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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITO

Osvaldo Veloso Vidal

A BUSCA POR UMA ABORDAGEM POLICIAL CRITERIOSA NA


PERSPECTIVA GARANTISTA

Guanambi/BA
2021
CENTRO UNIVERSITÁRIO FG -UNIFG
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM DIREITO

Osvaldo Veloso Vidal

A BUSCA POR UMA ABORDAGEM POLICIAL CRITERIOSA NA


PERSPECTIVA GARANTISTA

Dissertação de Mestrado apresentada como


requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito pelo Programa de Pós -
Graduação em Direito do Centro Universitário
FG - UniFG.

Prof. Dr. André Luiz Nicolitt


Orientador

Guanambi/BA
2021
Dedico esse trabalho a minha amada
esposa Kátia e aos meus filhos Heitor e Pedro
Henrique, por compreenderem a minha au-
sência nesses dois anos árduos de estudo.
Agradeço a Deus, primeiramente, pela grande oportunidade de cursar o mes-
trado e pelas graças obtidas.

Ao meu orientador, Professor Dr. André Luiz Nicolitt, pela paciência, sapiên-
cia, aconselhamento e exímia condução na orientação desse trabalho.

Aos professores do Mestrado em Direito do Centro Universitário FG – UniFG,


pelo exemplo de compromisso, abnegação e conhecimento demonstrado ao decorrer
das aulas.

Aos colegas do Mestrado em Direito do Centro Universitário FG – UniFG,


pelo apoio, compartilhamento de informações e frustrações, que me permitiu crescer
academicamente e pessoalmente ao longo do tempo de convivência.

Ao Professor Dr. Cláudio Carneiro, pelas excelentes observações durante a


qualificação, as quais contribuíram para a realização dessa pesquisa.

Ao Tenente Coronel PM Arthur Mascarenhas Fernandes, Comandante do 17º


Batalhão de Polícia Militar da Bahia em Guanambi, pela confiança dispensada a
minha pessoa.

Aos Oficiais do 17º Batalhão e da 94ª Companhia Independente de Polícia


Militar pelo apoio e compreensão.

A minha amiga, Sargento PM Soraya Adriana Pereira Ribeiro Santos (in


memorian), pelo imenso apoio dispensado.

A minha mãe Gersonita e ao meu irmão Fábio, pelo incentivo.

A secretária do curso, a inesquecível Sinara Laranjeira, pela prestatividade,


atenção e carinho dispensados ao corpo dicente.
“... a existência de uma polícia pública é o
sinal indiscutível da presença de um Estado so-
berano e de sua capacidade de fazer prevalecer
sua Razão sobre as razões de seus súditos”.

Jean-Claude Monet
RESUMO

A presente dissertação tem como tema central a busca por uma abordagem
policial criteriosa na perspectiva garantista a fim de verificar a possibilidade
da existência de uma abordagem policial sem o estabelecimento de estereóti-
pos para com o suspeito bem como critérios objetivos para desencadear o iní-
cio da ação policial durante a abordagem. Através do método crítico, a pes-
quisa entrelaçou a Segurança Pública aos Direitos Fundamentais nos ditames
da Carta Magna, tendo o garantismo penal de Luigi Ferrajoli como marco teó-
rico fundamental. Para tanto, debruçou-se nos parâmetros de uma polícia no
Estado democrático, analisando a formação da força policial no Estado mo-
derno até a sua constituição em uma democracia constitucional g arantista. No
aprofundamento dos aspectos, das concepções das forças policiais no Brasil e
o entendimento dos princípios e fundamentos da abordagem policial. A pes-
quisa esmiuçou os principais estereótipos do suspeito de uma abordagem po-
licial: o etiquetamento social, as “classes perigosas” e o racismo, avaliando a
relação desses estereótipos com a necropolítica e o seu encarceramento siste-
mático. Por fim, reuniu os critérios objetivos baseados nas experi ências da
polícia de Los Angeles, no perfil geográfico e no Pacto pela Vida gestado e
implementado no estado de Pernambuco. A pesquisa concluiu que para se al-
cançar critérios objetivos para desencadear uma abordagem policial é neces-
sário olvidar esforços em prol da racionalidade dos processos técnico policial
e da racionalidade jurídica proposta pelo garantismo penal de Ferrajoli.

PALAVRAS-CHAVE: Direito; garantismo; abordagem policial; necropolítica; segu-


rança pública.
ABSTRACT

This dissertation has as its central theme the search for a judicious po-
lice approach in the guarantor perspective in order to verify the possibility of
the existence of a stop-and-frisk without establishing stereotypes towards the
suspect as well as objective criteria to trigger the start of the action police
during the approach. Through the critical method, the research intertwined
Public Security with Fundamental Rights in the dictates of the Constitution,
with Luigi Ferrajoli's penal guarantee as a fundament al theoretical frame-
work. To this end, it looked at the parameters of a police in the democratic
state, analyzing the formation of the police force in the modern state until its
constitution in a guaranteeing constitutional democracy. In the deepening of
the aspects, the conceptions of the police forces in Brazil and the understand-
ing of the principles and foundations of the stop-and-frisk. The research ex-
amined the main stereotypes of the suspect in a stop-and-frisk: social eti-
quette, “dangerous classes” and racism, evaluating the relationship of these
stereotypes with the necropolitics and their systematic incarceration. Finally,
it met the objective criteria based on the experiences of the Los Angeles po-
lice, on the geographic profile and on the Pact for Life created and imple-
mented in the state of Pernambuco. The research concluded that in order to
reach objective criteria to trigger a stop-and-frisk, it is necessary to forget ef-
forts in favor of the rationality of technical police processes and the legal ra-
tionality proposed by Ferrajoli's criminal guarantee.

KEYWORDS: Law; guarantee; stop-and-frisk; necropolitics; public security.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Modelo de uso diferenciado da força....................................................................... 87

Figura 2 - Informações e indicadores de desempenho territorial. ....................................... 150

Figura 3 - Informações e indicadores de desempenho da AIS. ............................................ 151


LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Evolução dos Homicídios no Brasil. ....................................................................... 63

Gráfico 2 - Variação de Furtos e Roubos de Veículos no Brasil. .......................................... 127

Gráfico 3 - Taxa de Homicídios por 100 mil habitantes. ....................................................... 147


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Despesas realizadas com a Função Segurança Pública 2017-2018 .................................... 76


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Níveis de abordagem policial ................................................................................. 86


LISTA DE ABRAVIATURAS E/OU SIGLAS

ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AIS Áreas Integradas de Segurança

BPRv Batalhão de Polícia Rodoviária

CIPRv Companhia de Polícia Rodoviária

CNN Cable News Network

COMPSTAT Computer Comparison Statistics

CORE Coordenadoria de Recursos Especiais

CPC Código de Processo Penal

CVLI Crimes Violentos Letais Intencionais

CVP Crime Violento Contra o Patrimônio

DOERJ Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro

DPLA Departamento de Polícia de Los Angeles

FGV Fundação Getúlio Vargas

GACE Gerência de Análise Criminal e Estatística

GIS Geographic Information System

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IMPO Instrumentos de Menor Impacto Ofensivo

Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LAPD Los Angeles Department Police

OME Organização Militar Estadual

PC Polícia Civil

PCC Primeiro Comando da Capital


PF Polícia Federal

PIB Produto Interno Bruto

PM Polícia Militar

PMBA Polícia Militar da Bahia

PMES Polícia Militar do Espírito Santo

PMESP Polícia Militar do Estado de São Paulo

PMMG Polícia Militar de Minas Gerais

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNSP Plano Nacional de Segurança Pública

PNSPDS Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social

PPV Pacto Pela Vida

PSB Partido Socialista Brasileiro

SDS Secretaria de Defesa Social

SEPLAG Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão

SINESP Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública

STF Supremo Tribunal Federal

UPP Unidade de Polícia Pacificadora


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 16

CAPÍTULO 1 - A POLÍCIA EM UMA DEMOCRACIA .................................... 19

1.1 A FORMAÇÃO DO ESTADO ............................................................................. 19

1.2 A ORIGEM DA POLÍCIA ................................................................................... 27

1.2.1 A polícia na antiguidade ................................................................................. 27

1.2.2 A polícia na Idade Média ................................................................................ 29

1.2.3 A polícia na modernidade ............................................................................... 30

1.3 A POLÍCIA EM UM REGIME AUTORITÁRIO .................................................. 33

1.4 O PAPEL DA POLÍCIA NO REGIME DEMOCRÁTICO .................................... 40

1.4.1 Da Democracia Clássica a Democracia Constitucional .................................. 40

1.4.2 A polícia na Democracia Constitucional Garantista ....................................... 45

CAPÍTULO 2 - ASPECTOS DA ATIVIDADE POLCIAL NO BRASIL ............ 52

2.1 A ATIVIDADE POLICIAL NO BRASIL .............................................................. 52

2.1.1 A polícia Administrativa .................................................................................. 53

2.1.2 Polícia Judiciária ............................................................................................... 59

2.2 A SEGURANÇA PÚBLICA .................................................................................. 62

2.2.1 O aspecto jurídico da Segurança Pública ......................................................... 62

2.2.2 As concepções de Segurança Pública ............................................................... 71

2.2.3 A guerra às drogas............................................................................................ 78

2.3 A ABORDAGEM POLICIAL ............................................................................... 81

CAPÍTULO 3 - OS SUSPEITOS DA ABORDAGEM POLICIAL ..................... 91

3.1 O SUSPEITO DA ABORDAGEM POLICIAL ...................................................... 91

3.2 O SUSPEITO DA ABORDAGEM E O ETIQUETMENTO SOCIAL ..................... 95

3.3 O SUSPEITO DA ABORDAGEM E AS “CLASSES PERIGOSAS”. ....................102

3.4 O SUSPEITO DA ABORDAGEM E O RACISMO ...............................................110


3.5 A NECROPOLÍTICA...........................................................................................118

3.6 A INDEFINIÇÃO DO SUSPEITO NA PROMOÇÃO DA NECROPOLÍTICA ....122

CAPÍTULO 4 - EM BUSCA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA A


IDENTIFICAÇÃO DO SUSPEITO ................................................................... 127

4.1 AS LIMITAÇÕES DO POLICIAMENTO OSTENSIVO ......................................127

4.2 A EXPERIÊNCIA COMUNITÁRIA DA POLÍCIA DE LOS ANGELES .............134

4.3 A UTILIZAÇÃO DO PERFIL GEOGRÁFICO NO POLICIAMENTO


OSTENSIVO..............................................................................................................142

4.4 A EXPERIÊNCIA DO PACTO PELA VIDA EM PERNAMBUCO .....................146

4.5 É POSSÍVEL UMA ABORDAGEM POLICIAL GARANTISTA NÃO


ESTEREOTIPADA? ...................................................................................................156

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 160

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 167


16

INTRODUÇÃO

O tema apresentado propõe uma pesquisa sobre a busca por uma abor-
dagem policial criteriosa a fim de que se possa eliminar ao máximo elementos
subjetivos que possibilitem o etiquetamento social, a utilização de estereóti-
pos sociais, o biopoder e a necropolítica, tornando o processo de abordagem
policial mais condizente com as garantias fundamentais asseguradas pela
Constituição Federal.

A Carta Magna do Brasil assegura ao cidadão direitos fundamentais


consagrados pelo Direito Ocidental, tais como o direito à vida, a liberdade, ao
direito de ir e vir e a segurança. Esses direitos, considerados de 1ª geração, es-
tão diretamente ligados a ação das polícias, que em um Estado democrático
são organizações legítimas, com característica fortemente burocratizadas, res-
ponsáveis por manter a ordem política mediante o uso da força.

Grande parte do uso dessa força utilizada pela polícia é vista, percebida
e sentida durante uma abordagem policial, recurso este empregado em todo
território nacional como plano de ação das instituições policiais. Para se ter
uma boa ideia da abrangência dessa utilização, apenas a Polícia Militar do
Amazonas alegou ter abordado 380 mil usuários do transporte coletivo entre
os meses de janeiro a outubro durante o ano de 2019 1.

Há de se levar em conta que o número descrito acima se refere somente


aos usuários de ônibus de apenas uma das 27 Unidades Federativas. Caso as
outras polícias da Federação tenham a mesma disposição da polícia amazo-
nense, alcançar-se-ia a cifra de 10 milhões de pessoas abordadas no período

1 AMAZONAS. Operação Catraca já realizou 16 mil abordagens a ônibus, em Manaus .


Disponível em: <http://www.ssp.am.gov.br/operacao-catraca-ja-realizou-16-mil-
abordagens-a-onibus-em-manaus/>. Acesso em: 25 fev. 2020.
17

de 10 meses. Praticamente a população de Portugal sendo abordada em me-


nos de 01 ano.

Embora a Constituição Federal, em seu Inciso XV do artigo 5º, garanta


ao cidadão brasileiro o direito de livre locomoção no território nacional , o ar-
tigo 244 do Código de Processo Penal permite a abordagem em caso de fun-
dada suspeita.

Entretanto, os critérios utilizados para essas abordagens ainda possuem


acentuado caráter subjetivo, o que podem levar as instituições policiais a agi-
rem baseadas em estereótipos consagrados pela sociedade, eivados de pre-
conceitos raciais, sociais e econômicos.

Assim, para entrelaçar a Segurança Pública aos Direitos Fundamentais


nos ditames da Carta Magna, a pesquisa terá como marco teórico o Garantis-
mo Penal proposto por Luigi Ferrajoli, principalmente através de suas obras
“Direito e razão: teoria do Garantismo Penal” e “Democracia y Garantismo”.

Segundo Ferrajoli 2, o garantismo diz respeito a um modelo normativo


de direito de "estrita legalidade”, inerente ao Estado de direito, caracterizado
por um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político que se
distingue por minimizar a violência e a maximizar a liberdade.

Dessa forma, através do método crítico, esse trabalho procurou, con-


forme o entendimento de Kowarick 3, subverter, perturbar e desordenar as in-
terpretações consagradas referentes aos critérios para desencadear uma abor-
dagem policial. Para tanto, a pesquisa foi dividida em quatro capítulos.

O primeiro capítulo procurou compreender o funcionamento de uma


polícia no contexto democrático, fazendo um resgate histórico da polícia e o

2 FERRAJOLI, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 a ed. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002, p. 684.
3 KOWARICK apud NICOLITT, A. L. Intervenções corporais o processo penal e as novas

tecnologias : uma análise luso-brasileira. 2010. Tese. (Doutorado em Direito) Universidade


Católica Portuguesa, 2010, p. 13.
18

seu renascimento no Estado moderno até a visão de uma polícia na Democra-


cia Constitucional Garantista.

O segundo capítulo versa sobre os aspectos da atividade policial no


Brasil, onde se estudou a estrutura policial existente no país, a concepção de
segurança pública e uma análise da abordagem policial empregada pelas polí-
cias no Território Nacional.

O terceiro capítulo trata do suspeito da abordagem policial, relacionan-


do-o ao etiquetamento social, as “classes perigosas”, o racismo e a necropolí-
tica.

Por fim, o quarto capítulo busca critérios objetivos para a identificação


do suspeito fazendo uma análise das limitações do policiamento ostensivo e
de exemplos de métodos que propiciaram critérios objetivos para as aborda-
gens policiais ao redor do mundo.

Dessa forma, esse trabalho finalizou procurando alcançar o seu objeti-


vo, propondo critérios objetivos para a realização da abordagem policial na
perspectiva garantista.
19

CAPÍTULO 1 - A POLÍCIA EM UMA DEMOCRACIA

1.1 A FORMAÇÃO DO ESTADO

A vivência em sociedade se apresenta como uma experiência complexa


e repleta de desafios, a qual pode ser constatada, facilmente, ao se estabelecer
um breve olhar sobre as tarefas, regras e obrigações do cotidiano impostas ao
cidadão, em grande parte através da presença do Estado e suas instituições,
inclusive a polícia. Clarice Lispector 4 certa vez afirmou que: “Viver em socie-
dade é um desafio porque às vezes ficamos presos a determinadas normas
que nos obrigam a seguir regras limitadoras do nosso ser ou do nosso não -
ser”. Mas se é tão complexo assim, por que a insistência do homem em viver
em sociedade?

A propensão do ser humano em viver em sociedade tem sido tema de


diversas reflexões ao longo do tempo e das diversas sociedades. A tradição
judaico-cristã, por exemplo, entende que Deus criou uma companheira p ara
que Adão não vivesse em solidão e eles pudessem gerar uma descendência
numerosa. Na tradição africana, existe a ideia de conexão do indivíduo com a
coletividade, ubuntu 5, o que os fazem mais fortes. No campo da filosofia,
Aristóteles afirmou que a vida em sociedade é inerente ao homem 6.

Antônio Carlos Wolkmer 7, ao explicar o direito nas sociedades primiti-


vas, afirma que toda a sociedade se esforça para alcançar uma determinada

4 LISPECTOR apud ALMEIDA, K. P. DE M. D. Qual o “dente do macaco” da educação


infantil? – processo de legalização. RevistAleph, v. Ano XIII, n. 27, p. 210–236, 2016, p.
2019.
5Ubuntu é o entendimento do "ser" nos termos de três dimensões inter -relacionadas:
vivência, que torna possível a vivência do ser; a dos seres que passaram longe do mundo
dos vivos através da morte, pois a morte não interrompe totalmente a vida dos seres que
partiram; e o ainda-a-ser-nascido, seres do futuro, onde os vivos possuem a tarefa de
garantir o nascimento desses seres. Cf. em HAILEY, J. Ubuntu: A literature review.
London: Tutu Foundation, 2008.
6 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002.
7 WOLKMER, A. C. O direito nas Sociedades primitivas. In: WOLKMER, A. C. (Org.).

Fundamentos de história do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2006 , p.1.


20

ordem social, utilizando normas de regulamentações essenciais que possua a


capacidade de atuar como sistema eficaz de controle social, levando em conta
o grau de evolução da sociedade bem como a sua complexidade.

Um bom exemplo a ser citado, repousa no direito grego, que cresceu e


se desenvolveu devido ao desenvolvimento de sua arte, educação e cultura,
que permitiram o ressurgimento da escrita como tecnologia. Segundo Souza 8,
os gregos começaram a exigir leis escritas para garantir melhor justiça por
parte dos juízes.

Outro indicativo da assertiva de Wolkmer pode ser verificado na evolu-


ção do direito romano antigo para o direito romano clássico. O direito romano
antigo se estabeleceu em grande parte no período da realeza, entre os anos
300 e 250 a.C., onde não havia uma diferenciação clara entre direito e religião,
tornando-o praticamente uma das faces da religião, conforme revela Martins 9.

Em que pese tais reflexões, o fato é que viver em sociedade exigiu a


existência de regras que regulamentasse normas de convivência entre os seus
integrantes, contrato social, desaguando na existência do Estado. Alguns pen-
sadores defenderam diferentes modelos de Contrato Social, os quais são im-
prescindíveis conhecer para compreender a concepção de polícia garantidora
de garantias constitucionais.

O Contrato Social, segundo Tomas Hobbes, no século XVII, parte do


pressuposto que o homem é naturalmente um ser repleto de desejos governa-
do por suas próprias razões. Esse direito seria denominado de Jus Naturale, o
qual lhe daria a liberdade de usar o seu próprio poder na preservação da pró-

8 SOUZA, R. de. Direito Grego Antigo. In: WOLKMER, A. C. (Org.). Fundamentos de


história do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2006, p. 47.
9 MARTINS, A. C. M. O direito romano e o seu ressurgimento no final da idade média. In:
WOLKMER, A. C. (Org.). Fundamentos de história do Direito. 3. ed. Belo Horizonte:
DelRey, 2006, p. 144.
21

pria natureza 10. Entretanto, esse estado de natureza propicia ao homem, por
mais forte que seja, a condição de constante alerta para manter a sua própria
sobrevivência. Hobbes então criou sua regra geral da razão, a qual diz que o
homem deve se esforçar pela paz e caso não consiga deve olvidar todos os
meios para ganhar a guerra.

Na verdade, Hobbes apresenta uma visão pessimista e individualista do


homem, que luta constantemente pela sobrevivência. Em relação a esse ponto,
Bobbio afirma que no estado de natureza, para Hobbes, não há como ter cer-
teza do respeito às leis naturais, o que a faria perder a sua eficácia, consti-
tuindo um estado permanentemente anárquico 11.

Hobbes se volta para a constituição da força como amálgama do contra-


to social, pois para ele pactos sem espada não passam de palavras, o que não
garantiria a segurança de ninguém. Seria necessário um forte poder instituído
que inspirasse confiança e legitimidade. Assim, ele propõe que todos os ho-
mens autorizassem a transferência de poder, em concórdia, para a figura do
soberano 12. Hobbes, assim, lança as bases do Estado Moderno absolutista.

Espíndola enfatiza que o Estado moderno foi caracterizado inicialmente


pela presença do poder ilimitado, absoluto e perpétuo, centralizado nas mãos
do soberano, justificado ideologicamente na teoria do direito divino dos sobe-
ranos 13.

O Contrato Social, na perspectiva de Jonh Locke, possui visão diferen-


ciada em comparação a Hobbes. Locke também parte da premissa que o ho-
mem vive inicialmente em estado de natureza gozando de l iberdade e igual-

10 HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado e clesiástico e civil. São


Paulo: Martins Fontes, 2003.
11 BOBBIO, N. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito . São Paulo: Ícone,

1995, p. 35.
12 Op. cit.
13 ESPÍNDOLA, A. A. da S. Entre a insustentabilidade e a futilidade: a jurisdição, o direito e

o imaginário social sobre o juiz. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e


Literatura, v. 2, n. 2, 2017, p. 295.
22

dade. Porém, não há anarquia nesse estado pelo fato de todos se sujeitarem a
lei da natureza, a qual Locke denomina de razão. A razão permearia os ho-
mens ensinando o valor da vida, igualdade, liberdade e da propriedade 14. O
pensador, assim como Hobbes, adiciona o caráter divino ao seu ideal de Con-
trato Social, mas ao invés de atribui-lo ao soberano, ele atribui ao “Criador in-
finitamente sábio” a responsabilidade de harmonizar a razão entre os ho-
mens 15.

Jonh Locke entende que havendo a transgressão da lei natural o homem


teria o direito de punir o ofensor executando, ele mesmo, a lei da natureza.
Essa transgressão seria encarada como uma renúncia a razão, a lei, e conse-
quentemente a Deus. Assim, a busca pela restauração da harmonia justificaria
a guerra e o retorno da vida em segurança. Locke conclui que esse estado de
guerra poderia prevalecer, pois todos os homens teriam todo o poder natural
em suas mãos: força, juiz, júri, executor, o que, devido à natureza humana,
poderia levá-los a um estágio irreversível 16.

Nesse sentido, Jonh Locke propôs a constituição de um governo que


concentrasse o poder e reafirmasse a força do homem através de um pacto, o
qual seria limitado e com a duração que dependesse da vontade dos contra-
tantes 17. Percebe-se que a visão de Jonh Locke é mais otimista em relação ao
homem, além de enfatizar o valor da propriedade privada como valor natural
ao homem. O pensamento de Locke, então, torna-se uma das bases do Estado
moderno liberal.

No Contrato Social de Rousseau, o estado de natureza se apresentaria


de forma acolhedora para o homem, de forma a proporcionar felicidade, pois
a natureza lhe conferiria suas necessidades básicas. Para Rousseau, a família

14 LOCKE, J. Segundo Tratao do Governo Civil e Outros Escritos . 3. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes (Clássicos do Pensamento Politico), 2001 .
15 Op. cit., p. 129
16 Ibid.
17 Ibid, p. 96.
23

seria a mais antiga de todas as sociedades e mesmo assim os filhos a aba ndo-
naria ao alcançar a idade da razão a fim de seguirem suas próprias conveni-
ências. Para o pensador, esse fato demonstrava que o homem não tinha neces-
sidades de viver em bandos, mas em grupos de conveniência. A vivência em
isolamento impediria o desejo de glória, reputação, riqueza e segurança, evi-
tando a necessidade de guerra, tão presente na concepção de Hobbes 18.

A desestruturação do estado de natureza adviria do aumento populaci-


onal, do desenvolvimento intelectual do homem e da sua necessidade de con-
forto. As necessidades se tornariam cada vez maiores e os espaços cada vez
menores, gerando uma sociedade complexa, exigindo a necessidade de um
pacto social. A vida em comunidade despertaria o desejo e a cobiça, criando o
sentimento de infelicidade e gerando a necessidade de guerra, levando a per-
da do estado de natureza. Rousseau também credita a propriedade privada a
causa de inúmeros males 19.

Assim, o Contrato Social de Rousseau descarta a força como imperativo


coercitivo da sociedade, mas sim a renúncia da liberdade e dos direitos indi-
viduais em favor de todos, criando desta forma o conceito de vontade geral 20.
Marilena Chaui clarifica esse ponto quando afirma que para Rousseau, o so-
berano seria o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral, coletiva,
livre e corpo político de cidadãos, onde os direitos naturais seriam transfor-
mados em direitos civis, garantindo-lhes a cidadania 21.

Norberto Bobbio 22 lembra que o tema do Estado pode ser abordado de


formas diferentes, nesse sentido, para ampliar a compre ensão da sua forma-
ção moderna, é preciso também compreender suas qualidades, assim, Luciano

18 ROUSSEAU, J.-J. O Contrato Social. 3 a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999a.
19 ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. São Paulo: Martins Fontes, 1999b.
20 Id., 1999a.
21 CHAUI, M. Convite à Filosofia. 12 a ed. São Paulo: ática, 2002.
22 BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade. 14 a ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987, p.56.
24

Gruppi, citado por Streck 23 e Morais, afirma que o Estado moderno possui
duas características. A primeira delas reside na autonomia plena do Estado
soberano, enquanto a segunda reside na distinção entre Estado e a sociedade
civil.

Em sua primeira fase o Estado foi absoluto, caracterizado pela presença


do poder ilimitado, absoluto e perpétuo, centralizado nas mãos do monarca,
justificado no direito divino dos monarcas 24. Pierangelo Schiera 25, citado por
Streck e Morais, afirma que no Estado absolutista o monarca exerce o poder
sem dependência ou controle de outros poderes, sejam eles superiores ou in-
feriores.

Entretanto, Streck 26 e Morais lembram que não se pode confundir o Es-


tado absoluto com o Estado tirânico, pois, apesar da ilimitação externa em sua
autonomia, possui limites internos representados em seus valores e crenças
da época, elementos ausentes na organização tirânica.

A segunda versão do Estado moderno é encarnada no liberalismo. Es-


píndola 27 afirma que o Estado liberal surgiu em resposta ao Estado absolutis-
ta. Contudo, Bobbio 28 amplia essa afirmação ao entender que o Estado liberal
tem poderes e funções limitadas, contrapondo-se tanto ao Estado absoluto,
quanto ao Estado social.

É importante salientar que nessa fase há a consolidação do poder legis-


lativo como protagonista do Estado, e como tal, as decisões judiciais bem co-
mo os negócios jurídicos ainda não eram vistas como atos de criação do direi-
to, pelo contrário, o legislador representava a vontade geral rousseauniana 29.

23 GRUPPI apud STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. DE. Ciência Política & Teoria do Estado.
7 a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012 , p. 33.
24 Espíndola, op. Cit., p. 295.
25 SCHIERA apud STRECK ; MORAIS, op. cit., 38.
26 Ibid., 38.
27 Espíndola, op. cit., p. 296.
28 BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. 6 a ed. ed. São Leopoldo: Brasiliense, 2000 , p.7.
29 Espíndola, op. cit., p. 297.
25

Refletindo esse aspecto do Estado, o julgador limita-se apenas a expor o direi-


to, absenteísta, onde a jurisdição se confunde com a simples declaração de di-
reitos 30.

O Welfare State surge como a terceira fase do estado moderno em mea-


dos do Século XIX. O modo de vida liberal ocasionou o desenvolvimento eco-
nômico pautado no individualismo, o qual gerou uma postura ultraindividua-
lista de comportamento egoísta, além da formação do proletariado em conse-
quência a Revolução Industrial, gerando demandas de urbanização, segurança
pública, saúde, educação e condições de trabalho, fazendo com o Estado saís-
se do absenteísmo para o intervencionismo 31.

Garcia-Pelayo, citado por Espíndola 32, lembra que o conteúdo jurídico


do Estado social de direito dispõe-se a controlar os aspectos econômicos, so-
ciais e culturais da sociedade, o direito além de limitar a ação do Estado, pres-
tará serviço, obedecendo ao princípio da eficácia, através de harmonização
entre a racionalidade jurídica e a racionalidade técnica.

Já o Estado Democrático de Direito personifica a quarta fase do Estado


moderno. Nele, os indivíduos se submetem ao regime de direito e a atividade
estatal só pode se desenvolver utilizando as regras autorizadas pela ordem
jurídica. Streck e Morais 33 afirmam que: “A ideia de Estado de Direito carrega
em si a prescrição da supremacia da lei sobre a autoridade pública”.

Os autores argumentam que o Estado democrático de Direito possui o


conteúdo transformador da realidade, onde o seu conteúdo ultrapassa o as-
pecto material da ideia de uma vida digna ao homem e passa a fomentar a
participação pública quando o democrático qualifica o Estado, irradiando os

30 Ibid. , p.301.
31 Streck; Morais, op. cit., p.55.
32 PELAYO apud ESPÍNDOLA, op. cit, p., 302.
33 Streck; Morais, op.cit., p. 90.
26

valores da democracia na ordem jurídica 34.

Um ponto importante a ser lembrado reside na relação entre Estado e


sociedade. Bobbio 35 pontua que essa relação mudou ao longo do tempo, pois
não havia distinção entre a vida social e política do homem, ambos os signifi-
cados estavam contidos em uma única palavra: politikón. Para tanto, o autor
faz menção a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, informando que a família era
considerada como a primeira forma embrionária e imperfeita da pólis, sendo
tratada como política.

A partir daí as demais formas de sociedade foram se constituindo por


acordo ou amizade a fim de atingir os objetivos particulares. Assim, ainda se-
gundo o autor italiano, a relação entre a sociedade política e as sociedades
particulares estavam intricadas, englobada pela pólis 36.

Bobbio 37 explica que essa realidade muda através da emancipação bur-


guesa na medida em que a sociedade em suas várias articulações se torna o
todo, não achando mais interessante a ação coativa do Estado, consequente-
mente em sua força política e em seu poder.

O entendimento dos pensamentos que sustentaram o Estado moderno é


de fundamental importância para entender a polícia como instituição, pois, ao
contrário que se pensa, ela também surge com a sua criação, incorporando su-
as qualidades e seus vícios. Além do mais, conforme Espíndola, o perfil do
Estado se reflete no modelo de produção do direito e no papel a ser desempe-
nhado pelos seus protagonistas 38, inclusive a polícia.

34 Streck; Morais, op. cit., p. 152.


35 Bobbio, 1999, p. 60.
36 Ibid, p. 61.
37 Ibid., p. 61–62.
38 ESPÍNDOLA, Ibid.
27

1.2 A ORIGEM DA POLÍCIA

1.2.1 A polícia na antiguidade

As instituições policiais estão tão presentes nas sociedades modernas


que é quase impossível desassociá-las do modo de vida atual. Praticamente
todos os governos formados possuem a uma organização que ut ilize a força
para a manutenção da ordem. Contudo, a história demonstra que elas sempre
estiveram presentes nas sociedades antigas, mesmo que não tão organizadas
quanto na modernidade.

Jean-Claud Monet lembra que a função policial aparece quando a divi-


são do trabalho se acentua nas comunidades, criando estruturas diferenciadas
de dominação 39. Em consonância com essa afirmativa, Bruce Berg pontua que
no patriarcado, por volta de 1750 a.C., os membros dos clãs ou da tribo se en-
carregavam de providenciar suas próprias funções de polícia, onde o líder
exercia a função legislativa, jurisdicional e executiva 40. Esse tipo de policia-
mento é denominado por Berg como policiamento de parentesco.

Com o crescimento e desenvolvimento dos agrupamentos humanos,


houve uma necessidade de uma maior organização social a fim de fazer frente
a necessidade de buscar ou defender recursos naturais e também evitar inva-
sões de outros povos, surgindo assim a concepção de Estado. Na antiguidade,
alguns Estados também constituíram suas polícias.

Na Grécia, por volta de 605-527 A.C., Peisistratus, governador de Ate-


nas, criou o primeiro sistema de policiamento formal 41. Sobre o policiamento

39 MONET, J.-C. Polícias e Sociedades na Europa. 2 a ed. São Paulo: Edusp, 2006, p. 32.
40The kin police, ou policiamento de parentesco era baseado na filosofia de relações parentais
das tribos ou dos clãs, porém cada grupo possuía o seu próprio código “legal”, o qual tinha
a obrigação de exercer a aplicação da lei, mesmo que direcionado a outro clã ou tribo. Com
o passar do tempo esse método foi se tornando severo, cruel e sangrento, à medida que a
justiça se confundia com vingança. Cf. BERG, B. L. Policing in modern society. Oxford:
Elsevier, 1999, p.16.
41 Ibid., p. 19.
28

em Atenas, Diamantino Sanches Trindade e Jesus Manuel dos Reis fazem a


seguinte descrição apud Martins 42:

[...] em Atenas a vigilância da cidade e a proteção dos seus habitantes


estava cometida a dez astímonos que eram verdadeiros policiais e
magistrados criados pela democracia. [...] os astímonos seriam assim
a cúpula de uma organização de segurança dos atenienses. [...] admi-
te-se terem existido escalões hierárquicos intermédios formando uma
pirâmide na base da qual estaria o agente.

É interessante assinalar que apesar da formalidade, a polícia grega es-


taria longe da organização existente na modernidade a qual persiste até os di-
as atuais. Segundo Monet 43, no tocante a polícia grega: “eram múltiplas, pou-
co profissionalizadas, provavelmente pouco coordenadas entre si”. O autor
salienta que a polícia na Grécia estava a serviço da polis, e não da população.

Em Roma, a Lei das XII Tábuas estabelecia que cabia a vítima conduzir
o suposto criminoso ao magistrado local a fim de este fosse pronunciado e
sentenciado 44. Essa realidade mudou quando o Imperador Augusto César cri-
ou a Guarda Pretoriana, por volta de 27 a.C., que tinha a incumbência de pro-
teger o imperador e suas posses. A versão civil dessa polícia era chamada de
vigiles, que eram encarregados de manter a paz na cidade através de patru-
lhamento 45. Essa metodologia foi mantida pelos sucessores de Augusto César,
a qual desaparecera após a queda do Império Romano.

42 TRINDADE; REIS apud MARTINS, J. M. Instituição policial militar e segurança pública:


análise à luz da política jurídica. (Dissertação de Mestrado) Universidade do Vale do Itajaí,
2008, p. 45.
43 Monet, op. cit., p. 32.
44 A filosofia de policiamento tribal, The kin police, ainda vigorava em Roma. Os interessa-

dos, ou vítimas, levavam o criminoso ao magistrado que ditava a sentença, entretanto, a


execução da pena era de responsabilidade da vítima, fosse ela morte ou sujeição a escravi-
dão. O direito privado de aplicar a lei causou violência e desordem as ruas de Roma, ate-
nuados com a criação dos vigile, Cf. em Monet, op cit., p. 34.
45 Berg, op. cit., p. 19.
29

1.2.2 A polícia na Idade Média

A queda do Império Romano originou a um novo tipo de organização


social denominado feudalismo. Monet explica que a descentralização do mo-
do de vida feudal gerou um clima de insegurança perpétuo. Isso porque a ri-
queza era rara, a incapacidade dos reis em estabelecer uma ordem duradoura
tornava o direito impotente frente as pilhagens e as constantes mortes e doen-
ças em detrimento das guerras.

A fragilidade demonstrada pelos reis, antes da formação do Estado mo-


derno, também abalou a confiança dos monarcas em seus agentes reais itine-
rantes, fazendo-os apostarem nas relações delicadas e corrompidas entre su-
seranos e vassalos. Esse relacionamento fortaleceu os senhores feudais medi-
ante ao enfraquecimento do poder real, assim, o senhor feudal, em seus do-
mínios, torna-se o juiz, detentor dos meios de exercer a força necessária para
realizar suas sentenças, geralmente realizada pela parte ofendida 46.

Monet 47 revela que: “A justiça criminal é garantida, em nome do rei, pe-


lo senhor feudal, e o exercício dessa função extrai sua legitimidade de uma
delegação de autoridade recebida do rei, de quem emana toda a justiça”. En-
tretanto, o autor explica que a justiça se torna fraca por ser baseada na vin-
gança privada.

É importante salientar que essa realidade se assemelha em grande parte


ao sistema kin police, onde o feudo se assemelha ao clã, o senhor feudal ao seu
líder tribal com grande poder baseado nas relações parentais com forte ten-
dência a vingança.

Diante do caos social existente na idade média, surgiram algumas inici-


ativas de organização de segurança, uma espécie de policiamento rudimentar
e bem distante das organizações profissionais existentes atualmente, com o

46 Monet, op. cit., p. 36.


47 Ibid., p. 37.
30

objetivo de prover um mínimo de ordem e manter a paz, dando destaque as


ações da igreja, aos sistemas de guildas, a maréchaussée e das fraternidades 48.
Essa realidade começa a mudar quando há um retorno do poder central atra-
vés da formação do Estado moderno, o qual dará o contorno das instituições
policiais da atualidade.

1.2.3 A polícia na modernidade

A instituição policial contemporânea é uma organização que nasce com


o Estado moderno, pois até então os exércitos, por serem instituições profissi-
onais, tinham a obrigação de manter a ordem em todas as situações, fossem
em momentos de guerra ou de paz. Com a sua criação, as forças armadas se
concentraram nas ameaças externas, deixando os problemas internos com as
polícias 49.

Segundo Monet, as estruturas policiais de hoje se formaram e se conso-


lidaram nos séculos XVIII e XIX com a formação dos Estados moná rquicos,
autoritários e inquisitoriais, as quais perduram até a atualidade. A polícia en-
tão se constitui em uma instituição singular devido a posição central que ocu-
pa no funcionamento político de uma coletividade que, aliada à sua origem,
segundo Monet, mantém sempre e em toda parte relações ambíguas com a
democracia 50.

Entretanto, Monet ressalva que: “... a existência de uma polícia pública


é o sinal indiscutível da presença de um Estado soberano e de sua capacidade
de fazer prevalecer sua Razão sobre as razões de seus súditos” 51. Max We-
ber 52, ao conceituar o Estado moderno, também acentua o monopólio da força

48 Monet, op. cit., p. 38–39.


49 Ibid.
50 Ibid.
51 Ibid, p. 16.
52 WEBER, M. Economia a sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva . São Paulo:

Editora UnB, 2004. v. 2, p. 529.


