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© Grupo de Trabalho-Pedagogia para a Autonomia, Cadernos 1, 1999, pp. 1-4, Braga: Universidade do Minho (org. F.

Vieira) 1

Pedagogia da dependência e pedagogia para a autonomia


Introdução a dois modos distintos de ensinar e aprender (uma língua)
em contexto escolar

Flávia Vieira

O conceito de autonomia tem sido interpretado e aplicado de diferentes modos. A este


propósito escreve Henri Holec, um dos percursores da operacionalização do conceito no
âmbito da educação em línguas estrangeiras (1988: 17):

The approach may be 'interpreted' (in the sense that a musical score is interpreted
by the performer) in so many different ways that it always represents an available
and viable pedagogical option.

Esta flexibilidade, em grande medida decorrente da necessidade de desenvolver abordagens


ajustadas aos contextos, não impede que se procure definir um conjunto de pressupostos,
finalidades e traços processuais característicos de uma pedagogia para a autonomia, aqui
definida como qualquer abordagem pedagógica que vise uma aproximação do aluno ao saber
linguístico e ao processo de aprender, orientada para o reforço da sua responsabilidade e
motivação, do seu papel pedagógico e do seu poder discursivo, e de um posicionamento crítico
e estratégico face ao processo de ensino/ aprendizagem. Apresentam-se, no Quadro 1 (Vieira,
1998: 38), alguns pressupostos, finalidades e traços processuais que distinguem uma
pedagogia da dependência de uma pedagogia para a autonomia, entendidas como duas formas
distintas de ensinar e aprender, radicadas em duas visões também distintas da educação
escolar: reprodutora e transformadora.

Quadro 1
Pedagogia da dependência e pedagogia para a autonomia

REPRODUÇÃO TRANSFORMAÇÃO
PEDAGOGIA DA DEPENDÊNCIA PEDAGOGIA PARA A AUTONOMIA
PRESSUPOSTOS O aluno é sujeito consumidor passivo do saber; o O aluno é sujeito consumidor crítico e produtor criativo
PRINCIPAIS professor é figura de autoridade social, científica e do saber; o professor é facilitador da aprendizagem,
pedagógica, única fonte de saber, assumindo o papel de mediador na relação aluno-saber, parceiro da negociação
transmissor; o saber é estático e absoluto pedagógica; o saber é dinâmico, transitório e
diferenciado de sujeito para sujeito
FINALIDADES Desenvolver a competência académica do aluno, Aproximar o aluno do saber e do processo de
PRIORITÁRIAS principalmente traduzida na aquisição de conhecimentos e aprendizagem; ajudá-lo a aprender a aprender, a desen-
no domínio de capacidades de tipo cognitivo volver a capacidade de gerir a própria aprendizagem;
encorajar a responsabilidade e a assunção de uma postura
pro-activa no processo de aprender; desenvolver uma
perspectiva crítica da escola, do saber e da
aprendizagem; promover a relação entre a escola e a vida
TRAÇOS Focalização nos processos de transmissão e nos conteúdos Focalização nos processos de aprendizagem e no aluno:
PROCESSUAIS de aprendizagem; clima potencialmente autoritário e teorias, estilos, necessidades, estratégias, hábitos,
formal; processos dominadas pelo professor, único deci- experiências anteriores, sistema apreciativo; clima
sor e avaliador; forte dependência do aluno aos níveis do tendencialmente democrático e informal; participação do
discurso e das tarefas, frequentemente associada a um aluno na tomada de decisões e elaboração de projectos e
enfraquecimento motivacional ou a motivações externas; contratos; tarefas de tipo reflexivo e experimental;
tarefas determinadas pelo professor, tendencialmente desenvolvimento de capacidades de planificação, regula-
dirigidas exclusivamente ao desenvolvimento da ção e (auto)avaliação da aprendizagem; gestão colabora-
competência académica; ênfase na competição e no tiva da informação e da palavra; construção colaborativa
individualismo; práticas de avaliação normativas, de saberes académicos, sociais e de aprendizagem;
tendencialmente segregadoras valorização da função formativa das práticas de
(auto)avaliação, tendencialmente integradoras

Flávia Vieira – Pedagogia da dependência e pedagogia para a autonomia


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No Quadro 2, especificam-se algumas condições e princípios pedagógicos que facilitam a


transição de uma pedagogia da dependência para uma pedagogia para a autonomia (Vieira, op.
cit: 94). Retomando a metáfora de Holec apresentada na citação inicial do texto, sugeriria
essas condições e princípios como "um trecho musical" do qual poderão ser realizadas leituras
e actualizações diversas, contextualmente determinadas.

