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Afro-Ásia

ISSN: 0002-0591
afroasia@ufba.br
Universidade Federal da Bahia
Brasil

Guimarães Leite, Douglas


ESCRAVIDÃO E EXCEÇÃO NO SÉCULO DA LIBERDADE. PIROLA, Ricardo. Escravos
e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de Junho de 1835.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015, 310 p.
Afro-Ásia, núm. 56, julio-diciembre, 2017, pp. 231-238
Universidade Federal da Bahia
Salvador, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77055372011

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ESCRAVIDÃO E EXCEÇÃO
NO SÉCULO DA LIBERDADE

PIROLA, Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma


KLVWyULDVRFLDOGDOHLGHGHMXQKRGH. Rio de Janeiro: Arquivo
1DFLRQDOS

Os “negros” de Waltham produzem Mas os negros de que se ocupa


mais um belo fruto na historiografia Ricardo Pirola, logo se vê, não usam
brasileira. Amplamente conhecida aspas. A cor escura de seu rosto não
na produção contemporânea, a his- remete à tradição do disfarce de ca-
tória dos plebeus que, com rostos çadores clandestinos das florestas
pintados de preto, assombraram a europeias. Ela é a marca inata de
nobreza e a aristocracia inglesas africanos, mulheres e homens, e de
FRP LQFXUV}HV QDV IORUHVWDV j FDoD seus descendentes, que ao longo de
de cervos, encontra uma espécie de quase quatro séculos desembarca-
duplo nacional no inspirado traba- ram à força ou nasceram debaixo da
lho de Ricardo Pirola. condição hedionda que a empresa
Tal como o clássico trabalho de do capitalismo comercial atlântico
(GZDUG 7KRPSVRQ ± ³6HQKRUHV H engendrou em terras americanas: a
&DoDGRUHV D RULJHP GD OHL QHJUD´ escravidão moderna.
±ROLYURGH3LURODRULJLQDOPHQWHVXD $ /HL Qž  FRPR HUD
WHVHGHGRXWRUDGR  pRHVWXGR oficialmente conhecida a lei de ju-
de uma lei. Mais do que o objeto nho) marcou a história brasileira
escolhido, o sentido da inspiração ao definir crimes, procedimentos
se manifesta na abordagem do di- e penas em termos flagrantemente
reito como um espaço privilegiado incongruentes com as linhas gerais
de disputas sociais que, guardada GRUHJLPHMXUtGLFRHPTXHKRXYHUD
relativa autonomia frente ao mundo VLGR LQVWLWXtGD &LQFR DUWLJRV FRQ-
GD SROtWLFD SHUPLWH VXUSUHHQGHU QR densavam a descrição dos delitos, o
IXQFLRQDPHQWRGHVXDVLQVWLWXLo}HVR SURFHVVDPHQWRHDVVDQo}HVFDEtYHLV
cruzamento de algumas das mais im- a escravos que atentassem contra a
SRUWDQWHVWUDQVIRUPDo}HVGRVpFXOR vida de seus senhores, seus familia-
res ou administradores da produção.

E. P. Thompson, Senhores e caçadores: a )RL HQWmR FRPR VtQWHVH GH XP DFH-
origem da lei negra, Rio de Janeiro: Paz e
7HUUD lerado processo de mudanças por

