indiretamente pelo o que chamam
de diversidade de indivíduos e de grupos sociais, serão postas à margem
do currículo dos cursos de formação inicial docente. Esta ação acabará
provocando o aumento e efetivação do preconceito e discriminação
racial no Brasil, o que afeta o educar para as relações étnico-raciais.
Silvio Almeida (2020) apresenta o que vem ser preconceito e dis-
criminação racial, sendo o primeiro termo “o juízo baseado em este-
reótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo
racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias”;
e o segundo, “atribuição de tratamento diferenciado a membros de
grupos racialmente identificados” (ALMEIDA, 2020, p. 32).
Ainda sobre a base, as competências específicas da BNC- Forma-
ção referem-se a três dimensões tidas enquanto fundamentais, sendo
elas o Conhecimento Profissional, a Prática Profissional e o Engaja-
mento Profissional, como citamos anteriormente. Apenas na dimen-
são do Engajamento Profissional temos uma competência específica
que contém uma habilidade relacionada às questões étnico-raciais. A
competência consiste em “comprometer-se com a aprendizagem dos
estudantes e colocar em prática o princípio de que todos são capazes
de aprender”. A habilidade é “atentar nas diferentes formas de violên-
cia física e simbólica, bem como nas discriminações étnico-racial
praticadas nas escolas e nos ambientes digitais, além de promover
o uso ético, seguro e responsável das tecnologias digitais” (BRASIL,
2019a, p. 19, grifo nosso).
A capacidade de aprender citada na competência do Engaja-
mento Profissional não garante que, por exemplo, estudantes negros/
36
as terão acesso aos conhecimentos construídos pela população negra
de forma que se sintam representados/as, conforme a obrigatoriedade
assegurada pela Lei 10.639/2003. Isso se torna óbvio quando voltamos
o olhar para a BNC-Formação buscando elementos que configure uma
proposta efetiva de Educação para as Relações Étnico-Raciais na for-
mação inicial docente. Em que medida os/as professores/as poderão
atentar as diferentes formas de discriminação étnico-racial que por
vezes estão presentes na escola e nos meios digitais se a sua formação
não colabora? A garantia da Educação para as Relações Étnico-Raciais
é indispensável, principalmente na formação inicial de professores/as.
Já se passaram mais de uma década e meia após aprovação da lei que
regulamenta o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas
e o que nos parece é que a formação docente ainda está engatilhan-
do para a promoção de processos formativos comprometidos com esta
causa, inclusive quando tomamos como base a resolução em análise.
As IES que já implementaram o previsto na Resolução 2/2015 em
seus Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) não devem interferir suas
atividades para a reestruturação conforma a Resolução 2/2019 e BNC-
Formação. As instituições terão o prazo de três anos para adequarem
seus projetos de formação conforme as competências profissionais
contidas no novo documento. No caso das instituições que ainda não
implementaram efetivamente a Resolução de 2015, terão o prazo de
dois anos para considerar diretamente a Resolução 2/2019 e sua res-
pectiva base nacional comum.
Alinhamo-nos à defesa de Rodrigues, Pereira e Mohr (2020, p. 34,
grifo nosso) quando as autoras colocam que:
37
forma do Ensino Médio (Lei n. 13.415, 2017), à BNCC da Edu-
cação Infantil e Ensino Fundamental (2017) e à BNCC do En-
sino Médio (2018), assim como dá outro rumo para aquilo
que vinha sendo entendido e construído como Diretrizes
para a formação de professores em nosso país.
38
sociedade étnica e racial, descaracterizando o papel social da escola
no que compete a educar para as relações étnico-raciais. É verdadeira-
mente uma tentativa de desviar a formação docente do caminho que
garantia o respeito, a valorização, a consideração e o reconhecimento
da diversidade étnico-racial ora proposto pela Resolução 2/2015.
2 “[...] se a descolonização refere-se à luta contra a lógica em que sujeitos coloniais se insurgiram
contra os ex-impérios e reivindicaram a independência, a decolonialidade refere-se à luta contra
a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos. Colonialidade é uma
lógica que está embutida na modernidade, e decolonialidade é uma luta que busca alcançar não
uma diferente modernidade, mas alguma coisa maior do que a modernidade” (MALDONATO-TORRES,
2019, p. 36).
39
Consoante o entendimento acerca da descolonização dos currí-
culos defendido por Gomes (2019), percebemos que este processo se
dá de forma conjunta contando com várias contribuições, entre elas
destacamos as advindas da legislação educacional, as pesquisas no
campo científico e os esforços das pessoas que comungam de outra
ótica diferente do padrão de referência universalizado no que se refere
às práticas pedagógicas sob a égide da História e Cultura Afro-Brasi-
leira, Africana e Indígena.
Quando fazemos um recorte para as áreas do conhecimento é
notável que as Ciências Biológicas ainda é tida, por profissionais da
educação, enquanto área ausente de potencialidades para desenvol-
vimento de um trabalho antirracista. A elucidação da área frente a
suas potencialidades para preencher esta lacuna formativa surge com
ênfase na obrigatoriedade posta na legislação educacional brasileira
e no esforço dos/as intelectuais negros/as em trazer a temática para
a formação de professores/as e, consequentemente, para o ensino de
Ciências e Biologia.
Ao nos depararmos com a ausência de uma abordagem que con-
figura uma proposta de Educação para as Relações Étnico-Raciais nos
documentos que orientam os currículos dos cursos de formação inicial
de professores/as, como é o caso da Resolução 2/2019 com as diretri-
zes e base nacional comum, logo identificamos impactos neste proces-
so formativo relacionados com o papel social da escola na reparação
história tocante à positividade estética, intelectual, religiosa, social e
cultural de pessoas negras na sociedade brasileira.
Os impactos estendem-se para o ensino de Ciências e Biologia
uma vez que é uma área cuja colaboração para um ensino antirracista
deveria ser mais efetiva, já que a classificação de seres humanos por
raças biológicas se deu no âmbito das teorias racistas quando as pes-
40
soas negras eram classificadas e julgadas a um grupo inferior por meio
de seu fenótipo, alimentando o conceito de raça pelo viés biológico.
Almeida (2020) nos lembra da atuação do conceito de raça a partir de
sua conformação histórica enquanto característica biológica, tendo a
identidade racial humana atribuída por análises equivocadas de traços
físicos.
Diversas pesquisas no campo da educação e, especificamente, na
área de Ensino no Brasil indicam a necessidade do ensino de Ciências
e Biologia contribuir com a Educação para as Relações Étnico-Raciais,
buscando uma educação antirracista nas escolas e que este processo
educativo reflita socialmente.
Os trabalhos desenvolvidos no âmbito da formação de professo-
res/as também são reflexos positivos resultados da garantia da temáti-
ca étnico-racial nas diretrizes de 2015, tendo em vista que elas orien-
tavam os cursos de formação inicial e continuada de docentes no país.
Além disso, os trabalhos são resultados do empenho de pesquisadores/
as nas diversas universidades brasileiras a partir da tríade ensino, pes-
quisa e extensão que contribui significativamente para a formação e
prática pedagógica dos/as professores/as de Ciências e Biologia.
Os vestígios do desencontro que existe entre a Resolução 2/2015
e a BNC- Formação Inicial em comparação ao que é cobrado do/a pro-
fissional da educação básica nas escolas estão cada vez mais evidentes.
Tomamos como exemplo a proposta contida nos Temas Contempo-
râneos Transversais na Base Nacional Comum Curricular da Educa-
ção Básica (BRASIL, 2019b) e que fere o ensino de Ciências e Biologia
antirracista no Brasil justamente por não encontrarmos fundamentos,
com este objetivo, para a formação docente nas novas diretrizes e base
nacional comum. Com isso podemos voltar a questionar: Em que me-
dida os/as professores/as poderão atentar as diferentes formas de dis-
41
criminação étnico-racial que por vezes estão presentes na escola e nos
meios digitais se a sua formação não colabora? Olhando para o ensino
de Ciências e Biologia ainda questionamos: Até que ponto o/a docente
de Ciências e Biologia será formado/a para desenvolver um trabalho
voltado a Educação para as Relações Étnico-Raciais?
Entre os Temas Transversais propostos para o trabalho na edu-
cação básica e que refletem uma possível proposta de Educação para
as Relações Étnico-Raciais, estão os presentes em algumas macro
áreas temáticas, como é chamado no documento, sendo elas: Ciên-
cia e Tecnologia, Meio Ambiente, Saúde, Cidadania e Civismo, e
Multiculturalismo.
Ao propor a discussão na macro área Ciência e Tecnologia seria
possível considerar trabalhados que versam sobre a contribuição de
pessoas negras no desenvolvimento da Ciência e Tecnologia no país
como apresenta a professora e doutora em Ensino, Filosofia e História
das Ciências Bárbara Carine Soares Pinheiro em seu texto Educação em
Ciências na Escola Democrática e as Relações Étnico-Raciais (PINHEI-
RO, 2019), como também, em seus livros @Descolonizando_Saberes:
Mulheres Negras na Ciência (PINHEIRO, 2020) e História Preta das coi-
sas: 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras (PINHEIRO,
2021). Encontramos outras possibilidades na obra Tecnologia Africana
na formação brasileira de autoria do professor e doutor em Engenharia
Elétrica Henrique Cunha Junior (CUNHA JUNIOR, 2010).
Em relação à macro área Meio Ambiente é possíveldiscutir o
racismo ambiental no ensino de Ciências assim como proposto na
pesquisa de mestrado de Ingriddy Nathaly Santos Moreira (MOREIRA,
2020) e estudar acerca da produção de biocombustíveis e sobre a po-
luição atmosférica a partir do diálogo com a história e cultura africana
e afro-brasileira em aulas de química ambiental conforme o texto Afri-
42
canidades em ensino de Química: uma experiência no contexto da pro-
dução de biocombustíveis e aquecimento global de autoria do Antônio
Alvino e da Anna Canavarro Benite (ALVINO; BENITE, 2017).
Na macro área Saúde encontramos oportunidades para discu-
tir a saúde da população negra no Brasil como disposto em pesquisas
realizadas pela doutora em antropologia Ana Cláudia Rodrigues da
Silva acerca do lugar da categoria raça na abordagem da anemia/doen-
ça falciforme no Brasil (SILVA, 2014), e José Antonio Novaes da Silva
(Antonio Baruty), doutor em Bioquímica, com estudos relacionados à
prática da sangria entre os/as Remetu-Kemi e povos da região Congo/
Angola (SILVA, 2017), e o Ensino de Biologia através da discussão so-
bre aspectos da saúde e da mumificação à luz da Lei 10.639/2003 no
Brasil (SILVA, 2020).
Práticas pedagógicas voltadas a Educação em Direitos Humanos
e na vida familiar e social podem atender a macro área Cidadania e
Civismo, tendo como referências, a título de sugestão, o texto Ensi-
no de Ciências e Biologia e a necessidade de uma ética cordial: ensino
de evolução, crenças religiosas e estratégias empáticas dos autores Luís
Fernando Dorvillé e Pedro Pinheiro Teixeira que traz a discussão sobre
diversidade cultural, estratégias empáticas, pedagogias do desconfor-
to e a ética cordial para o ensino de Ciências através de uma sequência
didática, (DORVILLÉ; TEIXEIRA, 2019); e a proposta apresentada por
Bianca de Souza Figueiredo, Marta Regina dos Santos Nunes e a Bár-
bara Carine Soares Pinheiro no texto O crime de nascer negro no Brasil:
uma proposta antirracista no ensino de Química Forense que “apresenta
uma proposta de didatização para o ensino de química forense na es-
cola básica, partindo de uma perspectiva epistemológica decolonial,
objetivando pautar o processo social da criminalização da negritude
neste país” (FIGUEIREDO; NUNES; PINHEIRO, 2019, p. 173).
43
O Multiculturalismo é mais uma macro área e propõe o traba-
lho com a Diversidade Cultural, Educação para a valorização do mul-
ticulturalismo nas matrizes históricas e culturais brasileiras (BRASIL,
2019b). Encontramos contribuições no texto elaborado por Silná Ma-
ria Batinga Cardoso e Isabela Santos Correia Rosa no texto A cor da
sua pele faz alguma diferença? Uma proposta de ensino interdisciplinar
antirracista a partir do estudo da melanina, trazendo uma proposta para
desconstruir o conceito biológico de raça e construir criticamente seu
conceito social por meio do ensino de Ciências e discussão com outras
disciplinas escolares (CARDOSO; ROSA, 2018); o professor e doutor
em Educação Douglas Verrangia contribui para a discussão acerca da
valorização da matriz africana no ensino de Ciências por meio de um
conjunto de sugestões que consideram conhecimentos tradicionais
afro-brasileiros e africanos para a formação docente e aulas de Ciên-
cias como forma de efetivação da Lei 10.639/2003 para a promoção da
Educação para as Relações Étnico-Raciais nas instituições de ensino
(VERRANGIA, 2010).
De acordo com o documento, as propostas podem ser trabalha-
das em um ou em mais componentes curriculares por meio da aborda-
gem intradisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar, mas sempre
de forma transversal às áreas de conhecimento (BRASIL, 2019b). Que-
remos destacar que a partir do momento que os cursos de formação
inicial de professores/as orientados por uma proposta de currículo
descolonizado- diferente do disposto na Resolução 2/2019- discutem
questões relativas à temática étnico-racial ao ponto de formar docen-
tes capazes e dispostos/as à luta antirracista através de suas aulas, as
propostas apresentadas acima ficam mais próximas de serem coloca-
das em prática nas aulas de Ciências e Biologia.
44
Para Nilma Lino Gomes, só é possível descolonizar os currículos
e o conhecimento se descolonizarmos nosso olhar para o outro, para
as experiências do outro e sobre como o outro produz conhecimen-
to. Portanto, a compreensão da existência de uma perspectiva negra
decolonial no Brasil depende do reconhecimento de pessoas negras e
seus movimentos por emancipação (GOMES, 2019).
Stephen Ball e colaboradores afirmam que os documentos tra-
zem certas contradições, omissões e ambiguidades, inclusive os docu-
mentos de políticas, por envolver determinações dos contextos macro
e micro tomados enquanto processos inter-relacionados e condiciona-
dos sócio historicamente (BALL; BOWE; GOLD, 1992). Esse conjunto
de contradições, ambiguidades e omissões de efetivação de algumas
abordagens garantidas em lei estão evidentes nas diretrizes e na base
nacional comum, e impactará a formação docente e posteriormente a
sala de aula da educação básica frente aos estudos e práticas pedagógi-
cas que versam a Educação para as Relações Étnico-Raciais no ensino
de Ciências e Biologia.
É certo que existe uma disputa curricular na formação docente
(DOURADO, 2015), e que pode ser constatada em situações vivencia-
das pela educação brasileira e pela sociedade no geral, tanto por meio
das decisões do Executivo, Legislativo e Judiciário, como pela dinâmi-
ca das instituições de ensino, religiosas e familiares (GOMES, 2019).
Nilma Lino Gomes exemplifica essa disputa curricular a partir da resis-
tência colonial a um currículo decolonial por parte de grupos que bus-
cam alterar a Lei de Diretrizes e Bases para incluir o Programa Escola
sem Partido, programa retrógado direcionado a educação brasileira e
ao currículo que luta para impedir a liberdade de pensamento e a au-
tonomia curricular e didático-pedagógica presentes nas instituições
educacionais e em seus/suas professores/as (GOMES, 2019).
45
Dorvillé e Teixeira (2019) nos leva a refletir sobre o efeito mul-
tiplicador da formação de professores/as quando argumentam sobre a
consideração de docentes de Ciências e Biologia relacionada à prática
pedagógica ao acreditarem que sua função na escola termina após a
apresentação dos conteúdos específicos da área em sala de aula, mui-
tas vezes resultado de sua formação inicial que por momentos não
consideram temáticas como a diversidade étnico-racial. Quando os
documentos normativos do currículo da formação docente não cum-
prem com seu papel diante do educar para as relações étnico-raciais,
através de uma educação antirracista, poderemos ter “futuros profes-
sores de Ciências e Biologia que não sejam capazes de reconhecer a
relevância de ensinar esses conhecimentos aos seus alunos de uma
maneira que potencializem em algum grau sua incorporação ao seu
repertório de interpretações do mundo” (DORVILLÉ; TEIXEIRA, 2019,
p. 13). A discussão tecida pelos autores para apresentar esta reflexão
faz referência ao conteúdo Evolução no ensino de Ciências e Biologia
em confronto com crenças religiosas, entretanto, este argumento tam-
bém coaduna com nossa defesa referente à Educação para as Relações
Étnico-Raciais já que são assuntos ausentes nas Diretrizes Curricula-
res Nacionais e na Base Nacional Comum para a Formação Inicial de
Professores/as para a Educação Básica.
Levando em conta que o currículo da formação de professores/
as atende a orientações das diretrizes curriculares nacionais e, recen-
temente, da base nacional comum para a formação inicial docente, de
que forma os currículos das licenciaturas irão considerar tal necessi-
dade uma vez que os referidos documentos não atendem explicita-
mente a uma abordagem efetiva de Educação para as Relações Étni-
co-Raciais? Esta e as demais são questões que deixamos para reflexão,
por compreendermos que a ausência dessa abordagem nos documen-
46
tos curriculares impactarão na estruturação dos cursos de formação
inicial de professores/as no Brasil, incluindo os da áreade Ciências e
Biologia, fato que poderia ser revertido caso a Resolução 2/2015 vol-
tasse a sua vigência.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa nos revela que as novas Diretrizes Curriculares e a
Base Nacional Comum para a formação inicial de professores/as no
Brasil, publicizada pela Resolução 2/2019, não trazem indícios con-
cretos de um processo educativo efetivo voltado a Educação para as
Relações Étnico-Raciais assim como trazia a Resolução 2/2015 que
foi apressadamente revogada pelas novas diretrizes e base nacional
comum.
A ausência desses indícios tende a resultar em implicações para
o ensino de Ciências e Biologia antirracista visto que anteriormente
encontrávamos respaldo nas diretrizes de formação docente como
mais uma alternativa de inserir o estudo das relações étnico-raciais
nos cursos de licenciatura da área. Sabemos que pesquisas vêm apon-
tando como primordial incluir na formação inicial dos professores/as
de Ciências e Biologia o estudo das relações étnico-raciais, como en-
contramos na tese de doutorado de Verrangia (2009) enquanto pesqui-
sa pioneira no Brasil.
É certo que os cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas po-
dem considerar discussões que contribuam para a Educação das Re-
lações Étnico-Raciais sem depender, exclusivamente, das diretrizes e
base nacional comum para formação docente. Entretanto, é inviável
não trazer à tona a ausência de uma abordagem efetiva no referido do-
cumento em razão de que se trata da estrutura normativa que orienta
47
os cursos de formação docente no país, o que não poderia ficar de fora
a discussão em torno da Educação para as Relações Étnico-Raciais.
É cada vez mais urgente que o ensino de Ciências e Biologia as-
suma seu compromisso educacional e social em educar para as rela-
ções étnico-raciais, contribuindo para a luta antirracista no Brasil. A
formação de professores/as precisa se consolidar enquanto base es-
truturante para a efetivação de práticas comprometidas com a causa
étnico-racial.
Esperamos que este estudo colabore para as pesquisas na área
da formação docente e relações étnico-raciais no ensino de Ciências e
Biologia, principalmente para as políticas educacionais direcionadas
a formação de professores/as no atendimento de temáticas que por
vezes são excluídas, colocadas à margem e/ou ocultadas dos currículos
de formação inicial e que acaba por impactar a prática pedagógica nas
escolas.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
rior (CAPES) pela bolsa de doutorado concedida para o primeiro autor
deste capítulo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Edi-
tora Jandaíra, 2020.
48
ARAÚJO, Monica Lopes Folena. A Educação Ambiental Crítico-Hu-
manizadora na Formação de Professores de Biologia. Recife: Edi-
tora UFPE, 2015.
49
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de
julho de 2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a for-
mação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de for-
mação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e
para a formação continuada. Brasília, DF, 2015.
50
ção, crenças religiosas e estratégias empáticas. In: TEIXEIRA, Pedro
Pinheiro; OLIVEIRA, Roberto Dalmo Varallo Lima; QUEIROZ, Glória
Regina Pessoa Campello. (Orgs.). Conteúdos Cordiais: Biologia Hu-
manizada para uma Escola sem Mordaça. – 1. ed.- São Paulo: Editora
Livraria da Física, 2019.- (Coleção culturas, direitos humanos e diver-
sidade na educação em ciências). p. 1-16.
51
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: Saberes cons-
truídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
52
Educação em pauta: uma agenda para o País. Organização de Estados
Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura. 2018.
53
Editora Livraria da Física, 2021. - (Culturas, direitos humanos e diver-
sidades na educação em ciências).
54
cias. 2018, 184 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação) Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte, Nazaré da
mata, 2018.
55
SOUZA, Ellen Pereira Lopes. Estudos sobre a Formação de Professo-
res de Ciências no contexto da Lei 10.639/03. 2014, 142 f. Disserta-
ção (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática)- Universidade
Federal de Goiás, Goiânia-GO, 2014.
56
C A P Í T ULO 2
1. INTRODUÇÃO
O surgimento da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatória a
temática da Diversidade Étnico-Racial em âmbito escolar, estabele-
ce práticas pedagógicas diversificadas para subverterem estereótipos
sobre a História da África e sua diáspora em todos os níveis escola-
res (COELHO; COELHO, 2014), mesmo sendo considerado um “campo
melindroso” (COELHO; COELHO, 2008, p. 105).
Apesar de a temática da Diversidade exigir preparo pedagógi-
copara o enfrentamentodo racismo e dadiscriminação na Escola Bá-
sica (COELHO; COELHO, 2008), bem comoda ausência – ainda –da
temática na formação inicial de professores (COELHO, 2005), estudos
relacionados a este campo denotam crescentes pesquisas sobre as
Relações Raciais no Brasil (SILVA; REGIS; MIRANDA, 2018). No que
tange ao Ensino de Ciências, a inserção da temática da Diversidade
Étnico-Racial pode introduzir na Educação Básica, conhecimentos tra-
dicionais da matriz africana e afro-brasileira, na perspectiva de pro-
piciar conhecimento não eurocentrado para a formação de crianças
57
e adolescentes (VERRANGIA, 2014). Então, estamos longe de esgotar
o debate sobre a temática da Educação das Relações Étnico-Raciais
(ERER1). Pelo contrário, o momento é promissor para o fortalecimento
dessas discussões.
A partir desta premissa, utilizamo-nos das orientações de Mar-
li André (2009), no tocante aoestado da arte, especialmente no sen-
tido deviabilizarmobilizações e visibilidadesde determinado campo
acadêmico. Desse modo, a realização do levantamentoteve como foco
produções científicas no âmbito dos Programas de Pós-Graduação do
Brasil sobre Diversidade Étnico-Racial e Ensino de Ciências, dispondo,
como objetivo geral, refletir sobre as produções acadêmicas defendidas
nos programas de Pós-Graduação no Brasilno período de 2015 a 2020,
sobre a temática da Diversidade Étnico-Racial e o Ensino de Ciências.
Um levantamento que visa conhecer os estudos anteriores do campo,
como forma de consubstanciar os diálogos necessários e ampliações
dos debates em relação à literatura especializada.
Nesse direcionamento, as compilações das produções científicas
abarcaram dados existentesno site do catálogo de teses e dissertações
daCoordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CA-
PES)2 por meio dos descritores “Diversidade” e “Ensino de Ciências” e
“Diversidade Étnico-Racial” e “Ensino de Ciências”. Foram levantados
391 (trezentos e noventa e um) trabalhoscom recorte temporal nos úl-
timos 6 anos (2015 a 2020), dentre os quais, 19 (dezenove) produções,
sendo 17 (dezessete) dissertações e 2 (duas) tesesremetiam ao objeto
deste estudo. Os documentos legais, desde à Resolução nº 2, de 2015
(CNE/CP 02/2015) e a sua revogação em 2019 (CNE/CP 022/2019), so-
1 Erer, daqui por diante, todas as vezes que aludirmos à Educação para as Relações Étnico-Raciais.
2 Endereço disponível em: https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/. Levantamento
realizado no dia 20 de janeiro de 2021.
58
bre a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da
Educação Básica e os desdobramentos controversos que a acompanha
em relação à temática da Diversidade Cultural, foram considerados
nesta reflexão, assim como o uso da Plataforma Lattes para a busca de
todos os dados relativos aos/as autores/as.
Por meio dessa produção, abordamososprincipais resultados das
pesquisas compiladas, assim como a vinculação das produções pelo
Programa de Pós-Graduação, universidade brasileira e os vínculos/
ou não-institucional/is dos/as autores/as. Metodologicamente, nos
balizamos no trabalho de Wilma de Nazaré Baía Coelho e Waldemar
Borges de Oliveira Júnior (2020), em que discutem as produções cien-
tíficas em teses, dissertações e artigos sobre educação para as Relações
Étnico-Raciais e Escola Básica no período de 2014 a 2018, esta reflexão
é, portanto, uma ampliação deste trabalho anterior.
Para o tratamento e sistematização dos dados, nos pautamos nas
caracterizaçõesdo método de análise de conteúdo de Laurence Bardin
(2016), o qual consiste na organização dos conjuntos das comunica-
ções. Dentre as etapas da análise de conteúdo, se ponderam as ela-
borações de categorias, as quais, para a autora, são classificações e/
ou agrupados de critérios e argumentos comuns, ou até mesmo, que
apresentem analogias em seu conteúdo e sendo consubstanciado por
referencial teórico. No que concerne aeste texto, elencamos quatro
categorias que nortearam os diálogos por meio da literatura especia-
lizada, a saber: categoria 1: Diversidade e Livro Didático, categoria 2:
Relações Étnico-Raciais e Currículo, categoria 3: Diversidade e Formação
Docente e Categoria 4: Diversidade na Escola Básica em Ciências.
59
2. DESENVOLVIMENTO
Além das categorias catalogadas em tela, para a reflexão e aná-
lise da empiria, recorremos aos estudos da literatura especializada so-
bre Diversidade Étnico-Racial, como Nilma Lino Gomes (2008), Wilma
de Nazaré Baía Coelho (2005) e Wilma de Nazaré Baía Coelho e Nicel-
ma Josenila Costa de Brito (2020) e sobre ERER no Ensino de Ciências
em Douglas Verrangia (2009, 2016), Douglas Verrangia e Petronilha
Beatriz Gonçalves (2010) e Bárbara Carine Soares Pinheiro e Katemari
Rosa (2018) e dentre outros/as pesquisadores/as, para robustecer a in-
terlocução em relação à temática aqui dimensionada.
3 Todos os levantamentos sobre os vínculos dos autores das teses e dissertações foram realizados
na Plataforma Lattes do CNPq no dia 25 a 27 de janeiro de 2021.
60
Concernente aos vínculos das produções pelo Instituto de Edu-
cação Superior (IES)4, Agnes Gardênia Bispo (2018) apresentou sua
pesquisa pela Universidade Federal de Sergipe (UFSE), Francisco Xa-
vier da Silva (2016) pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mario
Olavo da Silva Lopes (2016) na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFGRS). Como forma de obtenção de dados, foram utilizadas
fontes e metodologia de pesquisa, como: análise do livro didático do
6º ano de Ciências e análise do manual do professor de Ciências (BIS-
PO, 2018), análise de coleções didáticas de Ciências Naturais do ano de
2014 (SILVA, 2016) e análise das imagens de negros dos livros didáticos
de Ciências (LOPES, 2016).
As produções relacionam autores/as da literatura especializada
sobre ERER e Ensino de Ciências para consubstanciaros dados e aná-
lises do seu objeto de pesquisa. Bispo (2018) destaca Décio Auler, An-
tonio Marcos Teixeira Dalmolin, Demétrio Delizoicov, Antônio Sergio
Alfredo Guimarães, Kabengele Munangae Ana Célia Silva. Francisco
Xavier da Silva (2016) utiliza Jorge Megid Neto, Hilário Fracalanza,
Patrícia Gomes Pinheiro, Osmar Cavassan, Pedro Henrique Ramos de
Souza, Beatriz de Basto Teixeira e Kabengele Munanga e Mario Olavo
da Silva Lopes (2016) citam autores/as, como: Attico Chassot, Paulo
Vinicius Baptista da Silva, Rozana Teixeira, Tânia Mara Pacífico, Dou-
glas Verrangia e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva.
Dentre alguns resultados da pesquisa compilada, ressaltamos
que: as imagens de crianças negras dos livros didáticos de Ciências
expressarama forma inadequada de demonstração da diversidade bra-
sileira, pois, nãohá uma quantidade significativa de imagens negras
61
de crianças, sendo necessário, assim, a inserção das diversas culturas
que formam o povo brasileiro e, de forma mais específica, no ensino
de Ciências (BISPO, 2018); os livros didáticos de Ciências são des-
contextualizados, por não contemplarem a realidade, pela ausência
de atividades práticas e pela insistência histórica no estrangeirismo,
principalmente nas imagens que contemplam o livro (SILVA, 2016);
nos livros didáticos de Ciências, ainda persiste uma ausência do povo
negro, sendo muitas vezes comparado às imagens dos brancos, colo-
cando-o em uma situação de inferioridade, quando comparado às do-
branco (LOPES, 2016).
As informações acima vão aodirecionamento do que Ana Celia
Silva (2011) identificou por meio da análise da representação social do
negro em livros didáticos, em que a população negra não era represen-
tada para se tornar familiar, e sim para prevalecer o afastamento e/ou
exclusão, transformando e significando os estigmas e as percepções
da população negra, além de reforçar as estereotipias e preconceitos.
No caso específico em Ciências, os resultados alcançam os mesmos
significados, que a compleição de imagens de pessoas negras é pouco
recorrente nos livros didáticos sendo verificadas ausências de textos
que não sublimem a figura do negro e nem mesmo que direcionem os
estudantes a dialogarem sobre temática da ERER na ambiência escolar
e no espaço social (SANTOS; PEREIRA; SILVEIRA, 2017), ou seja, os li-
vros didáticos de Ciências no Ensino Fundamental não proporcionam
discussão que relacione a Diversidade Étnico-Racial no período aqui
dimensionado.
62
2.2 Categoria 2: Relações Étnico-Raciais e Currículo
63
Munanga, Douglas Verrangia, Peter McLaren, Lilia Moritz Schwarcz e
Wilma de Nazaré Baía Coelho (FADIGAS, 2015).
Os resultados das dissertações mostram que muitos currículos
são eurocêntricos e privilegiama branquitude e uma pedagogia con-
servadora, se tornando instrumentos de exclusão e que contribuem
para a evasão escolar, sendo, dessa maneira, uma recomendaçãono in-
terior das salas de aulas, relação entre a construção do conhecimento
científico e a diversidade, favorecendo o desenvolvimento dos estu-
dantes (ALVINO, 2017); a utilização da sequência didática corroborou
no pensamento da diversidade e nos estudos sobre o racismo científico
e processos de alterização em Ciências (FADIGAS, 2015).
64
JÚNIOR, 2018) e Programa de Pós-Graduação em Ensino (SANTOS,
2017). As pesquisas se centralizaram na Região Nordeste, pela Uni-
versidade Federal de Sergipe - UFS (BRITO, 2017); Universidade Esta-
dual de Santa Cruz - UESC (JESUS, 2017); Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte - UERN (SANTOS, 2017); Universidade Federal da
Bahia - UFBA (CARDOSO, 2019; MARTINS, 2019); na Região Sudeste,
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (FERREIRA, 2016)
e na Região Norte, pela Universidade Federal do Pará (OLIVEIRA JÚ-
NIOR, 2018).
Por meio dos dados acima, identificou-se preeminência na Re-
gião Nordeste, o que para Marcela da Silva da Conceição (2018), apesar
da Lei n. 10.639/2003 ainda estar em franco processo, essaprimazia na
Região, no que refere à temática da Diversidade, ocorre em virtude de
investimentos intensos de pesquisadores/as do campo, além de cres-
centes diálogos e debates nas escolas sobre a legislação e desenvol-
vimento de processos formativos e atividades que dizem respeito aos
aspectos estruturantes da ERER na Educação Básica.
Aludindo à literatura especializada, os/as autores/as das produ-
ções mencionam pesquisadores/as, como: Daniel Gil-Pérez, Ana Maria
Pessoa de Carvalho, Attico Chassot,Vera Maria Ferrão Candau, Attico
Chassot,Douglas Verrangia, Nilma Lino Gomes e Petronilha Beatriz
Gonçalves (BRITO, 2017); Henrique Cunha Junior, Nilma Lino Gomes,
Petronilha Beatriz Gonçalves, Vera Maria Ferrão Candau, Kabenge-
le Munanga e Antônio Sergio Alfredo Guimarães (FERREIRA, 2016);
Douglas Verrangia, Kabengele Munanga, Nilma Lino Gomes, Lilia Mo-
ritz Schwarcz e Wilma de Nazaré Baía Coelho (JESUS, 2017); Daniel
Gil-Pérez, Ana Maria Pessoa de Carvalho, Myriam Krasilchik, Vera Ma-
ria Ferrão Candau, Ana Canen e Nilma Lino Gomes (MARTINS, 2019);
Antonio Flavio Barbosa Moreira, Ana Canen, Eliane dos Santos Caval-
65
leiro, Mauro Cezar Coelho, Wilma de Nazaré Baía Coelho, Florestan
Fernandes e Nilma Lino Gomes (SANTOS, 2017); Anna Maria Canavar-
ro Benite, Vera Maria Ferrão Candau, Henrique Cunha Junior, Petrônio
Domingues, Nilma Lino Gomes, Kabengele Munanga e Bárbara Carine
Soares Pinheiro (CARDOSO, 2019); Attico Chassot, Demétrio Delizoi-
cov, Myriam Krasilchik, Vera Maria Ferrão Candau, Ana Canen, Nil-
ma Lino Gomes, Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho
(OLIVEIRA JUNIOR, 2018); Vera Maria Ferrão Candau, Antonio Flavio
Barbosa Moreira, Eliane dos Santos Cavalleiro, Henrique Cunha Junior,
Carlos Hasenbalg e Nilma Lino Gomes (SOUZA, 2014).
Os resultados das produções enfatizam que as análises dos Pro-
jetos Políticos Pedagógicos (PPP) dos cursos de Licenciatura de Ciên-
cias/Química não contemplam a ERER (BRITO, 2017); os valores civi-
lizatórios afro-brasileiros, tais como oralidade, ancestralidade, ludici-
dade e circularidade são fortemente incorporados à prática dos profes-
sores de Ciências, sendo alguns conteúdos mais diretamente articula-
dos com a temática racial (FERREIRA, 2016); aausência de discussões
sobre Diversidade no curso de Licenciatura em Ciências não é benéfica
e a maioria dos alunos desconhece a Lei nº 10.639 e os que afirmam
conhecê-la, não demonstram ter muito domínio sobre a temática,
apesar de reconhecerem a necessidade dessas discussões na forma-
ção inicial de professores de Ciências (JESUS, 2017); são necessários
maiores esforços para a formação do professor de Ciências e Biologia
que seja sensível à diversidade cultural (MARTINS, 2019); os docentes
de Ciências têm consciência do racismo, discriminação e preconceito
na escola, mas embora afirmem trabalhar os conteúdos relativos à te-
mática Étnico-Racial, estes não os inserem em seus planos de aula de
curso (SANTOS, 2017).
66
Dando prosseguimento aos resultados, os docentes devem ser
capazes de olhar para situação a respeito da diversidade, para além
das suas experiências, sendo urgente a necessidade de se investir na
formação continuada decolonial para que os capacitem não só a com-
preender criticamente a importância das questões relacionadas à te-
mática Étnico-Racial, mas a lidar positivamente com elas (CARDOSO,
2019); não existem direcionamentos sobre a temática das Relações Ét-
nico-Raciais no Projeto Político Pedagógico e no Plano de Ensino de
Ciências em uma instituição pública paraense. Além do mais, ospro-
fessores de Ciências desconheciam a legislação vigente, mencionan-
do que não lhe foram proporcionadas bases formativas durante suas
formações iniciais e continuadas (OLIVEIRA JÚNIOR, 2018); uma das
alternativas para a efetivação da diversidade no currículo de Ciênciasé
por meio do diálogo com os pares, articulação com os Núcleos de Es-
tudos Afro-brasileiros e no oferecimento de formações a respeito da
implementação da Lei nº 10.639/2003.
Por meio das interlocuções dessa categoria, é imperativo mu-
danças na formação de professores/as de Ciências no direcionamento
à temática da Diversidade Étnico-Racial, pois a área tem papel primor-
dial nas relações sociais dos/as estudantes da Educação Básica, como
articula Douglas Verrangia (2009). Em consonância com essa lacuna na
formação de professores/as, cada vez mais se torna complexo que estes
profissionais lidem de forma pedagógica e efetiva com a diversidade
no cotidiano da escola (VERRANGIA, 2016), já que as caracterizações
conceituais de suas formações se concentram em preceitos europeus
e fora da realidade dos agentes que compõem as escolas brasileiras.
67
2.4 Categoria 4: Diversidade na Escola Básica em Ciências
68
Carlos Alberto Ávila Araújo, Gleisa Costa Baptista, Stuart Hall, Nilma
Lino Gomes e Kabengele Munanga (NASCIMENTO, 2017); Michael
Apple, Lilia Moritz Schwarcz, Nilma Lino Gomes e Antônio Sergio Al-
fredo (DASMACENO, 2020); Stuart Hall, Ana Canen, Nilma Lino, Peter
McLaren, Petronilha Beatriz Gonçalves e Douglas Verrangia (RODRI-
GUES, 2015) e Eliane Cavalleiro, Nilma Lino, Wilma de Nazaré Baía
Coelho, Luís Alberto Gonçalves e Kabengele Munanga (BONIFÁCIO,
2015). Sobre o/s vínculo/s dos autores/as, Thiago Leandro da Silva
Dias, Tupiracy Celso Gomes Damasceno e Solange Bonifácio são pro-
fessores da Educação Básica; Gustavo de Alencar Figueiredo e Marta
de Souza Rodrigues são estudantes de doutorado e Núbia Costa Nas-
cimento é professora associada de um Instituto Federal de Educação
Tecnológica e Profissional.
Dentre alguns resultados das produções codificadas, identificou-
-se o elevado nível de concordância dos/as especialistas e dos sujeitos
sobre a potencialidade da exposição em promover educação das re-
lações étnico-raciais, sendo essencial nos diálogos tecidos sobre reli-
gião, Ciências e crença (DIAS, 2017); ainda há um desconhecimento de
Lei nº 10639/2003 dos agentes escolares, assim como os documentos
que normalizam a temática no aspecto escolar (FIGUEIREDO, 2017);os
sujeitos da pesquisa que eram adeptos do catolicismo, espíritas/espiri-
tualistas e de religiões afro-brasileiras apresentaram aceitação ao es-
tudo do conhecimento científico sobre ERER, enquanto os protestan-
tes obtiveram o menor índice de aceitação (NASCIMENTO, 2017); as
histórias em quadrinho no Ensino de Ciências se mostrou um viés na
mudança de percepções sobre o racismo, discriminação e preconceito
(DASMACENO, 2020); verificou-se o desenvolvimento de forma parca
da abordagem da diversidade em aspectos estruturantes no proces-
so escolar em Ciências (RODRIGUES, 2015); É imperativo ampliar a
69
abordagem da educação das Relações Étnico-Raciais e suas conexões
com o ensino e aprendizagem da linguagem escrita e toda as áreas de
conhecimento, inclusive em Ciências (BONIFÁCIO, 2015).
De acordo com os dados dialogados acima, ressaltamos por meio
do “estado da arte” sobre Diversidade Étnico-Racial que as pesquisa-
doras saem na dianteira em relação aos autores, sendo um total de
11 (onze) produções acadêmicas na Pós-Graduação brasileira (2015
a 2020) em relação aos 8 (oito) dos pesquisadores. Ademais, as qua-
tro categorias antepostas nesse texto indicam uma proeminência das
dissertações e teses defendidas nos Programas de Pós-Graduação lo-
calizada na Região Nordeste, mas também percebemos produções na
Região Sudeste, Centro-Oeste, Sul e Norte do país. Outra dimensão
que cabe destaque é que, em sua maioria, as produções compiladas são
desenvolvidas nos anos finais do Ensino Fundamental.
Portanto, pelo levantamento das produções desta categoria, en-
tende-se que os estudos sobre Diversidade Étnico-Racialna área de
Ciências precisam se ampliar de forma circunstanciada no âmbito da
Escola Básica, sendo urgente ampliação que estabeleça conceitos, con-
teúdos e atividades em relação àqueles que tendem aestabelecerinter-
locuções com a Educação Básica com vistas a uma Educação Antirra-
cistanos processos da formação inicial de professores. Tal dimensão
ainda se encontra pouco instituída nas dimensões que norteiam o En-
sino de Ciências na Educação Básica.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Douglas Verrangia, em 2009, já pontuava sobre a relevância de
estudos consubstanciados acerca da Diversidade Étnico-Racial na área
do Ensino de Ciências. Este texto dialoga com aquela premissa e tende
a ampliar a discussão no sentido de visibilizar o discurso acadêmico
70
produzido em torno do tema e promover possibilidades e objetos de
estudo ainda pouco sondados em relação à Diversidade e ao Ensino de
Ciências no Brasil.
Nosso estudo demonstra que as mulheres assumiram a dianteira
na produção acadêmicas nesse período em especial. Apesar de a con-
centração dos estudos ser catalogada na Região Nordeste, ou seja, fora
da Região Norte, pesquisadores como Wilma de Nazaré Baía Coelho,
e Mauro Cezar Coelho publicizam estudos sobre Diversidade Étnico-
-Racial na Região Norte,consubstanciando discussões no campo e que
envolvem a História da Cultura Afro-brasileira e Africana.
Os Programas de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Ma-
temáticas e Ensino, Filosofia e História das Ciências estão à frente em
número de trabalhos que acolheram parte majoritária desses estudos
examinados, em comparação com os programas de Pós-Graduação em
Química, Ensino, Educação e em Docência em Educação em Ciências
e Matemáticas.
Percebemos, ainda, que os autores/as das produções científicas
se consubstanciaram em pesquisadores/as da área da ERER e Ensino
de Ciências como forma de aprofundamento dos conhecimentos cam-
po, dentre eles/as citamos: Eliane Cavalleiro, Nilma Lino, Wilma de
Nazaré Baía Coelho, Luís Alberto Gonçalves e Kabengele Munanga,
Abdias de Nascimento, Antônio Sergio Alfredo Guimarães, Petroni-
lha Beatriz Gonçalves e Silva, Mauro Cezar Coelho, Vera Maria Ferrão
Candau, Ana Canen, Douglas Verrangia, Peter McLaren e Jean-Claude
Forquin, Martha Maradino, Attico Chassot, Anna Maria Pessoa de Car-
valho, Daniel Gil-Pérez, Myriam Krasilchik, Jorge Megid Neto, Hilário
Fracalanza, dentre outros/as.
Por fim, concordamos com Wilma de Nazaré Baía Coelho e Mau-
ro Cezar Coelho (2013),no sentido de que urge o atendimento à legis-
71
lação educacional vigente, sobretudo aquela demandada pelos movi-
mentos negros e indígenas em busca de uma Educação Antirracista,
cidadã e inclusiva.
REFERÊNCIAS
ALVINO, Antônio César Batista. Estudos sobre a educação para as
relações étnico-raciais e a descolonização do currículo de quí-
mica. 2017. 104f. Dissertação (Mestrado em Química) - Programa de
Pós-Graduação em Química, Universidade Federal de Goiás, Goiânia,
2017.
72
BRITO, Maria Camila de Lima. A educação das relações étnico-ra-
ciais: olhares na formação docente em Ensino de Ciências/Química.
2017. 113f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemáti-
ca) - Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática,
Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2017.
73
COELHO, Wilma de Nazaré Baía; COELHO, Mauro Cezar. Raça, cor e
diferença: a escola e a diversidade. Belo Horizonte: Mazza, 2008.
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FADIGAS, Mateus Dumont. Racismo científico como plataforma
para compreensão crítica das relações CTS: o estudo de desenvol-
vimento de uma sequência didática. 2015. 187f. Dissertação (Mestrado
em Ensino, Filosofia e História das Ciências) - Programa de Pós-Gra-
duação em Ensino, Filosofia e História das Ciências, Universidade Es-
tadual de Feira de Santana, Salvador, 2015.
75
em Ciências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2016.
76
SANTOS, Josiane Duarte; PEREIRA, Elizangela Dias; SILVEIRA, Daniel
da Silva. Análise do livro didático de ciências acerca das relações
étnico-raciais. 2007. 11f. Trabalho de Conclusão de Curso (Trabalho
de Conclusão de Curso em Licenciatura em Ciências) - Licenciatura em
Ciências, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2007.
77
duação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos,
2009.