31

e o seu caráter centralizador.

O Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que


dentro de determinado território pretendeu com êxito monopolizar a
coação física legítima como meio da dominação e reuniu para este
fim, nas mãos de seus dirigentes, os meios materiais de organização,
depois de desapropriar todos os funcionários estamentais autónomos
que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-
se, ele próprio, em seu lugar, representado por seus dirigentes su-
premos.

Um bom indício dessa afirmação seria a origem da palavra polícia, que


vem do grego politeia, que por sua vez vem da palavra polis, que significa ci-
dade. Assim, política e polícia possuem a mesma origem etimológica. Monet,
baseado em Platão e Aristóteles, afirma que a politeia remetia a leis e regras
referentes a administração geral da cidade, tal como ordem pública, morali-
dade, salubridade, o abastecimento e também aos guardiões da lei, responsá-
veis pela implementação das regras 53.

Skolnick e Bayley compreendem as organizações policiais modernas


como burocracias clássicas com chefes, comissários ou diretores, estruturadas
de forma hierárquica, com escalas de serviços, sistemas de regras formais, or-
ganogramas e conjuntos de ordens gerais 54.

Robert Reiner afirma que a polícia é entendida como um grupo de pro-


fissionais devidamente uniformizados que executam atividade de patrulha-
mento em espaços públicos, exercendo um mandato direcionado prioritaria-
mente para o controle do crime e da manutenção da ordem, não deixando de
realizar algumas funções negociáveis de caráter social 55. É notório que os
conceitos descritos de polícias remetem a complexidade da própria socieda de.

Quanto a isso, Monet lembra que existe uma estreita ligação das polí-
cias com o ambiente urbano. Esse caráter municipal se deu pelo pequeno nú-

53 Op. cit., p. 20.


54 SKOLNICK, J. H. .; BAYLEY, D. H. Policiamento Comunitário. São Paulo: Edusp, 2017.
55 REINER, R. A política da polícia. São Paulo: Edusp, 2004. (Série Polícia e Sociedade) .
32

mero de cidades, o que fortaleceu o poder central local. Essa realidade se


transformou durante os séculos XVIII e XIX, onde o poder político central se
fortaleceu causando o declínio das autonomias locais. Esse fenômeno levou ao
surgimento das polícias militarizadas, que possuem natureza centralizadora,
além de reforçar o controle das polícias locais 56.

Algo relevante para este estudo reside nos modelos de polícia estabele-
cidos na Europa. Assim, em relação ao sistema de comando as polícias podem
ser monistas, quando só uma força cobre todo o território; dualista, quando
há duas grandes forças policiais, geralmente uma militarizada e outra civil; e
por último, um sistema pluralista, onde as polícias dependem de diferentes
órgãos, sejam eles provinciais, federais ou estaduais 57. No Brasil, devido a
existência das polícias estaduais, civis e militares, da polícia rodoviária fede-
ral, de uma polícia federal bem como uma polícia ferroviária federal, pode se
afirmar que há um sistema pluralista.

Monet chama atenção para o fato de as polícias ao redor do mundo pos-


suírem as mesmas missões, a partir de matrizes textuais compostas de algu-
mas grandes missões nas quais são inseridas inúmeras tarefas, porém ele res-
salva que a má qualidade desses textos propicia imprecisão com termos gené-
ricos relacionados a paz, ordem e segurança. Mesmo assim em geral esses tex-
tos apresentam quatro conjuntos de atividades distintas: polícia de segurança,
polícia de ordem, a polícia criminal e a polícia de informações 58.

Os conceitos ora relacionados demonstram características como organi-


zação, estrutura hierarquizada, monopólio da força, poder e relações sociais,
fazem dela um forte instrumento de prevalência de garantias constitucionais.
É fato que uma instituição com esses atributos precisa ter um acompanhamen-
to diferenciado sob pena de comprometer a própria democracia. Assim, polí-

56 Op. cit
57 Monet, op. cit.
58 Op. ct.
33

cias sem esse acompanhamento podem demonstrar um lado adverso aquele


idealizada pelo Estado moderno.

1.3 A POLÍCIA EM UM REGIME AUTORITÁRIO

As instituições policiais materializam a força do Estado, assim, é nor-


mal que a sociedade queira acompanhar as suas ações a fim de evitar os seus
excessos. Entretanto, esse poder sem acompanhamento pode causar danos ir-
reparáveis a sociedade, a exemplo da ação das polícias em regimes autoritá-
rios.

Na verdade, Aristóteles já discutia a existência de um Estado autoritá-


rio e suas implicações para a sociedade. Para o pensador grego, a tirania seria
uma das formas de governo mais detestáveis, onde o governo opressivo seria
exercido por um homem sobre o Estado. O tirano exerceria a opressão con-
forme a vontade do príncipe, sem qualquer responsabilidade ou censura,
apenas guiado por seus interesses em detrimentos aos seus súditos 59.

Aristóteles via na tirania a inversão de princípios da virtude, a exemplo


de bajuladores que seriam honrados enquanto os homens de bem sujeitados
bem como a acumulação de riqueza sobrepondo o bem-estar do povo. O povo
então seria desarmado, oprimido, expulso das cidades e dispersados pelo ti-
rano, através das forças regulares do Estado 60. O poder tirânico seria utilizado
sem moderação contra os seus próprios súditos a fim de garantir a sua manu-
tenção no poder.

O conceito idealizado por Aristóteles se assemelha muito aos conceitos

59Para Aristóteles, existiam três formas de governo consideradas justas: a monarquia, a aris-
tocracia e a república. Na monarquia o interesse do Estado pertenceria ao monarca; na aris-
tocracia o poder seria confiado a um pequeno e dileto grupo de cidadãos, eiv ados de gran-
des virtudes; e por último, a república, onde a multidão governaria para a multidão. Se-
gundo a Aristóteles, a corrupção dessas formas de governo geraria Estados degenerados,
assim, a democracia seria a degeneração da república, a oligarquia a d egeneração da aristo-
cracia e a tirania a degeneração da monarquia. Cf em ARISTÓTELES. A política. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2011. E-book.
60 Ibid.
34

da era moderna. O sociólogo espanhol Juan Linz, por exemplo, define o auto-
ritarismo moderno como um sistema com pluralismo político limitado , carac-
terizado por uma mentalidade específica, não permitindo mobilização política
capilar e em larga escala, exceto em alguns momentos do seu desenvolvimen-
to e mesmo assim tendo um líder ou um pequeno grupo político exercendo o
poder dentro dos limites mal definidos da formalidade, porém com previsibi-
lidade 61.

Para Linz, a democracia seria um contraponto ao autoritarismo, que por


sua vez se diferencia do totalitarismo por ter um forte caráter ideológico 62.
Nesse sentido, Norberto Bobbio afirma que no Estado totalitário a sociedade
civil é completamente absorvida pelo Estado 63. Entretanto, Hanna Arendt cla-
rifica essa diferença quando diz que o domínio totalitário visa à abolição da
liberdade e em dado momento até a eliminação de toda espontaneidade hu-
mana, enquanto o autoritarismo visa a simples restrição da liberdade, mesmo
que seja de forma tirânica 64.

A polícia é inserida nesse contexto quando ela é responsável por mate-


rializar a ação do tirano exercendo a sua vontade contra a população e em al-
guns casos indo de encontro ao próprio ordenamento jurídico existente. Nesse
aspecto, o filósofo prussiano Christian Wolf, citado por Monet 65, ao falar da
polícia moderna, revela que a há uma confusão entre os interesses do tirano e
o bem da população advindo do Estado absoluto que desagua no Estado poli-
cial.

A finalidade do Estado é trazer o bem-estar, e até a felicidade, aos in-


divíduos. A moralidade superior desse objetivo justifica a extensão
dos poderes que é arrogada pelo Estado. Estado absoluto, pois só ele

61 LINZ, J. J. Autoritarismo. Istituto della Enciclopedia Italiana, , 1994. (Enciclopedia delle


Scienze Sociali), p. 444.
62 Ibid., p. 44.
63 BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade. 14 a ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987, p. 37.
64 ARENDT, H. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 455.
65 WOLF apud MONET, op cit, p. 22.
35

dispõe do poder de definir a felicidade de seus súditos, cujos meios


de realizar só ele detém, inclusive pelo exercício da coação física, e
por não estar sujeito às suas próprias leis. Produz-se nesse ponto uma
confusão entre os fins e o meio, entre a felicidade dos súditos e o po-
der do Estado. Essa confusão dá origem ao conceito
de Polizeinstaat, isto é, de “Estado policial”.

O Estado policial tem a intenção de manter a sociedade no parâmetro


ideal de superioridade moral e material estabelecido pelo seu líder auto cráti-
co se utilizando inclusive da força para atingir o seu objetivo.

Em uma abordagem mais atual, o jurista francês Raymond Carré de


Malberg expõe que o cidadão precisa ter suas garantias asseguradas pelo or-
denamento jurídico e ter assegurado uma relação justa e equilibrada com o
Estado a fim de alcançar o bem comum, assim, para Malberg, a falta desses
requisitos em uma sociedade a encaminhariam para o Estado policial.

O estado policial é aquele em que a autoridade administrativa pode,


de maneira discricionária e com uma liberdade de decisão mais ou
menos completa, aplicar aos cidadãos todas as medidas cuja iniciativa
eles considerem útil tomar por conta própria, a fim de lidar com as
circunstâncias e alcançar sempre os objetos propostos. Este regime
policial baseia-se na ideia de que o fim é suficiente para justificar os
meios66.

No mesmo caminho de Malberg, o jusfilósofo italiano, Luigi Ferrajoli 67,


entende o Estado policial como uma forma de Estado absoluto ou disciplinar,
caracterizado por leis em branco que admitem interferências punitivas sem
qualquer vínculo jurídico ou juízo prévio. Ambos os estudiosos entendem que

66 MALBERG, R. G. DE. Teoría general del Estado. 2. ed. Ciudad de México: Fondo de
Cultura Economica, 1998, p. 208.
67Luigi Ferraloli estabeleceu 10 axiomas como base do seu Sistema Garantista (SG). Segundo

o autor, a subtração de um ou mais axiomas podem originar inúmeros sistemas penais de


diversas espécies, as quais reduzem as garantias jurídicas que debilitam o sistema. O mode-
lo de processo penal autoritário surgiria com princípios do ônus da prova e do direito de
defesa, expressos pelos axiomas A9 e A10. Assim, para Ferrajoli, o sistema o Estado policia l
surgiria de um sistema "sem juízo", que carece do axioma A9 (Não há acusação sem prova).
Cf. em FERRAJOLI, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 a ed. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 82.
36

o Estado policial se constitui em uma antítese ao Estado democrático.

Michael Foucault entende que por muito tempo a organização de uma


polícia centralizada foi a expressão mais direta do absolutismo real.

O poder policial deve-se exercer “sobre tudo”: não é entretanto a tota-


lidade do Estado nem do reino como corpo visível e invisível do mo-
narca; é a massa dos acontecimentos, das ações, dos comportamentos,
das opiniões — “tudo o que acontece”; o objeto da polícia são essas
“coisas de todo instante”, essas “coisas à-toa” de que falava Catarina
II em sua Grande Instrução. Com a polícia estamos no indefinido de
um controle que procura idealmente atingir o grão mais elementar, o
fenômeno mais passageiro do corpo social [...] E para se exercer, esse
poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente,
exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a con-
dição de se tornar ela mesma invisível68.

Percebe-se, através Foucault, que o poder policial deve permear a soci-


edade até chegar a sua base a fim de que a sua onipresença seja sentida por
todas as suas formas de expressão física e mental com o objetivo de estabele-
cer o controle social absoluto. Assim, escolas, exércitos e oficinas, locais co-
mumente associados a disciplina, estendem-se de forma intermediária de ma-
neira a atingir espaços não tradicionalmente palco de disputa de poder, au-
mentando ainda mais o seu alcance 69.

Essa discussão trazida por Foucault também é discutida por Robert


Reiner, o qual chama atenção para um dos aspectos mais controversos da na-
tureza policial – o controle social. Segundo Reiner 70, o controle social, de mo-
do amplo, significa qualquer ação ou atividade que contribua para a reprodu-
ção da ordem social. Essa contribuição abarca todos os aspectos da formação
da cultura até a socialização dos indivíduos, abrangendo, na prática, virtual-
mente toda a sociedade. Esse é um conceito que em um regime democrá tico,
por si só, já é bastante delicado e exige a atenção de toda a sociedade. Entre-

68 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 41 ed. Petrópolis:


Vozes, 2013, p.202.
69 Ibid., p. 203.
70 Ibid., p. 20.
37

tanto, em um regime autoritário ou até mesmo no regime totalitário, essa vi-


são de controle social pode maximizar o poder policial, tornando -o ainda
mais opressor, conforme relata Hanna Arendt.

Nos primeiros estágios do regime totalitário, porém, a polícia secreta


e as formações de elite do partido ainda desempenham um papel se-
melhante àquele que as caracteriza em outras formas de ditadura e
nos antigos regimes de terror; e a excessiva crueldade dos seus mé-
todos não tem paralelos na história dos países ocidentais modernos.
O primeiro estágio, de desencavar os inimigos secretos e caçar os an-
tigos oponentes, geralmente coincide com a arregimentação de toda a
população em organizações de vanguarda e a reeducação dos velhos
membros do partido para serviços voluntários de espionagem, de
sorte que os escalões especialmente treinados da polícia não precisam
preocupar-se com as duvidosas simpatias dos simpatizantes arregi-
mentados. É durante esse estágio que um vizinho gradualmente se
torna mais perigoso para os que nutrem "pensamentos perigosos" que
os agentes policiais oficialmente nomeados (grifo nosso)71.

Uma polícia no regime totalitário pode ser muito mais perigosa e opres-
sora que um exército. Isso acontece devido a programação instalada na for-
mação das duas instituições. Nos exércitos, a concepção de inimigo é voltada
para o perigo estrangeiro que a qualquer momento pode invadir a mãe pátria,
subjugá-la, obliterá-la, pondo em risco todos os cidadãos, seus entes queridos
e amigos. Essa visão de mundo, segundo Arendt 72, torna a ação do exército
pouco confiável para uma situação de controle social, pois os soldados possu-
em dificuldade em se voltar para os seus compatriotas.

Já a polícia, nesses casos, parece ser uma solução mais confiável, pois a
sua programação consiste em entender que aqueles que não se submetem ao
líder são rebeldes, subversivos, traidores da pátria que não conseguem perce-
ber a grandeza estabelecida pelo regime e por isso merecem sofrer, merecem
ser expurgados, muitas vezes com requintes de crueldade. A Gestapo nazista

71 Arendt, op cit., p. 472.


72 Ibid., 469–88.
38

e a NKVD 73 (Comissariado do povo para assuntos internos) stalinista são


exemplos históricos de polícias secretas. Dessa forma, a polícia em um Estado
totalitário faz o patrulhamento ideológico, aperfeiçoando o controle social na
manutenção do regime.

A polícia em regimes autoritários e totalitários se utiliza de meios não


convencionais para alcançar seus objetivos, a exemplo da tortura, execuções
extrajudiciais, mentira, corrupção, banimento, ameaça e todo tipo de violên-
cia. Hanna Arendt dá um panorama dessa situação extrema nos campos de
concentração nazista.

As maneiras de lidar com essa singularidade da pessoa humana são


muitas e não tentaremos arrolá-las. Começam com as monstruosas
condições dos transportes a caminho do campo, onde centenas de se-
res humanos amontoam-se num vagão de gado, completamente nus,
colados uns aos outros, e são transportados de uma estação para ou-
tra, de desvio a desvio, dia após dia; continuam quando chegam ao
campo: o choque bem organizado das primeiras horas, a raspagem
dos cabelos, as grotescas roupas do campo; e terminam nas torturas
inteiramente inimagináveis, dosadas de modo a não matar o corpo
ou, pelo menos, não matá-lo rapidamente. O objetivo desses métodos,
em qualquer caso, é manipular o corpo humano — com as suas infini-
tas possibilidades de dor — de forma a fazê-lo destruir a pessoa hu-
mana tão inexoravelmente como certas doenças mentais de origem
orgânica74.

Sobre essa violência, Anrendt 75 afirma que o sinal mais evidente de de-
sumanização não é raiva ou a própria violência, mas a ausência óbvia de am-
bos. Interessante ressaltar que alguns pesquisadores na década de 50, dentre
eles Adorno, estabeleceram o perfil de uma personalidade autoritária. Segun-
do os pesquisadores, o convencionalismo, a agressividade autoritária, a sub-
missão acrítica, a destruição e cinismo, poder e rudeza, superstição e estereo-

73 Adaptado para a língua portuguesa. Em russo: НКВД, Народный комиссариат


внутренних дел, translit. Narodniy komissariat vnutrennikh diel.
74 Ibid., p. 504.
75 ARENDT, H. Sobre la violência. Madrid: Alianza Editorial, 2006, p. 85.
39

tipia, exteriorização, projeção e sexo, fazem parte da escala “F” 76.

O convencionalismo consiste na adesão intransigente aos valores con-


vencionais da classe média; na submissão autoritária há uma submissão acrí-
tica em relação às autoridades que são moralmente idealizadas pelo grupo; a
agressividade autoritária consiste na tendência em condenar e punir quem vi-
ola as normas convencionais; na submissão acrítica há oposição a subjetivida-
de e a imaginação; na destruição e cinismo há a hostilidade generalizada pe-
los valores da humanidade; O poder e a rudeza consiste na preocupação exa-
gerada com a dimensão domínio-submissão, forte-fraco, líder-liderado e iden-
tificação com figuras de poder; na superstição e estereotipia existe a crença no
fatalismo místico do destino do homem com propensão ao pensamento rígido,
focado em esquemas pré-elaborados; a projeção consiste na disposição de
acreditar em perigo constante ao redor do mundo; na exteriorização há oposi-
ção ao subjetivo, ao imaginativo, a sensibilidade; e no sexo, com preocupação
excessiva com a relação sexual.

Sanford et al. 77, deixam claro que a escala F foi feita para identificar o
que torna uma pessoa receptiva à propaganda antidemocrática. Entretanto,
não significa que uma pessoa possua todas as características descrita pelo
padrão de personalidade apresentado.

Polícias em Estados autoritários permitem que seus membros


desenvolvam tais características, conforme exemplo da polícia chilena

76 No original, conventionalism, authoritarian submission, authoritarian aggression, anti -


intraception superstition and stereotypy, power and "toughness", destructiveness and cyni-
cism, projectivity and sex. A escala “F” ou escala facista foi feita com o intuito de identificar
tendências pré-fascistas após a descoberta do holocausto promovido pela Alemanha nazista
e avaliação indireta do preconceito-etnocêntrico. A escala “F” foi elaborada a partir da esca-
la “A-S” anti semita: Offensive (ofensivo), Threatening (ameaçador), Attitudes (atitudes),
Seclusive (isolado), Intrusive (intrusivo); da escala “E”, etnocentrismo e da Political and
economical conservatism (PEC) scale, escala do Co nservadorismo Político e Econômico. Cf.
em SANFORD, R. N. et al. The Authoritarian Personality. New York: Harper & Brothers,
1950, p. 228.
77 Op cit., p. 228.
40

durante a vigência da ditadura de Augusto Pinochet em 1973.

Uma vez tomada La Moneda e alojados no poder, os golpistas milita-


res levaram adiante uma voraz perseguição aos supostos traidores da
nação, da pátria e da família instalados nas mais variadas instituições
do país, começando pela própria casa, ou seja, nas Forças Armadas e
em Carabineros. Fato marcante dessa “limpeza moral” foi a prisão do
General de Brigada Força Aérea Alberto Bachelet Martínez, que foi
torturado e morto por seus pares militares. A morte do general Ba-
chelet se tornou marco de resistência ao regime político autoritário, o
que posteriormente rendeu frutos à sua filha, Michelle Bachelet, que
foi eleita presidente do país no período de 2006 a 2010, e hoje é uma
das personagens políticas mais influentes no Chile78.

Nesse pequeno trecho, pode-se observar algumas das características


elencadas pela escala “F”, a exemplo da submissão e ag ressividade autoritá-
rias, destruição e cinismo, poder e a rudeza e superstição e estereotipia.

Obviamente, esses traços de personalidade podem ser desenvolvidos


em qualquer um dos setores da sociedade e a qualquer tempo, porém, nas ins-
tituições policiais, principalmente um regime autoritário, essas características
são potencializadas, ferindo o ordenamento jurídico legal existente, promo-
vendo a supressão de direitos fundamentais.

1.4 O PAPEL DA POLÍCIA NO REGIME DEMOCRÁTICO

1.4.1 Da Democracia Clássica a Democracia Constitucional

A palavra democracia é constantemente utilizada por inúmeros segui-


mentos da sociedade e dificilmente há alguém que seja contra ela, todos são
pela democracia, mas a depender de quem a use, de que momento a use ou a
que tempo a use, ela pode assumir significados diferentes e muitas vezes não
condizentes com o seu real significado. Tal situação é prejudicial, inclusive

78 ROCHA, A. P. DA. A Gramática das políciais militarizadas: estudo comparado entre a


Polícia Militar do Estado de São Paulo e Carabineros de Chile, em regimes políticos
autoritários e democráticos. (Tese de Doutorado) (Instituto de Ciências Sociais)
Universidade de Brasília, 2013, p. 176.
41

para se compreender o papel da polícia no fortalecimento da Democracia.

Norberto Bobbio 79 afirma que o conceito de Democracia é extremamente


complexo e que o senso comum a entende de forma simplificada como um
governo que se encontra nas mãos de todos ou de uma maioria, contrapondo -
se a autocracia, onde, em sua versão clássica, oriunda da Grécia, seu conceito
era associado a ideia de liberdade, a qual consiste na distribuição do poder
político entre todos os cidadãos de uma mesma pátria.

Tomando por base a democracia ateniense, Cenci e Bendin 80 explicam


que o regime democrático dava o direito de falar e votar nos fóruns lo cais so-
bre problemas relativos a polis a que pertenciam, sempre de forma direta e in-
dividual. É bom salientar que a democracia ateniense era restrita, o que mere-
ce uma contextualização, pois mulheres, escravos, crianças e estrangeiros não
tinham a cidadania, sendo que apenas aproximadamente 20% dos cidadãos
exerciam a cidadania 81.

A Democracia clássica repousa na ideia de igualdade política. Os cida-


dãos atenienses, por exemplo, resolviam os problemas da polis nas ágoras, mas
as assembleias não conseguiam e nem podiam resolver todas as querelas da
polis em seu tempo de reunião. Bernard Manin 82 pontua que muitas funções
eram desempenhadas por magistrados eleitos pela assembleia, mas a maioria
das tarefas não realizadas por ela eram realizadas por cidadãos seleci onados
por sorteio.

Havia outras tarefas concernentes ao cidadão grego que tornava a Gré-

79 BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. 6 a ed. ed. São Leopoldo: Brasiliense, 2000.


80 CENCI, A. R.; BENDIN, G. A. Para além da liberdade dos antigos e da liberdade dos
modernos : A Democracia como Regime dos Direitos Humano s. Direito em Debate –
Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí, v. XXIII, n. 41, p. 229–
246, 2014.
81 Ibid.,p. 232.
82 Manin pontua que essa é uma característica da Democracia dos antigos pouco lembrada

durante as pesquisas. Cf MANIN, B. The principles of representative government.


Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 8.
42

cia uma sociedade dinâmica, inclusive no comércio, nesse sentido, Cenci e


Bendin 83 lembram que o “cidadão ateniense livre é aquele que pode participar
dos negócios da cidade”. Tais características fazem democracia clássica, se-
gundo Bobbio 84, governo onde o povo, entendido como conjunto de cidadãos,
é o titular do poder político. Ao longo dos anos a democracia adquiriu má re-
putação pelos romanos, esquecida ao longo do medievo e redescoberta pelos
Estados Unidos e França na modernidade 85.

Na Democracia moderna a liberdade passa a ser um ideal a ser perse-


guido e alcançado em face as incertezas promovidas pelo Estado absolutista.
Seguindo esse raciocínio, Bobbio 86 esclarece que para ela liberdade significava
a segurança e garantia das liberdades individuais, a fim de prover a proteção
do indivíduo ante a ação do Estado.

Bobbio 87 ressalta que na democracia moderna a limitação do poder do


Estado é uma meta que intenta a contraposição ao Estado absoluto, de forma
que quanto maior for a liberdade de uma pessoa, menor será o seu poder.

Cenci e Bendin 88 afirmam que na democracia moderna existe a igualda-


de formal entre os indivíduos, mas a participação política ocorre de forma re-
presentativa. Bobbio 89 define a democracia representativa como “aquela forma
de governo em que o povo não toma ele mesmo as decisões que lhe dizem
respeito, mas elege seus próprios representantes, que devem por ele decidir”.

Nesse aspecto, Manin 90 afirma haver quatro princípios a serem obser-


vados em regimes representativos: eleições regulares, um certo grau de inde-
pendência dos eleitos em relação ao eleitorado, a liberdade de expressão e o

83 Op cit., p. 235.
84 Op cit.
85 Przeworski, apud Cenci e Bendin, 2014, p. 235.
86 Op cit., p. 9.
87 Op cit.
88 Op cit., p.236.
89 Op. cit., p. 33–34.
90 Op cit., p. 6.
43

escrutínio das decisões públicas através do debate.

Quanto a isso, Bobbio entende o Estado organicista, próprio da demo-


cracia clássica, como um grande corpo formado de partes que considera o Es-
tado como um conjunto de indivíduos que concorrem para a vida do todo,
não os atribuindo autonomia. Nessa perspectiva, o todo seria anterior ao in-
divíduo.

Percebe-se que houve uma mudança entre os conceitos de Democracia


grega e moderna, porém, ao longo do tempo, a complexidade social exigiu
mais transformações, que vem exigindo mais uma mudança de paradigma.

Os desafios do cenário político atual congregam a Democracia outra


dimensão, que rompe com o paradigma entre Democracia direta e indire-
ta/formal, onde a contemporaneidade a atribui um lado instrumental, uma
dimensão construtiva ligada aos direitos humanos 91.

Copetti Neto 92 assevera que para sustentar a Democracia Constitucional


seria preciso romper com os pressupostos históricos que a caracterizaram, a
exemplo de ser um governo do povo, ser orgânica como um sujeito político,
um corpo moral e coletivo com vontade homogênea.

Tal assertiva é devidamente explicada quando o autor informa que na


democracia como governo do povo, da vontade da maioria, dá a impressão
que este teria poderes ilimitados, o que não condiz com a realidade de uma
democracia constitucional. Nela, segundo Copetti Neto 93, a soberania popular
possuiria um duplo sentido, negativo e positivo.

No sentido negativo a soberania pertenceria ao conjunto de seus cida-


dãos que compõem o povo. Já no sentido positivo esse povo seria o detentor
de poderes e contrapoderes denominados direitos fundamentais.

91 Cenci e Bendin, Op cit., p. 240.


92 COPETTI NETO, A. A Democracia Constitucional sob o olhar do garantismo jurídico.
São Paulo: Empório do Direito, 2016. p. 20.
93 Ibid., p. 20–28.
44

Isso significa que há uma ressignificação entre as relações do povo, so-


berania popular e Democracia de forma que para que o sistema seja conside-
rado democrático deveria haver limitação e vinculação de todos os poder es,
inclusive do poder da maioria, onde os direitos fundamentais estabeleceriam
vínculos substanciais com a soberania popular 94.

É justamente por isso que o autor afirma que a concepção de democra-


cia formal ou procedimental não mais seria suficiente para e stabelecer a legi-
timidade das decisões dentro do paradigma constitucional contemporâneo,
pois a complexidade social exigiria a concepção substancial para estabelecer
limites, de proibição, e vínculos de obrigação aos poderes representativos.

Dessa forma, sobre a Democracia Constitucional, Copetti Neto 95 afirma


categoricamente que:

É uma teoria jurídica e normativa que se fundamenta na teoria da va-


lidade das normas e que tem na soberania popular tanto a sua legiti-
mação formal para produzir normas sobre a produção de normas –
normas secundárias –, bem como a sua legitimação substancial a res-
peito da produção de normas substanciais fundamentais – normas
primárias.

Em outras palavras, o autor informa que não existe Democracia sem di-
reito, contemporaneamente - não há Democracia fora da constituição. Isso faz
sentido na medida em que, enquanto constitucional, a Democracia leva em
sua rigidez as garantias inderrogáveis a qualquer um, não apenas as garantias
da maioria, entrementes, lição aprendida após a Segunda Guer ra mundial.

Nessa mesma linha de pensamento, André Nicolitt afirma que “A de-


mocracia, na perspectiva do garantismo, ganha uma dimensão substancial
através das proibições e obrigações impostas pela Constituição, pelas garanti-
as primárias dos direitos fundamentais” 96.

94 Ibid., p. 20–28.
95 Ibid., p. 26.
96 NICOLITT, A. L. Intervenções Corporais O Processo Penal e as Novas Tecnologias  : Uma
45

Assim, Copetti Neto e Fischer 97 lembram que o paradigma constitucio-


nal garantista, abordado por Ferrajoli, seria uma teoria da democracia que in-
tenta uma proposta axiomatizada do Direito onde se pretende estabelecer li-
mites e vínculos na atuação pública e privada como concretização das cartas
constitucionais e fortalecimento do Estado de Direito.

1.4.2 A Polícia na Democracia Constitucional Garantista

As instituições policiais em regimes democráticos são organizações le-


gítimas, de caráter burocrático, que se dispõem a manter a ordem política
mediante o uso da força 98. Peter Manning, ao se referir as polícias anglo ame-
ricanas, afirma que uma polícia democrática evita tortura, o terrorismo e o
contraterrorismo; é pautada na lei e procura auferir danos mínimos a socie-
dade durante esse processo. A polícia deve internalizar padrões éticos e mo-
rais durante suas ações, que seriam protegidas pelos tribunais, onde seus pro-
cedimentos e práticas são cuidadosamente examinados durante violações de
conduta, rejeitando vigilantismo e atividades extrajudiciais 99.

Acrescenta-se o fato que a ação das instituições policiais em uma demo-


cracia a ideia de igualdade e justiça são inseparáveis e que as leis são apl ica-
das igualmente, de forma indistinta a todos os cidadãos, atentando para a to-
lerância e a aceitação da diversidade 100.

Análise Luso-brasileira. [Tese de Doutorado] Universidade Católica Portuguesa, 2010, p.


352–353.
97 COPETTI NETO, A.; FISCHER, R. S. O paradigma constitucional garantista em Luigi

Ferrajoli: a evolução do constitucionalismo políti co para o constitucionalismo jurídico.


Revista de Direitos Fundamentais e Democracia , v. 14, n. 14, 2013, p. 417.
98 MANNING, P. K. Os estudos sobre a polícia nos países anglo -americanos. Caderno CRH,

v. 18, n. 45, p. 431–446, 2005, p. 441.


99 MANNING, P. K. Democratic Policing in a Changing World. New York: Routledge, 2016,

n.p. E-book.
100 HABERFELD, M.; GIDEON, L. Policing Is Hard on Democracy, or Democracy Is Hard on

Policing? In: HABERFELD, M. R.; CERRAH, I. (Org.). Comparative Policing: The Struggle
for Democratization. Thousand Oaks: SAGE, 2008, p. 9.
46

Apesar disso, o senso comum, de forma indevida, entende como in-


compatível uma ação policial que resguarde as garantias constitucionais e
consiga ser eficiente na aplicação da lei. Nesse sentido, Andrade 101 corrobora
com esse pensamento quando afirma que existe a falsa sensação de que a po-
lícia que respeita os direitos humanos torna-se ineficiente.

É interessante perceber que o Garantismo também sofre do mesmo mal.


Copetti Neto lembra que a visão reducionista e simplificada da obra de Ferra-
joli tem criado concepções equivocadas sobre o Grarantismo. Assim, é comum
relacionar, de forma equivocada, que o Garantismo prega o “abolicionismo
penal”, “o final de pena da prisão”, “absolvição de criminosos” e a defesa de
direitos humanos para bandidos, e não para as vítimas”. 102 É importante res-
saltar que tais equívocos podem comprometer o entendimento da proposta de
Democracia Constitucional na perspectiva garantista.

Equívocos a parte, o fato é que a ação policial pode e deve estar pari -
passo aos contornos da lei, assegurando, inclusive, as garantias constitucio-
nais, até porque esses ditames fazem parte da gênese das instituições polici-
ais, pois Monet ressalva que: “... a existência de uma polícia pública é o sinal
indiscutível da presença de um Estado soberano e de sua capacidade de fazer
prevalecer sua Razão sobre as razões de seus súditos” 103.

Ora, nada mais racional que o Garantismo na medida em que ele racio-
naliza o direito a fim de evitar surpresas. Amilton e Salo de Carvalho lem-
bram que a Teoria do Garantismo Penal se dispõe a constituir critérios de ra-
cionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo
de controle social maniqueísta que coloque a defesa social acima dos direitos

101 ANDRADE, V. F. Do direito fundamental à segurança pública: análise crítica do


sistema constitucional de segurança pública brasileiro. 2010. Tese. (Doutorado em Direito)
- Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo - PUC-SP, 2010, p. 71.
102 Op. cit., p. 2.
103 Op cit., p. 16
47

e garantias individuais 104.

Sua racionalidade também é percebida quando se pretende obter equi-


líbrio entre o Estado e a sociedade. Nesse sentido, Nicolitt e Neves acrescen-
tam que o Garantismo impõe restrição ao poder do Estado soberano limitando
os três poderes, notadamente ao Legislativo que também está vinculado aos
direitos fundamentais, de forma que nem mesmo a vontade da maioria pode
negar ou violá-lo 105.

Não é por menos que a razão é a base de sustentação da Democracia


Constitucional garantista. Essa afirmação se torna cristalina ao se fazer uma
pequena análise da estrutura da obra de Ferrajoli que refina a concepção ga-
rantista: Principia Iuris. Teoria del diritto e della democrazia. Nessa obra, o jus fi-
lósofo italiano apresenta uma teoria axiomatizada do direito que em linhas
gerais reafirma a necessidade de uma teoria do direito como premissa de uma
teoria da democracia 106. André karam Trindade 107 afirma que a Principia Iuris é
a formulação máxima do garantismo de Ferrajoli, 20 anos após a publicação
de Direito e Razão.

A compreensão dessa premissa se faz necessária no momento em que as


instituições policiais, quando não seguem as regras do jogo democrático ten-
dem a suprimir as garantias fundamentais. O próprio Ferrajoli, por exemplo,
ao explicar modelos punitivos irracionais, afirma que o Estado policial é mar-
cado por leis em branco, que admitem intervenções punitivas livres de qual-
quer vínculo e juízo prévio, um verdadeiro Estado selvagem, 108 que podem

104 CARVALHO, A. B. DE C.; CARVALHO, S. DE. Aplicação da Pena e Garantismo. 2 a Ed.


ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
105 NICOLITT, A. L.; NEVES, F. H. C. Execução penal, unidade prisional Plácido de Sá

Carvalho e o mito do progresso: olhares a partir de Ferrajoli, Agamben e Walter Benjamim.


Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 154, n. Abril, 2019.
106 Copetti Neto, op. cit., p. 4–19.
107 TRINDADE, A. K. Revisitando o garantismo de Luigi Ferrajoli: uma discussão sob re

metateoria, teoria do direito e filosofia política. Revista Eletrônica, v. 5, n. 1, p. 525–542,


2012, p. 20.
108 FERRAJOLI, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 a ed. ed. São Paulo: Editora
48

ensejar interpretações elásticas que “resignifiquem” os direitos fundamentais.

Contudo, quanto as polícias que operam na normalidade democrática,


Bittner afirma que a atividade policial pode ser dividida em três domínios,
que embora sejam diferentes se adicionam, assim, o policiamento criminal, o
controle regulador e a manutenção da paz figuram aspectos da atividade po-
licial 109.

No mesmo caminho, Dominique Monjardet entende que toda polícia


agrega três tipos de modalidade no exercício de sua força e do seu pod er de
polícia: a polícia da ordem ou polícia de soberania; a polícia criminal e a polí-
cia urbana 110. Todas elas estão presentes no conjunto das forças policiais bra-
sileiras.

Em relação a ação da polícia, Ferrajoli 111 entende que há uma mescla de


dois tipos de ações violentas da polícia: “a que põe e que conserva o direito”.
Ele ainda atenta para uma característica particular da polícia na medida em
que ela participa dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), além
de outros ramos da administração públicas, de forma que eles dependam da
ambiguidade do seu papel bem como de sua colocação institucional.

No Brasil, essa ambiguidade em sua configuração pode ser percebida


facilmente, pois as várias polícias existentes no país ro ndam a comunidade
com o rádio patrulhamento, fazem custódia e escolta de presos temporários e
com sentença transitada e julgada, fazem escolta de dignitários e de valores,
patrulham a malha rodoviária estadual e federal, patrulhamento aéreo, marí-
timo e fluvial, realizam serviço de urgência ou acompanham as organizações

Revista dos Tribunais, 2002. p. 82

109BITTNER, E. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: Edusp, 2003. (Série Polícia e
Sociedade).
110 MONJARDET, D. O que faz a polícia: sociologia da força pública . São Paulo: Edusp,
2003. (Série Polícia e Sociedade).
111 Op cit., p. 615.
49

que o fazem, fazem policiamento ambiental, desenvolvem trabalho de inteli-


gência, perícia, atividade repressiva, investigativa, controle de distúrbio civil,
policiamento em eventos esportivos e musicais de pequeno, médio e grande
porte, desenvolvem trabalhos sociais na área da educação, da assistência soci-
al e saúde, além de outras demandas não elencadas.

Entretanto, Para Ferrajoli 112 no Estado de Direito:

Na lógica do Estado de direito, as funções de polícia deveriam ser


limitadas a apenas três atividades: a atividade investigativa, com res-
peito aos crimes e aos ilícitos administrativos, a atividade de preven-
ção de uns ou de outros, e aquelas executivas e auxiliares da jurisdi-
ção e da administração. Nenhuma destas atividades deveria compor-
tar o exercício de poderes autônomos sobre as liberdades civis e sobre
os outros direitos fundamentais.

O jus filósofo italiano vai mais além e afirma que as diversas atribui-
ções deveriam ser destinadas a corpos de polícia separáveis entre si e organi-
zados de forma independente de forma funcional, administrativa e hierárqui-
ca, sendo que a parte relativa à polícia judiciária deveria ser ligada ao poder
judiciário, inclusive com suas garantias formais, além da inde pendência do
poder executivo a fim de evitar promiscuidade 113.