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que passavam o mundo ocidental e SROtWLFRVQXPDDUHQDS~EOLFDPDUFD-
particularmente o Brasil na primei- da por variados discursos de liber-
ra metade do século XIX que Pirola dade. No segundo, a intensificação
LGHQWLILFRXQDOHLGHMXQKRGH do tráfico de escravos para algumas
um fértil objeto de estudo. UHJL}HV DPHULFDQDV ± DUWLFXODGD jV
novas demandas da produção capi-
(P PHX HQWHQGHU ± GL] R DXWRU QD
WDOLVWD±HVXDVLPSOLFDo}HVSROtWLFDV
LQWURGXomRGRWUDEDOKR±HUDQHFHV-
e demográficas condicionaram um
sário analisar o surgimento da lei de
DPELHQWHVRFLDOIRUWHPHQWHSURStFLR
GHMXQKRGHGHQWURGHXPD
jV PRYLPHQWDo}HV UHEHOGHV GRV
perspectiva mais ampla de transfor-
escravos. Nesse contexto, a lei de
PDo}HV TXH DIHWDYDP D PDQHLUD GH
MXQKRGHVXUJLXFRPRXPQRYR
se pensar a Justiça, especialmente
instrumento do regime de exacer-
em um momento de expansão do es-
bação do escravismo na América.
cravismo no Brasil, que remetia ao
ILQDOGRVpFXOR;9,,, S 
O encontro da dupla dimensão
LQVWLWXFLRQDO H SROtWLFD GHVVHV SUR-
Eixos centrais da obra, Justiça cessos Pirola traduziu no roteiro
e escravismo são explorados por de sua obra. O livro se inicia com
Pirola na reconstrução de cenários o estudo da criação da lei e da re-
históricos mais amplos, como a for- percussão das revoltas escravas no
mação do Estado nacional brasilei-
parlamento, passa pelo exame detal-
ro e a reformulação da escravidão
hado da atuação e das competências
RLWRFHQWLVWDVREUHEDVHVJHRSROtWLFDV
pós-revolucionárias, renovadas sob dos diversos órgãos da Justiça e da
a hegemonia inglesa. No primeiro administração pública na aplicação
caso, destacam-se a fundação de da lei, e desemboca na análise de
um parlamento, a estruturação da uma hermenêutica legal formulada
administração pública e de seus re- ao longo do século pelo Conselho
spectivos órgãos de controle, e ainda de Estado, premido pela necessi-
a ascensão de um Poder Moderador dade de dialogar tanto com a agenda
como pretenso árbitro dos conflitos emancipacionista quanto com as ex-

O tema da lei de junho já havia sido objeto 
 3DUDXPDGLVFXVVmRGDQRYDFRQ¿JXUDomR
da atenção de João Luiz Duboc Pinaud em da escravidão nas Américas no século XIX,
“Senhor, escravo e direito: interpretação ver o conceito de “segunda escravidão” em
VHPkQWLFRSROtWLFD´ LQ -RmR /XL] 'XERF Dale Tomich, Pelo prisma da escravidão:
Pinaud et alli, Insurreição negra e justiça, trabalho, capital e economia mundial, São
Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultu- 3DXOR(GXVS2FHQiULRGDVjihads
UDHWDPEpPGH-RmR/XL]5LEHLUR DIULFDQDVFRPRIDWRUGLQDPL]DGRUGRWUi¿FR
No meio das galinhas as baratas não têm e das revoltas de escravos no Brasil (Bahia,
UD]mR D OHL GH  GH MXQKR GH  RV especialmente) é analisado por João José
escravos e a pena de morte no Império Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história
GR %UDVLO  , Rio de Janeiro: GROHYDQWHGRVPDOrVHP, São Paulo:
5HQRYDU &RPSDQKLDGDV/HWUDV