78
C A P Í T ULO 3
O MICROSCÓPIO/MICROSCOPISTAS
NEGROS, A CÉLULA E A SAÚDE DA
POPULAÇÃO NEGRA: APONTAMENTOS
PARA UM PROCESSO DE ENSINO/
APRENDIZAGEM DE CITOLOGIA
DECOLONIAL
Jos é A nto n io Nova e s d a Silva ( Bar uty)
1. INTRODUÇÃO
No ano de 1973, o Grupo de Trabalho André Rebouças, da Uni-
versidade Federal Fluminense, já propunha que “créditos específicos
sobre as relações raciais no Brasil, principalmente nos cursos que
abranjam a área das Ciências Humanas” (RATTS, 2006, p. 37) fossem
ofertados. Esta propositura demonstra o quão antigo é o debate em
torno da inserção de temas específicos voltados à preparação de es-
tudantes universitários no tocante a conteúdos ligados à população
negra.
A Educação para as Relações Étnico-Raciais no Brasil (ERER)
também foi tema de diferentes Constituições Estaduais e de Leis Orgâ-
nicas municipais, porém estes ordenamentos legais deixavam escapar
de seu alcance os estabelecimentos particulares de ensino. Nascimen-
79
to (1980, p. 141) propôs a criação da Semana da Memória Afro-brasi-
leira, ao longo da qual “focalizados e iluminados os sucessos passados
nos quais foram protagonistas aqueles 300 milhões de africanos reti-
rados sob violência de suas terras e trazidos acorrentados para o con-
tinente americano”. O Movimento Social Negro,bem como integrantes
da intelectualidade negra, também vêm se articulando politicamente
no sentido de buscar espaços que propiciem a discussão, assim como a
apresentação de assuntos que privilegiassem este grupo populacional.
No ano de 1995, entre os dias 5 a 9 de junho, Petronilha Beatriz
Gonçalves da Silva e Lucia Maria de Assunção Barbosa realizaram, na
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o seminário intitulado
“O pensamento negro em educação no Brasil: expressões do Movi-
mento Negro”, a partir do qual foi publicado um livro com o mesmo
título lançado no ano de 1997 e no qual as organizadoras afirmam que:
“Já é tempo de estudiosos da educação, de educadores, empenharem-
-se na construção de uma sociedade democrática, em que o respeito
aos diferentes do hegemônico em sua valorização enquanto seres hu-
manos distintos sejam metas a seguir” (SILVA; BARBOSA, 1997, p. 11).
O protagonismo de ativistas e intelectuais negros(as) no campo
educacional levou à conquista da Lei no 10.639/2003, a qual assevera
que “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais
e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira1”. Com a promulgação deste marco legal, a ERER pas-
sou a se tornar obrigatória também nos estabelecimentos particulares
de ensino. Importantes desdobramentos foram conquistados a partir
desde então.O primeiro deles, o Parecer 003 de 20042, ampliouasáreas
1 Livro produzido pela SECAD. Disponível em: https://bit.ly/2PiAZTU. Acesso em: 5 mar. 2021.
2 Brasil, Parecer 003/2004 <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf>. Acesso em: 15
mar. 2021.
80
do conhecimento também aptas a trabalharem com a temática racial
no chão das escolasinserindo “as contribuições do Egito para a ciên-
cia e filosofia ocidentais;” (BRASIL, 2004, p. 12)ou ainda a “participa-
ção dos africanos e de seus descendentes na diáspora,em episódios
da história mundial, na construção econômica, social e cultural das
nações do continente africano e da diáspora” (BRASIL, 2004, p. 13),
bem como o “estudo da anemia falciforme, da problemática da pressão
alta;” (BRASIL, 2004, p. 14), abrindo-se o caminho para a discussão da
temática em áreas tais como a Medicina e a Biologia, passando-se a
gerar uma expectativa quanto à produção de materiais didáticos com o
objetivo de suprir uma demanda provocada a partir tanto da lei quan-
do do parecer.
Dentre a produção textual é importante citar os livros produ-
zidos a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (SECAD) que, entre os anos de 2005 e 2012, publicou 4
títulos voltados para a ERER: Educação anti-racista: caminhos aber-
tos pela Lei Federal Lei no 10.639/20033 (2005); História da Educação
no Negro e outras Histórias4(2005); Orientações para a Educação das
Relações Étnico-raciais5 (2006) e Práticas Pedagógicas de trabalho com
relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei no 10.639/20036
(2012).
Somente mais tardiamente é que aspublicações, por exemplo, no
campo das Ciências Naturais, podendo-se citar aqui a área de Biologia,
passaram a contribuir com temas articulados à Lei no 10.639/2003. A
documentação de uma atividade, que pode ser considerada uma das
3 Livro produzido pela SECAD. Disponível em: https://bit.ly/3lGs6zQ. Acesso em: 5 mar. 2021.
4 Livro produzido pela SECAD. Disponível em: https://bit.ly/3f1IGZH. Acesso em: 5 mar. 2021.
5 Livro produzido pela SECAD. Disponível em: https://bit.ly/315PgpZ. Acesso em: 5 mar. 2021.
6 Livro produzido pela SECAD. Disponível em: https://bit.ly/3lHuExr. Acesso em: 5 mar. 2021.
81
pioneiras, que trazia tanto a Biologia quanto este marco legal, foi do-
cumentada por Müller; Santos; Gonçalves (2012, p. 233) que entrevis-
taram, no município de Colíder, no estado do Mato Grosso, um pro-
fessor que “elegeu as doenças relacionadas à população negra para
estudar com suas turmas”. Dentro deste campo do conhecimento, esta
articulação se encontra em seus passos iniciais de construção e à es-
pera de um maior número de profissionais da área que venham a con-
tribuir para o processo de descolonização, viabilizando, desta forma,
um processo educacional verdadeiramente inclusivo. Assim, com base
no exposto, e com intuito de colaborar com o avanço das discussões, o
presente texto objetiva apresentar três temas que poderão ser discu-
tidos em sala de aula à luz da Lei no 10.639/2003, quais sejam: micros-
copistas negros, a célula e doenças prevalentes na população negra.
82
A B C
IMAGEM 1. Hieróglifos representando os elementos formadores do corpo:
A) bá; B) ka; C) akh.
Fonte: acervo pessoal, 2021.
7 De physys derivou o termo físico que durante séculos foi utilizado para denominar os(as) médico(as).
83
fleuma (água), a bílis amarela (fogo) e a bílis negra (terra) [...].
(SANTOS; FAGUNDES, 2010, p. 334).
84
foram descritos(as) como rígidos(as), governados(as) pela opinião e
melancólicos(as). Os(as) africanos(a) eram vistos(a) como indolentes,
negligentes, governados(a) pelo capricho e fleumáticos(a) (BETHEN-
COURT, 2015).
A estes quatro elementos poderia ser aplicada a teoria de De-
mócrito/Leucipo, segundo a qual,“tudo o que vemos ao nosso redor
é composto de átomo”. A interação entre os átomos poderia explicar
as várias sensações experimentadas pelos seres humanos, assim, por
exemplo, “o paladar era causado pelo contato direto entre os átomos
da substância e os da boca” (RONAN, 1987, p. 85). Para Sócrates, metais
como ouro e prata também compunham o corpo humano e explicariam
os diferentes locais sociais ocupados pelas pessoas. Para o ateniense,
ao responder aos questionamentos de Glauco, afirmou que: “Alguns de
vós possuís a capacidade de comando e em vossa composição entro o
ouro, e por isso sois os merecedores das maiores honras; outros foram
feitos de prata para serem auxiliares” (GOULD, 1991, p. 3).
3. A CÉLULA E O MICROSCÓPIO
Diferentemente destes constituintes metafísicos descritos por
variados povos, todos os seres vivos são formados por células, que são
estruturas, em sua maioria, de dimensões microscópicas que foram
descritas pela primeira vez em 1665, pelo filósofo natural britânico
Robert Hooke (1635-1703), utilizando-se de um microscópio por ele
mesmo construído. O inusitado de sua descoberta não lhe passou des-
percebido, deixando o seguinte registro: “estes antes os quais foram de
fato os primeiros poros microscópicos que eu já vi, e talvez, que nunca
foram vistos, pois eu não havia encontrado qualquer pessoa ou escri-
tor [...]” (HOOKE, 1665, p. 113).
85
Porém, a ampla aceitação da presença das células em todos os
organismos vivos veio somente após 217 anos após esta observa-
ção pioneira em 1838/1839, a partir dos trabalhos de dois cientistas
alemães, Mathias Jacob Schleiden (1804-1881) e Theodor Schwann
(1810-1882), botânico e zoólogo, respectivamente, ao proporem, de
forma independente, a Teoria Celular (ALVES, 2014), que contribuiu
para explicar a função estrutural e fisiológica das células. A propos-
ta de ambos, que tinha por base a geração espontânea, sugeria que
uma substância de nosso corpo, o citoblasdema (o núcleo da célula) se
cristalizava ao redor de um citoblasto dando origem às novas células.
A teoria inovadora foi repercutida, no então Império brasileiro, pelo
médico negro do Rio de Janeiro, o Dr. José Maurício de Nunes Garcia
(1808-1884), que em seu livro Curso elementar de anatomia humana ou
lições de antrhropotomia, publicado em 1854, considerava a compara-
ção da “formação das cellulas com a dos crystaes” (GARCIA, 1854, p.
382), como sendo muito sedutora, pois o “nucleo ahora attraindo as
moleculas que o rodeião, condensa-as mais e mais em a sua superfi-
cie, até que por fim ellas se tornarão uma membrana, a qual deixando
passar por suas porosidades o cytolastema liquido afasta-se assim do
nucleo, e a cellula fica constituida” (GARCIA, 1854, p. 383).
O grande salto conceitual, dentro deste campo, foi dado em 1858
por Rudolph Virchow (1821-1902), médico e cientista alemão, quando
este propôs que os tecidos normais e os doentes originam-se da célula
(Omnis es cellula e cellula) (ALVES, 2014). Para ele, um
86
classes dominantes, nada de família real, nada de Kaiser [...]
(SILVA; MESSIAS JUNIOR, 2011, p. 67).
87
publicado na Gazeta Médica da Bahia, já descrevia estudos realizados,
utilizando-se dos microscópios e que este seria um guia e um orienta-
dor tanto na caracterização etiológica quanto terapêutica das doenças
(MOREIRA, 1902).
O facultativo soteropolitano formou-se em 1891 pela FAMEB e
deu continuidade a uma tradição desta instituição de ensino, no que
tange ao uso do microscópio na pesquisa médica, porém, o governo
brasileiro nos anos de 1986 e 1987, respectivamente, preferiu home-
nagear Oswaldo Cruz (1872-1917) (IMAGEM3) e Carlos Chagas (1879-
1934) ao associar os trabalhos destes cientistas com o emprego da mi-
croscopia, por meio do lançamento das cédulas de 50 e 10 mil cruzados.
88
nest Everett Just (1883-1941) (IMAGEM 4C), que atuaram no campo da
fisiologia vegetal e da biologia do desenvolvimento, respectivamente.
C
IMAGEM 4. O microscópio em três momentos:
A) como instrumento de propaganda.
Sendo utilizado pelos cientistas;
B) George Carver, e
C) Ernest Just.
Fontes: A) acervo pessoal, 2021;
B) https://bit.ly/2PgdRpp.
C) Registro fotográfico realizado a partir do
Almanaque do Elixir de Inhame (1939, p. 30).
89
Estas e outras personali-
dades negras poderão caminhar
no chão da escola ao longo dos
semestres por meio de diferen-
tes estratégias. Uma delas seria a
elaboração de um calendário da
diversidade étnico-racial, uma
atividade que pode ser desenvol-
vida do ensino fundamental ao
universitário e já foisinalizada
no livro Orientações para a Edu-
cação das Relações Étnico-raciais
(BRASIL, 2006). Uma proposta
neste sentido foi efetivada pela
SECAD alguns anos após a pro-
mulgação da Lei no 10.639/2003
(IMAGEM 5). No ensino Funda-
mental e Médio esta atividade
poderia ocorrer de forma inter-
disciplinar de forma a articular
as diferentes áreas de conhe-
cimento que permeiam estes
espaços. Já no espaço universi-
tário, este cronograma poderia
privilegiar personalidades ne-
gras que contribuíram em áreas
específicas do conhecimento.
No mundo virtual, a Professora
IMAGEM 5. Datas comemorativas relacionadas
Zelinda Barros divulga o “Calen- à população negra.
Fonte: acervo pessoal do autor, 2021
90
dário Negro8”, por meio do qual cientistas e intelectuais pertencentes
a este grupo populacional são divulgados(as).
Apresentar cientistas/intelectuais negros(as) é de profunda im-
portância no sentido de buscar desmistificar em corações e mentes
que o trabalho intelectualizado e acadêmico não é uma exclusividade
de pessoas brancas, e que esta ausência vem sendo epistemológica e
sistematicamente construída, pois, de acordo com Santos (2002), a au-
sência de nomes que surgiram fora do Norte metafórico, América do
Norte e Europa, constitui uma ausência, uma não existência derivada
da monocultura do saber, porque quando o cânone não reconhece algo
ou alguém abre-se espaço para a inexistência.
Sob este prisma, Silva (2016), notexto intitulado “Reflexões e
estratégias para a construção de uma educação antirracista”, discute
a respeito da ausência de cientistas negros(as) em dois livros que di-
vulgam personalidades ligadas ao mudo da ciência: “Os Cem Maiores
Cientistas da Humanidade” e “As Cem Maiores Personalidades da His-
tória”, da autoria, respectivamente, de John Simons e Michael Hart. Os
autores destas obras, ao ignorarem as contribuições de cientistas não
europeus ou estadunidenses, restringiram a “imensidão da experiência
do mundo que poderia ser mais vasta não fosse o epistemicídio, isto
é, a destruição maciça de experiências e conhecimentos subordinados
considerados inadequados para servir ao projeto colonial” (SANTOS,
2017, p. 63-64).
Assim, a título de sugestão, José Maurício de Nunes Garciapo-
deria ser exibido, com diferentes níveis de complexidade, nos ensinos
Fundamental, Médio e Universitário, ao lado de nomes como os de Ma-
thias Jacob Schleiden e Theodor Schwann, ao se apresentar, historica-
91
mente, o descobrimento da célula, e Juliano Moreira, George Carver,
Ernest Just poderiam ser apresentados como cientistas que desen-
volveram seus trabalhos tendo por base o uso de microscópios, o que
contribuiria para demonstrar a presença de homens de ciência negros
neste campo do conhecimento. Dado o incentivo que o facultativo so-
teropolitano deu para o uso do microscópio em anatomopatologia, seu
nome também poderia ser trazido para as aulas da disciplina de Pa-
tologia, em geral ofertadas para os cursos da área médica, tais como:
Medicina, Farmácia e Enfermagem.
No Brasil, em diferentes momentos, o microscópio foi tema para
a emissão de selos comemorativos. Em 1980 foi o mote do combate à
doença de Chagas (IMAGEM 6A), em 1983 (IMAGEM 6B) foi abordado
na campanha de prevenção ao câncer, em 1988 (IMAGEM 6C/D) e 2020,
respectivamente, foi relacionado à pesquisa científica na Antártica e
às pesquisas visando o enfrentamento à sindemia da Covid 19 (IMA-
GEM 6E/F). Nesta última estampa diferentes profissionais negros(as)
que fazem parte da linha de frente do combate ao novo corona vírus,
podem ser observados.
Por uma vertente, o microscópio foi de fundamental importân-
cia: em 1905, para que o agente etiológico da sífilis, fosse identifica-
do por Fritz Schaudinn (1871–1906). Sem a utilização deste no ano
de 1910 o médico James Herrick (1861-1954) não teria tido descrito a
anemia falciforme após a observação das hemácias em forma de foice
no sangue do então acadêmico negro do curso de medicina, à época
com 26 anos de idade, Walter Clement Noel de (1884-1916), oriundo
da ilha de Granada.
92
A B
C
E
D F
IMAGEM 6. Diferentes selos alusivos ao uso de microscópio na
pesquisa científica brasileira.
Fonte: acervo pessoal do autor, 2021.
93
O microscópio mostrou-se de fundamental importância no de-
senvolvimento do exame citológico preventivo do câncer de colo ute-
rino, em 1943, por Gregorius Papanicolau (1883-1962). Por uma ou-
tra perspectiva, a utilização deste equipamento foi importante para o
desenvolvimento e disseminação de teorias de superioridade/inferio-
ridade entre os seres humanos. Para os teóricos da eugenia, a célula
seria a fonte, a base a partir da qual se fundamentaria a diferença. O
Editorial do Boletim de Eugenia (1930, p. 2) divulgava a base celular
da diferença entre homens e mulheres afirmando que estes(as) “são
desiguaes constitucionamente em cada cellula de seu corpo, apezar de
dependentes e organismos complementares”. O mesmo periódico pu-
blicou artigo no qual afirma que “todas as qualidade fisicas e psiquicas,
todas as combinações que nós chamariamos de carcter do sêr huma-
nosão determinadas no momento da fecundação” (MJOEN, 1931, p. 6),
ou seja, o comportamento humano seria determinado após a fusão do
óvulo com o espermatozoide.
Ao mesmo tempo em que o conceito de célula ia se firmando
entre os(as) médicos(as) oitocentistas, avolumavam-se evidências de
que grupos populacionais diferentes eram acometidos diferentemen-
te por morbidades distintas. Uma destas doenças era a febre amarela,
que ao longo do Oitocentoscampeava completamente fora de contro-
le, sendo uma importante causa da mortalidade, não somente aqui no
Brasil, mas também em cidades como Paris (França), sendo a Capital
das Luzes usada como justificativa ao desgoverno da morbidade aqui
em território nacional. O desespero dos responsáveis pela gerência da
saúde era enorme, pois a mortalidade avançava de forma avassaladora
entre a gente branca e colocava em risco o processo eugênico de em-
branquecimento da população. A respeito desta vulnerabilidade, Cha-
lhoub (2011, p. 89) afirma que: “o vômito preto retornava a cada verão,
94
os imigrantes recém-chegados morriam em grande número nesses lo-
cais, enquanto a população negra da Corte resistia bem ao flagelo”.
Ruy Barbosa (1849-1923), Ministro da Fazenda do regime republicano,
asseverou
95
tríolos, mitocôndrias lisossomos
e o Complexo golgiense. Uma ex-
ceção é a hemácia dos mamíferos,
que é formada apenas pela mem-
brana e pelo citoplasma, comple-
tamente tomadas por enzimas da
via glicolítica e pela hemoglobina,
sem nenhuma das estruturas cita-
das acima.
Os mais variados indicadores
sociais nos dão conta de que “In-
dígenas, negros e brancos ocupam
IMAGEM 7. Publicação do
lugares desiguais nas redes sociais
Ministério da Saúde apresentando
e trazem consigo experiências algumas das doenças prevalentes
na população negra.
também desiguais de nascer, viver,
Fonte: acervo pessoal, 2021.
adoecer e morrer” (LOPES, 2004, p.
14) e, sendo assim, o processo saúde/doença não pode ser entendi-
do como um dado da natureza, com uma ocorrência marcada unica-
mente pelo natural, pelo funcionamento do corpo e ligado unicamen-
te ao mal funcionamento da célula e de seus processos fisiológicos e
bioquímicos.
Neste sentido, um ano importante para a discussão dos temas
relacionados à saúde da população negra foi o ano de 2001, pois em
seu decorrer foram divulgadas duas publicações voltadas para as
doenças prevalentes deste grupo populaconal, uma do Ministério da
Saúde, o “Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas,
na população brasileira afro-descendente” (IMAGEM 7) e a “Política
nacional de saúde da população negra:Uma Questão de Equidade”, que
foi produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
96
mento (PENUD) que apresenta critérios de classificação que articulam
fatores sociais e biológicos.
5. MEMBRANA PLASMÁTICA
Com a participação desta estrutura celular, uma película muito
fina que separa o meio externo do interno, o citoplasma, podemos ci-
tar 4 doenças prevalentes na população negra: a COVID 19,a AIDS, a
hipertensão arterial e a intolerância à lactose.
Na primeira delas, a COVID 19, o novo coronavírus, por meio
de uma estrutura presente na superfície viral denominada de proteína
spike “S”, esta passa a ter acesso ao interior da célula após interagir
com uma proteína de nossas células, a enzima conversora da angio-
tensina 2 (ECA2) (UZUNIAN, 2020) (IMAGEM 8). A estrutura da célula
passa a dar suporte, bioquímico e fisiológico, para este parasita intra-
celular obrigatório, gerando milhares de cópias do invasor que, após
ser multiplicado, rompe a célula hospedeira e novas partículas virais,
desta vez envoltas por uma camada de membrana oriunda da célula
destruída, que passam a circular pelo organismo. Vírus de RNA, as-
sim como o novo coronavírus, levam a produção de até 100 mil cópias
de seu material hereditário em aproximadamente 10 horas (MOYA et
al, 2000) e durante o processo de infecção o organismo pode chegar a
produzir um quadrilhão de novas partículas virais (UJVARI, 2014). A
proteína ECA2 é de fundamental importância na regulação da pressão
arterial, deixando de atuar após a infecção viral e, por este motivo,
pessoas hipertensas fazem parte do grupo de risco para o novo corona-
vírus, que invade preferencialmente as células tipo II capazes de sinte-
tizar um surfactante responsável pela diminuição da tensão superficial
no pulmão, facilitando a captação do oxigênio atmosférico.
97
IMAGEM 8. Interação da proteína S do novo corona vírus com o receptor
ACE2 da membrana plasmática.
Fonte: modificado de https://bit.ly/3f5WjXG, 2021
9 Fonte: Boletim Epidemiológico Covid 19. Disponível em https://bit.ly/395u1ci.Acesso em. Acesso em:
5 mar. 2021.
98
6/2/2021), dão-nos conta de que os casos de Síndrome Respiratória
Aguda Grave (SRAG), causada pelo novo coronavírus, é de 39,2% en-
tre os(as) integrantes da “raça” negra (pretos + pardos), subindo para
43,2% entre a população branca. Quando se avalia a mortalidade cau-
sada pela SRAG encontram-se níveis mais elevados entre negros(as),
46,6%, valores que atingem os 41,2% entre a população branca.
A segunda doença que depende da interação da partícula viral
com a membrana plasmática é a AIDS. O HIV, mediado pela glicopro-
teína 120 (gp 120), interage com receptores proteicos da família CD-4
presentes na membrana de linfócitos e de macrófagos, duas células de
sistema imunológico (COLLINS, 2010; GUPTA, 2012), provocandoa in-
jeção do capsídeo do viral para o interior da célula e a posterior libera-
ção do seu material genético e de enzimas necessárias para a replica-
ção do genoma do HIV, dando início ao processo de infecção (CUNICO;
GOMES; VELLASCO JUNIOR, 2008).
Ainda conforme dados do Boletim Epidemiológico do Ministério
da Saúde (BRASIL, 2020), o quantitativo das pessoas infectadas são
influenciadas pelo sexo e pela “raça”/cor, pois o total de casos entre
pessoas do sexo masculino é de 41,7% e 49,2%, respectivamente para
brancos e negros (pretos + pardos). Ao observarmos o percentual de
infecções entre as mulheres temos 36,6% e 54,3%, respectivamente,
entre mulhere brancas e negras. A série Histórica de dados notificados
pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), entre
os anos de 2007 a 2020, mostram que a epidemia evoluiu de forma
diferente em relação ao sexo e à “raça”/cor das pessoas infectadas. En-
tre os homens brancos observa-se uma diminuição da ordem de 17%
do quantitativo de casos, já entre os homens negros (pretos + pardos)
têm-se um aumento de 21,7%. Entre as mulheres brancas a redução
foi da ordem de 17,3%, já entre as mulheres negras observou-se um
99
aumento de 20,5%. Este desenvolvimento diferenciado e influenciado
por marcadores de sexo e de “raça”/cor também afeta diferente quem
vive e quem morre vítimas dessa epidemia, pois entre os anos de 2009
e 2019 a mortalidade entre os homens brancos reduziu-se em 10,5%
observando-se, dentro do mesmo período, um aumento de 10,3% entre
os homens negros. Entre as mulheres a redução da mortalidade foi de
9,1% entre as brancas, tendo-se um aumento de 9,1% entre as negras.
A hipertensão arterial, uma das doenças prevalentes da popu-
lação negra (BRASIL, 2001), mostra-se relacionada a proteínas de
transporte cátions presentes na membrana celular, havendo a suges-
tão da inibição da bomba de sódio-potássio nas membranas plasmáti-
cas musculares e vasos sanguíneos (AMODEO; HEIMANN, 1998). Em
relação a esta enzima transportadora, dados de Rygielski et al (1987)
citados por Santos; Vasconcelos (2012) sugerem que esta ATPase seja
menos ativa em pessoas negras, e que este grupo populacional, devido
à presença de um gene economizador de sódio, apenas transportariam
este cátion sob alta pressão arterial (SANTOS; VASCONCELOS, 2012).
Este gene leva ao influxo de sódio e ao efluxo de cálcio, aumentado a
propensão ao desenvolvimento da hipertensão (BARRETO et al, 1993).
Esta característica descrita por Barreto e colaboradores (1993), abriu
uma estratégia de ação para o controle da pressão alta em pessoas ne-
gras, pois diante destas condições de entrada e saída de Sódio e Cálcio,
respectivamente, descobriu-se que este grupo populacional responde
mais positivamente com uso de “diuréticos e bloqueadores dos canais
de cálcio, e pouca resposta a bloqueadores beta-adrenérgicos ou aos
inibidores da enzima de conversão” (CORREA, et al, 2019, p. 158).
100
Esta doença também poderia ser discutida como um tema ligado
ao núcleo celular e à hereditariedade, pois o controle da pressão sistó-
lica seria influenciado por 15 poligenes10 (HARRAP, 2003).
A hipertensão não está apenas ligada a questões biológicas. As-
pectos ambientais e o estilo de vida também podem influenciar no apa-
recimento e desenvolvimento desta doença. Moxotó; Malagris (2015)
associam positivamente o estresse e o sedentarismo à ocorrência da
pressão alta. A ingestão de álcool inibe a bomba de Sódio e Potássio,
e o hábito de fumar que altera a permeabilidade ao sódio, também es-
tão relacionados ao surgimento de um quadro hipertensivo (SANTOS;
VASCONCELOS 2012).
A intolerância à lactose é uma doença genética autossômica re-
cessiva (cc), que atinge de 60 a 80% da população negra (BARBOSA et
al, 2020) e que estaria vinculada, em sua origem, a populações ances-
trais cuja alimentação seria principalmente composta por alimentos
de origem vegetal do que a produtos vinculadas ao leite e derivados.
Nas pessoas doentes observa-se a ausência, na membrana plasmática
(BARBOSA et al, 2020), de uma enzima, a lactase, que digere a lacto-
se, um dissacarídeo, levando à produção de dois açúcares simples, a
glicose e a frutose. Sem esta presença o dissacarídeo não absorvido é
utilizado pela flora normal do organismo gerando gases que levam ao
desenvolvimento de desconforto intestinal.
6. O NÚCLEO CELULAR
No núcleo, numa estrutura específica das células eucarióti-
cas,estão presentes os genes, responsáveis pelo armazenamento do
material hereditário que e por meio de processos bioquímicos levarão,
10 Gene que, individualmente, desenvolve ligeiro efeito sofre um fenótipo, mas em conjugação com
alguns ou muitos outros genes, controla um traço quantitativo, tal como o peso corporal, cor dos
olhos, cor da pele, altura.
101
em última instância, à produção de proteínas que irão controlar nossas
funções vitais. Os genes podem sofrer alterações (mutações) relacio-
nadasa 5das doenças prevalentes na população negra.
Nas duas primeiras, a anemia falciforme e a doença falciforme,
a mutação ocorre no gene da beta globina localizado no cromosso-
mo 11 (SONATI; COSTA, 2008). Na terceira, o câncer de próstata, o
gene mutado é o BRCA1 encontrado no cromossomo 12 (AMENDOLA;
VIEIRA, 2005). Em relação a esta morbidade é fundamental levar em
questão que se trata de uma doença extremante heterogênea, na qual
múltiplos loci gênicos contribuem para sua ocorrência, e genes muta-
dos para este tipo de câncer já foram mapeados nos cromossomos 1,
20 e X (DANTAS et al, 2009). A quarta doença são os miomas uterinos
(fibromas) que são causados por mutações no gene MED12 no cromos-
somo sexual X (FARIA; GODINHO; RODRIGUES, 2008). A quinta é a
hipertensão arterial na qual mutações no cromossomo8 levam a uma
excessiva retenção de sal desencadeando sintomas que levam ao au-
mento da pressão (DRAGER; KRIEGER, 2004).Para esta doença cita-se
também o gene da ECA,localizada no cromossomo 17, o qual apresenta
diversos polimorfismos,um deles de “deleção” (D), que influenciam o
nível da ECA circulante sendo que o genótipo DD se mostra correlacio-
nado com maior risco de hipertensão (ROLA; FERREIRA, 2008).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente texo apresento, resumidamente, três temas: o mi-
croscópio/microscopistas negros, a célula e as doenças prevalentes
na população negra, todos eles devidamente articulados com a Lei
10.639/2003 e contribuindo assim para o estudo das relações étnico-
-raciais. A Biologia tem profundas raízes eurocêntricas, mas, como
aqui demonstrado, ela também apresenta uma série de conteúdos que
102
podem ser introduzidos permitindo uma abordagem decolonial, tam-
bém contribuindo para o cumprimento deste marco legal que se apre-
senta como sendo uma importante vitória do Movimento Social Negro
no campo educacional.
No Brasil tivemos, no campo da microscopia, os nomes dos fa-
cultativos negros José Maurício de Nunes Garcia e Juliano Moreira, os
quais poderão ser apresentados para nossos(as) estudantes demons-
trando, assim, a presença de dois homens negros que trouxeram contri-
buições para o conhecimento científico ainda ao longo do Oitocentos.
Nos manuais escolares do Fundamental ao Universitário, nos-
sos(as) estudantes têm contatos com a célula, porém raramente esta
entidade estrutural é apresentada como sendo a base das mais varia-
das doenças sendo que a fisiologia celular é mostrada como única para
todos os seres vivos, uma “verdade” científica que é colocada em che-
que dada a presença de doenças prevalentes em diferentes grupos po-
pulacionais humanos.
É importante reforçar que o processo saúde/doença não se res-
tringe ao campo do natural e que condições tais como o racismo es-
trutural, inserção qualidade de vida, por exemplo, são de fundamental
importância no que tange ao surgimento e à intensidade de diferentes
sintomas.
Assim, o presente texto contribui para que a Citologia, um dos
campos da Biologia, dê sua contribuição para um processo de ensino-
-aprendizagem inclusivo e decolonial.
103
REFERÊNCIAS
ALVES, Manuel Valente. História da Medicina em Portugal. Cidade
do Porto, Porto Editora, 2014.
104
BENCHIMOL. Jaime L. Domingos José Freire e os primórdios da bac-
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108
SANTOS, Tatiana Maria Palmeira dos; VASCONCELOS, Sandra Mary
Lima. Ingestão de Na+ e K+ versus HAS: bases para o seu manejo e
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109
UZUNIAN, Armênio. Coronavirus SARS-CoV-2 and Covid-19,Jornal
Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, 56, p. 1-4, 2020.
110
C A P Í T ULO 4
1. INTRODUÇÃO
Com a aprovação da Lei 10.639/2003, que traz a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo da Educa-
ção Básica (BRASIL, 2003), os estabelecimentos de ensino passaram a
planejar estratégias que efetivassem o proposto na legislação, mesmo
reconhecendo que isso vem de uma demanda formativa anterior a este
recurso político-jurídico nacional. Quando se fala em inserir uma de-
1 Este capítulo consiste em uma versão revisada e ampliada do artigo “Educação das Relações Étnico-
-Raciais na Formação Docente no Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFRPE”, publicado na
Revista Interfaces da Educação.
111
terminada temática no currículo da Educação Básica, é preciso atentar
para a formação inicial e continuada de professores/as, tendo em vista
que a profissão docente se enquadra, neste contexto, como uma peça-
-chave no processo de ensino e de aprendizagem nas diversas áreas do
conhecimento.
A inserção da História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas re-
quer do/a professor/a conhecimentos que problematizem e dialoguem
com o componente curricular de sua área. A História é vista como
uma área propícia para o cumprimento da legislação, por ter como
objeto de estudo os processos e sujeitos históricos. Entretanto, a Lei
10.639/2003 dispõe da obrigatoriedade de trabalhar com a temática
em todo o currículo, independente da área de conhecimento (BRASIL,
2003). Isto reflete na dificuldade de professores/as de áreas como Bio-
logia, Química e Física cumprirem com o disposto pela lei.
Levando em consideração o panorama da formação para a do-
cência na escola básica, foi necessário haver uma reestruturação dos
cursos de Licenciatura nas Instituições de Ensino Superior (IES), entre
eles, o curso de Ciências Biológicas, buscando incluir a discussão ét-
nico-racial em seu currículo, de maneira a subsidiar a formação inicial
de professores/as de Ciências e Biologia para educar para as relações
étnico-raciais. Este processo educativo pode partir do que propõe a Lei
10.639/2003, pois reconhecemos e defendemos que a História e Cultu-
ra Afro-Brasileira nos permite caminhar na perspectiva de promover
um ensino de Ciências e Biologia capaz de discutir uma história que
nos foi negada.
Gatti (2016) descreve que a formação inicial docente busca a
qualidade de formação para os/as profissionais do ensino, sendo im-
portante a construção de conhecimentos básicos para interpretação
do mundo e construção de valores para o pleno exercício da cidadania.
112
Isto nos leva a pensar na inserção de diversos estudos inclusive das
relações étnico-raciais na formação inicial dos/as professores/as.
O debate em torno das questões étnico-raciais precisa está pre-
sente durante a formação inicial de professores/as, principalmente
para os cursos nos quais os/as docentes encontram dificuldades em
contextualizar a temática em sua prática docente, fato que podemos
identificar através dos estudos de Douglas Verrangia (2009), que pes-
quisou o educar de docentes do Brasil e dos Estados Unidos e a vivên-
cia de relações étnico-raciais em suas práticas educativas no ensino de
Ciências.
Em vista disso e com base em nossa experiência na Educação
Básica e Superior, percebemos a ausência do estudo das relações ét-
nico-raciais na formação inicial dos/as professores/as de Ciências e
Biologia, o que demonstra a relevância do desenvolvimento de pes-
quisas nesse campo de investigação. Assumir o compromisso em edu-
car para as relações étnico-raciais é atuar enquanto agente sociocultu-
ral e político na formação de cidadãs/ãos críticas/os, capazes de lutar
contra toda forma de preconceito e discriminação, principalmente a
étnico-racial.
No Brasil, mais especificamente na região nordeste, a Universi-
dade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) é pioneira em instituir, em
caráter obrigatório, a Educação das Relações Étnico-Raciais enquanto
componente curricular nos cursos de licenciatura. A criação do referi-
do componente se deu por meio da Resolução 217/2012 do Conselho
de Ensino, Pesquisa e Extensão da mencionada universidade que bus-
cou cumprir com a Lei 10.639/2003, a Lei 11.645/20082 com a comple-
mentação da História e Cultura Indígena, e com a Resolução 01/2004
2 A Lei 11.645/2008 modificou a Lei 10.639/2003 na LDB que passou a incluir o ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
113
que orienta às Instituições de Ensino Superior a inclusão da Educação
das Relações Étnico-Raciais em seus currículos.
Neste sentido, emerge o seguinte questionamento: De que forma
a Educação das Relações Étnico-Raciais é proposta no curso de Licencia-
tura em Ciências Biológicas da UFRPE, direcionando o estudo de questões
étnico-raciais para a formação inicial dos/as professores/as de Ciências
e Biologia?
Este estudo faz parte de uma pesquisa de doutorado em Ensino
de Ciências e Matemática do primeiro autor, financiada pela CAPES, e
tem como objetivo compreender de que forma a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais é proposta no curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas da UFRPE, direcionando o estudo de questões étnico-raciais
para a formação inicial dos/as professores/as de Ciências e Biologia. A
pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino das
Ciências da UFRPE e ao Grupo de Pesquisa em Formação e Prática Pe-
dagógica de Professores de Ciências e Biologia (FORBIO).
114
soas negras e brancas, o que designam como relações étnico-raciais
(BRASIL, 2004).
Vale salientar que a (re)educação dos indivíduos diante das re-
lações étnico-raciais também depende da formação de professores/as,
seja ela inicial ou continuada. A Profa. Dra. Nilma Lino Gomes relata
que o estudo das questões étnico-raciais encontra lugar na formação
continuada de professores/as, diferente da formação inicial cuja temá-
tica adentra este espaço com muita dificuldade (GOMES, 2008).
A escola é um local de relações entre os sujeitos pertencentes a
pertencimentos étnico-raciais diversos. Deste modo, é preciso promo-
ver uma educação que os levem a conhecer, respeitar e compreender as
diferenças perceptíveis mediante a convivência humana. Tais diferen-
ças são tomadas como ponto de partida para a discriminação racial, o
que preocupa e agrava a situação educacional refletindo socialmente.
É notável, segundo as Diretrizes para a Educação das Relações Étni-
co-Raciais, que é preciso haver um trabalho conjunto, onde processos
educativos escolares, políticas públicas e os movimentos sociais pos-
sam se articular, estando sempre em busca de promover à ética, já que
isso não está limitado apenas à escola (BRASIL, 2004).
Defendemos que é por meio da educação que podemos mudar
este cenário de opressão e desumanização, como nos lembra o saudo-
so Paulo Freire. Entretendo, as ações conjuntas é parte essencial para
a promoção da Educação das Relações Étnico-Raciais. Mesmo (re)co-
nhecendo que o comprometimento precisa partir de todos/as aqueles/
as que atuam na educação escolar (professores/as, gestão, etc.), o que
não se pode é desistir da luta permitindo que o preconceito e a discri-
minação se agravem cada dia mais.
No ano de 2021, a Lei 10.639/2003 completou 18 anos de seu de-
creto, mas muitos são os desafios para sua implementação na escola.
115
Estes desafios partem de situações relacionadas a políticas públicas
educacionais, gestão educacional, equipe docente e demais profissio-
nais da educação que acabam contribuindo para a invisibilidade e a
desvalorização da população negra nas escolas. O intrigante é saber e
perceber que a LDB é cumprida, ou busca ser, pelos estabelecimentos
de ensino, porém, mesmo a referida lei alterando a LDB, sua imple-
mentação nas escolas ainda não está efetivada de forma a ressignificar
processos de ensino e aprendizagem em todo o sistema educacional
brasileiro.
Não podemos pensar nessas inquietações sem olhar para forma-
ção inicial docente. No caso da formação de professores/as de Biologia
para o ensino de Ciências na qual voltamos nosso olhar, o Prof. Dr.
Douglas Verrangia destaca que essa área do conhecimento tem en-
contrado dificuldades para educar para as relações étnico-raciais. Em
sua pesquisa doutoral, em 2009, o autor revela que professores/as de
Ciências, participantes de um curso de formação continuada, não per-
cebiam as possíveis relações existentes entre suas propostas de aula e
as discussões que configuram a educação das relações étnico-raciais
(VERRANGIA, 2009). A experiência de Verrangia nos possibilita inferir
que o educar para as relações étnico-raciais precisa fazer parte da for-
mação inicial e continuada de professores/as, uma vez que se trata de
uma área do conhecimento capaz de realizar um trabalho que venha
interferir direta e criticamente na Educação Básica, com vistas a supe-
rar desigualdades raciais por meio do trato com a História e Cultura
Afro-Brasileira, Africana e Indígena.
De acordo com Munanga (2015) o problema social voltado às
relações étnico-raciais que antes estava relacionado exclusivamente
para o conceito de raça sob a ótica biológica- fato que já foi desconsi-
derado cientificamente-, atualmente se resume ao racismo que acaba
116
estabelecendo hierarquias que desumanizam e justificam a discrimi-
nação que existe na sociedade, logo, o racismo no século XXI não de-
pende da exclusão do conceito de raça, mas depende de uma educação
que foque na coexistência na “convivência igualitária das diferenças e
das identidades particulares” (MUNANGA, 2015, p. 25). E daí que a for-
mação inicial de professores/as precisa ser (re)estruturada ao ponto de
contribuir para a resolução deste problema social na qual encontra-se
imersa.
Estudos mostram diversas possibilidades de educar para as rela-
ções étnico-raciais no ensino de Ciências e Biologia, seja dialogando
acerca da produção do conhecimento africano para o desenvolvimento
científico e tecnológico da humanidade (VERRANGIA, 2009); através
da abordagem da saúde da população negra, por meio do estudo do
Antigo Egito com foco na identificação de casos de câncer de próstata
em múmias por intermédio da biologia molecular (SILVA, 2017); na
compreensão da diferença da cor da pele, problematizando o conceito
biológico e social de raça ao estudar a melanina (CARDOSO; ROSA,
2018); ou, até mesmo, pesquisando e contextualizando conhecimen-
tos tradicionais quilombolas no ensino de Ciências sob a égide da et-
nobiologia (SILVA; RAMOS, 2019).
Educar para as relações étnico-raciais a partir de práticas peda-
gógicas desta natureza requer o estudo da História e Cultura Afro-Bra-
sileira, Africana e Indígena, desde a formação inicial de professores/
as de Ciências e Biologia. Afinal, a formação inicial é o chão da forma-
ção docente, a base para que o/a professor/a seja inserido/a na escola
como profissional. Neste contexto, tal formação ganha centralidade,
pois, embora reconheçamos que há muitos espaços de aprendizagem
da docência, na instituição formativa “[...] institucionalizada, ela deixa
117
marcas epistemológicas e representações de docência significativas na
vida pessoal e profissional do futuro professor” (ARAÚJO, 2012, p. 53).
É possível levar em conta algumas instâncias nas quais estão
vinculados os impasses que levam ao não cumprimento do proposto
pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 nas instituições de ensino pú-
blicas e privadas. Para tal, é relevante referenciar a ausência da pro-
moção de novas políticas públicas educacionais que impulsionem a
implementação da legislação nas escolas. Acredita-se que a criação de
novas políticas tende a contribuir, por exemplo, para a formação de
gestores/as e professores/as, buscando suprir a problemática que os/
as profissionais da educação apontam frequentemente: a ausência de
formação que indique e discuta alternativas para considerar a legisla-
ção na escola e, posteriormente, nas aulas dos diferentes componentes
curriculares.
Frente a tantos obstáculos, é necessário reconhecer os avanços
quando consideramos o período de 2003 a 2021, em um recorte tem-
poral, partindo da aprovação das leis até os dias de hoje. Um ponto que
queremos ressaltar e que remete à formação de professores/as con-
siste na abordagem dos estudos sobre Educação das Relações Étnico-
-Raciais em universidades no Brasil, como é o caso da Universidade
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), com a implementação de componentes curriculares
nos cursos de licenciatura e bacharelado. No entanto, os desafios ain-
da estão presentes em nosso cotidiano e requerem comprometimento
dos órgãos públicos e da comunidade escolar para que possamos, co-
letivamente, mudar o cenário e tornar a escola um espaço de relações
étnico-raciais positivas.
118
3. CAMINHO PERCORRIDO PARA COLETA E ANÁLISE DOS DADOS
O estudo é de cunho qualitativo e se constitui como uma pesqui-
sa documental que, conforme descrevem Marconi e Lakatos (2003), ca-
racteriza-se por ter como principal fonte de coleta de dados documen-
tos, sejam eles escritos ou não, constituindo-se como fonte primária.
A análise do documento foi guiada por meio da Análise de Con-
teúdo (BARDIN, 1977). Desse modo, logo procedemos a pré-análise,
a exploração do material e ao tratamento dos dados por inferências
e interpretações, conforme propõe a autora. O documento analisado
foi o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Licenciatura em Ciências
Biológicas da UFRPE.
A análise resultou na identificação de 16 (dezesseis) unidades de
contexto e de registro que nos permitiram elencar 15 (quinze) catego-
rias, sendo 6 (seis) gerais e 9 (nove) específicas. Por sua vez, estas ca-
tegorias deram origem a 16 (dezesseis) subcategorias que configuram
a proposta de Educação das Relações Étnico-Raciais presente no PPC
do curso (Quadro 1).
Buscando facilitar a associação entre os achados e tecer as dis-
cussões necessárias, foram atribuídos códigos às categorias e subcate-
gorias. As categorias gerais são representadas por um seguimento de
três letras maiúsculas que diferem das categorias específicas e subca-
tegorias que são identificadas pela inicial maiúscula e por um segui-
mento de três letras minúsculas em itálico, respectivamente. As uni-
dades de registro são identificadas por estarem em itálico destacadas
nas unidades de contexto no decorrer dos resultados e discussão.
119
Quadro 1: Categorização e codificação do conteúdo disposto no PPC da
Licenciatura em Ciências Biológicas da UFRPE.