Em completa consonância com Ferrajoli, Cenci e Bendin 114 ressaltam


que numa Democracia Constitucional o uso das instituições é condicionado
pelos valores e prioridades que garantam os direitos humanos.

Copetti Neto 115 segue o mesmo caminho quando assevera que uma de-
mocracia se assume constitucional quando se encontra em sua essência a rigi-
dez das cartas constitucionais que determinam direitos que não pertencem
somente à maioria, mas a qualquer cidadão.

Ora, para seguir os ditames da Democracia Constitucional, Jean-Claud

112 Ibid., p. 617.


113 Ibid., p. 617.
114 Op cit., p. 241.
115 Op cit., p. 20–26.
50

Monet oferece quatro dimensões, que se assemelham em alguma medida a


proposta de Ferrajoli, para que as organizações policiais tenham por base a
dignidade humana: a) a profissionalização; b) a especialização; c) a politiza-
ção; e a d) reflexão sobre as raízes econômicas e sociais da criminalidade 116.

A profissionalização das polícias é o primeiro passo para se ter uma po-


lícia garantista. Um policial consciente de suas limitações legais e sociais sa-
beria dos riscos que enfrenta com maior resignação, eficiência e tranquilidade
mediante os desafios da segurança pública, os quais retratam a complexidade
das sociedades modernas.

Nesse quesito, Walker, citado por Batitucci, afirma que o esta belecimen-
to de qualificações mínimas para a contratação e o treinamento dos policiais
de linha, além da adoção de princípios da administração científica nessas ins-
tituições contribuiriam para a qualificação policial 117.

Outro fator importante seria a especialização, já que qualquer profissão


possui uma parcela dos seus associados que se distinguem através do apro-
fundamento de determinadas áreas da carreira. A medicina, o direito, e a en-
genharia são bons exemplos dessa realidade. A atividade policial também de-
ve ter sua especialização.

A criação de unidades ou grupos especializados podem enfrentar situa-


ções e tipos de delitos particulares 118, além de aumentar a eficiência da polí-
cia. Nessa mesma linha de pensamento, Reiss Jr., citado por Batitucci, afirma
que o aumento progressivo na especialização de tarefas é consequência do
aumento da complexidade da estrutura organizacional 119. As Rondas Maria da
Penha que realizam trabalho preventivo junto as mulheres vítimas de violên-

116 Op cit., p.
117 WALKER apud BATITUCCI, E. C. A polícia em transição: O modelo profissional -
burocrático de policiamento e hipóteses sobre os limites da profissionalização das polícias
brasileiras. Resvista Dilemas, v. 4, n. 1, p. 65–96, 2011. p. 67.
118 Ibid.
119 REISS JR. Apud BATITUCCI, op. cit., p. 76.
51

cia doméstica, bem como Delegacias especializadas em crimes econômicos são


exemplos dessa especialização que garantem a diversidade social.

A terceira dimensão repousa na politização da polícia. Monet entende


que a politização nas democracias contemporâneas são pontos positivos na
medida em que as polícias compreendem a responsabilidade na definição das
prioridades dos recursos, além de discutir a sua posição na sociedade 120.

Entretanto, Walker, citado por Batitucci, vai um pouco mais além


quando, exemplificando a realidade da polícia dos Estado s unidos na década
de 30, afirma categoricamente que a eliminação da influência política na polí-
cia desenvolveu um novo sentido de missão para a atividade policial – a de
servir a comunidade assumindo uma postura politicamente neutra 121. Esse
ponto ressaltado por Walker coaduna com independência do poder executivo,
por parte da polícia, a fim de evitar promiscuidade.

Essas quatro dimensões propostas por Monet aproximam as instituições


policiais de uma Democracia Constitucional com paradigma garantista. As-
sim, em uma Democracia Constitucional a polícia deve sempre ter em mente
que as suas ações devem ser pautadas na preservação das garantias funda-
mentais, de forma deôntica, de caráter lógico, regulativa, garantista e de legi-
timação social 122, onde, indubitavelmente, ela ajude ao Estado que imponha
suas razões de forma racional e previsível, dentro do limite da lei.

120 Op cit.
121 WALKER apud BATITUCCI, Op cit., p. 66.
122 CADEMARTORI, S. U. DE; STRAPAZZON, C. L. Principia iuris  : uma teoria normativa

do direito e da democracia. Pensar, v. 15, n. 1, p. 278–302, 2010. p. 283.


52

CAPÍTULO 2 - ASPECTOS DA ATIVIDADE POLCIAL NO BRASIL

2.1 A ATIVIDADE POLICIAL NO BRASIL

A atividade policial é imprescindível a existência do Estado moderno,


tanto que todas as nações no globo terrestre possuem polícias regulares. Mo-
net 123 afirma categoricamente que todas as polícias no mundo possuem como
obrigação as mesmas tarefas, organizadas e estruturadas a partir de uma
mesma matriz com algumas variações locais. Nessa linha de pensamento,
Bittner 124 entende que a polícia desempenha uma confusa miscelânea de tare-
fas que varia do trânsito ao contraterrorismo, algo que também é percebido
no território brasileiro com a inúmeras ações policiais.

No Brasil, a atividade policial é regulada pelo artigo 144 da Constitui-


ção Federal, a qual estabelece os tipos de polícia e as suas respectivas ativida-
des.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabi-


lidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes ór-
gãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1o A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, or-


ganizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se
a:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em de-
trimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades
autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja

123 Op. Cit, p. 103.


124 Op. Cit., p. 26.
53

prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija re-


pressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas


afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária
e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fron-


teiras; IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciá-
ria da União.

§ 2o A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e


mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma
da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.

§ 3o A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e


mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma
da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.

§ 4o Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira,


incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia
judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5o Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da


ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribui-
ções definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa ci-
vil125.

A Constituição Federal estabelece 5 diferentes tipos de polí-


cias, onde as polícias Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária federal atuam
no âmbito de todo o território nacional e a as polícias Civil e Militar atuam no
âmbito estadual. Contudo, de forma geral, as polícias se dividem em polícia
administrativa e judiciária com atribuições bem específicas.

2.1.1 A Polícia Administrativa

A polícia administrativa tem como objetivo conter atividade particular


que possam resultar em consequências antissociais, podendo impor prévia
demonstração de sujeição do particular a fim de que ele se enquadre aos di-

125BRASIL. [Cosntituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil . Brasília:


Senado Federal, 2016, p. 90–91.
54

tames da lei 126. Louis Rolland apud Lazzarini, a partir do estudo dos textos ju-
rídicos francês, entende que a polícia administrativa tem como objetivo prin-
cipal assegurar a boa ordem, que é formada pela tranquilidade pública, a se-
gurança pública e a salubridade pública 127. Assim, mais adiante, Álvaro
Lazzarini afirma categoricamente que: “A Polícia Administrativa, propria-
mente dita, é preventiva, regida pelas normas e princípios jurídicos do Direito
Administrativo” 128.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto acrescenta o caráter repressivo da


polícia administrativa quando afirma que este tipo de polícia realiza a pre-
venção e a repressão imediata, tanto em nível individual, quanto no coleti-
vo 129. Nesse sentido, Di Pietro também reforça a possibilidade da repressão
por parte da polícia administrativa ao afirmar que a apreensão da licença para
dirigir do motorista infrator constitui um bom exemplo do caráter repressivo
da polícia administrativa 130.

De forma bem geral, Moreira Neto afirma que:

À polícia administrativa remanescem, portanto, todas as demais for-


mas de atuação preventivas e repressivas, com as suas respectivas
sanções aplicáveis executoriamente sobre a propriedade e atividade
privadas, atuando, apenas excepcionalmente, através do constrangi-
mento pessoal, quando em necessária ação de resposta contemporâ-
nea às transgressões administrativas em curso ou iminentes131.

O próprio autor ressalta que a administração deve sempre preferir agir


preventivamente, de forma antecipada em detrimento da repressão, mas uma

126 MELLO, C. A. B. DE. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2010, p. 833.
127 ROLLAND apud LAZZARINI, A. Limites do poder de polícia. Revista de Direito

Administrativo, n. 198, p. 69–83, 1994, p. 71.


128 Ibid., p. 74.
129 MOREIRA NETO, D. DE F. A segurança Pública na Cosntituição. Revista de Informação

Legislativa, v. 28, n. 109, p. 137–148, 1991, p. 143.


130 DI PIETRO, S. M. Z. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 175.
131 MOREIRA NETO, D. DE F. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro.

ebook: Forense, 2014, n.p.. E-book.


55

vez rompida a paz social, a administração deve aplicar de forma coativa o


poder estatal.

Moreira Neto 132 explica que há um ciclo de polícia administrativa que se


desenvolve em quatro fases: a ordem de polícia, o consentimento de polícia, a
fiscalização de polícia e a sanção de polícia.

Segundo o autor, a ordem de polícia é um princípio legal básico que


permite o início do ciclo de atuação, tendo como referência específica de vali-
dade, atendendo a Constituição Federal em Inciso II do artigo 5º, para que
não haja ação que prejudique o interesse geral ou que não se deixe de fazer
alguma ação que possa ensejar em prejuízo público. Esses pressupostos, de
forma resumida, são “não se faça”, preceito negativo absoluto, e “se não deixe
de fazer”, preceito negativo com reserva de consentimento. Tais modalidades
impõem vários condicionamentos ao exercício de liberdades, de direitos e de
faculdades.

O consentimento de polícia é o ato administrativo de anuência. Ele


permite que o particular utilize a sua propriedade ou o exercício da atividade
privada. Através dele, o legislador exige o controle administrativo antecipa-
damente da compatibilização do uso certo ou do exercício de determinada
atividade em prol do interesse público, que se materializam pelo ato de licen-
ça e autorização outorgados pelo Poder Público.

A fiscalização de polícia tem como função a verificação do cumprimen-


to das ordens emanadas pelas autoridades competentes, tanto nas ordens ve-
datórias que não permitem exceções bem como os seus possíveis abusos do
consentimento nas utilizações dos bens e nas atividades privadas. A fiscaliza-
ção de polícia previne as ações através da observação e prepara a repressão ao
constatar formalmente a existência de atos infratores.

Por último, a sanção de polícia, ocorre quando há falha nas fases ante-

132 Ibid., n.p.


56

riores e há a necessidade de submeter coercitivamente o infrator a medidas


que o inibam e o dissuadam a cometer o ato infracional. Na verdade, Moreira
Neto afirma que a sanção de polícia é um ato unilateral que tem como objeti-
vo assegurar a repressão da infração e restabelecer o ate ndimento público
através de sua aplicação.

É interessante perceber que o conceito de polícia administrativa está in-


timamente ligado ao de polícia de segurança, pois, Cretela Júnior apud Lazza-
rini 133, de forma científica, concluiu que a polícia de segurança tem como pri-
mazia prevenir a criminalidade em relação à incolumidade pessoal, à propri-
edade, à tranquilidade pública e social.

Em relação a ligação íntima dos conceitos de polícia administrativa e


polícia de segurança, Carlo Consonni Folcíeri esclarece que toda atividade
discricionária de prevenção na proteção de qualquer lei limitadora da liber-
dade e penalmente sancionada – polícia de segurança – é pleonasticamente
qualificada de polícia administrativa 134.

Folcíeri pontua que ao lado do conceito genérico de polícia administra-


tiva, não se deve perder de vista que em sentido estrito ela compreende tão
somente a atividade de prevenção referente às leis administrativas sanciona-
das penalmente, a quais se dividem em tantas partes quanto são as leis a que
serve de atuação. Quanto a essas partes, Folcíeri mais uma vez esclarece que:

A principal das referidas partes é a polícia de segurança, orientada a


proteger os bens supremos de ordem pública, da paz e da tranqüili-
dade social; considerada a sua importância preponderante entre os
vários ramos da polícia administrativa muitas das suas normas con-
têm uma série de princípios gerais aplicáveis a qualquer outro ramo
(polícia sanitária, polícia industrial, polícia comercial)135.

O parágrafo 5º da Constituição Federal atribui as polícias militares dos

133 CRETELA JÚNIOR apud LAZZARINI, op. Cit., p. 76.


134 FOLCÍERI apud LAZZARINI,op. Cit., p. 76.
135 Ibid., p. 76
57

estados da Federação a tarefa de proteger os bens supremos de ordem públi-


ca, da paz e tranquilidade social. As polícias militares são instituições respon-
sáveis pelo policiamento ostensivo e preventivo, subordinadas administrati-
vamente aos governos estaduais da Federação, componentes do sistema de
segurança pública, além de forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro.

Elas possuem sua estrutura pautada na hierarquia e disciplina, onde


seus cargos e funções emulam em grande parte a estrutura hierárquica do
Exército Brasileiro divididos em dois estamentos: Praças, que são os policiais
de linha, maioria dos seus quadros, compreendendo as graduações de solda-
do, cabo, sargento e subtenente; já os Oficiais são responsáveis pela coor dena-
ção, fiscalização e direcionamento das instituições militares e compreendem
aos postos de tenente, capitão, major, tenente coronel e coronel. Ambos, Pra-
ças e Oficiais, são denominados de militares estaduais e comandados por um
Coronel da ativa.

As polícias militares do Brasil, em geral, possuem atuação espacial pau-


tada na lógica militar, assim, uma base se reporta a um pelotão, que por sua
vez se reporta a uma companhia, que se reporta a um Batalhão, que se reporta
a um grande comando 136. Reginato 137, descreve a ação da Polícia Militar da se-
guinte forma:

Como regra, a Polícia Militar atua nas ruas, ostensivamente, fazendo


o policiamento preventivo; daí, o fardamento, a caracterização das vi-
aturas e, muitas vezes, a exibição de armas, uma clara demonstração
da presença do Estado. É a Polícia Militar responsável não só pela
prevenção, como também pela repressão – caracterizada pela inter-
venção direta nos conflitos para evitar a consumação do delito – e pe-
las prisões em flagrante.

136 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO (PMESP). Manual básico de


policiamento ostensivo da Polícia Militar. 3. ed. São Paulo: Setor Gráfico do CSM/MIn,
1997, p. 18.
137 REGINATO, A. D. A. O (sub)sistema de segurança pública: práxis e perspectivas. In:

Polícia e Democracia: desafios à educação em direitos humanos . Recife: Edições Balanço,


2002, p. 261.
58

Lazzarini 138 afirma que a Polícia Militar possui a competência Constitu-


cional irremovível de Polícia de Preservação da Ordem Pública, uma exterio-
rização da polícia administrativa quando previne a desordem, mantém a or-
dem pública em seus mais variados aspectos, agindo na prevenção da práti ca
delituosa em sentido amplo, controlada e fiscalizada pela autoridade judiciá-
ria competente, com o controle externo do Ministério Público, porém sem in-
terferência administrativa.

Um ponto digno de registro, reside na afirmação de Moreira Neto 139 ao


dizer que há dois motivos em utilizar o termo “ostensividade” como nomen-
clatura da especialidade. Primeiramente, serviria para estabelecer exclusivi-
dade constitucional a esse tipo de policiamento. O segundo motivo repousa
na expansão da competência policial das polícias militares, que vão para além
do policiamento ostensivo.

Em completa concordância com Moreira Neto, Lazzarini 140 expõe essa


ampliação da seguinte forma:

Como Polícia de Preservação da Ordem Pública, à Polícia Militar não


só cabe o exercício da Polícia Ostensiva, como também cabe-lhe a
competência residual de exercício de toda atividade policial de segu-
rança pública não atribuída aos demais órgãos elencados taxativa-
mente no art. 144 da Constituição de 1988, o que engloba, inclusive, a
competência específica de tais órgãos policiais, no caso de falência
operacional deles, a exemplo de suas greves ou outras causas, que os
tomem inoperantes ou ainda incapazes de dar conta, eficazmente, de
suas atribuições constitucionais. A Polícia Militar, como força pública
que é, constitui o órgão de preservação da ordem pública para todo o
universo da atividade policial em tema de ordem pública e, especifi-
camente, de segurança pública, cabendo-lhe, inclusive, a investigação
policial militar preventiva, conforme concluiu o Egrégio Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, pela sua Colenda Quarta Câmara
Criminal, ao referendar a missão que policial militar desenvolvia, em
trajes civis, e que culminou na prisão de traficantes de entorpecentes.

138 Op. Cit., p. 77.


139 Moreira Neto, 1991, p.146.
140 Op. Cit., p. 77.
59

No Brasil, a polícia administrativa faz parte do trabalho policial, caben-


do a polícia judiciária o restante da ação policial.

2.1.2 Polícia Judiciária

A polícia judiciária tem como função reprimir as ações dos delinquentes


através da instrução policial criminal e prisão dos infratore s da lei penal 141.
Entrementes, Moreira Neto informa que além das apurações das infrações pe-
nais, acrescenta a garantia do cumprimento das decisões judiciárias 142.

Di Pietro 143 assinala que embora a polícia judiciária seja repressiva, no


tocante ao indivíduo infrator da lei penal, também possui aspectos preventi-
vos em relação ao interesse geral da sociedade no momento em que a punição
é um fator de alerta para que o indivíduo não volte a repetir a mesma infra-
ção.

Álvaro Lazzarini 144 diferencia a polícia judiciária da polícia administra-


tiva na ocorrência ou não de um ilícito penal, pois quando se atua na área do
ilícito de forma puramente administrativa, a polícia é administrativa, mas
quando o ilícito penal é praticado, cabe a polícia judiciária agir.

Moreira Neto 145 apresenta uma distinção que acrescenta o fator humano
a equação.

Assim, comete-se à polícia judiciária uma atuação predominantemen-


te voltada às próprias pessoas e relacionada, de modo especial, com o
específico valor contido na liberdade de ir e vir, enquanto que, de
modo bem mais amplo, à polícia administrativa refere-se à atuação
voltada às atividades das pessoas, assim relacionada, de modo geral,
a todos os demais valores informadores do gozo socialmente compa-
tível de suas liberdades e direitos fundamentais.

141 Mello, op. Cit, p. 833.


142 Moreira Neto, 2014, p. n.p.
143 Di Pietro, op. Cit, p. 125.
144 Lazzarini apud Di Pietro, op. Cit., p. 125.
145 Moreira Neto, 2014, p. n.p.
60

Percebe-se que a polícia judiciária alude ao exercício do poder Estatal,


procurando responsabilizar aqueles que vão de encontro a ordem jurídica. En-
tretanto, Busnello 146 apresenta um conceito mais completo que consegue tra-
duzir a essência da polícia judiciária no Brasil.

Atividade Estatal de investigação criminal e apuração de infrações


penais, que envolve a coleta e a produção de provas aptas a demons-
trar, ao final de um procedimento preparatório, legalmente previsto e
legitimado pelo respeito às garantias correspondentes, conduzido por
uma Autoridade Policial constituída e previamente investida no car-
go, a autoria e a materialidade, ou as circunstâncias do não cometi-
mento, das respectivas infrações penais.

André Nicolitt 147 lembra, acertadamente, que o termo polícia judiciária


foi importado do sistema português e utilizado erroneamente na tradição bra-
sileira, pois, em Portugal, o Ministério Público, destinatário da atividade poli-
cial, faz parte do sistema judiciário, diferentemente do Brasil onde a ativid ade
investigatória não se destina ao judiciário, mas ao Ministério Público brasilei-
ro que é uma instituição independente do judiciário.

O doutrinador 148 afirma que a polícia judiciária não é uma corporação


como a Polícia Militar ou a Polícia Federal, mas uma função do Estado que
pode ser atribuída a outras instituições policiais, a exemplo das já menciona-
das. Assim, tanto a PM quanto a PF podem exercer atribuições de polícia judi-
ciária conforme os limites dados pela Constituição Federal.

No Brasil, cabem as polícias civis dos estados e a Polícia Federal a tare-


fa precípua de polícia judiciária. Tais polícias são instituições responsáveis
pela apuração das infrações penais, subordinadas administrativamente aos
governos estaduais da Federação, no caso da Polícia Civil, e subordinada ao

146 BUSNELLO, P. D. C. A atividade de polícia judiciária no Brasil: bases e fundamentos


de legitimidade. 2017. Tese (Doutorado em Direito) Programa de Pós-Graduação em
Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, 2017, p. 114.
147 NICOLITT, A. L. Manual de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2016, p. 175.


148 Ibid., p. 176–78.
61

Governo Federal, através do Ministério da Justiça, no caso da Polícia Federal.


Ambas são componentes do sistema de segurança pública e possuem hierar-
quia não militarizada dividida em agentes, investigadores, escrivães, peritos e
delegados, cada instituição comandada por um Delegado Geral. Os quatro
primeiros cargos produzem elementos que possibilitam ao delegado conduzir
o Inquérito policial. A lógica de atuação espacial dessas organizações é base-
ada na setorização através das Delegacias, especializadas ou não especializa-
das, que se reportam as Delegacias Regionais.

Silva Filho 149 define a Polícia Civil da seguinte forma:

Como organização especializada em investigação, a Polícia Civil tem


funções importantes nas etapas preventivas da redução de homicí-
dios, como buscar, sem trégua, a prisão dos principais matadores e
rastrear homicidas em potencial, incluindo a vigilância de comprova-
dos agressores que estejam em regime de prisão aberta ou liberdade
condicional e que residam ou circulem pela área.

Para atingir tal objetivo, a polícia judiciária atua na conformidade da


legislação processual penal, e para tanto se utiliza do inquérito policial como
seu principal instrumento. Segundo Tourinho Filho 150, o inquérito policial é
“o conjunto de diligências realizadas pela Polícia Judiciária para a apuração
de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal pos-
sa ingressar em juízo”.

Nicolitt 151 lembra que o inquérito policial tem natureza administrativa,


sendo, na verdade, um procedimento administrativo que deverá ser encami-
nhado ao juiz competente após a sua conclusão. Segundo o autor, o inquérito
policial possui dupla natureza, a garantista, que evita uma acusação injust a, e

149 SILVA FILHO apud RODRIGUES, M. P. R. Gestão da polícia militar: a cultura


institucional como agente limitador da construção de uma polícia cidadã. 2010. (Mestrado
em Gestão Empresarial) Programa de Pós-Graduação da Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2010, p. 59.
150 TOURINHO FILHO, F. DA C. Processo Penal. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 240.
151 Nicolitt, 2016, p. 192.
62

a utilitária, que preserva meios de prova.

No ordenamento jurídico brasileiro a atividade da polícia judiciária


complementa a atividade de polícia administrativa. Nos estados, as polícias
civis e militares realizam trabalho que se complementam, ou que pelo menos
deveriam se complementar com harmonia, mas a falta de integração entre as
instituições impacta a segurança pública no país.

2.2 A SEGURANÇA PÚBLICA

2.2.1 O aspecto jurídico da Segurança Pública

A segurança pública tem sido um dos principais desafios do Estado


brasileiro ao longo do tempo e nos últimos anos tem sido motivo de singular
preocupação por parte da sociedade e suas instituições. Seja na mídia, na polí-
tica ou nos mínimos afazeres do cidadão, lá está a segurança pública no palco
da discussão. Prova disso é que a pesquisa publicada pelo Instituto Ipsos 152,
em meados de 2019, revelou que o crime e violência eram as maiores preocu-
pações dos brasileiros, sendo que no plano global a maior preocupação ficou a
cargo do desemprego. Essa preocupação é compreensível ao se analisar o re-
trospecto de homicídios no Brasil desde a década de 70, conforme demonstra
o Gráfico 01.

A pesquisa revelou que no Brasil 47% dos entrevistados se preocupavam com crime e se-
152

gurança, 46% com saúde, 39% com desemprego, 38% com a corrupção e 36% se declararam
preocupados com a educação. Cf. IPSOS. What Worries the World - Maio 2019. Mar. 2017.
Disponível em:<https://www.ipsos.com/sites/default/files/ct/news/documents/2019 -
07/brazil_what_worries_the_world_may_2019.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2020.
63

Gráfico 1 - Evolução dos Homicídios no Brasil.


70.000
65.602
60.000 60.474

53.016
50.000
48.136
45.433
40.000
37.152
30.000 32.015

20.000 19.748

10.000 11.217

0
1979 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2014 2017

Fonte: Ipea 153.

O gráfico 1, disponibilizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Apli-


cada (Ipea), revela o aumento vertiginoso e contínuo dos homicídios no Bra-
sil. Um salto de 11.217 mortes em 1979 para 65.602 em 2017. É perceptível o
aumento acentuado dos números de homicídio já na transição da década de
80 para 90, os quais mais que dobraram nesse lapso de tempo, alcançando
45.433 no ano 2000 e chegando a impressionante marca de 65. 602 homicídios
no ano de 2017.

Um olhar despretensioso, talvez, não compreenda a dimensão do pro-


blema da segurança pública no Brasil, entretanto, ao fazer uma rápida compa-
ração dos dados existentes com outros conflitos armados, ter-se-á uma boa
noção do drama brasileiro. Segundo o relatório do Human Rights Watch 154, o
Banco Mundial estima que a Guerra da Síria, um dos maiores conflitos arma-

153 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA ( Ipea). Homicídios. [2019?]


Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados -series/17>. Acesso em: 24
maio. 2019.
154 ROTH, K. Syria Events of 2017. Human Rights Watch. [New York]. [2018?]. Disponível

em: <https://www.hrw.org/pt/world-report/2018/country-chapters/312911>. Acesso em:


15 jun. 2020.
64

dos do planeta atualmente, produziu, aproximadamente, 400 mil mortos entre


2011, do seu início até 2017. Ao somar os dados disponíveis no gráfico da fi-
gura 1, disponibilizados pelo Ipea 155, no mesmo período, chegar-se-á ao nú-
mero de 414. 921 mortos. Conclui-se que no Brasil em tempo de “paz”, morre-
ram mais pessoas do que na Síria devastada pela guerra.

O número de homicídios é importante e o mais emblemático para a se-


gurança pública, mas não é a sua única variável. O quadro se apresenta ainda
mais complicado quando se insere outras variáveis que vão além do homicí-
dio. Dados recentes do Anuário da Segurança Pública, publicado pelo Fórum
de Segurança Pública, referente aos dados de 2018, dão uma ideia do desafio a
ser transposto pela sociedade Brasileira.

Segundo o Anuário 156, foram 112.489 armas apreendidas, 12.285 armas


legais roubadas ou extraviadas, 22.334 registros de roubos de carga, 490.956
veículos roubados ou furtados, 263.067 casos de lesão corporal dolosa contra
mulheres, 66.041 registros de estupros, 726.354 pessoas encarceradas, 8.054
diretores de escolas vítimas de atentado a vida, 36.503 professores ameaçados
pelos próprios alunos e 82.094 reportados às Polícias. Um verdadeiro caos que
precisa ser resolvido através das regras consagradas pela Constituição Fede-
ral.

Não obstante ao caos estabelecido na segurança pública nacional fica a


pergunta: o que é segurança pública? A Constituição Federal 157, em seu artigo
144, diz que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade
de todos, além de ser exercida para a preservação da ordem pública e da inco-
lumidade das pessoas e do patrimônio. Percebe-se que o conceito de seguran-
ça pública está intrinsecamente ligado ao de ordem pública. Não há dúvidas

155Ipea, 2019, op cit.


156 BUENO, S.; LIMA, R. S. de. Anuário brasileiro de segurança pública 2019. São Paulo:
FBSP, 2019.
157 BRASIL. [Cosntituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:

Senado Federal, 2016, p. 90.


65

etimológicas ou conceituais no tocante a incolumidade das pessoas e do pa-


trimônio resguardados pela segurança pública, o que já não é uma verdade
em relação a ordem pública.

Realmente, o conceito de ordem pública é um tanto vago. Celso Antônio


Bandeira de Mello afirma que o conceito de ordem pública contempla impre-
cisão, carecendo de indeterminação objetiva, afirmação convergente ao pen-
samento do jurista francês Jean Rivero 158, citado por Lazzarini, que também
entende o conceito de ordem pública como indeterminado.

Moreira Neto acrescenta luz ao conceito quando define ordem pública


como “disposição pacífica e harmoniosa da convivência pública , conforme os
princípios éticos vigentes na sociedade” 159. O autor assinala que a lei não é o
único balizador do conceito, o que não satisfaria os princípios democráticos,
exigindo além da legalidade e da legitimidade, também a dimensão moral.
Assim, Moreira Neto 160 resume a ordem pública como “uma situação de con-
vivência pacífica e harmoniosa da população, fundada nos princípios éticos
vigentes na sociedade”.

Lazzarini explica que a noção de ordem pública só pode ser de cunho


nacional, que tem mais facilidade em ser sentida que definida 161. O referido
autor, citando Salvat 162, informa que a ordem pública é resultado de um con-
junto de princípios de ordem superior, pautados nos princípios políticos,
econômicos, morais e em determinados momentos até religiosos, vinculada à
existência e conservação da organização estabelecida.

Dessa forma, Lazzarini afirma que a ordem pública é formada por mí-

158 RIVERO apud LAZZARINI, A. Limites do poder de polícia. Revista de Direito


Administrativo, n. 198, p. 69–83, 1994, p.71.
159 MOREIRA NETO, D. de F. A Segurança Pública na Cosntituição. Revista de Informação

Legislativa, v. 28, n. 109, p. 137–148, 1991, p.141.


160 Ibid., p. 142.
161 Ibid., p. 71.
162SALVAT apud LAZZARINI, A. Limites do poder de polícia. Revista de Direito

Administrativo, n. 198, p. 69–83, 1994, p.71.


66

nimas condições essenciais a convivência em sociedade, tais como a segurança


dos bens e das pessoas, `a salubridade e a tranquilidade , incluindo, também,
aspectos econômicos e estéticos. Por fim, Lazzarini resume ordem pública a
uma situação de fato oposta a desordem, essencialmente de natureza material
e exterior 163. Após compreender o conceito de ordem pública, retornemos a
discutir o conceito de segurança pública.

Moreira Neto lembra que a segurança se apresenta de forma instrumen-


tal para a ordem, no sentido de ordem jurídica do sistema legal, pois os fenô-
menos sociais são conflitantes e não raro passam por imprevisíveis mutações,
o que exige a imposição de mínima previsibilidade, estabilidade e de ordem.
A segurança, então, surge como uma garantia de salvaguarda a indivíduos,
grupos, nações, Estados, e organizações de Estados que ofereçam perigo à
existência e ao progresso do próprio Estado 164.

O autor pontua que há dois tipos de inseguranças que concorrem contra


o progresso da sociedade, a insegurança estática e a insegurança dinâmica. A
primeira gera obstáculos ao império da ordem, manifestando-se independen-
temente da vontade humana, a exemplo da miséria, epidemias, os desastres
naturais, as crises econômicas cíclicas, dentre outras manifestações. Já a se-
gunda, é resultado de comportamentos voluntários, de forma mediata ou
imediata, à subversão da ordem, através da ameaça, agressão ou contestação
de valores, caracterizados genericamente de antagonista 165.

Moreira Neto destaca que a segurança do Estado pode ser externa, de-
fendida pela diplomacia e pelas atividades operativas de defesa das Forças
Armadas, e interna, correspondente a segurança pública, que em última ins-
tância é defendida pelas Forças Armadas, mas que comumente é uma ativida-

163 Ibid., p. 72.


164 MOREIRA NETO, D. de F. Curso de direito administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro. E-
book: Forense, 2014, n.p.
165 Moreira Neto, n.p.
67

de administrativa de polícia, através dos desdobramentos institucionais fede-


ral e estaduais, com ou sem o emprego da coerção pessoal de caráter privativo
da justiça pública 166. A segura pública, então, segundo Moreira Neto, estaria
no âmbito da segurança interna, voltada para a ordem pública.

Mário Pessoa e De Plácido e Silva, citados por Lazzarini, conceituam


segurança pública de forma convergente as explicações de Moreira Neto, con-
forme trecho abaixo.

Segurança pública, aspecto dos mais polêmicos, em verdade é um es-


tado antidelitual, que resulta da observância dos preceitos tutelados
pelos códigos penais comuns e pela lei das contravenções penais, com
ações de polícia preventiva e repressivas imediatas típicas167, afastan-
do-se, assim, por meio de organizações próprias, de todo perigo, ou
de todo mal que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida,
da liberdade ou dos direitos de propriedade das pessoas, limitando
as liberdades individuais, estabelecendo que a liberdade de cada pes-
soa, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode ir além
da liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a168.

Moreira Neto, seguindo a definição de ordem pública explicitada ante-


riormente, acrescenta ao conceito de segurança pública a “convivência pacífi-
ca e harmoniosa da população, fundadas nos princípios éticos vigentes na so-
ciedade” 169, submetendo-se aos mesmos condicionamentos da ordem pública,
sua finalidade legal, legítima e moral. O aspecto político da segurança pública

A relação da segurança pública com a política sempre foi estreita, rele-


vante e em muitos casos contraditória, seja na micro política, em reiteradas
tentativas de influenciar as forças policiais, não por acaso que Samuel Wal-
ker 170 cita a eliminação da influência da política nos órgãos de aplicação da lei

166 Moreira Neto, n.p.


167PESSOA apud LAZZARINI, op. cit., p. 72.
168 DE PLÁCIDO E SILVA apud LAZZARINI,op. cit., p. 72.
169 MOREIRA NETO, D. de F. A Segurança Pública na Cosntituição. Revista de Informação

Legislativa, v. 28, n. 109, p. 137–148, 1991, p. 142.


170WALKER apud BATITUCCI, E. C. A polícia em transição: O modelo profissional -

burocrático de policiamento e hipóteses sobre os limites da profissionalização das polícias


brasileiras. Revista Dilemas, v. 4, n. 1, p. 65–96, 2011, p. 66.
68

como o fator importante para renová-la, seja através da macro política, na im-
plementação de políticas públicas que impactam a segurança pública . Não há
dúvidas que a macro política também possui seus impactos na segurança pú-
blica. Moreira Neto 171, por exemplo, afirma categoricamente que “o Estado
brasileiro é o grande responsável pelo sério problema de segurança pública
que defrontamos em todo quadrante do país”.

O autor justifica esse posicionamento através da história, pois, segundo


ele, a sociedade industrial gerou dois grandes problemas: o aumento descon-
trolado da população e a desordenada concentração urbana. Esses dois fatores
aliados a provocação do consumo e a exploração da miséria criou um quadro
propício para o crescimento da violência, porquanto o Estado brasileiro teve
oportunidades de realizar políticas públicas nessas áreas, mas preferiu con-
centrar esforços na economia, o que ele denomina de más decisões dos gover-
nos 172.

Souza Neto cita políticas públicas irresponsáveis no campo da assistên-


cia social, no setor tributário e de infraestrutura sanitária, além da mais trági-
ca das omissões: a educação. O resultado concreto desse direcionamento das
políticas públicas – ou a falta delas - pode ser mensurado pela Pesquisa Naci-
onal por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes aos dados de 2018, a
qual informa que o rendimento médio mensal de 1% da população mais rica
foi cerca de 34 vezes maior ao rendimento dos 50% mais pobres, onde “um
décimo da população concentra 43,1% da massa de rendimento médio mensal
real domiciliar per capita” 173.

171 MOREIRA NETO, D. de F. A Segurança Pública na Cosntituição. Revista de Informação


Legislativa, v. 28, n. 109, p. 137–148, 1991, p. 137.
172 Moreira Neto, op. cit., p. 137.
173 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA ( IBGE). PNAD Contínua

2018: 10% da população concentram 43,1% da massa de rendimentos do país . [Rio de


Janeiro]. 2019. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia -sala-de-
69

Esses números possuem impacto direto na segurança pública, como po-


dem confirmar Cerqueira e Lobão, ao observarem o aumento dos homicídios
em São e Rio de Janeiro entre os anos de 1986 e 1993, conforme o trecho abai-
xo.

São Paulo, observou-se uma tendência de crescimento das taxas de


homicídios até 1984, estacionaram até 1994, quando voltaram a apre-
sentar uma tendência crescente. Exatamente nesses dois períodos
houve uma deterioração maior dos indicadores sociais. Já o Rio de
Janeiro apresentou uma relativa constância da taxa de homicídios até
1986, quando observou-se uma tendência crescente (o ano de 1992 foi
atípico) que seguiu até 1995, quando essa taxa pareceu manter-se
num mesmo patamar, desde então. Surpreendentemente, pode-se ob-
servar que o período de grande deterioração das condições sociais no
Rio de Janeiro, em termos do número e proporção de pobres e indi-
gentes e em termos da renda per capita, se deu também entre 1986 e
1993, tendo o número de pobres crescido em cerca de 1 milhão de
pessoas (de 0,5 milhão para 1,5 milhão de indivíduos, ou de pouco
mais de 2% para pouco mais de 4% da população)174.

Observando o trecho acima, pode se constatar que São Paulo e Rio de


Janeiro são bons exemplos que demonstram o quanto as ações na segurança
pública devem levar em conta a relação dos indicadores sociais com a violên-
cia a fim de combater a criminalidade de forma eficiente. Gabriela Lotta, ao
realizar estudos sobre os pressupostos e focos analíticos dos estudos sobre
implementação de políticas públicas, ao tratar do seu quinto pressuposto, “a
política como ela é”, explica que esse pressuposto se destina a propor e en-
tender como de fato a política pública acontece e não como ela deveria funci-
onar, propondo o desvendamento dos processos decisórios da forma como
eles ocorrem, envolvendo os atores que fazem parte desse processo na reali-

imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25700-pnad-continua-2018-10-da-populacao-
concentram-43-1-da-massa-de-rendimentos-do-pais>. Acesso em: 20 jun. 2020a.
174 CERQUEIRA, D.; LOBÃO, W. Criminalidade, ambiente socioeconômico e polícia:
desafios para os governose polícia : desafios para os governos. RAP, v. 38, n. 3, p. 371–399,
2004, p.376.
70

dade 175.

Nesse sentido, não há como desvendar os processos decisórios sem uma


criteriosa coleta de dados com monitoramento constante e posterior avaliação
das informações levantadas. Na verdade, o procedimento de coleta de dados e
posterior avaliação parece ser um tanto óbvio para a administração pública,
porém, no Brasil, principalmente ao que concerne à segurança pública não pa-
rece tão óbvio assim.

Essa realidade pode ser constatada ao se analisar os dados fornecidos


pelo Anuário de Segurança Pública referentes aos homicídios. Segundo o
anuário, em relação a 2017 houve uma redução de 10,8% em 2018, sendo que
nas capitais houve uma redução de 25,7% 176. Apesar da boa notícia, a falta de
dados torna difícil saber qual ação proporcionou essa queda, conforme citação
abaixo.