Quadro 2
Condições e princípios facilitadores de uma pedagogia para a autonomia na aula de língua

CONDIÇÕES FACILITADORAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS : PRINCÍPIOS ORGANIZADORES

1. INTEGRAÇÃO * inclusão da competência de aprendizagem - intrapessoal,


integração do desenvolvimento da interpessoal e didáctica- nas intenções e acções pedagógicas
competência de aprendizagem do * alargamento dos conteúdos instrucionais: linguísticos e processuais
aluno no processo de desenvol- * acesso do aluno ao saber didáctico/ processual
vimento da sua competência de * articulação entre aprender e aprender a aprender a LE
comunicação ...

2. TRANSPARÊNCIA * partilha do saber didáctico com o aluno


explicitação dos pressupostos, * envolvimento do aluno na descoberta do funcionamento do
objectivos e formas de desenvolvi- processo do ensino/ aprendizagem da LE
mento das competências de * desenvolvimento de uma postura crítica face ao processo de
comunicação e de aprendizagem ensino/ aprendizagem da LE
...

3. METODOLOGIA * actividades didácticas de tipo reflexivo e experimental, sobre


ESPECIALIZADA as dimensões linguística e processual da aprendizagem da LE
criação de actividades didácticas (incluindo tarefas de "descondicionamento")
incidentes no desenvolvimento da * actividades de conceptualização (compreensão) e de programação
autonomia do aluno enquanto ( tomada de decisões) que envolvam operações de reflexão,
aluno e enquanto falante experimentação, monitoração, negociação e auto-direcção
* construção/adaptação de materiais didácticos "autonomizantes"
...

4. NEGOCIAÇÃO * construção colaborativa de saberes


negociação dos assuntos e dos * diversificação dos papéis pedagógicos
papéis,conducente à recuperação da * redistribuição de direitos e deveres académicos e discursivos
autoridade pedagógica e do poder * envolvimento do aluno no processo de gestão da informação
discursivo do aluno (conteúdo e ilocução) e da palavra (forma e distribuição), e
na avaliação da aprendizagem
...

5. COLABORAÇÃO * promoção da independência e da interdependência


diversificação das formas de * encorajamento da colaboração e inter-ajuda
organização do trabalho, com ênfase * diversificação de recursos de aprendizagem para auto-gestão
nas tarefas de tipo colaborativo e no colaborativa
reforço das relações simétricas
(entre alunos) ...

6. PROGRESSÃO * avaliação dos contextos (conhecimento da situação)


desenvolvimento progressivo da * abordagens adequadas aos contextos em termos de focalização,
autonomia do aluno, definida como operacionalização e gestão pedagógicas
capacidade de gestão da * adopção de estratégias de 'descondicionamento'
aprendizagem * preparação - psicológica e metodológica- sistemática
...

As formas de operacionalização destas condições e princípios dependerá de diversos factores


contextuais, dos quais salientaria:
1. As representações e práticas anteriores dos alunos - Parcialmente determinadas por uma
tradição tendencialmente reprodutora da educação, estas representações e práticas
constituem um dos factores determinantes do modo como os alunos aprendem e querem

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aprender, requerendo frequentemente uma acção de “descondicionamento” psicológico e


metodológico. Assim, o grau de direcção a exercer pelo professor dependerá do grau de
autonomia dos seus alunos, variando na razão inversa do mesmo, o que significa que é
possível conceber uma transição (progressão) de abordagens mais centradas no professor
para abordagens onde os alunos assumem um papel mais determinante. Caberá ao
primeiro realizar uma análise do contexto em que trabalha a fim de conhecer os seus
alunos e melhor ajustar as práticas à sua “cultura de aprendizagem”, no sentido de uma
autonomização progressiva.
2. As representações e práticas anteriores dos professores - Também parcialmente
determinadas por uma tradição tendencialmente reprodutora da educação, constituem
frequentemente um obstáculo à transição pretendida. Aqui, assume um papel fundamental
a (auto-)formação do professor no sentido da consciencialização e reconstrução das suas
teorias e práticas, mediante um posicionamento crítico face à profissão. Este
posicionamento implica que o professor assuma uma atitude de questionamento face a si
próprio (o seu papel, a sua acção, as suas convicções, os seus valores e atitudes…) e face
aos seus alunos (as suas representações, necessidades e expectativas, o seu
comportamento, os seus valores e atitudes…), mas também face aos contextos em que
trabalha (fins e meios da educação linguística, relação entre a escola e a vida). Esta atitude
de questionamento facilita a identificação dos constrangimentos que dificultam a acção do
professor e tornam essa acção mais consciente, fundamentada, crítica e ajustada, ou seja,
mais reflexiva. O desenvolvimento da autonomia dos alunos implica, necessariamente, o
desenvolvimento da reflexividade dos professores, condição da sua autonomização
profissional.
3. As condições sociais e institucionais do ensino e da aprendizagem - Determinando
também fortemente a acção do professor e dos alunos, elas colocam limitações à liberdade
de uns e de outros e impõem restrições ao desenvolvimento de uma pedagogia para a
autonomia em contexto escolar. São inúmeros os factores de ordem social e institucional
que constrangem o processo de ensino/ aprendizagem, criando tensões e dilemas muitas
vezes de solução difícil. A consciência e a explicitação dessas tensões e dilemas constitui,
contudo, uma condição indispensável a que professores e alunos deixem de “estar sujeitos
a” para passarem a “ser sujeitos de”, mesmo quando as suas decisões e a sua acção
contrariam as suas vontades e convicções. A adopção de uma visão da educação como
transformação implica a consciência da natureza problemática das situações profissionais
e a tolerância da incerteza (e da insatisfação!) no processo de tomada de decisões; implica
também, em maior ou menor grau, a contestação de uma “estado dominante de coisas”, e
portanto a subversão de regras e valores tacitamente estabelecidos. A noção de autonomia,
quer falemos de alunos ou de professores, encerra uma dimensão utópica essencial ao seu
sentido emancipatório; essa utopia ganha legitimidade quando se traduz em mudanças,

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por muito pequenas que sejam, na qualidade das condições em que professores e alunos
trabalham.

Termino esta introdução com a reflexão que se segue, escrita pela minha colega Isabel
Marques a propósito de um episódio passado com a sua filha de sete anos, que nos remete para
a primeira justificação de uma pedagogia para a autonomia: a autonomia é uma coisa boa.

Muitas vezes nos questionamos sobre as implicações éticas da nossa actuação

profissional, porque temos consciência de que, ao tentarmos pôr em prática os

princípios pedagógicos em que acreditamos, podemos estar a invadir os sistemas de

valores daqueles sobre os quais recai a nossa acção educativa.

Esta questão torna-se particularmente pertinente quando se trata de desenvolver

a autonomia dos nossos alunos, uma vez que ajudar alguém a crescer em autonomia

implica abrir horizontes de desenvolvimento que podem colidir com algumas visões

políticas, sociais, culturais e até psicológicas.

Quando a minha filha de sete anos de idade me lia a apreciação do progresso

atingido no primeiro período lectivo, em parâmetros como criatividade, iniciativa,

autonomia, entreajuda, etc., perguntou-me: "O que é autonomia?" Respondi-lhe que

tinha a ver com a sua capacidade de decidir o que queria aprender, como queria

aprender… Interrompeu-me, como sempre faz quando se sente esclarecida, e

disse: "Já sabia que tinha que ser uma coisa boa. Aqui também tem muitos

progressos." Depois de explorar um pouco a sua ideia perguntei-lhe:"Então achas

que a autonomia é uma coisa boa?" — "Claro! É muito importante! Se eu tiver que

fazer uma coisa sozinha, é importante que consiga decidir como hei-de fazer."

Será que, como afirmam alguns autores, ser autónomo é algo a que naturalmente

aspiramos, de tal forma que até para uma criança parece ser uma questão de senso

comum?

(Isabel Marques)

Referências

Holec, H.(ed.) (1988). Autonomy and foreign language learning-present fields of application.
Strasbourg: The Council of Europe.

Vieira, F. (1998). Autonomia na aprendizagem da língua estrangeira-uma intervenção


pedagógica em contexto escolar (dissertação de doutoramento, 1996). Univ. Minho: CEEP.

Flávia Vieira – Pedagogia da dependência e pedagogia para a autonomia

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