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pectativas de senhores proprietários GRV HVFUDYRV UXUDLV S   H FXMD
de escravos. demografia propiciava entre os ne-
Atravessando todo esse panora- gros recém-chegados uma relativa
ma encontra-se a atenção especial homogeneidade cultural, que atuava
dada por Pirola à rebeldia escrava, como fator especialmente relevante
na formação de solidariedades re-
coletiva e individual, de cuja análise
EHOGHV$OpPGLVVRDVFRQVSLUDo}HV
também emerge o aprendizado
indicavam que os habitantes das
SROtWLFR IRUMDGR SHORV FDWLYRV QmR senzalas estavam atentos às pautas
só fora mas dentro da lei, como GD SROtWLFD LQVWLWXFLRQDO DR FRQWD-
nos casos em que, demonstrando UHPHQWUHDVUD]}HVSDUDVXDPREL-
conhecimento dos debates judiciais lização a proibição do tráfico transa-
em torno da lei de junho, e na ex- WOkQWLFRGHHVFUDYRVHPHRILP
pectativa de que suas penas capitais GDHVFUDYLGmRLQGtJHQDHP6mR3DX-
fossem comutadas em trabalhos per- OR S 'HFLVLYDVSRUpPSDUDR
pétuos, extinguiam a vida do senhor arremate da lei de junho, dirá Pirola,
privado com a pretensão de serem seriam a insurreição de Carrancas/
0*   H D 5HYROWD GRV 0DOrV
apropriados pelo senhor-Estado.
 QD%DKLDPRYLPHQWRVTXH
Nessa linha, o autor ainda destaca
cada um a seu tempo, confirmariam
FRPR HVVH PRYLPHQWR FRQ¿UPDYD o propósito das autoridades de usar
a presença cada vez mais expressiva o alarme público e o seu próprio
de cativos, de uma ou de outra for- medo para substituir por uma lei ex-
ma, nos espaços de demanda formal cepcional a “fraca” legislação com
pelo direito. que contavam até ali para o controle
O próprio Pirola, em trabalho das senzalas.
anterior, estudou em detalhes planos Iluminando um dos raros mo-
de revoltas escravas, como os veri- mentos de debate parlamentar em
ficados na cidade de Campinas, nos torno da proposta da lei de junho,
DQRVGHHR~OWLPRGHODV Pirola reproduz a fala do deputado
capaz de mobilizar cativos de mais cearense Castro e Silva, para quem
de quinze propriedades da região.4 a lei se prestava a nada mais do que
0DORJUDGDV DV FRQVSLUDo}HV LQGL- corrigir o erro perpetrado no recen-
cavam, porém, o potencial explosi- WtVVLPR &yGLJR GH 3URFHVVR &ULPL-
vo de uma dinâmica sócio-produti- QDOGHTXH³LJXDODYDRFLGD-
va em cuja atividade o número de
DIULFDQRVQDWRVSRGLDDOFDQoDU 
Nova leitura a respeito do impacto da
revolta de Carrancas sobre a criação da lei
de junho se encontra em Marcos Ferreira
4
Ricardo Pirola, Senzala insurgente: malun de Andrade, “A pena de morte e a revolta
gos, parentes e rebeldes nas fazendas de dos escravos de Carrancas: a origem da ‘lei
&DPSLQDV  , Campinas: Ed. Unicamp, QHIDQGD¶ GHMXQKRGH ´Revista
 TempoYQ  SS

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GmR OLYUH DR HVFUDYR´ S   3RU questão central no livro de Pirola:
meio da positivação de uma “ordem a percepção e o trabalho de uma
dentro da ordem”, a lei “ampliava o discursividade institucional que,
número de delitos que passariam a produzindo o “outro”, explora a lei
ser condenados com a pena de morte penal como instrumento que demar-
e encurtava os procedimentos para o ca e sanciona a diferença, levando-a
julgamento e execução de sentença. ao limite por meio da criação de
$V GLVSRVLo}HV GD QRYD OHL GHL[D- XPGLVSRVLWLYRMXUtGLFRGHH[FHomR
vam pouca margem para os réus es- Esse procedimento de alienação do
cravos escaparem da execução” (p. “caráter de homem” do cativo foi o
  DILQDO ³D VHQWHQoD VH IRU FRQ- processo por meio do qual ele pró-
denatória, se executará sem recurso prio não só se achou submetido a
DOJXP´ DUWžGD/HLQž $ um tipo de lei que não se conforma-
aprovação desse “arsenal da morte” va ao direito comum, como também
não ocuparia, contudo, demasiado se viu, por outro lado, transformado
tempo dos briosos parlamentares. em sujeito da pena pública e esta-
Na análise do projeto da lei, “pou- WDO±SURJUHVVLYDPHQWHUHVJDWDGRGD
FRV IRUDP RV GHEDWHV H DOWHUDo}HV punição privada do senhor, naquilo
promovidos pelo Parlamento. Em que seria um duro golpe sobre os
VHVV}HV FXUWDV H UiSLGDV D QRYD OHL fundamentos do escravismo.
IRLFULDGD´ S  Se Portugal e o Brasil não che-
Uma das poucas vozes levan- garam a formular seu próprio Code
tadas no parlamento contra a forma Noir, o contexto de discussão e
assumida pela então proposta de lei, HODERUDomRGDOHLGHMXQKRGH
o deputado baiano Antônio Ferreira não deixou de evidenciar que, no
França declarou se ver diante de uma exato momento em que a institu-
“monstruosidade anticonstitucional”. FLRQDOLGDGH MXUtGLFRSROtWLFD GR
Para França, que, não passara um Império se movia em direção à mo-
ano, havia tomado parte na apro- dernidade legal, a radicalização de
vação dos liberais códigos criminal XPD WtSLFD ³FULPLQDOLGDGH HVFUDYD´
e de processo, “a carta constitucio- tomava o sentido contrário. Embo-
nal não permitia que ninguém fosse ra os modernos códigos brasileiros
despojado do caráter de homem” previssem tipos penais e dispositi-
S 2GHSXWDGRIHULDDVVLPXP YRV SURFHVVXDLV HVSHFtILFRV SDUD RV
registro eminentemente filosófico e HVFUDYRV ± D H[HPSOR GR FULPH GH
constitucional, e denunciava a lógi- insurreição e de sua desqualificação
ca emergencial que avançava sobre
SULQFtSLRV H SDGU}HV GH XP GLUHLWR 
Como se sabe, o Code Noir (Código Ne-
que a própria classe dirigente recém JUR IRLXPGRFXPHQWRMXUtGLFRGHFUHWDGR
-entronizada no Parlamento alegava SRU /XtV ;,9 QR VpFXOR ;9,, YROWDGR D
regular, de maneira particular, a situação
prestigiar. MXUtGLFD GRV HVFUDYRV QRV WHUULWyULRV GR
A essa altura evidencia-se uma GRPtQLRIUDQFrV