O Brasil não tem a prática de documentar, monitorar e avaliar as polí-


ticas setoriais, o que poderia contribuir para estimular o que deu cer-
to, evitar o que deu errado e tornar sustentáveis no tempo as redu-
ções nos indicadores criminais. Vamos atuando pelo improviso e pelo
grito daqueles que se pretendem valentes. Os ganhos obtidos são ab-
duzidos pelo populismo eleitoral, sem nenhuma base de realidade.
Não conseguimos isolar o quanto a ação pública, nacional ou subna-
cional, contribuiu para o cenário atual, bem como qual o efeito de di-
nâmicas da cena criminal e/ou de variáveis socioeconômicas, demo-
gráficas e espaciais. E, nesse processo, à semelhança de 2014, viramos
presas fáceis dos discursos eleitorais, que mais do que nunca estão
tomados de ódio e falta de informações que possam dar racionalida-
de ao debate público177.

A inexistência de metodologias sérias na coleta, análise de dados e pos-


terior avaliação que possam de fato mensurar a realidade, verificar a “política
pública como ela é” e não como deveria ser dificulta a produção de aborda-

175 LOTTA, G. Teorias e análises sobre implementação de políticas públicas no Brasil.


Brasília: Enap - Escola Nacional de Administração Pública, 2019 , p. 20–21.
176 BUENO, S.; LIMA, R. S. de. Anuário brasileiro de segurança pública 2019. São Paulo:

FBSP, 2019, p. 8.
177 Bueno e Lima, Ibid., p. 12.
71

gens que permitam reproduzir as boas iniciativas que tenham sido exitosas.
Com isso, perde-se a oportunidade de produzir um debate produtivo a acerca
da segurança pública, deixando espaço para que as falácias oportunistas que
turvam o debate público, principalmente ao debate da concepção de seguran-
ça pública existente no país, que vão influenciar diretamente nas abordagens
policiais.

2.2.2 As concepções de Segurança Pública

Não há dúvidas que o artigo 144 da Constituição Federal de 1988 define


a segurança pública e atribuições aos entes estatais para que possam agir em
nome do Estado, porém, como afirma Souza Neto 178, esta legitimação deve es-
tar em conformidade com os princípios de todo o sistema constitucional, tais
como a democracia, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, além dos di-
reitos fundamentais consagrados pelo direito ocidental e recepcionados pela
Carta Magna, a exemplo do direito à vida, a liberdade, a igualdade e a segu-
rança.

Vale ressaltar que este pensamento coaduna com o posicionamento de


Ferrajoli 179, pois para ele a constituição consiste num sistema de regras no
plano substancial e formal, tendo como destinatário o próprio povo , os quais
representam o aperfeiçoamento do Estado de direito através do princípio da
legalidade que alcança todos os poderes, inclusive o legislativo. Essa concep-
ção é de extrema importância, pois evita o risco do artigo 144, até mesmo pela
imprecisão da terminologia correlata a ordem pública, ser direcionado para
tendências autocráticas que não representem o seu espírito democrático ali-
nhado à preservação dos direitos fundamentais.

178 SOUZA NETO, C. P. de. A segurança pública na Constituição Federal de 1988:


conceituação constitucionalmente adequada, competências federativas e órgãos de execução
das políticas. Revista Diálogo Jurídico, n. 17, p. 1–61, 2007, p. 3.
179 FERRAJOLI, L. Democracia y Garantismo. Madri: Trotta, 2008, p. 32.
72

Nesse diapasão, apesar das garantias dos direitos fundamentais conso-


lidados pela Constituição de 1988, Souza Neto identifica duas principais e an-
tagônicas concepções de segurança pública após a reabertura democrática.

A primeira é focada na visão do combate. As polícias encaram a segu-


rança pública de forma bélica voltada para o engajamento de guerra. É co-
mum o criminoso ser visto como “inimigo”, as favelas ou periferias serem vis-
tas como “territórios hostis” que precisam ser “ocupados” pelo “poder mili-
tar”. As estratégias são focadas nas regras de engajamento de um conflito bé-
lico e procuram obter o controle social, em uma política de emergência. Na
lógica da guerra as perdas civis são aceitáveis, transformando-as em danos
colaterais, instaurando o direito penal do inimigo 180. Sobre o direito penal do
inimigo, Luigi Ferrajoli 181 afirma ser uma negação do direito penal em sua
mais íntima essência, pois se trata de uma lógica de guerra, que já é, em si,
uma negação do direito. Souza Neto 182 ressalta que essa visão de segurança
pública é oriunda do regime de exceção vivido pelo Brasil em 64 e ampliado
no plano internacional após o ataque as torres gêmeas do Word Trade Center,
em New York, em 11 de setembro de 2001.

No tocante ao regime de exceção vivido pelo Brasil em 64, Moema Du-


tra Freire entende a segurança pública como um paradigma de Segurança Na-
cional, onde eram priorizados a defesa do Estado e a ordem política e social,
de forma que o interesse nacional era definido pelas elites no poder com a jus-
tificativa do uso da força sem medidas e a qualquer custo para a manutenção

180 Souza Neto,op. cit., p. 4.


181 O direito penal do inimigo foi concebido pelo jurista alemão Günter Jakobs. Para Ferrajoli
a concepção do terrorista, do delinquente como inimigo tem a capacidade de comprometer
todas as garantias do direito penal, desde o princípio da legalidade, da cul pabilidade, até a
presunção de inocência ao ônus da prova e os direitos de defesa. Uma das razões apontadas
por Ferrajoli para considerar o direito penal do inimigo uma contradição, reside no fato do
direito penal ser um instrumento por meio do qual as re lações de convivência passam do es-
tado selvagem para o estado civil, onde cada pessoa é reconhecida individualmente , de
forma que a pena é a negação vingança, da mesma forma que o direito é a negação da guer-
ra. Cf FERRAJOLI, L. Democracia y Garantismo. Madri: Trotta, 2008, p. 235-241.
182 Souza Neto, op. cit., p. 5.
73

da ordem 183.

Freire lembra que o endurecimento do regime de 64 acrescentou o ini-


migo interno a doutrina da Defesa nacional ungindo como suspeito qualquer
cidadão que fosse contra a “vontade nacional” 184.

Ainda na perspectiva do combate, com a Constituição de 1988 houve a


migração do paradigma de Segurança Nacional para o de Segurança Pública,
onde o texto constitucional impunha a segurança pública como dever do Es-
tado, porém com a responsabilidade de todos. Entretanto, Freire pontua que
há um destaque para as instituições policiais federais e estaduais sem estabe-
lecer o papel de outras instituições do governo na prevenção da violência nem
tão pouco a atuação dos municípios nesse processo 185.

A segunda concepção de segurança pública é voltada para a prestação


de serviço público pelo Estado, tendo o cidadão como destinatário desse ser-
viço. Nesse contexto, as polícias não lutam contra o “inimigo”, elas prestam
um serviço que serve ao cidadão. A polícia não discrimina, não faz duvidosas
distinções discricionárias, pois ela está inserida no contexto democrático, e
como tal, respeita os direitos fundamentais do cidadão. Esta concepção de se-
gurança pública valoriza a participação da comunidade e a transparência ins-
titucional, enfatizando a coesão social, a cooperação e a participação de todos
os atores sociais. A segurança pública, nesse caso, volta-se para a prevenção
com cuidadosa avaliação de riscos e da investigação criminal criteriosa 186.

Freire associa essa segunda concepção como um paradigma da Segu-


rança Cidadã, que surgiu na América Latina na segunda metade dos anos 90 ,
tendo como princípio a implementação integrada de políticas setoriais no ní-
vel local, iniciado na Colômbia como forma de prevenção e controle da crimi-

183 FREIRE, M. D. Paradigmas de Segurança no Brasil : da Ditadura aos nossos dias. Aurora,
v. III, n. 5, 2009, p. 50.
184 Ibid., p. 51.
185 Ibid., p. 51.
186 Souza Neto, op. cit. p.6.
74

nalidade 187.

Freire lembra que nesse paradigma de segurança pública há a necessi-


dade de envolvimento das várias instituições de segurança pública e da soci-
edade civil a fim de implementar ações planejadas a partir de problemas iden-
tificados como prioritários na área da educação, saúde, lazer, esporte e cultu-
ra e cidadania, dentre outras 188. Percebe-se que tais concepções são antagôni-
cas e certamente terão resultados diversos na sociedade.

Souza Neto exemplifica essas concepções de segurança pública com po-


líticas públicas implementadas pelos Governos de São Paulo e Rio de Janeiro
nos anos 90.

No Rio de Janeiro, a política de segurança era comandada por um ge-


neral, que instituiu a gratificação por bravura (apelidada de ‘gratifi-
cação faroeste’). Se o policial se envolvia em confronto armado, era
gratificado pecuniariamente. O resultado foi o aumento da truculên-
cia policial e a simulação reiterada de situações de confronto, com a
elaboração de ‘autos de resistência’ fraudulentos. Em São Paulo, a Se-
cretaria de Segurança instituiu o PROAR (Programa de Acompanha-
mento de Policiais Envolvidos em Ocorrência de Alto Risco). Quando
o policial se envolvia em confrontos, era afastado das ruas e submeti-
do a tratamento psicológico; não recebia qualquer tipo de gratificação
por bravura. O objetivo da política era reduzir o arbítrio de autorida-
des policiais e circunscrever o uso da força aos casos de necessidade
efetiva189.

O fragmento acima demonstra que o governo carioca se pautou numa


visão beligerante, ancorada na lógica da guerra, enquanto o governo paulista
se pautou na visão de serviço estatal, atuando de forma preventiva e direcio-
nada para a prestação do serviço à comunidade.

É importante salientar que o discurso das autoridades brasileiras ao


longo dos últimos 20 anos tem sido no sentido da segunda concepção, a da
prestação de serviço. O Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) dos anos

187 Freire, op. cit., p. 52.


188 Ibid., p.52.
189 Souza Neto, op. cit., p. 7.
75

2000, foi a base para estabelecer uma visão de Segurança Pública Nacional, e,
nele, já se assinalava a preocupação com questões sociais, algo inovador para
a época, conforme se evidencia a seguir.

Nesse sentido, é importante ressaltar que a ênfase em alguns com-


promissos de segurança propriamente ditos, não reduz a importância
dos compromissos relativos a Políticas Sociais e Ações Comunitárias
que estarão perpassando todo o conjunto de ações e propostas deste
documento, em face de sua importância para que, de fato, um novo
patamar de segurança pública para o País seja alcançado190.

O 11º compromisso do plano, que trata do programa nacional de direi-


tos humanos, concentrou esses compromissos com políticas sociais e ações
comunitárias. O discurso perdurou até o último PNSP, no governo de Michel
Temer, com inclinação mais liberal e enfoque na governança.

O Brasil vem experimentando dificuldades, no entanto, na implemen-


tação de políticas públicas, cujas raízes residem muito mais na forma
e nos mecanismos de articulação e coordenação federativa (entre ní-
veis de governo) e republicana (entre órgãos de Estado e Poderes) do
que na ausência de iniciativas. Dito de outra forma, o país precisa se
voltar para a atualização (a otimização) dos mecanismos de gover-
nança do sistema de segurança pública e justiça criminal, de modo a
conferir máxima efetividade, eficácia e eficiência aos esforços que
vêm sendo feitos, com vista a interromper o ciclo de medo e violência
que desafia o Poder Público e acua a sociedade. Tudo isso em um
contexto de promoção e proteção dos direitos humanos e de satisfa-
ção dos princípios, diretrizes e objetivos fixados na Lei nº 13.675, de
2018191 (grifo nosso)192.

190 BRASIL, Ministério da Justiça. Plano Nacional de Segurança Pública. Brasília. 2000.
Brasília. 2000, p. 4. Disponível em:
<https://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/procuradoria_geral/nicceap/legis_arm
as/Legislacao_completa/Plano_Nacional_de_Seguranca_Publica_2000_2002.pdf>. Acesso
em: 22 jun. 2020.
191 Disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pú-

blica, nos termos do § 7º do art. 144 da Constituição Federal; cria a Política Nacional de Se-
gurança Pública e Defesa Social (PNSPDS); institui o Sistema Único de Segurança Pública
(Susp); altera a Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994, a Lei nº 10.201, de 14 de
fevereiro de 2001, e a Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007; e revoga dispositivos da Lei
nº 12.681, de 4 de julho de 2012.
192 BRASIL, Ministério da Segurança Pública. Plano e política nacional de segurança
76

Em ambos os casos há o discurso de cooperação entre a sociedade e po-


der público, o respeito aos Direitos Humanos, ao comunitarismo e uma me-
lhora na qualidade da prestação de serviço.

Entretanto, apesar do discurso, a análise dos gastos com a segurança


pública revela outras prioridades estabelecidas pelos entes federativos, con-
forme tabela abaixo produzida pelo Anuário de Segurança Pública.

Tabela 1 - Despesas realizadas com a Função Segurança Pública 2017 -2018

Fonte: Anuário da Segurança Pública 193.

A Tabela 1 mostra as despesas realizadas com a Segurança Pública nos


anos de 2017 e 2018. Foram gastos em 2018 a vultuosa soma de R$ 91, 2 bi-
lhões de reais, o que corresponde a 1,34% do Produto Interno Bruto (PIB), um
aumento de 3,9% das despesas empenhadas em relação a 2017 194. Ainda se-
gundo o Anuário, o Brasil gasta de R$ 409,66 reais por cidadão. Segundo o
professor Renato Lima, do Departamento de Gestão Pública da Fundação Ge-

pública e defesa social. Brasília: Ministério da Segurança Pública, 2018 , p. 29.


193 BUENO, S.; LIMA, R. S. de. Anuário brasileiro de segurança pública 2019. São Paulo:

FBSP, 2019, p. 150–51.


194 Bueno e Lima, Ibid., p. 156.
77

túlio Vargas (FGV) e Presidente do Fórum de Segurança Pública, o Brasil, em


relação ao PIB, possui gastos equivalente a França, enquanto os Estados Uni-
dos, fora a sua estrutura de combate ao terrorismo, gasta 1% do seu PIB com
Segurança Pública 195.

A Tabela 1 também demonstra que as Unidades da Federação são res-


ponsáveis pela maior parte dos gastos com a segurança pública. Os estados
gastam cerca de R$ 74 bilhões de reais, já os municípios são responsáveis 5,8
bilhões de reais, enquanto a União gastou 11,3 bilhões de reais em 2018. É
possível perceber que há um gasto substancial com as subfunções, R$ 55,8 bi-
lhões em 2018, que equivale ao gasto com a administração em geral e o cus-
teio da máquina. Cerca de R$ 30,8 Bilhões são gastos em policiamento, R$ 3,8
bilhões em Defesa Civil e apenas R$ 672,7 milhões em inteligência policial.

Há uma desigualdade muito grande entre os gastos com policiamento e


os gastos com inteligência e formação. Pode-se inferir que as atividades poli-
ciais que possuem mais visibilidade estão sendo contempladas com a maior
parte dos recursos em detrimento da inteligência e informação, q ue embora
não sejam visíveis possuem impacto direto nos resultados.

Em outras palavras, os números demonstram que o Estado brasileiro,


em que pese um discurso voltado para os Direitos Humanos, comunitarismo,
ações inteligência e tecnologia, os quais poderiam dar um direcionamento da
segurança pública voltados para uma lógica da prevenção, cooperação e que
priorizasse a vida do cidadão, gasta muito mais com ações em policiamento,
reforçando a concepção bélica da segurança pública .

195RIBEIRO, C. Investimento no Brasil em segurança pública chegam a R$ 82 bilhões/ano.


O Povo, [Fortaleza]. 2018. Disponível em:
<https://www.opovo.com.br/jornal/politica/2018/06/investimentos -do-brasil-em-
seguranca-publica-chegam-a-r-82-bilhoes-an.html>. Acesso em: 22 jun. 2020.
78

2.2.3 A Guerra às Drogas

Talvez a face mais visível e cruel dessa concepção bélica repouse na


guerra às drogas. Luís Carlos Valois 196 lembra que as drogas alcançaram o sta-
tus de substância proibida arbitrariamente de forma paulatina, ao longo do
tempo. Já Silva et al. 197 entendem que quando o consumo de drogas se tornou
um fenômeno de massas, causando prejuízo a saúde pública e a segurança so-
cial, tornou-se uma preocupação governamental com foco no combate ao trá-
fico e na prevenção ao uso.

No Brasil, por exemplo, a taxa de homicídio, como visto anteriormente,


é altíssima, entretanto, Telles, Arouca e Santiago atentam para o fato de não
ser possível determinar quantas dessas mortes estejam relacionadas as dro-
gas, sabe-se, contudo, que boa parte dela é provocada pela violência resultan-
te do combate ao narcotráfico 198.

D’Agostinho, citado por Telles, Arouca e Santiago 199, revela que após a
vigência da Lei nº 11.343, de 2006 (Lei de Drogas), entre os anos de 2006 e
2015, houve um aumento de 339% dos presos por tráfico de drogas, elevando
o Brasil a condição de terceira maior população carcerária do mundo. Ainda
assim, a guerra as drogas não atingem a todos de forma homogênea, mas mui-
to mais intensa em relação aos negros, favelas e periferias.

Nesse sentido, Valois faz uma crítica contundente ao modelo bélico


adotado pelo Estado brasileiro, pautado na legislação sobre a prisão em fla-

196 VALOIS, L. C. O Direito Penal da guerra as drogas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017), p.
96.
197 SILVA et al. Os reflexos da nova lei de drogas na atuação das polícias estaduais. Revista
Brasileira de Segurança Pública, v. 1, n. 2, 2007, p. 121.
198 TELLES, A. C.; AROUCA, L.; SANTIAGO, R. Do #vidasnasfavelasimportam ao

#nóspornós: a juventude periférica no centro do debate sobre política de drogas. Boletim de


Análise Político-Institucional, v. 18, 2018, p. 108, Disponível em:
<http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8886/1/bapi_18_cap_12.pdf>. Acesso em:
04 nov. 2020.
199 D’AGOSTINHO apud TELLES; AROUCA ; SANTIAGO, 2018, p. 109.
79

grante e um inquérito policial dos anos 40, com pouquíssimas garantias para
um indiciado, que torna o sistema jurídico falho a ponto de permitir que poli-
ciais, durante a abordagem, possam decidir se o cidadão é usuário ou trafi-
cante de drogas, o que ele considera “a mais grave das discricionaridades
dessa guerra” 200.

Valois afirma que no Brasil há uma polícia de prisão e apreensão em


contraponto a investigações mais profundas, coleta de provas detalhada e im-
parcial, inclusive para a Polícia Civil que deveria auxiliar o judiciário na solu-
ção do crime 201.

Assim, o autor indaga, de forma implícita, como um comércio ilegal de


drogas que movimenta bilhões de reais não possua uma resposta governa-
mental de mesma envergadura no aspecto financeiro? A resposta, segundo
Valois, confirma que existe uma política de repressão a pobreza 202.

A indagação de Luís Carlos Valois pode ser respondida através da deci-


são da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635,
exarada monocraticamente pelo Ministro Edson Fachin, a pedido do Partido
Socialista Brasileiro (PSB), a qual proibiu operações policiais em comunidades
do Rio de Janeiro ao decorrer da epidemia do COVID-19. As razões do parti-
do ficam patentes conforme o trecho abaixo.

No dia 15 de maio último, uma operação conjunta do BOPE (Batalhão


de Operações Policiais Especiais) da Polícia Militar e da Desarme (De-
legacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos) da Polícia
Civil no Complexo do Alemão resultou em 13 (treze) mortes, inter-
rupção da energia elétrica por 24 horas e impediu a ajuda humanitá-
ria de entrega de doações de alimentos, água e material de higiene e
limpeza, além de causar destruição e terror aos moradores em plena
quarentena na pandemia.
(...)

200 Valois, op. cit., p. 23–24.


201 Ibid., p. 390.
202 Ibid., p. 24.
80

Em 18 de maio de 2020, apenas três dias após a chacina do Alemão,


uma operação da Polícia Federal com apoio das polícias fluminenses,
especialmente da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais) da
Polícia Civil, foi realizada na Praia da Luz, Ilha de Itaoca, na cidade
de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A operação,
que contou com veículos blindados e aeronaves, resultou na morte de
João Pedro Mattos Pinho, de apenas 14 anos de idade203.

As razões da ADPF 635 demonstram uma visão bélica da segurança pú-


blica, centrada na visão de guerra, no criminoso como “inimigo” hostil, em
ocupação de espaço sem levar em consideração as necessidades dos cidadãos
que residem nas comunidades.

Entretanto, Valois 204 entende que o direito necessita ser analisado com
base na realidade de maneira que ele deixe de ser objeto de alienação profis-
sional e possibilite uma nova forma de pensar na guerra as drogas, pois a
perspectiva punitiva, repressiva, faz todos vítimas dessa guerra, inclusive o
juiz, o promotor público e o policial.

Esse reforço da concepção bélica da segurança pública terá impacto


marcante no maior instrumento de ação das policiais brasileiras - a aborda-
gem policial.

203 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental 635 Rio de Janeiro. Trata-se de pedido de medida cautelar formulado pelo
Partido Socialista Brasileiro (PSB), a fim que não se realizem operações policiais em comu-
nidades durante a epidemia do COVID-19, a não ser em hipóteses absolutamente excepcio-
nais, que devem ser devidamente justifi cadas por escrito pela autoridade competente, com a
comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo
controle externo da atividade policial; e que, nos casos extraordinários de realização dessas
operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identi-
ficados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior po-
pulação, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda
humanitária,[2020].Disponívelem:<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/a
nexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf>. Acesso em: 1 dez. 2020.
204 Valois, op. cit., p. 16–17.
81

2.3 A ABORDAGEM POLICIAL

A abordagem policial 205 é a técnica mais utilizada pelas polícias brasi-


leiras a fim de prevenir todo o tipo de crime. Para se ter uma boa ideia da
abrangência dessa utilização, em 2006, apenas a Polícia Militar de São Paulo
alegou ter abordado 7.141.818 paulistanos, 18% da população da época 206. Ou-
tro exemplo, mais recentemente, repousa na Polícia Militar do Amazonas, a
qual alegou ter abordado 380 mil usuários do transporte coletivo entre os me-
ses de janeiro a outubro durante o ano de 2019 207. Há de se levar em conta que
o número descrito acima se refere somente aos usuários de ônibus de apenas
uma das 27 Unidades Federativas. Caso as outras polícias da Federação te-
nham a mesma disposição da polícia amazonense, alcançar -se-ia a cifra de 10
milhões de pessoas abordadas no período de 10 meses. Praticamente a popu-
lação de Portugal sendo abordada em menos de 01 ano.

Embora a Constituição Federal, em seu Inciso XV do artigo 5º, garanta


ao cidadão brasileiro o direito de livre locomoção no território nacional, o ar-
tigo 244 do Código de Processo Penal permite a abordagem em caso de fun-
dada suspeita.

Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão


ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse
de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de

205 Embora a abordagem policial seja uma técnica inerente a qualquer polícia, no Brasil, as
policiais militares, por sua natureza ostensiva, por estarem em maior número e por possuí-
rem maior capilaridade em território nacional, desenvolvem e aprimoram as técnicas de
abordagem de forma dominante. Assim, a pesquisa se referirá e se baseará nas técnicas de
abordagens produzidas pelas polícias militares.
206 PINC, T. M. Abordagem Policial: avaliação do desempenho operacional frente à nova

dinâmica dos padrões procedimentais. 31 o ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2007, p. 4.


Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/papers -31-encontro/st-7/st08-
7/2831-taniapinc-abordagem/file>.
207AMAZONAS. Operação Catraca já realizou 16 mil abordagens a ônibus, em Manaus .
Disponível em: <http://www.ssp.am.gov.br/operacao-catraca-ja-realizou-16-mil-
abordagens-a-onibus-em-manaus/>. Acesso em: 25 fev. 2020.
82

delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domi-


ciliar208.

Entretanto, os critérios utilizados para essas abordagens ainda possuem


acentuado caráter subjetivo, o que podem levar as instituições policiais a agi-
rem baseadas em estereótipos consagrados pela sociedade, eivados de pre-
conceitos raciais, sociais e econômicos.

É importante ressaltar que este trabalho não se destina a analisar as


técnicas de abordagem empregadas pelas polícias brasileiras, embora seja ne-
cessário compreender os seus aspectos essenciais, mas entender o seu start, a
centelha inicial, o spark, o critério motivador para que o policial inicie a sua
execução. Dito isto, faz-se necessário compreender os aspectos fundamentais
da abordagem policial, iniciando pelo conceito de intervenção policial.

A intervenção policial é a ação ou operação que emprega técnicas e táti-


cas policiais em eventos de defesa social, objetivando prioritariamente a pro-
moção e a defesa dos direitos fundamentais da pessoa. Ela tem como premissa
transformar a realidade a fim de prevenir e resolver conflitos, combater o
crime e a violência, preservando a ordem e a garantia do cumprimento da lei.
Existem vários de tipos de intervenção policial, que podem ir do fornecimento
de informações a um transeunte, ao auxílio de acidentado ou a uma pessoa
perdida, cumprimento de mandado judicial, imobilização, algemação, disparo
de arma de fogo e a abordagem 209. Dessa forma, a abordagem seria um tipo de
intervenção policial.

208 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código de Processo


Penal. 2 a ed. Brasília: Senado Federal, 2019, p. 63.
209 POLÍCIA MILITAR DE MINAS GERAIS (PMMG). Caderno Doutrinário 1: Intervenção

policial, processo de comunicação e uso de força. Belo Horizonte. Separata do BGPM, n o


61, 2013, p. 49.
83

É interessante notar que o conceito de abordagem se apresenta ligeira-


mente diferente entre algumas forças da federação, bem como entre alguns es-
tudiosos, mas sempre levando em conta a relação entre polícia e cidadão.

Assim, para a Polícia Militar da Bahia (PMBA):

Abordagem Policial é o ato de aproximar-se de pessoas, com o intuito


de orientar, assistir, interpelar, advertir, realizar busca, identificar
e/ou prender, utilizando-se dos processos do Policiamento Ostensi-
vo, executando-se para isso, se necessário for, as técnicas de busca em
veículos, edificações ou perímetros210.

Para a Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG):

Trata-se de um conjunto de ações policiais militares ordenadas e qua-


lificadas para que o policial militar possa se aproximar de pessoas,
veículos ou edificações com o intuito de orientar, identificar, advertir,
realizar buscas e efetuar detenções. Para tanto, utiliza-se de técnicas,
táticas e meios apropriados que irão variar de acordo com as circuns-
tâncias e com a avaliação de risco (grifo do autor)211.

Para a Polícia Militar do Espírito Santo (PMES):

Dizem os nossos dicionários que abordar é: acometer e tomar, apro-


ximar-se, chegar, interpelar. No nosso caso, poderíamos considerar
como sendo uma técnica policial de aproximar-se de uma pessoa, ou
pessoas, a pé montadas ou motorizadas, e que emanam indícios de
suspeição; que tenham praticado ou estejam na iminência de praticar
ilícitos penais, com o intuito de investigar, orientar, advertir, prender,
assistir, etc 212.

A Polícia Militar de São Paulo (PMESP) 213 entende a abordagem como


“um procedimento policial preventivo visando à Segurança do Cidadão ”.

210 POLÍCIA MILITAR DA BAHIA (PMBA). Manual Basico de Abordagem Policial.


Salvador, Polícia Militar da Bahia, 2018, p. 25.
211 PMMG, op. cit., p. 52.
212 BONI, M. L. Cidadania e poder de polícia na abordagem policial. Revista da Faculdade

de Direito de Campos, v. VII, n. 9, p. 621–666, 2006, p. 649.


213 SÃO PAULO. Procedimento Operacional PadrãoProcesso 1.01.00 A bordagem a Pé. São

Paulo: PMESP, 2002, p. 24.


84

Márcio Luiz Boni apresenta um conceito de abordagem mais próximo do


campo jurídico:

... pode ser compreendida como atividade material desempenhada


pelas autoridades legalmente investidas nas funções públicas e dota-
das de competência para a ação preventiva e repressiva, com funda-
mento no poder de polícia, visando à preservação da ordem públi-
ca214.

Tânia Maria Pinc, com uma abordagem mais antropológica, entende a


abordagem policial da seguinte forma:

... a abordagem representa um encontro da polícia com o público e os


procedimentos adotados pelos policiais variam de acordo com as cir-
cunstâncias e com a avaliação feita pelo policial sobre a pessoa com
que interage, podendo estar relacionada ao crime ou não215.

Percebe-se nos conceitos supramencionados que a abordagem intervém


em garantias fundamentais do cidadão, a exemplo do direito de ir e vir, na
presunção de inocência e em alguns casos, na dignidade humana, o que exige
respaldo legal para tal ação. Nesse sentido, a PMBA esclarece que a legalida-
de da abordagem deve estar lastreada na natureza do ato administrativo, bem
como no propósito de tutelar a dignidade da pessoa humana 216. Assim, para
manter esse propósito, de forma geral, a abordagem é pautada em três pilares:
Princípios, fundamentos e condutas.

Os princípios norteiam a abordagem policial apresentando val ores uni-


versais que estabelecem valores inegociáveis, tais como a preservação da vi-
da, a legalidade, a dignidade da pessoa humana, a isonomia, o interesse pú-
blico e a proporcionalidade do uso da força 217.

Os fundamentos estabelecem conceitos básicos para a conduta da abor-

214 Boni, op. cit, p. 639–40.


215 Pinc, 2007, p.3.
216 PMBA, op. cit., p. 15.
217 PMBA, Ibid., p. 25.
85

dagem que a potencializam para garantir os seus objetivos 218. Dessa forma, a
abordagem possui 5 fundamentos a seguir: a) Segurança, que são as cautelas
necessárias para minimizar o perigo de uma reação do abordado; b) Unidade
de Comando, para facilitar a coordenação e a comunicação durante a aborda-
gem; c) Flexibilidade, que possibilita a realização de manobras diversificadas
com viatura ou efetivo, a fim de torna-la mais rápida; d) Ação Vigorosa, ati-
tude firme e resoluta do policial na situação a fim de dar ordens claras e pre-
cisas, minimizando riscos; e) Vigilância, a capacidade do policial em perma-
necer alerta ao perigo.

A conduta estabelece procedimentos para as ações desenvolvidas du-


rante a abordagem, levando em conta: a) Aproximação, que consiste na técni-
ca de aproximação do alvo a ser abordado, bem como a sua avaliação de ris-
cos; b) Contenção, técnica que pretende controlar o ambiente da pessoa a ser
abordada, minimizando reações e potencializando a segurança; c) Busca, que
tem por objetivo a localização e a identificação de objetos ilícitos ; d) Identifi-
cação, conduta que prima pela identificação pessoal e/ou veicular 219.

É interessante ressaltar, como visto anteriormente, que a busca é uma


das condutas da abordagem, “que se impõe, independentemente, de concor-
dância da pessoa 220”, conforme o Parágrafo 2º do Artigo 240 do Código de
Processo Penal.

As abordagens policiais também seguem níveis de conduta a fim de


promover a gradação da ação da polícia, potencializando a segurança dos po-
liciais e dos cidadãos. Embora haja variações entre termos e nomenclaturas
entre as corporações da Federação, de forma geral, as abordagens se apresen-
tam conforme o Quadro 01.

218 PMBA, Op. cit., p. 25; PMMG, op. cit, p. 54.


219 PMBA, op. cit., p. 26.
220 PMMG, op. cit., p. 53.
86

Quadro 1 - Níveis de abordagem policial


NÍVEL SITUAÇÃO TIPO DE BUSCA POSTURA

1 ADMINISTRATIVA VISUAL BÁSICA

2 ORDINÁRIA LIGEIRA BÁSICA / RELATIVA

3 FUNDADA SUSPEITA MINUCIOSA SEMIPRONTA

4 SUSPEITA CONFIRMADA MINUCIOSA /COMPLETA MÁXIMA

Fonte: PMBA 221

Em uma abordagem de primeiro nível, o policial assiste, orienta e in-


forma o cidadão, não necessitando implementar a busca pessoal. No segundo
nível, há a necessidade de implementar uma verificação rápida. No terceiro
nível há o enquadramento clássico da fundada suspeita, enquanto no quarto
nível existe a certeza do cometimento do delito.

No tocante ao uso da força, Luis Gerardo Gabaldón lembra que se deve


fazer a distinção entre abusos extensos, quando a força é aplicada a situações
que estão fora das premissas autorizadas pela norma e do abuso intensivo,
quando a regra da proporcionalidade ou progressão na utilização da força for
efetivamente violada 222. Para evitar esses abusos intensivos, ao longo das úl-
timas décadas as polícias brasileiras têm incorporado aos seus manuais de
abordagem técnicas de uso progressivo da força, conforme se observa na figu-
ra 1.

221PMBA, op. cit, p. 27.


222GABALDÓN, L. G. Variables y justificaciones asociadas al uso de la fuerza por la policía:
una visión comparada. In: Cadernos Temáticos da Conseg - Uso progressivo da força:
dilemas e desafios. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 16–17.
87

Figura 1 - Modelo de uso diferenciado da força

Fonte: PMMG 223

O modelo utilizado pela polícia mineira agrega a essência do uso pro-


gressivo da força. Em seu modelo de uso diferenciado da força, percebe-se a
existência de três níveis que representam possibilidades de comportamento
do abordado. O lado esquerdo representa a percepção do policial em relação à
conduta do abordado e o lado direito representa as respectivas possibilidades
de resposta, onde cada nível apresenta a intensidade da força para um contro-
le adequado, variando do contato físico, passando por Instrumentos de Menor
Impacto Ofensivo (I.M.P.O) até o uso da arma de fogo.

Na verdade, no modelo de uso diferenciado da força, há uma relação de


causa e efeito entre polícia e cidadão, através de critérios objetivos, permitin-
do uma resposta gradativa da ação policial, onde a arma de fogo deve ser o
último recurso a ser utilizado.

223 PMMG, op. cit., p.85.


88

Pinc 224 atenta para o fato de a abordagem representar um risco para


ambas as partes, policial e cidadão. Para o policial, o maior risco reside na
possibilidade de o abordado portar uma arma de fogo e efetuar o disparo. En-
tretanto, esse conhecimento só poderá ser verificado após a abordagem, o que
pode ensejar reações variadas por parte do cidadão, como recusar-se a descer
do veículo, apresentar atitude de empáfia para com o policial, além de comen-
tários inapropriados dirigidos aos agentes da lei, dentre outros. Por outro la-
do, para o abordado, o maior risco se encontra na possibilidade da agressão
policial e de tratamento que o humilhe e o agrida moralmente.

Pinc 225, baseada na premissa de perdas e ganhos da socióloga Carol An-


ne Heimer 226, destaca que o ganho auferido a uma abordagem resulta em im-
pactos positivos na segurança pública, mensurados por prisões , apreensões de
arma de fogo e drogas, porém, como perda, pode resultar em lesões e mortes
de qualquer um dos envolvidos.

É bom ressaltar que o campo jurídico tem influenciado positivamente


nos ganhos auferidos pelas abordagens, pois, além da Constituição Federal e
do Código de Processo Penal, outras fontes, valores e marcos do direito foram
incorporados aos manuais de abordagem, tanto no campo internacional e na-
cional.

No campo internacional, pode-se citar o Pacto de San José da Costa Ri-


ca 227, também conhecido como Convenção Americana sobre Direitos Huma-

224 PINC, T. M. Treinamento policial : um meio de difusão de políticas públicas que


incidem na conduta individual do policial de rua. Tese. (Doutorado em Ciência Política)
Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, 2011, p. 145.
225 Pinc, Ibid., p. 146.

226 Para Heimer, o risco, relacionado ao mercado, é uma das mais importantes limitações da
ação racional e da tomada de decisão, a qual Tânia Maria Pinc associou ao conceito de abor-
dagem. Cf. HEIMER apud PINC Pinc, 2011, p. 145.
227 A Organização dos Estados Americanos (OEA) possui atualmente 35 membros. Entre

2006 e 2012 foram protocolados 943 (novecentos e quarenta e três) petições brasileiras para
análise, sendo que 7 (sete) foram submetidas a julgamento. Um dos casos mais emblemáti-
cos repousa no caso Maria da Penha, em 2001, onde a OEA recomendou a edição de lei com
89

nos, que influenciou na concepção de dignidade humana e da integridade


pessoal do Estado brasileiro, bem como os esforços de mudança na formação
dos policiais brasileiros através de material produzido pelo Comitê Internaci-
onal da Cruz Vermelha 228, em 1998, e pelo Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Direitos Humanos 229, em 2001, os quais estabeleceram normas
de conduta ética, aplicação do uso da força e de arma de fogo dentro dos pa-
râmetros dos Direitos Humanos.

No campo nacional, algumas leis, ao longo dos anos, foram criadas e


em alguma medida ampliaram ou restringiram os parâmetros da abordagem,
tais como a Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003 (Estatuto do Torcedor), que
em seu inciso III do artigo 13A condiciona a entrada do torcedor a busca pes-
soal, ou a Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal (STF), que
limita o uso de algema durante a intervenção policial, dentre outras.