Base legal geral Base legal a nível nacional Ensino de História e Cultura Afro-
do curso (BLC) (Bnn) Brasileira e Indígena (eai)
120
Componente Núcleo de Conteúdos Fundamentos da Educação
curricular Pedagógicos em caráter com foco no colonialismo e na
obrigatório (COB) obrigatório (Cpo) contemporaneidade (ecc)
Genética de populações e
evolução com foco no conceito de
raça e na variabilidade genotípica
e fenotípica da cor da pele
humana (grc)
Consciência da diversidade
étnico-racial com base nas
diretrizes para formação de
professores (cde)
121
As indicações das unidades de contexto estão dispostas entre
colchetes seguidas de um número ordinal e um número natural que
indica, respectivamente, a ordem (de 1º a 16º) em que está localizada
no documento e a página (de 1 a 299).
Toda codificação está apresentada entre parênteses e as cate-
gorias e subcategorias encontram-se destacadas com as cores corres-
pondentes a cada uma das colunas do quadro acima para favorecer a
associação e entendimento da discussão.
122
uma nova versão do PPC que apresenta o resultado das discussões e
reflexões de docentes e discentes do curso. Na mais recente reformula-
ção, foram feitas alterações, entre elas a inserção do componente cur-
ricular Educação das Relações Étnico-Raciais, que se enquadra no Nú-
cleo de Conhecimentos Pedagógicos e dialoga com os demais Núcleos,
sendo eles: Núcleo de Conteúdos Específicos, Núcleo de Práticas como
Componente Curricular e o Núcleo de Conteúdos Profissionalizantes.
O Projeto Pedagógico do Curso da Licenciatura em Ciências Bio-
lógicas da UFRPE inicialmente apresenta o enquadramento do curso
no âmbito da legislação educacional brasileira. De imediato, é apre-
sentada a proposta de Educação das Relações Étnico-Raciais, a partir
da base legal geral do curso, tida como categoria geral neste estudo, e a
base legal a nível nacional e a nível institucional, que são as categorias
específicas de análise. Vejamos;
123
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. A
base legal geral considera a Resolução CNE/MEC nº 1/2004 que institui
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étni-
co-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana ([2ºp13].BLC.Bnn.der). As mencionadas diretrizes são um desdo-
bramento da Lei 10.639/2003, que surgiu na tentativa de regulamentar
à alteração trazida à LDB e teve como relatora a Profa. Dra. Petronilha
Beatriz Gonçalves e Silva, intelectual negra e referência nas discussões
relacionadas à educação antirracista no Brasil.
Além de estar apoiado na legislação educacional brasileira, o
curso propõe a Educação das Relações Étnico-Raciais enquanto com-
ponente curricular, atendendo à Resolução do Conselho de Ensino,
Pesquisa e Extensão (CEPE/UFRPE) 217/2012, que estabelece a inclu-
são do componente curricular “Educação das Relações Étnico-Raciais”
nos currículos dos cursos de graduação da UFRPE ([3ºp14].BCL.Bni.
erc). Este é um fato marcante no campo da formação inicial de profes-
sores/as, em especial dos/as professores/as de Ciências e Biologia, já
que muito se fala na necessidade de abordar a temática étnico-racial
na formação inicial docente.
O referido componente curricular, até o ano de 2018, ainda não
estava sendo ofertado em todas as licenciaturas (o que não é o caso do
curso de Ciências Biológicas), em razão de que alguns dos cursos de
formação docente alegavam a recente reformulação de seu PPC e es-
tariam abordando a temática em outros componentes, conforme diag-
nosticou a Profa. Elida Roberta Soares de Santana em sua pesquisa de
mestrado. A autora aponta este caso como sendo um dos desafios na
esfera pedagógica no que versa à implementação do componente cur-
ricular na UFRPE (SANTANA, 2019).
124
Vestígios de que a Educação das Relações Étnico-Raciais é abor-
dada em todo o documento são identificados desde a base legislativa
do PPC. Podemos confirmar isto, quando, posteriormente, são exigi-
das competências, atitudes e habilidades por parte dos/as profissio-
nais formados/as no curso e delas emerge a categoria geral Formação
Profissional que traz o posicionamento crítico diante das formas de
discriminação racial como subcategoria da categoria específica Com-
petências, atitudes e habilidades. Assim:
125
teudista no processo de formação de professores/as enquanto desafio
para a promoção de uma educação antirracista (GOMES, 2010).
García (1999) defende que a formação inicial de professores/as
precisa incorporar conhecimentos, competências e atitudes que deem
condições dos/as estudantes/docentes em formação compreenderem
determinadas situações no processo de ensino. O autor ainda advoga
que este processo formativo precisa estimular os/as docentes a refle-
tir, tolerar, aceitar e proteger as diferenças entre os indivíduos e seus
grupos no que se refere às questões de gênero, raça, classe social, ideo-
logia, entre outras. Para que isso seja possível, é preciso que os/as pro-
fessores/as sejam formados/as “no domínio de competências didác-
ticas que lhes permitam desenvolver unidades didácticas e projectos
curriculares onde a dimensão intercultural seja integrada” (GARCÍA,
1999, p. 92).
Questões relacionadas ao processo de Educação das Relações Ét-
nico-Raciais também são postas no PPC a partir de valores e princípios
para o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. As ações do/a li-
cenciado/a precisam ser inspiradas através de valores e princípios que
são projetados como referenciais de conduta do/a profissional em for-
mação, o que nos permite identificar a categoria geral e específica de
análise. Delas emergem duas subcategorias que consistem na inclusão
social e respeito às individualidades sem distinção de raça e; o reco-
nhecimento, valorização e respeito à pluralidade e diversidade cultu-
ral, entre elas a étnico-racial. Desse modo,
126
pluralidade e diversidade cultural e suas diferentes formas de
conhecimento ([6ºp34].RCL.Vpr.pdc).
127
No componente Fundamentos da Educação são propostos o estu-
do de conteúdos programáticos relacionados à Educação e Colonialismo
com ênfase no escravismo e educação. A Educação na Contemporanei-
dade propõe a discussão da Educação Popular, Movimentos Sociais e
sustentabilidade (socioambiental-político, econômico e étnico-cultural)
([7ºp58].COB.Cpo.ecc).
Logo, inicialmente, podemos inferir que o PPC apresenta um
conjunto de componentes curriculares/disciplinas que possibilitam o
estudo de temáticas que podem colaborar para a promoção de uma
educação étnico-racial no ensino de Ciências e Biologia. Essa carac-
terística reafirma o compromisso do curso, impresso no PPC, frente à
política pública educacional identificada na base legislativa do docu-
mento. Assim, a universidade, por sua vez, busca assumir seu compro-
misso social na reparação histórica das desigualdades étnico-raciais.
Entretanto, é preciso que o trabalho no contexto dessas disciplinas
seja direcionado a formação docente em curso, ou seja, com a forma-
ção para o ensino de Ciências e Biologia a fim de que os/as futuros/as
docentes possam considerar a discussão em suas aulas na educação
básica, já que muito se fala na dificuldade em relacionar a temática
com a área das Ciências Naturais.
Ainda em caráter obrigatório a Matriz Curricular é composta
pelo componente Educação Brasileira: Legislação, Organização e polí-
tica que planeja trabalhar conteúdos voltados à políticas educacionais
contemporâneas e direitos humanos a partir das relações étnico-raciais
com base em negros, negras e indígenas ([8ºp68].COB.Cpo.prr).
O componente toma como ponto de partida a análise crítica da
organização da educação brasileira, sem deixar de lado as questões his-
tóricas, políticas, sociais, culturais e econômicas (UFRPE, 2018). Con-
siderando que a legislação educacional comporta a Lei 10.639/2003 e
128
a Lei 11.645/2008, é imprescindível sua valorização quando se estuda
a legislação educacional brasileira. As Diretrizes para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana enfatizam que as instituições de ensino precisam
contar com professores/as que trabalhem conteúdos comprometidos
com a educação de pessoas negras e povos indígenas, estabelecendo
relações de respeito, na tentativa de corrigir posturas e palavras que
resultem na discriminação racial (BRASIL, 2004). Isto pode se tornar
possível quando partimos de um processo educativo cuja base é o en-
sino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Como já mencionado, o curso de Licenciatura em Ciências Bio-
lógicas, da UFRPE, conta com o componente curricular Educação das
Relações Étnico-Raciais que está inserido no Núcleo de Conteúdos Pe-
dagógicos em caráter obrigatório. Sua ementa é organizada por três
principais tópicos. No primeiro são propostas discussões acerca da
formação das identidades brasileiras por meio do estudo de elementos
históricos, da relação África e Brasil, das relações sociais e étnico-ra-
ciais com um olhar para o preconceito, discriminação e racismo; a luta
dos Movimentos Sociais Negros, quilombolas e indígenas no país tam-
bém é abordada. O segundo tópico traz a historicidade, resistência e
interseccionalidade de gênero, classe e raça como itens balizadores de
uma Educação das Relações Étnico-Raciais. A pluralidade étnico-ra-
cial no Nordeste, com destaque para Pernambuco, também é foco de
discussão e compõe o terceiro tópico, estando relacionada às especifi-
cidades e situação socioeducacional, multiculturalismo, intercultura-
lismo e transculturalismo crítico. Dentro destes tópicos, são apresen-
tados os seguintes conteúdos programáticos:
129
blemática étnico-racial brasileira;aConstrução do Mito da
Democracia Racial- uma Pedagogia do Silêncio.Movimentos
Sociais, Relações Étnico-Raciais e Educação: Discriminação,
Racismo e a Educação nos espaços institucionais e forma-
tivos brasileiros;Iniciativas, Lutas e Experiências Educativas
dos Movimentos Sociais Negros e Quilombolas; Interseccio-
nalidades de gênero, classe e raça: perspectivas do feminismo
negro;Iniciativas, Lutas e Experiências Educativas dos Movi-
mentos Sociais dos Povos Indígenas;Iniciativas, lutas e ex-
periências de outras expressões étnico-raciais.Educação das
Relações Étnico-Raciais na Contemporaneidade: Educação
e Africanidades: a Lei 10.639/03 e as Diretrizes Curriculares
para Educação das Relações Étnico-Raciais;Educação e po-
pulações indígenas: a Lei 11.645/08;Políticas de Ação Afir-
mativa na Educação. Interculturalidade, Multiculturalismo
e Transculturalismo ([11ºp108].COB.Cpo.eer, grifo nosso).
130
do conhecimento afro-brasileiro e africano interferem no processo
educativo por parte do/a professor/a, sendo necessário aproximarmos
sua área de conhecimento com discussões que resultem na Educação
das Relações Étnico-Raciais no ensino de Ciências e Biologia em uma
perspectiva crítica, ao ponto de questionar as bases que fundamentam
determinadas epistemologias na educação científica.
Neste sentido, consideramos relevante a afirmação de Barzano e
Melo (2019), quando os autores colocam a necessidade de desconstruir
o currículo do ensino de Biologia, tanto das escolas como das universi-
dades, possibilitando outros enfoques metodológicos e epistemológi-
cos com base na discussão e visibilidade das vozes de resistência que,
muitas vezes, são subalternizadas. Corroborando com os autores, rea-
firmamos que é preciso contar outras histórias e trazer outros olhares
para o currículo colonizado da Biologia na busca de descolonizá-lo a
partir da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e os conheci-
mentos construídos pela intelectualidade negra.
Observamos que a ementa do curso de Licenciatura em Ciên-
cias Biológicas da UFRPE, assim como os conteúdos para estudo,vem
propor um processo educativo no campo das relações étnico-raciais
por meio de tópicos que dialogam entre si, apresentando potenciali-
dades formativas capazes de formar docentes críticos/as, na intenção
de contribuir na luta contra o racismo e todas as atrocidades que aco-
meteram e ainda acometem socialmente a população negra e indígena
pelo viés epistemológico, ontológico e axiológico.
Ao discutir sobre os paradigmas dos PPC das licenciaturas da
UFRPE para implementação do referido componente curricular, San-
tana (2019) afirma que os conhecimentos trabalhados no componente
“possibilitam a reflexão e ação diante da necessidade de construção
de uma auto-afirmação dos sujeitos, do ponto de vista da construção
131
de sua identidade, como também favorece a reflexão sobre estratégias
de enfrentamento das desigualdades sociais e do racismo” (SANTA-
NA, 2019, p. 103). Em comparação às demais licenciaturas, o curso de
Ciências Biológicas da UFRPE tem cumprido com o proposto pela Re-
solução 217/2012, quando adaptou seu PPC e passou a ofertar o com-
ponente curricular como obrigatório.
Outro ponto importante é a presença das Leis 10.639/2003 e
11.645/2008 nos conteúdos do referido componente, o que contribui
para inserir a questão étnica e racial na Educação Básica, a partir da
formação inicial dos/as professores/as de Ciências e Biologia. Segundo
Santos e Coelho (2015), a legislação mencionada é considerada como
um mecanismo que vem contestar a ausência da história e cultura afri-
cana, afro-brasileira e indígena no currículo escolar (SANTOS e COE-
LHO, 2015) e, sem dúvidas, na formação docente.
Na categoria geral Componente curricular obrigatório surgem
duas categorias específicas que trazem indícios de estudos que podem
colaborar para a Educação das Relações Étnico-Raciais na Licenciatu-
ra em Ciências Biológicas da UFRPE. Essas categorias são Núcleo de
Prática como Componente Curricular em caráter obrigatório e Núcleo
de Conteúdos Específicos em caráter obrigatório. Consequentemente,
surgem três subcategorias que compõem propostas de componentes
curriculares com possibilidades de discutir relações étnico-raciais.
O Projeto Temático Integrador 3 é um componente curricular que
apresenta em sua ementa a proposta de refletir sobre os conceitos de
espaços formais, não formais e informais para o ensino de Ciências e
Biologia e preconiza o estudo do levantamento dos saberes etnobiológi-
cos e etnoecológicos de comunidades locais e seu potencial para o desen-
volvimento de projetos de alfabetização científica. Posteriormente, seus
conteúdos propiciarão ao/a discente em formação a análise das dimen-
132
sões epistemológicas, políticas e estéticas da aprendizagem em espaços
não formais, focando na diversidade de saberes e conhecimento científico
([10ºp93].COB.Pco.etn).
Autores como Verrangia (2009) e Silva e Ramos (2019) apontam
a etnobiologia e etnoecologia como etnociências que colaboram para
o planejamento de práticas pedagógicas que visem considerar a diver-
sidade cultural, entre elas a étnico-racial, através do diálogo estabele-
cido por conhecimentos tradicionais de matriz africana e conhecimen-
tos científicos.
Especificamente, Silva e Ramos (2019) investigaram conhe-
cimentos tradicionais de estudantes quilombolas, da Povoação São
Lourenço, Goiana-PE, sobre a biodiversidade local (ecossistema man-
guezal). A partir destes conhecimentos, foram planejadas sequências
didáticas para o ensino de Ciências, que contribuíram para a aprendi-
zagem dos/as discentes e para a formação continuada de professores/
as, uma vez que se tratava de uma prática contextualizada com a cul-
tura quilombola, algo propício para a modalidade da Educação Escolar
Quilombola. Este exemplo pode ser trabalhado em qualquer contexto,
seja ele tradicional ou não, já que os conhecimentos de matriz africana
e afro-brasileira potencializam um ensino que parte da ótica da popu-
lação negra, colaborando para contar uma história negada há séculos.
O PPC em análise possibilita o estudo teórico dos saberes etno-
biológicos e etnoecológicos que, possivelmente, subsidiarão uma prá-
tica pedagógica no ensino de Ciências e Biologia comprometida com a
diversidade cultural e étnico-racial, fato que se faz ausente na realida-
de da Educação Básica, conforme indicam Silva e Ramos (2019).
Como complementação dos conteúdos pedagógicos, identifica-
mos dois componentes curriculares na categoria Núcleo de Conteúdos
Específicos. No componente Conservação da Natureza e Biodiversidade
133
é designado o estudo da relação homem-natureza, mais especificamen-
te o homem moderno e os povos tradicionais ([9ºp89].COB.Ceo.hmt).
Populações quilombolas e indígenas, por exemplo, sempre contribuí-
ram para a conservação da natureza e biodiversidade. Ao estabelecer
relações (positivas) entre o homem moderno e os povos tradicionais, o
curso pode agregar novas possibilidades de inserir na escola a História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena a partir da formação docente.
Porém, esta relação entre homem moderno e povos tradicionais
não pode alimentar a ideia de hierarquização e inferiorização que a
sociedade impôs para as populações tradicionais, uma vez que o povo
negro e indígena sempre contribuiu para a constituição social em di-
versas áreas do conhecimento, principalmente na ciência e tecnologia,
trazendo inovações científicas e tecnológicas que o homem considera-
do “moderno” não havia feito. Ao contrário disso, ele se apropriou de
algo que não foi de sua competência e utilizou de seu lugar de privilé-
gio para inferiorizar pessoas negras e indígenas, já que a modernida-
de se encarregou de estereotipar as pessoas de seu grupo como sendo
homem cis, branco, heterossexual e de classe social alta. Portanto, os
povos tradicionais, em especial, ultrapassam a modernidade tendo em
vista que se tornam a base e o corpo da humanidade.
Na mesma categoria geral, temos a Genética de Populações e Evo-
lução enquanto componente obrigatório que oportuniza discussões
em torno das questões étnico-raciais, ao propor o estudo da especiação
com conceitos de espécie, subespécie e raça, além de propor o debate so-
bre a variabilidade genotípica e fenotípica da cor da pele e da sexualidade
humana ([12ºp132).COB.Ceo.grc).
Na oportunidade, o componente possibilita estudar questões
extremamente importantes no campo étnico-racial, como a variabili-
dade genotípica e fenotípica da cor da pele, podendo estabelecer dis-
134
cussões acerca do termo raça sob a égide biológica (racismo científico),
tendo em vista que já foi comprovado cientificamente que apenas 1%
dos genes de um indivíduo resulta na transmissão da cor da pele como
também dos olhos e do cabelo (MUNANGA, 2014), não sendo justifica-
tiva para hierarquizar a população negra como indivíduos inferiores.
De acordo com o que afirmam Sepulveda e colaboradores/as
(2019), a variabilidade genética humana pode ser abordada em uma
análise histórica do uso do conceito de raça como forma de dar con-
ta de demandas da Educação das Relações Étnico-Raciais à luz da Lei
10.639/2003 (SEPULVEDA et al., 2019). Percebemos a pertinência da
proposta apresentada neste componente curricular do PPC, na medida
em que o/a licenciando/a poderá articular esses conhecimentos com
discussões tecidas nos demais componentes apresentados anterior-
mente, inclusive a própria Educação das Relações Étnico-Raciais, que
é um componente do curso ofertado no 6º semestre, ou seja, antes da
Genética de Populações e Evolução, que é ofertada no 8º semestre.
Na categoria geral Componente curricular optativo, identifica-
mos duas subcategorias que surgem da categoria específica Núcleo de
Conteúdos Pedagógicos em caráter optativo. Além dos componentes
obrigatórios, o PPC traz o componente Identidade, Cultura e Sociedade,
propondo o estudo da história oral, tradição e crença, e o estudo dos
Movimentos Sociais, como também dos termos raça e etnia enquanto
referenciais históricos e geográficos juntamente com as identidades cul-
turais e a desconstrução histórico/geográfica ([13ºp222].COP.Pop.mre).
Semelhante a este componente, o curso também conta com a In-
trodução à Sociologia, cuja ementa e conteúdos apontam para o estudo
acerca do trabalho, estrutura de classe e desigualdades sociais; Religião
e Educação; Ação Coletiva e Movimentos Sociais; Sexualidade, feminismo
135
e relações de gênero, identidades étnico-raciais e geracionais ([14ºp229].
COP.Pop.rie).
Os dois componentes optativos dentro do Núcleo de Conteúdos
Pedagógicos apresentam temáticas ligadas à questão étnico-racial e
que configuram a proposta de Educação das Relações Étnico-Raciais
em todo o curso. O diferencial é que esses novos componentes trazem
pontos que até então não tínhamos identificado no PPC, que é o estu-
do da tradição e crenças voltadas à relação entre religião e educação,
podendo discutir as religiões de matriz africana que são vítimas de in-
tolerância religiosa, colaborando para que os/as professores/as pos-
sam propor aulas nesta perspectiva. Podemos encontrar um exemplo
no trabalho intitulado “Estratégia didática usando jogo de trilha no
ensino de Biologia com a inclusão das Religiões de Matrizes Africanas
na sala de aula”, realizado por um grupo da Universidade Estadual da
Paraíba e publicado nos anais do II Congresso Internacional de Edu-
cação Inclusiva; II Jornada Chilena Brasileira de Educação Inclusiva,
que teve o objetivo de “difundir na sala de aula a designação de cada
divindade africana (orixás) e suas respectivas formas de manifestação,
como também a vasta cultura das folhas e ervas utilizadas em seus
rituais e que tanto fornece material para a nossa farmacopeia atual”
(COSTA, et al., 2016, on-line).
Os componentes curriculares trazem também os termos raça e
etnia como referenciais históricos e geográficos que possibilitam uma
reflexão crítica que toca na História e Cultura Afro-Brasileira e Indí-
gena com um olhar para as questões geográficas, inclusive as que têm
relação com o Movimento Social Negro, como a demarcação de terras
quilombolas.
As relações de gênero são outro ponto pertinente no PPC. O
curso permite, por meio do documento, que os aspectos em torno da
136
sexualidade, feminismo e relações de gênero estejam presentes na for-
mação inicial de professores/as de Ciências e Biologia. Sua abordagem
na Biologia consente explorar, por exemplo, as inúmeras cientistas
e intelectuais negras que contribuíram e contribuem para a ciência
e tecnologia no Brasil e no mundo, como forma de valorização, res-
peito e reconhecimento da intelectualidade feminina, principalmen-
te de mulheres negras, conforme destaca a Profa. Dra. Bárbara Carine
Soares Pinheiro, do Instituto de Química da Universidade Federal da
Bahia, no texto Educação em Ciências na Escola Democrática e as Re-
lações Étnico-Raciais (PINHEIRO, 2019) e em seu livro @Descoloni-
zando_Saberes: Mulheres Negras na Ciência (PINHEIRO, 2020).
Por fim, apresentamos a categoria geral Estágio Curricular Su-
pervisionado. Dela surgiram as subcategorias: Superação de exclusões
étnico-raciais, com base nas diretrizes para formação de professores e
Consciência da diversidade étnico-racial, com base nas diretrizes para
formação de professores. Ambas estão imersas na categoria específica
Princípios legais do Estágio Curricular Supervisionado.
Por se tratar de um curso de licenciatura, o PPC reserva um es-
paço para tratar do Estágio Supervisionado Obrigatório (ESO), que é
indispensável para formação inicial de professores/as. Como o docu-
mento considera a Resolução nº 2/2015, que define as Diretrizes Cur-
riculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada em Nível
Superior de Profissionais do Magistério para a Educação Básica (BRA-
SIL, 2015), o curso apresenta princípios legais como ponderações que
devem ser consideradas para o desenvolvimento do Estágio Curricular
Supervisionado, trazendo como referência orientações mencionadas
nas diretrizes de formação docente como base legal para o ESO, sendo
elas:
137
Identificar questões e problemas socioculturais e educacionais,
com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de
realidades complexas, a fim de contribuir para a superação de
exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, reli-
giosas, políticas, de gênero, sexuais e outras ([15ºp247].ECS.
Pec.see) e demonstrar consciência da diversidade, respeitando
as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial,
de gêneros, de faixas geracionais, de classes sociais, religio-
sas, de necessidades especiais, de diversidade sexual, entre
outras ([16ºp247].ECS.Pec.cde).
138
Concordamos com a afirmação de Bazzo e Scheibe (2019), quan-
do defendem a necessidade de combatermos este documento devido
à evidência de seus pressupostos que descaracterizam a formação de
professores/as que as entidades representativas vêm defendendo em
um longo período de tempo. Segundo as autoras, esta legislação fun-
damenta-se em princípios incompatíveis com o proposto na Resolu-
ção de 2015.
Entretanto, o PPC em análise encontra-se ancorado nas dire-
trizes de 2015, o que favorece o trabalho em torno da Educação das
Relações Étnico-Raciais no ESO e, consequentemente, na formação
inicial de professores/as de Ciências e Biologia. Não queremos dizer
que o PPC do curso encontra-se fora das políticas públicas educacio-
nais, pois ele traz um olhar da Base Nacional Comum Curricular com
orientações para a formação docente, sem adentrar na BNC-Formação,
já que este se trata de um documento aprovado posteriormente à re-
formulação do PPC da Licenciatura em Ciências Biológicas da UFRPE.
Superar as exclusões étnico-raciais e demonstrar consciência
das diferenças étnico-raciais, passando a considerá-las e respeitá-las
são importantes referências para o/a licenciando/a que chega às es-
colas da Educação Básica para realização de seus estágios. Barreto,
Oliveira e Araújo (2015) consideram o ESO como um importante com-
ponente curricular, pois é nele que o/a licenciando/a refletirá “sobre
os caminhos da educação, as relações cotidianas em sala de aula, a
construção de melhores estratégias de ensino, contribuindo, assim, no
fortalecimento do licenciando quanto ao seu futuro campo profissio-
nal” (BARRETO; OLIVEIRA; ARAÚJO, 2015, p. 53).
Deste modo, o/a discente em formação inicial precisará ter cons-
ciência de determinados problemas que possivelmente serão identifi-
cados no campo profissional, inclusive os que dizem respeito às rela-
139
ções étnico-raciais. A partir dos conhecimentos construídos em sua
formação inicial, o/a estudante poderá contribuir na solução dos pro-
blemas através do ensino de Ciências e/ou Biologia, por intermédio de
estratégias de ensino adequadas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo nos permite afirmar que a Educação das Relações Étni-
co-Raciais é proposta no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas
da UFRPE por meio de componentes curriculares obrigatórios e opta-
tivos, com ênfase nos componentes que estão no Núcleo de Conteúdos
Pedagógicos e que se relacionam e se complementam em relação a ou-
tros componentes do Núcleo de Prática como Componente Curricular,
do Núcleo de Conteúdos Específicos e dos Estágios Supervisionados
Obrigatórios.
Os achados nos levam a inferir que a proposta de Educação das
Relações Étnico-Raciais encontra-se bem articulada com temáticas e
pontos importantes e necessários para a formação inicial de professo-
ras e professores de Ciências e Biologia. Pela ótica curricular, o docu-
mento cumpre com o disposto na Lei 10.639/2003 e na Lei 11.645/2008
acerca da obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Indígena. Além de ofertar um componente dedicado exclusiva-
mente para discutir relações étnico-raciais, o curso propõe o estudo
de conteúdos em outros momentos, durante a formação inicial do/a
professor/a de Ciências e Biologia.
A partir do PPC, o curso atende à sua demanda política e curri-
cular, que passa a assumir uma identidade no que se refere à formação
docente comprometida com a Educação das Relações Étnico-Raciais
para o ensino de Ciências e Biologia no Brasil, que, mesmo ocorrendo
em cumprimento da legislação educacional, contribui no processo for-
140
mativo, permitindo ao/a egresso/a a sensibilização acerca dos desafios
de educar para as relações étnico-raciais na escola, a partir do ensino
de Ciências e Biologia.
É importante mencionarmos a continuidade do estudo, duran-
te o doutoramento em Ensino de Ciências e Matemática do primeiro
autor deste capítulo, através da pesquisa no âmbito do curso de Licen-
ciatura em Ciências Biológicas da UFRPE com o objetivo de analisar
como a proposta apresentada no PPC tem sido colocada em prática na
formação inicial de professoras e professores de Ciências e Biologia,
já que a efetivação da mesma se dá através do processo formativo na
referida universidade.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pela bolsa de doutorado concedida ao primeiro autor do ca-
pítulo no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciên-
cias; Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade
Federal Rural de Pernambuco.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Monica Lopes Folena. O quefazer da educação ambiental
crítico-humanizadora na formação inicial de professores de bio-
logia na universidade. 2012. 240 f. Tese (Doutorado em Educação)-
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.
141
orientadores. Revista Tempos e Espaços em Educação, v. 8, n. 16, p. 51-
60, 2015.
142
nar antirracista a partir do estudo da melanina. In: PINHEIRO, Bárbara
Carine Soares; ROSA, Katemari. (orgs.). Descolonizando saberes: a
lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências. São Paulo: Editora Livraria da
Física, 2018, p. 75-88.
143
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das nações de
raça, racismo, identidade e etnia. 3º SEMINÁRIO NACIONAL RELA-
ÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO, 3., Rio de Janeiro, RJ. Anais... Rio de
Janeiro, 2014.
144
SILVA, Joaklebio Alves; ARAÚJO, Monica Lopes Folena. Abordagem
das Relações Étnico-Raciais nas Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para a Formação Inicial e Continuada em Nível Superior de
Profissionais do Magistério para a Educação Básica. Revista Educa-
ção, Cultura e Sociedade, v. 10, n. 3, p. 355-370, Ed. Especial, 2020.
145
C A P Í T ULO 5
1. INTRODUÇÃO
Quando nos dedicamos a compreender a evolução histórica do
ensino de ciências no Brasil, fica evidente que ele atende também a
fatores históricos, políticos e econômicos. São vários os textos, artigos
e trabalhos que fazem menção à famosa linha do tempo de Krasilchk
(1987), complementada e enriquecida pelo trabalho de Nascimento,
Fernandes e Mendonça (2010), que mostra a trajetória do ensino de
ciências brasileiro e de que maneira ele responde ao que acontecia no
cenário nacional e mundial.
Neste sentido, o período após a Segunda Guerra Mundial ao
mesmo tempo que mudou o mundo como um todo, também estendeu
suas influências no ensino de ciências, uma vez que frente a todo o
“avanço” científico e tecnológico que os tempos de guerra demandam
(sim, Ciência e Tecnologia também respondem aos anseios armamen-
tistas!), “os cientistas que ocupavam uma posição de prestígio, viam
146
no campo educacional uma importante área potencial de influência”
(KRASILCHIK, 1987, p. 6).
A autora explica que, no Brasil, o ensino de ciências ainda não
havia incorporado as grandes descobertas do campo de conhecimento
e, como consequência, era memorístico, livresco e repleto de informa-
ções desatualizadas.
As modificações começaram a surgir com o Instituto Brasileiro
de Educação, Ciência e Cultura, em São Paulo, que agregava professo-
res universitários preocupados em melhorar o ensino de ciências atua-
lizando o conteúdo ensinado e preparando materiais de laboratório
para as aulas.
Nascimento, Fernandes e Mendonça (2010) apontam que essa
influência do desenvolvimento científico e tecnológico no ensino de
ciências continuou pelas décadas de 1960 e 1970, quando o foco era
o “método científico”, neutro, objetivo e impessoal, ou seja, “a ciência
somente poderia contribuir para o bem-estar dos sujeitos se deixasse
de lado as questões sociais para buscar exclusivamente as verdades
científicas” (NASCIMENTO; FERNANDES; MENDONÇA, 2010, p. 226).
Não é nosso objetivo replicar essa linha do tempo, uma vez que
esses autores citados (e tantos outros) já demarcaram muito bem essa
trajetória. Nosso intuito, no entanto, é reafirmar que, apesar de falar-
mos de linha do tempo, esses marcos não são tão lineares assim, como
tudo na vida, e o ensino de ciências é vivo ou, pelo menos, desejamos
que seja, na medida em que possa adaptar-se às necessidades formati-
vas da população e às demandas sociais.
Neste sentido, ao longo do tempo, o ensino de ciências vai se
modificando, evoluindo de um ensino focado em formar elites para os
campos da Ciência e Tecnologia; compreendendo depois que o dito
cidadão comum também deveria conhecer a Ciência e seus produtos;
147
vivenciando uma Ditadura Militar (e tudo o que isso implica para a so-
ciedade); buscando formar o trabalhador e, finalmente, assumindo seu
papel social de formar cidadãos capazes de compreenderem a Ciência
e a Tecnologia e posicionarem-se de forma autônoma e crítica frente
a essas questões.
Para essa última função, dentre vários outros fatores, desta-
camos a inserção de questões socialmente relevantes no ensino de
ciências. Dentre os movimentos que surgem com esse objetivo, res-
saltamos aquele que temos nos debruçado como grupo de pesquisa,
o Movimento CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Também vamos
examinar mais de perto uma dessas questões sociais que têm desper-
tado nossa atenção: a discussão das relações étnico-raciais.
148
vas, a partir do ano de 2000 a sua estratégia de ação se volta
para a implementação de políticas sociais específicas quem
contemplem a raça; ou seja, políticas de igualdade racial.
(GOMES, 2017, p. 50).
149
Sabemos que a existência de uma lei, por si só, não faz com que
essas discussões adentrem a escola e defendemos aqui, junto a tan-
tos outros pesquisadores, a necessidade de formação adequada para os
professores, para que a abordagem dessas questões não seja pontual
no Dia da Consciência Negra, tendo como foco somente a escravização
do povo negro e a insistência (ou desconhecimento?) em invisibilizar
a História da África, como se ela começasse apenas depois da coloniza-
ção, ignorando, por exemplo, todas as produções, inclusive científicas
e tecnológicas, do povo negro.
E é exatamente nessa última questão que nosso grupo de pes-
quisa, o TAEC (Temas Atuais para o Ensino em Ciências), tem se de-
bruçado, buscando responder a perguntas como: qual tem sido o papel
do ensino de ciências nesse contexto? De que forma nós, professores
e pesquisadores da área, estamos nos envolvendo e, principalmente,
envolvendo os conhecimentos das Ciências da Natureza com as dis-
cussões das relações étnico-raciais? Como estamos viabilizando que o
ensino de ciências retome seu papel social na formação de cidadãos?
Não discutimos a necessidade de se aprender os conhecimen-
tos clássicos da Ciência, que foram desenvolvidos pela humanidade ao
longo do tempo. Ao contrário, o que propomos aqui é:
1. Olhar para esses conhecimentos sob um prisma diferente,
não como verdades absolutas, de propriedade da Europa, tida
como berço de toda cultura e saber. Ao invés disso, permiti-
mo-nos olhar, por exemplo, para os conhecimentos cientí-
ficos e tecnológicos, de matriz africana e afrodescendente,
sistematicamente silenciados nos currículos escolares;
2. Retomar o papel social do ensino de ciências, preocupado em
ensinar biologia, física e química, mas atrelado a discussões
de questões socialmente relevantes, no entendimento de
150
que fatores não científicos, como os políticos, econômicos,
culturais e sociais, influenciam e sofrem influência dos co-
nhecimentos sobre Ciência e Tecnologia.
Para atender a tudo isso, escolhemos a Educação CTS (Ciência-
-Tecnologia-Sociedade) para viabilizar a entrada desses fatores na
escola e o entendimento de que a Ciência não é neutra, obedecendo
somente ao desejo de descobertas de uma elite de cientistas.
Neste sentido, atrelar a discussão das relações étnico-raciais ao
ensino de ciências representa uma forma também de evidenciar que
se a Ciência uma vez já exerceu seu papel na instituição do racismo,
hoje, tem toda a obrigação de ajudar a desconstruí-lo, uma tarefa que
perpassa necessariamente a educação.
Entendemos que os estudos da genética, há muito tempo, já
mostraram que o conceito biológico de diferentes raças humanas não
se sustenta, porém, concordamos com Cruz (2010, p.33) quando afir-
ma que “a raça continua sendo um escopo seguro pelo qual as pessoas
continuam a se identificar e serem identificadas” e, complementamos,
discriminadas.
151
No entanto, o que percebemos é que, de maneira geral, os cursos
de formação inicial e continuada ainda têm se baseado em um modelo
de racionalidade técnica, nos quais os professores são vistos apenas
como técnicos responsáveis pela aplicação ou transmissão dos conhe-
cimentos científicos, ou ainda reprodutores de atividades idealizadas
pela academia (FRANCO; 2002; ROCHA, 2014; DINIZ-PEREIRA, 2014;
SLONSKI; ROCHA; MAESTRELLI, 2017; COSTA; OLIVEIRA; AZEVE-
DO, 2018). Isso faz com que as licenciaturas nem sempre se coloquem
como um espaço para construção e/ou ampliação de conhecimentos
e troca de experiências pelos professores (FREITAS; VILLANI, 2002;
OLIVEIRA; BASTOS, 2006; GATTI; 2008; IZA et al, 2014; ANDRÉ,
2015).
Dessa forma, torna-se necessário que a formação inicial e con-
tinuada desses profissionais seja pautada em um modelo de raciona-
lidade crítica, na qual haja espaço para investigações e reflexões so-
bre suas crenças e práticas pedagógicas, assim como sobre questões
de cunho científico, tecnológico e social, a fim de tentar romper com
visões simplistas e neutras relacionadas à Ciência, à Tecnologia e ao
ensino de ciências (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2006; SERRA, 2012; DI-
NIZ-PEREIRA, 2014; SEIXAS; CALABRÓ; SOUSA, 2017).
Prudêncio (2013) assevera que a falta de criticidade dos profes-
sores em relação à discussão de questões científicas e tecnológicas
está associada, principalmente, ao fato de que eles são formados a par-
tir de visões neutras e descontextualizados de Ciência e Tecnologia,
as quais, consequentemente, são incorporadas em suas práticas peda-
gógicas, influenciando diretamente na formação dos educandos, que
passam a ter o mesmo olhar sobre CT. A autora ainda pontua que se
almejamos que futuros professores pensem e ensinem sobre Ciência e
Tecnologia de forma não neutra e crítica, é necessário discutir tais as-
152
pectos dentro dos cursos de licenciatura, e não somente na formação
continuada.
A adoção de currículos enviesados na perspectiva CTS permite
que o professor suscite, na sala de aula, discussões contextualizadas
sobre questões éticas, científicas, tecnológicas, sociais e epistêmicas,
o que pode contribuir significativamente para a formação crítica e ci-
dadã dos educandos (AZEVEDO et al., 2013; KAPP; MIRANDA; FREI-
TAS, 2014). Contudo, para que tal proposta curricular concretize-se
no contexto da sala de aula, é preciso que haja comprometimento por
parte das diferentes instâncias educativas, dentre elas, e talvez pri-
meiramente, as de ensino superior, em discutir criticamente as inter-
-relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade.
Expresso em outros termos:
153
blematização de questões sociais, políticas, científicas e tecnológicas
(RIBEIRO; SANTOS; PRUDÊNCIO, 2020).
Porém, para que as práticas educativas CTS sejam consolida-
das no contexto da sala de aula, é preciso que tal formação esteja em
conformidade com melhorias nas condições de trabalho do professor
da educação básica, sobretudo, no que se refere ao plano de carreira,
redução da jornada de trabalho em sala de aula e melhores salários
(KUENZER, 2011; NACARATO, 2016). Além disso, é importante des-
tacar que as pesquisas colaborativas envolvendo formadores univer-
sitários e professores podem favorecer também o desenvolvimento de
práticas CTS no intuito de transpor seus preceitos para a sala de aula,
viabilizando a construção de propostas de ensino compatíveis com a
realidade escolar (RIBEIRO; SANTOS; PRUDÊNCIO, 2020; SANTOS,
2021).
As diversas realidades escolares estão imersas em contextos so-
ciais envolvidos com diferentes situações de opressão. Portanto, os
professores precisam desde cedo pensar sobre a importância de traba-
lhar questões socialmente relevantes no ensino de ciências e na for-
mação cidadã dos estudantes (KRASILCHIK; MARANDINO, 2007).
A fim de debater a interface das RER e Educação CTS, descreve-
mos uma experiência de intervenção realizada por meio de um projeto
interdisciplinar na Educação Básica. Tal abordagem didática foi plane-
jada nas disciplinas dos Módulos Interdisciplinares para o Ensino de
Biologia (MIPEB), que equivalem às 400 horas obrigatórias de Prática
como Componente Curricular (PCC) no currículo do curso de Licencia-
tura em Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC), em Ilhéus/Bahia.
Com base nas discussões sobre interdisciplinaridade no ensino
de ciências, autonomia dos estudantes, questões socialmente rele-
154
vantes para serem levadas à sala de aula, especialmente sobre RER, e
a partir do levantamento de temáticas significativas advindas da ob-
servação do entorno da escola (GIANOLLA, 2008; GOMES, 2003; FA-
ZENDA, 2008; FREIRE, 1996), propusemos um projeto de intervenção
intitulado Ciência Fio a Fio, que explorou o tema Ciência do Cabelo12.
Esse tema foi sugerido em decorrência da grande quantidade
de salões de beleza na comunidade da escola alvo, o que permitiria
uma abordagem interdisciplinar de diferentes áreas do conhecimento,
principalmente da Química, Física e Biologia, a partir da questão do
tratamento dos cabelos. Acreditávamos que esse tema proporcionaria
discussões sobre RER, com possibilidade de explorar questões socio-
culturais e evidenciar a importância do ensino de ciências para a supe-
ração de preconceitos, combate à discriminação e luta pela equidade
social, colaborando com a construção de identidades positivas.
O cabelo é um importante elemento de ressignificação cultural.
O cabelo crespo, por exemplo, é um marcador emblemático, que, de-
pendendo da forma como é trabalhado, pode ser valorizado ou inferio-
rizado (GOMES, 2003; PINHEIRO, 2016).
Porém, dificilmente discussões dessa natureza adentram a sala
de aula, pois:
1 RIBEIRO, K. S.; SANTOS D. F.; GOMES, T. O.; SANTOS, D. W. C.; MACEDO, T. S.; PRUDÊNCIO, C. A. V.
Contribuições Formativas Do Projeto Interdisciplinar? Ciência Fio A Fio?In: JORNADA BAIANA DE BIO-
LOGIA – EaD (JORNABIO), 6, 2019 Trabalho apresentado na forma de comunicação oral no evento.;
2 SIMPÓSIO DE BIOLOGIA DO SUL DA BAHIA (SIMBIO), 14, 2019, Ilhéus. Resumo Expandido... Ilhéus:
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), 2019.
155
Essa seria uma forma, continua a autora, de um corpo encontrar-
-se no meio de dois extremos: de um lado o “negro”, não desejável e
não reconhecido como belo, e, de outro, o “branco”, padrão de beleza
ideal.
A questão é que quando (algo que já é raro) o corpo negro aden-
tra a escola, ele o faz a partir de uma abordagem exclusiva de conceitos
científicos das Ciências da Natureza, dentre eles: a questão da melani-
na, os tipos celulares, a fisiologia capilar, a genética, os produtos quí-
micos de alisamento e influências da temperatura. Assim, em nosso
projeto de intervenção, buscamos discutir conceitos da Ciência, o que
é nossa obrigação como professores de ciências, mas também trazer
para a sala de aula questões como identidade, preconceito, discrimina-
ção racial e padrões de beleza, que não podem ser desarticulados dos
conhecimentos científicos, a exemplo do que defende Freire (1992):
156
ácido básico; Culinária capilar; Em terra de chapinha, a física é rainha;
Por que meu cabelo é assim e Musicalizando com o cabelo.
Nas atividades da oficina Meu cabelo ácido básico, a estrutura
do fio foi elucidada, utilizando dois modelos didáticos prontos, um de
pele e outro do fio de cabelo, além de imagens esquemáticas da orga-
nização biológica estrutural de ambos. Com base nessas representa-
ções e explicações, os alunos construíram modelos tridimensionais do
cabelo, utilizando massinhas de modelar para que compreendessem
a estrutura biológica do fio de cabelo (organizado em cutícula, córtex
e medula), além das células e elementos presentes em cada camada
constituinte da pele.
Em seguida, os alunos mensuraram o potencial hidrogeniônico
(pH) de shampoos, condicionadores e máscaras capilares, por meio
de um indicador ácido/básico, realizando relações entre escala de pH
e efeito desses produtos. Outro experimento realizado foi a descolo-
ração de uma porção de cabelos (coletada em escovas e colocada em
saquinhos de plástico), utilizando pó descolorante e água oxigenada.
Tais atividades contribuíram para a discussão sobre a ordem de uso
dos produtos capilares (primeiro xampu, depois máscara e, por último,
condicionador), reversibilidade do processo de coloração em condi-
ções naturais, compreensão do conceito de pH, células, anatomia do
fio de cabelo e padrões de beleza.
Na oficina Culinária capilar, foram exploradas as propriedades
e as receitas de alguns produtos caseiros, comumente utilizados no
tratamento capilar. Para fomentar a discussão, fizemos com os alunos
um jogo denominado Mito ou Verdade, no qual, a partir de perguntas
sobre o efeito de determinados ingredientes, como, por exemplo: óleo
de coco para nutrir os fios; Coca-Cola para hidratar e dar brilho ao ca-
belo; água de arroz para combater a queda capilar; óleo de rícino para
157
estimular o crescimento, entre outros, os alunos tinham que dizer se a
afirmação era verdadeira ou um mito.
A atividade teve como objetivo explorar os saberes populares, os
conhecimentos produzidos e validados a partir de pesquisas científi-
cas e princípios ativos dos ingredientes mencionados. Apesar de tra-
balhar o respeito ao saber dito popular e sua diferença quanto ao saber
científico, o foco dessa oficina ainda foi a validação do conhecimento
científico, já que houve mobilização da curiosidade dos alunos acer-
ca dos métodos científicos para estudo das substâncias e princípios
ativos com ação benéfica para o fio, além de estudos relevantes para
produção de produtos capilares eficazes na indústria estética.
