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Da cláusula rebus sic stantibus à

onerosidade excessiva

Maria Antonieta Lynch

Sumário
1. Babilônia. 2. Direito Romano. 3. Idade
Média – séculos XII e XIII. 4. Idade Moderna.
5. Idade Contemporânea – Estado Social. 6.
Revisionistas e antirrevisionistas. 7. O Código
Civil de 1916. 8. Anteprojeto do Código de Obri-
gações. 9. O Código Civil de 2002 e o Código do
Consumidor. 10. Conclusões.

De uma forma geral, quando do estu-


do dos institutos jurídicos, é importante
conhecer e tentar entender as suas raízes
e o seu desenvolvimento, pois, salvo raras
exceções, os fenômenos jurídicos emanam
do social e da necessidade da autorregula-
mentação.
Assim sendo, ao analisá-los, consegui-
mos entender a essência deles, o que, no
presente trabalho, vai-nos permitir visuali-
zar a evolução da cláusula rebus sic stantibus
até a teoria de imprevisão, bem como os
contornos da teoria de onerosidade exces-
siva, dando, porém, ênfase às codificações
privadas pátrias.

1. Babilônia
Na história encontramos os princípios
da tangibilidade contratual desde, pelo
menos, 2.300 anos antes de Cristo, pois,
já naquela época, o homem condicionava
Maria Antonieta Lynch é Pós-doutora pela seus acertos a eventos futuros capazes
Universidade Robert Schumam – Estrasburgo – de modificá-los. Esse fato se verifica nas
França. Doutora em Direito. Professora Adjunta escrituras feitas em pedra, decifradas da
da UFPE. escrita cuneiforme por Bonfante, no sécu-

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lo passado. Referimo-nos ao mais antigo dispõe a respeito de uma estipulação feita
legado jurídico que a ciência arqueológica por alguém no sentido de pagar deter-
decifrou, que é o Código de Hamurabi.1 minada soma ao estipulante ou a Tício,
prevenindo que a Tício só se pode pagar,
2. Direito Romano assim se fazendo válido o desate obrigacio-
nal, se permanecer no mesmo estado que
O sistema romano, quanto à questão de
tinha quando se estipulou. Verifica-se que
ter sido o berço da cláusula rebus sic stan-
há uma vinculação entre a estipulação e a
tibus, primitivamente denominada rebis sic
permanência objetiva do estado.
se habentibus, suscita dissenso doutrinário,
O que interessa deixar assente é que,
havendo quem afirme e quem negue tal
já no classicismo romano, o princípio da
fato. Porém, se, antes de Roma ser Roma
fidelidade ao contrato não era invulnerável,
e antes do ius romanum ser o inspirador de
rendendo-se à base objetiva do contrato
nosso direito, já existia a ideia da condicio-
concluído.
nalidade contratual, por que essa não teria
Se as fontes jurídicas dos romanos não
surgido no pensamento jurídico romano?
elevaram a um princípio de aplicação geral
No plano filosófico, apontamos nas li-
a estreita conexão entre as modificações
ções morais deixadas pelos estoicos Cícero
do estado de fato, dentro do qual se rea-
e Sêneca os mais prístinos vestígios de que
liza a avença, e a persistência do vínculo
o princípio da fidelidade ao contrato não
consensual, o que é incontestável é que
era invulnerável se alteradas as condições
a consciência moral deles percebeu essa
subordinadas às quais se concluiu (SIDOU,
correlação.
1962, p. 8). E são nessas soluções morais
que os fervorosos adeptos da ancianidade estipuló. Pero si se hubiese dado en adopción, o hubie-
romana se apoiam. se sido desterrado, o deportado, no se le podrá pagar;
Com isso, constata-se que os romanos, já porque tácitamente parece que se comprendió en la
no I séc. antes de Cristo e no II da nossa era, estipulacion, si permaneciese en el mismo estado. § 1.
Si mandase a mi deudor que pagase a Ticio, y después
davam margem à vulneração do contrato prohibi a Ticio que cobrase, y el le pagase el deudor
admitindo a quebra do princípio pacta sunt ignorándolo, juzgue que se librará de la obligación,
servanda. Assim temos que a consciência si Ticio no recibiese lo que se le dió com intención de
moral dos romanos não ficou estranha à co- hacerlo suyo, no siendo asi; porque cometerá hurto,
permanecerá del deudor lo que pagó; por lo cual segun
nexão entre as mudanças do estado de fato derecho no se puede librar de la obligacion el deudor.
e a persistência do vínculo obrigacional. A Pero es conforme à equidad que se le dé excepcion, si
mutabilidade contratual já se encontrava estuviese pronto á cederme la condiction furtiva que
nas práticas romanas. le compete contra Ticio como se observa cuando el
marido manda á su fdeudor que pague á su mujer lo
Quanto às fontes jurídicas, há textos que le habia de dar á él; porque en este caso porque el
versando soluções relacionadas ao tema, dinero no se hace de la mujer, no se libra de la obliga-
que constituem o objeto da cláusula. Como cion el deudor; pero se le há de dar excepcion contra el
exemplo, temos o texto de Africano2, que marido, si le cede la condiction que le compete contra
la mujer. Tambien me competerá la accion de hurto
1
Lei 48 do Código de Hamurabi: “Se alguém tem despues del divorcio en el caso propuesto, cuando me
um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo importase que el dinero no haya sido intercepado. §
ou destrói a colheita, ou por falta d’água não cresce o 2. SE le pidió al señor por la accion de peculio, fué
trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao condenado, y pagó. Respondí, que quedaron libres
credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não los fiadores, que dió el siervo; porque una misma
pagar juros por esse ano”. cantidad se puede pagar por muchas causas: es prueba
2
Digesto livro XLVI, título III, 38. Africano, lib. de esto, que habiéndose dado fianza de estar á lo que
7 de las Cuestiones: “Ley XXXVIII. Cuando alguno se pronunciase en la sentencia, y pagando el deudor
estipuló que se le habia de dar a el o a Ticio, mas que fué condenado, éste y sus fiadores no solo se
bien se há de decir que e Ticio se le puede pagar, si livran de la accion que resulta de la sentencia, sino
permanece en el mismo estado que tenia cuando se tambien de la que resultó de la estipulacion; y mas bien