Percebe-se que a abordagem policial possui técnica, princípios, funda-

o objetivo de reprimir a violência dom éstica contra a mulher que culminou na Lei nº 11.340,
de 7 de agosto de 2006, Cf. OLIVEIRA, M. das G. M. D. de; CARMO, V. M. do; OLIVEIRA,
B. B. de. Sistema Interamericano de Proteção dos Diretos Humanos: análise da efetividade
no Brasil. Prim@ facie, v. 18, n. 39, 2019. Disponível em:
<https://periodicos.ufpb.br/index.php/primafacie/issue/view/2436/Prim%40 Facie%2C
n. 39%2C v. 18%2C 2019.>.
228 De autoria de Cees de Rover, ex-Consultor Sênior junto ao Representante Especial do Se-
cretário Geral das Nações Unidas em Burundi em Questões de Segurança e Aplicação da
Lei, tendo sido Vice-Diretor do Instituto Policial de Segurança e Ordem Pública dos Países
Baixos e ex-integrante da Polícia Holandesa. O manual foi um marco na área de segurança
pública e teve a intenção de incorporar princípios de direitos humanos e direito internacio-
nal humanitário nos currículos de treinamento já existentes ou criar novos currículos de
treinamento, ambos em nível teórico (conhecimento/entendimento) e prático (técnicas/
aplicação) de maneira a assegurar a continuidade da formação e treinamento dos policiais
ao redor do mundo, adequando o conceito de ética, limitação da força e da arma de fogo aos
parâmetros dos direitos humanos. Cf. ROVER, C. de. Para servir e proteger. direitos
humanos e direito internacional humanitário para forças policiais e de segurança: manual
para instrutores. Traduzido ed. Genenbra: Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 1998 .
229Esse manual é mais abrangente que “Para Servir e Proteger”, contendo condutas para
gestão das organizações policiais bem como situações mais específicas, a exemplo de situa-
ções com refugiados Cf. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Direitos humanos e aplicação
da lei: manual de formação em direitos humanos para as forças policiais. Lisboa: ONU,
2001.
90

mento jurídico e racionalização que lhe permita minimizar os riscos no encon-


tro do policial com o cidadão. Contudo, a sua parte mais vulnerável não se
constitui nos elementos elencados anteriormente, mais sim na identificação do
suspeito.
91

CAPÍTULO 3 - OS SUSPEITOS DA ABORDAGEM POLICIAL

3.1 O SUSPEITO DA ABORDAGEM POLICIAL

Inicialmente, para que haja uma compreensão melhor do assunto, faz-se


necessário o esclarecimento do termo associado a suspeição. Gilvan Gomes
Silva oferece uma construção mais ampla para a suspeição, estabelecendo di-
ferenças entre o suspeito judicial, o suspeito criminal, o indivíduo suspeito, a
ação suspeita e a situação suspeita. Segundo Silva 230, o suspeito judicial pos-
sui vínculo estabelecido antes do processo judicial , enquanto o suspeito cri-
minal possui o seu vínculo após os ritos judiciais. Segundo o autor, indivíduo
suspeito, ação suspeita e a situação suspeita, estão diretamente relacionados à
preservação da ordem pública.

O dicionário da língua portuguesa define o significado de suspeita co-


mo conjectura, suposição, desconfiança, receio, levantar suspeita contra ou
considerar mal 231. Percebe-se que o significado da palavra suspeita já carrega
em seu âmago traços de subjetividade, os quais carecem de parâmetros claros
para serem utilizados durante uma abordagem policial em um Estado garan-
tidor de direitos.

Essa subjetividade pode ser constatada na definição de suspeito d a Po-


lícia Militar mineira: “aquele que se apresenta duvidoso quanto ao seu modo
ou maneira de agir, inspirando no policial militar certa desconfiança ou opi-
nião desfavorável” 232.

Pode-se, também, constatar a essência desse pensamento na Polícia Mi-

230 Para Silva, o suspeito judicial e o suspeito criminal possuem uma relação pura com o
crime, pois trazem consigo a certeza do seu vínculo com ele. Porém, o indivíduo suspeito, a
ação suspeita e a situação suspeita não possuem a pureza do vínculo como os anteriores,
mas estariam ligados a algum grau de percepção de crime, sendo mais proeminentes em al-
guns contextos do que outros. Cf. SILVA, G. G. A lógica da Polícia Militar do Distrito
Federal na construção do suspeito. Dissertação. (Mestrado em Sociologia) Programa de Pós-
Graduação do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, 2009, p. 82–83.
231 BUENO, S. Dicionário escolar. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 2004 , p. 633.
232 PMMG, op. cit., p. 107.
92

litar do Distrito Federal, conforme fragmento abaixo:

[...] a pessoa que infunde dúvidas acerca de seu comportamento, ou


que não inspire confiança em relação ao lugar onde se encontre, o ho-
rário e outras circunstâncias [...] o que caracteriza a ação suspeita do
indivíduo é o seu comportamento associado a circunstâncias de tem-
po, lugar, clima, pessoas, coisas, entre outros.233

Recorrendo ao dicionário Michaelis, este afirma que a inspiração signi-


fica “Força criadora de origem transcendente e sobrenatural que trazia conse-
lhos e ideias aos humanos; iluminação” ou “Influência exercida sobre a von-
tade de outra pessoa; conselho, sugestão” ou “Iluminação súbita e geralmente
genial, que tem efeito animador e estimulador da criatividade do artista; cla-
rão, lampejo”. Resumidamente, os conceitos ora citados esperam que a manei-
ra de agir do cidadão possua “algo” que desperte no policial uma desconfian-
ça ou uma opinião desagradável.

Pinc 234 ressalta que apesar da legitimidade da fundada suspeita preco-


nizada pelo artigo 239 do CPP, ainda há muita discussão na capacidade de
discernimento do policial, principalmente pela ausência de uma conceituação
clara do que seja atitude suspeita.

Assim, na tentativa de estabelecer critérios mais claros a PMESP apre-


senta uma definição sobre a conduta suspeita, conforme trecho abaixo.

Atitude(s) Suspeita(s): Todo comportamento anormal ou incompatí-


vel para o horário e o ambiente considerados, praticado por pessoa(s),
com a finalidade de encobrir ação ou intenção de prática delituosa.
Alguns exemplos:
a. pessoa que desvia o olhar ou o seu itinerário, bruscamente, quando
reconhece ou avista um policial;
b. condutor ou ocupantes de um veículo que olha(m) firmemente pa-
ra frente na condição de rigidez, evitando olhar para os lados, para o
policial ou para a viatura, que naturalmente chamam a atenção do
público em geral;

Silva, op. cit., p. 79.


233
234PINC, T. M. O uso da força não letal pela polícia nos encontros com o público .
Dissertação (Mestrado em Ciência Política) Programa de Pós-Graduação do Departamento
de Ciência Política da Universidade de São Paulo, 2006, p. 32.
93

c. pessoa(s) que, ao ver(em) ou reconhecer(em) um policial ou uma


viatura, iniciam um processo de fuga, como correr, desviar caminho
abruptamente etc;
d. pessoa(s) parada(s) defronte a estabelecimentos comerciais, bancá-
rios, escolas, filas etc, por tempo demasiado e sem motivo aparente;
e. condutor que mantém seu veículo parado e em funcionamento de-
fronte a estabelecimentos bancários, demonstrando agitação, nervo-
sismo, ansiedade etc;
f. veículo excessivamente lotado, cujos ocupantes demonstram teme-
ridade em seus comportamentos;
g. táxi ocupado por passageiros, contudo, apresentando luminoso
aceso;
h. uso de vestes incompatíveis com o clima, possibilitando ocultar
porte ilegal de armas ou objetos ilegais.235

Pinc destaca que além do aspecto legal, o comportamento associado a


fatores ecológicos despertará a atenção do policial, através de vestimentas, do
olhar, da condução do veículo que ficarão mais sensíveis ao longo do acúmulo
de experiência do policial, algo que, segundo a autora, pode ser uma virtude
quando há sucesso na ação policial e desastrosa quando conduz o policial ao
equívoco 236.

Sem sombra de dúvidas que é uma situação temerária para o cidadão,


que pode ser vítima de um equívoco, tanto para o policial , que pode ficar de-
samparado legalmente em uma situação que pode ensejar o desastre, mesmo
sendo fruto do hábito do cotidiano.

Há, também, outro fator que deve ser levando em conta no tocante a
falta de um conceito claro para definir um suspeito como a forma idiossincrá-
sica que o policial percebe os fenômenos sociais ao seu redor, impactando a
sua ação em meio a sociedade. Nesse sentido, Ramos e Musumeci explicam
que sem a fundamentação concreta da suspeita, fora do contexto criminal, os
policiais ficam suscetíveis ao acionamento de estereótipos e preconceitos, tais
como a aparência física, atitude, local, horário, circunstâncias, ou alguma

235 Pinc, 2006, p. 33–34.


236 Pinc, 2006, p. 34.
94

combinação desses e de outros fatores 237, pensamento corroborado por Reis,


que salienta que a subjetividade da suspeição é carregada de valores e pré-
noções discriminatórias geralmente atribuídas ao conceito de marginalidade,
os quais são incluídos os nordestinos, os negros, os desempregados, membros
de outras subculturas e minorias étnicas e raciais 238.

Essa realidade pode ser percebida pelos próprios policiais em locais e


tempos diferentes, a exemplo de Salvador - Bahia, em 2002.

Em nossa terra o negro é suspeito, mas os marginais estão de paletó e


gravata. A PM é preconceituosa porque segue os padrões da socieda-
de, de que todo preto é suspeito (...) o marginal não tem cara. A cara
do marginal quem faz é o sistema; é o cara negro, camiseta ou camisa
de marca, bermudão, boné, tatuagem, etc. É o que dizem pra gente na
Academia239.

Na cidade do Rio de Janeiro, em 2004.

Procurem melhorar sua apresentação pessoal e melhorar a dicção.


Arrancar o boné da cabeça, pentear o cabelo, vestir uma roupinha
melhor e saber falar. Se ele [o jovem] tiver essa boa educação, não vai
ser parado. Ele tem que (...) ter menos o biotipo do marginal, ter mais
o biotipo de cidadão240.

Ou através de pesquisa realizada na Polícia Militar do Distrito Federal ,


em 2009.

O tipo ideal do indivíduo suspeito, o peba, é a figura de um homem,


pobre, jovem, com tatuagem/brincos e negro que traja roupas folga-
das (bermudão e camisa com número nas costas e, geralmente, do
grupo musical RACIONAIS MC’s) com boné. Geralmente, essas ves-
tes são usadas por pessoas que se identificam com o movimento Hip
Hop. Nessa lógica, o tipo ideal da vítima ou de um indivíduo não-

237 RAMOS, S.; MUSUMECI, L. “Elemento suspeito”. Abordagem policial e discriminação na


cidade do Rio de Janeiro. Boletim segurança e cidadania, v. 3, n. 8, p. 1–16, 2004, p. 1,
https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2016/03/boletim08.pdf.
238 REIS, D. B. A Marca de Caim: as características que identificam o “suspeito”, segundo

relatos de policiais militares. Caderno CRH, n. 36, p. 181–196, 2002, p. 182–183,


https://cesecseguranca.com.br/wp-content/uploads/2016/03/boletim08.pdf.
239 Reis, op. cit., p. 193.
240 Ramos e Musumeci, op. cit, p. 12.
95

suspeito é a figura da mulher, branca, idosa trajando roupas que este-


jam dentro do esperado para uma senhora (saias longas, camisas com
mangas, sem maquiagem ou com maquiagem discretas, entre ou-
tros)241.

Segundo Silva 242, a tipologia do indivíduo suspeito para o policial mili-


tar é erigida por percepções de gêneros, étnicas/raciais, geracionais e socio-
culturais, onde há uma interação entre policial e suspeito através de uma
complexa representação das estratificações sociais que o policia l possui, de
forma que para entender essa lógica é necessária uma reflexão histórica, eco-
nômica, política e cultural.

A falta de critérios objetivos para se definir o suspeito da abordagem


pode ensejar subprodutos indesejados da ação policial e incompatíveis com
um Estado garantidor de direitos fundamentais, contribuindo, assim, para a
existência da necropolítica, do etiquetamento social, do racismo sistemático e
do estabelecimento das classes perigosas.

3.2 O SUSPEITO DA ABORDAGEM E O ETIQUETMENTO SOCIAL

A indefinição do conceito do suspeito para a realização de uma aborda-


gem policial pode gerar distorções que reforcem estereótipos consagrados pe-
la sociedade baseados em etiquetamento social ou labeling approach, também
conhecido por criminologia da reação social. Gabriel Ignacio Anitua 243 escla-
rece que em 1960 houve uma ruptura com a criminologia positivista, que até
então dava conta das “carreiras delinquenciais” com enfoque no delinquente,
momento em que as definições legais e institucionais deixariam de ser assu-
midas de forma acrítica como algo natural para focar nos processos de crimi-
nalização.

241Silva, op. cit., p.98.


242Ibid.,p. 97.
243 ANITUA, G. I. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008,

p. 588.
96

Nesse sentido, Vera Malaguti Batista 244 acrescenta que a criminalidade


deixa de ser percebida como uma realidade objetiva para ser entendida como
uma definição, tendo no paradigma etiológico o principal ponto de ruptura,
onde, ainda segundo a autora, o conceito de criminalidade sofre um “golpe
mortal”, pois ele sai da dicotomia do bem e do mal e o “comportamento cri-
minoso” é relativizado, levando em conta a reação dos sujeitos aos processos
de etiquetamento social perante os mecanismos simbólicos da construção so-
cial.

Alessandro Baratta 245 explica que as pesquisas do labeling approach con-


sideram que o entendimento da criminalidade deve ser feito estudando o sis-
tema penal, iniciando pelas normas abstratas, chegando até as ações de suas
instâncias oficiais, a exemplo da polícia, dos juízes e das instituições prisio-
nais que as aplicam, pois o status social de delinquente pressupõe consequên-
cia das ações dessas instituições que exercem o controle social da delinquên-
cia até o momento em que o comportamento punível adquire o status negati-
vo. O autor, então, prossegue dizendo que na escola positivista se perguntava
quem era o criminoso, como se tornava criminoso, mas o labeling approach faz
o seguinte questionamento: “quem é definido como criminoso? ”, “Que efeito
decorre desta definição sobre o indivíduo?” 246.

Baratta 247 lembra que a criminologia positivista e parte da criminologia


liberal contemporânea se apoderaram de definições do comportamento crimi-
noso oriundas do direito penal e dos juristas, os quais entendiam que o com-
portamento criminoso existia como uma qualidade objetiva, de forma que as
transgressões das normas e valores efetuados pelos indivíduos fossem com-

244 BATISTA, V. M. Introdução crítica à criminologia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro:


Revan, 2012, p. 74.
245 BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução a sociologia

do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 2002 , p. 86.
246 Ibid., 88.
247 Ibid., 87–88.
97

partilhados, válidos a nível intersubjetivo, racionais e imutáveis para a toda


sociedade, algo não comungado pelo labeling approach, pois ele entende que
alguns comportamentos em relação a certas normas não ocorrem de maneira
automática, sendo considerada uma operação problemática.

Ora, tal problemática tenta refletir as complexidades de uma sociedade


que transcendem o maniqueísmo valorativo estabelecido pela escola positivis-
ta que permeia até a atualidade. Baratta revela que a teoria do desvio se de-
senvolve no quadro de interacionismo simbólico, onde se atribui um signifi-
cado simbólico a ação dentro dessa interação. Assim, nesse contexto, Baratta
afirma que tal interação transforma o significado de algumas normas , que di-
ferente das normas sociais gerais, a exemplo da norma ética e jurídica, assu-
mem o caráter interpretativo fruto das interações sociais, dando o sentido da
estrutura social, relativizando o conceito de crime 248.

É importante ressaltar que a abordagem policial é um momento típico


de interação social complexa de caráter interpretativo. Musumeci e Ramos 249
consideram as abordagens situações privilegiadas de interação entre a polícia
e o cidadão que ocorre fora do contexto de ocorrência criminal sem informa-
ções concretas e por isso mais aberto ao acionamento de preconceito e estereó-
tipos. Pinc 250 faz um acréscimo a essa definição, informando que a abordagem
representa um encontro da polícia com o público, que variam de circunstân-
cias com interação entre os dois.

É interessante atentar para esse caráter do preconceito e do estereótipo


da abordagem policial, pois, segundo Baratta 251, as pesquisas labeling approach
seguiram em duas direções: o efeito da aplicação da etiqueta no criminoso so-
bre a pessoa a quem se aplica etiqueta (estereótipo); e o problema da defini-

248 Ibid., 88.


249 Ramos e Musumeci, op. cit., p. 1.
250 Pinc, 2007, p. 3.
251 MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 2, n. 32, p. 122–151, 2017, p. 122–151.
98

ção e de quem tem o poder de definir – o estudo das agências de controle so-
cial.

Em relação ao comportamento rotulado, etiquetado, Anitua 252 cita os es-


tudos de Howard S. Becker, Edwin M. Lemert e Edwin M. Schur. Segundo o
autor, Lemert acreditava que o comportamento desviado se dividia em dois
tipos centrais no interacionismo simbólico: o desvio primário, advindo de
uma variedade de motivos subjetivos, que só terá importância decisiva se for
seguida por um desvio secundário.

Baratta 253 clarifica essa relação ao explicar que para Lemert a reação so-
cial ou punição de um primeiro comportamento desviante tem o poder de
mudar a identidade social de um indivíduo estigmatizado, criando a tendên-
cia do estigmatizado permanecer nesse papel social ao qual fora introduzido.

Anitua 254 ressalta que o desvio primário seria iniciado pela lei penal,
mas com motivos sociais, culturais e psicológicos, dessa forma, o desvio pri-
mário contribuiria para a estigmatização do desviado devido a punição im-
posta como uma reação social. O desvio secundário, então, seria a resposta do
desviado a reação social, alterando a sua estrutura psíquica e produzindo
uma organização especializada de papéis sociais e comportamento de auto-
estima lhe conferindo determinado status.

Na segunda direção das pesquisas do labeling approach, no tocante a de-


finição do poder, Baratta 255 lembra que no plano sociológico a criminalidade
não existe na natureza, pois ela é uma realidade construída socialmente atra-
vés de processos de definição e de interação, sendo considerada uma realida-
de social.

O próprio Baratta, ao falar dos três planos de definição do labeling ap-

252 Anitua, op. cit., p. 590.


253 Ibid., p. 89.
254 Ibid., p. 590–91.
255 Ibid., p. 108.
99

proach e partindo das reflexões de Fritz Sack, discorre que na sociedade, a par-
tir de uma interpretação sócio-política do fenômeno pelo qual certos indiví-
duos, pertencentes a certos grupos sociais, que por sua vez representam cer-
tas instituições, possuem o poder de estabelecer quais crimes devem ser per-
seguidos e quais pessoas devem ser perseguidas. Assim, o poder de qualificar
o criminoso estaria nas mãos de um grupo específico de funcionários que são
recrutados por critérios específicos que exprimem certos estratos sociais para
atender inúmeros interesses 256.

Na prática, isso significa que certos indivíduos possuem o poder de de-


finir as leis e os mecanismos de controle social em detrimento de outro grupo
que é submetido a este poder de definição, onde o poder de criminalizar esta-
ria intimamente ligado as interações conflituosas, desiguais e estratificadas da
sociedade.

Essa realidade fática pode ser constatada a partir da pesquisa de Edwin


Sutherland sobre o crime do colarinho branco. Sutherland 257 inicia a sua pes-
quisa alertando que os criminologistas derivam suas estatísticas criminais da
justiça criminal, e como tal se baseiam em teorias gerais do comportamento
criminoso que acreditam que a criminalidade está associada a pobreza e ca-
racterísticas atribuídas a ela, a exemplo de fraqueza, desvios psicopáticos, fa-
velas e famílias “degeneradas”, concentradas nas classes sociais mais baixas.
Entretanto, o autor afirma que essa tendência não corresponde à realidade,
conforme trecho abaixo:

A tese deste artigo é que a concepção e as explicações do crime que


acabamos de descrever são enganosas e incorretas, que o crime não
está, de fato, intimamente relacionado à pobreza ou às condições psi-
copáticas e sociopáticas associadas à pobreza, e que uma explicação
adequada do crime o comportamento deve seguir linhas bem diferen-
tes. As explicações convencionais são inválidas principalmente por-

256Ibid., p. 109–111.
257 SUTHERLAND, E. H. White-Collar Criminality. American Sociological Review, v. 5, n.
1, p. 12, 1940, p. 1.
100

que são derivadas de amostras tendenciosas. As amostras são ten-


denciosas porque não incluíram vastas áreas de comportamento cri-
minoso de pessoas que não pertenciam à classe baixa. Uma dessas
áreas negligenciadas é o comportamento criminoso de empresários e
profissionais da área, que será analisado neste artigo (tradução nos-
sa)258.

Sutherland afirma que os crimes do colarinho branco são perceptíveis


com frequência em demonstrativos financeiros das corporações, na manipula-
ção das bolsas de valores, na corrupção direta e indireta de servidores públi-
cos com o objetivo de obter contratos e leis mais favoráveis para determina-
dos setores, além de fraudes fiscais, que se apresentam de forma abundante
no mundo dos negócios 259.

Sutherland sinaliza que quando esses crimes são descobertos, os crimi-


nosos recebem sanções penais na forma de advertências, ordens para inter-
romper a atividade ilícita, ocasionalmente, a perda de uma licença e, sendo
que a aplicação de multas ou penas privativas de liberdade somente em casos
extremos, ao contrário dos crimes da classe baixa que possuem penas de mul-
ta, prisão e de morte. 260

Nesse sentido, Baratta 261 comenta que há uma distorção das estatísticas
criminais, onde a criminalidade do colarinho branco é subdimensionada, dis-
torcendo as teorias criminais, as quais sugerem um quadro inverídico da dis-
tribuição da criminalidade nos grupos sociais.

258 The thesis of this paper is that the conception and explanations of crime which have just
been described are misleading and incorrect, that crime is in fact not closely correlated with
poverty or with the psychopathic and sociopathic conditions associated with povert y, and
that an adequate explanation of criminal behavior must proceed along quite different lines.
The conventional explanations are invalid principally because they are derived from biased
samples. The samples are biased in that they have not included vas t areas of criminal be-
havior of persons not in the lower class. One of these neglected areas is the criminal behav-
ior of business and professional men, which will be analyzed in this paper. Cf. Sutherland,
op. cit., p. 2.
259 Ibid., p. 2–3.
260 Ibid., p. 8.
261 Ibid., p. 102.
101

Baratta, então, afirma que essas concepções de criminalidade não inci-


dem apenas nos estereótipos da criminalidade, mas influenciam e orientam a
ação dos órgãos oficiais, tornando-a socialmente seletiva, contribuindo para a
afirmação da definição corrente de criminalidade compartilhada pela maioria
dos cidadãos 262.

É justamente esse o problema da existência de uma abordagem policial


sem critério objetivo, pois a polícia, além de ser um desses órgãos governa-
mentais que reafirmam tais estereótipos explicitados por Sutherland e Baratta,
seus integrantes também fazem parte da sociedade, e como tal, compartilham
seus estereótipos e preconceitos.

A existência do estereótipo durante a abordagem, pode ser evidenciada


nas palavras de Musumeci e Ramos, conforme trecho abaixo:

Em tese, qualquer cidadão ou cidadã que circule pelas ruas, a pé ou


em qualquer meio de transporte, pode ser parado(a) e revistado(a)
em uma ação policial rotineira ou especial de prevenção da crimina-
lidade. Na prática, porém, só alguns serão escolhidos e sabe- se que
essa escolha não é aleatória, mas seletiva, que depende em larga me-
dida de critérios prévios de suspeição, sejam eles aparência física, ati-
tude, local, horário, circunstâncias, ou alguma combinação desses e
de outros fatores.263

Ou pode ser evidenciada através da vivência policial registrada por


Reis, conforme trecho a seguir:

Não vem escrito na testa do malandro: ‘sou marginal’; é a vivência,


vendo situações diariamente, a gente busca uma segurança maior,
certo? Então, a gente desconfia de certos indivíduos, com certas ‘ca-
racterísticas’264

A sociedade carioca, também, teve a mesma percepção em relação a se-


letividade das abordagens policiais. Em pesquisa realizada em 2003, apesar

262 Ibid., p. 103.


263 Ramos e Musumeci, op. cit. p.1.
264 Reis, op. cit. p. 191.
102

de aprovar as abordagens, a população da cidade do Rio de Janeiro acreditava


que elas eram seletivas e abertamente discriminatórias, sendo que 60% acredi-
tavam que as escolhas dos policiais tinham como parâmetro a aparência física
dos abordados, 40,1% a cor da pele e 19,7% o modo de vestir 265.

Não há como negar que o etiquetamento social está presente no imagi-


nário da sociedade brasileira, em suas instituições, em seus membros e em
suas táticas. Entretanto, a falta da criticidade apontada pelos representantes
do labeling approach está presente em outros aspectos da abordagem policial, a
exemplo das classes perigosas e do racismo, que contribuem para a necropolí-
tica, algo impensável em uma Democracia Constitucional.

3.3 O SUSPEITO DA ABORDAGEM E AS “CLASSES PERIGOSAS”.

Alberto Passos Guimarães 266, citado por Coimbra, explica que o termo
“classes perigosas” surgiu na primeira metade do século XIX para definir um
conjunto social formado à margem da sociedade civil, fruto da superpopula-
ção relativa ou do exército industrial de reserva existente nas fases iniciais da
Revolução Industrial na Inglaterra.

Nesse sentido, o historiador Sidney Chalhoub pontua que a escritora


inglesa Mary Carpenter utilizou esse termo em 1840 em um estudo sobre cri-
minalidade e infância culpada, onde, para ela, as classes perigosas seriam
constituídas por pessoas que já houvessem passado pela prisão ou as que não
tivessem sido presas, porém, ambas, teriam optado por viver da prática de
furtos e não do trabalho para sustentar suas famílias 267. Chalhoub atenta para
o fato que até então o termo “classes perigosas” era utilizado como uma estra-

265Ramos e Musumeci, op. cit., p. 6.


266GUIMARÃES apud COIMBRA, C. OPERAÇÃO RIO : o mito das classes perigosas : um
estudo sobre a violência urbana , a mídia impressa e os discursos de segurança pública.
Niteroi: Oficina do Autor, 2001, p. 80.
267 CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial . São Leopoldo:

Companhia das Letras, 1996, p. 20.


103

tégia de sobrevivência para pessoas que viviam a margem da lei 268. Não há
dúvidas que houve uma mudança considerável no significado do termo .

Para Louis Chevalier essa mudança se deu através de alguns pesquisa-


dores franceses na segunda metade do século XIX. Chevalier destaca as pes-
quisas de Antoine-Eugène Buret e Honoré Antoine Frégier.

Buret, em sua obra De la misère des classes laborieuses en Angleterre et en


France 269, de 1840, concentrou suas ideias na correlação entre criminalidade e
pobreza, onde a classe trabalhadora e a pobreza possuíam características pró-
prias do mundo criminal 270. Contudo, Buret faz uma relação direta entre po-
breza e angústia, até então nunca realizada, conforme trecho abaixo.

A pobreza é sentida moralmente. O reconhecimento do mal não é


adequadamente sustentado apenas pelo dano à sensibilidade física;
afeta algo superior, o sentido moral. Diferentemente da pobreza, que,
como veremos, muitas vezes é apenas uma aflição física, a angústia -
e esta é sua característica constante - aflige o homem inteiro, alma e
corpo igualmente. A angústia é um fenômeno da civilização; pressu-
põe o despertar, mesmo o desenvolvimento mais elevado, o da cons-
ciência humana. Não precisamos voltar à barbárie ou ao estado de
selvageria, pois podemos encontrar classes de indivíduos, ou mesmo
de povos, em nossas próprias sociedades que são destituídos, mas
ainda carecem daquela consciência que traz os efeitos reais do sofri-
mento físico para casa. os sentimentos mais íntimos. Certas classes da
humanidade sofrem a mais extrema pobreza, mas não sofrimento em
nosso sentido. O camponês da Picardia, com sua cabana feia de barro
e palha, é tão pobre quanto um homem pode ser, mas praticamente
nunca importuna a caridade pública; ele não está angustiado. O
mesmo pode ser dito de todos os grupos que permaneceram em sua
indigência primitiva, como o povo da Baixa Bretanha e da Córsega
(tradução nossa)271.

268Ibid., p. 80.
269Tradução livre: “A miséria das classes trabalhadoras na França e na Inglaterra ”.
270 CHEVALIER, L. Laboring classes and dangerous classes in paris during the first half

of the nineteenth century. New York: Howard Fertig, 1973, p. 142.


271 Is poverty felt morally. The recognition of evil is not adequately sustained solely by the
injury to the physical sensibility; it affects something higher, the moral sense. As distinct
from poverty, which, as we shall see, is often merely a physical affliction, distre ss – and this
is its constant characteristic – afflicts the whole man, soul and body alike. Distress is a phe-
104

Buret, desta forma, associa a angústia como uma característica refinada


da civilização, onde o pobre seria incapaz de senti -la devido a sua condição
primitiva, devido a situação de pobreza.

Já Frégier, em sua obra Des classes dangereuses de la population dans les


grandes villes 272, de 1840, se esforça para associar a criminalidade a miséria.
Segundo Chevalier, ele descreveu malfeitores de toda a sorte, trabalhadoras
ou não, ladrões, prostitutas, vigaristas e tentou identificá-los através de esta-
tísticas dentro da realidade Parisiense 273. O estudo abrangeu grande parte da
classe trabalhadora, o que impactou sua estatística, mas a maior crítica feita
por Chevalier advém do fato de Frégier não estabelecer definições claras para
os termos utilizados na pesquisa. Assim, para ele os pobres e as classes peri-
gosas se apresentavam da seguinte forma:

Sempre foram e sempre serão o terreno fértil mais produtivo de mal-


feitores de todos os tipos; são eles que devemos designar como as
classes perigosas. Pois, mesmo quando o vício não vem acompanha-
do de perversidade, pelo próprio fato de se aliar à pobreza na mesma
pessoa, ele é objeto de temor próprio da sociedade, é perigoso (tradu-
ção nossa)274.

Chalhoub comenta que Frégier realizou uma ampla descrição das con-

nomenon of civilization; it presupposes the awakening, even the higher development, of the
human consciousness. We need not go back to barbarism or the state of savagery for we can
find classes of individuals, or even of peoples, in our own societies who are destitute, but
still lack that consciousness of it which brings the real effects of physical suffering home to
the inmost feelings. Certain classes of mankind suffer the most extreme poverty, but not
distress in our sense. The Picardy peasant, with his sordid hut of mud and straw, is as poor
as a man can be, but he practically never importunes public charity; he is not distressed.
The same may be said of all the groups which have remained in their primitive indigence,
such as the people of lower Brittany and Corsicans. Cf. BURET apud CHEVALIER, op. cit.,
p. 142–43.
272 Em tradução livre: “Classes perigosas da população nas grandes cidades ”.
273 Chevalier, op. cit. , p. 140–41.
274 Have always been and will always be the most productive breeding ground of evildoers of all

sorts; it is they whom we shall designate as the dangerous classes. For even when vice is not accom-
panied by perversity, by the very fact that it allies itself with poverty in the same person, he is a prop-
er object of fear to society, he is dangerous. C.f. Chevalier, op. cit., p. 141.
105

dições de vida do parisiense pobre, não conseguindo estabelecer com precisão


a fronteira entre “classes perigosas” e “classes pobres” 275.

Entretanto, há de se assinalar que as ideias de Frégier não demoraram a


chegar as plagas brasileiras, já nos idos de maio de 1888, como pode-se verifi-
car em um debate realizado por deputados do Império do Brasil logo após a
promulgação da Lei Áurea.

As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre fo-


ram e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes
de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o tí-
tulo de – classes perigosas - ; pois quando o vício não é acompanhado
pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo indivíduo cons-
titui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cres-
ce e torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteri-
ora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela ociosidade276.

Não fosse o registro nos anais da Câmara de Deputados em 1988 , tal


discurso poderia muito bem ser proferido no Brasil de agora. Chalhoub, mais
adiante, resume a essência do conceito de pobreza que ficará arraigado ao
imaginário da população brasileira. Segundo o autor, a pobreza de uma pes-
soa era suficiente para torná-la um malfeitor em potencial 277.

Percebe-se, também, a distância conceitual de “classe perigosa” para


Mary Carpenter e o conceito já aclamado pelos deputados brasileiros em 1888,
o qual já associa o ócio, o crime e a pobreza.

Nessa linha de pensamento, a partir dos estudos de Karl Marx, Cecília


Coimbra 278 afirma que o sistema capitalista, através do sistema de acumulação
de capital, forma a riqueza, mas também o seu contrário, a miséria, que passa
a ser naturalmente compreendida como fruto dos vícios e ociosidade dos po-
bres. A autora pontua que os modelos econômicos vigentes necessitam excluir

275 Chalhoub, op. cit., p. 21.


276 Chalhoub, op. cit., p. 21.
277 Chalhoub, op. cit., p. 23.
278 Coimbra, op. cit., p. 80.
106

vastos setores da população de forma que para existir, precisa da pobreza,


que por sua vez gera a miséria.

Essa íntima associação da pobreza ao sistema capitalista permite a co-


nexão da pobreza com o espaço. Os espaços urbanos passam a representar no
plano físico a miséria em decorrência da pobreza, acrescentando mais um fa-
tor de exclusão e de rotulagem. O próprio Engels, ao analisar o espaço urbano
na Inglaterra do século XIX, declarou que o contraste das grandes cidades
permitiu ao trabalhador refletir sobre suas condições e lutar, pois, elas “de-
ram forma aguda à doença do corpo social que, no campo, apresentava-se
cronicamente” 279.

Apesar de suas particularidades, em linhas gerais, houve o mesmo pro-


cesso no Brasil. Milton Santos 280, citado por Coimbra, assevera que ao longo
dos séculos o processo de urbanização no Brasil foi associado a pobreza, apro-
fundado ao final do século XIX e início do século XX, associado ao avanço da
industrialização.

Esses espaços ainda não valorizados pelo mercado imobiliário são de-
nominados por Cecília Coimbra de “territórios da pobreza”, também chama-
das de “periferias pobres”, onde as pessoas vivem sem as mínimas condições
de saneamento básico, transporte e moradia. A autora acrescenta que esses lo-
cais são comumente associados a violência, ao banditismo e a criminalida-
de 281.

Um bom exemplo dessa realidade pode ser comprovado com a decisão


política de expulsar as classes populares das áreas centrais da cidade do Rio
de Janeiro no final do século XIX, empurrando-as para a periferia ou até
mesmo na existência dos “cortiços”, associados a sujeira, criminalidade, po-

279 ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo


Editorial, 2010, p. 161.
280 SANTOS apud COIMBRA, op. cit., p. 81.
281 Ibid., p. 81–82.
107

breza e refúgio de escravos fugidos dos cativeiros 282.

Historicamente, ações que promoveram a escravidão, exclusão e até o


genocídio, em sua maioria, necessitaram de motivações que se justificassem,
assim, a cultura, as ideologias, a religião e até o medo serviram de lastro para
os mais absurdos atos cometidos por grupos humanos. No caso das “classes
perigosas”, coube a ciência a assinatura da sentença cabal que justificou a ex-
clusão social e espacial por parte da sociedade.

Teorias racistas oriundas do darwinismo social e do movimento euge-


nista permitiram a sedimentação da exclusão. Coimbra 283 aponta conceitos e
expressões que surgiram e tomaram força ao final do século XIX. Assim, ex-
pressões como "prole malsã", “herança degenerativa”, "inferiorização da pro-
le" e "procriação defeituosa", dentre outras, faziam parte do vocabulário da
medicina, psiquiatria, antropologia e até das ciências jurídicas. A força desse
“pensamento científico” pode ser constatada nas palavras de Renato Kehl, um
dos líderes do movimento eugênico no Brasil no início do século XX, que de-
fendia um projeto de esterilização para determinados grupos sociais, confor-
me trecho abaixo.

... parasitas, indigentes, criminosos, doentes que nada fazem, que ve-
getam nas prisões, hospitais, asilos; (dos) que perambulam pelas ruas,
vivendo da caridade pública (dos) amorais, (dos) loucos que enchem
os hospitais, (da) mole de gente absolutamente inútil que vive do jo-
go, do vício, da libertinagem, do roubo e das trapaças ... 284.

Na visão de Renato Kehl a esterilização seria o caminho viável para to-


dos aqueles que não se mostravam úteis para a produção 285. Kehl era farma-
cêutico, médico e escritor relevante, mas não era uma voz singular do seu

282 Chalhoub, op. cit., p. 25–26.


283 Coimbra, op. cit., p. 86.
284 KEHL apud COIMBRA, op. cit., p. 87.
285 Coimbra, op. cit., p. 87.
108

tempo. Chalhoub 286 revela que intelectuais e médicos da época difundiam


ideias higienistas e darwinistas realizando diagnósticos e prescrevendo cura
da mesma forma que um economista, em tempo de inflação, analisava a reali-
dade econômica.

Apesar do declínio do higienismo e do darwinismo social como verda-


des incontestáveis, a estratégia de ordenação dos espaços urbanos caracteri-
zada por segregação, exclusão, isolamento dos pobres, associadas a doenças,
aos perigos, as ameaças e a violência perduraram ao longo do século XX 287 e
continuam forte no século XXI.

Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ,


referentes ao ano de 2018, dão conta que 13,5 milhões de brasileiros vivem em
extrema pobreza, maior nível em sete anos, os quais reforçam a continuidade
do processo histórico de exclusão social e reforço do estereótipo das “classes
perigosas”. Esses números equivalem à população de Bolívia, Bélgica, Cuba,
Grécia e Portugal.

Os números aumentam quando se acrescenta o marcador para a linha


de pobreza, que perfazem 52,5 milhões de pessoas vivendo abaixo dessa linha
com rendimento diário inferior a US$ 5,5, não tendo acesso a condições de
moradia, esgotamento sanitário, abastecimento de água por rede e muito me-
nos coleta de lixo, conforme dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) di-
vulgados pelo IBGE 288.

Ao longo do tempo, a falta de critérios objetivos na definição dos sus-


peitos durante a abordagem policial tem reforçado todos os estereótipos elen-

286 Chalhoub, op. cit., p. 29.


287 Coimbra, op. cit., p. 100–101.
288 NERY, C. Extrema pobreza atinge 13,5 milhões de pessoas e chega ao maior nível em 7

anos. In: Agência IBGE Notícias. [Rio de Janeiro] 2019. Disponível em:
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia -noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-
nivel-em-7-anos>. Acesso em: 20 ago. 2020.
109

cados até o momento, onde o braço do Estado se faz mais forte e intenso nas
“classes perigosas”. Segundo Chalhoub 289, já no início do século XX a polícia
já tinha como método a suspeição generalizada, partindo do pressuposto de
que todo o cidadão seria suspeito de alguma coisa, onde, reforça o autor, “al-
guns cidadãos são mais suspeitos do que outros”.

Assim, os mais suspeitos, segundo Marcos Luiz Bretas, entre 1907 e


1930, e motivo de preocupação da polícia eram os vagabundos, alcoólatras,
estrangeiros, mendigos e a população pobre em geral 290, as chamadas “classes
perigosas”.

Essa realidade também perdura pelo século XXI, pois, pesquisa realiza-
da por Ramos e Musumeci 291 em 2004, a qual procura entender o “elemento
suspeito” das abordagens policiais na cidade do Rio de Janeiro , contabilizou
que as “as pessoas com renda mensal até cinco salários-mínimos sofreram re-
vista em mais de 40% dos casos, enquanto aquelas com renda superior a cinco
salários, somente em 17% dos casos”, em suma, mais que o dobro da probabi-
lidade.

Na Bahia, em 2002, Dyane Brito Reis chegou a mesma conclusão ao ou-


vir alguns policiais militares que atuavam em Salvador, conforme trecho
abaixo.