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como testemunha no processo penal pois a lei nascia com a pretensão
±DOHLGHMXQKRDJUDYDYDDFRQGLomR de valer ao lado, e apesar, deles no
do réu-escravo. Uma vez incurso na espaço de consenso (tenso) forjado
OHL GH  GH MXQKR GH  R FDWL- para garantir a sua excepcionalida-
vo seria condenado à pena de morte de. Foi isso o que também demons-
ainda que a decisão do júri não fosse traram Thompson e a Lei Negra, e
unânime, diferentemente do que se que da mesma forma se manifesta
passava com o regime do Código de no direito repressivo dispensado pe-
&RQGHQDGRQmROKHDVVLVWLULD los sistemas estatais contemporâne-
qualquer dos mecanismos tradicio- os às periferias de todo tipo, locais
nais de controle e revisão do proces- ou globais. Nesse sentido, a exceção
so, pois a sentença deveria ser exe- é, a rigor, menos excepcional do que
cutada “sem recurso algum”. GHIDWRFRQVWLWXWLYDGDIRUPDMXUtGL-
Na análise desse cenário, Pirola ca moderna, o que nos permite en-
chega a sugerir que, com a aprova- WHQGHUDOHLGHMXQKRGHFRPR
ção da lei de junho e as consequen- um momento mais agudo desse mo
WHVDOWHUDo}HVQRVFyGLJRVFULPLQDLV dus operandi fundamental do direito
³DVQRYtVVLPDVOHLVHSURFHGLPHQWRV moderno.
judiciais do Império já nasciam ca- 1D OLQKD GHVVDV FRQVLGHUDo}HV
ducos na visão do governo regencial interessa observar como o proces-
HGR3DUODPHQWREUDVLOHLUR´ S  VR GH UHVLVWrQFLD SROtWLFD DR GLUHLWR
Não parece, todavia, que o direito pode passar pelo próprio direito,
comum tivesse que caducar para que uma vez que estejam estabelecidas
uma “exceção” vingasse. A rigor, a DV FRQGLo}HV PDWHULDLV H SROtWLFDV
fórmula vale não só para esse caso, para que a “vagueza”, a “ambigui-
mas constitui a regra do sistema ju- dade” e a excepcionalidade de leis
UtGLFR PRGHUQR e HVVH R PRGHOR “nefandas” possam ser exploradas
WtSLFR GH XPD IRUPD MXUtGLFRSROt- FRPR LQVWUXPHQWRV GH GHVSUHVWtJLR
tica que administra a coexistência do tipo de justiça que alegam pro-
de ordens particulares de vigência mover. Trata-se, portanto, de acom-
MXUtGLFD ³RUGHQVGHQWURGDRUGHP´  panhar como uma complexa atuação
fortemente apoiadas em registros de LQVWLWXFLRQDO MXUtGLFD H SROtWLFD Gi
poder que autorizam e sustentam conta de reinserir sob o direito co-
sua operacionalização. O caso tam- mum o “direito excepcional”, ainda
bém não era de “reforma dos Códi- que fragmentária e paulatinamente,
JRV´ SS   SHOD OHL GH MXQKR resgatando do ponto de vista práti-
FR D XQLYHUVDOLGDGH GH SULQFtSLRV