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De fato, a cláusula não tinha a atual di- primeiros delineamentos nítidos sobre a
mensão, mas a construção de seus pilares cláusula rebus sic stantibus.
básicos pode, sem dúvida, ser atribuída Deles partiu a ideia de que se, de um
aos romanos. Sem margem a discussões, lado, há para o devedor a obrigação de ser
a certeza é de que a prática do princípio fiel à fé jurada, de outro, há para o credor a
exonerativo era conhecido já no período de ser respeitada a justiça. Temperar a força
clássico do Direito Romano. obrigatória do contrato pela consideração do
justo foi para os autores cristãos uma cons-
tante. O equilíbrio das prestações representa
3. Idade Média – séculos XII e XIII
corolário necessário da justiça contratual.
Após o período romano de iniciação Foram os tribunais eclesiásticos que,
estrutural, a cláusula foi esquecida du- sempre dispostos a favorecer as soluções
rante longas décadas, retornando com os de equidade, aplicaram nos contratos
canonistas medievais, que, sendo legítimos sucessivos a doutrina da mudança das cir-
representantes do cristianismo, não podiam cunstâncias, por considerarem contrário à
suportar a concepção de que o contrato moral cristã o enriquecimento de um dos
valia apenas pela sua forma, nada signifi- contratantes às custas do outro.
cando a vontade. Foi então que tivemos os As novas ideias tinham o apoio de Santo
Agostinho (Sermões ao povo, Sermão 133),
lo prueba, que si el poseedor de la herencia pagase Santo Tomás de Aquino (Suma Theológi-
creyendo que es heredero, no se libra el heredero; lo ca), Santo Ambrosio, Santo Antonino de
cual se dice porque el que dá en su nombre la cantidad
que no debe, la puede repetir. § 3. El que prometió un
Florença e Graciano (Decretum Gratiani).
siervo, si diese aquel á quien se le dejó la libertad bajo Os canonistas medievais (FONSECA, 1943,
de condición, tengo por mas probable que no se há de p. 194), apoiados por Graciano e Santo
esperar á que se verifique la condición, sino que puede Tomás de Aquino, nos séculos XII e XIII,
pedir el acreedor, y le compete condiction, pero si en el
interin faltase la condiction, se libra del mismo modo
imaginaram como estando subentendida
que si alguno, pendiente la condición, paga por error, y em todos os contratos a cláusula pela qual
antes de usar da condiction, se verificase la condición. os contratantes se obrigavam a executar o
Pero no se puede decir de modo alguno que si muerto ajuste somente desde que subsistissem, até
Estico faltase la condición, se libra el deudor, aunque
si viviendo él faltase, se libraria, cuando en este caso
o fim, as condições econômicas existentes
en tiempo alguno hicieses el siervo perfectamente mío, ao tempo de sua celebração.
no siendo asi, será lo mismo que si me entregases el Entretanto, com os pós-glosadores (séc.
siervo del cual no tienes el usufruto, y muriese antes XIV a XVI) e com a escola de Bolonha, é que
que este se extinguiese, te parecerá que te libraste de
la obligación por esta paga; lo que de modo alguno se
foi erigida de maneira mais clara e precisa
há de decir: del mismo modo que si dieses el siervo uma doutrina geral sobre a cláusula. Como
común, y muriese. § 4. Si alguno fué fiador del que representantes de uma época posterior do
estuvo ausente por causa de la república, y volvió á pensamento temos Bartolo, Baldo, Alciato,
ella, de cuja acción se livró, y después pasase un año,
acaso se librará el fiador? Juliano decia, que no: lo que
Graciano, entre outros.
es cierto, si no pudo pedir el fiador. Pero en este caso Finalmente, o entendimento da promes-
por el edicto se debe restituir la acción contra el mismo sa projetada no futuro e na dependência do
fiador, el mismo modo que contra el fiador que dió status quo que até então era regra moral,
muerte al siervo prometido. § 5. El que fué tu fiador
para con Ticio, dió prenda por su obligación: después
converter-se-ia em regra jurídica, quando
te instituyó heredero él mismo: aunque no estés obli- Graciano, monge e professor de direito
gado por causa de la fianza, esto no obstante, quedara da Escola de Bolonha, tornou pública sua
obligada la prenda. Pero si el mismo diese otro fiador, coleção de leis – as Decretais ou Decretas
y de este modo te instituyese heredero, dice, que mas
bien se há de juzgar que, disuelta la obligación de aquel
Gratiani (1141 a 1155) –, uma das princi-
á quien se fió, se librará también el fiador”. (CUERPO pais fontes do Corpus Canonici e nas quais
DEL DERECHO CIVIL I, 1874, p. 1046) à cláusula foi reservada atenção especial.