O que se percebe, ainda, na fala de muitos policiais, é que quanto


mais populares forem as características do bairro, maior a probabili-
dade de se ter indivíduos suspeitos. Este é o caso das ‘invasões’, ter-
mo pejorativo que, na Bahia, designa as favelas, ocupações ilegais de
terra classificadas como de baixa renda. São consideradas por muitos
como lugares de suspeição, devido ao padrão de construção simples
(ou inacabado), alta densidade populacional, falta de serviços muni-
cipais e localização periférica292.

289 Chalhoub, op. cit., p. 23.


290 BRETAS apud COIMBRA, op. cit., p. 103.
291 Ramos e Musumeci, op. cit., p. 8.
292 Reis, op. cit., p. 184.
110

Por fim, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 293 demonstra,


também, que o perfil dos óbitos pertencentes ao grupo 2, mortes ocorridas na
guerra entre as polícias e o mundo do crime, são em sua maioria “jovens ne-
gros, de sexo masculino, com escolaridade defasada, moradores de favelas e
periferias urbanas”. Em suma, não há muita diferença entre as “classes peri-
gosas” de ontem e as “classes perigosas” de hoje.

3.4 O SUSPEITO DA ABORDAGEM E O RACISMO

Todo o tema que se relacione com o racismo apresenta um grande desa-


fio filosófico e epistemológico, principalmente quando inclui a sociedade bra-
sileira, não por não se entender o racismo algo execrável, mas porque o ra-
cismo no Brasil aparece de maneira singular, de forma um tanto paradoxal,
pois ele está tão à vista, tão nítido, tão evidente, que ofusca a visão do obser-
vador, seja na hipermetropia do mar da discriminação, seja na miopia que
impede um futuro melhor. Esse fenômeno atinge a grande maioria da socie-
dade, dos órgãos do Estado, inclusive a polícia, a qual substantiva suas ações,
em sua maior parte, através da abordagem policial.

Talvez a reflexão advinda de Silvio Almeida 294 ajude a compreender es-


sa situação. Segundo ele, a concepção de raça como categoria que distingue os
seres humanos é proveniente do século XVI, como um fenômeno da moderni-
dade, que se apresenta conforme as circunstâncias históricas, de forma que ela
se relaciona intimamente a constituição política e econômica das sociedades

293 Para fins estatísticos, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divide os homicídios bra-
sileiros em cinco grupos típicos: Grupo 1: mortes internas ao mundo do crime e às suas re-
des próximas, que de modo geral compreende as guerras entre facções; Grupo 2: mortes
ocorridas na guerra entre as polícias e o mundo do crime; Grupo 3: feminicídios, ou seja, vi-
olência letal contra indivíduos com identidade feminina de gênero; Grupo 4: latrocínios, ou
seja, as mortes da vítima em situações de roubo; Grupo 5: homicídios de LGBTs. C.f.
BUENO, S.; LIMA, R. S. de. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. São Paulo:
FBSP, 2019, p. 31.
294 ALMEIDA, S. Racismo estrutural: feminismos plurais. São Paulo: Pólen Livros, 2019, p.

18.
111

contemporâneas.

Para tanto, para se justificar o conceito de raça, Almeida revela que era
preciso construir um conceito sofisticado de homem, o qual fora concebido
pela filosofia iluminista, baseado em suas múltiplas facetas e diferenças: bio-
lógica, enquanto ser vivo; econômica, enquanto ser que trabalha; psicológica,
enquanto ser pensante; e linguística, enquanto fala. Essa divisão permitiu, se-
gundo o autor, a comparação e posterior classificação entre grupos humanos,
surgindo a distinção filosófico-antropológico entre civilizado e selvagem, o
qual evoluiu para civilizado e primitivo 295.

A partir de então, pareceu acontecer o triunfo da civilização. As gran-


des revoluções liberais (inglesa, americana e francesa) nasceram com o “pre-
texto de instituir a liberdade e livrar o mundo das trevas e do preconceito da
religião, iria travar guerra contra as instituições absolutistas e o poder da no-
breza” 296.

Esse triunfo civilizatório esmaeceu quando o Haiti realizou a sua revo-


lução. Almeida 297 explica que o povo haitiano, escravizado pelos franceses,
ousou reivindicar a liberdade e igualdade prometida na Queda da Bastilha.
Entretanto, ao invés de aplausos, a revolução haitiana fora recebida com me-
do e desconfiança e os haitianos descobriram que nem todos os homens eram
iguais e nem todos seriam reconhecidos como homem.

Nesse sentido, o filósofo camaronês Achille Mbembe lembra que o pen-


samento europeu, do ponto de vista histórico, nunca abordou a identidade em
termos de pertencimento mútuo (co-pertença) a um mesmo mundo, mas uma
manifestação do seu ser primeiro 298. Essa lógica europeia facilitou e impulsio-
nou sua visão supremacista.

295 Ibid., p. 19.


296 Ibid., p. 19-20.
297 Ibid., p. 20.
298 MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014, p. 10.
112

Diante desse contexto, Almeida 299 declara que conceito de raça assume
centralidade de forma aparentemente contraditória entre a universalidade da
razão e o ciclo de morte e destruição do colonialismo, operando de forma si-
multânea, como fundamento da sociedade contemporânea, permitindo que
ela fosse uma das tecnologias do colonialismo europeu para a submissão e
destruição das populações africanas, americanas, asiáticas e oceânicas.

Com o advento do positivismo, no século XIX, as indagações científicas


ocuparam o lugar das indagações filosóficas, assim, a biologia e a física foram
alçadas a oráculos da diversidade humana, criando a ideia de características
biológicas e geográficas, as quais explicariam as diferenças morais, psicológi-
cas e intelectuais entre as diferentes raças, propiciando inferências “científi-
cas” em que “a pele não branca e o clima tropical favoreciam o surgimento de
comportamentos imorais, lascivos e violentos, além de terem pouca inteligên-
cia” 300, verdades difundidas por nomes como Arthur de Gobineau, Cesare
Lombroso, no âmbito internacional, e Silvio Romero e Raimundo Nina Rodri-
gues, no âmbito nacional.

Mbembe, em consonância com o raciocínio de Silvio Almeida, afirma


que para o europeu, no alvorecer da modernidade, a pele preta em particular,
obteve qualificações primárias, depreciativas, perturbadoras, desequilibradas,
símbolos de repulsa e intensidade crua 301. Qualificações que ainda insistem
em sobreviver ao inconsciente coletivo na contemporaneidade.

Esse arcabouço mental pavimentou o discurso do neocolonialismo na


Conferência de Berlim, que pregava a “inferioridade racial dos povos coloni-
zados” 302, que estariam vaticinados à desorganização e ao subdesenvolvimen-
to.

299 Ibid., p. 20.


300 Ibid., p. 20-21.
301 Mbembe, 2014, p. 10.
302 Ibid., p. 21.
113

No século XX, segundo Almeida, parte da antropologia tentou descons-


truir o conceito de raça, esforçando-se para demonstrar que não havia deter-
minações biológicas, algo já verificado pela decodificação do genoma huma-
no, hierarquia entre culturas, religiões, moral ou sistema político. Contudo, os
horrores genocidas perpetrados pela Alemanha nazista reforçaram o caráter
político do conceito de raça, utilizado, ainda, como forma de naturalizar a de-
sigualdade e o genocídio de grupos sociais considerados minoritários.

Dessa forma, para prosseguir na pesquisa, necessário se faz discernir os


conceitos de racismo, preconceito e discriminação a fim de compreender me-
lhor suas diferentes nuances na designação do suspeito durante uma aborda-
gem policial. Assim, segundo Silvio Almeida:

... racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça


como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscien-
tes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios
para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam303.

O preconceito racial, no entanto, é a concepção baseada em estereóti-


pos de indivíduos que pertençam a determinado grupo racializado. Já a dis-
criminação racial consiste na imputação de tratamento diferenciado a inte-
grantes de grupos racialmente identificados, tendo no requisito fundamental
o poder da ação 304. Interessante notar é que por ser sistêmico, o racismo age
de forma processual, em diferentes seguimentos, de inúmeras maneiras e em
diversos locais da sociedade, o que tende a proporcionar ao homem preto
uma dura batalha por seus direitos.

É importante salientar que embora a cultura pop, principalmente os


filmes hollywoodianos, apresentem um enfrentamento declarado do homem
preto, ou não branco, na luta pelos direitos civis nos Estado Unidos ou na
África do Sul apartada, em um racismo explícito e brutal, mostrando a vida

303 Ibid., p. 21.


304 Ibid., p. 23.
114

de líderes como o Reverendo Martin Luther King, Rosa Parks, Malcom X, Ste-
ve Bico e Nelson Mandela, no Brasil, no entanto, o racismo se desenvolveu de
forma peculiar, conforme demonstra o escritor Nelson Rodrigues, citado por
Abdias Nascimento.

Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados


Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. Nós o tratamos com uma
cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermen-
ta em nós, dia e noite305.

Nascimento, já em 1978, criticava a concepção de democracia racial cu-


nhada por Gilberto Freyre, no que achava ser uma “perigosa mística racista” e
permitia o genocídio sistematizado do homem negro 306 na sociedade brasilei-
ra 307. Assim, Álvaro Bomílcar, citado por Nascimento, faz a seguinte denún-
cia:

Os órgãos e instituições do poder público no Brasil, o governo, os le-


gisladores, o sistema de justiça criminal, a polícia, os intelectuais, a
imprensa etc., lançam uma guerra contra os negros sem nenhuma pi-
edade ou compaixão; uma guerra nunca de direta confrontação, mas
sutil e indireta, perseguição persistente e sem pressa dessas vítimas
do destino, pervertendo ou negando a eles seus direitos civis, subver-
tendo seu direito à educação, negando-lhes assistência pública ou
qualquer tipo de apoio oficial para custeio de educação ou subsistên-
cia308.

Toda essa infraestrutura social apontada por Bomílcar rouba do homem


preto a dignidade intrínseca ao ser humano, impedindo-o de atingir o seu real

305 NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo


mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 77.
306 Embora a o leitor possa estranhar a alternância dos termos “homem preto” e “homem ne-

gro” nas tratativas sobre o racismo, isso oco rre devido as sutis mudanças de significado ao
longo dos anos. De forma didática eles serão comentados conforme sejam nominados pelos
autores citados. Entretanto, do ponto de vista semântico a pesquisa adotará a concepção de
Abdias Nascimento, o qual afirma que do ponto de vista étnico/racial um brasileiro é designado
preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, cabra ou qualquer outro eufemismo utilizado para se
referir a raça do indivíduo. Cf. Nascimento, op. cit., p. 42.
307 Ibid., p. 43.
308 BOMÍLCAR apud NASCIMENTO, op. cit., p. 90.
115

potencial na sociedade e, consequentemente, aos seus descendentes. Os dize-


res de Bomílcar se assemelham ao que Silvio Almeida 309, de maneira resumi-
da, entende por racismo estrutural, onde o racismo é um produto normal das
relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares, ocorrendo de forma pa-
tológica.

As estatísticas demonstram as consequências do racismo estrutural para


a população preta. Segundo o IBGE 310, com dados referentes ao ano de 2018,
em relação a pessoas abaixo das linhas de pobreza 32,9% da população preta
ou parda possuem rendimentos inferiores US$ 5,50/dia, enquanto na popula-
ção branca esse número é inferior a 15,4%. Com rendimentos Inferiores a US$
1,90/dia, a população preta ou parda corresponde a 8,8%, sendo que os bran-
cos são 3,6%.

No mercado de trabalho, cerca de 30% dos pretos e pardos são ocupa-


dos por cargos gerenciais, enquanto 70% dos cargos são ocupados por bran-
cos. Caso seja analisado a taxa de subutilização do mercado de trabalho, 30%
dos subutilizados são compostos por pardos ou negros e somente cerca de
20% dos brancos são subutilizados.

Os números também são cruéis na educação, pois, ainda segundo o IB-


GE, a taxa de analfabetismos entre pessoas acima de 15 anos é de 6,8% das
pessoas pardas e não pretas contra 3,1% dos brancos, isso na zona urbana. Já
na zona rural, 20,7% dos pretos e pardos nessa faixa etária são analfabetos,
enquanto 11% são brancos.

Na política, onde se aloja o poder da república, os números são ainda


mais discrepantes por que 75,6% dos políticos são brancos e 24,4% deles são
negros e pardos. Os indicadores sociais não param por aí, a desigualdade

Ibid., p. 35.
309
310INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) . Desigualdades
Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas-Informação Demográfica e
Socioeconômica, n. 41, p. 1–12, 2019b, p. 1.
116

prossegue na informalidade, na habitação, no acesso a bens de consumo , na


violência e tantos outros indicadores quantos possíveis.

Esse racismo estrutural demostrado em números é consequência de


uma histórica rotulação negativa sobre o homem preto no Brasil, fato esse ob-
servado a partir da afirmação do pintor francês Jean-Baptiste Debret:

O negro é indolente, vegeta onde se encontra, compraz na sua nuli-


dade e faz da preguiça sua ambição, por isso a prisão para ele é um
asilo sossegado em que pode satisfazer sem perigo sua paixão pela
inação, tendência irreprimível que o leva a um castigo permanente
(grifo nosso)311.

Não bastasse um artista renomado como Debret expressar tais concep-


ções, a ciência também chancelava tais estereótipos, a exemplo dos já nomi-
nados Nina Rodrigues e Silvio Romero, os quais acreditavam que os mestiços
eram “degradados, descaracterizados, débeis, sujeitos a toda sorte de doen-
ças” 312.

As forças de segurança, historicamente, assim como a sociedade, abra-


çaram tais convicções, nesse sentido, Chalhoub 313 afirma que em 1888, pós
abolição da escravatura, os negros eram suspeitos preferenciais nas “classes
perigosas”, em uma estratégia de repressão contínua a fim de mantê-los sobre
controle fora da lavoura produtiva. Ainda, segundo o autor, essa prática teria
influenciado o conceito de “ordem” como algo próprio do poder público e su-
as instituições de controle, a exemplo da exigência de carteira de i dentidade,
de trabalho, etc.

Ainda hoje, em pleno século XXI, essa etiquetagem se encontra viva,


talvez com uma nova roupagem, mas com a mesma essência. Vera Malaguti
Batista, ao analisar o medo na cidade do Rio de Janeiro, descreve o seguinte
estereótipo do bandido carioca, conforme trecho abaixo:

311 DEBRET apud COIMBRA, op. cit., p. 84.


312 LOBO apud COIMBRA, op. cit., p. 85.
313 Chalhoub, op. cit., p. b23-24.
117

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem


negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas,
vestido com ténis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho
ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de
miséria e fome que o circunda. A mídia, a opinião pública destacam o
seu cinismo, a sua afronta314.

Fora os elementos singulares da cultura e geografia carioca , essa descri-


ção pode ser utilizada em qualquer parte do Brasil. A rotulagem é tão intensa
que até o próprio homem preto internaliza essa situação, conforme demonstra
Silvo Almeida.

Se boa parte da sociedade vê o negro como suspeito, se o negro apa-


rece na TV como suspeito, se poucos elementos fazem crer que negros
sejam outra coisa a não ser suspeitos, é de se esperar que pessoas ne-
gras também achem negros suspeitos, especialmente quando fazem
parte de instituições estatais encarregadas da repressão, como é o ca-
so de policiais negros315.

De fato, a pesquisa de Dyane Brito Reis com policiais baianos em 2002


já dava conta dessa realidade, conforme a fala de um Cabo da Polícia Militar:

Em nossa terra o negro é suspeito, mas os marginais estão de paletó


e gravata. A PM é preconceituosa porque segue os padrões da socie-
dade, de que todo preto é suspeito (...) o marginal não tem cara. A ca-
ra do marginal quem faz é o sistema; é o cara negro, camiseta ou ca-
misa de marca, bermudão, boné, tatuagem, etc. É o que dizem pra
gente na Academia (grifo nosso)316.

Constatada, também, por Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, em 2003,


ao colherem relatos de Oficiais da Polícia Militar carioca, fazendo a seguinte
afirmação: “A cor, num primeiro momento, pode ser importante para a
abordagem. Num primeiro momento, na primeira observação, mas o mais

314 MALAGUTI, V. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2.
ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 36.
315 Ibid., p. 47.
316 Reis, op. cit., p. 193.
118

importante é a apresentação pessoal (grifo nosso) 317.

Verificada por Gilvan Gomes Silva, em 2009, ao colher relatos de polici-


ais do Distrito Federal, conforme trecho de um Capitão da Polícia Militar da-
quela força:

... A abordagem depende basicamente do local, do horário, das cir-


cunstâncias que levem a crer que aquela pessoa está com algo de er-
rado, que tá praticando alguma coisa errada, então, essa questão de
ser ou não ser afrodescendente às vezes pode contar, porque nós
sabemos que existe preconceito racial. Esse é até um aspecto de ber-
ço mesmo, né? E eu considero crucial se esse policial já vem com a
formação de casa de que o negro é inferior, que o afrodescendente é
inferior a raça branca, então ele vai (pequena pausa) com certeza ele
vai abordar mais afrodescendente, vai tratar mau, e vai ter a mesma
instituição dando ensinamento que a situação não é desta forma, por
isso que eu falo que isso é mais um contexto social, que a pessoa (pe-
quena pausa) ela adquiriu na escola, em casa, é mais um costume eu
diria assim, né? (grifo nosso)318.

Percebe-se, assim, que o preconceito e a discriminação racial ainda es-


tão muito presentes na sociedade brasileira. É justamente por esse racismo es-
trutural, que altera a percepção do próprio indivíduo preto, que a definição
de suspeito precisa apresentar elementos objetivos a fim de não cometer injus-
tiça por parte das forças de segurança.

De forma perversa, o fator racial está presente no etiquetamento social,


nas classes perigosas, sendo o homem preto a interseção de todo o tipo de
discriminação que permeia a sociedade. Não ter uma visão crítica as circuns-
tâncias para a escolha de um suspeito na abordagem policial, as forças de se-
gurança podem contribuir inexoravelmente para a execução da necropolítica.

3.5 A NECROPOLÍTICA

As sociedades humanas desenvolveram inúmeras habilidades no trans-


correr da jornada do tempo. O homem, nesse período, desenvolveu habilida-

317 Ramos e Musumeci, op. cit., p. 11.


318 Silva, op. cit., p. 156.
119

des no campo artístico, arquitetônico, filosófico, linguístico, na s ciências, nas


relações interpessoais e nas demais áreas do conhecimento. Contudo, após a
Segunda Guerra Mundial, a descoberta dos horrores nazista despertou a co-
munidade internacional para o fato incontestável que, infelizmente, o homem
desenvolveu e aperfeiçoou a sua capacidade de promover a morte. Assim, al-
guns pensadores e intelectuais começaram a se debruçar sobre esse tema a fim
de compreendê-lo e interpretá-lo nas suas mais diversas formas de manifesta-
ções.

Michel Foucault, em uma de suas aulas no curso dado no College de


France, entre 1977 e 1978, conceituou aquilo que seria uma das bases do con-
ceito da necropolítica, segundo ele, o biopoder seria “o conjunto dos meca-
nismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas característi-
cas biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia
política, numa estratégia geral de poder” 319. O biopoder é o poder que se
exerce sobre a vida, o “Fazer viver e deixar morrer” 320. Dessa forma, aliando o
biopoder aos conceitos de soberania, estado de exceção e estado de sítio, o fi-
lósofo camaronês Achille Mbembe desenvolve o conceito de necropolítica.

Para Mbembe, a necropolítica são formas contemporâneas de subjugar a


vida ao poder da morte, que reconfiguram profundamente as relações entre
resistência, sacrifício e terror 321. Por apresentar uma leitura da política como
o trabalho da morte, Achille Mbembe acredita que a noção de biopoder con-
cebida por Michel Foucault é insuficiente para explicar as formas contempo-
râneas de subjugação da vida ao poder da morte. Foucault tinha como base do
conceito do biopoder a biologia, a distribuição da espécie humana em sub-
grupos, em raças, tanto que ele apresenta o racismo como uma “tecnologia

319 FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 3.
320 FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 284.
321 MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, v. 2, n. 32, p. 122–151, 2017, p. 146.
120

destinada a permitir o exercício do biopoder” 322, uma espécie de regulador de


morte que torna possível a função assassina do Estado.

Em que pese a originalidade de Foucault, o filósofo francês se mantém


apegado ao colonialismo europeu e ao holocausto da Segunda Grande Guerra
Mundial. É nesse ponto que Mbembe transcende a Foucault, pois, para ele o
conceito de biopoder deve estar associado aos conceitos de estado de exceção
e o estado de sítio, os quais permitem expandir essa leitura para além dos
eventos emblemáticos ligados ao nazismo e ao colonial ismo, como o neocolo-
nialismo dos povos africanos, conflitos étnicos-raciais ao redor do mundo, o
extermínio da populações indígenas e até no extermínio de determinadas par-
celas da população de um Estado constituído sobre algum pretexto, como por
exemplo o da segurança 323, todos eles promovendo a necropolítica.

Assim, Mbembe inicia o seu ensaio afirmando que o conceito de biopo-


der cultiva sua relação com as noções de soberania, correlacionando-a com a
violência. Ele faz isso realizando uma breve contextualização sobre a opressão
do colonialismo europeu no século XIX e os campos de extermínio nazista, en-
trelaçando os campos de atuação dessas ações ao estado de exceção 324.

Citando Giorgio Agamben, Mbembe assevera que o estado de exceção


“adquire um arranjo espacial permanente, que se mantém continuamente fora
do estado normal da lei 325”. Esse campo de atuação, então, estaria a margem
das leis civilizatórias, onde a violência estaria livre para ser exercida em uma
espécie de suspensão temporal do estado de direito.

Agamben 326 afirma que o estado de exceção abala o equilíbrio democrá-


tico quando os decretos do executivo se sobrepõem as leis votadas pelo legis-
lativo, algo que deveria acontecer em caráter excepcional e emergencial. Essa

322 FOUCAULT apud MBEMBE, 2017, p. 128.


323 Ibid., 138–42.
324 Ibid., 124.
325 AGAMBEN apud MBEMBE, 2017, p. 124.
326 AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 18–19.
121

prática, então, carece de legitimidade popular concorrendo para a ruína da


democracia.

Já o estado de sítio é oriundo da doutrina francesa proveniente do sécu-


lo XVIII, o qual previa a possibilidade do imperador declará -lo independen-
temente da situação efetiva da cidade sitiada ou diretamente ameaçada. O es-
tado de sítio se emancipa progressivamente em relação a guerra a qual estava
ligada originalmente, sendo utilizada como medida extraordinária de polícia
em caso de desordens e levantes internos, passando de efetivo ou militar a fic-
tício ou político 327.

É justamente nesse espaço que a soberania age, pois ela exerce o contro-
le sobre a mortalidade e define a vida como implantação de poder 328. Alicer-
çado em Georges Bataille, Mbembe afirma que a soberania seria uma forma de
recusa da aceitação dos limites impostos pelo medo da morte submetido ao
sujeito, de tal maneira que esses limites são completamente abandonados,
conforme pode ser observado no trecho a seguir.

A morte está presente nele, sua presença define esse mundo de vio-
lência, mas, enquanto a morte está presente, está sempre lá apenas
para ser negada, nunca para nada além disso. O soberano’, ‘conclui, é
ele quem é, como se a morte não fosse... Não respeita os limites de
identidade mais do que respeita os da morte, ou, ainda, esses limites
são os mesmos; ele é a transgressão de todos esses limites’329.

Mbembe 330, ainda com base em Bataille, diz que a morte se encontra no
domínio natural das proibições, a exemplo da sexualidade, da sujeira e dos
excrementos, exigindo da soberania a força necessária para sobrepujar essa
ordem natural – a proibição de matar – só que isso se dará dentro das condi-
ções dos costumes do soberano, o que reabre a discussão sobre os limites da
política. A política, assim, transgrediria a relação entre sujeito e morte em

327 Agamben, op. cit., p. 15–16.


328 Mbembe, 2017, p. 123.
329 BATAILLE apud MBEMBE, 2017, p. 127.
330 Ibid., 127.
122

uma crescente espiralizada, desorientando, desnorteando a própria ideia de


limite.

Dessa forma, o estado de exceção e o estado de sítio constituem a con-


dição de exceção à lei, a concatenação do biopoder na qual são colocados de-
terminados povos, grupos e sujeitos, ao serem submetidos a vontade do sobe-
rano de matar 331, submetidos, assim, a necropolítica.

3.6 A INDEFINIÇÃO DO SUSPEITO NA PROMOÇÃO DA NECROPO-


LÍTICA

O conceito atual de polícia, como visto anteriormente, é um produto do


nascimento do Estado moderno e o seu perfil se reflete no modelo de produ-
ção do direito e no papel a ser desempenhado pelos seus atores 332, inclusive a
polícia. Essa lógica é muito importante para se compreender melhor como a
indefinição do suspeito contribui para a promoção da necropolítica. Achille
Mbembe, conforme discutido no tópico anterior, atualizou o conceito de sobe-
rania a contemporaneidade. Em seu ensaio, Mbembe exemplifica o apartheid
sul africano e a situação na palestina, com todas as suas complexidades, como
exemplo de necropolítica, mas ela pode ser vista, sentida e inserida nos mais
diversos contextos, inclusive no Brasil.

Fátima Lima faz uma reflexão interessante sobre a realidade brasileira.


Segundo a autora, no Brasil, a necropolítica é visível no sistema carcerário, na
população em situação de rua, nos apartheids urbanos nas grandes e pequenas
cidades, no genocídio da população negra, nos grupos de justiceiros, nas filas
das defensorias públicas, nas urgências e emergências hospitalares, dentre
tantos outros exemplos 333.

De fato, pelo menos no tocante a segurança pública, os dados do Insti-

331Ibid., 128–32.
332 ESPÍNDOLA, op.cit..
333 LIMA apud LIMA, F. Bio-necropolítica : diálogos entre Michel Foucault e Achille

Mbembe. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 70, p. 20–33, 2018 28.


123

tuto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam a presença constante da


necropolítica, pois o Atlas da Violência de 2019 aponta que houve 65.602 ho-
micídios no Brasil no ano de 2017, o equivalente a uma taxa de 31,6 mortes
por 100 mil habitantes 334. Ainda segundo o estudo, 35.783 jovens foram assas-
sinados em 2017, sendo 94,4% do sexo masculino 335. Segundo o Anuário da
Segurança Pública, 5,159 mil casos de pessoas mortas foram em consequência
de intervenções policiais 336. Os números, por si só, já são uma tragédia, mas
tendem a piorar quando o fator racial é colocado na equação.

Em 2017 o Atlas da Segurança Pública constatou que a taxa de homicí-


dios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra
43,1%), em uma variação de 33,1% entre 2007 e 2017 337. Os dados referentes a
2018 338 demonstram que houve um aumento para 37,8% de homicídios por 100
mil habitantes, representando 75,7% das mortes violentas, mesmo havendo
redução de 12% dos homicídios em relação a 2017.

O próprio Atlas conclui que há a necessidade de direcionar políticas


públicas para reduzir o direcionamento racial no âmbito dos homicídios . É
bem verdade que essa situação é consequência da realidade dos afro-
brasileiros, que vem suportando efetiva discriminação, mesmo sendo maioria
da população, constituindo como minoria econômica, cultural, nos negócios e
na política, algo já denunciado por Abdias Nascimento na década de
70 339.Entretanto, não há dúvidas que a crescente política de segurança pública
– belicista -, também tem influenciado esses números. Essa realidade pode ser
constatada na política carcerária e nos grandes programas de segurança pú-

334 CERQUEIRA et al Atlas da Violência 2019. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa


Econômica Aplicada (Ipea), 2019, p. 5.
335 Ibid., p. 27.
336 LIMA, R. S. de; BUENO, S. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018. São Paulo:

FBSP, 2018, p. 6.
337 Cerqueira et al., 2019, p. 49.
338 CERQUEIRA et al. Atlas da Violência 2020. Distrito Federal: Ipea, 2020, p. 47.
339 Nascimento, op. cit., p. 83.
124

blica realizados no país.

No tocante ao sistema carcerário, para Loïc Wacquant 340 há uma política


neoliberal voltada para as pessoas que não são absorvidas pelo mercado de
trabalho, que seriam colocadas à margem da sociedade, a qual propiciaria po-
líticas que as conduzissem paras as prisões. Assim, desempregados, negros,
minorias étnicas e todos aqueles não são encaixados na ordem social seriam
conduzidos para o encarceramento sistemático.

Para o sociólogo houve o desmantelamento sistemático do estado de


bem-estar social alcançado pelos países Europeus e da América do Norte, o
que fragilizaria as garantias constitucionais dos excluídos. A ideia de Estado
mínimo foi retirando lentamente direitos conquistados na área da saúde, se-
gurança e da seguridade social.

Nesse sentido, as instituições policiais tiveram um papel importante,


pois segundo Loïc Wacquant, as metodologias de políticas de repressão ao
crime foram direcionadas para a parte excluída da sociedade. Ele cita como
exemplo a política de “tolerância zero”, gestada na cidade de Nova York, na
década de 80.

Wacquant afirma que nesse caso há uma retórica militar da "guerra" ao


crime e da "reconquista" do espaço público, onde os delinquentes (reais ou
imaginários), sem-teto, mendigos e outros marginais a invasores estrangeiros
seriam assimilados.

Essa política de segurança se expandiu e foi utilizada em várias cidades


no mundo, a exemplo de Londres, Milão, Nápoles, Toronto, dentre outras. O
pesquisador revela que houve ações no sentido de implantar a “Tolerância
Zero” no Distrito Federal brasileiro, onde o então Governador Joaquim Roriz
contratou 800 policiais civis e militares a fim de reduzir criminalidade que

340 WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


125

explodira na década de 90 341.

É interessante perceber que a filósofa Angela Davis chega a mesma con-


clusão de Loïc Wacquant. Davis faz um panorama da realidade prisional dos
Estados Unidos, em que acredita no direcionamento da política de encarcera-
mento para os pobres e negros. Davis demonstra que após a “guerra fria”
houve a migração da indústria bélica para o setor de segurança e posterior-
mente para o setor prisional, formando um complexo prisional -industrial, on-
de grandes empresas obtém lucros em detrimento de grupos excluído das po-
líticas públicas da sociedade 342.

Angela Davis relata que essa política discriminatória remonta a escra-


vidão e a toda cultura que a envolve. O encarceramento incorpora as premis-
sas da cultura escravocrata do castigo, da humilhação, da degradação, da tor-
tura, do preconceito e de outras práticas utilizadas como balizadores naturais
ao encarceramento.

Essa realidade pode ser facilmente constada nas prisões brasileiras . Ni-
colitt e Neves 343, ao pesquisarem “arquitetura da execução penal” no Instituto
Penal Plácido de Sá Carvalho, no Rio de Janeiro, verificaram uma série de vio-
lações de Direitos Humanos, a exemplo da superlotação carcerária, a inexis-
tência de repositórios específicos para o acondicionamento de pertences pes-
soais nos alojamentos, inexistência de chuveiros, inexistência de sanitários

341 Wacquant op. cit., p. 31


342 DAVIS, A. Estão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018.
343 Os autores observaram as estruturas de Poder nos limites do espaço territorial na qual a
dominação é exercida e onde existe a soberania do poder existente na unidade prisional.
Através de imagens, dados estatísticos e informações fornecidas pelo do Instituto Penal Plá-
cido de Sá Carvalho, no município do Rio de Janeiro, a pesquisa analisa a estrutura, a partir
das normas que regulam a execução penal, refletindo sobre a relação do ser e do dever ser à
luz do garantismo penal de Ferrajoli, comparando-o como uma espécie de “campo de con-
centração” como paradigma do poder na perspectiva de Giorgio Agamben , além das contri-
buições de Walter Benjamin. Cf. NICOLITT, A. L.; NEVES, F. H. C. Execução penal,
unidade prisional Plácido de Sá Carvalho e o mito do progre sso: olhares a partir de
Ferrajoli, Agamben e Walter Benjamim. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 154, n.
Abril, 2019.
126

adequados, água potável e mais uma série situações que agravam a degrada-
ção humana.

Não há como não associar essa condição a “Vida Nua” descrita por
Giorgio Agamben. Segundo ele a “vida Nua” seria a vida “matável” e “insa-
crificável” do homo sacer, onde a vida humana é incluída no ordenamento uni-
camente sob a forma de sua exclusão 344, tal qual os pobres, negros e prisionei-
ros observados no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho.

Retomando o pensamento de Davis, a ação policial é uma das formas de


manter essa estrutura quando ela traça um perfil racial em suas ações e impu-
ta o crime a cor, estendendo essa realidade aos latinos. Vale ressaltar que es-
sas intervenções livres e carentes de vinculação penal são consideradas por
Ferrajoli como uma característica do estado policial 345.

Assim, esse perfil racial, dito por Davis e corroborado por Wacquant e
Nicolitt 346, existe e pode florescer a partir da inexistência de critérios objetivos
para se estabelecer um suspeito, permitindo que elementos demasiadamente
subjetivos e presentes na sociedade influenciem na ação policial contribuindo
na promoção da necropolítica.

344 AGAMBEN, G. Homo saber: o poder soberano e a sua vida I. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2007.
345 FERRAJOLI, L. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3 a ed. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002, p. 82.


346 NICOLITT, A. L.; LIMA, P. H. De tigres a tiros: negros, segurança pública e necropolítica.

In: De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro . São Paulo: Editora Elefante,
2020, p. 135.
127

CAPÍTULO 4 - EM BUSCA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA A


IDENTIFICAÇÃO DO SUSPEITO

4.1 AS LIMITAÇÕES DO POLICIAMENTO OSTENSIVO

Como dito anteriormente, a abordagem é a técnica mais utilizada pelas


polícias militares no Brasil e o primeiro ponto a se observar para encontrar
critérios objetivos para desencadeá-la é reconhecendo as limitações do polici-
amento ostensivo. Diariamente, milhares de pessoas são abordadas no terri tó-
rio nacional em coletivos, veículos particulares, em estabelecimentos comerci-
ais ou em trânsito pelas vias públicas. Entretanto, mesmo com a expansão e
larga utilização das abordagens pelas polícias, não há indício estatístico que
haja um decréscimo da criminalidade e muito menos que a abordagem, prin-
cipalmente a aleatória, tenha influência significativa em sua redução. O gráfi-
co 1 já demonstrou a crescente de homicídios entre a década de 70 e o ano de
2017 e o Gráfico abaixo permitirá a análise da vertente do crime contra o pa-
trimônio.

Gráfico 2 - Variação de Furtos e Roubos de Veículos no Brasil.


300.000
268.733 278.660 271.613 263.002 276.604
237.174 240.848 244.761
250.000
217.766

200.000 184.497

150.000

100.000

50.000

0
2015 2016 2017 2018 2019

Furto Roubo
128

Fonte: SINESP 347

O gráfico 2 mostra a variação de furtos e roubos de veículos no Brasil


entre os anos de 2015 e 2019. Constata-se que em ambos os crimes, ao longo
de 05 anos, alcançaram a marca de mais de 1 milhão de veículos furtados e
roubados no país. Embora tenha havido queda dos números em 2018 nas Uni-
dades da Federação e que os estados tenham tentado capitalizar a redução
dos crimes por meios de inciativas na área da segurança pública, o Anuário
da Segurança Pública lembra que não houve um método unificado que expli-
casse a redução em todo o território nacional 348.

Ainda assim, percebe-se que as polícias utilizam o recurso da aborda-


gem, conforme os trechos abaixo:

A Polícia Militar do Ceará (PMCE) realizou, em 24 horas, a aborda-


gem de 21.631 pessoas. A ação é parte do resultado da participação
da PMCE na Operação Tiradentes 2019. Além das abordagens, a
ofensiva resultou nas prisões/apreensões de 130 pessoas – sendo 88
pessoas em flagrante delito e 42 por cumprimento de mandados judi-
ciais (grifo nosso)349.

A 'Operação São João 2019' da Polícia Militar, concluída nesta terça-


feira (25), abordou 7.407 veículos e 14.857 pessoas em todo o estado

347Elaborado pelo autor com base nos dados disponibilizados pelo Sistema Nacional de In-
formações de Segurança Pública (SINESP). Cf. BRASIL. Ministério da Justiça. Ocorrências
Criminais - Sinesp. In: Secretaria Nacional de Segurança Pública. Brasília , DF: [2020?].
Disponível em: <http://dados.mj.gov.br/dataset/sistema -nacional-de-estatisticas-de-
seguranca-publica>. Acesso em: 29 nov. 2020.
348 Segundo o Anuário da Segurança pública outros fatores poderiam explicar a mudança no
quadro criminal, a exemplo da guerra entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Co-
mando Vermelho (CV), que teria provocado milhares de mortes entre os pequenos crimin o-
sos, “soldados da guerra”, reduzindo a mão de obra criminosa, criando uma reação em ca-
deia no mundo crime. A corrida eleitoral para o cargo de governador, que gera ação anor-
mal das polícias face a luta pela manutenção do poder em meio a mudança eleitoral. Cf.
BUENO, S.; LIMA, R. S. DE. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. São Paulo:
FBSP, 2019, p. 80–81.
349 CEARÁ. Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social. Polícia Militar do Ceará aborda

mais de 21 mil pessoas durante a Operação Tiradentes 2019 . In: Portal do Governo.
Fortaleza. 2019. Disponível em: <https://www.sspds.ce.gov.br/2019/04/25/policia -militar-
do-ceara-aborda-mais-de-21-mil-pessoas-durante-a-operacao-tiradentes-2019/>. Acesso em:
29 nov. 2020.
129

(BA). Isto foi resultado da intensificação da fiscalização e patrulha-


mento nas rodovias estaduais, por meio das equipes do Batalhão de
Polícia Rodoviária (BPRv) e das Companhias Independentes de Poli-
ciamento Rodoviário (1ª CIPRv/Itabuna, 2ª CIPRv/Brumado e 3ª CI-
PRv/Barreiras), diante do fluxo das pessoas que viajaram para o inte-
rior (grifo nosso)350.

Campo Grande (MS) – A Operação Corpus Christi, realizada pela Polí-


cia Militar de Mato Grosso do Sul, abordou 13.904 pessoas durante os
quatro dias de operação, iniciada no dia 10 de junho e encerrada nes-
ta segunda-feira (15.6). Ao todo, 427 pessoas foram presas ou apre-
endidas encaminhadas para delegacias e mais 50 foragidos da Justi-
ça foram recapturados. O balanço registra ainda seis mortes nas ro-
dovias estaduais no feriado prolongado (grifo nosso)351.