Em terra de chapinha, a física é rainha foi uma oficina em que os
conceitos científicos da Física foram abordados a partir da análise das
situações de uso da chapinha para alisar os cabelos e que conseguiu
incorporar algumas questões sobre RER. Por meio do jogo de cartas,
denominado Duelo de pranchas, no estilo Super Trunfo, foram aborda-
dos os conceitos científicos utilizando cartas que continham informa-
ções sobre temperatura, tempo de aquecimento, voltagem, consumo
de energia, emissão de íons e potência de diferentes marcas de cha-
pinhas. A partir dessas informações, os alunos tinham que escolher o
aparelho menos agressivo aos fios, por exemplo.
As questões sociais foram discutidas utilizando cartas curinga,
com perguntas relacionadas a padrões estéticos impostos pela mídia,
como: você acha que a mídia influencia as pessoas a alisarem os ca-
belos? O que é um cabelo bonito? Você já fez ou conhece alguém que
tenha feito algum procedimento no cabelo por influência de outras
pessoas? Qual procedimento? Para você pranchar (alisar) os cabelos é
uma submissão aos padrões estéticos ou preferência individual?
158
Além do jogo, foi realizado o experimento Folha na Chapa para
simular os efeitos da chapinha no cabelo, baseado na propaganda da
marca Dove3. Utilizamos folhas de plantas para representar as mechas
do cabelo e realizamos dois procedimentos comparativos: aquecimen-
to após o uso do protetor térmico e sem o uso desse produto. Ao final,
os alunos conseguiram notar facilmente que as folhas sem protetor
térmico ficaram mais danificadas, permitindo discussões sobre a saú-
de e o cuidado com os cabelos, além dos conceitos físicos de calor e
potência.
A oficina Porque meu cabelo é assim, a nosso ver, foi a que mais
enfatizou as RER a partir da discussão sobre estereótipos relacionados
ao cabelo, além da construção identitária dos fios por alguns grupos
étnicos, em especial, a identidade negra. Para isso, foi apresentado o
sistema de classificação capilar criado pelo cabeleireiro André Walker
e a empresa americana Natural Curly, que divide os diferentes cabelos
em categorias: tipo 1 (liso), tipo 2 (ondulado), tipo 3 (cacheado) e tipo
4 (crespo), e depois subcategorias: liso (1A, 1B); ondulado (2A, 2B e
2C); cacheado (3A, 3B e 3C) e crespos (4A, 4B, 4C). De acordo com Cas-
tro e Kabengele (2017, p. 101), tal classificação é baseada na “textura
dos fios, densidade (quantidade de fios por centímetro, ou seja, do ca-
belo mais “ralo” ao mais “cheio”) e espessura (fino, médio ou grosso)”.
Na sequência, foi realizada uma roda de conversa com a leitura
de alguns relatos e depoimentos de pessoas que passaram ou estavam
passando pela transição capilar, a fim de problematizar os padrões de
beleza e a identidade capilar das pessoas, bem como motivar o empo-
deramento, a autoaceitação e o resgate da valorização dos fios naturais.
3 Elaborado com base na propaganda marca Dove: Dove Reconstrução Completa, com orquídeas (ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=DdqNdRsxBa0), material mais indicado para o experimento, pois as
pétalas são mais sensíveis ao calor.
159
Durante a oficina Musicalizando com o cabelo, foi desenvolvida a
dinâmica Dança das cadeiras. Nessa atividade os participantes circula-
vam por uma roda de cadeiras no ritmo de músicas4 que falavam sobre
cabelo. Quem não conseguisse sentar quando a música parasse, deve-
ria responder a uma pergunta referente à canção tocada. As músicas
reproduzidas falavam sobre a diversidade de cabelos, valorização da
identidade negra e expressões preconceituosas, que foram utilizadas
para fomentar discussões sobre as RER, tais como racismo e padrões
de beleza. Cada uma dessas músicas foi escolhida por seu potencial,
ora positivo, ora negativo, para discutir elementos da questão racial, e
o fato de que, por diversas vezes, o racismo, o sexismo, a sensualização
da mulher negra e a violência contra ela estão incorporados em nossa
cultura, no caso em músicas populares.
Por exemplo, com a música “Minha nega na janela”, de Germano
Matias, exploramos a naturalização do racismo, a violência contra a
mulher e o quanto músicas como essas reforçam e reproduzem isso ao
depreciarem a mulher e, explicitamente, descreverem violência física
contra ela. Na música “Preta perfeita”, de Lucas e Orelha, problemati-
zamos a questão da mulher negra como um símbolo da sensualidade
e as raízes históricas dessa compreensão que remontam ao período da
escravidão no Brasil, mostrando a mulher negra como a personificação
do pecado.
Porém, algumas músicas possibilitaram discussões positivas da
identidade negra, relacionadas ao cabelo. Na música “Ó cabelo, cabelo
meu” de Marina Santana, discutimos sobre a diversidade de cabelos:
“Tão belo, tão poderoso, tão eu. Rebelde às vezes, às vezes dócil. Cres-
4 As músicas utilizadas foram: “Ó cabelo, cabelo meu” da Marina Santana; “Cabelo” de Dom Pepo;
“Minha negra na janela” de Germano Matias; “Sarará Miolo” de Gilberto Gil; “Cabelo” de Jorge Ben Jor;
“Preta Perfeita” de Lucas e Orelha; “Respeite minha pele negra” de Marvyn; “Nega do Cabelo duro”
de Luiz Caldas e “Respeitem meus cabelos, brancos” de Chico César, disponíveis no site do Youtube.
160
po, liso, ondulado, pixaim. Jeitoso assim, de qualquer jeito”. Assim como
na música “Respeitem meus cabelos, brancos” de Chico César, na qual
discorremos também sobre a valorização da identidade negra: “res-
peitem ao menos meus cabelos, brancos... Se eu quero pixaim, deixa. Se
eu quero enrolar, deixa. Se eu quero colorir, deixa. Se eu quero assanhar,
deixa. Deixa, deixa a madeixa balançar”
Essa experiência evidenciou a importância de explorar nas aulas
questões do dia a dia, abrindo um espaço para que os estudantes, so-
bretudo, os estudantes negros e com cabelo crespo, pudessem relatar
casos em que foram vítimas de preconceito. Tal consideração fortalece
ainda mais a importância da discussão sobre as RER em todas as disci-
plinas da educação básica, inclusive, as de Ciências da Natureza.
161
ciais e resolvê-los. É deixar de ver a educação como containers hermé-
ticos e torná-la mais abrangente, mais dinâmica e, acima de tudo, mais
reflexiva”.
Como afirmamos anteriormente, essa não é uma tarefa fácil. A
forma como muitas vezes os cursos de licenciatura e nossa prática
docente estruturam-se, ainda em containers de disciplinas, separadas
e descontextualizadas, faz-nos cair, ainda que inconscientemente,
nessa armadilha de ora escolher os conhecimentos científicos, ora as
questões sociais. Foi isso que percebemos nessa experiência: que al-
gumas oficinas abordaram essencialmente conhecimentos científicos
da Biologia, Física e/ou Química, e outras possibilitaram uma maior
inserção das discussões sobre as RER.
Isso mostra a necessidade de voltarmos nossa atenção para a
formação de professores, seja ela inicial ou continuada. Não raro res-
ponsabilizamos os professores quando ainda se prendem a um plane-
jamento didático-pedagógico fechado, dogmático e centrado somente
em conteúdos científicos. No caso das RER, a literatura mostra que, de
maneira geral, essa discussão, quando é trazida para a sala de aula, isso
acontece pelas mãos de professores sensíveis à causa, normalmente
negros, mas, geralmente, de forma pontual em datas específicas e com
caráter quase folclórico:
162
tura e 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. (GUSMÃO,
2013, p. 53).
163
negros. Esse tipo de racismo teve repercussões em todo o mundo, uma
vez que, de acordo com Da Silveira (2017):
164
E por mais que defendamos que a Educação CTS mostra-se um
campo propício para trabalhar as relações étnico-raciais no ensino de
ciências, é preciso que façamos mais uma crítica: a de pensar que ciên-
cia e que tecnologia é essa que estamos trabalhando em nossas aulas.
São os conhecimentos eurocêntricos, que dominam os livros didáticos,
ou são aqueles de matriz africana e afrodescendente? Em que medida
estamos em nossas práticas considerando a gama de conhecimentos
científicos e tecnológicos que foram produzidos pelos povos negros?
Neste momento, estamos inclinadas a responder que nossa visão
de ciência precisa ser mais desconstruída para que possamos (re)co-
nhecer e (re)valorizar os conhecimentos científicos e tecnológicos de
matriz africana e afrodescendente. No entanto, acreditamos que ações
como as que temos desenvolvido em nossas pesquisas, nos cursos de
formação e no diálogo com os professores, têm nos aproximado um
pouco mais do caminho dessa desconstrução.
REFERÊNCIAS
ALFERES, Marcia Aparecida; MAINARDES, Jefferson. A formação con-
tinuada de professores no Brasil. In SEMINÁRIO DO PROGRAMA DE
PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ. Ma-
ringá, 2011. Anais...Maringá, 2011.
165
BEGO, Amadeu Moura; ALVES, Milena; GIORDAN, Marcelo. O plane-
jamento de sequências didáticas de química fundamentadas no Mode-
lo Topológico de Ensino: potencialidades do Processo EAR (Elabora-
ção, Aplicação e Reelaboração) para a formação inicial de professores.
Ciênc. educ. (Bauru), Bauru, v. 25, n. 3, 2019.
166
FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. (Org.). O que é interdisciplinari-
dade. São Paulo: Cortez, 2008.
167
SA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 9, 2013, Águas de Lindóia. Anais...
Águas de Lindóia: ABRAPEC, 2013.
168
NASCIMENTO, Fabrício do; FERNANDES, Hylio Lagná; MENDONÇA,
Viviane Melo de. O ensino de ciências no Brasil: história, formação de
professores e desafios atuais. Revista HISTEDBR On-line, Campinas,
n.39, 2010.
169
SANTOS, Wildson Luiz Pereira; MORTIMER, Eduardo Fleury. Uma
análise de pressupostos teóricos da abordagem C-T-S (Ciência-Tecno-
logia-Sociedade) no contexto da educação brasileira. Ensaio: pesqui-
sa em educação em ciências, v. 2, n. 2, 2000.
170
C A P Í T ULO 6
DECOLONIALIDADE NO ENSINO DE
CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO AMBIENTAL
EM UMA ESCOLA ANISIANA DA BAHIA
B r u n o Ol ive ira Cova
U iré Lo p e s Pe n na
B á r b a ra Ca r in e So a re s P i nhe i ro
1. INTRODUÇÃO
A racionalidade europeia efetivou a leitura oficial da história
da humanidade levando em conta somente a experiência deste conti-
nente e universalizando reflexões alheias às múltiplas possibilidades
do conhecer (LANDER, 2005). Nessa perspectiva, a história tem um
sentido único em direção ao progresso e à modernização, então tudo
que é assimétrico em relação a esse avanço e desenvolvimento é tido
como atrasado, subdesenvolvido e primitivo (PINHEIRO & OLIVEIRA,
2019). A universalização e naturalização desse sistema de dominação
fizeram com que vários povos subalternizados não se reconhecessem
como dominados ou não oferecessem resistência diante da imposição
do dominador (DUTRA et al., 2019).
A supressão dos saberes e imposição do conhecimento dos colo-
nizadores europeus compreende o que Santos & Meneses (2010) clas-
sificaram como “epistemicídio”, ou seja, as epistemologias dos povos
colonizados foram exterminadas, o que fez com que o mundo fosse
171
compreendido sob a ótica eurocêntrica, eliminando a capacidade pró-
pria de cada povo entender o mundo. Para Freire (1980), esse complexo
mecanismo de “desumanização”, ou seja, de destituição da capacidade
humana de tomar consciência de si e do mundo pode ser compreen-
dido como consequência de um processo civilizatório de “invasão cul-
tural”. Tal processo “deforma o ser da sociedade invadida, a ponto deste
se tornar uma caricatura de si mesmo” ou “seres para o outro” (FREIRE,
1969).
A decolonialidade se pauta no enfrentamento às assimetrias de
poder que a diferença colonial implantou no encontro entre culturas
“sur-norte”, através de classificações e identidades forjadas na hierar-
quização e subordinação de determinados grupos: negras/os, indíge-
nas, mulheres, queer – frente a outros: homens, brancos, cisgêneros,
heteronormativos, cristãos (MENEZES et al., 2019). Catherine Walsh
(2009) salienta que a intenção do movimento decolonial não é des-
fazer o colonial ou superá-lo em favor do pós-colonial. A intenção é
provocar um posicionamento contínuo de transgressão e insurgência,
uma reorientação epistêmica, em que “a opção descolonial significa,
também, a aprender a desaprender” e, portanto, reaprender e resgatar
os conhecimentos que foram subjugados e, reconhecê-los (DUTRA et
al., 2019).
Neste sentido, propomos a leitura do ideograma africano San-
kofa: “Nunca é tarde para voltar ao passado e recolher os conhecimentos
que ficaram para trás”. É justamente essa mensagem do Sankofa de va-
lorizar o passado, a memória, a ancestralidade e os saberes negligen-
ciados pelos padrões sociais, que as nossas escolas, o Estado-Nação e
outras instituições insistem em desperdiçar (MIRANDA, 2015).
A área de Educação em Ciências no Brasil se fundamenta desde
sua consolidação no uso majoritário de autores de referência europeus
172
e norte-americanos. Além de uma assimilação dos conhecimentos
científicos eurocentrados, a estruturação dos dispositivos escolares e
a própria metodologia de pesquisa e Ensino de Ciências se baseiam em
modelos e padrões europeus. Isso denuncia as consequências da co-
lonialidade na história da estruturação da Educação no Brasil, e mais
especificamente, na Educação em Ciências (DUTRA et al., 2019).
O encobrimento do outro e o embranquecimento de todes são
projetos políticos que levam à distorção das relações sociedades-na-
tureza. Assim, a Educação Ambiental se configura como uma potência
pedagógica de enfrentamento ao sistema, considerando, a priori, as
epistemologias dos povos que aprenderam a conviver com a natureza
em seus territórios. Menezes et al. (2019) defendem que uma “Educa-
ção Ambiental desde el Sur” desencobre o outro e suas potencialidades
que sempre estiveram presentes, porém silenciadas e violentadas sob
o júdice do “epistemicídio”.
Acreditamos numa cultura escolar que abarque um acervo teó-
rico-metodológico mais diverso, fora dos holofotes da educação he-
gemônica, além de uma docência comprometida com as lógicas das
minorias na busca de alterar o foco educacional. Isso perpassa pela
invocação dos bens mais simples, de valores relacionados a contex-
tos locais e regionais do cotidiano de nossa população afromeríndia-
-brasileira. Dessa forma, consideramos a vivência como processo de
aprendizado, um “corpo-território” que escreve a sua bagagem cultural
pelos espaços que circula. Educar seria, assim, um ato eminentemente
político e, atravessado pelo “corpo-território” (MIRANDA, 2020).
Para desenvolver pedagogias conectadas com as demandas e ca-
racterísticas dos povos de “Améfrica” (GONZALEZ, 1988), é necessário
enfrentar e superar a colonialidade pedagógica, buscando trilhar ca-
minhos numa “Educação Ambiental desde el Sur”, a partir das experiên-
173
cias de e com os povos que sofreram o processo de colonização e de
colonialidade (MENEZES et al., 2019).
Bernardino-Costa el al. (2018) afirmam que só é possível desco-
lonizar os currículos se descolonizarmos o olhar sobre os sujeitos, suas
experiências, conhecimentos e a forma como os produzem. Neste sen-
tido, enquanto docentes da Educação Básica, assumimos a tentativa
de pôr na roda dos diálogos em sala as epistemologias ocidentais, que
historicamente compõem os paradigmas das ciências, introduzindo
valores e saberes do legado afroameríndio-brasileiro.
O primeiro passo nessa jornada é nossa própria descolonização,
“giro decolonial” (CASTRO-GÓMEZ & GROSFOGUEL, 2007) ainda em
processo,iniciado a partir de gatilhos disparados pelo aquilombamen-
to (NASCIMENTO, 1985) das vivências do primeiro autor desse tex-
to, enquanto um ser humano, do gênero masculino, nordestino, afro-
descendente e candomblecista. Tal identificação e representativida-
de “ORIentaram” opções metodológicas para uma descolonização da
minha prática pedagógica, emancipando-a do monismo ocidentalista
que reduz todas as possibilidades de saber e enunciação da verdade à
dinâmica cultural de um centro europeu (MIRANDA, 2020).
Segundo Bell Hooks (2013), é produtivo que as professoras sejam
as primeiras a correr o risco de ligar suas narrativas confessionais às
discussões acadêmicas. Para esta autora, quando as professoras levam
narrativas de sua própria experiência para sala de aula, elimina-se a
possibilidade de atuarem como inquisidores oniscientes e silenciosos.
A partir dos conhecimentos inicialmente expostos, pretendemos
neste artigo discutir concepções pedagógicas decoloniais assumidas
por um docente da Educação Básica, lotado na Oficina de Jardinagem
da Escola Parque, em Salvador (Bahia). Propomos o Ensino de Ciências
por meio de atividades de Jardinagem, a partir de preceitos da Edu-
174
cação Ambiental, sob uma perspectiva decolonial, considerando con-
ceitos, práticas e valores inerentes à educação paraas relações étnico-
-raciais e, voltada para ações sociopolíticas em prol do bem-viver, em
diálogo com proposta anisiana de formação integral (omnilateral) das
pessoas.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
A colonização está ligada ao domínio de uma determinada re-
gião geográfica onde se estabelece o colonialismo, relação de poder
metrópole/colônia. Já a colonialidade é um processo intersubjetivo, de
introjeção dos modos de ser e viver do colonizador nos povos coloni-
zados, através do apagamento das identidades e culturas originárias, o
chamado “encobrimento do outro” (DUSSEL, 1993).
A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos
do padrão mundial do poder capitalista (LANDER, 2005), trata-se de
um processo de dominação entre grupos sociais, a ponto de instituir a
invisibilidade dos dominados numa relação brutal e desumana, tendo
a “racialização”, na maioria dos casos, como uma estratégia de segre-
gação social (DUTRA et al., 2019).
De acordo com Fanon (1979) na colonialidade, a construção do
conceito de raça se manifesta em três dimensões: a colonialidade do
ser, do saber e do poder. A colonialidade do ser é a dimensão ontológi-
ca da colonialidade, que se afirma na violência pela negação do Outro.
Em sua essência, o racismo, enquanto pseudociência, busca legitimar
ideologicamente uma política sobre os povos não-brancos, que produz
privilégios simbólicos e/ou materiais para a supremacia branca que o
engendrou. São esses privilégios que determinam a permanência do
racismo enquanto instrumento de dominação, exploração e exclusão
175
social, em detrimento de toda evidência científica que invalida qual-
quer sustentabilidade para o conceito de raça (CARNEIRO, 2005).
A colonialidade do ser se consolida através da violência proje-
tada para destruir identidades e existências, através da sustentabili-
dade do ideário racista. Essa concepção depende de sua capacidade
de naturalizar a percepção sobre o Outro. É preciso que as palavras
e as coisas, a forma e o conteúdo, coincidam para que a ideia possa
se naturalizar. É imprescindível que esse Outro dominado e vencido,
expresse em sua condição concreta, aquilo que este ideário lhe atribui
(CARNEIRO, 2005).
No âmbito da colonialidade do poder, o projeto de colonização
europeia na América articulou o colonialismo imperial e a ciência
ocidental, através da ideia de raça como instrumento de classificação
hierárquica e controle social (DUTRA et al., 2019). Isso se evidencia
através de estudos que utilizavam métodos morfoanatômicos, como
a craniometria desenvolvida por Nina Rodrigues, um médico mara-
nhense, radicado na Bahia entre os séc. XIX e XX (RODRIGUES, 2015).
Existe assim, a hipótesede uma “raça superior” constituída por homens
brancos, cisgêneros, heteronormativos, cristãos, europeus, que tem di-
reito à dominação dos “Outros”, subjugados à inferioridade (LANDER,
2005).
Base epistemológica da ciência eurocêntrica no séc. XVII, o posi-
tivismo fundamentado no racionalismo, representado pela a formula-
ção de Descartes em 1637: “Penso, logo existo”, sugere que este “eu que
pensa” é representado por esta “raça superior” logo, existem “outros
que não pensam” e “outros que não existem”. Sendo assim, o privilégio
do conhecimento e da afirmação da existência de uns leva a desqua-
lificação epistêmica, que se converte em um instrumento de negação
ontológica de outros (BERNARDINO-COSTA et al., 2018).
176
A negação da plena humanidade do Outro, através da demons-
tração de sua incapacidade inata de produzir cultura e civilização,
presta-se a afirmar uma razão racializada, que hegemoniza e naturali-
za a superioridade européia. O Não-ser assim construído, afirma o Ser,
ou seja, o Ser constrói o Não-ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de
características definidoras do Ser pleno: autocontrole, cultura, desen-
volvimento e civilização (CARNEIRO, 2005).
A colonialidade do saber, por sua vez, impõe o saber europeu
como marco de conhecimento verdadeiro frente a quaisquer outros ti-
pos de referenciais, que são tomados como inferiores, desconsideran-
do assim a existência de outras racionalidades e formas de interpretar
o mundo. Ela é produto de um longo processo de colonialidade que se-
gue reproduzindo as lógicas econômicas e políticas, de existência e de
relação com a natureza, forjadas no período colonial (FANON, 1979).
Deste lugar, o epistemicídio aplicado ao campo da educação
permite discutir a construção do Outro como Não-ser do saber e do
conhecimento. Isso se exprime em políticas nas quais o acesso ao co-
nhecimento é negado; que impõem ao Não-ser um destino social dis-
sociado de atividades intelectuais; promovem a profecia legitimadora
de uma inferioridade intelectual essencializada; e, decretam a morte
da identidade como condição de superação do estigma, condenando
os sobreviventes a uma integração social minoritária e subordinada
(CARNEIRO, 2005).
Historicamente, a Ciência nega os saberes produzidos por povos
ancestrais anteriores às civilizações europeias, mas que foram fun-
damentais para a estruturação do conhecimento científico ocidental.
Pinheiro & Oliveira (2019) problematizam o mito europeu de uma mo-
dernidade pautada na construção de dicotomias hierárquicas: negro x
branco, tradicional x moderno, tupiniquim x civilizado, humanidade x na-
177
tureza, científico x senso comum, que colocam a Europa na condição de
potência civilizatória e epistêmica. Estes autores criticam também a
questão de um método único de produção de saberes científicos, suge-
rindo se pensar Ciência também a partir de métodos não positivistas,
provenientes de “Outras” cosmogonias, mas que culminam em conhe-
cimento sistemático, apropriado por gerações e que impulsionam o
desenvolvimento tecnológico, apesar da “pilhagem epistêmica” (FREI-
TAS, 2016).
Questionar essa Ciência permite um diálogo com o princípio de
“Educar para Nunca Mais”, educar para que a memória das violações
de direitos seja reforçada, não como revanchismo, mas como a cons-
trução de um senso de responsabilidade coletiva (ZENAIDE, 2014). Se
compreendermos a Ciência a partir das disputas de poder marcadas
pelo apagamento de grupos postos à margem, poderemos construí-la
com mais reconhecimento ético diante dos povos da terra (PINHEIRO;
OLIVEIRA, 2019).
Considerar que a Ciência e o Ensino de Ciências nada têm a ver
com o mecanismo da colonialidade é reforçar a hipocrisia que histo-
ricamente legitimou o domínio dessa Ciência. A partir das Ciências
Sociais é possível questionar as pretensões de objetividade e neutrali-
dade dos principais instrumentos de naturalização e legitimação dessa
ordem social(LANDER, 2005). As tentativas para desconstrução desse
sistema injusto e excludente vêm sendo realizadas, no entanto, ainda
se faz necessário uma reflexãomais profunda no campo do Ensino de
Ciências (PEDRETTI; IANNINI, 2020). Por isso, o repensar a Educação
em Ciências implica em reconhecer suas formas de colonialidade do
saber e do poder e sua responsabilidade na formação/deformação do
contexto social escolar no qual ela está inserida (DUTRA et al., 2019).
178
A escola é um espaço que tanto pode agir no fortalecimento
das desigualdades, como na educação para as relações étnico-raciais
(SANTOS, 2009). A Lei 10.639/2003 estabelece a obrigatoriedade do
ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas dos
ensinos fundamental e médio. Representa uma inspiração para desco-
lonizar os currículos e uma desobediência às tradições pedagógicas,
que muitas vezes constroem um lugar único de conversa, ancorado na
ideia de que o conhecimento científico eurocêntrico dará conta de to-
das as questões de uma escola reprodutora das discriminações étnico-
-raciais da sociedade (FERNANDES, 2018).
É preciso educar a juventude privilegiando narrativas decolo-
niais e perspectivas interculturais dos marcos civilizatórios que nos
constituem. Como é possível uma história do Brasil na qual o marco
fundacional é a chegada de europeus? Os povos originários e em diás-
pora não produziram epistemologias? Quem aprende na escola que
veio de “escravos” não se sente privilegiado em sua origem e constrói
uma relação psíquica causal que justifica seu rebaixamento social. Pre-
cisamos superar este estado de racismo institucional e colonialidade
epistêmica que coloca pessoas negras e de outras etnias em condições
subalternas, de ausência de inteligência acadêmica e de propensão a
trabalhos braçais. O “somos todos humanos” ainda não chegou para
grande parcela da população negra e ameríndia deste país, assim, uma
ciência comprometida com os dilemas e tensões sociais do seu tempo
necessita ter não só esta consciência como principalmente promover
ações que visem reduzir este abismo racial (PINHEIRO, 2019).
Dutra et al. (2019) afirmam ser imperativo a nós que estamos
na periferia da produção do conhecimento, pensarmos num Ensino de
Ciências que busque uma restituição pelos séculos de exploração eco-
nômica eurocêntrica. O debate com a decolonialidade pode trazer al-
179
ternativas viáveis para criar frestas na hegemonia do poder e do saber,
que tais conhecimentos científicos adquiriram na sociedade. Não se
pretende desqualificar a contribuição do Ensino de Ciências, mas de-
nunciar os efeitos perversos do colonialismo na manutenção de suas
práticas de violência simbólica.
Neste sentido, valorizamos os conhecimentos científicos pilha-
dos ou desprivilegiados no hall da história. A ciência europeia tem seu
inegável grau de relevância social, no entanto, ela não precisa exis-
tir à base do apagamento de conhecimentos científicos anteriores e,
inclusive, basilares. A questão central que se coloca é: “Divulgar qual
ciência?” – não numa perspectiva relativista, mas tampouco sob uma
ótica universalista do conhecimento europeu. Propõe-se um resgate
histórico que valorize os conhecimentos clássicos construídos dentro
de “Outras”cosmopercepções de mundo (PINHEIRO; OLIVEIRA, 2019).
3. CONTEXTO ESCOLAR
O Centro Popular de Educação Carneiro Ribeiro (CECR) repre-
senta uma experiência de ensino diferenciada da rede educacional
baiana. Foi o espaço onde Anísio Teixeira introduziu e experimentou
as suas concepções para a escola pública, entendida por ele como uma
máquina para a democracia (CORDEIRO, 2001). Nesta proposta, à ins-
piração da “Escola Nova”, a estudante pratica na comunidade escolar o
que pode reproduzir na sociedade, sendo assim, um instrumento para
a formação de cidadãos críticos e socialmente ativos (CAVALIERE,
2010).
Anísio Teixeira (1997) resumiu que “educação não é simplesmente
preparação para a vida, mas a própria vida em permanente desenvolvi-
mento, de sorte que a escola deve-se transformar em um lugar onde se vive
e não apenas de preparo para vida.” Declarou que o Centro era custoso,
180
proporcionalmente aos objetivos a que visava: “se é a nossa defesa que
estamos construindo, nunca será demasiado caro, pois não há preço para
a sobrevivência.” (TEIXEIRA, 1997). A concretização dos ideais de Aní-
sio Teixeira extrapolou as práticas da chamada “Escola Nova”, fazendo
uma incursão no sentido de uma dimensão pedagógica dialética e his-
tórico-crítica que viria a desabrochar no Brasil, a partir da década de
1960 (CORDEIRO, 2001).
Foi principalmente através de Anísio Teixeira que a educação
integral adquiriu a dimensão de alternativa generalizável, onde ações
comprometidas com a educação inclusiva ganharam realce e maior
significado, conferindo à intersubjetividade do processo educativo,
o lugar privilegiado de inserção dos excluídos na sociedade. A forma
como este educador concebeu a educação e a escola em tempo integral
é fonte imprescindível para uma abordagem do tema que se mantenha
orientada no sentido de democratização da realidade educacional bra-
sileira (CAVALIERE, 2010).
Ainda na década de 1950, ano de fundação do Centro, Anísio
participa de um movimento de emancipação pela educação, que tem
na “Declaração de Lima” a proposta de uma escola primária como seis
anos de cursos e dias letivos completos. O viés decolonial dessa articu-
lação se observa décadas à frente quando Anísio faz uma denúncia “a
despeito das vozes, muito nossas conhecidas, dos que ainda julgam pos-
sível reduzir a educação popular, na América Latina, à mistificação das
escolas primárias de tempo parcial e de curtos períodos anuais.” (TEI-
XEIRA, 1994).
A perspectiva de ensino de formação integral difundida no Brasil
por Anísio surgiu como uma alternativa a este modelo hegemônico
tradicional-tecnicista. Sua maior representação é a proposta da Escola
Parque, que se concentra na oferta de oficinas para o desenvolvimento
181
de habilidades e competências, relacionadas às artes e atividades so-
cioeducativas, em complementação ao ensino propedêutico desenvol-
vido nas Escolas Classes que, juntas, compõe o CECR (BAHIA, 2011).
Fundada em 2002, ano da revitalização do Centro, o Núcleo de
Jardinagem da Escola Parque tem como propósito despertar nas suas
e nos seus estudantes habilidades e competências inerentes às Ciên-
cias Naturais, trabalhando a Educação Ambiental de forma transver-
sal, dentro das perspectivas do Desenvolvimento Sustentável (BRA-
SIL, 2007). Assume papel educativo enquanto atividade que envolve
conteúdos científicos, históricos e artísticos, permitindo à estudante o
direito a sua formação social, cultural, ética e política (BAHIA, 2011).
Desse modo, seus pressupostos e objetivos se alinham com a Política
Estadual de Educação Ambiental (Lei n° 12.056/2011), buscando pro-
ver um modelo de ensino mais qualificado e justo, como um meio de
romper com a lógica das relações hegemônicas, que põem em risco o
bem-viver e a justiça socioambiental.
Os conteúdos de ciências são envolvidos com os de outras disci-
plinas para o desenvolvimento de atividades que permitam algum tipo
de experiência interdisciplinar. Acreditamos na Oficina de Jardinagem
como um meio possível para instrumentalizar nossos estudantes à
resolução de situações-problema do cotidiano, valorizando a educa-
ção para as relações étnico-raciais, o que direciona nosso esforço para
adequar nossas atividades ao contexto social da Escola Parque.
Trabalhamos a perspectiva da educação com enfoque para as re-
lações entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) (PE-
DRETTI et al, 2006), onde se propõe a problematização de uma situa-
ção existencial concreta como o ponto de partida para qualquer apren-
dizagem que tenha sentido para as alunes (VASCONCELOS; SANTOS,
2008).Esta perspectiva provê contextos pedagógicos apropriados para
182
o aprendizado, apoiando a formulação de propostas adequadas ao
contexto social da escola, além de contribuir para o desenvolvimento
da capacidade argumentativa das alunes (SANTOS et al., 2001).
Pedretti e Nazir (2011) afirmam que uma formação que leve em
conta os aspectos éticos e políticos, e que seja voltado para o enga-
jamento e a tomada de decisões socioambientalmente responsáveis
também pode se configurar em uma limitação da Educação CTSA. De
acordo comessas autoras, na Educação CTSA, apenas algumas verten-
tes se atentam para esta demanda e, este trabalho se aproxima daque-
las centradas em valores, a qual são direcionadas à formação de cará-
ter; e da ecojustiça, que visa justiça e bem estar social. Essas vertentes
buscam preparar a estudante para utilizar a ciência e a tecnologia de
modo consciente, promovendo assim, a cidadania, objetivo comum
com a Educação Ambiental para a Sustentabilidade (EAS) (FOUREZ,
2003).
Propostas de articulação entre CTSA e EAS possibilitam a pro-
moção de atividades capazes de relacionar o currículo propedêutico
com a vivência da alune na Oficina de Jardinagem. Os conteúdos con-
ceituais, procedimentais e atitudinais (ZABALA, 1998) teriam a socie-
dade e o ambiente como o cenário de aprendizagem, a partir do qual
surgiriam temas a serem investigados nas aulas.
A mobilização de valores e atitudes especialmente durante as
atividades práticas e as ações sociopolíticas (CONRADO et al, 2014)
realizadas pelas estudantes da Oficina de Jardinagem da Escola Par-
que, indicam a pertinência do uso destas estratégias para alcançar os
objetivos de ensino-aprendizagem propostos em nosso projeto políti-
co-pedagógico (BAHIA, 2011). Abordagens contextualizadoras como
esta possibilitam a formação integral da pessoa, permitindo-lhe re-
conhecer as reais intenções por detrás de suas decisões e identificar
183
valores envolvidos na sua prática científica (CONRADO et al, 2015;
PENNA et al., 2020).
As correntes da CTSA fazem uso de estratégias e instrumentos
de ensino que favorecem o debate sobre aspectos éticos e políticos en-
volvidos nos problemas socioambientais, gerando possibilidades edu-
cacionais capazes de prover benefícios para a sociedade (DOONER et
al., 2008). Temos então a Oficina de Jardinagem da Escola Parque como
panorama para a discussão de conceitos, procedimentos e valores mo-
bilizados por uma prática docente atravessada pela decolonialidade e
pela educação para as relações étnico-raciais.
184
mento das desigualdades em todos os setores da sociedade. A partir
da decolonialidade, acreditamos numa educação para as relações étni-
co-raciais ORIentada pelas linguagens e tecnologias afro-brasileiras,
norteada por um projeto de denúncia antirracista eatravessada por
uma subjetividade fortemente afrocêntrica (PINHEIRO, 2019).
Em nossa prática pedagógica na Oficina de Jardinagem da Escola
Parque, o conhecimento acerca das potencialidades medicinais e espi-
rituais de plantas é partilhado pelas mulheres negras que frequentam
nossas aulas, enquanto suas crianças e adolescentes estão em outras
oficinas desta Escola, considerada uma Escola da Família, já que recebe
o estudante matriculado na Educação Básica, bem como seus fami-
liares de primeiro grau. Esse conhecimento legado àsmulheres negras
promove os saberes ancestrais afroameríndio-brasileiros sobre as fo-
lhas sagradas, a ponto de afetar o campo de produção intelectual na
Fitoterapia ou na Medicina Natural (ALMEIDA et al., 2013).
É habitual pensar os conhecimentos de base não-europeia como
senso comum ou conhecimento popular, entretanto, mesmo não sendo
bem estabelecidos os critérios de demarcação da Ciência, faz-se neces-
sário refletir acerca do grau de profundidade epistêmica, relevância,
capilarização social e impulsionamento tecnológico que esses “sape-
res” proporcionaram à humanidade (GADGIL et al, 1993; PINHEIRO;
OLIVEIRA, 2019).
As palavras “saber” e “sabor” guardam etimologia comum, do la-
tim “sapere”, assim, a ação de conhecer pode ocorrer tanto na dimen-
são do intelecto quanto a partir dos sentidos do corpo, logo, o saber
pronuncia um sabor (DIAS et al., 2015). Na arena de disputas educa-
cionais e, portanto, políticas, “é preciso ousar para dizer cientificamente
que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com nosso corpo
inteiro. Com sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos,
185
com as dúvidas, com a paixão e, também, com a razão crítica” (FREIRE,
1997).
Para Eduardo Oliveira (2007), a educação negra deve ser reali-
zada desde a corporeidade, pois o corpo registra a memória de formas
diversas, proporcionando aprendizagens mais complexas quea fixação
de informações. É preciso aprimorar “a visão de corpo para além das
questões genéticas, em que a cultura é o ponto de partida e, sendo as-
sim, compõe o fluido mosaico das experimentações diárias” (MIRANDA,
2015). Um “corpo-território” que abarca o encontro da complexidade
espaço-tempo nas encruzilhadas experienciais responsáveis por forjar
a corporeidade. Este vínculo cultural ao “corpo-território” abre campo
para encontrar o centro de interesse da educação decolonial: o fazer
coletivo, os espaços de significação das expressões dos corpos-terri-
tórios afroameríndio-brasileiros e, a cultura imaterial decorrente da
vivência desses grupos. Do “corpo-território” às histórias de cada um:
reconstruir histórias e entrecruzar caminhos para alargar e romper as
fronteiras que limitam o desafio do “humanizar-se” (MIRANDA, 2020).
Bell Hooks (2013) elucida que a educação para a libertação ins-
tiga a educadora a perceber que a sua prática pedagógica deve per-
passar pelo “crescimento intelectual e espiritual” de seus educandes.
Considerar o crescimento espiritual significa o respeito à diversidade
deste “corpo-território”, evidenciando que sua condição humana não
pode ser configurada em padrões que engessam os corpos e oprime o
diferente.
Pensamos na Oficina de Jardinagem da Escola Parque como um
espaço de reflexão sobre as diversas formas de viver baseadas no res-
peito às diferenças, à todes e a si mesmo. Nesse sentido, trabalhamos
em nossas aulas questões relacionadas a Gênero e Sexualidade. Tal
intervenção didática pretende mostrar o quanto estamos envolvidos
186
com imagens, o quanto elas nos emocionam e, nesse movimento de se-
dução, nos ensinam e nos colonizam (ARAÚJO, et al., 2018). O objetivo
dessa proposta não foi dar respostas, mas estimular a reflexão sobre
o tema, quando pudemos observar a separação estanque entre Sexo
(biológico) e Gênero (cultural) na reprodução das falas das alunes.
A contextualização dessas categorias naturalizadas como abso-
lutas trazem a necessidade de uma tradução para novos cenários, cujos
repertórios irão ressignificar seus conteúdos. Torna-se imperativo re-
visar na “cosmovisão moderna hegemônica as suas contradições masca-
radas, percebendo nesta as operações de exclusão e desumanização dian-
te da produção da diferença colonial” (MAGLIEVICH-RIBEIRO, 2014).
Mignolo (2008) traz a ideia de desobediência epistêmica, já que sem o
movimento de pensar além das estruturas consolidadas, não será pos-
sível a abertura para outras racionalidades que confrontem os modos
de pensar já construídos.
Pensar além do que foi instituído é perceber que há Outros co-
nhecimentos e repertórios que foram excluídos da história. Reco-
nhecer Outros modos de ser, existir, saber e fazer para romper com
as estruturas de exploração vigentes. É dessas “novas” possibilidades
epistemológicas que emergem os argumentos do movimento decolo-
nial. O pensamento decolonial pressupõe dar voz e resgatar esses co-
nhecimentos que foram sucumbidos pela colonialidade para desvelar
conhecimentos “Outros” que nos foram negados (DUTRA et al., 2019).
Valorizamos o cultivo de plantas alimentícias não-convencio-
nais (PANCs) na rotina da Oficina de Jardinagem da Escola Parque.
Como tais variedades não são produzidas comercialmente em larga
escala, essa opção didática representa um instrumento de resistência
das culturas alimentares nas quais estão presentes, sabedoria da roça
guardada por nossas mães, pais e avós. Permitem, portanto, o encontro
187
das estudantes e dos estudantes com culturas tradicionais silenciadas,
ao visibilizar essas “novas” possibilidades nutricionais e culinárias
(RANIERI et al., 2017).
Para COSTA et al. (2019) comida não é apenas sobrevivência, é
patrimônio, memória e identidade; é linguagem que narra reconheci-
mentos entre mundos e pessoas; é “palavramundo”. Paulo Freire expli-
ca que a “palavramundo” representa a leitura do mundo que precede a
leitura da palavra, onde “linguagem e realidade se prendem dinamica-
mente” (FREIRE, 1989).
Na cozinha foram construídas diversas interações sociais e es-
pirituais, como rituais, festejos, afetos e significados, onde a “palavra-
mundo” se expressa como uma ação libertadora frente às relações de
opressão, por meio de palavras, alimentos, práticas de cuidado, mas
também em gestos e sotaques (COSTA et al., 2019). A ideia de “pala-
vramundo” elege o caminho do diálogo amoroso e crítico para se pen-
sar um processo educativo em que somos agentes de transformação
de nossa própria consciência (FREIRE, 1989). Temos então a “palavra-
mundo” no pretuguês de Lélia Gonzalez (1988): uma demonstração evi-
dente de nossa “Amefricanidade”, território onde as línguas africanas
e indígenas transmutaram-se, ajustando o português do Brasil de tal
forma que ele já é outro (CARRASCOSA, 2017).
Lélia Gonzalez (1988) ressalta as estratégias de sobrevivência
de mulheres negras e homensnegros escravizados, através da nego-
ciação com perspicácia e sagacidade, para a resistência na preserva-
ção de seus saberes, crenças, valores e heranças culturais. Esta autora
caracteriza isto como o começo da Améfrica, entendida como sistema
etnogeográfico de referência, uma criação de nosses antepassades no
continente ondevivemos, inspirada em modelos africanos e dos povos
originários.
188
Experienciamos Améfrica através dos terreiros, locais de culto
das religiões de matriz africana, que seguem impregnando seus sabe-
res e sabores nas veias de Salvador: “legam às malhas urbanas suas cos-
movisões, estéticas e éticas” (LIMA, 2010). Freitas (2011) nos apresenta
a literatura-terreiro como um instrumento multimodal de apropriação
e geração de significados, não somente por meio do código verbal es-
crito, mas também através de linguagens multis-semiótica em co-o-
corrência indissociável.Este processo estaria sob a égide dos valores
civilizatórios afro-brasileiros citados por Mignolo (2003):circularida-
de, religiosidade, corporeidade, musicalidade, memória, ancestralidade,
cooperativismo, oralidade, energia vital e ludicidade.
A nossa práxis na Oficina de Jardinagem da Escola Parque va-
loriza significados e epistemologias dos povos em diáspora, especial-
mente suas ações consideradas subalternas, desenvolvidas por mãos
negras ao redor do fogo. Neste lugar, outras pronúncias denunciam
mundos muitas vezes inaudíveis, invisíveis e imperceptíveis nas licen-
ciaturas e nas formações dos professores. A comida como pronúncia
numa escola onde o corpo encontra a “sapedoria” da comida (COSTA
et al., 2019).
A epistemologia cartesiana, fundamentada no positivismo lógi-
co, pressupõe um dualismo corpo/mente, onde sensações e percepções
corporais valorizadas por “Outras” cosmogonias, não representam
fonte de conhecimento válido. A experiência em decolonialidade as-
sumea necessidade de afirmação do corpo e suas subjetividades como
um território político de conhecimento (BERNARDINO-COSTA et al.,
2018).
Bell Hooks (1995) propõe que o pensamento parte das experiên-
cias vividas e historicidades dentro sistema/mundo moderno/colonial,
através de uma rede de diálogos multilaterais a fim de promover a crí-
189
tica de qualidade, mas também a ética do cuidado e da responsabili-
dade pessoal. Neste mesmo campo, Sueli Carneiro (2005) afirma uma
educação para o cuidado de si que se realiza no cuidado do outro, onde
a libertação se dá através da estética de existências desprendidas dos
processos de subalternização.
A prática do cuidado se configura em uma estratégia pedagógica
transversal na Oficina de Jardinagem da Escola Parque. Entendemos a
Jardinagem enquanto atividade terapêutica quando vivenciamos em
nossas aulas o respirar, o aterrar e a circularidade da vida. O acolhi-
mento das estudantes nessa Escola da Família é ponto fundamental
para uma educação que se volte ao cuidado de si através do cuidado do
outro. Isso se mostra quando nossas senhoras indicam um banho de
capim milagre ou guiné, trazem uma muda de água de levante, folha da
costa ou alfavaquinha, mas também quando nos mostram o simbolis-
mo de árvores sagradas como o Iroko e o Nativo.
Abdias do Nascimento (2016) nos traz o conceito de Quilombis-
mo, em que a ideia de reexistência é expressa como uma afirmação
étnica e cultural, na qual a população negra integra uma prática de
libertação e assume o comando de sua história. É preciso reconhecer
em Beatriz Nascimento (1985) o conceito de Quilombo, a partir de um
corpo negro pós-abolição, favelizado por estratégias biopolíticas do
Quilombo Urbano.