Sobre o assunto, Giorgio Agamben, Estado MXUtGLFRVJHUDLVFRPRVTXDLVHVWDULD
de exceção 6mR 3DXOR %RLWHPSR  comprometida a própria noção de
Também Michel Foucault, Em defesa da justiça moderna. Chegamos assim
VRFLHGDGH FXUVR QR &ROOqJH GH )UDQFH
 , São Paulo: Martins Fontes, ao núcleo do trabalho de Ricardo
 3LURODTXHFRPILQRWUDWRDQDOtWLFR

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apresenta e examina a montagem e a por Ribeiro para a compreensão dos
desmontagem da ordem criada pela problemas suscitados pela lei.
OHL GH MXQKR GH  FRP DWHQomR Nesses termos, não obstante a
especial ao comportamento dos ato- evidente relevância da Justiça im-
res da Justiça, da burocracia imperial perial na história da lei de junho, é
e dos próprios escravos, articulando sobretudo na prática institucional
os sentidos de sua atuação com a in- de um órgão do poder executivo
WHUSUHWDomR GH TXHVW}HV FHQWUDLV QR que está concentrada a substância
contexto da erosão e queda do escra- material a partir da qual Pirola cons-
vismo no Brasil imperial. truiu a novidade do seu trabalho.
Com o propósito de repropor a ,QVWkQFLD HPLQHQWHPHQWH SROtWLFD
discussão sobre a lei de junho, seu ocupada por figuras públicas de
contexto social e, especialmente, so- avançada carreira de Estado, o Con-
bre a atuação do Estado imperial ao selho do Imperador funcionou como
longo de sua vigência, Pirola mira um fundamental regulador institu-
sobretudo o cional, frente ao qual o próprio Pe-
dro II demonstraria frequente acata-
PRGRFRPRDOHLGHGHMXQKRGH
mento, poucas vezes divergindo das
 IRL GHEDWLGD QR &RQVHOKR GH
consultas que lhe eram tomadas.
Estado, ao longo do século XIX, e
Dotado de competência sobre as
os significados a ela emprestados
GHFLV}HV GD -XVWLoD R &RQVHOKR GH
SHODSRSXODomRHVFUDYD S 
Estado, ou mais especialmente a sua
Com exaustivo trabalho sobre “Seção Justiça”, ocuparia, alargando
as fontes produzidas pelo Conse- -a, a única brecha que o direito bra-
lho e pelo Ministério da Justiça, o VLOHLURDEULDSDUDRFRQWUROHMXUtGLFR
autor pôde aproveitar as inúmeras GDVGHFLV}HVFRQGHQDWyULDVIXQGDGDV
RSRUWXQLGDGHVDQDOtWLFDVTXHUHVXOWD- na lei de junho — os recursos de gra-
ram de sua capacidade em remontar, ça e os pedidos de perdão remetidos
muitas vezes em toda a extensão, os ao Imperador, abolidos que estavam
processos judiciais abertos em razão RVUHFXUVRVRUGLQiULRV1RH[HUFtFLR
da lei de junho, articulando os pa- dessa atribuição, o Conselho criou
SpLVHFUX]DQGRDVGLVWLQWDVSRVLo}HV ao longo do século uma jurispru-
MXUtGLFDV GH VHXV DWRUHV &RP LVVR dência própria a respeito da lei, por
Pirola defendeu, com razão — mas meio da qual permitiria ao Estado
também com insistência ao longo de LPSHULDO DGPLQLVWUDU DV WHQV}HV GD
toda a obra — ter avançado sobre crise do escravismo, acossado seja
TXHVW}HV QmR UHVROYLGDV SHOR OLYUR
de João Luiz Ribeiro — ³1R PHLR 
Ribeiro, idem.