PM aborda mais de 13 mil suspeitos no feriado de Finados no ES:


Entre sexta (30) e segunda (2), a Operação Finados mobilizou mais de
5.400 policiais e 2.264 viaturas, que se dedicaram nas ações de abor-
dagem em vários pontos dos municípios capixabas (grifo nosso)352.

Em um período de 20 dias, entre 12 de dezembro de 2015 e 3 de janei-


ro deste ano, durante a operação Fim de Ano, a Polícia Militar pren-
deu em flagrante delito 556 pessoas pelos mais diversos crimes e ou-
tras 540 assinaram Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) por
infrações tipificadas como de ‘menor potencial ofensivo’. (...) De
acordo dados da Superintendência de Planejamento Operacional e
Estatística (Spoe), da PM, 70.898 pessoas e 22.870 veículos foram
abordados em centenas de pontos de atuação policial (grifo nosso)353.

350 BAHIA. Secretaria de Segurança Pública. Operação da Polícia Militar aborda mais de 7
mil veículos. In: Interior. [Salvador]. 2019. Disponível em:
<http://www.ssp.ba.gov.br/2019/06/5923/Operacao-da-Policia-Militar-aborda-mais-de-7-
mil-veiculos.html>. Acesso em: 29 nov. 2019.
351 MATO GROSSO DO SUL. Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública. PM aborda

mais de 13 mil pessoas e registra seis mortes no trânsito . Campo Grande: 2020. Disponível
em: <https://www.sejusp.ms.gov.br/pm-aborda-mais-de-13-mil-pessoas-e-registra-seis-
mortes-no-transito/>. Acesso em: 29 nov. 2020.
352 PM aborda mais de 13 mil suspeitos no feriado de Finados no ES. In: A GAZETA.
[Vitória?], 03 nov. 2020. Disponível em: <https://www.agazeta.com.br/es/policia/pm -
aborda-mais-de-13-mil-suspeitos-no-feriado-de-finados-no-es-1120>. Acesso em: 29 nov.
2020.
MATO GROSSO. Mais de 500 prisões em flagrante e 180 carros recuperados em ações da
353

PM. Disponível em: <http://www.mt.gov.br/-/mais-de-500-prisoes-em-flagrante-e-180-


130

De fato, as polícias militares brasileiras acreditam piamente que o nú-


mero excessivo de abordagens possa impactar significativamente a criminali-
dade. O ponto a ser observado nessa estratégia reside na complexidade da se-
gurança pública, na limitação da natureza do policiamento ostensivo imposta
pelo próprio sistema brasileiro e na literatura especializada existente.

No que tange a complexidade da segurança pública, Nicolitt e Neves,


lastreados no pensamento de Batista, lembram que a política criminal, de
forma ampla, engloba a política de segurança pública, com ênfase na institui-
ção policial, a política judiciária, com ênfase na instituição judicial, e a políti-
ca penitenciária, com ênfase na instituição prisional 354.

Na mesma linha de pensamento dos autores mencionado s, da comple-


xidade da segurança pública, Bengochea et. al. lembram que a segurança pú-
blica é um processo sistêmico que envolve ações públicas e comunitárias, em
um cenário que lida com conhecimentos e ferramentas de competências dos
poderes constituídos e ao alcance da comunidade organizada 355. Em suma, a
segurança pública lida com multiplicidades de eventos, instituições e legisla-
ções que transcendem a ação e o controle das forças policiais.

Outro ponto a ser observado reside o próprio sistema policial brasi leiro.
Como dito anteriormente neste trabalho, no âmbito estadual, as polícias pos-
suem funções diferentes, o que, segundo Marcos Rolim, seria uma realidade
peculiar brasileira, onde cada polícia faz a metade do ciclo de policiamento,
sendo “uma polícia pela metade porque ou investiga ou realiza as tarefas de
policiamento ostensivo” 356. Tal situação é agravada pelo fato, de notório do-

carros-roubados-apreendidos-em-acoes-da-policia-militar>. Acesso em: 29 nov. 2020.


354 BATISTA apud NICOLITT, A. L.; NEVES, F. H. C. Política Criminal e Direitos

Fundamentais: legalidade ou letalidade? O necessário relaxamento das prisões ilegais.


Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 4, n. 2, p. 44–64, 2017, p. 50–51.
355 J BENGOCHEA, J. L. P. et al. A transição de uma polícia de controle para uma polícia

cidadã. Perspectiva, v. 18, n. 1, p. 119–131, 2004, p. 120.


356 ROLIM, M. A segurança como um desafio moderno aos Direitos Humanos. Análises e
131

mínio público, que há nenhuma ou pouca integração das ações, protocolos,


procedimentos e entendimento entre as polícias estaduai s, que trabalham de
forma concorrente, conforme observam Fontoura, Rivero e Rodrigues, com
base em Mariano.

... diferentemente da maioria dos países, onde as polícias são de ciclo


completo – isto é, a mesma corporação que investiga realiza o polici-
amento nas ruas – no Brasil, como aponta Mariano, temos duas ‘mei-
as’ polícias, o que acarreta ‘conflitos de competência, distanciamento
das direções das instituições policiais, duplicidade de equipamentos e
de gerenciamento das operações, que, somados, constituem uma das
principais causas estruturais da ineficiência do setor’357

Não há dúvidas que o atual sistema limita a ação do policiamento os-


tensivo. Contudo, há outro aspecto muito importante que precisa ser mencio-
nado: a literatura policial.

Um estudo significativo realizado na cidade do Kansas, entre os anos


de 1972 e 1973, publicado pela Police Foundation em 1974, que procurava veri-
ficar a eficácia do patrulhamento analisando alguns indicadores como a opi-
nião da comunidade, denúncias de crimes, prestação do serv iço policial, esti-
mativa de tempo resposta da polícia e acidente de trânsito, dentre outros,
apresentou uma perspectiva surpreendente sobre o policiamento ostensivo. A
pesquisa revelou que as patrulhas preventivas praticamente não influencia-
vam sobre a incidência da criminalidade, conforme mostra o trecho abaixo.

Dada a grande quantidade de dados coletados e a diversidade das


fontes utilizadas, a evidência esmagadora é que diminuir ou aumen-
tar o patrulhamento preventivo de rotina dentro da faixa testada nes-
te experimento não teve efeito sobre o crime, no medo do cidadão do
crime, nas atitudes da comunidade em relação à polícia na prestação

propostas, n. 34, 2007, p. 12.


357 MARIANO apud FONTOURA, N. DE O.; RIVERO, P. S.; RODRIGUES, R. I. Segurança

Pública na Constituição Federal de 1988: continuidades e perspectivas. In: Políticas Sociais:


acompanhamento e análise. 2. ed. Brasília: Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, 2009. v. 3p. 135–196, p., 147.
132

de serviço policial, no tempo de resposta policial ou nos acidentes de


trânsito (tradução nossa)358.

Em concordância com essa assertiva, Bayley e Skolnick afirmam que


aumentar o número de policiais não reduz necessariamente os indicadores de
criminalidade ou o aumento da proporção de crimes solucionados, bem como
o patrulhamento motorizado aleatório não reduz o crime ou melhora a possi-
bilidade de prender o suspeito 359. Segundo os autores:

... os crimes não são solucionados - no sentido de delinquentes serem


presos e julgados - pelas investigações criminais conduzidas pelos
departamentos de polícia. Geralmente os crimes são resolvidos por-
que os criminosos são presos em flagrante ou porque alguém os iden-
tifica especificamente - um nome, um endereço, a placa de um car-
ro360.

Quando nenhuma dessas condições aparecem, as chances de solucionar


o crime são reduzidas para menos de um em cada dez ocorrências 361. Os pró-
prios Bayley e Skolnick afirmam que esse conhecimento é devastador. Não é
para menos, pois aceitar esses estudos levaria a uma mudança profunda nas
estratégias e táticas do policiamento ostensivo e da polícia de forma geral.

As polícias teriam que romper com uma tradição e reconhecer que pre-
cisam mudar consideravelmente suas abordagens, e nesse sentido, Bayley 362
observa que: “A persistência no tempo das características estruturais na maio-
ria dos países indica que a tradição exerce um peso inercial que se torna tanto

358 “Given the large amount of data collected and the extremely diverse sources used, the
overwhelming evidence is that decreasing or increasing routine preventive patrol within the
range tested in this experiment had no effect on crime, citizen fear of crime, community atti-
tudes toward the police on the delivery of police service, police response time or traffic ac-
cidents” Cf. KELLING, G. L. et al. The Kansas City preventive patrol experiment: a
Summary Report. Washington (DC): Police Foundation, 1974 , p. 34.
359 BAYLEY, D. H.; SKOLNICK, J. H. . Nova polícia: inovações nas políciais de seis cidades

note-americanas. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2002. (Série Polícia e Sociedade) , p. 18.
360 Ibid., p. 19.
361 Ibid., p. 19.
362 BAYLEY, D. H. Padrões de policiamento: uma análise comparativa internacional . 2 a ed.

São Paulo: Edusp, 2002. (Série Polícia e Sociedade) , p. 79.


133

mais restrito quanto mais antigo for o sistema”.

Romper com a tradição seria superar o que Jean-Paul Brodeur 363 cha-
mou de “insensibilidade das organizações policiais na sua resistência a mu-
dança e sua capacidade de minimizar e, eventualmente, anular os movimen-
tos a favor da reforma”, o que seria o principal obstáculo ao desenvolvimento
das polícias.

Deve-se assinalar que a polícia não deve ser um fardo para a sociedade,
extrapolar os limites do direito sob pena de se transformar no que Walter
Benjamin 364 denomina de instituição infame por investir cegamente nas áreas
mais vulneráveis e contra cidadãos sensatos, sob a justificativa de que contra
eles o Estado não é protegido pelas leis, dessa forma, ao criticar o poder como
violência, Benjamin faz a seguinte consideração:

A afirmação segundo a qual os fins do poder policial seriam sempre


idênticos aos do restante Direito, ou pelo menos ligados a eles, é ab-
solutamente falsa. Pelo contrário, o ‘Direito’ da polícia designa aquele
ponto em que o Estado – seja por impotência, seja devido às ligações
imanentes de toda a ordem jurídica – não está já em condições de ga-
rantir, através dessa ordem jurídica, os seus fins empíricos, que pre-
tende atingir a qualquer preço. Por isso a polícia intervém em nume-
rosos casos ‘por razões de segurança’, quando a situação legal não é
clara, para não falar dos casos em que, sem qualquer consideração de
fins jurídicos, constitui um incômodo brutal que acompanha os ci-
dadãos ao longo de toda uma vida regulamentada, ou pura e sim-
plesmente o vigia (grifo nosso)365.

O respeito pelos limites legais deve preservar as garantias fundamen-


tais do cidadão a fim de evitar ou minimizar o incômodo brutal e a vigília
permanente sem respaldo jurídico citada por Walter Benjamin.

Assim, reconhecer esses parâmetros científicos, sociais, legais e conjun-


turais não significa renegar o caráter assertivo da abordagem como técnica

363 BRODEUR, J.-P. Como reconhecer um bom policiamento. São Paulo: Edusp, 2002. (Série
Polícia e Sociedade), p. 20.
364 BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte, Autêntica, 2013, n.p.. E-book.
365 Ibid, n.p., E-book.
134

policial legítima ou ignorar que ela ainda é responsável por bo a parte das
apreensões de armas, drogas e captura de fugitivos da justiça, conforme regis-
trados nas reportagens anteriores, mais sim compreender que é preciso pes-
quisar, descobrir e implementar novos procedimentos que se utilizem das no-
vas tecnologias existentes e permitam o desenvolvimento da atividade polici-
al. Seria compreender que o policiamento ostensivo possui suas limitações e
que ele por si só não resolverá a dilemática problemática da segurança públi-
ca no Brasil.

4.2 A EXPERIÊNCIA COMUNITÁRIA DA POLÍCIA DE LOS ANGELES

A atual conjuntura da segurança pública no Brasil e o histórico brasilei-


ro leva a falsa impressão de que não há solução para essa situação. Contudo,
o Departamento de Polícia de Los Angeles (DPLA 366) demonstrou que é possí-
vel dar um direcionamento menos subjetivo para a abordagem policial.

A tradição inglesa de permitir que policiais e vigias pudessem deter


pessoas suspeitas durante a noite e liberá-los durante o dia influenciou as
ações da polícia estadunidense. Assim, em 1939, com o intuito de harmonizar
as práticas de prisão daquele país, a Comissão Interestadual, após encomen-
dar uma extensa pesquisa, criou o Uniform Arrest Act, a qual destacava dois
pontos principais: a prisão de suspeitos e a busca de armas em suspeitos 367.

A lei definia que um policial poderia parar qualquer pessoa em ambi-


ente público, desde que o policial tivesse “motivos razoáveis” para crer que o
indivíduo estaria prestes a cometer um crime, bem como detê-lo por no má-
ximo duas horas, além de permitir a busca pessoal a fim de encontrar arma
perigosa. A partir de 1941 diversos estados começaram a incorporar o Uniform

Em inglês, Los Angeles Department Police (LAPD)


366
367FRADELLA, H. F.; WHITE, M. D. Stop-and-Frisk. In: LUNA, E. (Org.) Reforming
Criminal Justice: policing. Phoenix: Arizona State University, 2017. v. 2p. 51–81, p. 54.
135

Arrest Act em suas constituições estaduais 368.

Porém, em 1968 a Suprema Corte do Estados Unidos, no caso Terry v.


Ohio 369, permitiu que um policial pudesse revistar um cidadão com base em
suspeita razoável de que ele pudesse oferecer perigo para o policial ou para
outras pessoas, dando autorização para o stop-and-frisk, que em tradução livre
significa “parar e revistar” 370, o equivalente a abordagem policial no Brasil.
Fradella e White pontuam que o juiz william Douglas, único voto contra no
caso Terry v. Ohio, acreditava que a Corte estaria dando um cheque em bran-
co para os policiais exercerem um arbítrio quase descomedido sem levar em
conta as proteções constitucionais dos cidadãos. Segundo o juiz william Dou-
glas:

Dar à polícia mais poder do que a um magistrado é dar um longo


passo para o caminho totalitário. Talvez essa medida seja desejável
para lidar com as formas modernas de ilegalidade. Mas se for toma-
da, deve ser a escolha deliberada do povo por meio de uma emenda
constitucional (tradução nossa)371.

Fradella e White 372 ressaltam que o caso Terry v. Ohio, bem como os ca-
sos subsequentes emblemáticos da Suprema Corte dos Estados Unidos,
Adams v. Williams 373 e Delaware v. Prouse 374, sancionaram constitucional-

368 Fradella, op. cit., p. 55.


369Terry e dois outros homens foram observados por um policial à paisana no que o policial
acreditava ser "um caso de trabalho, um assalto". O oficial parou e revistou os três homens e
encontrou armas em dois deles. Terry foi condenado por porte de arma escondida e senten-
ciado a três anos de prisão. Cf. OYEZ. Terry v. Ohio. Disponível em:
<https://www.oyez.org/cases/1967/67>. Acesso em: 19 dez. 2020.
370LA VIGNE, N. G. et al. Stop and Frisk: balancing crime control with community
relations. Washington, DC: US Departament of Justice, 2014 , p. 11.
371 To give the police greater power than a magistrate is to take a long step down the totali-
tarian path. Perhaps such a step is desirable to cope with modern forms of lawlessness. But
if it is taken, it should be the deliberate choice of the people through a constitutional
amendment. Cf. DOUGLAS apud FRADELLA; WHITE, op. cit., p. 56 .
Ibid., p. 61.
372

A defesa da abordagem de um veículo onde uma arma de fogo foi encontrada exatamente
373

onde um informante disse ao policial que seria encontrado no estado de Connecticut em


136

mente o stop-and-frisk como uma tática de policiamento, que futuramente se


tornaria uma estratégia agressiva de controle da criminalidade.

O fato é que o stop-and-frisk foi adotado como uma tática em grande


parte dos departamentos de polícia nos Estados Unidos, entretanto, assim
como no Brasil, os critérios para as abordagens se apresentavam de forma
subjetiva e intuíam um certo direcionamento para determinados grupos soci-
ais. Nesse sentido, Friedman e Hayde375 informam que estudos recentes realizados
com a população Estadunidense confirmaram essa sensação, pois foi constatado que
um motorista negro possui 30% mais probabilidade de ser parado no trânsito em re-
lação a motorista brancos. Ainda segundo os autores, em Nova York, por exemplo, a
pesquisa revelou que 83% dos abordados eram negros e hispânicos, duas vezes e
meia a população desses grupos étnicos. Assim, o fato mais emblemático dessa reali-
dade repousa nos eventos envolvendo Rodney King e o Departamento de Polícia
de Los Angeles em março de 1991, que impactou consideravelmente a política
do stop-and-frisk.

Rodney King, um afro americano de 25 anos transitava em alta veloci-


dade pelas ruas de Los Angeles, em 3 de março de 1991, foi perseguido por
vários quilômetros pela polícia e fora brutalmente agredido pelos oficiais da
lei. Segundo Feagin, citado por Havelková 376, Rodney King teve nove fraturas
no crânio, uma órbita ocular e maçã do rosto, perna quebrada, uma concus-
são, lesões em ambos os joelhos e danos faciais. A cena foi gravada por Geor-

1966. Cf. FRADELLA; WHITE, op. cit, p. 56.


374O Tribunal declarou inconstitucionais as verificações aleatórias em veículos em rodovias
sem um protocolo pré-estabelecido, mas fazê-lo caso houvesse uma suspeita razoável a fi m
de justificar bloqueios de estradas sistemáticos que promovem a segurança no trânsito no
estado de Delaware em 1979.C.f. FRADELLA; WHITE, op. cit, p. 56.
375FRIEDMAN, L. M.; HAYDEN, G. M. American Law: An Introduction. Oxford: Oxford
University Press, , 2017, p. 177.
376FEAGIN apud HAVELKOVÁ, Š. Racism and Police Brutality in the United States.
Masaryk University Faculty of Arts (Bachelor’s Diploma Thesis), 2016, p. 14.
137

ge Holliday, morador das cercanias do local da agressão e tomou o mundo.

Os policiais Stacey Koon, Laurence Powell, Timothy Wind e Theodore


Brisenio foram a julgamento em Simi Valley, subúrbio de Los Angeles, mas
foram absolvidos de todas as acusações 377, o que causou revolta em grande
parte da comunidade negra local, dando início ao que ficou conhecido como
Los Angeles Riots, os distúrbios de Los Angeles.

Segundo uma pesquisa editorial do canal CNN 378, os distúrbios de 1992


em Los Angeles deixaram mais de 50 mortos, mais de 2000 feridos, 12 000
pessoas presas, a movimentação de 9 800 soldados da Guarda Nacional, mais
de 1000 edifícios na área central destruídos ou danificados a um custo esti-
mado de U$ 1 bilhão de dólares.

Só em agosto de 1993 que o sargento Stacey Koon e o oficial Laurence


Powell foram condenados por um Tribunal Distrital dos Estados Unidos a 30
meses de prisão por violarem os direitos civis de Rodney King 379.

O racismo que era sentido através das abordagens policiais foi escanca-
rado e publicizado. Morris relata que durante os distúrbios nas comunidades
negras alguns policiais utilizaram o código NHI, No Humans Involved (ne-
nhum humano envolvido), e descreviam os afro-americanos como macacos e
gorilas, algo que destruiu a reputação do Departamento de Polícia de Los An-
geles 380. Parecia inimaginável que pudesse haver uma reconciliação, mas uma
nova política de policiamento estava por vir.

Para mudar essa realidade, a prefeitura de Los Angeles iniciou uma

377 Havelková, op. cit., p. 14.


378LOS Angeles Riots Fast Facts. CNN Editorial Research. [Atlanta]: 2020. Disponível em:
<https://edition.cnn.com/2013/09/18/us/los-angeles-riots-fast-facts/index.html>. Acesso
em: 19 dez. 2020.
379 Los Angeles Riots... Op. cit..
380MORRIS, R. LA riots: How 1992 changed the police. In: BBC News. Los Angeles. 2012.

Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-us-canada-17878180>. Acesso em: 19


dez. 2020
138

mudança radical na LAPD. Primeiramente, alterou o sistema de contratação


do Chefe de Polícia. Antes, vitalício e escolhido por um Conselho de Delega-
dos, limitou-se a dois mandatos de cinco anos escolhido pelo prefeito e sub-
metido à aprovação do Conselho Municipal. Por sua vez, o Conselho de Dele-
gados, com membros escolhidos pelo prefeito, seria responsável por fiscalizar
as ações do Chefe de Polícia 381. Interessante pontuar que o Prefeito Tom
Bradley contratou um Chefe de Polícia afro-americano, Willie Williams 382, que
mais tarde fora afastado por um escândalo de corrupção. Contudo, a verda-
deira mudança só viria em 2002 com a contratação de William Bratton, ex-
Chefe de Polícia do Departamento de Polícia de Nova York.

Bratton apostou na aquisição de novas tecnologias, no comunitarismo,


na racionaçização dos problemas e na mudança de mentalidade dos policiais
para operacionalizar as mudanças necessárias no LAPD.

Willian Bratton importou o sistema COMPSTAT 383 do Departamento de


Polícia de Nova York, o qual ele mesmo implantara quando chefiava o depar-
tamento, permitindo a LAPD organizar melhor suas ocorrências policiais, di-

381BUNTIN, J. The LAPD Remade: How William Bratton’s police force drove crime down —
and won over Los Angeles’s minorities. City Journal, 2013. Disponível em:
<https://www.city-journal.org/html/lapd-remade-13526.html>. Acesso em: 23 nov. 2020.
Willian foi o primeiro Chefe de Polícia fora das fileiras da LAPD desde 1949. Foi afastado
382

após comprovação de ter recebido vantagens de um Cassino de Las Vegas. Cf. Ibid..
383 Criado para o Departamento de polícia de Nova York na década de 90, o Compstat
(Computer Comparison Statistics) é uma ferramenta de gestão de desempenho utilizada para
reduzir o crime e alcançar outros objetivos do departamento de polícia. Ele destaca compar-
tilhamento de informações, responsabilidade e prestação de contas e melhoria da eficácia da
atividade policial. Possui 4 pilares básicos: informações oportunas e precisas ou inteligên-
cia; implantação rápida de recursos; táticas eficazes; e acompanhamento implacável. De
1993 a 1995, a taxa total de criminalidade diminuiu 27,44% em toda a cidade. Durante o
mesmo período, a taxa de homicídios da cidade diminuiu 38,66%, representando 3.000 ho-
micídios a menos. C.f. BUREAU OF JUSTICE ASSISTANCE. Compstat: Its Origins,
Evolution, and Future In Law Enforcement Agencies. Washington, DC: Police Executive
Research Forum, 2013.
139

recioná-las proativamente através da racionalização dos problemas 384.

O novo Chefe de Polícia mudou em muito a mentalidade dos policiais


angelinos. Butin 385 relata que os policiais tinham um método de abordagem
evasivo e vexatório ao “fazer os suspeitos se ajoelharem na rua com as mãos
atrás da cabeça, por exemplo, e ‘decolar’, fazendo-os ficar de braços abertos
contra a parede ao serem revistados (tradução nossa)”, algo que foi paulati-
namente desencorajado.

Um ponto que se deve ressaltar, repousa no fato que Bratton, diante da


realidade de Los Angeles, ampliou a prática do stop-and-frisk. Segundo pes-
quisa da Harvard Kennedy School 386, em 2002, na chegada Bratton, a polícia de
Los Angeles havia feito 587.200 abordagens a pedestres e veículos, sendo que
em 2008 esse número subiu para 875.204 abordagens, correspondendo a um
aumento de 49% da técnica de sotp-and-frisk.

Porém, a pesquisa revelou que no auge da administração de Bratton, em


2008, 23% de todas as pessoas paradas pelos policiais de Los Angeles eram
negros. Os afro-americanos eram cerca de 9% da população da cidade na épo-
ca. Brancos não hispânicos - que representavam cerca de 30% dos residentes
de LA - eram parados 15% das vezes e os hispânicos foram parados 48% do
tempo, o que correspondeu aproximadamente à sua porcentagem da popula-
ção da cidade. No cômputo geral não houve muitas mudanças na distribuição
étnica das abordagens, apesar do aumento do volume 387.

O fato é que 34% das abordagens terminavam em prisão, o dobro se le-


vando em consideração os 16% em 2002 388. Embora houvesse mais aborda-
gens, a pesquisa concluiu que a qualidade delas aumentou , sugerindo que os

384 Buntin, op. cit.


385 Ibid.
386 STONE, C.; FOGLESONG, T.; COLE, C. M. Policing Los Angeles Under a Consent

Decree: The Dynamics of Change at the LAPD. Cambridge, MA: HARVARD KENNEDY
SCHOOL, 2009, p. 22.
387 STONE; FOGLESONG; COLE, op. cit., p. 23.
388 STONE; FOGLESONG; COLE, op. cit., p. 24.
140

policiais estavam mais criteriosos na abordagem e dispostos que a promotoria


investigasse as razões das prisões 389.

Bratton, ao retornar pela segunda vez a chefia de polícia do Departa-


mento de Nova York, fez a seguinte afirmação sobre o stop-and-frisk:

Stop, question and frisk é uma ferramenta básica de policiamento - não


apenas o policiamento americano, em todo o mundo. [...] Então, todos
os departamentos de polícia da América fazem isso todos os dias. [...]
A forma como foi praticada aqui nos últimos anos foi excessiva. E é o
uso excessivo que criou a reação negativa à essa política de aborda-
gem. E a confusão sobre se você pode policiar com ou sem ela. Você
não pode policiar sem ela, sinto muito. É - se você não tivesse, então
você teria anarquia, sendo muito franco com você (tradução nossa)
(grifo nosso)390.

Tais ações credenciaram Bratton a investir pesadamente no comunita-


rismo, estreitando relações com a comunidade negra, as minorias e as organi-
zações de direito civis de Los Angeles. Para tanto, Bratton decidiu ouvir e
demonstrar respeito aos grupos responsabilizando os comandantes dos distri-
tos pelos homicídios em suas áreas, obrigando-os a atender aos chamados de
homicídio, demonstrando respeito para com os familiares das vítimas , além
de incentivar seus comandados a adotarem tais procedimentos.

A lógica foi invertida, pois alguns comandantes seniores trabalhavam


para não prender determinados grupos, a exemplo de adolescentes, por en-

389 STONE; FOGLESONG; COLE, op. cit., p. 24.


390Entrevista dada a Jeremy Hobson no programa Here & Now da rádio pública WBUR-FM
de propriedade da Boston University. Stop, question and frisk is a basic tool of policing —
not only American policing, around the world. […] S o every police department in America
every day does it. […] The way it was practiced here for the last number of years is that it
was overused. And it's the overuse that then created the negative reaction to the basic poli-
cy itself. And the confusion about whether you can police with or without it. You cannot
police without it, I’m sorry. It's — if you did not have it, then you’d have anarchy, being
quite frank with you. Cf. WBUR. Bill Bratton: You Can’t Police Without Stop-And-Frisk.
[Boston]. 2014. Disponível em: <https://www.wbur.org/hereandnow/2014/02/25/bill -
bratton-nypd>. Acesso em: 21 dez. 2020.
141

tenderem que a efetivação da prisão daria início a carreira criminosa 391.

A dimensão do comunitarismo implantado por Bratton pode ser perce-


bida pela surpresa do vice-prefeito para a redução de gangues da cidade, em
2010, após uma ação das autoridades policiais federais no conjunto habitacio-
nal de Pueblo del Rio, reduto dos Pueblo Bishop Bloods, uma das gangues de
Los Angeles, conforme relata Buntin.

Portas foram derrubadas, armas foram brandidas e dezenas de mo-


radores foram presos. Cerca de 1.000 policiais, federais e locais, esti-
veram envolvidos (um sinal de como os problemas das gangues em
LA permanecem grandes). Alguns moradores de Pueblo del Rio fica-
ram chateados com o tamanho da operação. No dia seguinte, Guil-
lermo Cespedes, vice-prefeito de Los Angeles para redução de gan-
gues e desenvolvimento de jovens, participou de uma reunião comu-
nitária. ‘Então aqui estou eu, encurralado nesta reunião, pensando
que vou ser reprimido por fazer parte da agressão. E foi exatamente o
contrário’, diz ele. ‘O que a comunidade estava exigindo é: 'Precisa-
mos falar com o LAPD. Não confiamos no que os federais estão nos
dizendo.’ E não apenas os moradores queriam falar com os polici-
ais; ‘Eles queriam ter reuniões com capitães específicos com os quais
tinham relacionamento’ (tradução nossa)392.

Percebe-se que se estabeleceu uma relação sólida de confiança entre a


comunidade e a LAPD, até então nunca obtida. Na verdade, vê-se que Bratton
estabeleceu passos que propiciaram a racionalização do policiamento do De-
partamento de Polícia de Los Angeles, buscando critérios mais objetivos para
abordagem policial tentando torná-las mais equitativas e proporcional aos
grupos étnicos da cidade, reduzindo a sensação de perseguição, preconceito e

391 Buntin, op. cit.


392 Doors were kicked down, guns were brandished, and dozens of residents were arrested.
Roughly 1,000 officers, federal and local, were involved (a sign of how big L.A.’s gang prob-
lems remain). Some Pueblo del Rio residents were upset by the size of the raid. The follow-
ing day, Guillermo Cespedes, Los Angeles’s deputy mayor for gang reduction and youth
development, attended a community meeting. ‘So here I am, cornered in this meeting,
thinking I’m going to get chewed out for being part of the assault. And it was just the oppo-
site,’ he says. ‘What the community was demanding is, ‘We need to talk to LAPD. We don’t
trust what the feds are telling us.’ ‘And not on ly did residents want to talk to the cops;
“they wanted to have meetings with specific captains that they had relationships
with.’C.f.Buntin, op. cit.
142

racismo, aliado ao senso de comunitarismo e legalidade, evitando os ex cessos,


como bem disse ele em sua entrevista ao Hear and Now.

Vale ressaltar que esse foi um processo lento que rompeu com a tradi-
ção e com paradigmas estabelecidos pela outrora orgulhosa Polícia de Los
Angeles. Foram 19 anos entre Rodney King e Pueblo del Rio, entre erros e
acertos dos chefes de polícias com o perfil de liderança de Willian Bratton, os
quais podem servir de exemplo para que as polícias brasileiras adotem crité-
rios mais objetivos para a abordagem policial e pendam para uma segurança
pública fora da perspectiva bélica e mais comunitária.

4.3 A UTILIZAÇÃO DO PERFIL GEOGRÁFICO NO POLICIAMENTO


OSTENSIVO.

A busca por critérios objetivos para desencadear uma abordagem poli-


cial pode ensejar campos inexplorados pela criminologia, principalmente no
Brasil. A utilização do perfil geográfico ou Geographic profiling, como é conhe-
cido na comunidade acadêmica internacional, pode se apresentar como uma
alternativa viável para o policiamento ostensivo ou mesmo fornecer elemen-
tos que contribua na adoção de procedimentos que minimize o fator subjetivo
das abordagens policiais.

Segundo Kim Rossmo 393, o perfl geográfico consiste em uma metodolo-


gia investigativa que se baseia nas locações de crimes conectados para deter-
minar o local mais provável da residência do infrator, sendo aplicado em ca-
sos de assassinato em série, estupro, incêndio criminoso e roubo. Contudo,
Keith Harries 394 afirma que ele pode ser usado em casos individuais de crimes
que envolvem múltiplas cenas ou outras características geográficas significa-
tivas.

393 ROSSMO, D. K. Geographic profiling. Boca Raton, Florida: CRC Press LLC., 2000, n.p.
E-book.
394 HARRIES, K. Mapping Crime: principle and practice. Washington, DC: National

Institute of Justice, 199AD, p. 152.


143

Paul J. Brantingham 395, professor de criminologia da Simon Fraser Uni-


versity, Canadá, afirma que no início do século 20 nos Estados Unidos, através
de observação, percebeu-se que crimes, a moradia dos criminosos, a geome-
tria da rede de transporte e a pouca organização social local estavam de al-
guma forma ligados. Não tardou a correlação entre crime e pobreza, o que re-
sultou em programas voltados para a eliminação da pobreza e em interven-
ções sociais voltadas para melhorar a organização de bairros pobres , os quais
tiveram seus ápices nos anos 60 e 70. O autor pontua que apesar desses esfor-
ços, o crime não reduziu, pelo contrário, triplicou entre os anos 60 e 80 nos
Estados Unido e Canadá e quadruplicou na Inglaterra e no País de Gales. Daí
a importância de mapas analíticos que possibilitassem a compreensão do cri-
me, pois, segundo Lersch e Hart396 o crime se concentra em certas áreas e em de-
terminados momentos, o que torna necessário o conhecimento da geografia
criminal.

Nesse sentido, Kim Rossmo 397 assevera que a geografia criminal inclui o
conhecimento de ecologia social do crime, criminologia ambiental, geografia
do crime, abordagem de atividades rotineiras, prevenção situacional do crime
e policiamento orientado para problema.

Rossmo 398 explica que padrões demográficos já são utilizados desde


meados do século 19, bem como a relação espacial dos crimes violentos com a
pobreza através dos trabalhos de Andre-Michel Guerry e Lambert-Adolphe
Quetelet. No século XX, coube aos sociólogos da Universidade de Chicago,
através das pesquisas de Roland Leslie Warren, 1972; Frank P. Williams &
Marilyn D. McShane. Mais adiante, houve a mudança do foco da criminologia

395 BRANTINGHAM, P. J. B. Foreword. In: ROSSMO, D. K. Geographic Profiling. Boca


Raton, Florida: CRC Press LLC. Ebook, 2000, n.p.
396 LERSCH, K. M.; HART, T. C. Space, time and crime. 3. ed. Durham, North Carolina:

Carolina Academic Press, 2007.


397 op. cit., n.p.
398 Ibid., n.p.
144

das áreas regionais para os bairros da cidade, levando em conta a ecologia


humana e as teorias do crescimento humano, desenvolvidos por Robert Park e
Ernest Burgess.

Kim Rossmo 399 informa que na década de 80 a Escola de Chicago tentou


triangular a perspectiva humana subjetiva com as estatísticas demográficas
mais objetivas. Entretanto, ele lembra que ao contrário da década de 60,
quando foram utilizados métodos analíticos de fatores complicados baseados
em uma teoria pouco consistente, agora, houve a integração de perspectivas
geográficas, táticas de planejamento urbano, criminologia ambiental e abor-
dagens ecológicas baseadas em estudos econométricos. O fato é que o estudo
do espaço geográfico pode fornecer elementos para desenvolver métodos que
permitam a predição da residência do criminoso.

Nesse sentido, no Brasil, a mancha criminal (hotspot) é utilizada como


balizador espacial das ações policiais. Ratcliffe 400 esclarece que a colocação de
alfinetes em mapa de papel para a confecção do mapa criminal remonta a no
mínimo 100 anos, algo que ele considera obsoleto, mas ainda feito por algu-
mas polícias. Contudo, o autor ressalta que apesar de muitas polícias atuali-
zarem essa prática com a introdução de tecnologias com Geographic Informa-
tion System (GIS), na verdade, são mecanismos básicos de registro espacial do
crime com problemas de sobreposição de pontos, incapacidade humana em
determinar grupos e dificuldade em estabelecer tendências gerais em dados
pontuais.

É bom ressaltar que, segundo Brantingham 401, o mapeamento puro e


simples pode se revelar uma armadilha. Ele cita o exemplo de um mapa que
aponta alta criminalidade em determinado bairro, pode suscitar duas conclu-

399 Ibid., n.p.


400 RATCLIFFE, J. H. Crime Mapping and the Training Needs of Law Enforcement.
European Journal on Criminal Policy, v. 10, n. 1, p. 65–83, 2004.
401 Op. cit., n.p.
145

sões equivocadas. Primeiramente, pode-se inferir que a maioria das pessoas


da vizinhança são criminosas. Em segundo lugar, que as pessoas são crimino-
sas porque são pobres. O interessante é que estudos demonstram que a maio-
ria das pessoas pobres são honestas, mesmo morando em bairros de alta cri-
minalidade. Pelo que foi visto anteriormente, esse erro é cometido em geral
pela sociedade brasileira e consequentemente por suas polícias.

Embora não se tenha dados consistentes sobre as metodologias utiliza-


das pelas polícias brasileiras para estabelecer análises das manchas criminais
para além do senso comum, Campagnac e Quaresma dão uma pequena noção
da situação a partir da realidade da Polícia Militar do Rio de Janeiro na utili-
zação do ISPMap 402.

No que diz respeito à utilização das ferramentas disponibilizadas pe-


lo ISP para a qualificação de análise criminal, o cenário encontrado foi
bastante desfavorável e indica a necessidade de revisão de algumas
práticas e ferramentas. O ISPMap, por exemplo, pensado para ofere-
cer às corporações uma ferramenta de construção das manchas crimi-
nais, além de ignorado pelos analistas é visivelmente inadequado pa-
ra cumprir a função. Obsoleto e pesado, não atende aos requisitos
tecnológicos necessários para viabilizar a sua utilização de forma
ampla e continuada, principalmente quando se considera as péssimas
condições de acesso à internet nos BPM.403

Não bastasse a precariedade do uso do software, os autores enfatizam a


baixa institucionalização das ferramentas tecnológicas utilizadas pela corpo-
ração e a multiplicidade de competências que “geram poucos procedimentos
padronizados e padronizáveis” 404.

402 o ISPGeo é uma plataforma de georreferenciamento que integra distintas bases de dados
em um só mapa, possibilitando a identificação de manchas criminais (hotspots) de vários ti-
pos de crimes e a identificação dos locais e horários em que há maior probabilidade de um
determinado crime acontecer. Cf. INSTITUTO IGARAPÉ. ISPGEO. Disponível em:
<https://igarape.org.br/apps/ispgeo/>. Acesso em: 31 dez. 2020.
403 CAMPAGNAC, V.; QUARESMA, F. Pesquisa sobre a utilização de ferramentas de análise

criminal nos batalhões da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro. Cadernos de


Segurança Pública, v. 8, n. 7, p. 25–39, 2016, p. 35.
404 CAMPAGNAC; QUARESMA, Id., p. 36.
146

O perfil geográfico adaptado para o policiamento ostensivo poderia mi-


tigar as deficiências relatadas por Brantingham, Campagnac e Quaresma, pois
Rogers, Craig, e Anderson, citados por Rossmo, afirmam que:

As informações geograficamente codificadas de registros policiais


podem ser usadas para detectar tendências e padrões de crimes, con-
firmar a presença de pessoas dentro de áreas geográficas e identificar
áreas para concentração de unidades de patrulha (tradução nossa)
(grifo nosso)405.