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Também Bartolo (1314-1357) contribuiu na completa obscuridade, banindo-se
com a doutrina, uma vez que a ele se atribui significativamente das codificações e das
famosa fórmula3 propagada através dos construções doutrinárias de então.
séculos, que Africano escrevera no Livro Nas relações particulares, a cláusula foi
7 de seu Quaestionum e fora recolhida no sendo afastada pelo liberalismo do século
texto citado do Digesto. XIX; o Código Civil Francês e outras leis
É indiscutível que os pós-glosadores nele inspiradas se desenvolveram impreg-
aplicaram a cláusula e que o seu emprego nadas nas ideias de liberdade, de força
na prática forense era habitual, mesmo vinculatória para as partes, e de longevi-
carecendo esta de conteúdo definido. A dade, não permitindo sequer a menção do
cláusula era, porém, aplicada desorde- princípio exonerativo.
nadamente. Não havia, ainda, fixação de Esse foi o período do liberalismo, no
seu conteúdo, gerando possíveis abusos qual valia o que estava escrito, por com-
de aplicação. Movido ou não por uma preensão de que os homens eram livres e
reação contra o mau emprego da cláusula, iguais entre si, quando na realidade eles
Alciato (1482-1550) construiu a primeira não eram tão iguais assim. Aquela época
determinação teórica sobre o assunto. A foi marcada pela estabilidade econômica,
construção doutrinária de Alciato assinala logo os contratos livremente pactuados
o início do período áureo da cláusula que, vincularam as partes por longos anos,
dos fins do século XVI aos do século XVIII, permitindo o desenvolvimento econômico
foi objeto de uma copiosa literatura com a equilibrado e seguro. Assim, como resposta
qual ficou em definitivo fixada a sua pre- à não necessidade, a teoria exonerativa foi
cisão doutrinária. ignorada por doutrinadores como Pothier,
A cláusula foi, entretanto, esquecida Laurent, Demelombe, Cujas, Domat, Tro-
uma vez mais devido ao aparecimento da plong, entre outros.
teoria nominalista, da pacta sunt servanta, e Mesmo assim, foi, ainda no fim do séc.
da autonomia da vontade. XVIII, admitida em alguns dispositivos
legais como o Código Bávaro de 1756 e o
Landrecht prussiano de 1794. A primeira
4. Idade Moderna
edificação legislativa explícita do princípio
Desde o começo da Idade Moderna, exonerativo surgiu no Código Bávaro, deno-
foi a cláusula perdendo progressivamente minado Codes Maximilianeus bavaricus civilis.
seu vigor, sobretudo a partir do séc. XVIII, Publicado em 1956, esse corpo legislativo
com o florescimento das ideias individua- abrigou todos os costumes locais não sendo
listas, sofrendo severas restrições, afogada aplicável, porém, na totalidade do território.
que se encontrava pelo grande princípio Ao código bávaro seguiu-se o Landrecht
da autonomia da vontade. Ao chamado Prussiano cuja data, 1774 para uns autores,
“mundo da segurança”, do fim do séc. XIX, 1794 para outros, é irrelevante. Com efeito,
corresponderá um Estado mantenedor das só há interesse em conhecer que há um de
regras do jogo de negócios privados cujo seus dispositivos, no qual se estipula não
conteúdo cabia às partes contratantes, ex- poder ser recusado por mudança de cir-
clusivamente, preencher. cunstâncias o cumprimento de um contrato,
Assim, a cláusula ficou esquecida até exceto no caso de efetiva impossibilidade.
os últimos anos do século XIX, jazendo A conflagração mundial de 1914, alte-
rando profundamente o ritmo dos negó-
Cláusula Rebus sic stantibus – abreviação da
3

fórmula: Contractus que habent tractum sucessivum et


cios, ensejou instante propício a longa e
dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur. diuturna aplicação da cláusula, tanto mais
(FONSECA, 1943, p. 14) que admitidos os seus princípios básicos