das galinhas as baratas não têm Para uma leitura esclarecedora da estrutura
do Conselho de Estado, ver alentada obra
UD]mR´ —, seja pela limitação de de José Reinaldo de Lima Lopes, O oráculo
seu trabalho documental, seja pela de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil
insuficiência das análises propostas Império6mR3DXOR6DUDLYD

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SHODV SUHVV}HV HPDQFLSDFLRQLVWDV numa região de fronteira, seriam in-
seja pelas expectativas de liberda- terpretadas de maneira favorável
de que conformavam distintos tipos ao réu-escravo, reiterada a disposi-
de rebeldia entre os escravos. Pela ção de tratá-lo como o réu-escravo
SRVLomRHVWUDWpJLFDGRyUJmRQDSROt- da legislação ordinária. Uma das
tica institucional, a oportunidade de evidências do contorno especifica-
fazer da intepretação da lei de junho PHQWH MXUtGLFR GD TXHVWmR HVWi SRU
um instrumento decisivo para a ca- exemplo, na linha doutrinária adota-
OLEUDJHPGDVWHQV}HVSROtWLFDVFROD- da pelo funcionário do Ministério da
borou para que sua jurisprudência se Justiça, Victorino de Barros, respon-
destacasse em relação à da própria sável pelos pareceres do órgão nos
Justiça. A principal ferramenta para casos do recurso de graça, na década
a realização dessa tarefa foi a con- GH  (UD 9LFWRULQR XP QRWiYHO
solidação de uma hermenêutica que e embasado adversário da pena de
favorecia progressivamente a apro- morte. Por outro lado, para que fos-
ximação entre a lei de junho e o di- VH SRVVtYHO YLDELOL]DU XP SURJUDPD
reito comum, e que se manifestou SROtWLFR UD]RDYHOPHQWH FRHUHQWH GH
particularmente no número crescen- interpretação da lei de junho, a juris-
WHGHFRPXWDo}HVGDVSHQDVGHPRUWH prudência da Seção Justiça haveria
decretadas pela Justiça em penas de também de ser seletiva, desconside-
galés perpétuas, ao longo da segun- rando, por exemplo, que os mesmos
da metade do século. Isso não sig- códigos em que fundamentava as
nificava pouco, em termos práticos, GHFLV}HVGHFRPXWDomRGDSHQDFD-
pois aumentava exponencialmente a pital vedavam a aplicação da pena
probabilidade de que, ao final de um de prisão para escravos. Nesse caso
SURFHVVRSHODOHLGHMXQKRGH seria outro, que não propriamente
D SURSULHGDGH GR HVFUDYR VDtVVH GR MXUtGLFR R IXQGDPHQWR GD LQWHUSUH-
GRPtQLRVHQKRULDOIRVVHHOHH[HFX- tação. Assim como também nos ca-
tado, fosse a pena capital comutada. sos em que, mesmo aplicável a juris-
'HVVH SRQWR GH YLVWD MXUtGLFR prudência, o Conselho recomendava
portanto, Pirola demonstra como a a execução da sentença, atendendo
atuação do Conselho de Estado seria ao clamor público e aos interesses
orientada a explorar as “vaguezas” e escravistas da hora.
“ambiguidades” da lei de junho, re- Na parte final de seu livro, ao
tomando a sua interpretação debaixo discutir o processo de revogação
GDV GLVSRVLo}HV GR GLUHLWR JHUDO ² GDOHLGHMXQKRGH3LURODFLWD
notadamente o Código de Processo o documento encaminhado pelo
Criminal. Sobretudo na segunda Imperador, no final da década de
metade do século, matérias relati-  DRV SUHVLGHQWHV GH SURYtQFLD
vas à prova do fato, às atenuantes, requerendo-lhes o envio dos proces-
à condição do agente, ou mesmo à sos para fins de revisão criminal. O
circunstância de o evento ter se dado texto é uma demonstração clara do

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VHQWLGR GH XPD RULHQWDomR MXUtGLFR A destreza do autor com o vocabulá-
SROtWLFDTXHDOLHQFHUUDYDVHXVWUD- ULR HVSHFtILFR GD iUHD MXUtGLFD H VXD
balhos. Dizia Pedro II que: facilidade em circular pelas diversas
“instâncias da Justiça” demonstram o
$OHLGHGHPDLRGHGHFOD-
continuado amadurecimento de uma
rando extinta a escravidão no Bra-
historiografia cada vez mais habilita-
VLOYLUWXDOPHQWHUHYRJRXDGHGH
da a não só reconstruir com compe-
MXQKR GH  ID]HQGR FHVVDU VXD
tência as fontes de trabalho, mas es-
razão de ser e os motivos especiais
pecialmente dialogar com os termos
de segurança pública e individual,
de um campo estranho, beneficiando
originados da condição servil, que
-os na construção de uma competente
GHWHUPLQDYDP VXDV GLVSRVLo}HV H[-
OHLWXUD DQDOtWLFD 'LGDWLFDPHQWH VXD
cepcionais relativamente aos direi-
obra não só acompanha a história da
tos nela previstos, na verificação da
lei, mas também se apresenta como
culpa, na penalidade, no julgamento
uma espécie de roteiro consecutivo
dos recursos, colocando os réus fora
de cada fase do processo criminal:
GRGLUHLWRFRPXP S 
GR IDWR j SURQ~QFLD GD VHQWHQoD DR
Retrospectivamente, o Impera- perdão, esse longo e “penoso” instru-
dor dava sentido ao trabalho do seu mento de alforria.
Conselho. Nesse sentido, descortinando
Com ³(VFUDYRV H UHEHOGHV QRV e analisando por meio da rigorosa
WULEXQDLVGR,PSpULR´, Ricardo Piro- exploração de fontes históricas os
la exibe suas credenciais de historia- significados da produção, da apli-
dor social do direito em qualificado cação e da mudança da lei para os
diálogo com outros pesquisadores. diversos atores sociais, Pirola pro-
duz um livro que interessa não só
aos historiadores, mas também aos

No Brasil, dentre outros, figuram os MXULVWDVGHRItFLRPXLWDVYH]HVGHVD-
importantes trabalhos de Keila Grinberg,
Liberata, a lei da ambiguidade: ações de YLVDGRVDUHVSHLWRGDVFRQGLo}HVHP
liberdade da Corte de Apelação do Rio que o direito se imbrica e se produz
de Janeiro no século XIX, Rio de Janeiro: politicamente, seja ontem, seja hoje.
5HOXPH'XPDUi-RVHOL1XQHV0HQ- Tudo isso justificaria, por fim, que
donça, Entre a mão e os anéis: a lei dos
sexagenários e os caminhos da abolição esse importante texto fosse objeto
no Brasil&DPSLQDV(G8QLFDPS de maior atenção editorial do Arqui-
Andréa Slemian, Sob o império das leis: vo Nacional, que, tendo-o premiado
Constituição e unidade nacional na for e publicado, numa próxima impres-
PDomRGR%UDVLO  , São Paulo:
+XFLWHF  (GXDUGR 6SLOOHU 3HQD são poderá submetê-lo a uma revi-
Pajens da Casa Imperial: jurisconsultos, são gramatical tão rigorosa quanto
HVFUDYLGmRHDOHLGH Campinas: Ed. a qualidade do trabalho que editou.
8QLFDPS(OFLHQH$]HYHGRO direito
dos escravos, lutas jurídicas e abolicionis Douglas Guimarães Leite
mo na província de São Paulo, Campinas: Universidade Federal Fluminense
(G8QLFDPS douglas.leite@gmail.com

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