Pensemos sob a perspectiva das escrevivências (Evaristo, 2007)
das corpas indignades, considerando que “as lutas determinam de fato
o ser, o constituem” (NEGRI, 2003). Podemos citar então os letramentos
das rodas de capoeira e todo o processo formativo dessa arte-educa-
ção de base oral e educação integral de episteme yoruba (FREITAS,
2018). Muniz Sodré (2017) nos convida “Pensar nagô” como um encon-
tro transcultural e não violento entre modos diversos de crer, existir
190
e pensar afro, dentro de processos filosóficos próprios dessas “Outras”
gnoses que nos foram legadas pelas vozes bantu, fons, iorubanas e
também de outras matrizes do Brasil.
A Educação em Ciências só tem a ganhar ao adotar uma postu-
ra múltipla que conjuga diferentes realidades, ao acionar o cotidiano
para pensar as relações em CTSA nas suas práticas didáticas, assumin-
do e dialogando com a rica diversidade de discursos presentes (FON-
SECA, 2007).
191
Menezes et al. (2019) situa a “Educação Ambiental desde el Sur”
partindo de correntes de pensamento provenientes não apenas no sul
geográfico, mas no sul geopolítico, nas periferias do sistema/mundo
moderno/capitalista, espoliadas na relação do capital com a natureza
desses territórios. Para tanto é necessário o desencobrimento do “ou-
tro”, da alteridade, da convivência e diálogo entre diferentes saberes,
da troca “desinteressada” de tecnologias entre diferentes culturas e,
de uma perspectiva histórica não linear e não hierarquizante (LEFF,
2009).
Neste sentido, à luz dos saberes na complexidade de África, de-
marcamos no território Bantu-Kongo, a filosofia Ubuntu: “eu sou por-
que somos”, onde “eu sou porque a árvore é”; “eu sou tudo que ocorre”;
ou “anatureza está em mim em sua completude”. A humanidade Bantu-
-Kongo é antropomórfica e não antropocêntrica, uma pessoa seria um
“sistema de sistemas”, onde estar no mundo envolve considerar alteri-
dades. Não há dicotomias entre “eu” e o “outro”, nessa cosmopercep-
ção “eu” sou natureza e o “outro” me situa no mundo (SANTOS, 2019).
Propomos este pensar Bantu-Kongo, através do filósofo Bun-
seki Fu-Kiau, (apud VALDINA, 2018) que nos afirma uma experiência
humana no mundo essencialmente coletiva, portanto horizontal e
nãohierarquizada, em contraponto à cosmogonia colonial dominante.
Natureza aqui é entendida pela palavra Nzambi - presente no cotidiano
dos terreiros de candomblé da nação Bantu - traduzida nessa cosmolo-
gia como “tudo que ocorre”, o que é fluido, dinâmico, e aí estão incluí-
dos os fenômenos observáveis, acessáveis pelo materialismo científi-
co, mas também os sentimentos e sensações. Assim, se natureza é tudo
que ocorre, não existe “sobrenatureza” ou metafísica, mas diferentes
níveis de palpabilidade das dimensões presentes no mundo.
192
A Ética Ubuntu oferece uma perspectiva interessante de um
constituir-se coletivamente (BARBOSA, 2012). Ubuntu é composto por
duas palavras: “Ubu” expressa a compreensão ontológica do ser, en-
quanto ser e, o “ntu” assume as formas concretas de existência num
processo contínuo (RAMOSE, 1999). Uma pessoa Ubuntu está cons-
ciente de que compõe algo maior e, portanto, se percebe tão diminuída
quanto seus semelhantes oprimidos. Ser Ubuntu é decidir pela inter-
conectividade, orientando sua energia para o outro: é a humanidade
para com os outros (PATTAKOS, 2005).
Defendemos que a práxis na Oficina de Jardinagem da Escola
Parque deva assumir seu compromisso em construir processos de legi-
timidade aos povos que historicamente sofrem situações de injustiças
ambientais. Seus modos de vidas constroem conhecimentos transgres-
sores à lógica moderna de ciência e, portanto, concepções pedagógicas
“Outras” (MENEZES et al., 2019).
A “cultura ecológica” capaz de superar a crise ambiental está
justamente nos saberes culturais locais sistematicamente destruídos
e invisibilizados pela lógica capitalista. Seus padrões são regidos pelo
equilíbrio, com significado cultural entre trabalho e consumo, onde a
produção ganha valor simbólico. As culturas tradicionais aparecem,
assim, como mediação possível entre processos econômicos e ecoló-
gicos (LEFF, 2009). Por isso, a Educação Ambiental, ao posicionar suas
práticas como transformadoras, necessita refletir as formas de apro-
priação material e simbólica da natureza, pelos projetos de sociedade
em disputa. O encobrimento do outro e a busca por conciliação apon-
tam para um posicionamento intencional pacificador e funcional ao
sistema que reproduz suas práticas, através de diversos artifícios, in-
clusive a própria Educação Ambiental (MENEZES et al., 2019).
193
Adotamos o “Cinema Comentado” como uma estratégia pedagó-
gica importante para o debate da temática socioambiental. Filmes pro-
duzidos com foco na temática ambiental refletem valores e conceitos
relacionados a diferentes visões de mundo, sendo possível, portanto,
relacioná-los com as distintas abordagens da Educação Ambiental
(LAYRARGUES; LIMA, 2014). Pode ter importante contribuição para
uma Educação Ambiental com viés decolonial quando traz provoca-
ções àessa concepção equivocada de sociedade e natureza em oposição.
Considerando a experiência humana antropomórfica, privilegia-
mos a prática da Compostagem na Oficina de Jardinagem da Escola
Parque como um instrumento didático que tenta romper com a ideia
desse dualismo colonial humanidade/natureza. Tal proposta incentiva
posturas críticas, balizando as tomadas de decisões socioambiental-
mente responsáveis (HODSON, 2004), já que promove solução viável à
realidade da estudante, no que diz respeito ao tratamento dos resíduos
produzidos tanto na escola, quanto em sua casa.
Menezes et al. (2019) atentam que a Educação Ambiental regida
pelas políticas públicas brasileiras, muitas vezes tornam-se ferramen-
tas para a difusão de uma ideologia reducionista que responsabiliza
indivíduos, sua ignorância e/ou comportamentos, às crises ambien-
tais. Isso contribui para os apagamentos das contradições coloniais,
perpetuando-se em um movimento de consentimento da sociedade
civil sobre as condições sociopolíticas e ambientais da atualidade.
Na contramão do “Agro é POP”, campanha publicitária finan-
ciada pelos latifundiários do país, veiculada na grande mídia, os tra-
tos culturais incentivados nas atividades de horticultura da Oficina
de Jardinagem da Escola Parque priorizam os saberes da agricultura
tradicional, reforçados pelos adultos e idosos que frequentam nossa
oficina, muitos com ascendência afroindígena. Em nossa prática peda-
194
gógica reforçamos o ideário de “sujeito coletivo” tão privilegiado pelos
povos originários (KRENAK, 2019), em diálogo com a filosofia Bantu
que trata a experiência humana no mundo como essencialmente ho-
rizontal (FU-KIAU apud VALDINA, 2018). A expressão desse diálogo
entre as cosmologias africanas e indígenas traz uma ideia de comuni-
dade que sobrepõe o território geográfico, se colocando na natureza
das interações: “é tudo que ocorre”.
Portanto, se “natureza é tudo que ocorre”, existe uma responsa-
bilidade coletiva onde não se espera o cuidado da transcendência de
“Deus” ou de um “Salvador”: “Deus é natureza”, “Deus é você”, “Deus é
o que ocorre”. A ciência ocidental tenta se aproximar dessa cosmoper-
cepção através do conceito de Antropoceno, definido como uma nova
era geológica iniciada após a revolução industrial, que se caracteriza
pela intervenção humana capaz de alterar fenômenos naturais pla-
netários (LATOUR, 2014). Essa ideia esbarra na expropriação de um
“mundo natural” em que nós, humanos do Holoceno passamos a ser
terranos no Antropoceno, quando passamos a “cuidar da natureza”,
“esperançar”, fazer por onde alterar os destinos catastróficos da nossa
“Gaia” (NETO; EL-HANI, 2006). Epistemologias decoloniais africanas
e indígenas não entendem a Terra como nossa casa, nós somos a Terra
(FUKIAU apud VALDINA, 2018; KRENAK, 2019).
A preferência por árvores nativas brasileiras na requalificação
das áreas verdes da Escola Parque é mais uma representação de nos-
so diálogo com pedagogias decoloniais. Sabe-se que a História da Jar-
dinagem e do Paisagismo legitima seu berço nas culturas europeias,
com raras exceções consideradas, asaber os “Jardins Suspensos da Ba-
bilônia”. No Brasil, somente em meados do século XX, inicia-se uma
ruptura com este padrão colonial, através de Roberto Burle Marx, que
195
passa a utilizar plantas nativas em suas composições paisagísticas, de-
marcando o início do paisagismo brasileiro (LEENHARDT, 1996).
Ao longo dos últimos dez anos, realizou-se o plantio de cerca de
quinze espécimes de árvores nativas dos Biomas do Brasil nos espa-
ços da Escola Parque, especialmente em comemoração à Semana do
Meio Ambiente (5 de Junho). Os estudantes puderam conhecer e plan-
tar exemplares de espécies nativas, como o pau-brasil – Paubrasilia
echinata (Lam.) Gagnon, H.C. Lima & G.P.Lewis; o jacarandá-da-bahia
– Dalbergia nigra (Vell.); o ipê-amarelo– Handroanthus albus (CHAM.)
MATTOS; e o cupuaçu – Theobroma grandiflorum (Willd ex Spreng)
Schum. Dessa forma podemos tratar os aspectos estéticos inerentes à
prática da jardinagem, respeitando os valores ancestrais e a diversida-
de de espécies nativas brasileiras.
Paulo Freire (1996) considera a Educação Ambiental como um
instrumento de práticas voltadas à emancipação dos indivíduos. No
entanto, o distanciamento de uma visão de mundo que problematize
as contradições do sistema/mundo moderno/colonial e as dívidas his-
tóricas com os “condenados da terra” (FANON, 1979), cria um distan-
ciamento das práticas educativas ambientais com o desenvolvimento
de pedagogias emancipatórias e libertadoras (MENEZES et al., 2019).
Uma atitude decolonial, portanto, permite à “condenada” emergir
como uma pensadora, criadora e ativista a fim de construir um novo
mundo possível para todes (BERNARDINO-COSTA et al., 2018).
Um caminho para culturas “Outras” estabelecerem formas de re-
sistência ou de reexistência começa por romper com a distinção entre
ciências naturais e ciências sociais, esta última como um pólo catalisa-
dor de recusa às formas de positivismo. Buscamos aqui “sulear” o ser,
o saber e o poder em contraponto à colonialidade, em especial à peda-
196
gógica, de onde podem emergir práticas “Outras” inovadoras, criativas
e encharcadas do território (MENEZES et al., 2019).
Não é possível dissociar a decolonialidade da longa tradição de
resistência dos povos indígenas e negros em diáspora. Neste sentido,
é importante considerarmos a localização geográfica do Centro Edu-
cacional Carneiro Ribeiro, no bairro da Caixa D’Água, região da Liber-
dade, Salvador, Bahia, notório território de resistência dos povos em
diáspora ao embranquecimento de todes na capital baiana. Uma repre-
sentação disso está na presença organizações negras, como o Ilê Aiyê,
pioneiras no sentido de demonstrarem que cultura é política com “P”
maiúsculo, na medida em que, da maneira mais didática e prazerosa,
fazem com que os pretos da cidade tomem consciência do seu papel de
sujeitos de sua própria história (BAIRROS, 2000).
Miranda (2020) aponta ser fundamental o exercício de uma do-
cência que promova uma reflexão situada na nossa realidade e seus
problemas, que permita a compreensão da diversidade humana, des-
mascare para poder extinguir discriminações étnico-raciais presentes
em nosso território e, considere a riqueza da cultura do povo preto, do
povo indígena e de todos os demais que nos constituíram como nação.
A partir dessa perspectiva, o movimento em direção a uma peda-
gogia antirracista decolonial não se dará de forma a alterar essa lógi-
ca instaurada no Brasil, se não houver o envolvimento das diferentes
disciplinas que compõem o currículo escolar. Fernandes (2018) traz na
Biologia Decolonial, uma mudança cultural e epistemológica pensada a
partir de “Outros” referenciais, ao adotar uma pedagogia fundada nas
vozes daquelas que a história tentou silenciar. Essa Biologia Decolo-
nialtem como ponto de partida uma didática antirracista, pensando
numa educação das relações étnico-raciais, portanto, “supera o tradi-
cionalismo e os conteúdos eurocêntricos, trazendo outras vozes, outras vi-
197
sões de mundos, e melhor, que estabeleça o diálogo entre o conhecimento
científico e os outros tipos de conhecimentos” (FERNANDES, 2018).
Talvez aí seja um começo para a busca de alternativas práticas
para fomentar uma Educação em Ciências a partir da decolonialidade.
Buscar caminhos para a decolonialidade na Educação em Ciências tra-
rá reflexos dentro da escola tanto na aprendizagem das ciências, como
nos âmbitos sociais e culturais. Propomos uma prática pedagógica li-
bertadora na Oficina de Jardinagem da Escola Parque, a fim de promo-
ver justiça social por meio do reconhecimento e resgate dos diversos
saberes sucumbidos pelas relações de dominação, além do combate ao
racismo e a busca de nossas identidades culturais e políticas, por um
mundo mais justo e, ambientalmente digno.
Assim, defendemos a importância de um giro decolonial (CAS-
TRO-GÓMEZ & GROSFOGUEL, 2007) como um projeto político e epis-
têmico na Oficina de Jardinagem da Escola Parque. A Educação Am-
biental crítica aponta os efeitos do capitalismo sobre a natureza, como
elemento estruturante da crise ecológica global e, tem nos aportes dos
estudos decoloniais, a possibilidade de percepçãoda contribuição do
projeto da colonialidade para essa atual conjuntura.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prática pedagógica na Oficina de Jardinagem da Escola Parque
permite a mobilização de conhecimentos, valores e práticas sobre te-
mas relacionados à Educação Ambiental, enquanto possibilita às estu-
dantes compreender melhor os efeitos da ciência e tecnologia na so-
ciedade e no ambiente, a partir das vertentes de valores e de bem-estar
socioambiental (eco-justiça), numa experiência atravessada pela edu-
cação para as relações étnico-raciais.
198
Adecolonialidade é um instrumento para a insurgência epistê-
mica proposta neste texto.Por esta razão, trabalhos desta natureza são
tão relevantes e precisam ser incentivados para que os conhecimentos
produzidos neste campo sejam largamente socializados na Educação
em Ciências, contribuindo para promover uma educação verdadeira-
mente democrática. Basta de uma narrativa histórica eurocêntrica que
reduz a existência ancestral de outros povos ao abismo do esqueci-
mento e coloca a Europa no topo do progresso e das civilizações (PI-
NHEIRO, 2019).
Encontramo-nos numa encruzilhada entre a colonialidade e a
decolonialidade. Neste lugar, morada de Exu, as estradas se cruzam
e, por analogia, pode ser considerado um local central, que nos leva
a uma pausa, nos exige reflexão e rupturas; decisões que muitas ve-
zes nos jogam para fora da estrada. Nesse caso, significa seguir outro
rumo, compreender as lógicas coletivas e individuais, entrecruzadas e
interrelacionadas por culturas outras (MIRANDA, 2020). Para Eduardo
Oliveira (2007), Exu, através dafilosofia do paradoxo, quebra a regra
para mantê-la; transita pelas margens para dar corpo ao que estrutura
ocentro; “é aquele que inova a tradição para assegurá-la”, dessa forma,
“mantém um equilíbrio dinâmico baseado no desequilíbriodas estruturas-
desse mesmo sistemafilosófico-ético”.
Entendemos que a dependência do currículo propedêutico ao
conhecimento científico eurocêntrico nos estrangula enquanto do-
centes de uma escola majoritariamente preta. Propomos que vozes e
cosmoperceções de mundo silenciadas pelo pensamento colonial este-
jam em diálogo com os saberes científicos tradicionais ditos “neutros”.
Em identidade com o princípio anisiano do “aprender a ser”, defende-
mos aqui uma pedagogia atravessada pela educação para as relações
étnico-raciais no Ensino de Ciências, na Oficina de Jardinagem Escola
199
Parque. Estamos mergulhados neste movimento, aqui não existe um
fim, tudo é um processo contínuo e cíclico.
REFERÊNCIAS
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ro; Pólen, 2019. 152p. (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila
Ribeiro).
200
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jber]. – Brasília: Ministério da Educação, Coordenação Geral de Educa-
ção Ambiental: Ministério do Meio Ambiente, Departamento de Edu-
cação Ambiental: UNESCO, 2007. 248 p.
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COSTA, Rute RS; LISBOA, Célia, MP; FONSECA, Alexandre B. “Café,
Farinha Torrada e Açúcar”: Anúncios, denúncias e pronuncias de sa-
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educação em ciências. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2019.
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político-pedagógicas da educação ambiental brasileira. Ambiente
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LIMA, Vivaldo da Costa. Lessé Orixá: nos pés do santo. Salvador: Cor-
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205
MIRANDA, Eduardo O. Corpo-território & educação decolonial:
proposições afro-brasileiras na invenção da docência. Salvador: EDU-
FBA, 2020. 207 p
206
PENNA, Uiré L; COVA, Bruno O; QUINTELA, Fabiana S. O ensino de
ciências para a formação integral através da Oficina de Jardi-
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Ivonete B; ANDRADE, Ivonilde ES; SANTOS, Josemara T. Vozes que
ecoam um legado. Ed. Kelps. Goiânia. 117-127. 2020.
207
SANTOS, Boaventura S & MENESES, Maria P (Orgs). Epistemologia
do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. 638p.
208
C A P Í T ULO 7
1. INTRODUÇÃO
Este texto trata-se de uma pesquisa-narrativa na qual estabeleço
diálogos sobre a descolonização do ensino de ciências a partir da pers-
pectiva decolonial. Através dos caminhos que me formaram, percorro
por quatro tópicos para pensar a descolonização do ensino de ciências.
No primeiro ponto, apresento os percursos de formação que me
levaram para o pensamento decolonial e apresento as interlocutoras
que contribuíram para a realização desse trabalho. Em segundo lugar,
mobilizo os conceitos de colonialidade identificando-os no ensino de
ciências.
Posteriormente no terceiro ponto, faço um percurso histórico
entre Brasil e Colômbia, elencando algumas políticas educacionais dos
dois países e buscando identificar potencialidades nessas políticas pú-
blicas para a descolonização.
Por fim, busco no quarto ponto, evidenciar ações pedagógicas
que desmontam concepções racializadas inferiorizantes propondo a
descolonização no ensino de ciências.
209
2. O DESPERTAR PARA A PERSPECTIVA DECOLONIAL
Enquanto bióloga, professora e mulher negra, o ensino de ciên-
cias e a discussão das relações raciais sempre foram inerentes em mi-
nha vida e, ao longo da minha trajetória, apresentaram várias nuances.
Mas a dimensão reflexiva de observar os encadeamentos entre as rela-
ções raciais e o campo das ciências e biologia só foram aprofundadas
no contato com os Movimentos Negro e Feminista, pois foram esses
espaços coletivos que me formaram politicamente e me inseriram no
debate racial.
Assim, passei a questionar o currículo de ciências, o que me levou
a investigar no Mestrado1 “quais as oportunidades e possibilidades de
debater as relações raciais no ensino de ciências durante a Licenciatu-
ra em Ciências Biológicas”. Essa pesquisa foi realizada durante o ano
de 2018, na Universidade Francisco José de Caldas na Colômbia – país
no qual realizei intercâmbio pelo Programa de Desenvolvimento Aca-
dêmico Abdias do Nascimento, implementado em 20132 pela CAPES.
Participar desse programa foi uma das experiências mais importantes
da minha vida, pois além de realizar pesquisas em uma instituição fora
do país, me possibilitou reflexões sobre as complexidades, as seme-
lhanças e as diferenças dos corpos negros na América Latina.
Para a investigação de mestrado utilizei a metodologia de estudo
de caso e entrevistei quatro estudantes que estavam no último ano do
curso, pois, estas já haviam atuado, ou atuavam como professoras de
1 CRUZ, Denise Gonçalves da. Impasses e possibilidades do pensamento decolonial no ensino su-
perior: O caso de uma universidade colombiana. 2019. 153 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Universidade Federal de São Carlos – SP.
2 O Programa Abdias do Nascimento financiou diversos projetos de pesquisa, permitindo que estu-
dantes autodeclarados negros, indígenas, pessoas com deficiência ou com superdotação pudessem
realizar estágios de pesquisa em instituições estrangeiras. Disponível em: <https://www.capes.gov.
br/bolsas-e-auxilios-internacionais/pais/218-multinacional/9643-programa-de-desenvolvimento-a-
cademico-abdias-nascimento> Acesso em: 20 de agosto de 2020.
210
ciências em sala de aula. Dividi as questões em quatro categorias de
análise, que sintetizo no quadro:
3 Utilizo a Categoria Branco-mestiço por ser a categoria racial para identificar as pessoas brancas
na Colômbia, segundo o censo. Ver mais em: <https://www.dane.gov.co/>. Acesso em 20 de março de
2021.
4 Disponível em <https://doctoradointerinstitucional.udistrital.edu.co/evento-de-africa-en-la-es-
cuela/>. Acesso em 20 de março de 2021.
211
e práticas pedagógicas de educadores(as) que buscam inserir narrati-
vas negras no currículo educacional.
Foi muito gratificante conhecer todas (os) educadoras(es) ali
presentes, especialmente porque ao final do evento, conversei com
duas professoras de ciências, Johanna Rey y Stella Escobar. Elas me
convidaram para visitar a escola pública em que lecionavam para as-
sistir suas aulas, conhecer o trabalho que ali realizavam e conversar
sobre a temática.
A professora Estela é uma professora negra de ciências e biolo-
gia, formada em biologia e com mestrado em desenvolvimento edu-
cativo e social. E Johanna é formada em pedagogia com mestrado na
área de didática e linguagem, doutorado em ensino de ciências e pós-
-doutorado em educação cientifica e intercultural. Neste trabalho, as
duas professoras foram minhas principais interlocutoras e em alguns
momentos retornoàs falas das interlocutoras que contribuíram para o
mestrado.
Marco essa trajetória pela Colômbia como importante na mi-
nha formação e para a construção deste texto, porque foi nela que me
aproximei das leituras afro-latinas e decoloniais, que me fizeram con-
fluir entre os estudos sobre currículo, diáspora africana5 e ensino de
ciências.
Portanto, neste texto tenho a pretensão de revisitaras pesqui-
sas realizadas na Colômbia, minhas interlocutoras e minhas memorias
sobre o vivido, e em consonância com quadro teórico do pensamento
5 A ideia de diáspora africana utilizada nesse texto faz referência ao entendimento dado por Paul
Gilroy (2012[1993]), que utiliza essa categoria para demonstrar a agência política dos corpos negros,
que apesar da escravidão, ainda assim, fazem parte da modernidade e continuam produzindo cultura,
história e conhecimento. Ver mais em: GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla cons-
ciência. Trad. Cid Knipel Moreira. Editora 34: Rio de Janeiro; Universidade Candido Mendes, Centro de
Estudos Afro-Asiáticos, 2012.
212
decolonial, busco aqui estabelecer diálogos sobre ensino de ciências e
os conhecimentos da diáspora africana por meio de itinerários peda-
gógicos contra hegemônicos que visam a difusão igualitária de saberes
e, consequentemente, a produção de uma educação antirracista.
213
Este processo de dominação se reproduz em três dimensões: a
colonialidade do ser, saber e poder, como apontado por Maldonado-
Torres (2007):
214
Neste sentido, livros didáticos que negam a diversidade huma-
na e cultural através dos estereótipos, embranquecimentos ou apaga-
mentos históricos não são meros acasos, mas sim consequências da
colonialidade, em que a ideia de raça e racismo constituem o princípio
organizador das relações de poder do sistema mundo operando atra-
vés desses materiais.
Para além do currículo e dos materiais didáticos, Nilma Lino Go-
mes (2019) aponta que o colonialismo e a colonialidade ainda se fa-
zem presentes na educação brasileira. Eles se expressam por meio da
postura e pensamento arrogante de professores(as) e educadores(as),
que muitas vezes são contra a diversidade étnica, racial, sexual e ideo-
lógica existentes nas escolas, ou então quando disponibilizam aos es-
tudantes leituras que reforçam as relações de poder sem fazer a devida
crítica sobre as limitações e contradições dessas leituras.
Nesta perspectiva, podemos também apontar a colonialidade
do saber no ensino de ciências quando há falta de representatividade
positiva negra e indígena nos livros didáticos, e por outro lado, a fre-
quente presença destes corpos quando o assunto converge para pato-
logias relacionadas à pobreza.
Segundo Wortmann (2001), esta estereotipação ocorre porque o
currículo de ciências é construído sob os pressupostos médicos e da
história das ciências médicas. Além disso, há um longo histórico de
exploração de corpos negros como cobaias em experimentos científi-
cos, ratificados pela medicina ocidental7. Assim, o currículo de ciên-
7 Vide o caso de Sara Baartman, conhecida como Vênus Negra. Ver em: DAMASCENO, J. O corpo do
outro. Construções raciais e imagens de controle do corpo feminino negro: O caso da Vênus Hotento-
te. In: Fazendo Gênero - Corpo, Violência e Poder. de 25 a 28 de agosto de 2008, Florianópolis. Anais.
Florianópolis, 2008. Disponível em: <https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/o-corpo-
-do-outro-construc3a7c3b5es-raciais-e-imagens-de-controle-do-corpo-feminino-negro-o-caso-da-
-venus-hotentote-janaina_damasceno.pdf>. Acesso em 20 de mar. de 2021.
215
cias é construído como uma ciência única, com leis e interpretações
universais dos fenômenos naturais, se impondo aos estudantes como
verdades absolutas ao passo que produz e reproduz representações es-
tereotipadas dos povos não-brancos.
A elaboração autoritária de currículos construídos por uma úni-
ca ótica e monocultural é apontado por autores como Mignolo (2007),
Boaventura S. Santos (2009) e Gomes (2019), como um mecanismo de
colonialidade do saber, um paradigma da modernidade ocidental que
hierarquiza e elege alguns conhecimentos científicos como verdadei-
ros e rejeita os saberes de outros povos.
Esta hierarquização e colonialidade do saber também se faz
presente no campo quando pesquisas de levantamento bibliográfico,
como a realizada por Jeobergna de Jesus; Marília Costa Santos da Pai-
xão e Christiana Andrea Vianna Prudêncio (2019), identificam a au-
sência de trabalhos que interseccionam as temáticasde ensino de ciên-
cias comos saberes de povos não europeus.
Para Bernadino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2019) a
negação e apagamento da epistemologia também é um instrumento
refinado para a continuidade do processo de colonização do ser e do
saber, em que a persistente negação desses outros corpos como pro-
dutores de conhecimentos, torna a educação monocultural com um
único saber validado.
Outros estudos foram reunidos no livro Enseñanza de las ciencias
y cultura: múltiples aproximaciones, elaborado pela professora colom-
biana Adela Molina et. al (2014). Nesta obra os(as) autores(as) também
apontam as dificuldades dos (as) professores (as) de ciências trabalha-
rem a diversidade cultural e indicam as concepções epistemológicas
eurocêntricas como um desafio a ser superado no ensino de ciências
216
da Colômbia, além da necessidade de uma formação que contemple a
diversidade epistêmica, os aspectos culturais e históricos.
Considerando que o campo da educação tem uma responsabili-
dade ética e política com a produção do conhecimento, é mister pensar
sobre formas e estratégias de descolonização da educação, iniciando
pelo pensamento pedagógico e o currículo. Estes são mecanismos de
poder que formam subjetividades, e se não lutarmos para que sejam
descolonizados servirão somente à manutenção das opressões (GO-
MES, 2019).
217
Os movimentos negros e indígenas sempre interviram por edu-
cação, mas as movimentações nas políticas educacionais a fim de tor-
nar realidade uma educação que representasse esses povos, só entrou
em discussão nos países da América Latina em meados de 1990. Essas
mudanças foram impulsionadas pelos movimentos sociais (CUNIN,
2004; MACEDO, 2011) e por medidas de valorização das identidades,
engendradas por agências internacionais como a UNESCO (CRUZ,
2014).
Numa conjuntura de ascensão do multiculturalismo, com um
cenário de pressão interna dos movimentos sociais e dos órgãos in-
ternacionais, foram promovidas políticas multiculturalistas que aos
poucos foram se inserindo nos currículos nacionais (RINCÓN, 2018;
MACEDO, 2011).
Na Colômbia, por exemplo, esse foi um período de intensas re-
formas educacionais. O Estado colombiano, que até os anos 1990 era
monocultural e subalternizava negros e indígenas nos materiais di-
dáticos, passou por uma redefinição de identidade enquanto estado-
-nação para criar identificação com as diversas culturas colombianas.
Com a promulgação da Constituição colombiana em 1991, que foi um
marco multicultural, passaram a representar indígenas como porta-
dores dos saberes ancestrais e exaltar a diversidade colombiana como
uma riqueza da nação (RESTREPO, 2013).
Um exemplo de abordagem multiculturalista para o ensino de
ciências foi demonstrado no livro de Molina et. al (2014) quando al-
guns professores entrevistados reconheceram a diversidade cultural
do país, mas apontaram que só ensinam outras ciências quando elas
podem ser comprovadas pelos métodos científicos hegemônicos.
Também pude identificar essa abordagem em algumas estudan-
tes que participaram da pesquisa de mestrado:
218
Há muitas culturas e muitas etnias e desde pequenos deve-
mos aprender que somos todos seres vivos e como humanos
somos todos iguais, não é a cor de pele que vai diferenciar
[...] por que ensinar outro tipo de ciências? Nós professores
devemos contextualizar suas (a dos estudantes) culturas e
ensinar uma mesma linguagem (Entrevistada 2, 2018, tradu-
ção nossa).
219
de do ensino da cultura e história africana, afro-brasileira e indígena
(BRASIL, 2008).
Tanto na Colômbia como no Brasil, a Cátedra de Estudos Afro-
-colombianos e as Leis 10.639/03 e 11.645/08 foram marcos impor-
tantes para a educação da população negra e indígena, pois, a partir
delas, houve a criação de diretrizes e orientações pedagógicas para as
escolas e formação de professores, além do incentivo para a produção
de livros didáticos que colocassem a história e cultura desses povos em
perspectiva.
Entretanto ainda hoje, há uma falta de planejamento e execução
para atingir os objetivos das referidas leis educacionais tanto no Brasil
como na Colômbia. Dessa maneira os trabalhos realizados em sala de
aula e na formação de professores, na maioria das vezes, ficam a cargo
de iniciativas individuais de educadores ou de grupos de estudos e co-
letivos que trabalham e pesquisam a temática.
Considerando que Gomes (2019) salienta olhar para o currículo
como algo vivo, aquele que se faz em sala de aula, que está no dia a
dia, nas ações, nos discursos e nas histórias de vida, pois é nele que
acontecem as insurgências pedagógicas que vão corroborar para a des-
colonização de saberes e do campo da educação. As semelhanças entre
Brasil e Colômbia, direcionaram minhas observações para as ações de
professoras e licenciandas, a fim de compreender a atuação desses in-
divíduos no que se refere ao ensino de ciências e as relações raciais.
220
e dos colegas de profissão. E sobre a criação desse projeto a professo-
ra Estela desabafou: “Esse conhecimento entra, mas entra marginal,
sem permissão, sem ser autorizado, entra sem ser legitimado, entra
porque a professora quer que entre, não porque o institucionalizam!”
(ESTELA, 2018, tradução nossa). Assim, a presença de uma profes-
sora brasileira interessada em conhecer esse trabalho poderia signifi-
car um reconhecimento da importância do projeto realizado por essas
professoras.
Primeiramente assisti uma aula da professora Estela depois uma
aula da professora Johanna e combinamos de nos encontrar para uma
entrevista sobre ensino de ciências. Em nossa conversa, como ainda
estava pensando sobre a prática que havia assistido, uma de minhas
primeiras perguntas foi sobre o que devemos ensinar no ensino de
ciências:
221
ritório com as mesmas histórias, com uma mesma geopolíti-
ca. Acredito também que o ensino de ciências poderia ser um
ensino que fosse mais do que uma série de conceitos, pois,
somos organizados pela noção de conceitos. Mas poderia ser
um assunto mais voltado para a episteme, ou seja, como en-
tender a lógica das epistemes; da episteme ocidental, afro-
descendentes, indígenas e ciganas (que também temos em
Colômbia) e se for possível as de todo o mundo! (PROFESSO-
RA JOHANNA, 2018, tradução nossa).
222
na, produzidas dentro e fora da academia. E essa atitude fica evidente
quando Estela fala sobre o ensino de ciências:
8 Gliricidia sepium.
223
Para a professora Estela, classificar as plantas em quentes ou
frias ou pelo seu cheiro é um fazer científico que os povos africanos
da diáspora que chegaram na Colômbia cultivaram. Ela, enquanto mu-
lher negra, narra sua experiencia ancestral sobre esse conhecimento e
o identifica como saber próprio. Mas ao estabelecer um paralelo com
o modelo de classificação da ciência hegemônica, podemos visualizar
nessa ação pedagógica uma das características presente no pensamen-
to decolonial, a de ser um pensamento fronteiriço. Maldonado-Torres
(2016) identifica o pensamento decolonial como um pensamento de
fronteira, pois ele está na zona de encontro entre o conhecimento que
se impõe como hegemônico e o conhecimento que emerge do subal-
terno. Ademais que:
224
Ainda sobre a prática pedagógica perguntei às professoras como
que elas inserem as questões raciais em conteúdo como evolução, por
exemplo. A professora Estela (2018) disse que gosta de começar essa
aula mostrando aos estudantes as pesquisas que foram feitas sobre
craniometria e questioná-los, para que através da própria análise os
estudantes desconstruam algumas teorias evolucionistas que susten-
tam o racismo.
Essa prática da professora Estela é quase uma demonstração do
que ela nos disse sobre o racismo científico e a gravidade gerada quan-
do algumas teorias cientificas são lidas no social. Em concordância
sua aula propõe uma discussão não só sobre a história das ciências,
mas também, sobre a formação do entendimento de quem é humano e
quem não é a partir de teorias cientificas.
Quando perguntei sobre evolução e relações raciais para a pro-
fessora Johanna, ela apresenta uma outra abordagem ao tema:
225
nica, o que nos remete a colonialidade do saber. E apesar de aborda-
gens diferentes, me pareceu que a visão e prática das duas professoras
são complementares, o que reflete no sucesso do projeto em relação a
aceitação e participação dos estudantes em sala de aula.
As professoras, também nos mostram que as aulas de ciências
pode e deve ser muito mais do que decorar nomes científicos ou regras
ditas universais, ela deve ser um espaço crítico, inclusive à própria no-
ção de ciências, possibilitando que se discuta a participação da ciência
hegemônica na colonização do ser, do saber, do poder.
Um fator interessante entre as duas professoras é que quando
perguntei sobre as abordagens teóricas que sustentaram a escrita do
projeto que desenvolveram na escola e as teorias que sustentam suas
práticas, Johanna (2018) comentou que usou muito a pedagogia da li-
bertação e leu muito os decoloniais. Já Estela respondeu:
226
Sobre a interculturalidade, Walsh (2007) afirma que essa corren-
te nasceu nos movimentos indígenas latino-americanos, na busca por
uma educação própria, dialógica e anticolonial. Entretanto, durante a
década de 1990 nas lutas por educação, políticas educacionais latino-
-americanas empregaram a interculturalidade escondendo seu caráter
descolonizador, isto é, com sentido de multiculturalismo. Este tipo de
uso político desencadeou a ideia de que multiculturalismo e intercul-
turalidade eram sinônimos.
Por isso Walsh (2001) propõe a interculturalidade crítica, isto é,
aquela que parte do problema estrutural que é racista e colonial, res-
gatando o sentido atribuído pelos movimentos indígenas. Assim, ar-
gumento que a ideia de interculturalidade criticada pela professora se
refere àquela cooptada pelas políticas públicas educacionais.
A ideia de raça como central nas falas e ações pedagógicas da
professora Estela, são estratégias pedagógicas alinhada ao pensamen-
to de Quijano (2005), que aponta a raça como estruturadora das rela-
ções sociais. Acredito que por esse motivo a professora afirma que os
decoloniais têm feito um bom trabalho.
Apesar de nenhuma das duas se identificarem como decoloniais,
elas apontam esse pensamento como um forte aporte teórico para a
construção do projeto, e quando observamos suas práticas com mais
cuidado, encontramos aí não só a possibilidade de um projeto decolo-
nial de ensino, mas também uma atitude decolonial. Para Maldonado-
-Torres (2016), um projeto descolonizador somado a atitude decolo-
nial compõe a consciência decolonial, isto é, aquela que provoca nos
sujeitos formas de ser e estar no mundo enquanto buscam “desmante-
lar” (MALDONADO-TORRES, 2016, p.94) a colonialidade em todas as
suas esferas.
227
Dessa maneira, para descolonizar o ensino de ciências é necessá-
rio reorientar as bases epistemológicas e perceber o mundo a partir de
outro viés. Sendo assim, considero os itinerários pedagógicos dessas
professoras, tanto os assistidos quanto os narrados, como insurgên-
cias descolonizadoras para o ensino de ciências. Já que, por meio desse
projeto educativo, suas ações e práticas, buscamdeslocar as narrativas
que fixam a diáspora africana no projeto colonial, colocando em pauta
outras narrativas de experiências desses povos, agindo na colonização
ao passo que resistem a ela e destacando seus lugares de sujeito na
história.
O último tópico que conversamos foi sobre a formação de pro-
fessores de ciências para a descolonização, e as duas professoras me
responderam que durante a graduação não tiveram nenhuma forma-
ção ou extensão em que havia o debate racial.
A professora Estela (2018) disse que sua formação racial e polí-
tica não aconteceu nas aulas, mas nos coletivos universitários negros
dos quais participava. Já a professora Johanna (2018), disse que em
sua formação também não teve nada e só começou a se atentar para o
tema quando já estava em sala de aula e viu uma criança chamando a
outra de “seu negrito”. Por isso ela aponta a importância e necessidade
de formar professores(as) que discutam a temática racial, pois consi-
dera que “Trabalhar esses temas tornam as crianças mais sensíveis a
debater o racismo” (JOHANNA, 2018, tradução nossa).
Johanna (2018) nos diz que em sua formação, as leituras sobre
racismo só ocorreram quando ela estava no doutorado. As leituras
sobre educação intercultural também vieram durante o doutorado,
quando participou do Grupo de estudos em Interculturalidade, Ciên-
cias e Tecnologia-INTERCITEC, coordenado pela professora Adela
Molina. É importante ressaltar que na Colômbia, o grupo INTERCITEC
228
é referência nos estudos sobre interculturalidade e ensino de ciências
(CRUZ,2019).
Uma de minhas interlocutoras para a pesquisa de mestrado, fa-
zia parte do grupo de pesquisa INTERCITEC e na época desenvolvia
um projeto de iniciação cientifica sobre o ensino de ciências em uma
comunidade indígena de Bogotá: “No meu trabalho final de graduação,
minha proposta é uma alternativa pedagógica a partir do que eles fa-
zem[..]” (E1, 2018, tradução nossa). Ela foi a única interlocutora a falar
sobre e a desenvolver um trabalho de conclusão de curso para o ensino
de ciências em outras perspectivas.
As demais licenciandas que entreviste, notei pouco interesse em
discutir questões raciais no ensino de ciências, entretanto a ausência
deste debate é uma realidade do campo. Por isso dialogar com essas
professoras e licenciandas em biologia, me geraram algumas reflexões
sobre o debate racial, formação de professore(as) e caminhos para a
descolonização do ensino de ciências.
Um primeiro pensamento se refere a trajetória de mulheres ne-
gras no ensino de ciências a partir das aproximações que identifiquei
entre a minha trajetória e a da professora Estela. Nossos incômodos no
campo do ensino de ciências e formação política e racial nos mostram
mais do que as ausências de debate racial no campo.
Acredito que essas similaridades nos aproximam do que Lélia
Gonzáles (1988b) descreve como Amefricanidade, uma categoria para
identificar não as semelhanças de opressões geradas pelo projeto co-
lonial, mas sim, as semelhanças entre as estratégias de resistências
culturais e as formas alternativas de organizações livres, criados por
africanos(as) em diáspora nas Américas.
Nesse sentido, ser uma mulher amefricana e professora de ciên-
cias é buscar por estratégias pedagógicas que incorporem as perspec-
229
tivas dos povos que foram subalternizados nas práticas educacionais
e nos currículos, buscando uma reformulação da educação e do ensino
de ciências e uma difusão igualitária de saberes.
O segundo ponto se refere aos questionamentos que as interlo-
cutoras propõem sobre as abordagens teóricas. Tanto a professora Es-
tela quanto a professora Johanna, fazem denúncias sobre abordagens
teóricas que são incorporadas, principalmente no currículo, e para o
ensino de ciências se tornam limitantes quando não dialogam ou ne-
gam as relações de poder existentes.
Como dito pela professora Estela (2018), não há diálogo quando
as relações são assimétricas, e não há possibilidade de estabelecer diá-
logos de saberes quando alguns conhecimentos ainda são lidos como
conhecimentos étnicos ou outros. E sobre essas terminologias Maldo-
nado-Torres (2016, p.77) explica:
230
como uma prática orientado pela atitude e consciência decolonial. A
transdisciplinaridade propõe por primazia a investigação das formas
de exclusão e as relações de poder do ser, saber e poder, se apropriando
criticamente do uso de diversos métodos e construindo novas catego-
rias (MALDONADO-TORRES, 2016).
Assim, é urgente que a formação de professores para o ensino de
ciências seja crítica e proponha diálogos de saberes considerando as
relações de poder. Contudo, enquanto não temos essa formação, cabe
a nós professores(as) estarmos atentos quanto as limitações de abor-
dagens teóricas que anunciam trabalhar com a diversidade e a inclu-
são, mas deixam de lado as relações de poder.
6. CONCLUSÃO
Em suma, procurei brevemente com essa pesquisa-narrativa dia-
logar sobre a descolonização do ensino de ciências a partir das práticas
pedagógicas de duas professoras. Envolver-me nessa discussão permi-
tiu revisitar a pesquisa desenvolvida na Colômbia, bem como foi uma
oportunidade de rever minhas práticas, ações e concepções enquanto
professora de ciências e contribuir com o debate no campo.
Além disso, a participação das professoras de ciências e a visi-
tação em suas aulas foram essenciais para lançar mão do pensamento
decolonial e respaldar teoricamente as ações pedagógicas, para evi-
denciá-las como uma proposta de ensino de ciências descolonizadora
e antirracista. Sobretudo nos tempos distópicos que vivemos - conse-
quências trágicas de uma sociedade erguida em lógicas colonialistas
- experiências como essas nos ajudam a oxigenar nossas imaginações
sobre as ciências naturais e permitem projetar no cotidiano constru-
ções de novos mundos possíveis.
231
Por fim, não poderia terminar esse texto sem deixar meus agra-
decimentos às professoras Johanna Rey y Stella Escobar por compar-
tilhar seus conhecimentos e estabelecer um verdadeiro diálogo de
saberes entre professoras. Também agradeço a professora Adela Mo-
lina pela parceria institucional durante o mestrado e as estudantes de
graduação que participaram da pesquisa. Deixo meus agradecimen-
tos também ao professor Wilmer Villa, com quem fiz duas discipli-
nas que contribuíram muitíssimo para o que chamo aqui de despertar
decolonial.
REFERÊNCIAS
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Bras.
Ciênc. Polít. Brasília, n.11,p.89-117, 2013.
232
ponível em: http://www.suin- juriscol.gov.co/viewDocument.asp?ru-
ta=Leyes/1620332. Acesso em: 20 de mar. de 2021.
233
FANON, Frantz. Peles negras e Máscaras brancas. Salvador: EDU-
FBA, 2008.
234
MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decoloniali-
dade. Sociedade e estado, v. 31, nº. 1, p. 75-97, 2016.
235
WALSH, Catherine. Introduccion: (Re)pensamiento crítico y decolo-
nialidad. In: WALSH, Catherine. Pensamiento crítico y matriz (de)
colonial: Reflexiones latino-americanas. Quito: Abya Yala, 2005.
236
C A P Í T ULO 8
1. INTRODUZINDO A DISCUSSÃO
A diversidade cultural é uma característica marcante da popu-
lação tendo como base sua matriz histórica. Entre as influências in-
dígenas, africanas e europeias, em consequência do racismo na socie-
dade brasileira, uma possui maior destaque em comparação às demais
quando pensamos na relação entre os diversos grupos étnicos e raciais
que compõem a sociedade.
Com isso, é importante considerarmos o conceito de relações ét-
nico-raciais como sendo “aquelas estabelecidas entre os distintos gru-
pos sociais, e entre indivíduos destes grupos, informadas por conceitos
e ideias sobre as diferenças e semelhanças relativas ao pertencimento
racial destes indivíduos e dos grupos a que pertencem” (VERRANGIA;
SILVA, 2010, p. 709).