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em textos legais de países, onde mesmo, principal da Revolução Francesa, deu lugar
como na França, sempre fora repudiada às ideias solidárias, reverenciando o grupo,
pela doutrina. e que não mais valorizava ao extremo a
figura única e ímpar do indivíduo isolada-
mente. Foi por essa razão que o princípio
5. Idade Contemporânea – Estado Social
pacta sunt servanda voltou a perder seu ca-
No fim do séc. XIX e começo do século ráter absoluto que, outrora, no século XVIII,
XX, em virtude das guerras, revoluções e materializara-se no Código de Napoleão.
mudanças súbitas das condições sociais e Exaltaram-se as noções de segurança, equi-
econômicas, produziram-se grandes dese- líbrio e estabilidade, que se materializavam
quilíbrios, impossibilitando em múltiplas na rigidez contratual.
ocasiões o cumprimento das cláusulas Nos novos tempos, não podia ficar o con-
obrigacionais pactuadas no ante-guerra. trato indiferente aos anseios da justiça comu-
Assim, a esquecida revisionabilidade que tativa, que buscava a distribuição harmônica
outrora fora relegada ao abandono volta, e dos bens na sociedade. A teoria da cláusula
paira sobre as relações. rebus sic stantibus foi reavivada, saindo das
O alvorecer do séc. XX altera os insti- sombras do esquecimento e ocupando posi-
tutos jurídicos concebidos para o liberalis- ção iluminada na doutrina jurídica.
mo. Dos escombros da 1a Grande Guerra, Pretendia-se, com tal cláusula, a inser-
ponto culminante da longa sucessão de ção nas convenções de princípio implícito,
crises econômicas e sociais, renasceria um segundo o qual, a obrigatoriedade do cum-
Direito interessado nos efeitos sociais dos primento das obrigações, consagrada pelo
contratos, antes que, somente, na sua estru- princípio romano pacta sunt servanda, condi-
tura formal. É a falência do individualismo cionava-se à manutenção das circunstâncias
jurídico, substituído, mediante portentosa imperantes quando da contratação. Escapu-
legislação extraordinária ou especial, por lindo, assim, da esfera da exigibilidade do
uma generalizada socialização do Direito. credor, certas situações de inadimplência
Para atender a situações anormais e justificadas pela alteração, sem culpa do de-
graves, foram adotadas leis especiais, entre vedor, das condições fáticas asseguradoras
as quais se citam como exemplos as leis do do cumprimento da obrigação pactuada.
inquilinato francesa, italiana e inglesa, que Daí a cláusula em apreço, literalmente
congelaram alugueres e prorrogaram coer- traduzida por “estando assim as coisas”,
citivamente contratos de locação, depaupe- condiciona a execução das obrigações à
rando a autonomia da vontade das partes. manutenção do status quo da época da
Dentro desse contexto, o Direito brasilei- contratação.
ro sofre também transformações, resguar- Retoma o revisionismo contratual sua
dando assim fins contratuais mais sociais, importância e com ele seus requisitos
abandonando o voluntarismo. Vale-se o ampliam-se, tornando-se um elemento
Direito de numerosos mecanismos, entre coadjuvante à paz social.
eles, a reedição, sob fundamentações as Assim, foi conferida à cláusula rebus sic
mais diversas, da cláusula rebus sic stantibus, stantibus roupagem nova, apesar de não
rebatizada com a pouco elegante expressão ter havido, propriamente, radical refor-
“teoria da imprevisão ou superveniência”. mulação.
Todo esse processo de transformação
tem profunda repercussão na Teoria dos
6. Revisionistas e antirrevisionistas
Contratos.
Com o desenvolvimento histórico, o Para verificar-se qual é a posição da
homem entendeu que o liberalismo, ideal cláusula rebus sic stantibus no direito bra-

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sileiro, é necessário analisar os três setores laissez-passer. Assim sendo, não havia preo-
da atividade construtiva de nossa cultura cupação com o problema da imprevisão.
jurídica, ou seja, estudar a doutrina, a le- Segundo Francisco Campos (1956, p. 6):
gislação e a jurisprudência. “O direito civil moderno, legislado todo
Se está fora de dúvida que, seguindo ele para uma fase de relativa estabilidade
o mutismo da época, os nossos civilistas política e econômica, para um mundo an-
do passado ignoraram, deliberadamente terior às grandes revoluções técnicas que
ou não, a cláusula rebus sic stantibus, certo tornaram ainda os povos mais afastados
também é que esta passou a ter um estudo do globo vizinhos e solidários do ponto de
consciente e frutificante nas letras jurídicas vista político e econômico, e, além disso,
nacionais, sobretudo a partir da segunda inspirado no dogma de mais absoluta li-
vintena deste século (SIDOU, 1984, p. 78). berdade contratual ao serviço do egoísmo
Podem-se detectar três correntes de individual nas competições econômicas,
opinião na doutrina brasileira: a dos an- pôde, durante largo período de tempo,
tirrevisionistas, a dos revisionistas e a dos graças, exatamente à pequena amplitu-
moderados. de e à reduzida duração e profundidade
A primeira é fruto da posição doutri- das perturbações políticas e econômicas,
nária de juristas como Castro Magalhães, manter a rigidez da concepção romana
Orozimbo Nonato, Carvalho Santos, Pontes do contrato.”
de Miranda e outros. Por razões idênticas O Código de 1916 foi duro nas disposi-
ou diferentes raciocínios, esses juristas ções que tratam da execução das obrigações
acabaram por reforçar o pensamento do contratuais não possuindo regras específi-
francês Ripert que não admitia a revisão ou cas relativas à imprevisão, orientado que foi
resolução do contrato pela superveniência por princípios individualistas. Mas também
de circunstância imprevista. Na mesma não assimilou, ipsis verbis, o princípio por
direção, Pontes de Miranda, inarredável força do qual o contrato é lei entre as partes.
quanto a “quem contrata deve acarretar Assim, verificamos que o código não se
com as conseqüências das mudanças opõe expressamente à cláusula.
desfavoráveis das circunstâncias, como se O sistema jurídico brasileiro aceitava
aproveitaria das mudanças favoráveis”. a cláusula, mas não havia uma só norma
Adeptos da tese revisionista, vários no Código Civil de 16 que literalmente a
autores se posicionavam de forma favorá- consagrasse.
vel em nosso Direito, podendo ser citados Havia, entretanto, disposições que aco-
como exemplos Artur Rocha em 1932 e lhiam o sentido da mesma. Essas, não eram
Abgar Soriano em 1940. raras, devendo-se registrar principalmente
No que tange à corrente moderada, des- leis extravagantes, cujo texto é evidente
ponta Arnoldo Medeiros da Fonseca. homologação à doutrina da cláusula.
O Código Civil não foi, portanto, ex-
pressamente favorável à imprevisão, mas
7. O Código Civil de 1916
a legislação extravagante posterior à crise
O Código Civil de 1916 foi um código econômica dos anos de 1930 veio a atender
liberal. Surgiu numa sociedade de nível às novas situações. Sendo, pois, criadas
econômico pouco adiantado que ainda ig- medidas de emergência4.
norava a questão social e vivia um mundo
estável, com moeda firme, em que os contra- 4
Assim, por exemplo, a primeira disposição legal a
se referir à cláusula rebus sic stantibus na sua exposição
tos não deveriam sofrer maiores alterações
de motivos foi o Decreto 19.573, de 07.01.1937, que
independentemente da vontade das partes. permitiu a rescisão da locação do funcionário público
Era o mundo dos fisiocratas, do Laissez-faire, civil ou militar, no caso de remoção ou redução dos seus

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Diante da legislação especial posterior Anteprojeto do Código de Obrigações
ao Código de 16, a nossa doutrina e a juris- de 1941:
prudência brasileira têm considerado que é “Art. 322. Quando, por força de
aplicável no Brasil a teoria da imprevisão. acontecimentos excepcionais e im-
Assim, enraizada nos princípios gerais previstos ao tempo da conclusão
do Direito, é irrelevante a circunstância de do ato, opõe-se ao cumprimento
um determinado Código Civil (como é o exato esta dificuldade extrema, com
caso do Código de 16) não ter contemplado, prejuízo exorbitante para uma das
em texto expresso, a teoria da imprevisão partes, pode o juiz, a requerimento
(THEODORO JÚNIOR, 1993, p. 153). do interessado e considerando com
equanimidade a situação dos contra-
8. Anteprojeto do Código de Obrigações tantes, modificar o cumprimento da
obrigação, prorrogando-lhe o termo
A teoria da imprevisão sempre foi
ou reduzindo-lhe a importância.”
atual, tanto que a sua existência no direito
A imprevisão, segundo o Anteprojeto
brasileiro como princípio geral deduzido
do Código das Obrigações, consiste no
das normas já existentes fez com que o
desequilíbrio das prestações recíprocas
Código de Obrigações expressamente a
nos contratos de prestações sucessivas ou
ela se referisse.
diferidas, em consequência de aconteci-
Efetivamente, o anteprojeto que mere-
mentos ulteriores à formação do contrato,
ceu aplausos dentro e fora do país permitiu
independentemente da vontade das partes,
a revisão judicial do contrato em casos
de tal forma extraordinários e anormais que
excepcionais, considerando a teoria da
impossível se tornara prevê-los razoável e
imprevisão uma conquista definitiva do
antecedentemente.
direito moderno, embora em verdade se
São acontecimentos supervenientes que
esteja apenas ressuscitando velha e conhe-
alteram profundamente a economia do con-
cida cláusula rebus sic stantibus, em tempos
idos considerada implícita nos contratos de imóveis destinados a fins comerciais e industriais. Pode-
execução retardada. Foi elaborado por três mos dizer que os princípios dessa lei por si só importam
juristas: Orozimbo Nonato, Philadelpho na aceitação da cláusula. Trata-se efetivamente da reno-
vação judicial do contrato de locação em que, não ha-
Azevedo e Hahnemann Guimarães.
vendo acordo das partes, nem motivo considerado justo
pela lei para que não seja renovado o contrato, o juiz
vencimentos, em virtude das modificações decorrentes
da Revolução de 1930. É interessante notar que a expo- fixa novo aluguel, desde que o locatário preencha certos
sição de motivos considera a hipótese como verdadeira requisitos. Nessa lei, o artigo no 31 consagra a teoria da
força maior e esclarece que a lei não vem restringir o imprevisão de modo mais explícito preceituando: “Se
direito de propriedade, mas obedece a um alto pen- em virtude da modificação das condições econômicas
samento de equidade, que o direito moderno acolhe, do lugar, o valor locativo fixado pelo contrato amigável,
subordinando, cada vez mais, a exigibilidade de certas ou em conseqüência das obrigações estatuídas pela pre-
obrigações à regra rebus sic stantibus. Posteriormente, o sente lei, sofrer variações além de 20% das estimativas
Decreto 23.501 de 27.01.1933, que impôs a nulidade da feitas, poderão os contratantes, findo o prazo de três
cláusula ouro, importou em nova intervenção do Estado anos do início da prorrogação do contrato, promover a
e limitação da autonomia da vontade dos contratantes. revisão do preço estipulado”. Admite-se, pois, assim,
Os trabalhos preparatórios desse decreto revelam aliás havendo modificação das condições econômicas, a
que o legislador entendeu ser o seu dever intervir nos revisão, após três anos das locações em que haja fundo
contratos sempre que o interesse social viesse a exigi-lo. de comércio. A atual legislação locativa (Lei 8245/91)
Embora tal decreto não tivesse consagrado a cláusula contempla duas hipóteses revisionistas: a prevista no
rebus sic stantibus, reconheceu a licitude da intervenção artigo 4, parágrafo único, que assegura ao locatário
estatal nos contratos, mesmo quando em oposição às – empregado transferido por ato do empregador –, o
cláusulas contratuais. Outro diploma legal importante direito de realizar a denúncia ante tempus do contrato,
com referência à teoria da imprevisão é a chamada Lei com a isenção da multa contratual e aquela estabelecida
de Luvas (Decreto 24.150 de 20.04.1939) que previu e no artigo 19 que assegura o direito de revisão do aluguel
regulamentou a renovação dos contratos de locação de após decorrido o prazo de três anos.

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trato, de tal forma perturbando o seu equilí- Constituem elementos básicos desse
brio como inicialmente estava fixado, que se Anteprojeto:
torna certo que as partes jamais contratariam “a) aplicação somente aos contratos
se pudessem ter antevisto esses fatos. de execução diferida ou sucessiva;
Se, em tais circunstâncias, o contrato b) onerosidade da prestação capaz
fosse mantido, redundaria num enrique- de gerar grande prejuízo para a parte
cimento anormal em benefício do credor, obrigada e, reversivamente, lucro
determinando um empobrecimento da exagerado para a parte credora;
mesma natureza em relação ao devedor. c) resolução do contrato decretada
Consequentemente, a imprevisão tende a pelo juiz, como princípio, admitida a
alterar ou a excluir a força obrigatória dos revisão do esquema por iniciativa do
contratos. réu, dentro do prazo de contestação,
Em 1963, ocorreu a segunda tentativa de face ao que o contrato poderá conti-
reforma do Código, cabendo a Caio Mário nuar os respectivos efeitos;
da Silva Pereira a tarefa de elaborar novo d) exclusão dos contratos aleatórios e
Anteprojeto de Código de Obrigações, os de execução momentânea;
que também não entrou em vigor, mas e) inaplicação aos contratos unilate-
que assim se pronunciava a respeito do rais, cabendo entretanto ao juiz, em
revisionismo: seguimento ao mesmo mecanismo
Anteprojeto do Código de Obrigações processual, reduzir a prestação one-
de 1965 rosa, quando unilateral”. (SIDOU,
“Art. 358. Nos contratos de execução 1984. p. 102)
diferida ou sucessiva, quando, por O anteprojeto apresentou intuitos reso-
força de acontecimento excepcional e lutórios, mais que revisionistas.
imprevisto ao tempo de sua celebra-
ção, a prestação de uma das partes
9. O Código Civil de 2002 e o
venha a tornar-se excessivamente
onerosa, capaz de gerar para ela
Código do Consumidor
grande prejuízo e para a outra parte Na década de 70, surge novo Anteproje-
lucro exagerado, pode o Juiz, a re- to do Código Civil, da lavra dos Professores
querimento do interessado, declarar José Carlos Moreira Alves, Agostinho de
a resolução do contrato. Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert
A sentença, então proferida, retrotrai- Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Tor-
rá os seus efeitos à data da citação da quato Castro, sob a supervisão de Miguel
outra parte. Reale. Depois da tramitação natural de uma
Art. 359. A resolução do contrato po- obra desse vulto e importância, o trabalho
derá ser evitada, oferecendo-se o réu, transformou-se no Projeto de Lei n. 634, de
dentro do prazo de contestação, a mo- 1975, que findou no Código Civil de 2002.
dificar com equanimidade o esquema O novo Código, consubstanciando uma
de cumprimento do contrato. tendência e atendendo à realidade socio-
Art. 360. Aos contratos aleatórios não econômica, norteia a revisão das regras
tem aplicação a faculdade de resolu- nos contratos e a garantia de sua execução
ção por onerosidade excessiva. equitativa, bem como elenca regras sobre
Art. 361. Não se dará, igualmente, a resolução dos negócios em virtude da
esta resolução nos contratos em que onerosidade excessiva, dando-lhes estrutu-
uma só das partes tenha assumido ra e finalidade sociais. Desta feita, o texto
obrigação, limitando-se o Juiz, nesse permite tanto o reajustamento do contrato
caso, a reduzir-lhe a prestação.” como a sua resolução por via judicial, no

14 Revista de Informação Legislativa


caso de agravamento extraordinário da analisar a teoria da onerosidade excessiva
onerosidade da prestação de uma das par- nos parâmetros do Código de Proteção e
tes, com extrema vantagem para a outra, em Defesa do Consumidor5 (Lei 8078/90), e
virtude de acontecimento imprevisível. embora o Código não faça referência ter-
O Código concretiza, pois, no nosso minológica alguma à teoria da imprevisão,
entender, a teoria de imprevisão, nos se- não podemos deixar de considerar que dela
guintes termos: em nada se afasta.
“Art. 477. Nos contratos de execução Diferente é a posição do CDC que, mais
continuada ou diferida, se a prestação de uma década antes, traz, sim, um insti-
de uma das partes se tornar exces- tuto revisional e não resolutório em sua
sivamente onerosa, com extrema essência, sendo inclusive mais amplo que
vantagem para a outra, em virtude a imprevisão e que, no nosso entender, não
de acontecimentos extraordinários deve sequer ser analisado no âmbito central
e imprevisíveis, poderá o devedor da imprevisibilidade.
pedir a resolução do contrato. O CDC rompe com a tradição do direito
Os efeitos da sentença, que a decretar, privado, cujas bases estavam assentadas
retroagirão à data da citação. no liberalismo que reinava na época das
Art. 478. A resolução poderá ser grandes codificações europeias do séc. XIX,
evitada, oferecendo-se o réu a mo- para relativizar o princípio da intangilibili-
dificar eqüitativamente as condições dade do conteúdo dos contratos, alterando
do contrato. sobremodo a regra milenar expressa pelo
Art. 479. Se no contrato as obrigações brocardo pacta sunt servanda, e para enfati-
couberem a apenas uma das partes, zar o princípio da conservação do contrato.
poderá ela pleitear que a sua pres- (NERY JÚNIOR, 1998, p. 345)
tação seja reduzida, ou alterado o A proteção contratual no CDC está
modo de executá-la, a fim de evitar baseada nos princípios da transparência,
a onerosidade excessiva”. da boa-fé, da equidade. As partes devem
Miguel Reale, na exposição de motivos atuar na relação com sinceridade, lealdade,
do anteprojeto dirigida ao Ministro da seriedade e veracidade, devendo haver
Justiça, justificou a teoria como sendo um equilíbrio nas prestações, respeitando-se o
dos tantos exemplos de atendimento da princípio da equivalência contratual.
socialidade do direito, que tem por objetivo No capítulo correspondente à matéria, o
imbuir nos contratos estrutura e função CDC trata da possibilidade da revisão das
social. Assim, a teoria seria um instrumento cláusulas contratuais diante da onerosidade
representativo do social no ordenamento. excessiva decorrente de fatos supervenien-
As condições para a aplicação da teoria tes. A onerosidade excessiva é um dos
são: elementos considerados como requisito
a) Ser o contrato de execução continuada fundamental para a aplicação da teoria de
ou diferida; imprevisão e agora, ao que parece, é tratada
b) A prestação de uma das partes se individualmente, dissociada desta.
tornar excessivamente onerosa em benefí- Há visivelmente um ponto de similitude
cio da outra; que se origina a partir deste requisito, pois
c) Essa situação ter decorrido de aconte- se almeja, em ambas situações, proteger o
cimento extraordinário e imprevisível; contratante diante do agravamento pecu-
d) A resolução será sempre por sentença niário de sua obrigação, ou seja, diante da
judicial. onerosidade excessiva. E também é per-
Embora a denominação dada pelo Có- 5
De ora em diante, por brevidade, referido apenas
digo Civil ao instituto tenda a nos levar a como CDC ou Código do Consumidor.

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ceptível que a onerosidade excessiva, em As causas supervenientes – entendidas
ambos casos, é qualificada, ou seja, vem como aquelas ocorridas após a celebração do
acrescida de algum outro requisito. pacto – situadas fora das estipulações con-
O que se questiona, entretanto, é saber tratuais podem causar quebra do equilíbrio
se o CDC, ao tratar da onerosidade exces- contratual inicialmente estabelecido entre as
siva, simplesmente consagra a teoria da partes, interferindo de tal forma, que podem
imprevisão, carente de preceitos legais, ou ocasionar a quebra da comutatividade.
dispõe sobre um novo instituto com alcance Assim, em virtude desses fatos superve-
mais amplo que teve apenas inspiração na nientes, o CDC aceitou, como fundamento
imprevisão? para a revisão das cláusulas contratuais, a
Dispõe o CDC no art. 6, V, ser direito onerosidade excessiva decorrente da super-
básico do consumidor: “revisão em razão veniência de fatos que tiveram lugar após
de fatos supervenientes que as tornem a conclusão do contrato.
excessivamente onerosas”. Também é necessário diferenciar a super-
O dispositivo supra, sem dúvida, é um veniência da imprevisibilidade. O CDC exige
dos primeiros mandamentos no sentido de que os fatos sejam supervenientes, mas não
restabelecer o equilíbrio contratual, permi- que sejam imprevisíveis. Logo, mesmo sendo
tindo a revisão contratual que foi alterada previsível o fato, a sua superveniência, alia-
em decorrência de fato superveniente que da à quase impraticabilidade da prestação,
tornou excessivamente onerosas as presta- permite a revisão do contrato para adequá-lo
ções devidas pelo consumidor. ao que foi avençado pelas partes.
A essência do instituto é a mesma da Conforme o artigo, a onerosidade ex-
teoria da imprevisão, qual seja, a tangibili- cessiva que fundamenta a revisão requer
dade contratual. Por isso é que chegam até apenas a presença de um acontecimento
a confundir-se. superveniente, que provoque a alteração
Da necessidade de evitar essa confusão radical das condições econômicas nas quais
nasce a importância da análise de seus re- o contrato foi celebrado, não fazendo refe-
quisitos, pois ali encontraremos as proprie- rência alguma a previsibilidade ou não do
dades específicas de cada um, que levam a fato, requisito necessário para aplicação da
sua distinção. teoria da imprevisão.
As primeiras considerações devem Em síntese, a tangibilidade contratual,
recair na análise de superveniência. Ao fundada na onerosidade excessiva, é con-
normatizar a possibilidade de revisão do sequência apenas de fatos ulteriores à con-
conteúdo contratual, o legislador do CDC tratação, isentos de quaisquer qualificações.
exigiu que a alteração do ambiente, na épo- Mister não é, portanto, nem a imprevisibili-
ca da execução do contrato, seja decorrente dade nem o nexo causal entre a onerosidade
de fatos supervenientes. excessiva e os fatos supervenientes.
Trata-se de segurança à circunstância A onerosidade excessiva disposta no CDC
de que a mesma situação fática que se pode, portanto, na verdade, compreender
apresentava no momento da contratação fato superveniente ensejador da aplicação da
deverá ser mantida até o término do pacto, teoria, porém seu campo de aplicação é muito
ou seja, é contemplada a base da teoria da mais vasto, uma vez que pode comportar
imprevisão ou a rebus sic stantibus. tanto a imprevisão como a previsão.
Os contratantes vinculam-se à situação Outra diferença que deve ser bem com-
existente no momento da contratação e o preendida quando da análise dos institutos
que foi contratado está a salvo de qual- é a que existe entre a desproporção e a
quer fato superveniente e alheio a sua onerosidade excessiva. O inciso V assegura
vontade. ao consumidor o direito de postular a modi-

16 Revista de Informação Legislativa


ficação de cláusulas contratuais que impor- A teoria da imprevisão visa reajustar as
tem em prestações desproporcionais. prestações de modo que possibilite o adim-
Sem embargo da omissão da lei, parece- plemento de maneira suportável, evitando
nos que a prestação a que esteja contratu- o descumprimento contratual.
almente obrigado o consumidor se torna Os fatos supervenientes podem até
desproporcional quando não está em cor- ser previsíveis, contanto que sejam in-
respondência com o real valor do produto calculáveis e configurem álea econômica
ou do serviço. extraordinária.
Será desproporcional a prestação que Não sendo possível a repactuação por
inclua percentual relativo à inflação bem mútuo consenso ao atingido pela onerosida-
acima da taxa oficial, ou preveja taxa de de excessiva, só resta a alternativa de buscar
juros muito além do nível fixado em lei. judicialmente a tutela do seu direito.
Será prestação desproporcional a que leve A possibilidade de revisão contratual
a um total várias vezes superior ao valor por desequilíbrio total da equação econômi-
do produto ou do serviço. ca estabelecida pelos contratantes é ponto
Traduzindo-se a desproporcionalidade pacífico na doutrina e na jurisprudência
à linguagem monetária, verificamos que brasileiras. O direito prevê a possibilidade
significa um aumento exagerado do valor de o prejudicado com as modificações ajui-
da obrigação. O aumento exagerado do zar ação visando reequilibrar a obrigação.
valor pecuniário da prestação devida é, por- Poderá então o juiz acolher o pedido e al-
tanto, elemento essencial para o exercício terar o conteúdo do contrato, restaurando
do direito de revisão contratual. o equilíbrio desfeito.
Desnecessárias são maiores observações Um último ponto que merece destaque
acerca do desequilíbrio contratual como é o relativo ao campo de aplicação e aos
requisito, pois implícito se encontra na efeitos da imprevisão e da teoria da onero-
onerosidade excessiva. sidade excessiva do CDC. Assim como na
Evidente é constatar que, se há um teoria da imprevisão, a alterabilidade só
aumento excessivo para uma das partes, pode ocorrer quando se tratar de contratos
não é uma situação gratuita, desprovida de comutativos de execução periódica e nos
encargos e gravames, que desequilibram a de execução única, mas diferida. Contudo,
equivalência do pacto, posto que nenhum a aplicação dos dispositivos consumeristas
ser normal e em sã consciência se obriga restringe-se à revisão do conteúdo contratu-
além de suas possibilidades. al, excluindo a possibilidade de resolução.
Ainda devemos observar que as altera- Concluímos, pois, que o CDC ampliou o
ções supervenientes devem ser de um porte campo de aplicação da onerosidade excessi-
que escapem à álea que está normalmente va, a partir do momento em que restringiu
presente em qualquer negócio jurídico. certos requisitos, porém limitou os efeitos
O que ocorre é uma quebra da comuta- à revisão. E mais, o recurso revisional é
tividade do contrato. As prestações perdem um permissivo unilateral, pois apenas o
a equivalência que ambas as partes tinham consumidor pode dele se beneficiar, não se
em mente no início e que foi determinante estendendo o direito ao fornecedor porque
para a formação da relação jurídica. a lei assim dispôs.
Necessário é o real desequilíbrio das
partes, não configurando apenas a difi-
10. Conclusões
culdade no adimplemento, visto que todo
contrato que não seja aleatório tem uma Não obstante a incerteza relativa ao mo-
margem de ganho e perda em razão do mento da origem da ideia da revisão contra-
momento em que foi celebrado. tual, é fato que, já no Código de Hamurabi,

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há 2300 anos a.C., havia previsões relativas relação contratual. Revista dos Tribunais, v. 670, ano
à alteração do conteúdo dos contratos, 80, ago. 1991.
caso houvesse modificação das condições CUERPO DEL DERECHO CIVIL I. Tomo primero que
iniciais que estimularam o acordo. comprende las Instituciones de Justiniano y el Digesto
É também indiscutível que a trajetória o Pandectas, vertidas al español por el licenciado D.
Bartolomé Rodriguez de Fonseca y parte por el letrado
histórica da cláusula é bastante acidentada
D. José Maria Ortega. Barcelona: Establecimiento Tipo-
ao longo dos tempos. gráfico de Narciso Ramirez y Compañia, 1874.
No Brasil, o Código Civil de 1916 não
FONSECA, Arnoldo Medeiros de. Caso fortuito e
positivou a revisão contratual, o que só
teoria da imprevisão. 2 ed. Rio de Janeiro: Imprensa
foi possível em decorrência do trabalho da Nacional, 1943.
jurisprudência.
GUEIROS, Nehemias. A justiça comutativa no direito
O Código de 2002, imbuído de novos
das obrigações. Recife: Officinas Graphicas do Jornal
princípios, trouxe de forma explícita a do Commercio, 1940.
revisão contratual, mas não a identificou
JOSSERAND, Louis. Derecho civil: teoria general de
claramente como imprevisão, no que pode
las obligaciones. Revisado e completado por André
ser confundida com a revisão contratual Brun. Tomo 2, v. 1. Buenos Aires: Bosch y Cia. Edi-
do CDC, possível em função da teoria da tores, 1950.
onerosidade excessiva.
JUNGMANN, Renato. A superveniência de aconteci-
Assim, temos que os contornos da im- mento imprevisível como causa da revisão dos con-
previsão, trazidos pela codificação civil, são tratos. Revista da ordem dos Advogados de Pernambuco,
distintos dos da teoria de onerosidade exces- Recife, 5-6-7, p. 129-155, 1964.
siva elencados no código do consumidor. LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Traducción
A teoria de onerosidade excessiva é um de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de
instrumento mais amplo que a imprevisão, Derecho Privado, 1958.
e que com ela não se confunde, coadunan-
______. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los
do, contudo, com os novos paradigmas contratos. Traducción de Carlos Rodrigues. Madrid:
contratuais, mas estando restrita à seara Editorial Revista de Derecho Privado, 1956.
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Brasília a. 46 n. 184 out./dez. 2009 19

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