O policiamento ostensivo poderia se valer de estudos relacionados a


geografia do crime, os quais revelam que a maioria deles ocorrem relativa-
mente perto de casa do criminoso; que as viagens do infrator para consumar o
crime seguem uma função de redução da distância, tendendo a reduzir face a
distância da casa do criminoso; que os criminosos juvenis apresentam menos
mobilidade do que os criminosos adultos; e que os padrões nas distâncias das
viagens do criminoso variam de acordo com o tipo de crime 406.

Na verdade, a introdução do perfil geográfico no policiamento ostensi-


vo retiraria o foco do sujeito da abordagem, mas daria ênfase no tipo de crime
a ser combatido, o que reduziria consideravelmente os atributos subjetivos da
abordagem policial e, consequentemente, dando um caráter mais objetivo pa-
ra o seu desencadeamento.

4.4 A EXPERIÊNCIA DO PACTO PELA VIDA EM PERNAMBUCO

O Brasil já possuiu uma experiência exitosa na segurança pública que


contribuiu para a existência de critérios objetivos para uma abordagem poli-
cial. O programa Pacto Pela Vida (PPV) foi idealizado e implementado no go-

405 ‘Geographically coded information from police records can be used to detect crime
trends and patterns, confirm the presence of persons within geographic areas, and identify
areas for patrol unit concentration’. Cf. ROGERS; CRAIG; ANDERSON apud ROSSMO, op.
ct., n.p.
406 Rossmo, op.cit.
147

verno de Eduardo Campos, então governador de Pernambuco, em 2007. Nele,


houve a constituição de um novo olhar da seguran ça pública com ênfase em
sua gestão integrada e transversalizada, superando a dicotomia polí-
cia/ladrão, resultando na reestruturação das polícias e de suas relações com
outros órgãos do estado. O PPV obteve redução consistente da taxa de homi-
cídios, conforme o gráfico 3.

Gráfico 3 - Taxa de Homicídios por 100 mil habitantes.


80
69,08 70,48 69,24 67,49
70 65,67 66,38 64,83 66,76
64,11 62,78
58,81
60 55,63 56,17 54,37 55,34 54,24
52,6 53,04
50,66 51,46 50,9
50 44,98 43,53 43,45
39,48 39,15 41,09
40 37,25
33,92
27,35 27,86 28,53 29,14 26,94 26,13 26,61 27,8 27,45 29,41 28,55
30 26,2 26,2 26,72 27,18
30,63
20

10

0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

BRA PE Recife Linear (BRA) Linear (PE) Linear (Recife)

Fonte: Ipea 407.

O gráfico acima revela que a taxa de homicídio do estado de Pernambu-


co e da sua capital, Recife, são bem maiores que a taxa de homicídio nacional.
As linhas de tendência mostram que a partir de 2007 tanto o estado pernam-
bucano quanto a sua capital experimentou um declínio dos homicídios, che-
gando a uma queda de 25 e 30 pontos, respectivamente. Em contraponto, após

407Gráfico elaborado pelo autor com base nos d ados disponíveis pelo Ipea. Cf. INSTITUTO
DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Taxa Homicídios. In: Atlas da Violência.
[2021?] Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados -series/20>. Acesso
em: 5 jan. 2021
148

estagnação, a taxa nacional mostra uma tendência de alta no mesmo período.

Foram realizadas mudanças significativas na gestão do estado de Per-


nambuco para permitir o êxito do programa. A criação da Assessoria Especial
para a área de Segurança Pública, da Secretaria Estadual de Planejamento e
Gestão (SEPLAG), responsável por instaurar e monitorar os instrumentos de
gestão com estreita interação com a Secretaria de Defesa Social (SDS), são
exemplos das inovações do PPV 408. Macêdo retrata um pouco da complexida-
de do PPV, conforme trecho em seguida.

Foram organizadas dezesseis Câmaras Técnicas voltadas para os se-


guintes assuntos: Criança e Adolescente, Juventude, Mulher e
LGBTT, Idosos, Portadores de Campo, Negras e Indígenas, Violência
no Populações. Deficiência Física, Armas/Desarmamento, Drogas,
Reorganização do Espaço Urbano, Polícias e Valorização Profissional
e Carreiras Policiais, Controle Externo da Atividade Policial, Sistema
de Justiça Criminal, Sistema Prisional, Sistema de Informações e Ges-
tão do Conhecimento e Prevenção da Violência409.

A realização das oficinas com os componentes das câmaras para defini-


ção e encaminhamento de propostas se mostraram promissoras ao longo do
tempo, permitindo uma participação efetiva da sociedade civil.

Macêdo ressalta que o PPV trabalhou de forma ambiciosa em 6 linhas


de ações: Repressão qualificada da violência; Aperfeiçoamento institucional;
Informação e gestão do conhecimento; Formação e capacitação; Prevenção so-
cial; e Gestão democrática, os quais resultaram em 139 projetos englobando
toda a sociedade 410. Assim, alguns fatores foram cruciais para o êxito do PPV
e na mudança dos critérios para execução das abordagens policiais.

O primeiro deles, e quase uma unanimidade, atribui a vontade política

RATTON, J. L.; GALVÃO, C.; FERNANDEZ, M. O Pacto Pela Vida e a redução de


408

homicídios em Pernambuco. Artigo Estratégico, ago. 2014, p. 12.


409MACÊDO, A. de O. “Polícia, quando quer, faz!” análise da estrutura de governança do
“Pacto Pela Vida” de Pernambuco. Dissertação. (Mestrado em Sociologia) Programa de Pós -
Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília -Unb, Brasília, DF. 2012, p. 77.
410 Ibid., p. 78–80.
149

do então Governador de Pernambuco, Eduardo Campos, como grande res-


ponsável pelas mudanças da gestão da segurança pública . As modificações
dos procedimentos de gestão e monitoramento, o seu aprimoramento contí-
nuo, bem como a transferência do eixo decisório das ações da Secretaria de
Defesa Social para a Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão (SEPLAG),
saindo da dicotomia Polícia Militar/ polícia Civil foram bancadas pelo capital
político do governador 411, além de estabelecer o Prêmio de Defesa Social
(PDS), uma gratificação policial pela redução do CVLI 412.

As articulações entre o judiciário, legislativo e sociedade civil foram


importantes no processo. Porém, algo até então inédito, fora o acompanha-
mento próximo e as cobranças periódicas realizadas pelo Governador durante
as reuniões de monitoramento das ações, conforme declaração de Eduardo
Campos, a seguir.

Nunca houve tanto delegado na ativa em Pernambuco e nunca houve


um efetivo como a polícia militar tem hoje na ativa. Nunca houve. O
fato é que, só esse ano, nós botamos duas mil e seiscentas pessoas pra
dentro... Agora, o fato é que se as coisas continuarem, em julho, da
forma como elas estão, não tem melhora. Por que não tem melhora?
Porque nós estamos perdendo o fio da meada do conceito do Pacto
pela Vida. O Pacto pela Vida não é uma imposição às polícias. É
uma construção a partir das experiências bem sucedidas das polí-
cias em diálogo com a sociedade. Só há algo de diferente aqui. Nós
temos foco em resultado e queremos aprender e atuar juntos. Cha-
mar todos que tem responsabilidade. Ou seja, nós precisamos re-
tomar o conceito de gestão. E não se faz gestão sem liderança, sem
postura, sem planejamento (grifo nosso)413.

O fato é que o Governador de Pernambuco impunha sua visão de gestão


e cobrava os resultados dos comandantes e delegados dentro dos parâmetros
do PPV, o qual era voltado para as garantias fundamentais. O interessante é
que essa cobrança não se dava ao nível gerencial do estado, mas também era

411 RATTON; GALVÃO; FERNANDEZ, op.cit.


412 Macêdo, op.cit., p. 89.
413 Macêdo, Id., p. 114–15.
150

direcionada a outros entes públicos que não faziam a sua parte.

Segundo Macêdo 414, o êxito do PPV, a exemplo da alta produtividade de


inquéritos, estaria gerando repercussões negativas para o judiciário na medi-
da em que a sua baixa resposta ao Pacto Pela Vida tornava visível a dificul-
dade estrutural e a existência de seus gargalos administrativos, o que efeti-
vamente era combatido por Eduardo Campos.

Um segundo fator crucial para o êxito do PPV foi a instalação de um


gerenciamento da segurança pública nos moldes da Compstat de Nova York e
Los Angeles. Uma gestão voltada para resultados que se utilizava de estatísti-
cas, indicadores criminais e sociais, conforme as figuras 2 e 3.

Figura 2 - Informações e indicadores de desempenho territorial.

Fonte: Secretaria de Defesa Social de Perna mbuco 415

414 Macêdo, Id., p. 118–19.

PERNAMBUCO. Pacto Pela Vida. Resumo PPV. [Recife]: 2012. Disponível


em:<https://www.sds.pe.gov.br/images/media/arquivos/seminario_de_analise_criminal/
Resumo_PPV_Dr_ Alessandro_Sec_Exe_PE.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2021.
151

A figura 2 apresenta as projeções comparativas e o desempenho obtidas


pelos Territórios de segurança pública, que correspondem as regiões de segu-
rança pública, com indicadores de Crimes Violentos Letais e Intencionais
(CVLI) de forma semanal e mensal. Pode-se perceber que o território, que cor-
responde a uma grande área, é analisado e avaliado de forma integrado, res-
ponsabilizando os gestores da segurança pública e não apenas determinada
instituição, o que força a comunicação e integração das polícias e bombeiros.
A Meta Qualis é um indicador de desempenho produzido pela gerência de
ações governamentais para monitoramento das ações planejadas para execu-
ção do PPV 416.

Figura 3 - Informações e indicadores de desempenho da AIS.

Fonte: Secretaria de Defesa Social de Pernambuco 417

A Figura 3 mostra as projeções comparativas e o desempenho obtido

416 Macêdo, op.cit., p. 102.


417 Pernambuco, op. ct. 2012.
152

nas Áreas Integradas de Segurança (AIS), porções menores do território. Na


AIS há a reprodução dos indicadores territoriais em menor escala, como o
Comitê Gestor local, a Meta Qualis e o acompanhamento semanal e mensal das
ações policiais. Sua maior diferença reside no acompanhamento detalhado de
todas as ações policiais, o que permite ao Comitê Gestor ter uma visão clara
dos resultados obtidos, mensurar o desempenho dos delegados e comandan-
tes locais e posterior ajuste de suas ações.

Segundo Macedo, esses indicadores eram discutidos em reuniões com


uma sistemática própria, conforme trecho abaixo:

As reuniões ordinárias do Comitê Gestor Executivo do Pacto pela Vi-


da são normalmente conduzidas pelo Secretário de Planejamento e
seguem um roteiro estabelecido pelo núcleo de gestão do programa.
A pauta a ser discutida, bem como a ‘análise dos resultados’ – enten-
dida como a visualização gráfica dos indicadores gerais de desempe-
nho sistematizados por Estado, Região Metropolitana e Áreas Inte-
gradas de Segurança Pública – é projetada, em forma de apresentação
Power Point, para as autoridades participantes418.

Ainda segundo a autora, esse modelo de reunião estabelecia uma se-


quência de assuntos a serem tratados pelos envolvidos no processo de moni-
toramento do PPV da seguinte forma: análise dos resultados das estatísticas
de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLI) referentes à semana anterior;
análise dos indicadores, operações e ações monitoradas pela Secretaria de Se-
gurança Pública do Estado de Pernambuco; apresentação de diagnóstico situ-
acional produzido pelo delegado e comandante de área e das proposições pa-
ra redução dos indicadores de criminalidade violenta locais ; e fechamento de
ata sumária com as deliberações pautadas pelo coordenador da reunião du-
rante as intervenções ocorridas ao longo da reunião 419.

Embora o privilégio das ações repressivas em detrimento das ações

418 Macêdo, op. cit. p. 97.


419 Macêdo, Ibid., p. 99.
153

preventivas tenham sido uma das principais críticas ao PPV 420, ainda sim, a
vontade política e a mudança da gestão da segurança pública permitiram uma
racionalização maior do policiamento ostensivo influenciando a metodologia
das abordagens policiais e, consequentemente, a busca por critérios objetivos
para apontar os suspeitos.

Assim, no tocante a abordagem policial, três operações se destacam: a


Operação Quadrante, de monitoramento mensal, e as Operações Carrossel de
Fogo e Risco Zero, como monitoramento semanal.

A Operação Quadrante consiste no patrulhamento e abordagem a partir


da divisão da área territorial em quadrantes delimitados, com o objetivo de
prevenir o Crime Violento Contra o Patrimônio (CVP) e aumentar a sensação
de segurança.

A Operação Carrossel de Fogo tem como objetivo realizar abordagens


em pontos estratégicos a partir de hot spots, área com maior incidência de
CVLI. A Operação Risco Zero tem como objetivo a realização de abordagens
em bares e boates.

As três operações possuem elementos que racionalizam a ativação e a


ação das abordagens policiais, reduzindo em alguma medida a aleatoriedade
e a subjetividade para se alcançar suspeitos.

Na Operação Quadrante de Segurança fica por conta do CVP, conforme


trecho abaixo:

A Polícia Amiga nos Quadrantes de Segurança – PAQS consiste na


divisão da Área Integrada de Segurança – AIS de cada OME em qua-
drantes de aproximadamente 1,5 a 2,5 Km2, denominados Quadrante
de Segurança - QS, onde o policiamento preventivo será realizado
durante 24 horas. [...] A implantação dos Quadrantes de Segurança
será gradual em todo o Estado, iniciando pela Capital e RM Recife
(nos locais de expressiva ocorrência de CVP, conforme informado
pela GACE421). No interior a área de abrangência de cada quadrante

420 420 RATTON; GALVÃO; FERNANDEZ, op.cit., p. 21.


421 Gerência de Análise Criminal e Estatística
154

será definida conforme as características de cada AIS. A criação de


cada Quadrante de Segurança será submetida à apreciação e aprova-
ção da SDS (grifo nosso)422.

Na Operação Carrossel de Fogo por conta da abordagem condicionada


as ocorrências e determinadas características, conforme trecho abaixo:

c. As OMEs devem ministrar instrução ao efetivo sobre os procedi-


mentos para a instalação dos pontos de abordagem e as técnicas de
abordagem aos veículos e seus ocupantes; d. A ordem de prioridade
para as abordagens deverá ser: 1º - motos (especialmente se estive-
rem ocupadas por duas pessoas) e bicicletas; 2º - ônibus e veículos do
transporte alternativo; 3º - táxis; 4º - veículos de passeio (especial-
mente quando ocupados por pessoas do sexo masculino ou quando
gerar suspeição) e 5º - demais veículos;423

Ou mesmo na operação Risco Zero, que condiciona as abordagens ao


“’Aumento de CVLI e CVP em determinadas áreas do Estado, denominadas
“FOCOS DE ATUAÇÃO’, com realce para os locais onde ocorrem mais homi-
cídios, os chamados ‘PONTOS QUENTES’” 424.

Obviamente que estas não são condições perfeitas e o termo “quando


gerar suspeição” elencada na Operação Carrossel remete ao problema desse
trabalho. Qual o critério para se gerar suspeição? Entretanto, não se pode
perder de vista que há um enorme avanço nesse sentido, pois o Pacto Pela Vi-
da se baseia em grande parte por indicadores e estatísticas geradas pelo Sis-
tema de Defesa Social com participação da sociedade. Esse avanço não pode

422 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE PERNAMBUCO (PMPE). Diretriz de Operação N o


DGOPM – 005/10 (Polícia Amiga nos Quadrantes de Segurança) , p.1. Disponível em:
<http://www2.pm.pe.gov.br/c/document_library/get_file?p_l_id=13038&folderId=89926&
name=DLFE-9247.pdf>. Acesso em: 1 jan. 2021.
423 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE PERNAMBUCO (PMPE). Diretriz de Operação n o

DGOPM – 010/10 (Operação Carrossel de Fogo). Recife: 2010, p3. Disponível em:
<http://www2.pm.pe.gov.br/c/document_library/get_file?p_l_id=13038&folderId=89926&
name=DLFE-9262.pdf>. Acesso em: 9 jan. 2021.
424 POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE PERNAMBUCO (PMPE). Diretriz de Operação n o

DGOPM – 011/10 (Operação Risco Zero). Recife: 2010, P.1. Disponível em:
<http://www2.pm.pe.gov.br/c/document_library/get_file?p_l_id=13038&folderId=89926&
name=DLFE-9262.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2021.
155

ser desconsiderado porque o programa da Unidade de Polícia Pacificadora


(UPP), realizado no mesmo período no Rio de Janeiro e com muito mais apelo
midiático não chegou perto de estabelecer a organização do PPV, conforme
relata Misse.

Apesar de as UPPs terem se iniciado em 2009, a primeira resolução


dispondo sobre uma UPP foi a de São João, Matriz e Quieto, definin-
do qual seria a sua área de abrangência, publicada no Diário Oficial
do Estado do Rio de Janeiro (Doerj) em 31/01/2011, seguindo os pre-
ceitos do decreto no 42.787/2011. Podemos observar uma baixa insti-
tucionalidade do programa, criado por decreto, tendo suas práticas
sido positivadas somente dois anos após o início, e mesmo não por
possuir uma lei que o garanta de fato para além de um governo (gri-
fo nosso)425.

Ratton e Daudelin pontuam que o êxito do PPV foi possível devido a


implementação de estratégias de dissuasão policial focados no CVLI, onde
houve a expansão da capacidade de investigação da Polícia Civil, associada
ao aumento da presença do policiamento ostensivo em locais tradicionalmen-
te não patrulhados, além de ações pontuais efetuadas pelos setores táticos,
dando mais ênfase nos responsáveis pelos homicídios, focando sistematica-
mente em suas organizações criminosas 426.

Entretanto, Ratton e Daudelin, ao analisarem o declínio do PPV , afir-


mam que a saída do Secretário de Planejamento e Gestão que coordenou no
âmbito da SEPLAG, que se tornou prefeito do Recife em 2012 e a saída de
Eduardo Campos em 2013, então Governador de Pernambuco, para concorrer
às eleições presidenciais em 2014, foram cruciais para o fracasso do programa.
Segundo os autores, a falta de uma liderança política forte, de uma liderança
técnica e a inexistência de um controle externo favoreceram o desmonte do

425 MISSE, D. G. Cinco anos de UPP: Um breve balanço. Dilemas, v. 7, n. 3, p. 675–700,


2014, p. 680.
426RATTON, J. L.; DAUDELIN, J. Construction and deconstruction of a homicide reduction
policy: the case of Pact for Life in Pernambuco, Brazil. International Journal of
Criminology and Sociology, v. 7, p. 173–183, 2018, p. 181.
156

PPV e o enfraquecimento dos canais de participação da sociedade 427.

A experiência do Pacto Pela Vida, apesar de suas imperfeições, de-


monstrou que o Brasil possui a possibilidade e a capacidade de desenvolver
uma segurança pública baseada na racionalização das informações que permi-
ta a redução da subjetividade e que concorra para uma suspeição criteriosa no
momento da abordagem policial.

4.5 É POSSÍVEL UMA ABORDAGEM POLICIAL GARANTISTA NÃO


ESTEREOTIPADA?

A abordagem, como técnica policial, é utilizada por todas as polícias do


mundo como forma de dissuasão e prevenção de ações delituosas. No Brasil, a
técnica em si é bem apurada e ao longo do tempo incorporou elementos técni-
cos advindos de outras polícias ao redor do mundo bem como se adequou as
novas exigências jurídicas a fim de resguardar as garantias fundamentais
próprias de um Estado Democrático de Direito.

A abordagem policial, no entendimento das pesquisadoras Musumeci e


Ramos 428 , constitui-se em uma interação social, e como tal possui toda uma
complexidade entre os atores envolvidos: o policial e o cidadão. Essa intera-
ção se torna mais complicada quando se percebe a fragilidade do conceito de
suspeição que dá início a toda engrenagem da ação policial.

Esse conceito é demasiadamente subjetivo, como visto na definição do


manual da polícia mineira “aquele que se apresenta duvidoso quanto ao seu
modo ou maneira de agir, inspirando no policial militar certa desconfiança ou
opinião desfavorável” 429. Essa subjetividade que inspira desconfiança no
agente da lei se assemelha ao conceito de intuição policial, que nos dizeres de

427 Ibid., p. 181.


428 Ramos: Musumeci. op.cit., p. 1.
429 PMMG, op. cit., p. 107.
157

Luiz Carlos da Rocha 430 seria uma visão direta de alguma coisa independente
do raciocínio lógico. Não que a intuição seja algo ruim. Inúmeras áreas do co-
nhecimento e profissões se aponham na intuição. A fenomenologia husserlia-
na, por exemplo, abraça a intuição em suas bases filosóficas tornando-a mais
consistente, mas nem por isso a desconstituiu de critérios 431. No campo pro-
fissional, Sylvia Cosntant Vergara 432 atenta para a importância da intuição na
tomada de decisões na ciência, na arte, na tecnologia e na administração das
organizações. O problema não reside na subjetividade intuitiva, mas sim em
sua predominância.

Essa predominância subjetiva intuitiva permite que os policiais estejam


mais sensíveis a qualquer tipo de estereotipia. Pereira 433, citado por Pereira,
Modesto e Matos, revela que o estereótipo faz menção a sentimentos e valores
negativos que estão constantemente ligados a relatos envolvendo fenômenos
discriminatórios, estigmas, preconceito e exclusão social . Pereira 434, citado por
Miranda, Cavalcante e Melo, pontua que, nesse sentido, quando a primeira
impressão é orientada por um estereótipo há a tendência de reduzir a pessoa
de maneira seletiva, imprecisa, vinculando o estereótipo inicial, sendo refor-
çado de geração a geração perpetuamente.

A força do estereótipo foi vista e percebida através do etiquetamento


social dos pobres, da designação das classes perigosas e do racismo estrutural
que desaguam em constrangimento, prisões desnecessárias, no biopoder e na
necropolítica.

430 ROCHA, L. C. Investigação Policial. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 37.


431 HUSSERL, E. Investigações Lógicas: investigações para a fenomenologia e a teoria do
conhecimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012 , p. 4–5.
432 VERGARA, S. C. Sobre a intuição na tomada de decisão. Revista de Adminsitração

Pública, v. 2, n. 27, p. 130–157, 1993, p. 131.


433 PEREIRA apud PEREIRA, M. E.; MODESTO, J. G.; MATOS, M. D. Em direção a uma

nova definição de estereótipos: teste empírico do modelo num primeiro cenário


experimental. Psicologia e Saber Social, v. 1, n. 2, p. 201–220, 2012, p. 202.
434 MIRANDA, D.; CAVALCANTE, L. A.; MELO, R. A. O olhar da psicologia social sobre

atitudes antissociais: preconceito e estereótipos. Revista Epistemologia e Práxis Educativa,


v. 03, n. 02, p. 1–22, 2020, p. 9.
158

É bom pontuar que tais sentimentos não são exclusivos das forças de
segurança, mas comum a qualquer pessoa ou grupo social, até porque, segun-
do Sousa e Barros, o estereótipo é “um produto social fruto das relações soci-
ais estabelecidas entre os indivíduos 435”, determinados sociologicamente por
visões que se tem das relações sociais.

Aceitar o estereótipo como um fato social remete ao seguinte questio-


namento: como evitá-lo em uma abordagem policial? Para responder essa
pergunta é preciso lembrar que o estereótipo, enquanto representação social,
tem como uma de suas características principais a irracionalidade 436. Assim,
para evitá-la ou reduzi-la, significa olvidar esforços em prol da racionalidade
dos processos técnicos, sociais e jurídicos.

No sentido jurídico, o Garantismo se apresenta como uma opção ade-


quada na busca de critérios objetivos para a seleção do suspeito da aborda-
gem, pois Luigi Ferrajoli o entende, do ponto de vista penal, como um modelo
de estrita legalidade, racional, de poder mínimo, que visa minimizar a violên-
cia e maximizar a liberdade, garantindo os direitos dos cidadãos. A razão se
encontra na essência do Garantismo e ele se apresenta como uma alternativa
jurídica para combater a irracionalidade e manter a subjetividade e a intuição
dentro de parâmetros aceitáveis, de forma a garantir direitos fundamentais.

Além de sua racionalidade, o Garantismo, como teoria jurídica, segun-


do Ferrajoli, é uma teoria da “validade” e da “efetividade”, distintas entre si,
refletindo o “ser” e o “dever ser” 437. Essa abordagem permite ao Garantismo
não ficar apenas no campo da teoria jurídica, mas também se importar com a
sua existência real.

Porém, a junção do Garantismo Jurídico à racionalidade técnico policial

435 SOUSA, K. C. S.; BARROS, J. DE D. V. Estereótipos étnicos e representações sociais  : uma


breve incursão teórica. Revista Educação e Emancipação, v. 5, n. 2, p. 201–226, 2012, p. 205.
436 Sousa; Barros, Ibid., p. 208.
437 Ferrajoli, 2002, p. 684.
159

possibilita uma abordagem não estereotipada? Certamente, não há uma res-


posta fácil para esse questionamento, mas a resposta ainda é sim, embora não
seja um “sim” simplista. O fato de existir essa possibilidade não significa que
concretizá-la seja uma tarefa fácil, simples e muito menos rápida. Pelo contrá-
rio, as experiências pesquisadas nesse trabalho demonstraram uma tarefa ár-
dua, complexa, longa e repleta erros ao longo do caminho, mas que tiveram
êxito em algum momento.
160

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, esse trabalho procurou demonstrar que a formação do Es-


tado moderno influenciou a produção do direito através das concepções de
Hobbes, Locke e Rousseau, bem como suas instituições, inclusive a polícia, a
qual demonstrou ser um sinal irrefutável da presença do Estado soberano,
conforme o entendimento de Jean-Claud Monet. Para tanto, foi realizado um
levantamento histórico dos primórdios da polícia até a sua consolidação no
Estado moderno, o seu papel em um regime autoritário e democrático e o con-
traponto em uma Democracia Constitucional Garantista, baseada em Luigi
Ferrajoli.

Em um segundo momento, foi dado ênfase aos aspectos da atividade


policial, onde se conheceu o modelo de polícia adotado pela Constituição Fe-
deral de 1988, principalmente ao modelo dos estados e sua divisão em polícia
administrativa e judiciária. Nesse capítulo se discutiu os aspectos jurídicos e
as concepções da segurança pública, bem como suas consequências na guerra
as drogas, além de esmiuçar a essência da abordagem policial.

No terceiro momento, procurou-se entender quem é o suspeito da abor-


dagem policial e toda a carga de subjetividade que é infundida nesse sujeito.
Assim, a pesquisa deslindou os subprodutos indesejados da ação policial re-
lacionadas a subjetividade do suspeito, tais como o etiquetamento social, das
classes perigosas, do racismo sistemático, do biopoder e da necropolítica.

No quarto e último momento, buscou-se critérios objetivos para a iden-


tificação dos suspeitos, onde se procurou entender as limitações do policia-
mento ostensivo, a experiência comunitária da polícia de Los Angeles, as con-
tribuições do perfil geográfico para o policiamento ostensivo e a ex periência
do Pacto Pela Vida em Pernambuco para se chegara conclusão de que é possí-
vel obter critérios objetivos para abordagem policial.

Dessa forma, tendo o entendimento cabal que a polícia deve exercer as


suas funções em uma Democracia Constitucional Garantista e após recordar e
161

refletir sobre o processo de construção do conhecimento proporcionado pela


pesquisa, percebeu-se que alguns elementos se apresentaram indispensáveis
para a existência de critérios objetivos para desencadear uma abordagem po-
licial.

1) Rompimento com a tradição. A tradição é um valor super estimado nas insti-


tuições policiais e realmente deve ser dessa forma, mas as instituições que lo-
graram êxito em sua jornada em algum momento romperam com ela. Nesse
sentido, Gadamer438 entende a tradição como “essencialmente conservação”,
e embora ela seja um ato de razão, o rompimento da tradição não significa
ignorá-la, apartá-la ou expurgá-la. Não, o próprio Gadamer439 diz que não se
pode haver uma oposição pura e simples ao comportamento de respeito ao
passado, pois a tradição representa uma conduta tão livre quanto a destrui-
ção e a inovação. Mesmo assim, ela não pode servir de desculpa para evitar o
novo e os benefícios advindos dele. A depender da situação da força policial
esse rompimento pode ser em maior ou menor grau. A polícia de Los Ange-
les tinha uma tradição de orgulho, operando nos moldes de uma força de
ocupação nos distritos periféricos e o racismo fazia parte de sua agenda ex-
traoficial até o incidente com Rodney King. Foi necessário o rompimento
dessa tradição para que houvesse a mudança. Outras tradições foram sendo
rompidas, a exemplo do chefe de polícia ser do próprio quadro da LAPD e a
contratação de policiais oriundos de minorias hispânicas e negras. Caso essas
mudanças não fossem efetivadas, Willian Bratton não poderia ser o chefe de
polícia de Los Angeles e consequentemente implementar suas reformas, e di-
ficilmente haveria um comunitarismo forte sem a interlocução e representa-
ção de minorias no departamento de polícia. As polícias pernambucanas
também foram obrigadas a romper com a tradição para se adaptarem ao PPV

438 GADAMER, H.-G. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermeneutica


filosófica. 3. ed. Petropólis: Vozes, 1999, p. 422.
439 Ibid., p. 423.
162

na medida que tiveram que se afastar do modelo bélico de segurança públi-


ca. Dentre as inúmeras mudanças ocorridas no PPV, a institucionalização do
Prêmio de Defesa Social (PDS) condicionou a redução do CVLI nos Territó-
rios e Áreas de Segurança do estado. De forma bem resumida, as polícias ga-
nham o prêmio quando reduzem os números de mortes em sua área de res-
ponsabilidade. O PPV, assim, proporcionou o rompimento da tradição da
necropolítica em prol da vida.
2) Recepção de novos procedimentos. Romper com determinadas tradições não
significa necessariamente aceitar o novo. O novo, na maioria das vezes repre-
senta o desconhecido, e como tal, imprevisível em suas consequências, e, pe-
lo menos no primeiro momento, incomensurável em suas tarefas e sem ga-
rantia de êxito ao que se propõe. Brodeur440afirma que as organizações poli-
ciais possuem uma insensibilidade a mudança e que a tecnologia policial se-
ria a prova dessa dificuldade em aceitar o novo, tendo como exemplo a evo-
lução insignificante do patrulhamento e da investigação criminal ao longo
tempo. De fato, pode-se citar a adoção sistema COMPSTAT pelas polícias de
Nova York, Los Angeles e em certo ponto das polícias pernambucanas, que
se basearam em informações oportunas e precisas de inteligência; implanta-
ção rápida de recursos; táticas eficazes; e acompanhamento implacável. Essas
mudanças permitiram expressivas reduções na criminalidade. Entretanto,
houve resistência por parte das organizações policiais em recepcioná-las. A
adoção de técnicas próprias do perfil geográfico no policiamento ostensivo
pode representar, também, um caminho diferente para novos procedimentos
a qual provavelmente sofrerá resistência por parte das organizações policiais.
3) Racionalização dos processos, tarefas e técnicas policiais. Em pleno século
XXI, uma polícia sem organização está fadada ao fracasso. Albert J. Reiss Jr.
chama atenção para as mudanças do modelo tradicional de policiamento,

440BRODEUR, J.-P. Como reconhecer um bom policiamento. São Paulo: Edusp, 2002. (Série
Polícia e Sociedade), p. 20.
163

onde os policiais lidavam com ocorrências de bairros realizando pequenas in-


tervenções junto à comunidade. Segundo o autor, o crescimento dos grandes
centros urbanos, a mudança do perfil da sociedade e o surgimento de novas
tecnologias tem mudado consideravelmente o trabalho policial. Assim, Reiss
Jr. pontua que no passado havia um sistema elementar de policiamento com
práticas informais, agora “um sistema altamente formal e complexo de in-
formações, ao qual, rotineiramente, os policiais tem acesso e para o qual con-
tribuem com informações441”. Reiss Jr. vai mais além e afirma que burocrati-
zação, no sentido weberiano da palavra, tem como maior consequência a
“neutralidade política e a confiabilidade legal da polícia442”. De fato, a neu-
tralidade política permite a instituição policial seguir políticas governamen-
tais sem se distanciar do ordenamento jurídico vigente, respeitando as garan-
tias fundamentais dos cidadãos. Por outro lado, a confiabilidade legal permi-
te que as ações da polícia sejam mais qualitativas em detrimento do quantita-
tivo, reduzindo a quantidade de erros que possam comprometer a ação poli-
cial na fase judicial. Em Los Angeles, embora tenha aumentado o número de
abordagens realizadas pelo departamento de polícia, Willian Bratton a tor-
nou mais aceitável aos parâmetros legais e mais eficiente do ponto de vista
judicial. Essa produtividade foi utilizada como parâmetro para formar e
promover líderes. Em Pernambuco, a implementação do sistema COMPS-
TAT racionalizou a produtividade a tal ponto, que o Comitê Executivo do
PPV tinha conhecimento da produtividade de cada Delegado e Comandante
de Área de Segurança, tendo condições de fazer ajustes de pessoal, operacio-
nal e logístico, tendo como consequência a redução considerável dos homicí-
dios no estado de Pernambuco e na capital Recife.

441 REISS JR., A. J. Organização da Polícia no Século XX. In: TONRY, M.; MORRIS, N.
(ORG.). Policiamento Moderno. São Paulo: Edusp, 2003. (Série Polícia e Sociedade) , p. 75.
442 Ibid., p. 86.
164

4) Participação da sociedade. Ao afirmar que a segurança pública é responsabi-


lidade de todos, a Constituição de 1988 ampliou a temática da segurança pú-
blica e deu o direito ao cidadão de interferir diretamente nas políticas públi-
cas relacionadas a área. Na verdade, a Constituição apenas consignou o que
já era percebido pela sociedade. Jane Jacobs, por exemplo, afirma que a paz
nas ruas não é mantida pelas polícias, mas “é mantida fundamentalmente pe-
la rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comporta-
mento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplica-
dos443”. É inconcebível que em uma democracia esse povo não participe das
decisões que impactarão diretamente suas vidas, pelo contrário, ele deve par-
ticipar ativamente do nascedouro das políticas públicas, através de reuniões
e audiências públicas com autoridades, de forma que haja representatividade
e legitimidade nas decisões. Willian Bratton, ao assumir a chefatura de polí-
cia de Los Angeles, ouviu pessoas da comunidade e organizações sociais a
fim de estabelecer um diálogo entre esses entes sociais e a polícia para propi-
ciar ações policiais de cunho legal e ético. A mudança na técnica de aborda-
gem é um exemplo a ser citado, a qual a tornou menos vexatória para os ci-
dadãos de Los Angeles. Já em Pernambuco, o PPV proporcionou uma ampla
participação da sociedade através da Câmaras Temáticas, da transparência
das ações e do intenso acompanhamento e escrutínio da sociedade civil. A
participação da sociedade em ambos os casos permitiu mudanças considerá-
veis na qualidade do serviço prestado pelas instituições policiais.
5) Perseverança. A perseverança deve ser uma virtude para qualquer organiza-
ção policial. A complexidade da segurança pública e a sua dinâmica irão en-
sejar uma série de ações que irão se provar inócuas, pífias, mas que serão im-
portantes para o amadurecimento da jornada e, consequentemente, no acerto
dos procedimentos. A polícia de Los Angeles levou quase 20 anos para im-

443JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades.. São Paulo: Martins Fontes, 2015. n.p.. E-
book.
165

plementar as reformas em seu departamento de polícia. Procedimentos e


ações se mostraram verdadeiros erros. Pessoas erraram. O próprio Willian
Bratton, embora tenha conseguido tornar a stop-and-frisk proporcional a po-
pulação hispânica, não conseguiu esse feito com a população negra, mas isso
não retira o mérito dos ganhos para a sociedade no decorrer do processo. A
implantação do PPV em Pernambuco também passou por esse processo.
Muitas iniciativas, Câmaras Temáticas que não conseguiram implementar
seus projetos e procedimentos policiais falharam durante a caminhada, a
exemplo dos erros nas análises de dados estatísticos, a falta de transparência
nas dotações orçamentárias disponibilizadas para o programa, bem como o
gerenciamento das Áreas de Segurança (AS), os quais se tornaram um per-
calço nos primeiros dois anos do PPV444. O fato é que esses e outros proble-
mas não foram resolvidos facilmente, ou de forma rápida, e alguns ainda
nem possuem solução, mas, apesar dos contratempos, essas iniciativas evolu-
íram, permitindo o amadurecimento das instituições policiais.
6) Vontade política. Hannah Arendt afirma que a política é baseada na plurali-

dade dos homens e na convivência entre os diferentes445. A vontade política,


então, implica na capacidade de fazer valer as necessidades da sociedade
com reconhecimento dos seus integrantes, legitimamente, respeitando sua
pluralidade e diferenças. Sem a capacidade ou o querer do gestor fica prati-
camente impossível promover ou permitir as mudanças elencadas anterior-
mente. A vontade política implica em ação e vontade de querer fazer aconte-
cer. Obviamente que em uma democracia esse querer perpassa por articula-
ções no campo da política, na sociedade e entre instituições. Ela se traduz em
alocação de recurso financeiro, recursos humanos e a disponibilização de
equipamentos. A vontade política empenha todos os esforços para a persecu-
ção de determinado objetivo. Esse querer foi visto na condução das mudan-

444 Macêdo, op. ct., p. 81–90.


445 ARENDT, H. O que é política ? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018, n.p.. E-book.
166

ças efetuadas por Willian Bratton na Polícia de Los Angeles e bancadas por
Jim Hahn, prefeito da cidade. No caso de Pernambuco a importância da von-
tade política fica mais evidente, pois após o afastamento de Eduardo Campos
para concorrer à Presidência da República e o seu posterior falecimento 446
trágico, o PPV nunca mais foi o mesmo e não conseguiu repetir o seu êxito.

Certamente, não é uma tarefa fácil, simples e que se resolva em curto


espaço de tempo, mas os pontos elencados dão um norte para que as institui-
ções policiais possuam um ambiente propício para que haja uma abordagem
policial garantista não estereotipada.

446EDUARDO Campos morre em acidente de avião em Santos . In: Carta Capital. [São
Paulo], 13 ago. 2014. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/eduardo -
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lizem operações policiais em comunidades durante a epidemia do COVID-19,
a não ser em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devida-
mente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunica-
ção imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável
pelo controle externo da atividade policial; e que, nos casos extraordinários
de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados
excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade compe-
tente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de servi-
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