237
O preconceito e a discriminação racial têm vitimado a população
negra durante séculos. Ao referenciarmos o cenário brasileiro, é pos-
sível afirmar que o alvo vincula-se nas relações étnico-raciais entre
pessoas brancas e negras. Macedo (2017, p. 389) argumenta que “as
pessoas negras sempre foram alvo das mais diversas discriminações
onde a sociedade, embasada por preconceitos, marginaliza e empurra
para fora do núcleo social essa parcela da população”. Os atos pre-
conceituosos e de discriminação ocorremem diversos espaços sociais,
entre eles a escola.
As Instituições de Ensino da Educação Básica, por exemplo, vis-
tas como sendo um local de ampla relação entre indivíduos, precisam
reestruturar suas práticas pedagógicas buscando desmitificar este ce-
nário que põe no topo a cultura europeia como a dominante no Brasil,
pertencendo apenas a ela os contributos que foram e são necessários
para o desenvolvimento científico e tecnológico do país.
É evidente que a escola não é o único espaço de promoção da
educação das relações étnico-raciais, pois se trata de um processo que
ocorre, principalmente, no convívio familiar e social, porém, as insti-
tuições de ensino são vistas como locais privilegiados para a promoção
da educação das relações étnico-raciais, como descrevem Verrangia e
Silva (2010). Na oportunidade, aproveitamos este privilégio que a es-
cola possui para contribuir significativamente no processo de ensino e
de aprendizagem incluindo a população negra como grupo étnico que
apresenta grande parcela de contribuição para formação da sociedade.
Podemos tomar como referência a Lei 10.639/2003 que estabe-
lece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana nas escolas, o que retrata a conquista do Movimento Negro
no Brasil. Antes deste marco legal as discussões relativas à população
negra no ambiente escolar eram regulamentadas pelas Constituições
238
Estaduais e leis Orgânicas dos Municípios, porém, de acordo com Sil-
va (2017) tínhamos localidade e estados nos quais os estabelecimen-
tos particulares de ensino não eram alcançados. A referida legislação
altera o mais importante regulatório contemporâneo da educação no
Brasil- as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
Assim como as áreas de Educação Artística, Literatura e Histó-
ria, a lei tem suas potencialidades para implementação nos diversos
componentes curriculares da educação básica, entre eles a disciplina
de Ciências e Biologia ofertadas no Ensino Fundamental (anos iniciais
e finais) e Ensino Médio, de acordo com orientações presentes, desde
2004, no Parecer 003 do Conselho Nacional de Educação.
Este estudo visa apresentar, através de um estudo bibliográfi-
co, fundamentos de uma educação para as relações étnico-raciais no
ensino de Ciências e Biologia como forma de implementação da Lei
10.639/2003 na escola, enfatizando a população negra e sua diversida-
de étnico-cultural para práticas pedagógicas na educação básica.
Inicialmente são apresentadas as questões metodológicas que
utilizamos para obtenção dos dados. Em seguida convidamos o/a lei-
tor/a a refletir acerca do campo de estudo que nos fará pensar sobre a
educação das relações étnico-raciais e a busca de uma educação antir-
racista em nossas instituições de ensino. Posteriormente foi tratada a
Lei 10.639/2003 e os principais desafios para sua implementação nas
escolas. Por conseguinte, apontamos contribuições da História e Cul-
tura Afro-Brasileira e Africana para o ensino de Ciências e Biologia na
educação básica através da apresentação de fundamentos para práti-
cas pedagógicas em um viés ambiental, biológico, social e histórico
decorrentes da cultura afro-brasileira e africana enquanto possibilida-
des de planejamento de propostas para o trabalho dos/as professores/
as em suas aulas. Por fim, as considerações finais do estudo condu-
239
zem a refletirmos sobre as diferentes maneiras de educar para as rela-
ções étnico-raciais enquanto contribuição para implementação da Lei
10.639/2003 no ensino de Ciências e Biologia.
2. PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa configura-se enquanto um estudo de cunho bibliográ-
fico que, de acordo com Gil (2008), trata-se de pesquisas tendo como
base materiais já elaborados, constituídos por livros e artigos científi-
cos. A mesma foi realizada no âmbito do componente curricular Tópi-
cos em Processos de ensino-aprendizagem: Educação das Relações Étni-
co-raciais ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB) durante o segundo se-
mestre do ano de 2018, no qual o primeiro autor deste capítulo esteve
matriculado tendo o coautor e coautora como docentes responsáveis.
O presente capítulo apresenta uma pesquisa respaldada na abor-
dagem qualitativa e alicerçada em um objetivo exploratório que busca
apresentar fundamentos para educar para as relações étnico-raciais
no ensino de Ciências e Biologia como forma de implementação da Lei
10.639/2003 nas escolas por meio de práticas pedagógicas.
Os textos estiveram presentes em módulos que foram trabalha-
dos ao decorrer do componente curricular no PPGE da UFPB, a saber:
módulo I- Intelectuais negros/as; módulo II- Políticas Públicas; e mó-
dulo III- Currículo, o primeiro deste Programa de Pós-Graduação uni-
camente voltado para a discussão da temática racial.
Através dos textos propostos para estudo e levando em conside-
ração o objetivo da pesquisa voltada a educação das relações étnico-
-raciais no ensino de Ciências e Biologia, foram selecionados 15 (quin-
ze), dos 22 (vinte e dois) textos propostos na disciplina, para compor
a análise dos dados e produção do desenvolvimento/reflexão acerca
240
do campo de estudo, havendo, complementação com outras produ-
ções relevantes para as discussões. Foram descartadas as produções
que não abordavam direta e especificamente o campo de estudo esco-
lhido. A análise dos dados consistiu em leituras, na íntegra, dos artigos
científicos publicados em livros e em revistas/periódicos da área de
Educação e Ensino que serviram como referências para as discussões
na disciplina.
241
(FONSECA, 2016) havendo a discriminação racial e a predominância
europeia como grupo dominante.
Nos dias de hoje, busca-se por ampliar o reconhecimento da
importância da população negra na formação da sociedade brasileira.
Importante destacar as políticas afirmativas que visam incluir negros e
negras nos espaços que historicamente lhes foram negados (MACEDO,
2017).
As tensas relações étnico-raciais no Brasil são cada vez mais
discutidas e buscam combater a discriminação racial (VERRANGIA;
SILVA, 2010). Este combate ainda é algo que precisa aprimorar-se, e
a escola, através da oferta de uma educação antirracista, pode e deve
contribuir para a mudança deste cenáro.
O objetivo da educação das relações étnico-raciais, segundo Silva
(2007, p. 490) é formar “[...] cidadãos, mulheres e homens empenhados
em promover condições de igualdade no exercício de direitos sociais,
políticos, econômicos, dos direitos de ser, viver, pensar, próprios aos
diferentes pertencimentos étnico-raciais e sociais”. É preciso haver a
promoção de um ensino que compreenda e perceba as diversas visões
de mundo e as colaborações dos diferentes povos que contribuíram
para a constituição da nação brasileira (SILVA, 2007).
Conforme argumenta a autora, a educação das relações étnico-
-raciais precisa ser conduzida baseando-se nos princípios dispostos
nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana (aprovada em 10 de março de 2004) que aponta a consciência
política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de
direitos; ações de combate ao racismo e discriminações (SILVA, 2017).
É por intermédio das lutas e resistências do Movimento Negro,
desde o século XIX, que a população conquista seus direitos. Isso re-
242
mete, por exemplo, no campo da legislação através da criminalização
do racismo na Constituição Federal de 1988 e a promulgação de mar-
cos legais que trazem à tona a regulamentação de temáticas voltadas à
diversidade cultural nos currículos da educação básica, o que previa a
oferta da Educação das Relações Étnico-raciais e o estudo da História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana através de “conteúdos, atitudes
e valores, a serem estabelecidos pelas instituições de ensino e seus
professores, com apoio a supervisão dos sistemas de ensino, entidades
mantedoras e coordenações pedagógicas” (MULLER; COELHO, 2013,
p. 38).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Africana, por meio de seu parecer, visa dar uma resposta à área
da educação procurando considerar, com base em políticas de ação
afirmativa, reconhecer e valorizar sua história, cultura e identidade. A
própria diretriz aponta a necessidade de haver a reeducação dos indi-
víduos diante das relações entre negros/as e brancos/as, o que desig-
nam como relações étnico-raciais (BRASIL, 2004).
A escola é um local onde se estabelecem relações entre as pes-
soas pertencentes a diversos grupos étnico-raciais, deste modo, é
preciso promover uma educação que as levem a conhecer, respeitar e
compreender as diferenças perceptíveis para a convivência humana.
Tais diferenças são tomadas como ponto de partida para a discrimina-
ção racial, o que preocupa e agrava a situação educacional refletindo
socialmente. É evidente, segundo as diretrizes (BRASIL, 2004), que é
preciso haver um trabalho conjunto, onde processos educativos esco-
lares, políticas públicas e os movimentos sociais possam articular-se
entre si, estando sempre em busca de promover à ética, já que isso não
está limitado apenas à escola (BRASIL, 2004).
243
Infelizmente, percebemos o quanto o fenótipo leva as pessoas a
julgar o próximo e através de suas características como cor de pele, ca-
belo, entre outras, acabam por classifica-las em grupos sociais hierar-
quizados. Isto nos remete a questão da raça, onde brancos/as e negros/
as ocupam espaços “diferentes” no mundo contemporâneo. Contudo,
a educação das relações étnico-raciais “impõe aprendizagens entre
brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfian-
ças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual,
equânime” (BRASIL, 2004, p. 14), para que as diferenças não se tornem
desigualdades.
244
A relevância do tema não passa apenas pela necessidade de
fazer um balanço dos resultados da lei- que já tem mais de
uma década e, nesse período, foi complementada pela Lei nº
10.645/08- e do contexto das demais políticas públicas que
procuram enfrentar o que se reconhece como a permanên-
cia da desigualdade entre negros e não negros (JANZ; CERRI,
2018, p. 118).
245
“Nesse sentido, a inovação trazida pela legislação consiste na possibi-
lidade de se ampliar a categoria “inclusão”, com vistas à consideração
de diversos segmentos da sociedade brasileira, antes ausentes das re-
presentações da nacionalidade” (MULLER; COELHO, 2013, p. 45).
Silva (2017) descreve que a Lei 10.639/2003 foi regulamentada
em 17 estados brasileiros, entre eles Pernambuco e Paraíba, resultan-
do em vários desdobramentos como a criação de novas resoluções e
outras leis que contribuem para as discussões da educação para as re-
lações étnico-raciais, entre esses, pode-se destacar o Parecer 003/2004
do Conselho Nacional de Educação (CNE) que apresenta as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana colabo-
rando para a visibilidade e inserção da cultura da população negra no
contexto escolar. Rocha e Silva (2013) referenciam as diretrizes como
sendo um avanço no currículo educacional, que passam a atingir os
diferentes níveis e modalidades de ensino.
É válido reconhecermos o protagonismo do Movimento Negro
com a conquista de introduzir a temática da lei nas escolas, porém,
muitos são os desafios que acabam impossibilitando sua implemen-
tação nas instituições de ensino. Esses desafios perpassam o projeto
político-pedagógico, a organização curricular, a gestão escolar, a for-
mação dos/as profissionais da educação e a produção de materiais di-
dáticos (MULLER; COELHO, 2013).
Em conformidade ao descrito por Silva (2017):
246
reclamada falta de textos e materiais didáticos. Estes, hoje, já
não tão escassos, mas nem sempre facilmente acessíveis. No
entanto, não há como desconhecer experiências desenvolvi-
das por professores negros e não negros, na sua grande maio-
ria contando com apoio do Movimento Negro e que com certe-
za proporcionaram apoio para a formulação do Parecer CNE/
CP 3/2004, bem como serviram de exemplo e suporte para
que se execute esta determinação legal (SILVA, 2007, p. 500).
247
danças nos livros didáticos para possibilitar uma educação
que contemple a diversidade étnico-racial brasileira (REGIS;
SENGULANE, 2017, p. 176).
1 A primeira regulamentação válida para toda a UFPB foi a Resolução 016/2015 que foi atualizada
recebendo o número 029/2020 ambas do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CON-
SEPE) da UFPB.
2 Regulamentado pela Resolução 217/2012 da Secretaria Geral dos Conselhos da Administração
Superior. Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão.
248
nadas à igualdade racial e isto, ainda, é visto de forma preconceituosa
(ALMEIDA; SANCHEZ, 2017).
Podemos considerar algumas questões nas quais estão vincula-
dos os impasses que levam o não cumprimento do proposto pela Lei
10.639/2003 nas instituições de ensino públicas e privadas. Para tal,
é relevante referenciar a ausência de políticas públicas educacionais
que impulsionem e, principalmente, fiscalizem a implementação da
legislação nas escolas. Acredita-se que a proposta de novas políticas
tende a contribuir, por exemplo, para a formação de gestores/as e pro-
fessores/as buscando suprir a problemática na qual os profissionais da
educação apontam frequentemente: a ausência de formação que dis-
ponibilize formas de considerar a lei na escola e, posteriormente, nas
aulas dos diferentes componentes curriculares.
Nesse aspecto e a título de exemplo, a gestão escolar ocupa,
segundo Macedo (2017), um lugar de liderança na escola, na qual as
políticas educacionais dependem da mesma para que ocorra sua libe-
ração e inclusão no Projeto Político-Pedagógico da escola. Quando a
gestão não se atenta e não busca conhecer e considerar esta lei, os/
as demais profissionais da educação, em especial os/as professores/
as, encontram-se sem apoio pedagógico para trabalhar as temáticas
em sala de aula. É evidente que o não cumprimento da lei não parte
apenas dos/as docentes, a resistência pela comunidade escolar, como
um todo, resulta na falta de comprometimento e isto vem se perpe-
tuando. Macedo (2017) concluiu em sua pesquisa que a gestão escolar
não enxerga como importante a abordagem da lei na escola. Este fato
nos faz pensar e perceber que os problemas que impedem a implemen-
tação da lei não dependem, unicamente do/a professor/a, mas sim, de
toda a conjuntura educacional que configura a escola como instituição
de ensino. A gestão escolar, muitas vezes, tem consciência do exigido
249
pela legislação, mas não a reconhece ao ponto de “refletir quanto ao
seu papel como agente de transformação educacional, o que implicaria
em perceber-se racista” (MACEDO, 2017, p. 405).
Um ponto pertinente a tratar é o caso relatado por Macedo
(2017) onde menciona o que ocorre na maioria das escolas brasileira.
Elas “consideram” as temáticas afro-brasileiras e africanas apenas em
datas comemorativas como o Dia da Abolição da Escravatura3 (13 de
maio) e o Dia da Consciência Negra (20 de novembro), havendo tam-
bém as comemorações folclóricas no mês de agosto.
Mesmo diante de tantas dificuldades, precisamos reconhecer os
avanços. Para isso, Silva (2017) compara o ponto de partida em relação
às legislações estaduais e municipais, que antes não atendiam a uma
demanda nacional, e aponta para uma norma nacional tendo o poder
de ser considerada em todas as instituições de ensino (SILVA, 2017).
Outro ponto que destacamos é com relação à abordagem dos es-
tudos sobre educação das relações étnico-raciais em universidades no
Brasil como é o caso da Universidade Federal Rural de Pernambuco e
a Universidade Federal da Paraíba com a implementação de discipli-
nas nos cursos de licenciatura e bacharelado, incluindo os cursos de
Ciências Biológicas. No entanto, os desafios ainda estão presentes em
nosso dia a dia e requer comprometimento dos órgãos públicos e da
comunidade escolar, para que possamos, coletivamente, mudar o ce-
nário e tornar a escola um espaço de ampla relação racial.
3 Ressaltamos que os diversos seguimentos do Movimento Social Negro ressignificou o “13 de maio”
como dia de luta denunciando que a ausência de uma política de inserção dos/as ex-escravizados/
as na sociedade de classe criou um abismo social que se arrasta até a atualidade. No processo de
recontarmos a nossa história no dia 25 de julho é uma data que vem sendo demarcada no calendário
nacional para ressaltar a contribuição das mulheres negras latino-americanas e caribenhas na cons-
trução de uma verdadeira sociedade igualitária e equidade.
250
5. HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA
E O ENSINO DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA SOB A ÉGIDE DA LEI
10.639/2003
As disciplinas de Ciências e Biologia apresentam uma carência
no que tange a abordagem da Lei 10.639/2003 nas aulas da educação
básica. Almeida e Sanchez (2017) diagnosticaram, em seu estudo, que
as disciplinas de História, Educação Artística e Língua Portuguesa são
os componentes curriculares em que mais se aborda a temática pro-
posta pela lei. Entretanto, muitas vezes essa abordagem não passa de
meras citações em datas comemorativas que as escolas vivenciam ao
decorrer do ano letivo. Sabe-se então que ainda se buscam meios de
tratar a cultura afro-brasileira e africana de forma efetiva e crítica nas
diversas disciplinas e que essas passem a contribuir para a inserção da
África na história do Brasil, mesmo diante de todos os percalços que a
levaram a se tornar uma temática invisível e ausente nas escolas.
Verrangia e Silva (2010) ao ter contato com professores/as de
Ciências por meio de cursos de formação continuada identificaram
que grande parte dos/as docentes não conseguem perceber as relações
que existem entre suas aulas e as atividades que a escola busca efetuar
para tratar das relações étnico-raciais em um processo educativo. Este
caso, possivelmente, surge por falta de orientação de cunho pedagógi-
co que colabore para que esses/as docentes percebam e (re)conheçam
as diferentes possibilidades de considerar temáticas que visam às rela-
ções étnico-raciais relacionando-as com objetos de estudos trabalha-
dos pela disciplina de Ciências e Biologia.
A seguir serão apresentadas possibilidades, entre as inúmeras
que existem, de considerar a cultura afro-brasileira e africana no en-
sino de Ciências e Biologia na educação básica como opção de imple-
251
mentação da Lei 10.639/2003, através da educação das relações étni-
co-raciais nas escolas.
O estudo realizado por José Antonio Novaes da Silva (2017) apre-
senta as Ciências Biológicas e seus conteúdos disciplinares como área
de conhecimento que indica caminhos para contribuir com a educação
das relações étnico-raciais. Conforme ressalta o autor, o Conselho Na-
cional de Educação já apontava as áreas das Ciências Naturais para o
debate da educação das relações étnico-raciais. Este debate é possível,
segundo as Orientações e Ações para a Educação das Relações Étni-
co-Raciais (BRASIL, 2006), quando abordamos as temáticas e relacio-
namos a estudos sobre genes e demais assuntos voltados à saúde da
população afrodescendentes como, por exemplo, a anemia falciforme.
Ao falar em Ta-meri (Antigo Egito), reportamos para estudos
relacionados ao campo da História. No entanto, em seu texto, Silva
(2017) nos conduz a conhecer e refletir criticamente sobre as contri-
buições do Antigo Egito, passando a desmitificar o discurso midiático
com relação à figura da “Cleópatra branca” como algo dominante e
característico do povo egípcio e passar a vê-lo de forma a destacar a
criatividade e o progresso de um povo que contribui para o desenvol-
vimento da ciência e tecnologia, como também, os avanços na área da
medicina que ocorriam no território localizado no nordeste da África
(SILVA, 2017).
Na oportunidade, o autor descreve as características da presen-
ça negra no Antigo Egito evidenciando fatos voltados a saúde da po-
pulação, como por exemplo, a identificação de um caso de câncer de
próstata em uma múmia. A biologia molecular passa a colaborar para
o estudo de temáticas raciais, uma vez que contempla a questão da
anemia falciforme identificadas em múmias dos tempos remotos que
revela doenças prevalentes da população negra (SILVA, 2017).
252
A prática da sangria entre os Remetu-Kemi e povos da região
Congo/Angola apresentam possibilidades para articulação com o cur-
rículo de Ciências e Biologia como forma de abordar assuntos referen-
tes à população negra na escola. Segundo Silva (2017, p. 167), a san-
gria (ith ou pekha), é a “modalidade de tratamento médico por meio
do qual se retira sangue da pessoa enferma buscando o tratamento da
doença, é uma das mais antigas intervenções de saúde da história da
humanidade”.
Diante desses relatos, os/as professores/as podem se apropriar
deste assunto na busca de contextualiza-lo com conteúdos no âmbito
dos eixos propostos para o trabalho em Ciências e Biologia como: Ser
Humano e Saúde, Biologia Celular, Bioquímica, entre outros. No cam-
po da Biologia Celular (Citologia), Silva (2020) discorre sobre temas
que articulam esta área do conhecimento a Lei 10.639/2003 contri-
buindo assim para as aulas de Ciências no Ensino Fundamental, para
as aulas de Biologia no Ensino Médio e ainda para as de Biologia Celu-
lar no Ensino Universitário.
A partir da articulação entre essa temática e os demais critérios
disciplinares, a escola não foge do proposto nas disciplinas de Ciên-
cias e Biologia. Ações como essas, colaboram para que os/as estudan-
tes percebam as relações étnico-raciais de forma positiva e crítica,
desmistificando sua visão eurocêntrica acerca do assunto, inclusive do
preconceito e formas de discriminação com a população negra.
Na mesma perspectiva de trabalho que tange a educação das re-
lações étnico-raciais no ensino de Ciências e Biologia, Ana Cláudia Ro-
drigues da Silva (2013) nos traz um estudo sobre o lugar da categoria
raça na abordagem da anemia falciforme a partir do século XX, onde
a doença foi considerada específica da raça negra no Brasil. Conforme
nos mostra a autora, enquanto que a descoberta da anemia falcifor-
253
me tornou o negro inferior nos Estados Unidos, no Brasil, ela surge
na tentativa de valorização do negro, “tanto nos aspectos biológicos
de misturas das raças (miscigenação), como na exaltação de um povo
mestiço, tanto cultural como contribuindo para a identidade do povo
brasileiro” (SILVA, 2013, p. 43). Nesta perspectiva a abordagem de co-
nhecimentos sobre a genética ligados às doenças estudadas na escola
pode ser articulada com temáticas relacionadas a esses estudos na dis-
ciplina de Biologia no Ensino Médio.
Outro ponto pertinente que apresenta um grande potencial de
contribuição ao trato com a educação das relações étnico-raciais no
ensino de Ciências e Biologia é a consideração de conhecimentos tra-
dicionais oriundos de comunidades negras, como os quilombolas, que
podem ser expandidos para as demais comunidades tradicionais e não
tradicionais, e que passam a subsidiar o estudo de plantas e animais à
luz da cultura quilombola.
Douglas Verrangia e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2010)
enfatizam os conhecimentos tradicionais de matrizes africanas e afro-
-brasileira no ensino de Ciências e sugerem “[...] a elaboração de ativi-
dades de ensino que abordem, sob a ótica cultural das populações tra-
dicionais afro-brasileiras, o estudo: da vida; dos fenômenos naturais;
dos animais; das plantas; das relações entre formas vivas; da saúde;
da produção de alimentos; entre outros” (VERRANGIA; SILVA, 2010,
p. 715).
A proposta sugerida dispõe de um viés que pode ser ligado com
os estudos relacionados à etnobiologia. De acordo com Albuquerque e
Alves (2014) a etnobiologia se preocupa em estudar as diversas rela-
ções que são estabelecidas entre diferentes grupos humanos e o meio
ambiente focando, principalmente, nos conhecimentos produzidos
durante essa relação. Os estudos etnobiológicos vêm contribuindo
254
para a consideração dos conhecimentos tradicionais de diversas co-
munidades no contexto escolar.
Especificamente voltada à população negra brasileira, uma pes-
quisa realizada por Silva (2018)4 investigou as contribuições de co-
nhecimentos tradicionais de estudantes quilombolas na cidade de
Goiana-PE e de que forma esses conhecimentos poderiam contribuir
para a formação dos/as professores/as e, posteriormente, para o en-
sino e aprendizagem de Ciências em anos iniciais do ensino funda-
mental. Em seus resultados, o autor identificou que os/as alunos/as
quilombolas apresentavam conhecimentos tradicionais relacionados
ao ecossistema manguezal e, principalmente, a animais e plantas per-
tencentes a este ambiente natural, tendo em vista que a comunidade
onde residem encontra-se localizada na transição entre fragmentos da
mata atlântica e ambientes costeiros do litoral norte de Pernambuco.
Os conhecimentos tradicionais voltados aos seres vivos oportuniza-
ram um ensino contextualizado e tornaram as aulas de Ciências ainda
mais significativas por partir daquilo que o/a aluno/a já conhecia para
o que ele/a precisaria conhecer. Práticas Pedagógicas como as desen-
volvidas por Silva (2018) podem ser aplicadas nos diferentes contex-
tos, pois os conhecimentos estão ligados aos objetivos estudados na
disciplina de Ciências e Biologia e têm origem na cultura quilombola
podendo auxiliar para melhor compreensão de assuntos para alunos/
4 Os artigos científicos frutos da citada pesquisa podem ser consultados através das referências
abaixo:
SILVA, Joaklebio Alves; RAMOS, Marcelo Alves. Conhecimentos tradicionais e o ensino de Ciências na
Educação Escolar Quilombola: um estudo etnobiológico. Investigações em Ensino de Ciências, v. 24, n.
3, p. 121-146, 2019. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.22600/1518-8795.ienci2019v24n3p121>.
SILVA, Joaklebio Alves; RAMOS, Marcelo Alves. Contribuições da etnobiologia para formação continua-
da de professores de ciências da educação escolar quilombola. Revista Electrónica de Enseñanza de
las Ciencias, v. 19, n. 1, p. 132-158, 2019. Disponível em: <http://reec.uvigo.es/volumenes/volumen19/
REEC_19_1_7_ex1551.pdf>.
255
as que residem em outros contextos, principalmente quando estamos
tratando de questões ambientais (que foi o caso descrito). Ações como
essas fazem com que o conhecimento da cultura afro-brasileira e afri-
cana seja (re)conhecido pelas demais populações demostrando as prá-
ticas ambientais que perpassam de geração em geração beneficiando
toda a sociedade. No artigo intitulado Religiosidade afro-brasileira e o
meio ambiente, a pesquisadora Denise Botelho (2007) afirma:
256
do/a professor/a um grande esforço e interesse pela pesquisa. Entre-
tanto, o processo poderá ser facilitado a partir do momento em que a
temática seja trabalhada nos processos de formação docente, seja ela
inicial e/ou continuada.
Os conhecimentos sobre plantas medicinais oriundos de comu-
nidades quilombolas também podem ser abordados em sala de aula. A
etnobotância disponibiliza aportes teóricos e metodológicos que au-
xiliam o/a docente a considerar esses conhecimentos em suas aulas.
Neste sentido, Verragia e Silva (2010) também propõem que:
257
fosse atirado nas águas dos mares fosse devolvido nas praias
e, assim, surgiram as ondas dos mares em protesto ao descui-
do das pessoas. Como Yemanjá tem seus domínios naturais,
outros orixás também têm papel de guardiões e guardiãs da
natureza. (BOTELHO, 2007, p. 212).
258
assuntos voltados as Ciências, mídia e relações étnico-raciais no qual
o estudo sugere a:
259
onde ainda hoje faz parte da vegetação natural. Foi à Arábia a respon-
sável pela propagação da cultura do café” (BASTOS; AMAURO; BENI-
TE, 2017, p. 313).
Uma justificativa apontada pelas autoras e que nos faz identifi-
car os caminhos que pode auxiliar o/a professor/a ao considerar este
assunto em suas aulas conciliando-o com o ensino de Ciências e Bio-
logia é que, a cafeicultura brasileira obteve um grande avanço graças à
exploração do café por meio da mão de obra africana o que impulsio-
nou o mercado a partir do ano de 1930. Esta se trata de uma abordagem
possível para as aulas de Ciências e Biologia em que o/a docente pode
trabalhar várias questões, desde as relacionadas à agricultura até as
voltadas, interdisciplinarmente, com o ensino de Química e História.
Na mesma perspectiva, foi realizado um estudo por Juvan Pe-
reira da Silva e Anna Canavarro Benite (2017) visando o cumprimen-
to da lei por meio do ensino de Química fundamentando-se na mão
de obra nos garimpos de ouro trazidos e desenvolvido pelos africanos
escravizados no estado de Goiás. Esta prática pode ser levada para as
aulas de Ciências enfaticamente no ensino de temáticas relacionadas
à geologia (estudo da origem, percurso histórico, vida e estrutura do
planeta Terra) no Ensino Fundamental, havendo a possibilidade do/a
professor/a discutir acerca da contribuição dos africanos e afro-brasi-
leiros no manejo desse recurso natural e quais foram às contribuições
deixadas para a sociedade com relação à extração de minério. São prá-
ticas que, nos dias atuais, são realizadas por brancos, mestiços, entre
outros, e que precisam ser estudadas em sala de aula como contributos
da população negra no Brasil, evidenciando fatos para além da mão de
obra negra (o que é algo bastante apresentado socialmente). As Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais propõe a inclusão da temática no currículo da educação básica, e
260
o ensino de Ciências pode ser uma área de estudo capaz de promover
aulas neste viés.
Na oportunidade destacamos alguns estudos, que não estiveram
presentes na disciplina da UFPB, mas que contribuem para a presente
discussão, apresentados na coleção “Culturas, Direitos Humanos e Di-
versidades na Educação em Ciências”, mais especificamente, textos do
livro “Descolonizando saberes: a lei 10.639/2003 no ensino de Ciências”
de organização da Profa. Dra. Bárbara Carine Soares Pinheiro e Pro-
fa. Dra. Katemari Rosa, publicado em 2018 e que reúne um conjunto
de artigos resultantes de uma atividade obrigatória da disciplina inti-
tulada Descolonização de Saberes: Contribuições da Ciência Africana e
Afrodiaspórica.
No mencionado livro está à pesquisa intitulada “A cor da sua pele
faz alguma diferença? Uma proposta de ensino interdisciplinar antirra-
cista a partir do estudo da melanina” das autoras Silná Maria Batinga
Cardoso e Isabela Santos Correia Rosa (2018). O texto traz uma pro-
posta de sequência didática que dialoga com conceitos da Biologia e
da Química acerca do estudo da melanina. A sequência didática busca
“contribuir para a compreensão das diferenças da cor da pele no con-
texto da problematização do conceito biológico e social de raça como
proposta de ensino interdisciplinar antirracista a partir do estudo da
melanina” (CARDOSO; ROSA, 2018, p. 76). As autoras propõem ativi-
dades como o trabalho com a literatura de cordel “Preconceito Racial”
de Patrícia dos Anjos, podendo estabelecer discussões por meio de
questões norteadoras que também são apresentadas no texto enquan-
to proposta; e sugerem a discussão do vídeo “2 minutos para entender:
desigualdade racial no Brasil” disponível no YouTube. Como parte da
sequência didática apresentam o Jogo didático OrganoMemória en-
quanto possibilidade de estudar as funções orgânicas e, consequente-
261
mente, produziram alguns questionamentos em que o/a docente po-
derá discutir com a turma sobre a cor de pele da sociedade brasileira e
a discriminação e preconceito com base no assunto.
O texto “Biologia decolonial, Vida e Genocídio da Juventude Ne-
gra” de Kelly Meneses Fernandes (2018) consiste em mais uma pro-
posta que podemos considerar nas salas de aula de Ciências e Biologia.
A autora apresenta “fundamentos para uma proposta didática a ser
aplicada em aulas de Biologia do Ensino Médio, a partir da temática
do direito à vida e do genocídio da juventude negra” (FERNANDES,
2018, p. 89). A obra propõe a leitura de textos como o livro “Parem de
Nos Matar de Cidinha da Silva”; o “Atlas da Violência 2017, IPEA”, etc;
e vídeos como o “Diz aí- Enfretamento da Juventude Negra”. Conforme
defende Fernandes (2018), construir o que ela chama de Biologia De-
colonial está para além de abordagens de determinados conteúdos que
dialoguem com a Lei 10.639/2003. É preciso “assumir uma postura de
desobediência diante de um currículo que historicamente pouco tem
contribuído para a problematização das relações étnico-raciais que
superem o mito da democracia racial” (FERNANDES, 2018, p. 95).
Encontramos outra proposta no texto “Quebrando estereótipos
na sala de aula: contribuições de cientistas negras para a Ciência” de
autoria da Ana Caroline Maia Barboza, Bárbara Betuyaku Schittini e
Lia Miodori Meyer Nascimento. Segundo as autoras, a “proposta didá-
tica tem o objetivo de problematizar a interseccionalidade raça/gênero
na Ciência e possibilitar aos alunos conhecerem as contribuições do
trabalho de cientistas negras, de diversos países e de diversas áreas,
para a Ciência” (BARBOZA; SCHITTINI; NASCIMENTO, 2018, p. 110).
A proposta contou com uma sequência didática com três atividades
sendo a primeira uma investigação sobre os conhecimentos prévios
dos/as alunos/as acerca das cientistas que conheciam e posteriormen-
262
te foi proposto um debate na aula considerando os conhecimentos
coletados mais a exibição de um filme. A segunda atividade contou
com a apresentação, em grupo de estudantes, de cientistas negras que
contribuíram/contribuem para a Ciência. Por fim, a terceira atividade
consistiu na organização de um evento público para a apresentação de
teatro, músicas, performance, recital entre outras, buscando trazer a
representatividade negra para o público presente no evento (BARBO-
ZA; SCHITTINI; NASCIMENTO, 2018).
Enquanto complemento de uma proposta didática que conside-
re as mulheres negras na ciência, sugerimos a leitura do livro @Des-
colonizando_Saberes: Mulheres Negras na Ciência de autoria da Profa.
Dra. Bárbara Carine Soares Pinheiro (2020), onde a autora traz diversas
potências femininas negras na ciência nacional e internacional e que
pode subsidiar práticas pedagógicas no ensino de Ciências e Biologia
nas escolas.
A apresentação das propostas desenvolvidas pelas autoras e
autores citados anteriormente, nos traz ricas contribuições de como
promover uma educação para as relações étnico-raciais no e a partir
do ensino de Ciências e Biologia na educação básica. Junto às propos-
tas, surgem inúmeras possibilidades de considerar a história e cultura
afro-brasileira e africana por meio da educação em Ciências. É válido
salientar a necessidade de reconhecimento de práticas pedagógicas
como essas por parte dos/as docentes e que esses/as possam consi-
derá-las em seu fazer pedagógico. Na mesma ótica, ainda é possível
realizar outras articulações que visem colaborar para a implementação
da Lei 10.639/2003, em especial no ensino de Ciências e Biologia, pois
esse componente curricular é pouco visto em relação a sua abertura
para o trato das temáticas aqui apresentadas.
263
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo diante de tantas evidências e caminhos que nos levam a
implementação da Lei 10.639/2003 através das aulas de Ciência e Bio-
logia- contribuindo para educar para as relações étnico-raciais- exis-
tem dificuldades que impedem a efetivação da legislação no âmbito
escolar. Tais impasses além de estarem voltadas ao não reconheci-
mento e/ou consideração por parte dos/as profissionais da educação
acerca da articulação das temáticas interligadas a história e cultura
afro-brasileira e africana com os conteúdos curriculares, existem a re-
sistência dos/as profissionais em tratar desses assuntos no contexto
escolar. Isto remete ao fato argumentado por Silva (2007) quando des-
creve que nossa formação esteve sempre atribuindo à cultura brasilei-
ra as pessoas brancas e europeias.
Atualmente há reflexões críticas diante ao racismo, pois a desi-
gualdade racial cada vez mais aumenta no Brasil, o que impacta pro-
fundamente as salas de aula. A Lei 10.639/2003 e todos os seus des-
dobramentos buscam ressignificar as práticas pedagógicas e incluir a
história e cultura afro-brasileira e africana na escola.
A disciplina de Ciências e Biologia, assim como as demais que
compõem o currículo da educação básica, pode contribuir para a im-
plementação da lei. Ações pedagógicas podem ser planejadas e aplica-
das em sala de aula, porém, é necessário dispor de alguns aspectos que
estruturam as dificuldades contemporâneas relatadas pelos/as profis-
sionais da educação, tais como: a ausência da formação (inicial e con-
tinuada) dos/as professores/as que promova o estudo das temáticas e
sua relação com os conteúdos disciplinares.
O problema que resulta nas dificuldades da implementação da
referida lei não está voltado apenas para a falta de formação docente,
mas com aspectos relacionados diretamente com o fazer pedagógico
264
e com o empenho das professoras e dos professores em abordar as te-
máticas na sala de aula. Acredita-se que este, realmente, é o grande
desafio passando pela execução do giro epistêmico por meio do qual
se aprende e desaprende para voltar a aprender.
Nesta perspectiva, é importante considerarmos o argumento
de Regis e Sengulane (2017) ao apontar para o eurocentrismo como
consequência do processo de dominação cultural que leva a sociedade
brasileira a não conhecer e não aceitar a África como um continente
responsável por grande parte da formação da sociedade brasileira.
No estudo realizado, percebe-se as inúmeras possibilidades da
promoção de uma educação para as relações étnico-raciais no ensi-
no de Ciências e Biologia, e que essa disciplina possa contribuir cri-
ticamente para a implementação da Lei 10.639/2003 no âmbito edu-
cacional, assim como vem ocorrendo com o ensino de História e ou-
tros componentes do currículo escolar. As propostas não se esgotam
neste texto, ao contrário, existem inúmeras publicações que discutem
possibilidades de articular as questões étnico-raciais na educação em
Ciências.
Além disso, esperamos que este texto contribua para a elabora-
ção e propostas de disciplinas para cursos de graduação e pós-gradua-
ção tratando de mais uma possibilidade de discutir questões ligadas
ao processo de educação para as relações étnico-raciais na formação
e, futuramente, na prática pedagógica de professoras e professores en-
quanto tentativa significativa de descolonizar os currículos da forma-
ção docente no Brasil, uma vez que as reflexões tecidas neste capítulo
surgiram no contexto de uma disciplina de pós-graduação em Edu-
cação na UFPB, podendo também ocorrer em outras instituições de
Ensino Superior.
265
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino; ALVES, Ângelo Giuseppe Chaves. O
que é Etnobiologia? In: ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino. Introdução
à Etnobiologia. Recife: NUPEEA, 2014.
266
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: DF, 2004.
JANZ, Rubia Caroline; CERRI, Luis Fernando. Treze anos após a Lei
nº 10.639/03: o que os estudante sabem sobre a História da África?
(Ponta Grossa, 2015). Afro-Ásia, n. 57, 2018, p. 187-211.
267
MACEDO, Aldenora. Negar, silenciar, apagar: a gestão escolar frente
à educação antirracista. Revista da Associação Brasileira de Pesquisado-
res/as Negros/as (ABPN), v. 9, n. 22, 2017, p. 385-408.
268
SILVA, Joaklebio Alves. Conhecimentos Etnobiológicos e Educação
Escolar Quilombola: um olhar intercultural para o ensino de Ciên-
cias. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação), Universidade
de Pernambuco, Nazaré da Mata, PE, 2018.
269
C A P Í T ULO 9
NO RASTRO DA DIFERENÇA:
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO E
MODOS DE SER PROFESSOR DE
BIOLOGIA
Le n i V ie ira Do r n elle s
Jos é Lu í s Fe r ra ro
270
decurso dos processos evolutivos, há sempre uma perspectiva de força
e melhoramento.
O primeiro ponto que deve ser, invariavelmente, discutido é
exatamente este. Evolução não é sinônimo de melhora, mas de mu-
dança; fluxo, movimento, transformação. Ao longo de uma cronologia,
muitas espécies passaram por processos de seleção natural que lhes
permitiu acumular modificações estruturais e até mesmo fisiológicas;
no entanto, essas nem sempre contribuíram para sua sobrevivência –
muitas delas às conduziram a um processo de extinção. Isso implica
em observarmos que o resultado do sucesso evolutivo – traduzido pela
permanência como continuidade da existência – é a hibridização, a
miscigenação; enfim, a variabilidade. Assim, poderíamos considerar o
processo evolutivo como diferença, e seu resultado – que recai sobre os
seres vivos à reestruturação destas formas de vida – como o diferente
(SILVA, 2000).
A variabilidade, por sua vez, corresponde àquilo que está no
núcleo da biologia, relacionando-se diretamente ao seu objeto. Esta
ciência, ao assentar-se sobre uma série de outras, denominadas de
ciências biológicas, lança mão de uma série de conhecimentos que
se produzem da multiplicidade de um olhar sobre os seres vivos. Se a
anatomia estuda as partes, a fisiologia o funcionamento, a bioquímica
o metabolismo e a genética os mecanismos de herança, por exemplo, a
estes saberes incorporam-se outros – da biologia celular, da zoologia,
da botânica, da ecologia etc. – que ressignificam não apenas as formas
de existência – os seres vivos –, mas a própria vida enquanto objeto.
Assim, a biologia consegue constantemente reelaborar o seu discurso
que construiu: um discurso sobre a vida (FOUCAULT, 1999; 2008).
No entanto, em seus enunciados, observamos que a variabilida-
de, paradoxalmente, tende a aparecer como contradição. Se de um lado
271
o conhecimento biológico nos mostra o quão positiva é a diversidade
das espécies, por outro a organização hierárquica e normalizadora de
uma ciência e seus métodos, tal qual a biologia o é, vai em busca de
uma biodiversidade que aparece como fruto de uma natureza inventa-
da, desejada, onde as espécies são agrupadas e categorizadas de acordo
com determinados padrões. Fugir disso, implicaria ou na produção de
novos/outros critérios de classificação taxonômica, ou em um abando-
no do campo científico e seus modos de operação.
A partir disso, o que grita e nos parece perigoso, é a pura e sim-
ples transposição de elementos conceituais que nos permitem com-
preender – e apreender esta natureza – à espécie humana, produzin-
do outras categorias sociopolíticas que impactam negativamente a
conotação de diferença e do diferente. Assim, perguntamos: o que as
ciências biológicas produziram nos últimos três séculos? Uma respos-
ta que também é evidente: mecanismos de interferência – em muitos
casos, falsamente embasados em evidências científicas – visando uma
normalização desejada ao pautar “um” entendimento sobre o processo
evolutivo.
Correntes como o fixismo, o lamarckismo e o determinismo bio-
lógico, marcaram fortemente o pensamento dos cientistas entre os sé-
culos XVIII e XIX até que Darwin postulasse a seleção natural. Anos
depois, será o resultado dos estudos sobre o cruzamento de plantas de
ervilhas, de Gregor Mendel, que corrobora. É Mendel, segundo Fou-
cault (2008), que torna Darwin possível. No entanto, se é ele quem
possibilita a explicação biológica dos mecanismos da hereditariedade
que passam a sustentar o darwinismo, será esta corrente do pensa-
mento evolutivo – o neodarwinismo – que será deturpada por teorias
políticas e sociais – o darwinismo social de Spencer, por exemplo –
que se utilizam da instrumentalização negativa da ciência para proble-
272
matizar a variabilidade da espécie e tentar naturalizar a desigualdade
das relações humanas (FERRARO, 2020). Surge aí, o debate em torno
da raça como critério de classificação de seres humanos – atribuindo-
-lhes maiores ou menores capacidades relacionadas à sua expressão
fenotípica.
De maneira diametralmente oposta, as ciências biológicas e as
ciências sociais compreendem o conceito de raça. Enquanto nas pri-
meiras a raça emerge como a marca estrutural, do visível no corpo dos
seres vivos, para as segundas, ela toma como referência uma dimensão
étnica e, portanto, cultural. A potência desta última definição em re-
lação à primeira reside na compreensão de modos de (res)significação
compartilhados expressos por um conceito de cultura tal qual referido
no campo dos estudos culturais (HALL, 2014).
Mas o que os professores de biologia têm feito com isso? Esse é o
ponto que centraliza a discussão deste capítulo. Deve um professor de
biologia abster-se do debate contemporâneo guardando seus conhe-
cimentos – e reservando sua participação – apenas para o interior do
campo científico? Obviamente que a resposta é não. Afinal, o campo
científico integra o macrocosmo do campo social, como Pierre Bour-
dieu (1991), nos mostra. Talvez, o efeito dessa visível isenção, cada vez
mais pode ser percebida como efeito da tradição. Há aqui um problema
ideológico, referido também como paradigmático.
Voltemos, assim, aos tópicos que abrem nossa discussão: a se-
leção e a sobrevivência, equivocadamente, do mais forte. Em que pese
já nos referimos aos problemas da frase atribuída a Darwin, é preciso
admitir que é, sim, possível depreender dela um importante sentido
da seleção natural: ela não produz a diferença, mas a reduz. A seleção
natural vai contra a variabilidade; apenas age sobre ela. Poderíamos
dizer que, de alguma forma, as pressões seletivas são pressões norma-
273
lizadoras, pois selecionam características específicas – de um modo
geral úteis à adaptação das espécies – eliminando outras que tendem a
não lhes conferir vantagens no meio em que vivem.
O que queremos dizer com essa referência é que tal qual a sele-
ção natural, que privilegia determinadas formas úteis em determina-
dos contextos, há na ciência moderna, seja no interior de seu paradig-
ma (pós)positivista, essa ideia de verdade como produto do binômio
verdadeiro/falso. Isso cada vez mais perde força quando se trata de
deslocar as formas de conhecimento e de interpelação da ciência para
o interior de um paradigma contemporâneo, fenomenológico, que en-
xerga, como diria Nietzsche (2011) a vontade de potência, o devir, a
multiplicidade de possibilidades – inclusive de verdade.
A marca do contemporâneo é exatamente expressa pelo movi-
mento e pela diferença. Mais do que pensar o ponto da partida ou o
ponto da chegada, interessa o caminho, o movimento, a cartografia
deste deslocamento: “al andar se hace el camino”, como na poesia de
Antonio Machado. Assim, a evolução também seria útil como sendo
percebida em seu sentido dialético, mas adorniano de uma dialética
negativa (ADORNO, 2009), afinal para além da afirmação de Croizat
(1964) de que Terra e vida evoluem juntas, a verdade como produto
dessa evolução é sempre um acontecimento particular, singular e múl-
tiplo: o que se contrapõe ao positivismo que impera na organização
epistêmico-metodológica das Ciências da Natureza.
Frente a essa realidade, professores de biologia se deparam com
um dilema que envolve uma formação moderna que os habilita a atuar
em um mundo de transformações cada vez mais velozes e acentuadas.
A compreensão das ciências biológicas como ciências estruturantes da
biologia observa uma natureza inerte. Não se trata da physis como nos
gregos; mas da natureza em toda a sua artificialidade – a natureza que
274
meticulosamente decomposta, esquadrinhada, redistribuída, catego-
rizada, onde os vivos e a vida permanecem alheios às transformações
sociais. Assim, entender o desafio dos biólogos pode ser diferente da
compreensão dos que os professores de biologia possuem, pois são
chamados à construção de uma articulação entre o conhecimento bio-
lógico e à pedagogia, essencial à continuidade de um processo civiliza-
tório: falaríamos aqui de uma educação em ciências contra a barbárie,
parafraseando o próprio Adorno (1995) em Educação após Auschwitz.
É nesse sentido, que hodiernamente, os professores de biologia
não podem se abster da ampliação de sua abordagem científica, que,
por sua vez, deve cada vez mais atender os incontornáveis temas que
povoam o debate social; ainda mais em tempos de barbárie anunciada,
onde um estado de exceção nos oferece a sobrevida, uma vida nua,
indigna, como afirma Giorgio Agamben (2015). Dada essa questão,
ilustraremos o debate empreendido até aqui sob um viés crítico que
tomará como exemplo considerações sobre raça e etnia na formação
de professores de biologia.
Como uma primeira imagem, o professor está em uma sala de
aula de ensino médio. Na lousa, um quadro de Pünnet faz parte do
desenvolvimento de um problema que envolve o conteúdo de genéti-
ca, mas especificamente, trata-se de um caso de herança quantitativa.
Explica o professor que os genes dominantes acentuam o fenótipo da
cor da pele na espécie humana, enquanto os recessivos permanecem
responsáveis pela determinação de tonalidades mais claras. Essa inte-
ração que, tomada do livro didático, se constrói a partir da combina-
ção de quatro genes – como se isso fosse verdade – produz fenótipos
nomeados como: branco, mulato claro, mulato médio, mulato escuro
e negro. De algum modo, esta fenotipia passa a ser normalizada em li-
vros, documentos, imagens e pedagogias da racialidade, onde o normal
275
passa ser o branco, visto que a norma permite enquadrar os mulatos e
negros “a uma distância segura a ponto que eles não se incorporem o
mesmo” (VEIGA-NETO, 2001, p.115), portanto todo o não branco pas-
sa a ser o diferente, o anormal.
Em uma segunda cena, a professora de biologia fala sobre o pro-
cesso de especiação. Diferencia anagênese e cladogênese, explicado
tais processos como responsáveis pela produção de novas espécies.
Ocorre que uma questão fundamental no processo de determinação
de espécies diferentes é o isolamento reprodutivo: segundo a defini-
ção biológica, são considerados da mesma espécie seres que poten-
cialmente tem condições de cruzarem entre si deixando uma descen-
dência fértil. O fato é que, anterior à especiação – que corresponde ao
surgimento de uma espécie nova – há professora sublinha a ocorrência
de um processo de raciação, de formação de uma nova raça.
Daí se pensar em uma pedagogia da racialidade trazendo ainda
uma terceira cena para tentar entender como o professor de educa-
ção básica, que precisa dar conta de uma transversalidade de temas,
dentre eles a biologia, pode tratar das questões étnico-raciais a partir
de seu trabalho com as crianças. Podemos constatar em uma pesquisa
realizada em uma escola de educação infantil localizada próxima a um
Quilombo (DORNELLES & MARQUES, 2015), como funcionava nessa
instituição o racismo estrutural quando uma das investigadoras, estu-
dante de Pedagogia, ao apresentar-se para trabalhar com um grupo de
crianças nessa escola, foi informada, pelas professoras dessa institui-
ção, que ela atuaria na turma onde estudavam as crianças do “plane-
ta”. Atuaria no grupo identificado como a Turma do Planeta porque ali
estudavam crianças moradoras do Quilombo, sendo que esse local era
denominado por algumas pessoas da comunidade como “Planeta dos
Macacos”.
276
Para Rosenberg (1979), uma das formas de discriminação das
pessoas negras está relacionada à associação do negro a personagens
antropomorfizadas e a animais. As crianças ou mesmo os alunos de
ensino médio ou básico, quer seja em casa, nas ruas ou nas escolas,
não estão alheias a estas percepções em seu cotidiano. Observa-se a
partir desta cena que, por muito tempo, muitos de nossos professores
e professoras, de alguma maneira vêm colaborando para que os alunos
negros sejam produzidos como um “não humano”. Talvez pensando a
si como humano, as crianças, os adolescentes e jovens negros passem
a se gostar mais, se perceber como belos, se respeitar e serem capazes
de nos mostrar suas positividades individuais e humanas a partir de si.
Talvez escapando da violência as quais são “marcada(s) pela vontade
de desumanizar e de humilhar, o que não pode explicar-se em termos
econômicos e sociais, nem mesmo político” (TOURAINE, 2007, p. 178).
Entre o grupo de crianças circulavam comentários depreciativos
em relação às roupas e a fenotipia negra dos colegas do Quilombo,
como por exemplo, as suas roupas eram feias, seus cabelos encarapi-
nhados, seu cheiro “fedorento” e a sua pele “preta” - inumanos. Isso
emergia nos momentos em que buscavam um lugar para sentarem-se,
um parceiro para dar a mão ou para brincar. Verificou-se, também, du-
rante a pesquisa, que todos os livros, os brinquedos, as imagens que
apareciam nos corredores e salas de aula da escola, bem como as bo-
necas disponibilizadas esse grupo de crianças pequenas brincar, eram
brancas – por quê? Ali também estudavam crianças negras – e não so-
mente por isso, mas, especialmente porque a sociedade brasileira é
constituída por fenotipias marcadamente racializadas.
De algum modo, os alunos aprenderam que a raça se constitui
para a biologia como uma categoria infraespecífica e, ao mesmo tem-
po, como critério anterior ao surgimento da própria espécie. E mais,
277
a raça aparece representada tanto nos livros didáticos, nas apostilas,
nos brinquedos, nas imagens que os alunos acessam, bem como no
discurso de professores como a marca de uma diferença estrutural ini-
cial. Uma mancha, um apêndice corporal novo, visível ou até mesmo
um comportamento resultante da seleção natural que não invalide a
viabilidade de um cruzamento com descendência fértil.
Em outra cena, a professora está trabalhando a separação do
lixo. Pede para que os alunos abram o livro didático. Ali há uma foto
como representação de um aterro sanitário onde também aparecem
pessoas; em sua maioria pretas. Um estudante questiona, a professora
explica; produz uma linha de fuga em relação ao conteúdo da discipli-
na, ao buscar no discurso da desigualdade e da concentração de renda
a explicação para seu aluno.
No primeiro exemplo, daquela aula de genética, para além da
mentira que o docente contou aos seus alunos da educação básica, de-
sejando que apenas compreendam os mecanismos de herança – su-
pondo que a cor da pele é determinada apenas por quatro genes que
produzem cinco fenótipos possíveis –, choca o racismo que toma de
assalto um vocabulário que se apresenta como “científico” e que possui
uma pretensão pedagógica. Devemos nos perguntar aqui se a maioria
dos professores de biologia percebe isso e, para além da mera percep-
ção, como reagem a isso. Em algum momento tiveram a coragem de
problematizar o que ali se dizia? A manutenção desse conteúdo assim,
dessa forma, coloca a educação em desfavor de um essencial proces-
so civilizatório e a favor da barbárie, ao reproduzir a estrutura de um
racismo que começa na ciência e a normalização que deseja produzir,
disseminando-o pela instrução, com efeitos cotidianos na esfera do
convívio, da socialização.
278
No segundo exemplo, a professora apresenta um conceito de raça
que – assim como na aula de genética – não problematiza a relação
com o humano. Isso impede a construção de uma ética de alteridade,
de solidariedade e faz com que os alunos naturalizem a desigualdade
como uma inelutável marca da diferença expressa por uma condição
biológica. Não há espaço aberto para um debate franco e aberto que,
provavelmente, os faria deparar com a própria história de um país mis-
cigenado que até hoje sofre os efeitos nefastos de um discurso eugê-
nico. Nogueira (1985) argumenta que a própria ideia de miscigenação
é uma manifestação de preconceito, pois caminha em direção a um
embranquecimento da nação brasileira, a partir de sucessivos cruza-
mentos entre brancos/as e negros/as, fazendo com que estes últimos
abandonem sua cultura.
Por outro lado, no terceiro episódio, parece não ter havido saída.
O racismo expresso nos livros didáticos, mitigado após o pleno fun-
cionamento do, então, PNLD (Plano Nacional dos Livros Didáticos),
ou mesmo a cena que mostra as relações entre alunos que frequentam
a mesma sala de aula da educação básica, deixou de lado, pelo me-
nos por um tempo, a educação ambiental despotencializada da forma
como trabalhada na educação básica, e deu vazão a emergência de um
debate que poderia ser inserido no campo de uma educação ambiental
crítica – questionadora da esfera do poder e da divisão social racista e
classista.
No entanto, o que preocupa em nossa discussão é como subver-
ter esta lógica dominante, que afasta o professor que se constitui, in-
dividua – como o processo descrito por Simondon (1964) – e subjeti-
va no interior do campo científico, sem perceber o quanto é a ciência
que deve ser colocada para irromper uma tradição mítica que clama
e anseia por uma suposta e inexistente neutralidade. É preciso que o
279
conteúdo biológico como objeto de uma aula, seja entendido como ob-
jeto em construção ou a ser construído em uma dialética da realidade.
Não é mais possível construir condições imaginárias atribuindo-lhes a
condição de paradigmas atuais, pois nada mais são do que obsoletos.
Uma obsolescência percebida quando sobre eles jogamos as luzes de
nossa racionalidade contemporânea. A ciência está em crise, e é a edu-
cação em ciências que a evidencia cotidianamente.
Logo, queremos enunciar a importância da educação como meio
para estetização dos conteúdos científicos. Isso não implica em um
outro modo de se fazer ciência, mas de repensá-la a partir de uma con-
dição ontológica, epistemológica e axiológica, para além de metodo-
lógica. São essas condições que entendemos ser capazes de produzir
uma ciência do momento presente, não outra ciência, mas uma ciência
cujos conhecimentos sejam colocados à serviço do sempre novo que
jamais deixa de ser (re)produzido. Apenas uma formação crítica de
biólogos cientistas e professores poderia fazer com que isso se tornas-
se, de fato, uma realidade.
A crítica ontológica a essa ciência deve interpelar ser e realidade,
elevando essa relação a outro patamar: de uma realidade em constante
transformação que age sobre o ser, que por sua vez contribui para sua
transformação. Nesse movimento, a crítica epistemológica se apura, e
novas/outras formas de se conhecer, invariavelmente, surgirão como
resultado de uma desconstrução epistêmica do momento atual. Soma-
-se a isso a crítica axiológica que se amplia cada vez mais com os valo-
res que se incorporam à ciência e à – ou pela – educação em ciências.
E, por fim, apurar-se-ão as metodologias – também como efeito de sua
própria crítica – para tratar dos vivos e da vida em sentido um tanto
mais humanístico, quanto mais humanizado.
280
Talvez tenhamos que buscar em nossas aulas de biologia forta-
lecer cada vez mais uma pedagogia da racialidade, bem como, alguns
componentes específicos como o respeito ao diferente e a diferença, o
respeito a diversidade étnica e cultural, a proteção ao meio ambiente,
a história das comunidades, a promoção de valores étnico-culturais e
o fortalecimento das identidades e subjetividades.
Na esteira do que foi colocado, e à guisa de conclusão, ainda
consideramos necessária a reafirmação de que não existe produto da
educação que possa ser tomado como objeto, mas o humano em sua
subjetividade, um ser político e social que anseia encontrar também
na ciência a possibilidade feliz para uma subsistência coletiva onde
o bem comum também possa ser atingido pelo domínio de uma ciên-
cia crítica, para além do tão somente domínio, da técnica irrefletida,
da associação impositiva de que no decurso dos processos evolutivos,
há sempre uma perspectiva de força e melhoramento, como apontamos
no início deste capítulo. É esse o sentido que atribuímos para um (re)
pensar da diferença, do próprio ensino e da formação de professores de
biologia na busca de uma educação antirracista.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. Educação e eman-
cipação, v. 3, p. 119-138, 1995.
281
CROIZAT, Leon. Space, Time, Form: The Biological Synthesis. Cara-
cas, 1964.
282
TOURAINE, A. (2007). Pensar de outro modo. Lisboa: Instituto Piaget.
283
C A P Í T ULO 1 0
“COMPADRE ANGICO”:
ETNOBOTÂNICA E ENSINO DE
CIÊNCIAS EM NARRATIVAS DO POVO
PATAXÓ1
Fl áv io He n r iq u e d e Ol ivei ra S antos
K a r l a Cu n h a Pá d ua
Emma n u e l D u a r te Almad a
1. INTRODUÇÃO
Entre os sons que ecoam das matas e entre as folhas que nos
abraçam, pisamos na aldeia Gerú Tucunã Pataxó território de per-
tença ancestral de saberes ecológicos tradicionais (SET) onde somos
convidados a mergulhar nas memórias e vivências de um povo. Nas
“puxadas de rama” (SOUZA, 2015), o povo Pataxó migrou do extremo
sul da Bahia para Minas Gerais a partir de um evento traumático de
genocídio para com seu território, sua territorialidade e com os seus;
chamado “fogo de 51” (PÁDUA, 2018, PATAXÓ, et al., 1997). Destaca-
mos tal fato, para nos localizar na (re)construção dos saberes e fazeres
tradicionais que forjam a identidade deste povo. Partindo do ano de
1970, as “puxadas de rama” do povo Pataxó oriundo da aldeia - mãe
1 Este texto é uma versão revisada e ampliada da dissertação de mestrado intitulada: Trioká ui Pata-
xí: Saberes etnobotânicos em narrativas dos Pataxós da Gerú Tucunã (2020), a pesquisa contou com
bolsa de fomento à pesquisa da CAPES/CNPQ.
284
(Barra Velha/BA), vêm se (re)configurando no estado. Atualmente em
Minas Gerias estão alocadas 7 aldeias do povo Pataxó, muitas delas
afetadas por conflitos socioambientais que assolam historicamente a
vida dos povos indígenas. No entanto, o ato de resistência e existência
está emaranhado nas lutas dos Pataxós que partem de suas memórias
e elos com seus ancestres para se firmar numa relação entre humanos
e não humanos (INGOLD, 2015).
A aldeia Gerú Tucunã é o território do qual partem as reflexões
apresentadas neste texto, o referido grupo oriundo de Barra Velha/BA,
inicialmente viviam na terra indígena Fazenda Guarani no munícipio
de Carmésia (território demarcado pela FUNAI – Fundação Nacional
do Índio em 1991). Os movimentos migratórios recorrentes entre os
Pataxós, levaram o grupo ao município de Açucena no ano de 2010,
passando a viver deste então no parque estadual do Rio Corrente (re-
serva ecológica2) na região do vale do Rio Doce. A terra em questão é
reconhecida como Território Indígena do Povo Pataxó Gerú Tucunã, pela
Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG)3, mas cabe-
-nos ressaltar que a luta pela demarcação do território é uma demanda
emergente da comunidade. A aldeia que conta com um posto de saúde
(ligado a SESAI- Secretária Estadual de Saúde Indígena) e uma escola
indígena de fundamental I - 1º ao 5º ano (ligada a SEE - Secretária de
Estado de Educação). Atualmente vivem neste território 65 indígenas
que compõe 24 famílias.
2 Cabe-nos destacar que neste território ocorre sobreposição de conceitos: terra indígena e unidade
de conservação; além da presença de posseiros e ocupação do Movimento Sem Terra (MST).
3 Decreto n. 47573, de 27 de dezembro de 2018. Declara de interesse social e reconhece o limite
do Território indígena do Povo Pataxó Gerú Tucunã, para fins de regularização fundiária. Tal decreto
ressalta que os recursos naturais presentes na totalidade do território do parque estadual do Rio
Corrente passam a ser de uso de etnia residente no território (MINAS GERAIS, 2018).
285
O presente texto é oriundo da dissertação de mestrado em edu-
cação, realizado na Universidade do Estado de Minas Gerais e teve
como intuito compreender a relação do Povo Pataxó com as plantas,
partindo de seus usos ritualísticos, alimentícios e as formas de per-
petuação dos saberes e fazeres a elas associados. A pesquisa de abor-
dagem qualitativa buscou, adentrar aos significados e as relações
estabelecidas no território com humanos e não humanos. Dentre as
abordagens metodológicas, utilizamos entrevistas narrativas, consi-
derando que o método tende a possibilitar que através da narração
dos(as) entrevistados(as) suscitem elementos simbólicos e subjetivos.
Como nos aponta Teixeira e Pádua (2006, p.6), “a entrevista narrativa,
por suas características e singularidades comparativamente a outras
modalidades de entrevista [...], pode ser um importante recurso meto-
dológico na análise destas dinâmicas interculturais e movimentos de
subjetivação”. No entanto, buscando submergir neste território de sa-
beres ecológicos tradicionais, realizamos caminhadas narrativas como
estímulo visual da narração. Os métodos supracitados foram tecidos
partindo da interação de autores de diversas áreas, tais como: Amaral
(2018), Almada (2012), Teixeira e Pádua (2006) e Albuquerque (2005).
Cabe-nos ressaltar que as narrativas trazem no seu desenrolo, vivên-
cias e experiências singulares. Neste momento recorro ao conceito de
experiência de Bondiá (2002, p.21): “a experiência é o que nos passa, o
que nos tece e o que nos toca”.
As reflexões são frutos de experiências e memórias singulares
que estão estruturadas em dois momentos que se emaranham e se te-
cem em malhas (INGOLD,2015). No primeiro momento, expomos os
conceitos teóricos acerca, de cultura e ambiente, etnoecologia com re-
corte a etnobotânica e interculturalidade. No segundo momento, par-
286
tindo das narrativas desta comunidade evidenciamos as potencialida-
des dos saberes ecológicos tradicionais Pataxó e ensino de ciências.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 A natureza é o que? Tudo para gente4
4 As narrativas estão dispostas no decorrer do texto em itálico para que osleitoresas identifiquem e
as diferenciem das citações oriundas da literatura.
287
Figura 01 - As águas – Aldeia Gerú Tucunã (2019)
288
Ao observarmos quão natureza e cultura são indissociáveis e
constituem o ambiente no qual estamos inseridos nos rememoramos a
afirmativa de Descola (1997) em seu estudo com o povo Achua de que
“a natureza [...] é um sujeito de relação social”. Nas tessituras da vida
constituímos nossa compressão de ambiente (paisagem), no caminhar
e nas vivências em um processo interminável onde somos partes da
transformação do território. Assim nos narra Dooren, Kirskey e Müns-
ter (2016, p.1) “a vida não pode surgir e ser sustentada de forma isola-
da. Mas as relações têm histórias”. Nestas histórias, vivências e memó-
rias nos deparamos com os estudos das etnociências que se constroem
nas relações dos povos e comunidades tradicionais com seu território.
Não obstante é necessário pontuarmos que a aldeia Gerú Tucunã, vive
sua cultura e pertencimento étnico em um território de conflitos so-
cioambientais, em que buscam regenerá-lo, devido ao longo período
de ocupação dos posseiros na região.
As etnociências enquanto campo de estudo, vislumbram atra-
vés de seus caminhos (etnobiologia, etnozoologia, etnolinguistica e
outros) compreender as relações dos povos com o ambiente em que
vivem. Neste aspecto mergulharmos no universo da comunidade par-
tindo dos anseios da etnoecologia que se forma das interações esta-
belecidas entre humanos e não humanos. Assim, a etnoecologia se dá
nos “estudos das interações entre a humanidade e o resto da ecosfera,
através da busca da compreensão dos sentimentos, comportamentos,
conhecimentos e crenças a respeito da natureza” (MARQUES, 1995,
p.37). Nos territórios de povos tradicionais é notório a presença dos
saberes ancestrais que constituem as relações e compõe a materialida-
de do ambiente. Partindo dos estudos etnoecologicos adentramos na
etnobotânica tendo em vista que tal campo visa dar ênfase a dimensão
botânica e ecológica com seus significados para o povo em questão.
289
Neste contexto os estudos etnobotânicos são de suma impor-
tância para compreender as relações dos saberes ecológicos tradicio-
nais que advêm das plantas com o povo Pataxó. Cabe-nos destacar que
os saberes do universo das plantas são perpetuados geracionalmente
através da oralidade deste povo com toda sua complexibilidade que se
(re)configura nos territórios. Assim nos conta Suruí e Dias (2020, p.2)
“os estudos etnobotânicos são de grande relevância, pois possibilitam
documentar os saberes locais sobre o uso das plantas, contribuindo
para a conservação da biodiversidade”. Vale salientar que, tais estu-
dos são essenciais para salvaguarda dos saberes e fazeres em relação
às plantas, além de evidenciar a gama de saberes dos povos acerca da
complexibilidade do mundo vegetal. Corroborando com isso, nos nar-
ra, Cacique Bayara (2019), sobre a necessidade de registrar os saberes
das plantas e a elas associados, pois os anciões não ficarão como “se-
mentes” para a comunidade; “cada vez, que vamos passando a história
(das plantas) ela fica escrita e ela mesmo dá continuidade aos pequenos”.
Considerando a relação estabelecida pela comunidade com a
natureza no contexto em que vivem é notório quão as plantas cons-
tituem a dimensão ecológica do ambiente. As plantas intercruzam os
saberes, que emergem dos anciões, dos encantados e o exercício de
aprender sobre as plantas e com as plantas. Assim, ao refletirmos como
desenvolver tais saberes no ambiente escolar é necessário abordarmos
os conceitos de interculturalidade, sendo que nos deparamos com a
perspectiva da colonialidade na matriz curricular de nossas escolas.
Somente olhando para este fato que poderá emergir os saberes da na-
tureza, a relação com o território, assim, evidenciar o conhecimento
historicamente invisibilizado.
A colonialidade é um emaranhado de construções demarcada
em três vertentes: do poder, do ser e do saber. Partindo da aborda-
290
gem da colonialidade do saber que é forjada na perspectiva hegemonia
do eurocentrismo, é notório quão os conhecimentos dos povos tradi-
cionais são inferiorizados. Não obstante esse fator infere nas escolas,
sobretudo as modalidades de ensino que partem da especificidade de
seus territórios. Como nos aponta Zephiro e Martins (2015, p.15) par-
tindo da Educação Escolar Indígena a “interculturalidade não passa
de discurso”, quando o currículo, os materiais didáticos/paradidáticos
e as abordagens metodológicas negligenciam toda a gama de saberes
oriundos desses povos. É importante registrar que a escola é um es-
paço multicultural, onde devemos assegurar a efetivação de diálogos
coesos que visem a decolonialidade do ser, do saber e do poder. Sob o
aporte de Catherine Walsh (2001, p.10), a interculturalidade deve ser
compreendida como:
291
são abarcados. Neste sentindo é necessário defendermos uma educa-
ção que busca o reconhecimento e o diálogo com o outro.
292
2.1 “Tem Palmeira, Embaúba, Amescla e Angico”: etnobotânica e ensino
de ciências
293
nio sociocultural brasileiro em vias de desconstruir estereótipos e pa-
radigmas sociais que ocasione qualquer forma de discriminação e/ou
preconceitos. Destacamos que tal objetivo perpassa por conhecer a so-
ciobiodiversidade de nosso país que é construída na complexibilidade
dos saberes de povos e comunidades tradicionais (PCTs).
Cabe refletir a etnobotânica como estratégia metodológica para
o ensino de ciências, sobretudo, como possibilidade de evidenciar as
relações estabelecidas entre humanos e não humanos.
294
científicos, mas sim que ambos são de uma importância para o proces-
so formativo.
A etnobotânica possibilita que o ensino de ciência estabeleça
vínculos que diminua a distância entre tradicional e científico. Sabe-
mos que o ensino de botânica partindo do arcabouço teórico em que
esta temática está alocada provoca dificuldades para o processo de
aprendizagem e assim tende a ocasionar o desinteresse dos(as) alu-
nos(as). Não obstante é necessário pontuarmos que não existe um
modelo pedagógico ideal, sendo indispensável que a estratégia meto-
dológica se adeque ao processo formativo. No entanto o emaranhado
destas perspectivas, favorece “o processo de ensino e de aprendizagem
a partir do diálogo, pois possibilita o envolvimento do aluno no pro-
cesso de construção do conhecimento” (OLIVEIRA, et al.,2015, p.2).
Os saberes e fazeres que compõe a etnobotânica na aldeia são
carregados de uma relação afetuosa como destacamos na expressão
que intitula este texto: “compadre angico”, uma espécie vegetal de
suma importância para o povo Pataxó por suas finalidades medicinais
e ritualísticas. Como demarcamos anteriormente os saberes ancestrais
correlacionam dentro e fora das salas de aula tendo em vista que a
comunidade é envolta por uma gama de espécies que compõe o terri-
tório Gerú Tucunã. Ao narrar quão as plantas são importantes e estão
presentes na perpetuação dos saberes ecológicos tradicionais. Sinaré
Pataxó, nos diz:
295
Neste território dotado de tantos saberes e fazeres, de sociobio-
diversidade plural e de notória preocupação para com a perpetuação
da cultura tradicional do povo Pataxó, neste estudo foram citadas pe-
los interlocutores diversas plantas elencadas por suas finalidades (Ta-
bela 01).
Febaceae-
Angico Anadenanthera colubrina
Mimosoideae
Capim de Aruanda
Cymbopogon densiflorum Poaceae
(Nagô/Caboclo)
296
Carqueja Baccharis trimera Asteraceae
Coqueiro-tucum
Astrocaryum vulgare Areaceae
(Tucum)
297
Considerando que os saberes relacionados as plantas são per-
petuadas, aprimorados e se diferenciam constantemente é necessário
pontuarmos a relevância da Educação Escolar Indígena (EEI). Tendo
em vista que esta modalidade de ensino é pautada na especificidade
dos territórios, possibilitando caminhos a partir de concepções inter-
culturais, multiculturais e, sobretudo decolonial. Kanatyo (Cacique da
Aldeia Pataxó Muã Mimatxi/Itapecerica, MG), afirma que a escola é
patrimônio social e cultural que busca salvaguardar costumes e co-
nhecimentos. É de suma importância compreendermosque a escola é
como um espaço multicultural (SIQUEIRA, 2012), neste sentindo cabe
afirmar que a Educação Escolar Indígena é:
298
Reiteramos que a busca para que a Educação Escolar Indígena
seja efetivamente específica é essencial a produção de materiais didá-
ticos pedagógico direcionados a esta modalidade de ensino. No caso,
do território do qual emerge este texto é notório a escassez de mate-
riais voltados para o povo pataxó, assim, faz-se imprescindível a ela-
boração de materiais específicos, construídos por e com o grupo, como
assegura a Resolução nº 05/2012 do CNE. Sinaré relata:
299
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas relações da aldeia Gerú Tucunã, encontramos uma gama de
saberes que são tecidos no trânsito migratório deste povo Pataxó. As
plantas envoltas pela historicidade e pela pertença étnica do povo evi-
denciam quão são imprescindíveis para a interlocução entre humanos
e não humanos. Na proposta de uma educação diferenciada e imersa
na vida nos deparamos com o fomento de práticas interculturais efe-
tivamente decoloniais. Ao propormos a etnobotânica como estratégia
metodológica no ensino de ciências, evidenciamos a oralidade, a ob-
servação e a prática como instrumentos articuladores do diálogo entre
os saberes tradicionais e conhecimento científico.
O ensino de ciências através da etnobotânica tende a efetivação
da relação entre as plantas e a cultura do povo Pataxó. Cabe-nos afir-
mar que o presente texto foi construído através das memórias, vivên-
cias e experiências de nossos interlocutores (Cacique Bayara e Sinaré
Pataxó) e que todas as contribuições oriundas deste estudo reverbe-
rem para a salvaguardar dos saberes ancestrais do povo Pataxó.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Kele Conceição Alves Vilaça. “A gente cuida do cerrado
porque ele cuida de nós”: um diálogo entre educação, ambiente
e saberes tradicionais.2018. 138 p. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado de Minas Ge-
rais, Belo Horizonte, 2018.
300
ALMADA, Emmanuel Duarte. Entre as serras: etnoecologia de duas
comunidades quilombolas no sudeste brasileiro. 2012. 239 p. Tese
(Doutorado em Ambiente e Sociedade) – Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Humana, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
301
INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e
descrição. Tim Ingold: tradução de Fábio Creder. Petrópolis, RJ: Vozes,
2015. 391 p.
302
SIQUEIRA, A. B. Etnobiologia como Metodologia no Ensino de Ciên-
cias. In: IV Simpósio sobre Formação de Professores/SIMFOP, 2012,
Santa Catarina. Anais... Santa Catarina, 2012.
303
ZEPHIRO, Katia Antunes; MARTINS. Norielem Jesus. Educação esco-
lar indígena diferenciada e intercultural entre os Guarani Mbyá
do Rio de janeiro: o legitimo e o real. Revista Periferia, v. 7, n. 1, p.
6-25, jan./jun. 2015.
304
C A P Í T ULO 1 1
CONTRIBUIÇÕES E REFLEXÕES
DA PROPOSTA DE UMA OFICINA
INTERCULTURAL CRÍTICA ENQUANTO
PRÁTICA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
DECOLONIAL
A l exs a n d ro A l b e r to d a S i lva
Rit a Pat r í c ia A l me id a de Oli ve i ra
Mo n ic a Lo p e s Fo l e n a A raújo
305
A prática educativa é o espaço privilegiado de (re) construções
de saberes acerca do mundo. É nela que encontramos os conflitos, as
tensões e as injustiças presentes no contexto sociopolítico cultural do
Brasil, quando se fala em temáticas étnicas, de gênero, de orientação
sexual, religiosas e outras.
Quando se fala em decolonialidade na prática educativa, bus-
ca-se a reorientação epistêmica da práxis pedagógica, para além de
meras datas comemorativas ou de um único componente curricular.
Oliveira e Candau (2010) afirmam que as práticas decoloniais são “um
projeto alternativo ao racismo epistêmico e à colonialidade do ser, do
saber e do poder” (Idem, 2010, p. 26).
Entendo que as vivências escolares estão vinculadas a depen-
dência histórica, herdada da colonização e que traduz no domínio
científico, cultural e social. Embora tenhamos alcançado a descoloni-
zação econômica, ainda se faz presente a relação saber e poder en-
quanto reconstrução de formas coloniais da cultura.
Silva, Porto Araújo e Ricardo (2018) trouxeram reflexões para o
debate decolonial na educação do campo, no que tange aos desafios
que ela enfrenta na América Latina, a saber: a educação das popula-
ções rurais, e a formação do professor, limitando-se pelo baixo nível de
escolaridade e a taxa de analfabetos; a problemática das desigualda-
des enquanto fenômeno de exclusão e marginalidade, impedindo reais
avanços políticos na educação, como o direito a um processo educati-
vo de qualidade a esse grupo.
Diante disso, questiona-se quais as contribuições da proposição
de uma oficina intercultural crítica enquanto prática da educação am-
biental decolonial na promoção da educação para as relações étnico-
-raciais? Para responder essa questão, fez-se necessário realizar uma
revisão bibliográfica exploratória sobre a teoria e prática da decolonia-
306
lidade e intercuturalidade crítica, educação ambiental decolonial, bem
como a elaboração e proposta de uma oficina intercultural envolvendo
a redução das desigualdades, propostos pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência, e, a Cultura (UNESCO), junto à cul-
tura africana com a produção de bonecas Abayomi.
Justifica-se este estudo pelo aprofundamento das discussões
sobre práticas decoloniais e interculturais encontradas na literatura,
assim como sua inserção na práxis pedagógica. Além disso, o contexto
das experiências oriundas dos estudos voltados às práticas escolares
traz problemáticas ligadas às diferenças sociais, culturais, econômicas
e religiosas tão presentes nas relações construídas e trazidas à cultura
escolar pelos atores sociais envolvidos com a prática educativa.
E, é nesse contexto que se elaborou o objetivo a seguir: Analisar
as contribuições da proposta de uma oficina intercultural crítica en-
quanto prática da educação ambiental decolonial para a promoção da
educação para relações étnico-raciais.
A seguir, apresentamos para início das reflexões a perspectiva
teórica e prática da decolonialidade e interculturalidade na educação.
307
tantos outros aspectos socioculturais oriundos do eurocentrismo, en-
quanto o colonialismo entende-se por um sistema administrativo po-
lítico-militar implantado nas colônias com o intuito de usufruir das
fontes de recursos naturais valiosas para as metrópoles.
A despeito da Educação, sabe-se que esta vem sendo pautada sob
a égide da colonização, pelo menos na maioria das vezes. Sobre isso,
Santos (2014) definiu esse processo de monocultura do saber, visto que
são as visões eurocêntricas que, ao longo dos séculos, se fazem presen-
tes na prática educativa.
Léo Neto (2018) discorreu que o conhecimento colonial não
apresenta um marco definido e ultrapassado na história, pois as formas
de produção e as relações sociais ainda legitimam seu modus operandi
de se fazer, em detrimento de outros saberes da experiência. Nesse
entrelaçado, a prática educativa se apresenta como espaço de violação
epistêmica e (re) produtora de sentidos, significados e ações.
Quanto a essa violência epistêmica e que poderia também cha-
má-la de racial, são frutos da desvalorização dos saberes pertencentes
a povos e comunidades tradicionais, ocasionando relações disformes
de poder. Aspectos esses emergidos a partir do processo de coloniza-
ção e que persistem até os dias de hoje, ressoando na aprendizagem
escolar.
Para Mignolo (2003) o olhar para o pensamento-outro se ma-
nifesta na diferença colonial, caracterizando-se como decolonialida-
de. Dessa forma, a crítica da subalternização de saberes invisíveis e a
emergência de um pensamento liminar traz um novo caminho epistê-
mico que promove uma intersecção entre o conhecimento ocidental e
os invisíveis.
Diante dessa nova forma de conceber os saberes-mundo, a in-
terculturalidade se apresenta como uma estratégia que orienta ideias,
308
ações e outros enfoques epistemológicos. Assim, a interculturalidade
entrelaça-se com a perspectiva decolonial enquanto processo e proje-
to político que promove a (re) construção do pensamento-outro.
Além disso, Walsh (2009) traz a questão do posicionamento crí-
tico de fronteira como manifestação da diferença colonial, haja vista
com ele ser possível visualizar outras lógicas e formas de pensar dis-
tintas da lógica hegemônica eurocêntrica. Para a autora, a construção
de um saber fronteiriço é resultante da hibridização de visões colo-
niais com outras invisíveis, sendo este um caminho norteador para a
decolonização epistêmica.
Nesse entorno, Oliveira e Candau (2010) ratificaram o lugar epis-
têmico do pensamento-outro apontado pela autora, pois esse espaço
fronteiriço oferece possibilidades de diálogo crítico para com o saber
colonial, na medida em que promove a criação de novas sociedades
interpretativas para ver o saber-mundo de uma outra perspectiva.
Para pensar na pedagogia decolonial é necessário trazer à tona
o debate em torno da interculturalidade, uma vez que ela tem senti-
do diretamente vinculado “a um projeto social, cultural, educacional,
político, ético e epistêmico em direção à decolonização e à transfor-
mação” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 27). Segundo Walsh (2009) so-
mente a interculturalidade crítica apresenta a perspectiva pedagógica
decolonial, pois não é uma mera inclusão dos temas nos currículos ou
estratégias de ensino, mas, sobretudo uma mudança sócio-histórica e
estrutural.
Munsberg, Fuchs e Silva (2019) defende que o processo de inter-
culturalização está imbricado na ação para a promoção da intercultu-
ralidade autêntica, o que Candau associa à interculturalidade crítica.
Essa autora ainda reforça a perspectiva da interculturalidade crítica
enquanto uma concepção intercultural na educação. Segundo a auto-
309
ra, as práticas educativas devem aprofundar-se “[...] no processo de
interculturalizar a escola, o currículo e a sala de aula” (CANDAU, 2016,
p. 349, grifo da autora).
Somente com o fortalecimento do pensamento outro é possível
reconhecer identidades e a diferença (colonial). Autoafirmar remete a
um processo constitutivo de uma sociedade intercultural, e se configu-
ra como a manifestação da decolonização, na medida em que propõe
novas condições sociais de poder, ser e saber.
A educação intercultural crítica está baseada na perspectiva de-
colonial e esta traz três dimensões a serem vivenciadas na prática: a
decolonização da história (o poder), a decolonização das subjetivida-
des (o ser) e a decolonização dos conhecimentos (o saber). Notada-
mente elas estão interligadas num único tecido – a colonização do
pensamento. Nesse sentido, a educação intercultural crítica torna-se
como estratégia para a decolonização do pensamento.
Alguns marcos na Educação foram divisórios para se transpor a
colonialidade nas instituições escolares ou não, como a reformulação
de políticas, a elaboração de leis que orientam a construção do currí-
culo, da prática pedagógica e da organização do sistema educacional,
bem como a crítica dos pesquisadores sobre o modelo tecnicista e tra-
dicional sobre o que, como e para quê ensinar e aprender (LEO NETO,
2018).
No que tange a criação de leis, tem-se a Lei nº 9.394/96, trazendo
avanços nos processos formativos ao orientar o uso de diversos es-
paços de aprendizagem, a pluralidade de concepções pedagógicas e a
valorização da diversidade étnico-racial existente no território brasi-
leiro; e a Lei nº 10.639/03, em seguida atualizada pela Lei nº 11.645/08,
trouxeram a obrigatoriedade de temáticas afro-brasileiras e indígena,
quanto à história e cultura, para o reconhecimento da diversidade
310
étnico-racial que forma a sociedade brasileira, em todos os níveis de
ensino.
Contudo, na prática educativa a implantação desse debate é so-
mente promovida pelo componente curricular de História e, na maio-
ria dos casos, em datas específicas, como o Dia do Índio e da Consciên-
cia Negra. Acarretando a ineficiência de aprendizagens permeadas em
uma educação crítico-reflexiva.
Quando se fala em Educação em Ciências, com uma busca explo-
ratória foi possível encontrar alguns estudos que trazem práticas de-
coloniais no processo de ensino e aprendizagem, como o de Léo Neto
(2018), o qual através da etnoecologia, ele busca valorizar e refletir
sobre o potencial de saberes de terreiros de Candomblé, dos povos in-
dígenas e das comunidades quilombolas para promover um ensino de
biologia que reconheça as identidades e diferenças deles.
Após, discorremos sobre questões da educação ambiental deco-
lonial na prática intercultural crítica.
311
de conhecimentos sobre os fenômenos da natureza, tais como habili-
dades para transformar a natureza ao seu redor, facilitando suas ações
no meio em que vive, na medida em que interage com ele de forma
mais proveitosa. Contudo, o aproveitamento irresponsável dessa in-
teração fez surgir as problemáticas socioambientais, reais e urgentes,
que assumem proporções alarmantes.
Debater a EA vem se tornando cada vez mais necessária diante
dos diversos desafios que enfrentamos no planeta, tais como a escas-
sez das águas, desmatamento da Amazônia e da Mata Atlântica, a ex-
tinção de espécies, o uso ilimitado e irresponsável dos recursos natu-
rais. Somente com a Conferência de Estocolmo, em 1972, concebeu-se
o Plano de Ação Mundial em defesa da temática ambiental, nela foram
elaboradas diretrizes para um Programa Internacional de Educação
Ambiental.
Medeiros, Ribeiro e Ferreira (2011) discorreram que em 1975,
a Organização para a Educação, Ciência e Cultura das Nações Unidas
(UNESCO), em colaboração com o Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (PNUMA), em resposta à recomendação 96 da Con-
ferência de Estocolmo, que nomeia o desenvolvimento da Educação
Ambiental como um dos elementos mais críticos para que se possa
combater rapidamente a crise ambiental do mundo, criou o Programa
Internacional de Educação Ambiental (PIEA). Com este documento,
priorizou-se à formação de recursos humanos, nas áreas formais e não
formais da Educação Ambiental, e a inserção de temas ambientais nos
currículos de todos os níveis de ensino (DIAS, 2004).
Dias (2004, p. 523) define a EA como “processo permanente no
qual os indivíduos e a comunidade tomam consciência do seu meio
ambiente e adquirem novos conhecimentos, valores, habilidades, ex-
312
periências e determinação que os tornam aptos a agir e resolver pro-
blemas ambientais, presentes e futuros”.
Para o autor, a EA torna-se um instrumento significativo no pro-
cesso de conscientização dos indivíduos sobre a preservação do meio
ambiente diariamente. Uma vez que as pessoas para sobreviverem e
desenvolverem, baseadas na ideia de acumulação e concentração do
capital, apropriam-se da natureza desenfreadamente, extraindo dela
muito além do necessário para o sustento humano.
Na Constituição Brasileira de 1988 também se apontou para a
EA, o artigo 225 enfatiza que “todos têm direito ao Meio Ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à
sadia qualidade de vida”. No parágrafo 1º, inciso VI determina: “Pro-
mover a Educação Ambiental (EA) em todos os níveis de ensino e cons-
cientização pública para a preservação do Meio Ambiente”. Enquanto
na Lei N° 9.795, de 27 de abril de 1999, denominada Lei da Educação
Ambiental, foi normatizada a Política Nacional de Educação Ambien-
tal (PNEA), a qual em seu Art. 2° afirma: “A educação ambiental é um
componente essencial e permanente da educação nacional, devendo
estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades
do processo educativo, em caráter formal e não-formal”.
Dessa forma, a normatização orienta que a EA seja vivenciada
de modo interdisciplinar, integral e contínuo. Não sendo uma disci-
plina específica do currículo, mas transversalmente a todo o processo
educativo do indivíduo, quer seja na Educação Básica ou Superior/Pro-
fissional. Além disso, não se pode deixar de olhar para os ambientes
de aprendizagem, os quais devem promover a construção de visões
sobre a temática a partir de uma nova racionalidade ambiental, tal
como aponta Leff (2008, p. 100): “A construção de uma racionalidade
ambiental implica, portanto, a reorientação do progresso científico e
313
tecnológico numa perspectiva interdisciplinar que articula os proces-
sos sociais e naturais para a gestão social do desenvolvimento susten-
tável”. Nessa perspectiva, novos olhares e temáticas ganharam desta-
que para a difusão do debate da EA, a saber: a importância, reflexão e
saberes da EA na prática docente. Pesquisadores como Carvalho
(2004), Delizoicov (2005), Gadotti (2008), Araújo (2015) e outros, argu-
mentam reflexões que subsidiam essa nova perspectiva de Educação
para o desenvolvimento sustentável, a fim de direcionar uma forma-
ção profissional do professor enquanto uma ação contínua, reflexiva,
crítico-investigativa, humanizada e emancipatória sobre o contexto
educacional, e não pelo simples acúmulo de saberes desarticulados da
prática.
Segundo Freire (2000, p. 67): “A ecologia ganha uma importân-
cia fundamental neste fim de século. Ela tem que estar presente em
qualquer prática educativa de caráter radical, crítico ou libertador [...]”.
Gadotti (2008) ratifica a ideia de Freire quando nos revela que é ex-
tremamente importante que sejamos sujeitos de uma história e não
meros expectadores. Para isso, interferir com o discernimento susten-
tável nesse mundo globalizado, onde as diferenças sociais são grandes,
poderá trazer igualdade, harmonia, liberdade, solidariedade para com
o próximo. Só assim poderemos transformar sustentavelmente os am-
bientes em que vivemos.
No âmbito educacional, as abordagens dadas ao ensino da EA,
segundo Silva (2013), sejam no espaço formal ou informal, é de forma
fragmentada e descontextualizada. Acarretando a construção de uma
concepção fragmentária das questões ambientais por parte dos profes-
sores. Compreensão essa que limita o desenvolvimento sustentável e a
efetivação de práticas transformadoras na educação.
314
Para Silva (2013), o panorama de estudos relacionados às expe-
riências e práticas de EA na educação formal, dos Encontros de Pes-
quisa em Educação Ambiental (EPEA), desde a Educação Básica até o
Ensino Superior, aponta uma percepção de EA ligada à lógica compor-
tamental de preservação ecológica. Além disso, a autora evidenciou
que poucas pesquisas debatem uma visão teórico crítica da EA, dentro
de uma perspectiva emancipatória, de onde poderíamos visualizar me-
lhor as contribuições da educação para superar a dicotomia homem-
-natureza historicamente construída.
Diante da emergente necessidade de sensibilização e conscienti-
zação sobre a problemática ambiental, foram propostos, em 1997, nos
Parâmetros Curriculares Nacionais diretrizes sobre a implementação
da Educação Ambiental. Segundo o texto desse documento, a EA deve
ser vivenciada como tema transversal em todas as áreas do saber no
Ensino Fundamental. Para assim, promover um trabalho pedagógi-
co de sensibilização, buscando a construção da visão globalizada das
questões ambientais em toda a sua complexidade.
A EA, em uma visão transformadora, vem sendo pautada sob um
olhar crítico e reflexivo do ambiente, possibilitando a ideia de que o
sujeito atua e o transforma diariamente, através de nossas relações so-
ciais e culturais. Araújo (2015) afirma que as palavras que designam o
termo educação ambiental trazem características que juntas assumem
uma qualidade especial, uma vez que “permitem o reconhecimento de
sua identidade diante de uma educação com dimensões, por vezes es-
quecidas historicamente, quanto ao entendimento da vida, como criti-
cidade e a humanização na relação sociedade-sociedade e sociedade-
-natureza” (ARAÚJO, 2015, p. 70).
Freire (2014a) apresenta em suas obras um olhar da prática peda-
gógica dentro da perspectiva de práxis, pois, segundo ele, só mediada
315
pelo contexto o homem poderá alcançar a sensibilidade e compreen-
são tão necessário das coisas. Esse processo de tomada de consciência
só será possível no nível da ação, para assim o homem alcançar em-
penho na reflexão da existência das coisas no mundo. A ênfase dada
à práxis, dentro do processo educativo, estabelece a unidade dialética
da ação e reflexão.
Para Freire é necessário “que assumamos o dever de lutar pelos
princípios éticos mais fundamentais como do respeito à vida dos seres
humanos, à vida dos outros animais, à vida dos pássaros, à vida dos
rios e florestas” (FREIRE, 2000, p.67). Para ele, a prática do diálogo é
uma questão de existência do homem ser mais (FREIRE, 2014a), pois
só problematizando o contexto em que estamos inseridos é que po-
demos emergir em consciência crítica. Ainda nesse debate, Freire vai
mais além, o diálogo só será possível se for com amor. Mais que isso,
o diálogo para Freire (2018) é o âmago da educação enquanto prática
de liberdade.
Não obstante aponto para o sentido do diálogo enquanto prática
de liberdade, visto que implica práxis: ação e reflexão. Dessa forma,
Freire discorre sobre a veracidade das palavras que permeiam a prática
docente, pois se não for práxis, não alcançaremos a transformação do
mundo. Ele ainda acrescenta: “Não creio na amorosidade entre mulhe-
res e homens, entre os seres humanos, se não nos tornarmos capazes
de amar o mundo” (FREIRE, 2000, p.76).
É nesse sentido que a pedagogia freireana se aproxima da educa-
ção ambiental decolonial, defendida por Tristão (2016), embora Freire
não tenha abordado diretamente às ideias dela, mas apontou para as-
pectos da relação homem-mundo, educação-sociedade, teoria-prática,
professor-aluno, ao integrar dimensões necessárias à construção do
saber ser, conhecer, conviver e fazer socioambiental, como o diálo-
316
go, humanização, autonomia, criticidade, amorosidade, criatividade e
outros.
Araújo (2015) apresentou essa relação em sua pesquisa de tese
quando trilhou a Educação Ambiental crítico-humanizadora na práti-
ca docente de professores de Biologia de universidades públicas, ba-
seada nas categorias criticidade e humanização de Freire, argumen-
tando que o foco principal das universidades é a educação e esta deve
se dar pautada no diálogo ininterrupto com os centros de pesquisas, a
fim de criar a prática de debates políticos acadêmicos constantes com
a própria universidade e a sociedade. Para Freire (2014b) a educação é
um ato político, de autonomia, liberdade, amorosidade, humanização,
dialógico e crítico-emancipatório.
Aqui começamos a tecer as aproximações das práticas sustentá-
veis como prática de interculturalidade crítica. Tristão (2016) explora
em seu estudo comunidades de resistência, como elas estabelecem ex-
periências ligadas às práticas sustentáveis, na medida em que se lo-
caliza o lugar das produções de narrativas dos atores envolvidos e se
relacionam com a natureza cultura.
Assim, questiona-se os saberes-fazer construídos pela EA críti-
ca e emancipatória, tendo em vista elas serem balizadas pelo corpus
de pensamento colonial, na maioria das vezes. Quando aproximamos
Freire desse diálogo ambiente-mundo, trago vieses culturais que são
desconsiderados por outros campos de saberes, tais como a educação
do campo, popular, dos povos indígenas, das mulheres, das minorias,
das populações excluídas de um sistema sócio político opressor e
patriarcal.
Considerando isso, é possível inferir que as questões de territo-
rialidade, exploração dos recursos naturais e da mão de obra barata,
da agricultura familiar, das diferenças de gênero, orientação sexual,
317
étnicas ou religiosas são temas tratados na pedagogia de Paulo Freire,
socioambiental, decolonial e intercultural. E, por se entrelaçam, usa-
remos o termo educação ambiental decolinial.
A EA decolonial emerge de estudos socioambientais, como o de
Gonzalez (2013) que valorizou e usou narrativas, em redes de conver-
sação, de praticantes da cultura sustentável, acompanhando os movi-
mentos dos saber fazeres de pescadores, desfiadeiras de siris, catado-
res de caranguejos, e comerciantes que atravessam a comunidade es-
colar, estudantes e professores, na ação de convivência e conveniência
da vida cotidiana. Trazendo um olhar autopoiético é deslocado para o
que se chama educação ambiental crítica e emancipatória ou cultura
da sustentabilidade.
Outro estudo que se aproximou da EA decolonial foi o de Maulin
(2013), que olhou para relações de tempo-espaço de saberes socioam-
bientais construídos em uma comunidade quilombola, tais como a ma-
neira de viver, os usos, os entendimentos da natureza e os processos
de identidade, através das produções narradas, de experiências locais
e das semelhanças das diferenças. O autor transcorre que o entendi-
mento da cultura quilombola se dá pela relação, dinamismo e sensibi-
lidades provocadas pelas lutas cotidianas de sobrevivência.
Ramos (2013) investigando praticantes da cultura sustentável
em escolas, percebeu que as tradições e os saberes-fazeres das pane-
leiras, a partir da produção dos Mascarados dos Congos, constroem
redes de conversas com esses espaços. Com isso, a autora argumenta
que as alianças com esses movimentos dos saberes-fazeres de comu-
nidades de práticas da sustentabilidade ressignificam e potencializam
a noção de escola sustentável.
Dessa forma, a EA decolonial promovida por essas narrativas
sustentáveis em comunidades de práticas locais direcional o lugar
318
epistêmico dos saberes socioambientais dentro de uma perspectiva
intercultural crítica, pois ocorre na inter-relação e criação de si, do
mundo e das culturas locais. O pensamento outro desses estudos são
oriundos da autopoiese, torna-se fronteiriço ou híbrido no modo de
saber-fazer, com dito por Santos (2007), uma rede que interconecta
saberes e descoloniza pensamentos.
O campo da Educação Ambiental crítica, segundo Stortti (2019),
trazendo o aporte teórico decolonial pode promover reflexões sobre
pesquisas, práticas e políticas educativas ambientais que superem o
pensamento colonial, construindo caminhos para o campo da inter-
culturalidade crítica. Nesse entorno, para o autor, a práxis pedagógica
da EA deve ser pautada na ação-reflexão-ação, pois assim reforça o
diálogo intercultural crítico, com senso de justiça e igualdade sobre a
temática em estudo nas práticas educativas ambientais não-formais.
No trabalho dos autores, é possível destacar a relação do pensa-
mento decolonial latino-americano oriundo das lutas e resistências de
grupos sociais historicamente invisíveis pela colonialidade, principal-
mente, os povos indígenas e as populações tradicionais, com a ótica
socioambiental, diante de situações de injustiças ambientais. Assim,
as ações executadas por esses grupos apresentam a dimensão de es-
cuta sensível, empreendendo diálogos interculturais que garanta o va-
lor e a validade das práticas de EA produzidas por eles, e da realidade
local, visto que a trilha formativa adotada pelos conflitos ambientais
são estratégia de mudança da realidade local, bem como do reconheci-
mento de seus saberes-fazeres.
Sabe-se que temas como vulnerabilização, invisibilidade e silen-
ciamento estão presentes nas práticas educativas interculturais críti-
cas, as quais constroem uma visão diferente a partir da rede de com-
partilhamento destes grupos subalternizados. Sendo assim, faz-se ne-
319
cessário que o campo das práticas educativas não-formal da EA parta
da perspectiva intercultural crítica. Uma vez que ela se encontra inti-
mamente conectada com a práxis pedagógica daquela, quando falamos
no modo do querfazer da EA, no sentido freiriano deste último termo, a
saber: questões, ações, reflexões, intervenções, novas ações, mudanças
e criações de saberes-fazeres diferentes da sociedade, da humanidade,
da leitura de mundo realizada pela modernidade-colonialidade.
Stortti e Sanchez (2017) aproxima a EA comunitária com a de-
colonial pondo em evidência temáticas da expansão do capital trans-
nacional, das políticas de privatização e mercantilizarão dos bens na-
turais para analisar a EA de base comunitária desenvolvida pelo movi-
mento social, chamado de “Justiça nos Trilhos”, que luta por injustiças
socioambientais contra os grandes empreendimentos de produção de
minérios, através de um estudo bibliográfico exploratório com análise
documental e de dados da web. A autora percebeu que o movimento
se organiza promovendo seminários, parcerias nacionais e internacio-
nais com outras instituições, atividades de dança, produção de livros,
revistas, cartilhas e documentários, e marchas, contendo músicas de
protesto.
320
A proposta de uma oficina intercultural crítica foi elaborada ten-
do como aporte a estratégia didático-metodológica Sequência Didáti-
ca Interativa (SDI), proposta por Oliveira (2013), e desdobrada da Me-
todologia Interativa e da técnica do Círculo Hermenêutico Dialético
(CHD). A SDI vem sendo usada na sala de aula para facilitar a aprendi-
zagem dos estudantes no desenvolvimento de atividades (ações) que
promovam o contato e a reflexão deles sobre os conceitos e processos
científicos (temas/fenômenos) em estudo, através da dialética e relei-
turas de mundo, a fim de promover a construção de novos saberes e
conhecimentos. O objetivo desta oficina será de promover ação-refle-
xão-ação do estudante a práticas sustentáveis interculturais.
Oliveira (2013) orienta que a SDI tenha dois blocos de ativida-
des, o primeiro, relaciona-se aos conhecimentos prévios dos educan-
dos, escolhendo-se um tema/conceito para eles construírem dialetica-
mente as compreensões iniciais, sendo todos respondendo ao mesmo
tema/conceito, depois formando-se grupos da classe, onde esses gru-
pos em diálogo com o pensamento do outro construíram uma síntese
para cada um, e, por fim, cada equipe escolhendo um representante
para compor a síntese final da sala.
Diante disso, é possível perceber que as vivências promovidas
através da SDI colocam o saber do outro em diálogo constante com e
sobre o mundo, a natureza, a sociedade, os homens e as mulheres, a
fim de promover sínteses acerca de determinados temáticas necessá-
rias a leitura de mundo, com criticidade, humanização, amorosidade,
ética local/planetária, solidariedade e tolerância, na valorização das
narrativas individuais as quais emergem os quefazeres da coletividade
(FREIRE, 2018). Aspecto esse que evidenciou e se aproxima com a eco-
logia de saberes, como pontuou Santos (2010), necessária a construção
de epistemologias outras, denominadas de decolonizadoras, visto que
321
horizontaliza as relações de saber fazer de homens e mulheres com a
natureza, o mundo, a sociedade, a escola, as comunidades, ou seja, as
múltiplas realidades fomentadoras e detentoras de sua própria histó-
ria e cultura.
Como exemplo de aplicação de uma oficina, tem-se “Produção
de bonecas Abayomi para redução das desigualdades”. A opção da te-
mática foi devida ser um dos Objetivos do Desenvolvimento Susten-
tável propostos pela Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO). Assim, primeiro, deve-se levantar as
concepções dos estudantes sobre a temática da oficina, cultura africa-
na e redução das desigualdades, para isso, elaborou-se três perguntas,
a saber: 1 – O que você entende por desigualdades? 2 – O que você
sabe dizer sobre a cultura africana? 3 - Como poderemos reduzir as
desigualdades usando a cultura africana?
No segundo bloco, pode-se aprofundar o embasamento teórico
sobre a redução das desigualdades e a produção de bonecas Abayomi,
com dois vídeos disponíveis no YouTube1 e a exposição oral dialogada
com questionamentos e imagens de bonecas africanas Abayomi. Em
seguida, coloca-se para produzir em grupos as bonecas africanas com
retalhos de roupas e debater a história, simbologia e possibilidades
empreendedoras a partir delas. Por fim, solicita-se a opinião dos es-
tudantes oralmente sobre a vivência na oficina quanto à produção das
bonecas para reduzir desigualdades.
O primeiro vídeo aborda o projeto ‘Maré de Sabores’, realizado
pela Redes da Maré, com o objetivo de formar profissionais de cozinha,
mulheres de periferias, com especialidade em pratos com referências
de mulheres nordestinas, manauaras e afrodescendentes. Para eles
1 Vídeo 1:<https://www.youtube.com/watch?v=tmWKnU_JV84>;
Vídeo 2:<https://www.youtube.com/watch?v=FcN10wYS6fI>.
322
esse modelo promove a integração e o desenvolvimento social a partir
do empreendimento gastronômico e a implementação e o desenvolvi-
mento de sistemas alimentares sustentáveis para as cidades.
O segundo vídeo trata da história de vida da imigrante Basan-
ti Tamang, quando retorna ao local de origem recomeçou a sua vida
através da costura e da ciência de seus direitos enquanto migrante, ao
receber apoio do programa de reintegração “O futuro que queremos”,
promovido pela conjunta da ONU Mulheres, da Organização Interna-
cional para as Migrações (OIM) e da Zonta International.
Pode-se inferir que práticas construídas sob a égide da decolo-
nialidade no campo da educação ambiental, rompe sobremaneira e
sistematicamente com lugares consagrados de hegemonia e que dis-
tancia de uma verdadeira práxis, defendida por Freire (2014a), Tristão
(2016), Stortti e Sanchez (2017), entre outros, da qual inquiriremos em
defender e nomear de oficina intercultural crítica enquanto prática de
uma educação ambiental decolonial, promotora da implementação
obrigatória de uma educação das relações étnico-raciais emancipa-
doras de homens e mulheres capazes de transformarem o mundo e
suas relações acima citadas, pautada na justiça, igualdade e susten-
tabilidade, ao romper com os ditames da modernidade/colonialidade
construída sócio histórico-cultural, validade pela supremacia branca,
elitizada e detentora do capital econômico e incorporada nos currícu-
los, nas práticas e nas formações de professores, estudantes, pesquisa-
dores, cidadãos planetários.
323
5. DIÁLOGOS DA EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS POR MEIO DE UMA OFICINA INTERCULTURAL
CRÍTICA COMO PRÁXIS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL
DECOLONIAL
A análise da proposta envolvendo a temática da cultura africana
e redução das desigualdades a partir de contribuições possíveis de uma
oficina intercultural crítica na promoção de uma Educação Ambien-
tal Decolonial aponta para olhares do querfazer freireano na produção
de bonecas Abayomi para redução das desigualdades. Uma vez que a
educação intercultural crítica visa então superar o individualismo, os
antigos discursos, as estruturas de exclusão, assim como as atitudes
discriminatórias em busca de um trabalho cooperativo, colaborativo,
reflexivo e dialógico.
Destarte, a convivência de sociedades plurais em suas diver-
sas realidades será possível pela interculturalidade crítica, na medi-
da em que se questiona ideias hegemônicas, padronizadas e binárias,
bem como a desconstrução, as problemáticas sociais, ambientais,
culturais, econômicas e o modo relativista das estruturas e práticas
sociais. Somente na construção de dialéticas, querfazer, epistemolo-
gias interculturais é que poderemos vislumbrar processos de tomada
de consciência outras através da práxis crítico-humanizadora e trans-
formadora de sua realidade-mundo e sociedade/planeta, pois implica
ação-reflexão-ação.
Em suma, pode-se apontar para o aprofundamento teórico-me-
todológico do que ousamos chamar de oficina intercultural crítica en-
quanto prática de uma educação ambiental decolonial, no que tange às
potencialidades, às implicações, aos processos interativos dialógicos,
ao design ou à coreografia didática possível e às vivências refletora e
reflexiva da práxis educativa detentora de temáticas, diálogos e rela-
324
ções outras envolvendo o debate da educação para as relações étnico-
-raciais no cotidiano escolar e no saber fazer das pesquisas acadêmicas.
REFERÊNCIAS
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manizadora na formação de professores de biologia. Recife, Ed.
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325
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e epistemologia em uma concepção integradora. Florianópolis:
UFSC, 2005, p. 125–150.
326
LÉO NETO, Nivaldo Aureliano. A contextualização dos saberes para
a descolonização de um ensino de Biologia que reconheça as
identidades e diferenças. Revista Entreideias, Salvador, v. 7, n. esp,
p.23-42, 2018.
327
sertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em
Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013.
328
TRISTÃO, Martha. Educação Ambiental e a descolonização do pen-
samento. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient., ed. Especial, julho, p.
28-49, 2016. Disponível em:
329
C A P Í T ULO 1 2
(Kelly Fernandes)
330
1. O PRIMEIRO SOPRO
Em novembro de 2020, em meio a um mundo pandêmico, a Uni-
versidade Estadual da Bahia (UNEB) iniciou o Plano Extraordinário de
Oferta de Componentes Curriculares, isto é, uma proposta pedagógica
emergencial para a realização de atividades não presenciais em situação
de distanciamento social determinado pelas autoridades de saúde pública
(BAHIA, 2020). Uma proposta que não se constituiu em um semestre,
mas em apenas 45 dias letivos. Conforme as Diretrizes que orienta-
ram a execução do plano, cada docente escolheria os componentes que
gostaria de ofertar. A fim de conhecer os desejos dos/as estudantes por
quais componentes teriam preferência em cursar, o diretório acadêmi-
co de biologia do Campus VII (Senhor do Bonfim), onde leciono, rea-
lizou um questionário com os/as estudantes a fim de conhecer esses
componentes. Uma das disciplinas que muitos/as estudantes tiveram
interesse em cursar naquele período foi: História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Indígena.
Este texto se constitui como uma narrativa do que me aconteceu
em meio às aulas desse componente curricular, um momento de muito
aguardo, inquietações e reflexões, que me fizeram pensar sobre minhas
implicações como professora negra para educação das relações étnico-
-raciais, mas também um momento em que a ousadia e a coragem de
arriscar práticas pedagógicas outras, trouxe outras experimentações
como professora negra. Uma escrita que nasce do desejo de ventanear
o que me afeta, como também os brilhos de possibilidades de práticas
pedagógicas, entramando minhas histórias à agora também persona-
gens da minha vida, as/os estudantes de História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Indígena. Um ventanear de afetos que se faz na própria escrita
desse texto.
331
O componente curricular em questão se apresentou como possi-
bilidade após a minha entrada como professora substituta no campus
em 2018, pois não compunha o grupo de disciplinas determinado a mi-
nistrar pelo edital de seleção na época. O interesse que me acompanha
desde a licenciatura em Biologia por me envolver em estudos e pesqui-
sas sobre como se dá a produção dos processos de desigualdades étni-
co-raciais, encontrou no conhecimento da existência do componente
no curso da UNEB, uma importante oportunidade em levar para a sala
de aula nos encontros com estudantes de licenciatura em Biologia, as
reflexões que têm sido construídas ao longo de anos sobre educação
das relações étnico-raciais.
História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, com carga horária
de 45h, é uma disciplina até então optativa para os/as estudantes do
curso. Iniciativas realizadas pela coordenação do colegiado do período
da minha entrada no campus, vem colocando sobre o componente a
importância em ser cursado obrigatoriamente. Porém o mais recen-
te Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Licenciatura construído em
2019, determinou a disciplina como componente obrigatório fixado
no primeiro semestre e com 60h de carga horária. É determinação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-
-Raciais que:
332
por meio de alterações realizadas na Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cação de 1996, é uma importante ação do comprometimento históri-
co do Movimento Negro com toda uma construção de uma educação
emancipatória que parta de denunciar, reconstruir e problematizar os
padrões de relações étnico-raciais que tem corroído nossas possibi-
lidades de ser e estar no mundo enquanto pessoas negras principal-
mente, mas também como pessoas brancas. A lei enquanto importante
política pública determina que o processo de educação das relações ét-
nico-raciais seja orientado por professores qualificados para o ensino das
diferentes áreas de conhecimento, com formação para lidar com as tensas
relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes
de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-ra-
ciais (CNE/ CP 3/2004, 2004, p.10-11). Como lidar com essas tensas
relações, se também, enquanto professores/as negros/as e brancos/
as, somos pessoas atravessadas por relações que tem nos naturalizado
modos de ser? Somos desafiados/as nas diversas licenciaturas a pensar
não somente os projetos de curso, currículos, nossas práticas pedagó-
gicas, mas olhar os nossos encontros com a diversidade étnico-racial
de estudantes e licenciandos/as, como acontecimentos que disparam
em nós inquietações e complexidades em estar numa sociedade, na
universidade, cimentada sob um projeto colonial e racista.
333
para dentro de mim, mas também para fora, inventando e reinventan-
do meus caminhos na educação como professora negra na/da Biologia.
A educação é algo que tem a ver com a atenção às condições dra-
máticas que compõem os acontecimentos das nossas vidas, que guiam as
histórias que contamos. (FILÉ; RIBETTO, 2015, p.1). Nos movimentos
de ir me fazendo professora negra, tenho feito o exercício de deixar
à mostra o que me acontece nos tantos encontros comigo mesma e
com os outros que vou deixando me atravessar ao longo dos passos na
educação.
Trazer minhas narrativas a este texto apresenta-se como uma
possibilidade em ir de encontro aos processos que pretendem a bana-
lização do cotidiano vivido pelos sujeitos da educação (FILÉ; RIBETTO,
2015, p.1). O que acontece nos cotidianos dos sujeitos, professores/
as e estudantes são relevâncias a serem vistas como alterar e desobe-
decer às lógicas que são colocadas como parte de um pensar sobre a
educação como um processo aprisionador enraizado em normas he-
gemônicas. O processo de formação na Licenciatura em Biologia na
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), veio acompanhado
de reflexões e os desafios sobre me tornar uma professora implicada
com uma educação antirracista, e ao mesmo tempo pensar na forma-
ção de professores/as de Biologia também para o comprometimento
com os movimentos de desnaturalização das relações étnico-raciais
que tem organizado a nossa sociedade. O projeto pedagógico do curso
que me formou não foi composto por componentes curriculares com
conteúdos relacionados à história e cultura afro-brasileira. Entretanto,
buscando outros caminhos na minha formação como professora futu-
ra para práticas pautadas em uma educação antirracista, fiz a escolha
em cursar disciplinas que me trouxessem essas reflexões, fato que se
deu, por exemplo, quando da entrada da disciplina de Educação das
334
Relações Étnico-Raciais no curso de Pedagogia na UEFS. Caminhos
escolhidos que fugiram ao que me foi colocado como possibilidade
de formação em Biologia na época. Acolho aos escritos desse texto o
que Certeau (1998) ajuda a pensar sobre a possibilidade dos sujeitos
em criar astúcias, piratarias, clandestinidades diante dos produtos que
lhe são impostos, configurando-se como uma arte de utilizar estes com
uma quase-invisibilidade. Uma astúcia, que reconheço como aquilo que
também tem me feito tocar meus passos, criando uma clandestinidade
nos encontros com estudantes licenciandos/as, estimulando-os/as a
pensarem sobre si e suas formações como professores/as de Biologia.
Para mim, que já algum tempo venho estudando, pesquisando
sobre a educação das relações étnico-raciais, a oportunidade de le-
cionar um componente curricular que engloba essas reflexões chegou
como um importante momento de colocar diante de graduandos/as
o que tem sido fruto de leituras ao longo desses anos. Além disso, a
oportunidade de lecionar para licenciandos/a de Biologia se mostrou
como uma possibilidade importante de compartilhar as inquietações
e angústias que surgiram quando na Licenciatura, e me envolveram
no pensar que a formação em Biologia também pode ser alicerçada
no comprometimento em denunciar o racismo que atravessa as rela-
ções sociais. Desde a entrada na UNEB, ocupar a vaga de professora de
História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena se configurou como um
momento de muito aguardo. Por questões de ajustes de carga horária
de outros/as docentes do campus VII, o componente passou alguns se-
mestres sendo administrado por professores/as de outros/as cursos.
A pandemia chegou e trouxe com ela junto também a reestrutu-
ração das ofertas de aulas e cronogramas de muitas universidades e na
UNEB não foi diferente. Ao ter conhecimento sobre o Plano de Oferta
Extraordinário, eu e outras docentes do campus nos articulamos para
335
oferecer uma disciplina, Prática Pedagógica em Biologia. Me envolver
com o componente de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena
não estava em meus planos. Primeiro: recebemos a informação do iní-
cio das aulas do plano de oferta poucos dias depois que as diretrizes
que orientaram a elaboração do mesmo, foram publicadas. Além disso,
a expectativa era poder lecionar História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena de forma presencial e de ter um tempo que possibilitasse o
planejamento das aulas de maneira sem pressa.
A possibilidade de lecionar o componente se apresentou como
um descontentamento. Um desagrado que estava a esconder o que eu
viria a enfrentar: o medo de não ofertar aulas relevantes dada à im-
portância da disciplina; o medo de não conseguir em tão pouco tempo
de planejamento colocar tudo que é importante e que trata do debate
racial no Brasil; enfim, o medo da frustração, de não corresponder ao
ideal de professora negra implicada que eu busco ser. Será que existia
a possibilidade de apresentar todo o conteúdo, que envolve a questão
racial em apenas 45 dias? E que todo conteúdo seria esse? E se fosse no
tempo presencial dentro de 45h de carga horária? Existiria um mode-
lo de ser uma professora negra implicada para educação das relações
étnico-raciais?
A esta altura alguém que leia esse texto pode se perguntar: mas
como uma professora negra que estuda há algum tempo a educação
das relações étnico-raciais, poderia duvidar de si, achar que pode não
conseguir dar conta de um componente que traz reflexões, objetos de
suas pesquisas e leituras? Ainda que esse texto não tenha como obje-
tivo discutir os conceitos sobre ser intelectual, é importante expor que
Bell Hooks (1995) ao examinar a relação das negras com o trabalho
intelectual nos ajuda a compreender, dizendo que na maioria das vezes
a nossa intelectualidade é encarada como suspeita e sendo vistas muitas
336
vezes como intrusas, fruto do racismo e sexismo que recai sobre nós, al-
gumas de nós preferem assim negar sua capacidade intelectual para não
enfrentar essa realidade. (op.cit., p.468). Uma reflexão que nos ajuda a
pensar que os caminhos para nos afirmarmos como intelectuais negras
são carregados de conflitos e complexidades.
Questionamentos que ao expressar me colocam diante de pen-
sar que me tornar uma professora negra antirracista não diz respeito
somente às leituras que tenho me apropriado, mas levanta um pensar
sobre como também eu e tantas/os outras/os professoras/es negras/
os ao habitar esse mundo racista, também colhemos modos de pensar
e viver muito deformados. Talvez teria sido mais fácil, não olhar para
os medos que eu não sabia ter acumulado, crescidos em mim, e me
garantir somente nos/as autores/as que tem me acompanhado nesses
tempos de estudos no campo da educação das relações étnico-raciais.
Como se fazem professoras negras antirracistas? Quantos/as autores/as
precisaríamos ler? Quantos artigos e textos precisaríamos escrever?
Quantas pós-graduações teríamos que concluir? A quantos eventos
acadêmicos necessitaríamos nos fazer presentes? O que deveria caber
em nossos currículos lattes? Com quantas palavras se fazem profes-
soras negras antirracistas? Mesmo com desafios e complexidades, os
caminhos também podem nos trazer possibilidades, chegando naquilo
que também é objeto de reflexão desse texto: a feitura de nós pro-
fessoras negras antirracistas a partir do que fazemos com as palavras
ditas e escritas. Sendo assim, este texto é uma aposta de que se fazem
professoras negras antirracista com aquilo que arriscarei chamar de
uma escrita ventaneada, uma escrita que desobedece aos enclausura-
mentos racistas da palavra, movimentando os silêncios, as memórias e
os conflitos, uma escrita que desloque as palavras que nos façam ínti-
337
ma de nós mesmas, uma escrita que nos prepare para o encontro com
nossas potências sopradas nas letras de nossas histórias.
É comum que aprendemos em nossas passagens pela escola
como estudantes, especificamente em aulas de Geografia que os ven-
tos são importantes fatores ambientais para a dinâmica do planeta,
sendo que sua característica principal é ser um movimento de ar. Os
ventos podem se apresentar como momentos de calmaria e momentos
de inquietação. Os ventos podem modificar relevos e paisagens em ge-
ral, colaborar para polinização de flores, servirem como fonte de ener-
gia (eólica). A intenção aqui não é descrever todas as possíveis ação
dos ventos nas dinâmicas da vida na Terra, mas trazer o vento para
pensarmos as dinâmicas de nossas vidas, enquanto mulheres negras.
Pensar o vento como esse elemento com o qual possamos forjar nos-
sas existências, a escrita de nós mesmas como e-vento-s que no pró-
prio ato de escrever, nos fazem in-vento-ras de nossas vidas, do nosso
ventanear. Deixar-se ventanear pela escrita é permitir levantar nossas
inquietações e calmarias que nos habitam e expressam a diversidade
que somos e trazemos em cada sopros de nossas vozes negras.
Mas como nos permitir à escrita que falam de nossos processos,
se muitas vezes somos moldadas por um aparelho educacional racista
e colonial que nos quer controlar e nos fazer acreditar que a obediên-
cia é o nosso ponto final? A leitura de Glória Anzalduá é como uma
chama incentivadora sobre o porquê da escrita:
338
Narrar nosso estar sendo professoras negras por meio da escri-
ta é um caminho em avivar nossas implicações com a educação das
relações étnico-raciais, alimentando nossas revoltas por um outro
mundo e por desejos de mudanças de nossos olhares sobres nós mes-
mas. Escrever para lidar com os nossos medos e nos fazer dançar aos
sons corajosos de nossos corpos. Narrar nossas histórias na educação,
abandonando as falsas e frias teorias que nos inventam como mulhe-
res incapazes em escrever. Nos experimentarmos como professoras,
mulheres negras, segurando o mundo, e fazendo-o girar em direções
possíveis de uma educação que transcenda os limites racistas de nos-
sas formações e dos/as estudantes que fazem parte dos nossos cotidia-
nos. Uma escrita para que o nosso carnaval, os nossos brilhos venta-
neiem por meio das nossas práticas e palavras.
339
que antecederam o início do componente, questionamentos surgiram
sobre quais leituras, práticas, tarefas, enfim, sobre o que escolher para
compor esses sete encontros e como eles seriam trabalhados. Com a
intenção de criar um espaço para que juntas/os pudéssemos pensar so-
bre o que nos tem acontecido frente às relações étnico-raciais e como
o que nos acontece é um fio que nos liga coletivamente, a conversa
foi escolhida como esse percurso metodológico. Dispositivo de aproxi-
mação e estranhamento dentro do universo da experiência, a conversa é
como aquilo que pode nos aproximar aos sentidos do que nos acontece na
educação. (FILÉ; RIBETTO, 2015 p.8).
O planejamento de conversas também a partir de conceitos (de-
mocracia racial, racismo estrutural, branquitude, educação das rela-
ções étnico-raciais, por exemplo) que muito envolve os estudos so-
bre questões raciais, me trouxe a pergunta do que pode nos acontecer
quando olhamos para nós mesmos, nossas histórias, para pensarmos
as relações étnico-raciais. Larrosa (2002, p.21) novamente quando traz
o conceito de experiência, afirma que a informação não deixa lugar para
a experiência. É nesta perspectiva que o trabalho com a disciplina se
situou, na tentativa de ser mais um espaço em que algo nos aconteça
do que um espaço meramente de informação.
Nesse sentido, o ato de escrever se constituiu como a atividade
principal do componente, pensado a partir da ideia de narrativa, ou
seja, a forma de colocar em palavras– que envolve um ato de criação, de
invenção – comopossibilidade de rememorar a experiência (FILÉ; RIBET-
TO, 2015.p.4). O que permitimos no ato de escrever? O que oferecemos
e não oferecemos em uma escrita? Escrevemos para nos afetar ou para
afetar o outro? Com essas perspectivas, foi conversado no início das
aulas sobre o ato de escrever como um ato de permissão, um ato de
oferta e um ato de afeto. O ato de escrever como possibilidade para
340
deixar que algo nos aconteça, foi pensado como forma de superar uma
lógica de destruição generalizada da experiência, como nos ensina Lar-
rosa (2002, p.23), a lógica de formação de professores/as em que mui-
tas vezes:
341
Conversa iniciada, ouço estudantes relatarem que em nenhum outro
componente de seus cursos foram trabalhadas discussões sobre ques-
tões raciais. Então, começo a contar como se deu e tem se dado meu
envolvimento com as discussões sobre educação das relações étnico-
-raciais. Falo resumidamente do início dos meus estudos para a es-
crita do Trabalho de Conclusão de Curso da Licenciatura em Biologia,
passando pelo mestrado, e como atual estudante de doutorado, até a
comentar em como fui parar como professora da disciplina, trazendo
as questões que me fizeram a somente nesse momento ter a oportuni-
dade de lecioná-la. Sigo conversando com a turma sobre a importân-
cia de refletir sobre seus processos de formação como professores/as e
suas implicações para uma educação antirracista. Aula finalizada.
O segundo encontro síncrono e a tarefa de escrever se apresen-
ta. Ainda no primeiro encontro foi pedido que cada estudante levasse
para o segundo encontro uma foto de sua família, em que o/a graduan-
do/a estivesse também presente. A fim de pensarmos e conversarmos
como a família também é um espaço atravessado pelas relações étni-
co-raciais, foi proposto a escrita de um texto com o título “O Racismo
na minha família”. A foto foi pensada a ser utilizada como inspiração
para refletirem sobre suas histórias e os atravessamentos do racismo.
Algumas questões levantadas foram: como as histórias de nossas fa-
mílias nos dão pistas para pensarmos as relações raciais e o racismo na
sociedade? O que temos aprendido sobre racismo em nossas famílias?
Juntamente com os/as estudantes, levei para o encontro uma foto da
minha família, escrevi um texto e depois o compartilhei com a turma.
A princípio me coloquei a fazer a atividade juntamente com a turma,
como meio de estimulá-los/as a realizarem também, porém, me vi no
momento da atividade, escrevendo pela primeira vez sobre a questão
do racismo em minha família. Deixei que algo me acontecesse. Aliás,
342
essa primeira atividade e as outras que se seguiram considerei como
um gesto de interrupção (Larrosa, 2002), gesto que requer:
Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pen-
sar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais deva-
gar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos
detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender
a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a aten-
ção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o
que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-
-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24).
343
escrita a partir do título “Racismo pra mim é quando...”. A partir dos
textos escritos postados na plataforma de aprendizagem, foi pedido
que um estudante produzisse um comentário sobre o texto de outra
pessoa. Ao final, cada estudante tinha seu texto comentado por uma
pessoa e, também teria escrito um comentário sobre o texto de outra
pessoa. No momento da escrita do comentário pedi que pensassem
sobre o que o/a chamou atenção no texto do outro, como o texto do
outro o/a afetou, o/a ajudou a pensar sobre o racismo. Esses comentá-
rios foram compartilhados em um outro encontro, e a pessoa que teve
seu texto comentado, também dividia com a turma, como recebeu o
comentário. Trabalhei com a ideia de como o que o outro pensa sobre
racismo a partir de suas experiências, desloca ou não o que cada um
tem refletido sobre a questão racial. Em que medida o texto do outro é
familiar? Em que medida o texto do outro soa como estranho? Insisti
que como professores/as de Biologia futuramente, não é só com os co-
nhecimentos científicos que vão lidar, mas que no encontro com os/as
estudantes, o que também está em jogo são suas implicações para ver
de outro modo, para desfamiliarizar o que já sabem ou já viram sobre
relações étnico-raciais.
A última atividade de escrita proposta surgiu a partir da com-
preensão de que estratégias educacionais que visem ao combate do racis-
mo é uma tarefa de todos os educadores, independentemente do seu per-
tencimento étnico-racial (CNE/CP 3/2004, 2004, p.16). Assim, pedi que
em um encontro síncrono escrevessem um texto a partir do título “O
dia em que eu vi a minha cor.” Não pretendi esgotar as complexidades
que dizem respeito à questão do pertencimento étnico-racial no Brasil.
Pretendi sim, ao passo de ir buscando pensar sobre seus envolvimen-
tos com as possibilidades de uma educação para as relações étnico-ra-
ciais, sugerir a importância do desafio de olhar para si, enfrentando os
344
efeitos do racismo em suas histórias e no modo como se veem e como
os outros os/as veem. Escrever sobre como se veem dentro de nossa
sociedade racista como uma condição importante para um pensar que
possibilite a criação de envolvimentos que inspire práticas pedagógi-
cas antirracistas no ensinar Biologia.
O período de ofertas extraordinário de componentes curriculares
chegou e com ele o desejo dos/as estudantes em cursar o componen-
te História e Cultura Afro-Brasileira Africana e Indígena. Incertezas e
expectativas também foram convidadas do momento. O percurso aca-
dêmico que vem sendo construído de implicação com a educação das
relações étnico-raciais, como parte daquilo que também move minha
vida e me movimenta como professora na licenciatura em Biologia, por
um momento correu o risco de ser esquecido. Nos desafios em estar na
educação trabalhando com a formação de professores/as, narrar o que
me aconteceu e o que me vem acontecendo, falando do acontecimento
como experiência no sentido de Larrosa, foi a aposta de me relacionar
comigo mesma como professora que recusa a possibilidade de ter mi-
nha capacidade narrativa degradada em nome de uma obediência a um
cotidiano na educação vazio de envolvimento e invenção. Bell Hooks
nos ensina, mulheres negras, professoras e intelectuais, dizendo que
precisamos ser vigilantes de nós mesmas numa cultura racista e sexista,
sendo capazes de afirmar que o trabalho que fazemos é valioso, e que pode
ter impacto significativo numa estrutura coletiva, ainda que não seja visto
assim dentro de nossa estrutura social (HOOKS, 1995).
O investimento em afirmar a importância de contar as músicas
das deusas do ébano que somos, a partir do ato de escrever como um
ato de criar alma, assim diz Gloria Anzalduá (2000), tem me inspira-
do no sambar por entre as palavras, apostar no que chamo de escri-
ta ventaneada. Uma escrita que possibilite festejar nossas existências
345
que como vento apontam para direções diversas, trazendo a poten-
cialidade de sermos in-vento-ras de nossos passos, de nossos brilhos,
soprando as nossas histórias, entramando nossas vidas com a dos/as
estudantes que encontraremos.
A disponibilidade no trabalho com graduandos/as de licenciatu-
ra em Biologia no educar para as relações étnico-raciais, exercitando
pensar práticas pedagógicas que não torne rara a possibilidade de que
algo nos passe, me ajudou a refletir sobre a escuta no encontro com
os/as estudantes, saindo do conforto de somente fazer da educação
momentos de apresentação de informações e conteúdos, muitas vezes
não trazendo implicações com nossas vidas. Cabe no trabalho com a
educação das relações étnico-raciais sermos como professoras negras
antirracistas, in-vento-ras dos nossos viveres, criando espaços de con-
versas que nos ajudem a sobreviver, compreendendo nosso fazer na
educação como possibilidades de desobedecer aos pensamentos racis-
tas, combustíveis de uma educação colonizadora.
REFERÊNCIAS
ANZALDUÁ, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres
escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v.8, n.1, 2000.
346
CNE/CP 3/2004. Parecer nº3 /2004 de 10 de março de 2004. Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étni-
co-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília, 2004.
347
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
348
Monica Lopes Folena Araújo (Organizadora)
Possui Licenciatura em Ciências Biológicas e Bacharelado em Biolo-
gia Animal pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Mestrado em Ensino das Ciências pelo Programa de Pós-Graduação
em Ensino das Ciências da Universidade Federal Rural de Pernam-
buco (PPGEC/UFRPE). Doutorado em Educação pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambu-
co (PPGEdu/UFPE) e Pós-Doutorado em Educação pela Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Professora do Departamento de Educação
da UFRPE onde atua no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas,
no Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências, no Programa
de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Territorial da
UFRPE e no Programa de Pós-Graduação em Ensino da Rede Nordes-
te de Ensino (RENOEN). É líderdo Grupo de Pesquisa em Formação e
Prática Pedagógica de Professores de Ciências e Biologia (FORBIO) e
coordena a Cátedra Paulo Freire- Educação para a Sustentabilidade da
UFRPE. Linhas de pesquisa: Formação de Professores/as de Ciências e
Biologia, Prática Pedagógica e Educação Ambiental. E-mail: monica.
folena@gmail.com.
349
Bárbara Carine Soares Pinheiro
Mãe, mulher negra cis, nordestina, professora, escritora, empresária,
formada em Química pela UFBA, Mestra e Doutora em Ensino de Quí-
mica pela (UFBA/UEFS). Atualmente é professora adjunta e vice-dire-
tora do Instituto de Química da UFBA. Membro permanente do corpo
docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e Histó-
ria das Ciências (UFBA/UEFS). Líder do grupo de pesquisa Diversidade
e Criticidade nas Ciências Naturais (DICCINA). Autora de livros, tais
como: “@descolonizando_saberes: mulheres negras na ciência”. Idea-
lizadora, sócia e consultora pedagógica da Escola Afro-brasileira Maria
Felipa (@escolinhamariafelipa). Influenciadora digital nas páginas @
descolonizando_saberes (Instagram) e Uma Intelectual Diferentona
(YouTube). E-mail: soarespinheirob@gmail.com.
350
UFSCar e graduada em Pedagogia Plena pela Universidade Camilo Cas-
telo Branco de Descalvado. Líder do grupo de pesquisa TAEC (Temas
Atuais para o Ensino em Ciências). Integrante do Grupo Biologia Entre
Nós. Atualmente trabalha como Professora Adjunta da área de Ensi-
no do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade de Santa
Cruz em Ilhéus/BA. E-mail: cavprudencio@uesc.br.
351
niais no ensino de Ciências e caminhado na fronteira entre a pedago-
gia e a biologia. E-mail: denise.mafalda@gmail.com.
352
quisador associado do Laboratório de Estudos Bioculturais - KAIPORA
e ao Grupo de Pesquisa Pollis e Mnemosine: Cidade e Memória (Fae/
UEMG). E-mail: fsantos.bio@hotmail.com.
353
do Grupo Biologia Entre Nós. Componente do Laboratório de Estu-
dos e Aprontos Multimídia-relações étnico-raciais na Cultura Digital
(LEAM-UFF). Componente do Grupo de Estudos em Educação Cientí-
fica- (GEEC-UNEB). Componente do Laboratório de História e Cultura
Afro (LAHAFRO-UNEB). E-mail: popovi12@gmail.com.
354
Uiré Lopes Penna
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Biomonitora-
mento da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Desenvolveu projeto
intitulado “Avaliação da mobilização de conteúdos ao longo de uma se-
quência didática sobre polinização a partir de questões sociocientíficas na
perspectiva da Educação CTSA”, no Laboratório de Biologia e Ecologia
de Abelhas (LABEA/UFBA). Concluiu a Licenciatura e o Bacharelado
em Ciências Biológicas pela UFBA. Atualmente é Professor da Educa-
ção Básica vinculado à Secretaria de Educação do Estado da Bahia lota-
do no Centro Educacional Carneiro Ribeiro- Escola Parque.E-mail:ui-
re.lp@gmail.com.
355
ciação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED);
da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e da
Associação Nacional de História (ANPUH). Bolsista Produtividade ID-
CNPq. E-mail: wilmacoelho@yahoo.com.br.
356
Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências