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“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE 1

Seminários entre 30 de outubro e 5 de novembro de 1930.

SPRING 1960

Observações:

Esta obra foi traduzida pelo Prof. Dr. Petho Sándor, para uso restrito em grupos de estudos, em
forma de apostila datilografada.
Posteriormente o corpo do texto (os capítulos) foi gentilmente digitado pela psicóloga Nara
Santonieri visando preservar e partilhar esse precioso material de estudos. No entanto, os
números de páginas mencionados no sumário e no índice remissivo referem-se à paginação
presente no formato original da tradução feita por Sándor. Mesmo assim essas sínteses foram
adicionadas a este conjunto, pois podem ser úteis para orientar a sua leitura.
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Primeiro Livro

Senhoras e Senhores: devo explicar-lhes que estas palestras são, podemos


dizer, sobre o desenvolvimento da função transcendente através dos sonhos e
das imagens afetivas, as quais, em última instância, servem à síntese do
indivíduo, à reconciliação dos pares de opostos e a todo o processo de
formação do símbolo.

Se o nosso destino é benevolente...


Nossa paciente é uma mulher de aproximadamente 30 anos. Ela é altamente
educada, muito inteligente, uma intelectual típica, com uma mente quase
matemática. É, por formação, cientista natural e excessivamente racional. Tem
muita intuição que realmente deveria funcionar, mas que é reprimida porque
produz resultados irracionais, e isto é muito desagradável para a mente
racional. Com uma atitude mental deste tipo alguém poderá traumatizar-se já
bem cedo na vida, enfrentando uma situação onde esta atitude é inútil. Se o
destino é benevolente, logo entrará num buraco bem apertado. Se ele não é
benevolente, permitirá viver um longo tempo com tal atitude e assim perdem-
se muitas oportunidades na vida.

Bem, essa mulher entrou num buraco por volta dos trinta anos. Isto é muito
bom, obviamente seu destino é benevolente. Ele lhe deu uma chance aos trinta
anos. Outras pessoas têm essa chance apenas com 45 ou 50 anos. Tenho visto
pessoas de 60 anos que finalmente descobriram ter visto apenas a metade do
mundo, vivido apenas a metade das suas vidas o que, certamente, é uma
descoberta muito dolorosa nesta idade. Esta mulher, porém, chegou ao outro
lado do mundo aos 30 anos.
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As pessoas com um desenvolvimento extraordinariamente unilateral da sua


função “pensar” têm, por outro lado, uma função de “sentir” inferior, porque o
sentimento é oposto ao pensamento. O sentimento é arcaico e tem todas as
vantagens e desvantagens de uma função arcaica. A função inferior é
geralmente caracterizada por traços da psicologia primitiva, sobretudo pela
“participação mística” isto é, é peculiarmente idêntica, ou nos faz idênticos a
outras pessoas ou outras situações. Ela tinha os sentimentos que as situações
lhe davam. Ela não poderia sentir hipoteticamente, mas poderia pensar
hipoteticamente. Na verdade, sua inteligência era tão altamente desenvolvida
que ela pensava coisas que as pessoas do seu meio não pensavam... Ela estava
isolada numa “torre de marfim” sem qualquer ponte até ela e naturalmente
sofria o gelo deste isolamento, como podem imaginar. Seu sentimento inferior
está nas fundações desta “torre de marfim” e tem algumas passagens secretas,
caminhos subterrâneos por onde pode escapar deste isolamento, e porque é
cego como uma toupeira não se sabe por onde sairá... Ele cava passagens
subterrâneas e talvez atinja outras pessoas. Ela é casada, racional, propagadora
da espécie, tudo está bastante certo, contudo ela está completamente isolada...
Seu casamento não é uma união real. E assim é quase inevitável que o
sentimento que não está sendo vivido no seu relacionamento, simplesmente
não possa galgar às alturas da cabeça, sendo aparentemente sobrepujado pelo
intelecto e desapareça, mas reapareça projetado em um homem que, por certo
não é o marido. Bem, este é o caso de uma mulher. Há casos semelhantes com
homens.

Assim os Senhores vêem que a falta de relacionamento é compensada por um


repentino relacionamento mágico, uma fascinação, uma participação mística...
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Por isso ocorre comumente o amor à primeira vista, a mais compulsória forma
de amor. É natural que nossa paciente sofresse de alguns desses problemas,
que significam o conflito último entre seu pensar racional e sua natureza
primitiva. Eu omito intencionalmente detalhes pessoais, porque estes
importam pouco para mim. Todos nós ficamos encantados por estas
circunstâncias externas e elas distraem nossas mentes da coisa real que é o
fato de que somos internamente cindidos...

Muito naturalmente, estando em tal conflito incandescente, ela não sabia: o


que fazer. Tentou todas as coisas usuais, esmagando-o insistindo que nunca
pensou tal coisa, tentando colocar tudo isto fora da realidade e nada
funcionou. Naturalmente assim não iria funcionar. E tornou-se um conflito
moral, conjurando os Dez Mandamentos e Deus sabe o que ainda, mas nada
funcionaria, nem mesmo a ira de Deus, porque ela estava contra um fato
superior que realmente não era um elemento destrutivo. Esta foi a melhor
coisa que poderia ter acontecido a ela, a bondade da Natureza que queria fazer
dela uma totalidade e não algo meio-pronto. Depois que ela tinha feito todas
as tentativas para esmagar o que entendeu ser a mais espantosa insensatez,
finalmente desistiu e desmontou.

Então ela soube da minha existência e pensou que eu poderia ser um indivíduo
que conhecia alguma palavra mágica e então veio até mim, com muito da
atitude da mulher primitiva que procura o pagé e diz: “pois bem, aqui está
uma galinha preta e, se você quiser, eu lhe trarei como oferenda, um bonito
porco preto, e agora, por favor, atue com seus milagres sobre mim”.
Naturalmente, tratando-se de uma pessoa muito intelectual, eu não tive
problemas em lhe mostrar que cometera um engano com tal atitude. Ela logo
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estava no caminho certo e entendeu que isto dependia inteiramente dela e, que
nenhum milagre poderia ser realizado nela. Eu falei: “eu não sei o que fazer,
não tenho a mais leve idéia de como resolver tal problema... A única coisa que
posso dizer é que certamente os seres humanos passaram pela mesma situação
milhões e milhões de vezes em incontáveis milhões casos. É uma situação
típica, você sabe que estas situações amorosas são as mais banais, e em cada
geração as respostas conscientes diferem”.

A mente do ser humano, sua consciência da psique, é um sistema de métodos


de adaptação de como lidar com esses fatos recorrentes na vida. Por exemplo,
nós temos olhos porque existe o sol. Nossos olhos e ouvidos são sistemas de
adaptação e a nossa psique é exatamente o mesmo, adaptada não apenas às
condições exteriores, mas também aos conflitos internos. Os motivos
mitológicos contêm uma série de situações tipicamente humanas, como o tema
de contos de fadas segundo o qual um homem cai numa armadilha em algum
lugar, ou os anões o capturam e isolam numa área de onde ele não pode
escapar, e então à noite vem um ratinho e fala com ele dizendo “se você fizer
isto e isto, então você pode escapar”. Este é o motivo do animal auxiliador
intervindo quando tudo é impossível e quando as pessoas esperam uma
catástrofe – é uma ajuda para sair de um canto apertado. O que esses animais
significam? São meramente representantes de forças inferiores instintivas no
ser humano e úteis da mesma forma. Por exemplo: quando eu não sei onde há
água, então devo observar o vôo dos pássaros e isto me mostra onde ela está,
ou posso dizer a meu cavalo: “não sei onde há água, mas você pode fareja-la”.
Ou se não há por perto animais que possam ajudar, devemos examinar o solo
com uma vara e talvez o inconsciente dirá, onde está a água. Estes são os
fatos.
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Agora eu digo: se o inconsciente pode ajudar neste caso, por que não na
situação dessa mulher? Estou bastante certo que o inconsciente contém uma
solução, então eu proponho à minha paciente observar sua atividade como é
apresentada nos sonhos porque nós não “fazemos” sonhos, eles simplesmente
emergem do inconsciente. Não sabemos se são verdades ou não, e é uma
questão de experiência ver se eles são meramente insensatos. Ela concordou
com essa idéia e então nós começamos a análise. No início, como ocorre
usualmente, os sonhos continham mais material pessoal, todos os tipos de
pequenas resistências e atitudes inadequadas, mas quando tudo isso ficou
assentado, então começaram a trazer coisas fundamentais e a preparar muito
cuidadosamente a atitude mais favorável para a produção de símbolos que
forneceram a solução do seu problema. Começaremos agora com um sonho
que ela teve quando a primeira parte da análise, toda aquela parte pessoal,
estava praticamente encerrada.

A música interrompida

 Sonho: “Eu estava tentando tocar alguma música e todos os diversos


membros de minha família tentavam interferir. Eu estava num terraço,
olhando o mar e ainda tocando, quando um judeu rico, na mesa
próxima, começou a tocar também. A música que ele tocou era tão
bonita que eu parei de tocar por um minuto para ouvi-lo”.

Os Senhores têm uma idéia do que este sonho significa: é muito simples. O
que é música? É claro: sentimento. A paciente é muito intelectual e tem o
sentimento muito “inferior”, assim é provável que nós iremos encontrar a
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maior parte do seu sentimento no inconsciente. O sonho traz este problema.


Assim, tocar música significa dar vazão a seus sentimentos, compensar sua
atitude predominantemente intelectual. Pois mesmo na análise ela capta as
coisas predominantemente sob um ponto de vista intelectual e usa muito
pouco seus sentimentos, porque eles não são manejáveis, não são disponíveis
na realidade. Por conseguinte ela os usa no sonho.

Como um exemplo, havia, na antiguidade, um homem muito racional, e este


era o velho Sócrates. Ele tinha um tipo de demônio jocoso que lhe sussurrava
conselhos muito sábios... Em uma ocasião, provavelmente depois de uma
noite muito tensa de conversas racionais, o demônio falava: “Tu deves fazer
mais música, Sócrates!” Ele não pode entender isto. Pensou muito e
finalmente comprou uma flauta! É bastante óbvio que a música naqueles dias
significava, por certo, o elemento dionisíaco que era bem um assunto de
sentimento, bastante oposto à comum atitude racional de Sócrates.

Assim os Senhores vêem que minha paciente, podemos dizer, foi avisada para
tocar música... Mas quando ela tenta mostrar seus sentimentos, usar seus
próprios sentimentos, então repentinamente torna-se evidente que todos os
membros da família estão contra isto. “Tal coisa terrível não deve ocorrer em
nossa família!” Ela insiste que, a despeito dos membros desta “sagrada
família, ela continuará a “tocar” seus sentimentos; mas há um judeu rico que
toca muito melhor que ela e, portanto, ela desiste. Mas como estes sentimentos
podem se desenvolver se ela não pode usa-los? Ela tem que admitir
pateticamente que irá exercita-los justamente para aviventá-los , e
naturalmente tudo ao seu redor – todos os membros da sua família – será
contra isto, propondo a ela que não tenha seus sentimentos. Mas então algo
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sutil ocorre, isto é, a oposição da família não a faz parar, mas o fato de que
alguém toca melhor música, isto a faz parar. Então, o que o judeu rico
significa? Isto está um pouco oculto.

Primeira sugestão: O judeu representa autoridade.

Dr. Jung: Mas qualquer pessoa que tocasse melhor que ela, teria autoridade.
Ele poderia ser, por exemplo, um grande artista.

Segunda sugestão: Ele representa beleza e amor à arte...

Terceira sugestão: Amor ao poder?

Dr.Jung: Bem, há uma conexão muito mais imediata. A religião dele não é a
religião do Novo Testamento. E esta mulher é uma protestante da linha
puritana. Nós temos que nos aprofundar um pouco mais na psicologia da
religião protestante... Vejam, o protestante é como um judeu: em seu
inconsciente nós encontramos um judeu... Por exemplo, meu bisavô materno
era um protestante muito piedoso e ele acreditava que a língua falada no céu
era a hebraica e, portanto, ele era professor da língua hebraica... Vejam, ele
queria se preparar, ser um tipo de anjo guardião que entendia a língua da
comunidade celestial. Poderíamos dizer que, de outro lado, ele era um judeu
do Velho Testamento. E esta também é a razão pela qual eles deram, naquele
tempo, nomes judeus às crianças. Aquilo não tinha nada a ver com o Novo
Testamento. Era o judeu dentro deles. De fato, toda a configuração mental do
protestante mostrou que ele acreditava na autoridade, ele estava absolutamente
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convencido da Lei, ele venerava a Lei. Freqüentemente ele não venera


realmente o Deus do Amor, não acredita em um Deus da Tolerância...
Este judeu significa simplesmente a mente inconsciente desta mulher, o
homem inconsciente dentro dela. Então o que é o homem inconsciente?
Suponho que quase todos aqui saibam isto. É o Animus. O Animus é uma
figura que personifica a atitude opinadora de uma mulher. Não posso coloca-
lo melhor. São opiniões já prontas, mas não vividas, e pronunciadas com
autoridade. Conheço mulheres que têm uma opinião sobre tudo, conhecem
tudo, mas quando eu digo “sim, isto é assim”, elas ficam desapontadas. Elas
querem que eu diga não. Mas se eu dissesse não, aquele homem inconsciente
emergiria e teria uma terrível disputa comigo, porque tal opinião numa mulher
é um homem que quer lutar; esta coisa numa mulher faz inimigos, e muito
freqüentemente uma mulher torna-se vítima desta figura inconsciente. Este é o
Animus.

O judeu rico é um Animus de grande riqueza, grande poder, grande


autoridade, e ele está de posse de seus sentimentos. Naturalmente tudo que cai
no inconsciente é possuído pelo Animus. Ele está lá de boca aberta e apanha
tudo que cai da mesa do consciente, e quanto mais falta à ela, à consciência
deste outro lado, mais poderoso ele é. Por exemplo, é praticamente uma regra
em minhas análises que, quando eu progredi bem suavemente com uma
mulher sob meu tratamento durante um tempo, de repente tudo sai errado. Ela
começa a argumentar e aparentemente tudo fica de pernas para o ar e não se
sabe o que é a cabeça e o que é o rabo, e isto tudo é trabalho do Animus.
Repentinamente o Animus a sobrepuja e cria uma completa confusão.
Pergunta-se: “Por que tudo isso?” e ela não sabe. Então eu digo: “Bem, seu
Animus não foi alimentado por um tempo e ficou muito faminto e agora torna-
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se particularmente atento; parece que você não esteve suficientemente


consciente e não cuidou de seus tesouros; não cuidou, vamos dizer, durante
certo tempo, de seu sentimento; alguma parte infinitesimal de você mesma foi
deixada inconsciente e instantaneamente o Animus a tomou, ingeriu-a, e ficou
forte de novo e começa a argumentar”.

Por exemplo, algumas vezes ocorre que uma mulher me mostre seus
sentimentos de uma maneira particularmente agradável – me dá algumas
flores ou algo do gênero. Mas quando ela tem outra vez o impulso para fazer
isso, emerge o pensamento: “Dr. Jung conhece tantas mulheres, todas gentis
para com ele, todas as mulheres têm transferências e lhe mandam flores,
portanto, por que eu deveria fazer isso?” e ela deixa passar. Isto é alimento
para o Animus. Pode ser coisa muito insignificante, uma quantité négligeable,
mas ela deveria ter dito algo, expressado um sentimento, me agradecido por
alguma coisa, por exemplo. Instantaneamente o sentimento afasta-se, vai para
o inconsciente e a omissão deste pequeno impulso de sentimento desenvolve-
se na mais mordaz discussão se se é suficientemente tolo para permitir isto. A
única coisa que um homem pode fazer é dizer sim, e puni-la com o
desapontamento. Então ela repentinamente descobre que tem sido a vítima de
um espírito seu.

Há um poema alemão muito bonito, na verdade uma canção popular, sobre um


pequeno corcunda que segue uma menina; em todo lugar que ela vai, lá está
ele, e fala algo mau que desmancha seu prazer; uma espécie de fantasma
sussurrante que assim pinga seu veneno. Este é o Animus.
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Neste sonho a coisa muito sutil que ocorre é que ela não é interrompida em
sua música pelo impedimento real de seus parentes, ou por suas próprias
idéias expressas por eles, mas por um fator nela mesma – aquela figura de
Animus que emerge tocando uma música muito mais maravilhosa do que ela
poderia. Isto vem do fato de que. Psicologicamente, ela não domina sua
função inferior. Do mesmo modo, uma pessoa com o sentimento diferenciado
nunca está completamente de posse de seu pensar, mas é repentinamente
possuída por um pensamento; ele assenta no seu cérebro como um pássaro e
não vai embora quando ela assim o deseja, nem vem quando ela deseja que ele
venha.

A função inferior é só natureza. Não nos obedece, embora possa faze-lo


parcialmente. Por exemplo, eu posso conversar com essa senhora sobre seu
filho, sobre tudo que a interesse, sobre seus livros, e ela tem a mesma
tonalidade de sentimento. Lá o sentimento é permitido, na medida em que é
guiado pelo intelecto e sente de modo correto. Mas o sentimento que é
permitido no consciente, os Senhores poderiam comparar àquela parte da
natureza cultivada em seu jardim. É natureza, mas natureza escolhida pelos
Senhores, de nenhum modo a força indomada e incontrolável da natureza
numa floresta virgem. O resto da função, que na realidade é a parte mais
admirável, não está sob o seu comando, não está sob o seu controle. Pertence à
natureza, à natureza da alma, a todos aqueles reinos os quais possivelmente os
Senhores não podem controlar porque são inconscientes. É como se eles
estivessem sob o controle daquela poderosa figura misteriosa.

Tal figura, a figura de Animus ou Anima, é sentida pelo primitivo, ou pela


pessoa sem preconceitos que não pensa intelectualmente, como uma presença
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mais poderosa – como um demônio ou um deus. Poderíamos dizer que um


deus começou a tocar nela e ela teve que parar. Mas usando a palavra “Deus”
posso provocar preconceito. Eu não uso esta palavra num sentido
particularmente favorável, como se poderia dizer “não é maravilhoso?”, um
Deus começou a tocar nela e, naturalmente, ela parou”. Se os Senhores
entendem a palavra corretamente, no sentido antigo, ele significa poder, e a
paciente deve fazer a tentativa de usa-lo ela mesma e nada deveria
desencoraja-la, mesmo se os deuses sabem fazer melhor. E se o Deus, o poder,
toma a forma do Animus, então especialmente ela não deve permitir ser
interrompida, uma vez que, se o Animus interfere aqui, ele é negativo. Assim,
seu eu tenho a permissão de usar a palavra “Deus”, naturalmente eu a emprego
no sentido antigo, o qual pode ser bastante negativo. Os deuses tiveram muitos
casos de amor escandalosos e assim se fizeram ridículos e perderam sua
autoridade perante os homens que vieram depois. O homem primitivo podia
tolerar isto porque ingenuamente apenas admirava, apenas observava o que os
deuses fariam em seguida. Ele faz isto também com o homem branco; se este
se mete num aperto, ele apenas observa e se pergunta o que o homem branco
fará depois. E assim observava o homem primitivo seus deuses, e se eles
faziam algo terrivelmente imoral, isto ainda era admirável; a maior
obscenidade era maravilhosa.

Sim, para o relativamente primitivo nível de consciência não era importante


como os deuses se comportavam. Mas para uma civilização mais alta, se eles
se tornaram desrespeitáveis, então eles se tornaram ridículos, e isto os
depreciou tanto que eles finalmente faliram e novos deuses entraram em cena.
A nova atitude da paciente deveria ser a daqueles que vieram depois. Ela
deveria criticar seu Animus e dizer que é ultrajante que quando ela começa a
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tocar ele deva interrompe-la. Ela não deve permitir que ela a faça parar. Isto
foi o que eu disse a ela.

O médico que morava a beira-mar

 Sonho: “Eu ia à um médico que morava numa casa junto ao mar. Perdi
o caminho e desesperadamente pedia às pessoas que me indicassem o
caminho correto, de modo que eu pudesse chegar até ele”.

Naturalmente, quando ela sonha com o médico, todos se inclinam a pensar que
ele sou eu. Ela está sob os meus cuidados e, assim, isto se refere a mim. Bem,
é engraçado, no entanto, que o inconsciente não diga isto mais definidamente.
É natural que qualquer pessoa que analise sonhos de acordo com o ponto de
vista de Freud diria que ele era eu, mas eu não estou tão certo. Se o
inconsciente quisesse transmitir a idéia que este era o Dr. Jung, ele diria isso;
então o próprio sonho, o qual não podemos criticar teria me introduzido. Mas
o sonho diz “o médico à beira-mar”, e o lago de Zurique não é um mar.
Portanto, há uma mudança na situação inteira e nós vemos que atrás das
impressões da vida diária – atrás das cenas – outro quadro aparece coberto por
um véu fino dos fatos atuais. Para entendermos os sonhos, temos que aprender
a pensar assim. Não devemos julgar os sonhos pelas realidades porque, a
longo prazo, isto não conduz a lugar algum.

O sonho vive numa atmosfera que não é a nossa atmosfera neste mundo
consciente é pesada e não há véus e se não prestamos atenção às realidades
como tais, simplesmente elas nos tragam. Mas, por outro lado, tais realidades
significam pouco; elas são algumas vezes tão finos véus que de uma vez
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percebemos um quadro maior atrás dos véus dos fatos. Assim, os Senhores,
vêem o que achamos importante aqui: este fato estupendo de que ela está
realmente sob o meu tratamento, que eu tenho uma casa nas margens de um
lago onde ela vem quase diariamente para ouvir novidades desagradáveis,
tudo isto torna-se uma névoa. Podemos olhar através dela para outro quadro;
para aquele médico no sonho cuja casa é à beira-mar, um tipo de paisagem
heróica à beira-mar, diferente e grande. No sonho há a imensidão do oceano,
uma vista extraordinária. Aqui, temos uma vista de poucas milhar, que nem
vista, mas lá, é um horizonte tremendo. Também uma casa localizada à beira-
mar é muito diferente de uma vila aqui à margem do Lago de Zurique; capta-
se uma atmosfera inteiramente diferente. Além do mais, não se trata, na
realidade, dela perder seu caminho. Ela não erra o caminho quando procura a
minha casa. Ela está há dois meses sob o meu tratamento e mesmo que ela
errasse o caminho, não haveria desespero em perguntar por ele. Mas esta casa
é uma casa estranha, se este médico é um médico estranho, então ela pode
errar o caminho; este é um país extenso e ela tem que lutar quase
desesperadamente para encontrar o caminho para este lugar.

Podem ver que este é o tipo de imagem arquetípica que nos leva de volta à
épocas pré-históricas. Há um problema terrível... Ela sente-se enganada por
um demônio ou, pode-se dizer, por um deus hostil. Em tal situação arquetípica
ela não sabe o que fazer; procura, então, a ajuda de um pajé que tem estado lá
desde a eternidade. Geralmente ele mora sozinho e num lugar inacessível...
Vejam: o lugar escolhido é expressão da própria psicologia dela. Assim o pajé
escolhe um lugar extraordinário e, quanto mais difícil de ser encontrado,
melhor, pois certamente ele nunca está aí, ele está sempre em algum estranho
canto do mundo, além dos mares... Para encontrar o pajé, esta mulher tem que
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viajar longe, tem que labutar, tem que perguntar desesperadamente por seu
caminho para este lugar longínquo e desconhecido.

Vejam: esta sonhadora que agora fala da busca para encontrar o grande
curador, cometeria um grande erro vendo em mim o grande curador.
Naturalmente, sua primeira investida foi sobre mim. Mas eu disse: “Não,
obrigado!” Porque de outro modo ela grudaria em mim mais tarde, quando as
coisas andassem erradas, pois este médico certamente será duro, muito difícil.
Aqueles pajés primitivos fazem coisas terríveis, eles torturam! E então ela
dirá, aos berros: “Você disse que era o grande pajé, você me levou por este
caminho!” Assim, eu não assumo tudo isto. Desde o início eu declino, com
agradecimentos, da grande honra de ser chamado de pajé. Se um sonho
dissesse que alguém está indo até o Dr. C. G. Jung, que mora da Seestrasse em
Küsnacht, então eu admito que sou eu... Mas aqui o problema é muito maior
do que eu e é sábio ater-se às palavras que os sonhos nos dão, porque não
podemos esperar ser mais sábios que a natureza.

Freud diria – “Realização de desejos – uma resistência; ela não quer encontrar
o caminho até você porque as coisas estão ficando desagradáveis”. E isto é
verdade também, com certeza. Há dúvidas nela. É uma novidade para ela que
o inconsciente encontre uma solução onde ela não pode faze-lo... Pois somos
importunados pelo inconsciente. Temos um tremendo orgulho e imaginação
sobre nós mesmos e sobre o poder de nossa consciência porque somos tão
eficientes. Quem construiu essas máquinas poderosas? Nossa consciência, por
certo! E então acreditamos nela e pensamos neste lado inconsciente como
nada, um apêndice mais ou menos desacreditado da luz espetacular que temos
aqui em nossas cabeças!
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Se dissermos a ela: “Aparentemente você tem uma grande dificuldade em


chegar até este doutor – quais são suas resistências para comigo?”, estaríamos
no caminho errado, porque ela alegremente aceitaria este aspecto pessoal,
veria uma abertura, e diria para si própria: “Este homem gosta de assumir o
papel do Grande Curador. Eu entregarei a ele todo o meu material, mas ai dele
se não se sair bem!” Ela teria alguém para responsabilizar se as coisas não
acontecessem como deveriam. Assim, eu aprendi, através de experiência
dolorosa, a interpretar sonhos corretamente.

O curador é o Animus novamente, só que desta vez ele já não toca música, ele
aparece sob o disfarce do médico, e mais tarde vocês verão que ele toma
novamente diferentes formas. Nessa ocasião eu expliquei à senhora o que eu
entendia acerca do Animus, e a relação entre o Animus e o inconsciente.

Foto – pág 6

A paciente que relatou suas visões era CHRISTIANA DRUMMOND


MORGAN (1897-1967). O retrato é de M. Aikan.

Depois de 4 anos de trabalho psicoterápico com o Dr. C. G. Jung, tornou-se


psicoterapeuta “leiga” nos Estados Unidos e colaborou com MURPHY na
idealização dos testes T.A.T.
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Descrevem-na como uma pessoa de integridade e sensibilidade notáveis.


Relatava e ilustrava suas “visões” em vários “livros”. Os seminários foram
anotados e, com a supervisão de JUNG, compilados por MARY FOOTE.

Os conteúdos destes seminários de modo algum devem ser considerados como


material para publicação “científica”.

Demonstram, porém, os mais variados aspectos do modo de ver junguiano e


por isso são de valor inestimável...

(Nesse ponto a paciente foi apresentada e sua situação explicada.


Imediatamente depois dessa sessão iniciaram-se suas primeiras visões. Como
o Dr. Jung disse: “Ela se sentia muito sonolenta e deitou pensando que iria
adormecer. Em vez disso entrou num estado sonado e com seus olhos internos
mirava uma visão hipnagógica”. – Infelizmente o espaço não permite a
apresentação de forma completa do material subseqüente. Suas visões iniciais
têm um caráter introdutório e temos que nos limitar apenas à primeira. – Nota
do Editor).

O pavão nas costas de um homem

 Visão: Ela via um lindo pavão empoleirado nas costas de um homem,


com o bico dirigido para a nuca.

Ela, naturalmente, não entendia a imagem. Mas já que era extremamente


simbólica, eu solicitei suas associações sobre o pavão. Ela disse que é o
pássaro mais bonito quando abre sua cauda, tem olhos azuis, cores copiosas e
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assim por diante. Eu senti o que ela queria dizer. Trata-se de novo de uma
experiência difícil para descrever, mas se os Senhores têm um coração
sensível, poderá compreende-la... Quando aparece aquela beleza deslumbrante
de cor, de forma e de luz, então tem-se a sensação que as coisas estão
desabrochando. É isto que o pavão representa na história do simbolismo: a
primavera e o levantar do sol. Houve até a idéia de que sua carne era
incorruptível. Na igreja cristã inicial e nos sermões de Sto. Agostinho e de Sto.
Antônio de Pádua, por exemplo, a figura do pavão era o símbolo da
ressurreição. Isto era assim, porque com a chegada do inverno ele perde suas
penas, mas as tem de novo com o sol, na primavera. Portanto, é o símbolo da
regeneração e como tal, podem percebe-lo na igreja inicial, como o símbolo da
ressurreição da alma. Também é o símbolo do Redentor porque traz de volta a
filiação divina pelo renascimento. Todo esse material, naturalmente, não era
consciente para a paciente, que tinha apenas uma idéia vaga de algum sentido
religioso, mesmo não sabendo qual.

O pavão tem também, no simbolismo oriental, um papel, mas antes


desfavorável. Lá é o pássaro altivo, do tipo luciferiano que se produziu a si
mesmo e desobedeceu ao Criador das Coisas. Nas tribos de curdos existiram
os assim chamados adoradores do diabo que encaravam o pavão como
símbolo do poder criativo deles.

Então, na fantasia acima, o pavão está se empoleirando nas costas de um


homem e “as costas de um homem” são sempre o símbolo do lado
inconsciente. O nosso inconsciente limita o campo visual e por isso tornou-se
sombra, o símbolo do inconsciente. O homem primitivo está sempre
assombrado pelo sentir de uma presença como se alguém o seguisse.
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Observamos o mesmo em nós mesmos.No silêncio da noite, numa senda


solitária, sentimos que alguém está, certamente, nos seguindo e olhamos para
trás para vê-lo. Estando inteiramente sós em casa, depois de certo tempo
ouvimos um ruído como se algo tivesse sido dito e temos a sensação de uma
presença. Os primitivos buscavam a causa dessa sensação e expressavam-na
como se fosse a sombra vivente. A sombra que está atrás de nós tornou-se
uma idéia valiosa – o poder atrás de nós. Os gregos têm uma palavra bonita
para isso, “sinopados”, o que significa “aquele que anda comigo e está atrás de
mim”. Mas essa sombra, de modo algum é a mesma que nós denominamos
assim, isto é, a falta de luz – antes é uma coisa vivente de grande mana, de
grande poder. Por isso, se uma pessoa pisa nela, é algo muito perigoso;
também é algo terrível se a sombra cai sobre alguém. Se você está sentado em
qualquer lugar e o pajé anda por aí e sua sombra cai sobre você – em duas
semanas você estará morto... Como estão vendo, para primitivo a sombra é
carregada de mana.

Com freqüência a sombra vem por causas mais simples, mas é misteriosa e
não faz aquilo que nós estamos fazendo, tendo qualidades diferentes. Por
exemplo: pode estender-se muito longe, às vezes por várias milhas e às vezes
desaparece como um fantasma. Não é possível toca-la. Descrevem-na como
um vento frio e dizem que os fantasmas são sombras. HADES é o mundo da
sombra e as sombras têm lá sua moradia. Houve a idéia: se alguém morrer,
tornar-se-á uma sombra e vestirá asas e um invólucro de penas. Podem ler no
Gilgamesh sobre os lugares tristes onde as almas têm também tais invólucros.

Aqui também, o pavão assume o papel de uma espécie de fantasma que se


apodera do homem. Mas nós temos que nos ater à nossa hipótese original de
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que esse é o Animus de novo, que este homem está dentro dele e agora a visão
diz que atrás do seu homem, atrás do Animus, há um novo princípio que o
possea. É o seu gênio que está atrás dele, semelhante ao gavião do Rei ou à
águia de Zeus. Esse é o pavão-fantasma do desabrochar, da beleza, da
primavera – de tudo que é simbolizado pelo pavão. É quase uma visão
profética, difícil de ser traduzida. Por isso eu prefiro me ater bem à imagem
mesma.

Há aqui mais um pormenor para o qual gostaria de chamar a sua atenção: é o


fato de que o pavão dirige seu bico à nuca do homem. Nisto existe uma sutil
ameaça. Pensa-se: se o homem fizer algo que não deva, o pavão seria capaz de
mata-lo. Nessa posição imaginamos que o pavão atinge uma área vital ao
quebrar o pescoço do homem. Sugere que o homem está sendo controlado
pelo inconsciente através daquele ente poderoso. Se alguém tentar traduzir
esta visão hipnagógica em linguagem psicológica, terá que dizer que o
Animus que vimos expressado pelo judeu rico, como doutor ou qualquer
outro, na realidade não é apenas Animus, mas este, de sua parte está
controlado por uma coisa maior – pelo espírito de criação, do levantar do sol,
do renascimento. E isto significa também: se ela mantiver o relacionamento
adequado com o homem, poderia conseguir o renascimento mágico pela
realização desse espírito que a controla, o “daimonion”.

Pormenores nos sonhos e a independência do inconsciente

Ao analisar os sonhos é sempre aconselhável entrar nos pormenores do


simbolismo já que de forma alguma é indiferente: que espécie de símbolo
escolhe o sonho. O meu ponto de vista é aqui diferente do da escola freudiana,
21

para o qual o simbolismo é absolutamente indiferente. Dez mil coisas podem


ter o mesmo sentido, por exemplo, as genitálias ou qualquer coisa do gênero.
Mas eu lhes digo: é de todo importante aquilo que o sonho diz e não aquilo
que nós interpretamos nele. Nós podemos muito bem errar com a nossa
interpretação mas o sonho é uma fonte natural e não foi organizado e
produzido por nós. É como uma ave estranha. Nós podemos dizer: essa ave
não devia ser... A nossa atitude poderia ser a de encará-lo como se fosse uma
coisa que ainda nem nasceu, mas essa atitude certamente não é científica.
Assim, não devemos dizer: “É apenas um símbolo para tal e qual coisa”, como
se tivéssemos o controle quanto à fonte do sonho. Devemos ser, antes, gratos
se descobrirmos quais são as fontes do sonho, mas não temos absolutament
controle sobre tais fontes.

Questão: É verdade que o paciente escolhe no sonho aquele símbolo de que


teve já uma experiência real? Se ele teve uma experiência de terremoto, o
sonho, nesse caso, escolherá terremoto?

Dr. Jung: Sim, se o terremoto ou o fogo fossem os símbolos adequados para


expressar aquilo do que se trata. Por exemplo, eu já experimentei fogo,
terremoto, inundações e bombardeio. Então, se o meu inconsciente quisesse
escolher algo para demonstrar a insuficiência de uma atitude geral minha,
então teria o que escolher: mas se um terremoto destrói a minha casa e o
inconsciente escolhe em vez desse o símbolo de uma inundação, então eu sei
que se trata de um perigo muito específico e não uma questão de destruição.
Por exemplo, eu posso sonhar que a casa desmorona por causa de terremoto
ou de fogo. O terremoto transmite do mesmo modo a idéia da destruição como
22

o fogo; mas se eu quiser saber algo sobre a natureza verdadeira daquilo que
atua sobre mim, então devo conhecer o específico agente destrutivo.

Comentário: Mas eu acho que se o Sr. Teve apenas uma experiência na vida
real, por exemplo, a do fogo, então o sonho escolherá o fogo mesmo.
Dr. Jung: É possível sonhar todas essas coisas mesmo se nunca as
houvéssemos experimentado. Nós sabemos isto. Assim alguém pode sonhar
com animais peculiares, ou com serpentes tremendas nunca vistas, ou com
monstros horríveis que nem existem. Pode-se ter todas as emoções vendo um
dragão, mesmo que nunca tenha sido visto e se sentirá medo dele... Eu recordo
de suíços que nunca estiveram na guerra e nunca observaram um bombardeio
e mesmo assim, muitos deles sonharam com bombas que caíram e matavam as
pessoas. Eles leram descrições vivas e viram também fotos de revistas e assim,
naturalmente, podiam escolher este material. Tudo isso me mostrou que o
inconsciente possui a mais surpreendente faculdade de pegar o material
apropriado. Por exemplo, quando estava na África, nunca sonhava sobre ela.
Só uma vez apareceu um preto nos meus sonhos e eu pensei: “Agora, enfim a
África penetrou sob a minha pele” e depois comecei a ver mais nitidamente
que aquele preto era o meu barbeiro em Chattanooga, nos Estados Unidos e de
forma alguma um preto africano. São coisas que o inconsciente sabe fazer.

As pessoas nas situações mais peculiares podem sonhar com as banalidades


mais óbvias sem qualquer vestígio de experiências intensas que podiam ter
vivido no decorrer do dia, e outros que vivem uma vida normal e simples,
podem ter sonhos repletos das coisas mais horríveis. Disto podemos concluir
que o inconsciente é independente da maneira mais espantosa. Não há lá
“regra” nenhuma, absolutamente. A única regra é a total independência em
23

relação com o inconsciente. Podem estar seguros de que não há a menor


chance possível de influenciar o inconsciente do lado do consciente. Se o
inconsciente pretende algo, certamente dirá o que pretende apesar de todos os
nossos esforços.

Se acham que podem sugerir a si mesmos ter um determinado sonho, eu diria:


isto ocorre porque corresponde ao inconsciente e existe algo real mesmo, atrás
deste sonho. Vamos supor que alguém queira experimentar e dia: “Então, hoje
à noite antes de adormecer, eu vou me concentrar em certa imagem que deverá
aparecer no meu sonho”. Depois começa a pensar na imagem sobre a qual
estará se concentrando e, chega à conclusão que devia ser o fogo. Deita-se
com a expectativa de que vai aparecer no sonho e aparece mesmo, e então diz:
“Eis, agora aconteceu!” mas ele não questionou: como chegou a escolher
durante o dia tal símbolo particular. Por exemplo: às vezes, durante uma
conversa, emerge uma determinada palavra e insere-se na nossa sentença ou
esquecemos um nome que estava já “nos lábios”. De tais perturbações já é
possível quase reconstruirmos o sonho que ocorre o tempo inteiro no
inconsciente e no minuto quando estamos sós, imediatamente submergimos
naquela “fábrica de sonhos”.

Se alguém desce ainda mais um pouco, tendo um “abaixamento do nível


mental”, de modo que a luz clara da consciência diminui, havendo apenas uma
espécie de penumbra, encontrar-se-á naquela camada de si mesmo em que está
na proximidade imediata dos sonhos. Se os senhores estão muito cansados,
com freqüência ocorre que a sua percepção da realidade torna-se meio
onírica... Também acontece que quando estão tão cansados que se encontram
num estado meio inconsciente, emergem os fenômenos autônomos e podem
24

ver pessoas que não existem, ouvir vozes, até o próprio nome sendo chamado;
então estão simplesmente naquele estado de proximidade dos sonhos, onde
toda a sua vida psíquica começa a ser objetivada.

Isto ocorre também no seu experimento. Escolhendo um símbolo, nunca se


sabe se não foi o inconsciente que escolheu isto. Alguém diz que optou pelo
fogo mas nunca pode estar certo se o inconsciente não falará: “Não, eu digo
água!” E se o sonho repete o fogo, a única conclusão certa que eu conheço é
que nesse caso o sonho escolheu dessa maneira. Como alguém sabe que não
foi ele que escolheu assim? O meu respeito para com os sonhos vai muito
longe e fico impressionado de novo e de novo pela independência
extraordinária do inconsciente, a independência mental mais extraordinária
que conheço. Comparando com este, a independência do consciente é algo
ridículo. O consciente é tremendamente dependente, mas o inconsciente de
forma alguma!

Por exemplo: em qualquer matéria consciente pode dizer que a obteve de tal e
tal fonte, talvez leu no jornal, mas quando se trata do inconsciente, só se pode
estar certo quando se assumir que se trata de uma produção genuína que brota
do solo como uma planta e não poderá dizer daquela planta (como pode fazer
no caso de uma produção consciente) que cresceu só porque um determinado
poeta escreveu um poema sobre uma tal flor crescendo em tal lugar. Essa flor
não está aqui por causa do poeta. Qualquer vento podia ter soprado a semente
lá, e assim é com os sonhos também.

Os sonhos e as visões são produtos da natureza e são, da maneira mais


espantosa, não influenciáveis, mesmo que pareça de modo bem diferente. Eu
25

insisto neste ponto, porque o modo de ver de Freud é justamente o contrário.


Ele acha que o inconsciente é tremendamente influenciado, e determinados
sonhos só se originam do fato de que alguém viu isto ou aquilo durante o dia.
Mas eu posso apostar: se alguém viu um acidente na rua, talvez uma cena
horrível e altamente impressionante, nada aparecerá no sonho disto ou se
ocorrer, será distorcido. Porque não se trata apenas do acidente mas de um
símbolo que expressou algum problema psicológico dentro da pessoa. O
acidente verdadeiro está simplesmente empregado como uma espécie de
linguagem... O inconsciente faz uso dela e se serve a seu propósito ou de
forma recorre a ela se não é simbólica.

Desta maneira podem ver que eu tenho pouca confiança na teoria de que as
impressões do dia são consideradas. Já vi, com freqüência, casos quando as
pessoas achavam-se profundamente impressionadas, mas o sonho seguinte
apresentava velhas titias ou primos como anteriormente e nenhuma impressão
duradoura. Então eles dizem: “Agora estou vendo!” “Agora estou
percebendo!” – Depois a reação seguinte é justamente a contrária, tudo
aparece através de um outro aspecto. Assim podemos ver que o inconsciente
não está ainda tocado, não está ainda atingido. Suas reações são as mesmas
como se nada tivesse acontecido. A grande importância dos sonhos e a razão
porque temos que analisa-los é para ver: onde estamos no nosso inconsciente...
No nosso consciente podemos estar sabe Deus onde, no topo do Monte
Everest pela nossa intuição – e no nosso inconsciente nem saímos do berço.

Questão: Mas o Senhor concorda, não é, que o caráter dos sonhos é


dependente da intensidade geral da atitude – que seu caráter depois de análise
26

é diferente de como era antes dessa e assim a mudança da atitude consciente


será um fator determinante?

Dr. Jung: Quanto ao meu ponto de vista, eu insisto realmente no fato de que
tanto faz qual é a sua atitude consciente; o inconsciente está absolutamente
independente e pode fazer o que bem entender. Naturalmente, se o Senhor
assimila boas partes do inconsciente pelo consciente, haverá uma mudança.
Todos que fazem análise prática sabem que os paciente antes da análise, em
geral, têm sonhos lindos e ordeiros, perfeitamente apresentáveis, mas logo que
iniciam a análise tudo se desmonta e têm sonhos horríveis e tudo vai por água
abaixo. Isto decorre do fato de que as pessoas que chegam para análise estão
dissociadas. Estão, de vários modos desorientadas e da primeira lição obtêm
uma espécie de ordem no seu caos consciente. Então, instantaneamente, o caos
já está no inconsciente.

Uma lição de música

 Sonho: Eu fiz esperar um menino suíço durante bastante tempo,


enquanto estava me vestindo. E ainda não estava totalmente vestida
quando entrei na sala seguinte onde ele me esperava. Eu digo: “Agora
tocarei a melodia que aprendi”. O menino diz: “Não, você me fez
esperar tanto, que agora terá que aprender aquilo que eu tenho que
ensinar”.

Essa é uma daquelas cenas que pertencem à camada do inconsciente dela, da


qual principiam suas visões, mais tarde. Nesse sonho, no entanto nada há que
nos permita ver ou adivinhar: o que está chegando. É um início muito
27

modesto, simbolizado por lições de música. Lembrem-se: essa mulher é


altamente intelectual e pessoas com o intelecto diferenciado têm que pagar por
tal conseguimento, geralmente com um “sentir” inferior, como também
aqueles com a função de “sentir” muito refinada e diferenciada pagam com a
falta de desenvolvimento da mente, já que o sentir exclui o pensar e o pensar
exclui o sentir. Pergunta-se: por que deve ser assim? Naturalmente todos
deveríamos ser anjos e ter asas douradas. Isto certamente seria mais lindo.

Quando uma planta se desenvolve, é bastante sábia e deixa crescer folhas em


ambos os lados, mas nós estamos na posição infeliz, de, desenvolvendo um
lado não desenvolver o outro; pois não podemos desenvolver tudo ao mesmo
tempo. Tal diferenciação de uma função é um dos milagres da cultura, da
consciência. E a consciência diz: “isto é muito útil, agora usa a tua mente
hábil e terás o poder. Isso é verdade... Quanto mais profundo é o pensar
diferenciado, tanto mais farás uso dele e tanto mais vai render e trará sucesso.
Mas quanto mais fizeres isso tanto menos considerarás o teu sentir!” Como
percebem, não somos, nesse respeito, semelhantes às plantas, Só enquanto
inconscientes, somos como plantas, como os primitivos ou como uma criança
que praticamente não tem consciência ou apenas uma consciência muito
objetiva que é idêntica com as coisas que acontecem. Mas a nossa atual
consciência repleta de vontades, que exige ter o seu livre arbítrio e sua livre
escolha, é um fator muito perturbador porque pode escolher coisas, pode
dizer: isto é útil e reconstrói coisas. Enquanto somos como a natureza,
crescemos como plantas, desenvolvemos tanto o pensar como o sentir, mas
tudo isso de modo inconsciente.
28

Na medida em que não estiver deturpado pela consciência, o primitivo possui


uma ingenuidade semelhante à natureza. Mas logo quando aparece a
consciência, inicia-se a diferenciação e essa é, necessariamente, uma
unilateralidade. E quando a unilateralidade no desenvolvimento atinge uma
certa culminação, ocorre uma quebra, ocorre uma espécie de colapso. Então a
função diferenciada sofre um colapso porque – no caso de uma pessoa
intelectual – o “sentir” foi solicitado e não podia ser produzido, ou numa
situação extrovertida ou numa situação interior. Comumente, se estudamos a
estória de um tal colapso, percebemos que a situação desenvolvera-se já anos
antes, quando as coisas tornaram-se tão emaranhadas que só a função inferior
podia por tudo isso em ordem – se não tivesse ficado demais inferior. Há os
que pensam quando eu falo do “sentir” inferior, que eu me refiro a um sentir
de fraca intensidade. Isso de forma alguma é verdade. É algo tremendamente
forte, mas primitivo, bárbaro, teriotípico, incontrolável. Ele está nos
controlando. E sempre, quando a situação exige a função inferior, então,
estamos numa boa embrulhada.

Essa mulher chegou ao seu colapso. Chegou até os confins da sua caixa
cerebral e seu sentir falou apenas coisas desairosas e inaceitáveis – as quais
ela não gostava de ouvir – e essas coisas foram ruins demais, loucas demais e
assim ela tinha que rejeitar o seu sentir pois não sabia como emprega-lo. Além
disto, nem se tratava de empregar porque o sentir não teria obedecido a ela e
isto é verdade quanto à função inferior... Eu posso propor para mim que agora
vou usar o meu sentir. Mas mal é tocado, ele já está me usando. Isto é: não
pode ser usado, é “queimoso” demais. Então você o deixa cair, afastando-se
encontrando-se numa completa parada e nada se move. Você está de novo do
lado da mente, completamente seco e estéril. Então você terá que tocar de
29

novo o sentir e com isso reaparece o problema inteiro. Esse é o problema com
o qual a paciente me procurava e é bem lógico que depois de certo tempo o
inconsciente sugerirá lições de música. É semelhante à história de Sócrates e
da sua flauta. Aqui emerge a mesma situação e agora o menino suíço vem para
ensinar-lhe música, a arte de sentir e isso não seria uma música de tipo muito
erudito, de forma alguma clássica, mas é uma música camponesa, tocada em
acordeão. E já essa seria o bastante se ela possuísse o suficiente daquele modo
bem primitivo de se expressar, uma vez que ela é absolutamente inarticulada.
Mas agora gostaria de saber como interpretariam aquele menino suíço. Oh!
Não devem rir! Vocês não sabem... eu sei o que pensam, mas estão bem
errados.

Sugestão: É a sua nova mentalidade aqui, na Suíça.

Dr. Jung: Sim, isto é completamente certo. Isso é verdade. Percebam: a


explanação ortodoxa seria que o menino sou eu, disfarçado. Já expliquei que
eu seria um grande tolo se aceitasse uma tal interpretação. Eu obteria açúcar
num caso, mas pimenta no outro.

Sugestão: Não é, trata-se de uma nova atitude?

Dr. Jung: É um novo animus,no entanto, não é uma atitude, mas uma função.
O menino é uma figura dentro dela. Tecnicamente é o melhor trata-lo côo está
sendo apresentado no sonho. E o sonho fala de um menino suíço, isto é, uma
figura mais ou menos pouco importante. Ela não sabe como ele é, um tipo
suíço de pessoa, um jovem. Seria um grande erro dizer que tal figura sou eu
porque nesse caso seríamos obrigados a concluir que o seu inconsciente estava
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me menosprezando, o que significa que ela estaria me supervalorizando no


consciente. Tais coisas ocorrem, mas nesse caso o inconsciente diria
provavelmente: “Dr. Jung vem para te ensinar a tocar o acordeão e fazendo
isto ele se comporta de modo muito tolo porque o fato é que ele não sabe tocar
acordeão; eu toco muito melhor que ele e teria que mostrar isto a ela”. Isto é
que o sonho diria se o inconsciente tivesse o propósito de me menosprezar.
Empregaria o meu nome ou a minha personalidade porque é livre para sonhar
sobre mim e sobre qualquer outro. Assim, o menino suíço é uma figura
subjetiva dentro dela, criada recentemente, porque ela não esteve
anteriormente na Suíça, nem conhecia antes gente daqui. Por isso estamos
bem acertados supondo que essa figura originou-se justamente agora, sendo
uma específica criação suíça. Mas o que é que estava sendo criado nela aqui
na Suíça?

Resposta: O fato de que aprendeu a pensar de um modo novo?

Dr. Jung: Aprender a pensar analiticamente é muito impressivo para ela. Esse
é o menino suíço nela, recentemente criado... Esse menino suíço é uma
espécie de espírito, uma espécie de visão mental, um sistema de modo de ver,
uma forma de pensar que se originava na Suíça e que propõe música. Essa é a
maneira como o sonho está se expressando. Alguém poderia dizer que o
proceder analítico chegou a criar a impressão de que seria aconselhável prestar
mais atenção ao seu sentir. Isso é tudo. E se eu interpreto dessa maneira, deixo
a honra à sua função, deixo que fique com ela o mérito. Não estou reduzindo a
função dela no meu mérito, de modo que ela se esqueça totalmente que possui
uma função que é sua; porque com tal procedimento eu a ensinaria a fazer
projeções. E a gente já projeta bastante. Eu tenho receio de excesso de
31

projeções. Assim o sonho, nessa altura diz que é o resultado de seu próprio
processo ideativo (pensar) o dever aprender a tocar acordeão.

E agora ela o deixa esperar. Isso significa que ainda durará certo tempo antes
que ela possa decidir a aceitar o fato de que deveria funcionar com o seu
sentir. Ela tem medo disso, embora não perceba seu medo. A função inferior
está sempre no estado de repressão ou de inconsciência, de modo que nunca
podemos avaliar plenamente o que realmente acha ou qual é a medida do
poder dela. Assim dura bastante tempo até que ela se vista e quando entra na
sala nem acabou de se vestir o que significa que a sua atitude ainda não é
aquela que deveria ser, anda não está inteiramente adaptada. Isto é bem
evidente porque ela entra dizendo: “Agora tocarei a melodia que eu aprendi”,
isto é, ela toca seu sentimento com a atitude “Agora te mostrarei o que eu
quero” – esquecendo-se inteiramente do fato de que se toca o seu sentimento,
ela fará o que este está querendo. Lembrem que o menino diz: “Você não faz
nada daquilo que eu queria”. Esta é a função inferior. Ela podia dizer ao seu
pensar: “Eu me sento e penso sobre algum assunto” – e olhem o milagre: ela
pode produzir um pensamento! Essa é a função diferenciada. Mas ela tem a
mesma atitude com o sentir. Ela diz: “Agora eu vou sentir...” e então nada
aparece ou se algo acontecer, toma-a pela mão e joga-a num caldeirão de óleo
fervente.

Exatamente isto ocorre aqui. Ela se aproxima do problema “sentir”


representado pelo instrutor de música, com a atitude: “Eu posso fazer” – e
então o menino diz: “Não, você não pode, eu é que vou ensinar isso a você!”
Ele imediatamente assume a liderança, o que indica que este menino suíço era
uma espécie de idéia ou espírito – a palavra “espírito” bem podia ser aqui
32

usada – que de forma alguma está sob o controle dela, que pode ser posto só
assim na bolsa e retirado de lá para brincar com ele. É um fator vivente na sua
psicologia que assume a liderança. Agora nós não sabemos se ele teve sempre
a liderança ou o controle sobre ela, ou só agora, neste momento, ou se assim
será para sempre. Só sabemos que por enquanto algo está segurando a sua
mão, esta forçando a sua mão. Ela tem que obedecer a algo que está dentro
dela, podem chamar uma idéia ou fantasia, tanto faz, o resultado é o mesmo:
sua mão está sendo forçada. O problema agora começa a trabalhar por ele
mesmo, espontaneamente. Ela pode fugir, mas ele a alcançará de dentro, já
que o fogo está aceso e o processo de desintegração está em andamento.

O próximo sonho chegou na noite seguinte:

Ao fim do lago onde convergem os quatro vales

 Sonho: Estava numa canoa com um homem. Ele disse: “Temos que ir
até o fim do lago onde convergem os quatro vales, onde eles fazem
descer os rebanhos das ovelhas à água”. Quando chegávamos lá ele
encontrou um cordeiro paralisado no rebanho e eu encontrei uma
pequena ovelha prenhe. Isto me surpreendeu porque ela parecia ser
nova demais para estar prenhe. Suavemente acolhendo os animais nos
nossos braços, os levamos à canoa. Eu os embrulhei e o homem disse:
“Podem morrer, estão tremendo tanto”. Então eu os embrulhei ainda
mais.

Esse sonho tem um caráter inteiramente novo. Ela já está se movimentando.


Está numa canoa com um homem. A situação do sonho refere-se a um lago
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que é obviamente o lago de Zurique, como também o menino anterior era


suíço. A situação então, localiza-se aqui, no tempo atual, não na situação da
recordação, e aquele homem desconhecido é o instrutor de música. Ele é um
homem que manobra a canoa, ele é o homem que dirige com o remo e diz:
“Temos que ir até o fim do lago”. É uma necessidade superior, um “tem que”,
nós temos que ir até o fim da coisa, no trajeto inteiro do lago. É uma espécie
de empenho, um empreendimento que tem que ser levado bem até o fim
mesmo. E agora vem algo muito surpreendente. O sonho dia: “onde
convergem os quatro vales”. Aqui as coisas se tornam quase mitológicas. O
que pensam sobre isso? Ir com um homem desconhecido numa canoa – isto
tem uma conotação mitológica. Poderia ser uma metáfora: “estar no mesmo
barco com alguém” – é o mesmo empenho. Mas nós não sabemos que o
homem é o instrutor. Ele é o novo espírito que ela chegou a conhecer ou criou
na Suíça e tal espírito agora a está levando. Toma a sua mão e diz: “Você vai
aonde eu vou, siga-me”. Ela aceita isto e o empenho seguinte é uma aventura,
percorrendo o lago para chegar até o fim deste. O que poderia ser isto na
mitologia?

Resposta: A busca do Tosão de Ouro.

Dr. Jung: Sim, os argonautas à procura do Tosão de Ouro. Bem, receio que no
fim do lago não haverá o Tosão, mas carneiros. Podem ler nas aventuras dos
argonautas, por exemplo, que eles tiveram que passar pelas rochas onde a
pomba perdeu seu rabo e toda aquela história. Eles se empenharam numa
viagem extremamente psicológica. Sob qual denominação falariam sobre isso?
É a jornada noturna no mar. O lago é o inconsciente, se o tomam como
símbolo, e o mar, naturalmente, é símbolo também do inconsciente. Por que?
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Porque se tentam olhar no inconsciente nada perceberão – apenas o seu


próprio ego, nada mais, porque lá no fundo é escuro e a luz está em cima, e
assim só podem ver a si mesmos. Sabem que muitas mil coisas submergiram
lá; há também monstros, e nas profundezas, a noite eterna. O mundo dos
ancestrais, até o mundo da nossa infância, continua lá, nas profundezas. É
como a superfície brilhante de uma camada de água que, ao mesmo tempo, é
profunda e escura. Podemos pressupor que o mundo inteiro submergiu nos
abismos do mar – como a Atlântida – e nós não percebemos mais além da
nossa imagem refletida naquela superfície brilhante. Essa é a razão pela qual o
inconsciente é expressado pelo mar ou por qualquer volume de água, até por
água estagnada.

Então esta viagem ao fim do lago é uma experiência séria, não apenas uma
excursão para entreter-se. É realmente uma jornada que leva até ao fim, onde
se espera encontrar algo definido, algo novo. E essa coisa tão nova e definida
é simbolizada pelos quatro vales que convergem, que se juntam, e rebanhos de
carneiros descem para beber a água da vida. É quase uma imagem bíblica,
algo que não encontramos na realidade. Eu nem me lembro do lugar onde
quatro vales convergem, e quando perguntei à paciente, ela estava
inteiramente perplexa. Sim, pensa-se nas quatro direções, entre os índios
pueblos fala-se dos quatro pontos cardinais do horizonte, e recordamos a
orientação dos templos de acordo com os quatro pontos cardinais. Nota-se
algo peculiar com esta imagem, há um elemento dinâmico nela, não é apenas
uma figura estática, porque rebanhos de carneiros descem de todos os quatro
cantos para chegar ao centro e beber água. Onde os Senhores vêem algo
semelhante, que cada pessoa civilizada de hoje conhece?
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Resposta: Quando Jesus nasceu.

Dr. Jung: Existe uma lenda que conta que quando Jesus nasceu, supostamente
três sábios chegaram dos quatro cantos do mundo; não foram três, mas quatro,
só que o quarto não chegou a tempo. Jesus é a fonte da vida e seus seguidores
são os carneiros. Este é o lugar das águas da vida, onde o povo procura sua
salvação. Essa é uma analogia. Eu conheço mais duas, como também os
Senhores foram ensinados. É a imagem reversa, sobre o centro e as águas
saindo e formando quatro rios. Onde está isto?

Resposta: No Jardim do Éden.

Dr. Jung: Naturalmente, no Jardim do Éden. São os quatro rios que saem do
paraíso. E a outra imagem, com o grande influxo de multidões de seres
humanos. Onde encontram isto?

Resposta: Na Cidade dos Quatro Portões.

Dr. Jung: Sim, os Senhres a encontram na Revelação (Apocalipse), no Dia do


Julgamento, quando haverá a confluência de todos os povos da Terra, como
rebanhos e ocorrerá a separação entre carneiros e cordeiros. E o centro de toda
essa ocorrência é a Jerusalém Celestial, onde acontece o julgamento. Podem
ver tais imagens nas edições ilustradas da Bíblia, onde rebanhos de ovelhas
chegam no Dia do Julgamento. Percebam que o inconsciente contém tais
imagens. Diriam que é influência da nossa doutrina cristã, mas a gente de
todas as partes do mundo, que não recebe tal ensinamento, tem o mesmo
símbolo básico no seu inconsciente. Poderá ser encontrado entre os pueblos,
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na Índia, na China, esse símbolo quádruplo. Encontra-se no tetraktys de


Pitágoras, um princípio que tem que se referir ao mesmo básico símbolo
orientador; sempre os quatro pontos cardinais. Agora, esses quatro pontos
cardinais na realidade não existem; são inteiramente uma projeção feita pelos
homens. São simplesmente projeções de um senso interno de orientação que
consiste em quatro pontos e eu não sei porque é assim.

O caráter especial dos Grandes Sonhos

Se algo emerge num sonho e pouca conexão tem com a vida cotidiana, se nele
não há estradas, ou bondes, ou casas, nem pais ou outros relacionamentos, mas
há dragões ou templos, ou algo que não existe no meio costumeiro, então
podem estar certos de que o inconsciente está tentando transmitir a idéia de
algo extraordinário, de algo incomum, e depende da natureza do simbolismo
para nos dizer; o que seria aquela espécie singular de coisa extraordinária. Se
sonham com um dragão, obviamente trata-se de uma idéia mitológica. E no
sonho da nossa paciente, sobre os quatro vales que convergem para onde
rebanhos de ovelhas estão sendo trazidas à água, percebe-se nitidamente que
deve haver um simbolismo particular.

É útil examinar tal imagem. Uma das razões pelas quais eu convido as pessoas
a fazerem desenhos é que isto ajuda a sua imaginação. Na medida em que
miramos apenas a imagem nos sonho, temos apenas uma impressão mais
flutuante que logo se esvai, mas fazendo um desenho da imagem, essa
permanece na imaginação, permanece no campo visual, fornecendo mais
possibilidades para imaginações e mais contexto. É às vezes surpreendente:
quando material associativo emerge desta maneira. Muitas vezes a pessoa nem
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sabe pintar, mas produz uma espécie engraçada de imagem que está
peculiarmente estimulando a sua imaginação em função de muitos erros
cometidos durante a execução. Parece inteiramente diferente e a ela de repente
esclarece-se o seu sentido real, justamente pelo fato de que, por tantos erros,
os conteúdos inconscientes associam-se ao desenhado.

Desenhar um conteúdo onírico não significa arte, mas sim auxílio; é como um
método de fazer um diagrama para explicar um assunto. Tal diagrama não
pretende ser arte, é apenas uma visualização dos pensamentos.

No caso atual não sugeri à paciente que desenhasse. Não era necessário,
porque ela é uma mulher de viva imaginação e alta inteligência e sentiu
imediatamente que aqui havia algo significante. Em comparação com o sonho
anterior, podem ver que estamos decididamente numa camada mais profunda.
Tal sonho significante toma uma forma épica. Estar com um homem
desconhecido numa canoa talvez não seja uma coisa incomum, mas aqui eles
têm que ir até o fim do lago; é como uma busca, uma aventura, e soa como um
texto hierático. Depois chegamos ao ponto onde se encontram os quatro vales
e lá ocorre algo extremamente simbólico: o homem encontra uma ovelha
paralisada e ela encontra uma pequena ovelha prenhe. Isto também aponta
uma tal simetria de visão que imediatamente nota-se: é altamente simbólico.

Quando os sonhos têm um caráter simétrico, podem estar certos de que se


referem a uma configuração arquetípica. Os sonhos comuns são apenas
dinâmicos, uma forma de linha ondulante; ao contrário, os sonhos que se
referem a uma configuração arquetípica, têm uma espécie de estrutura estática.
Vejam só este sonho com as quatro linhas convergentes e a água no centro...
38

Os primitivos conhecem estes sonhos e nem os denominam com a palavra


cotidiana que significa sonho – nem falariam deles como se fossem sonhos
costumeiros – mas, para eles são grandes visões, supondo que só grandes
homens têm grandes visões. Os antigos também acreditavam nisso. Se alguém
ouve sobre um grande sonho supõe que uma grande personagem sonhava isto
e se foi uma criança é certo que esta criança tem uma grande destinação. Os
cidadãos comuns não sonham, isto é, seus sonhos não contam.

Vejam, então, este poderia ser um grande sonho; transmite a idéia de


grandeza, é sobre pessoal. Indivíduos grandes são mais do que pessoas, são
representantes, são expoentes, eles chegam bem além dos outros. Esse sonho
indicaria que o “grande” foi tangido. Há extensão e amplidão de horizonte.
Poder-se-ia supor que aqui haveria destino. Quando uma tal configuração
arquetípica aparece em primeiro plano, podem estar certos de que o destino
está a caminho. E o destino é poder, um poder instintivo no ser humano,
porque o homem cria seu próprio destino. Às vezes é bem difícil entendermos
tais sonhos porque seu significado estende-se longe, longe no sentido do
tempo. Um sonho pode antecipar algo que jaz no futuro distante e então
diriam que é profético. Mas isto não é assim necessariamente. Não antecipa,
literalmente falando, o futuro; aponta simplesmente a linha ou configuração
do futuro. É um poste de sinalização, com se alguém deparasse com placas
indicando que ainda há 4 milhas até Paris, o que significa que um Paris em
potencial está à frente dele. Um tal sonho, então, significa que algo é
antecipado, qualquer coisa que seja.

A ovelha
39

Vamos ver, primeiramente, a ovelha paralisada, acolhida pelo homem.


Alguém tem qualquer idéia a respeito?

Resposta: Uma ovelha poderia ser uma atitude cristã.

Dr. Jung: Então o Senhor associa a ovelha e o rebanho com a atitude cristã.
Mas trata-se aqui daquela ovelha, porque uma entre tantas? Bem, se pensamos
na base da idéia de simetria, essa é a antiga idéia filosófica da
correspondentia, por exemplo, entre em cima e em baixo, ou a antiga
correspondentia entre direito e esquerdo. Assim a ovelha paralisada
corresponderia à figura do homem e a ovelha prenhe à ovelha da mulher. Se o
homem acolhe uma ovelha paralisada, então está acolhendo algo em
correspondência com ele mesmo, que expressa ele mesmo de algum modo,
porque essas figuras de configuração arquetípica estão atuando
simbolicamente, sabem, exatamente como os profetas do Velho Testamento
atuaram profeticamente ou simbolicamente. Podem ver que aqueles profetas
fizeram as coisas mais espantosas para – por assim dizer – atrair a atenção,
para expressar uma idéia simbolicamente. O caso mais extremo foi o do
profeta HOSEAH que, simbolicamente, casou-se com uma prostituta, porque
o Senhor assim ordenava, expressando dessa maneira que o povo prostituira-
se até com os pagãos, e assim mostrava ao povo o que era, casando-se com
uma prostituta por ordem divina. Esta é uma ação ou atuação simbólica, e num
sonho dessa categoria tais ações ou gestos são igualmente simbólicos. Quando
as figuras do sonho acolhem esses animais, é como se falassem por suas
ações, como se quisessem transmitir certa idéia, como se dissessem, por
exemplo “Isto eu faço para mostrar que devemos sentir compaixão”, ou algo
semelhante. Já mencionei que estas ovelhas devem ser de origem cristã,
40

porque a ovelha, especialmente o cordeiro, tem papel bastante grande no


simbolismo cristão e é bem certo que tais símbolos emergiriam a qualquer
momento na nossa paciente. A inata atitude cristã dessa mulher é responsável
pela parada em que ela se encontrava, quando seu desenvolvimento chegou a
um termo. Ela simplesmente não podia resolver seus problemas pelo típico
ponto de vista protestante. Em condições naturais não haveria parada e a vida
continuaria simplesmente fluindo e só pararia se a consciência interferisse
impondo certa atitude. Assim, naturalmente, a nossa atitude mais desenvolvida
é responsável pelos nossos desmoronamentos.

Muitas vezes me perguntaram porque me preocupo com a religião; há quem


não entenda: o que pode ter uma neurose com a religião. Certamente não tem
nada com aquilo que se entende usualmente por religião, que seria assunto da
Igreja. Hoje em dia temos esse conceito tolo de religião. Alguns são católicos
ou judeus, ou pertencem a uma comunidade com outra denominação, e as
pessoas pensam que essa é a religião; no entanto, trata-se de uma
especialização de um certo credo, que nada tem a ver com a atitude religiosa.
Essa é bem diferente e, acima de tudo, não é consciente. Podem aderir ao que
quiserem conscientemente, mas as suas atitudes inconscientes poderiam ser,
talvez, bem diferentes... Para essa paciente era bem inconsciente o que a
ovelha poderia significar, porque em si, nada significava para ela, apenas
ovelha, embora soubesse que nos hinos da sua Igreja, Cristo é denominado
Cordeiro... Hoje em dia já nem levam isto a sério, embora antigamente o
cordeiro representava um papel tremendo. Por causa disso figura, com tanta
freqüência, o símbolo do cordeiro na arte cristã daquelas épocas, O
simbolismo do cordeiro é uma quota do catolicismo na nossa paciente e isso é
41

bastante esperado. Então, estão vendo alguma analogia ao falar sobre esse
simbolismo cristão?

Resposta: O pastor.

Dr. Jung: Sim, naturalmente. A figura do pastor que acolhe um pequeno


cordeiro e o carrega. Como estão vendo, aqui o homem assume o papel de
bom pastor. Ele já é um guia – ele guiava a sonhadora ao ponto dos quatro
vales – e quando encontra seu rebanho acolhe uma ovelha paralisada. É uma
figura que poderia ser assemelhada a uma figura muito interessante da Igreja
primitiva, chamada POIMEN, termo que já desapareceu da terminologia
eclesiástica. Permaneceu, porém, o “bom pastos”, mas a outra figura
desapareceu junto com um certo livro que era quase canônico naquele tempo:
“O Pastor de Hermas”. Quando juntaram os trechos do Novo Testamento, essa
escrita foi omitida. Tenho que usar a palavra grega POIMEN, porque tal
POIMEN é uma figura pré-cristã . Não é uma invenção cristã, mas pagã, tendo
uma direta relação histórica com ORFEU. E ORFEU é uma outra figura
relacionada com CRISTO; foi encarado como uma antecipação dele, porque
domava paixões desenfreadas (animais selvagens) com sua música sutil. Ele é
também como um pastor, ainda mais, também chamavam-no “o Pescador” e,
como tal, teve papel importante nos mistérios dionisíacos, os quais,
naturalmente, foram pré-cristãos. Assim, podemos ver a figura de CRISTO
nos cultos pagãos. Em certas inscrições CRISTO é quase idêntico à BACO,
absolutamente no mesmo nível. E talvez saibam, CALÍGULA, aquele notório
imperador pervertido, teve um santuário onde guardava as imagens dos
grandes deuses, e CRISTO estava entre eles, porque naquela época inicial, a
42

figura de CRISTO era bem nebulosa. Ao nosso modo de ver, Ele é uma
invenção absolutamente nova.

Naqueles tempos antigos, ele nem era uma pessoa e sempre foi tratado nesse
sentido simbolizado de acordo com a época. Assim, por exemplo, a forma de
POIMEN para eles era uma espécie de anjo tremendamente grande, muito
maior do que uma figura humana, um grande espírito invisível, um Deus bom,
e tal figura impessoal, nunca foi chamada CRISTO. Seu nome era tabu.
Denominaram-no Pastor de Homens – POIMANDRES, o grande líder dos
humanos, em ente dos mistérios, no entanto relacionado diretamente ao
“Pastor de Hermas”, que é uma escritura decididamente cristã e fez parte da
antiga literatura cristã até o quinto ou sexto século. Temos a sua forma pagã
num texto grego muito interessante e a melhor idéia que eu lhes poderia dar
sobre ele é que se trata de um livro que poderia ter sido escrito por um
paciente em análise, sobre suas visões: como POIMEN apareceu para ele (ou
para ela). Foi um homem que o escreveu, porque naqueles tempos os mistérios
eram predominantemente um assunto para homens. Hoje em dia são o das
mulheres. No texto podemos encontrar uma descrição de como apareceu
POIMEN para ele, qual era o seu ensinamento e como recebeu dele
orientação, do líder ou pastor dos homens.

A nossa boa senhora, naturalmente, não tinha menor idéia do que estava
sonhando. Para ela um homem desconhecido acolheu uma ovelha, mas podem
ver, de fato, como realmente ela retoma aqui à configuração arquetípica do
líder dos homens, semelhante a um espírito. Isto leva mais para trás, aos
líderes-espíritos das tribos primitivas, onde certos homens chamados pajés
(medicine men), de vez em quando eram posseados por espíritos,
43

predominantemente espíritos ancestrais que o guiavam e diziam o que era bom


para o povo. Há um exemplo maravilhoso no livro de RASMUSSEN sobre as
suas experiências entre os esquimós, ao norte da Groenlândia. Ele dá um
exemplo contundente quando uma parte desses esquimós, prevendo uma
época de fome, foram levados por um pajé – que tivera uma visão – através da
baía de Baffin até o continente norte-americano, onde conseguiram os
alimentos necessários. Esse pajé nunca estivera lá e ninguém estava certo se
conseguiriam atravessar o mar, mas mesmo assim ele chegou a convencer a
tribo. Ele teve a visão de que lá os esperava a Terra Feliz. Durante o inverno,
quando a baía de Baffin estava congelada, iniciaram a travessia. No meio do
caminho a metade da tribo começou a duvidar, dizendo que nada haveria lá
em frente e decidiu voltar. Todos morreram de fome. A outra parte da tribo foi
conduzida e atravessou com segurança. Isto descreve exatamente o que
significa o pastor de homens (pajé) em circunstâncias primitivas. É uma mente
intuitiva possuída por uma visão – clarividência – porque essa é a única
função através da qual pode ser conduzida com segurança a vida da tribo, já
que naturalmente – não existem outras possibilidades ou recursos para guia-
los. Não podem faze-lo pelo pensar, porque o pensar não é diferenciado; então
a clarividência tem que fazer o povo, por exemplo, quando haverá guerra e
onde se encontram os rebanhos. Falando com o pajé dos elgonys (África) ele
nos disse que já não tem aqueles sonhos desde que os ingleses estão na sua
terra. Perguntei: “Mas como é isso?” e ele explicou que era assim porque o
chefe inglês no poder sabia tudo. Governava o território inteiro e sabia
exatamente o que fazer e desde então a sua própria função política como pajé,
a previsão e a condução da tribo, tinham chegado ao fim. Devem saber que no
primitivo todo o nosso raciocínio ocorre de certo modo, mas no seu
inconsciente, porque suas funções ainda não se desenvolveram emergindo do
44

inconsciente, e assim manifestam-se, naturalmente, na forma de uma


revelação. É como se uma voz, durante a noite, dissesse a eles o que deve ser
feito. Há inúmeros exemplos para isso no Velho Testamento. Os projetas
foram POIMENes, orientadores pelo espírito.

Ocorre que tal arquétipo ainda existe dentro de nós sob a forma de imagens
oníricas. Podemos sonhar com o guia-espírito como uma pessoa importante,
um médico ou um professor, como um diretor superintendente ou até como
um grupo de diretores invisíveis. Por exemplo, aqueles que sabem algo sobre a
psicologia dos médiuns, sabem que eles, muitas vezes, são dirigidos pelos
assim chamados “controladores” (isso mais na área anglo-saxônica!) que é o
guia espiritual. Em circunstancias normais as pessoas não sabem da existência
de um guia espiritual, mas ao analisar seus sonhos, ele aparece. Aquele
homem na canoa é um desses casos; ele diz que têm que atravessar o lago e
revela-se como uma espécie de bom pastor. Não é possível vermos isso no
sonho, exatamente: apenas tem-se um palpite, mas eu lhes digo; ele é o guia.
Mais tarde entra mais e poderão ver que ele é aquela figura. Desenvolve-se
lentamente como guia-espírito que vê todas as coisas que ela tem que passar
mais tarde, exatamente como o esqumó-vidente que viu o caminho para a ova
terra e que estava lá em espírito, experimentando toda a viagem através do
gelo antes que realmente tivesse ocorrido, embora só depois quando conseguiu
convencer seus companheiros, chegou a ter a verdadeira experiência, Dessa
maneira costuma acontecer, desenvolvendo-se de modo que o guia-espírito
que anteriormente apareceu no sonho assume a liderança prevendo e
experimentando por antecipação, e ela passará pelo mesmo caminho e
experimentará isso na sua própria existência.
45

Já acolhendo a ovelha paralisada, percebe-se sua qualidade como um “bom


pastor”. Há algo não adequado com ambas as ovelhas; uma está paralisada e a
outra, que ela acolhe, está prenhe, o que é fora do normal, uma coisa que
realmente não deveria ser, e assim ambas podem morrer como o pastor
adverte. Ele diz que podem morrer porque tremem tanto, já estão bastante
esfriados. Se nós tomamos aquele simbolismo de ovelhas como indicador de
uma específica forma cristã para resolver o grande problema: como viver,
então poder-se-ia dizer que aqui isto esta sendo demonstrado de dois modos:
que aquela atitude não quer viver dentro dela, apesar do fato de que ela abraça
o animalzinho e o mantém aquecido. É bem duvidoso, há uma possibilidade
patente de que tal herança específica cristã morrerá. No entanto, naturalmente,
os animais sempre denotam forças instintivas e desta forma, na realidade, seria
bem ruim para ela se morressem; e assim, existe uma possibilidade de
permanecerem vivos, mas nesse caso, tais forças instintivas, de qualquer
modo, necessitariam uma espécie diferente de fórmula, ou antes, um novo
guia espiritual.

A fórmula é como uma palavra de poder, como o credo cristão ou o mantra


hindu, uma palavra de poder que simboliza a orientação espiritual, uma
palavra que ajuda a progredir no caminho. Por isso, às vezes falamos do
Verbo que trouxe a salvação, em vem do atual guia espiritual. O guia aparece
uma vez e deixa conosco a “palavra”, o Verbo, e assim a orientação espiritual,
com freqüência, está sendo relegada a uma “palavra”, a um “mantra”. É uma
fórmula em vez do espírito vivente. A “palavra” é simbólica e é de tal modo
que pode expressar as tendências do instinto cego. O instinto entra nela e
reveste essa forma. O espírito adapta-se a ela. Por exemplo, a fórmula cristã
medieval era satisfatória para todos os instintos do homem medieval, “falava-
46

lhe” e ele era indubitavelmente cativado por aquela fórmula e só pouco


desviava-se dela. Por isso existia a uma Igreja Católica, com a mesma forma,
o mesmo estilo, desde a Noruega até a Sicília. Praticamente o mundo ocidental
inteiro era, então, a mesma civilização, uma e a mesma mentalidade, e na
Igreja era falada uma e a mesma língua. É uma confirmação extraordinária do
fato de que todos os anelos instintuais dos seres humanos foram, naquele
tempo, suficientemente expressados naquela forma. No entanto, uma tal
palavra ou tal fórmula, , naturalmente, só é efetiva durante certo tempo e
depois já não serve mais; por isso, se alguém compara o cristão do séculos
XVII ou XVIII com o cristão do século II, encontrará todas as diferenças do
mundo, Nem reconheceria a sua identidade.

Se alguém confrontasse o Papa PIO I (cerca de l54) com o professor


RITSCHL (ALBRECHT RITSCHL, 1882-1889), o teólogo moderno, seria
impossível que se entendessem, mutuamente, porque falam de coisas
inteiramente diferentes. Do professor RITSCHL, originou-se a idéia de que
JESUS era uma pessoa, enquanto o cristão primitivo não tinha essa idéia. Para
eles era o POIMEN, uma presença vivente, um guia espiritual que era
invisível, mas estava lá. Mas o professor disse que o cristianismo era como um
enorme trem e uma locomotiva de repente empurra o último vagão, este
impulso vai adiante ao longo da cadeia interia de vagões até chegar ao
primeiro, que é o presente. Não é terrível pensarmos que Deus era
irresponsável nos últimos 2000 anos? Poderia também ter-se fechado “sob sete
chaves” ou retirou-se, satisfeito de ter uma vez dado aquele empurrão aos
vagões, e nós ainda sentimos uma fraca repercussão. Mas um homem como
HERMAS, que conhecia a grnde presença, o grande guia-espírito, como
compreenderia tal erro infernal, aquele empurrão nos vagões? Para os cristãos
47

originais a coisa principal era a vida do espírito. Para o professor RITSCHL


tudo é fenômeno de ferrovias, empurrar de trens e assim por diante. Desse
exemplo, podem ver que a fórmula altera-se de século para século e agora
necessita uma nova formulação. Naturalmente a fórmula cristã ainda está
funcionando mas hoje em dia há um sem número de pessoas que não a seguem
ou não podem segui-la. Há muitos indivíduos ex ecclesia e eles naturalmente
seguem um caminho novo, estão buscando uma nova fórmula e a questão é:
qual poderia ser?

Agora, aqui no sonho, a mulher está com a ovelha, já que ela é ainda um
membro instintual da igreja cristã. Sua mente está paralisada e ela está grávida
(prenhe!). Ainda jovem demais par a gestação e mesmo assim está prenhe do
futuro. Isto significa que ela é jovem demais como pessoa, não é amadurecida,
não é madura, é prenhe do futuro,mas não pode levar adiante. Esta é uma
verdade quase geral para a época presente inteira. A maioria das pessoas não
agüenta. Suas mentes estão paralisadas demais e tornam-se neuróticas, não
podem levantar-se e ir adiante e isso é expressado por essas duas ovelhas
simbólicas – na medida em que a mente ou a psicologia da sonhadora ainda
constitui parte do rebanho cristão.

Depois desse sonho a paciente foi tomada por uma sensação extraordinária de
lassidão e cansaço. A condição paralisada e a doença da ovelha são fatos
viventes dentro dela. Costuma-se ter tal sensação de cansaço, uma espécie de
resignação, de desespero, quando se perdeu uma esperança, um modo como se
poderia ter vivido, por exemplo. Se tal possibilidade desaparece, a pessoa está
sendo dominada por esse tipo de cansaço psicogênico. É a conseqüência
direta do sonho ou a realização daquilo que ocorreu no sonho. E, olhem, essa
48

reação veio antes de termos analisado o sonho. Ela não sabia o que o sonho
estava propondo, mas sentia seu efeito, o que ocorre com bastante freqüência.

A cabeça com halo

 Visão: Agora ela vê uma outra figura, uma cabeça humana que escura
como uma sombra e em redor dela há um halo com raios como uma
roda.

Questão: O que seria isso?

Resposta: Um antigo “nimbo” cristão.

Dr. Jung: Sim, o antigo nimbo cristão. Podem encontra-lo nas antigas
basílicas. É como o halo solar do antigo deus do culto mitraico. O nimbo dos
imperadores teve grande papel nos cultos de mistério – e isso inclui o
cristianismo. Podem ver essa forma particular de roda na cruz da arqueologia
cristã. Eu ainda não falei uma só palavra a esta mulher sobre POIMEN, mas
esta cabeça poderia ser encontrada nas catacumbas. O estilo poderia ser
romano da última fase ou da fase inicial normanda. Que a interpretação em
termos de POIMEN é certa parece ser confirmado por essa visão. A paciente
nem reconhecia que era um halo: ela estava espantada e pensava que era uma
roda comum, a cabeça de um homem com uma roda. Não sabia que era uma
roda solar, uma das primeiras formas do símbolo do Sol. E, naturalmente, o
49

símbolo do Sol atrás da cabeça de um imperador ou de um deus significa que


sua cabeça é semelhante ao Sol.

O caminho para casa

 Sonho: Fui de carro para minha cidade natal, terrivelmente ansiosa por
causa do medo de não ter bastante óleo ou gasolina. Tive muita
dificuldade em encontrar a estrada. Quando enfim consegui, um homem
disse: “Você devia ter sabido que esse era o caminho, porque há outros
carros e você andou bastante em vielas solitárias”.

O sonho se repetiu na noite seguinte, exatamente da mesma forma, indicando


que expressava algo particularmente importante para a sonhadora. Por
exemplo, se duvidamos que alguém tenha entendido alguma coisa, repetimos
mais uma vez e o inconsciente faz o mesmo, para salientar de modo mais
impressivo, e assim o sonhador já não o esquecerá.

Aqui o sonho diz que ela está na estrada que leva à sua cidade natal, ao lugar
de onde veio e está sua moradia. Isto é simbólico. Ela está retornando ao seu
lar. Isto é certo e imediatamente associamos: o lugar onde convergem os
quatro vales. Naturalmente isto não está particularmente indicado no sonho,
mas lembrem das associações ligadas aos quatro vales, o que foi falado antes:
a cidade edificada sobre o número quatro, a Jerusalém Celeste no Apocalipse,
que naturalmente é o “lar” para todos. Nesse caso é a cidade dela, aquela à
50

qual ela pertence e não a Jerusalém Celeste que pertence a todos. Isto é
simbólico para ela, seu símbolo de individuação – para ela – a sua volta ao lar
– a si mesma. Isto explica porque ela está tão terrivelmente ansiosa para
chegar lá; no fundo essa é a sua meta. Mas ela duvida se tem bastante óleo ou
gasolina, o meio pelo qual o carro se movimenta. Óleo e gasolina são
absolutamente necessários para a vida do carro e se traduzem isto em
linguagem psicológica, indica muita coisa para ela mesma. Se ela não tiver o
óleo necessário ou o seguramente bastante, o motor esquentará demais e ficará
destruído, e se não tiver gasolina, certamente não andará. É a energia “líquida”
e naturalmente pode surgir a dúvida, na sua mente, se ela terá a paciência
necessária ou realização ou força de vontade, ou a energia para chegar lá, isto
é, se seu abastecimento será suficiente, neste longo caminho – para si mesma.

E além da dúvida de poder completar a viagem, há ainda a grande dificuldade


em encontrar o caminho. Aparentemente lhe é muito difícil encontrar o
caminho para sua cidade natal. Tende a perder-se na estrada, ou porque há
muitas oportunidades de ir numa direção errada, ou porque ela gosta de
escolher o caminho errado, evitando o trajeto principal,

Colocando-se na situação dela, compreenderão logo qual é a sua dificuldade: o


caminho para si mesmo é o trajeto mais longo e mais duro. Cada um quereria
pagar algo, até a sua fortuna inteira, para evitar esse caminho até si mesmo. A
maioria odeia a si mesmo, largam tudo que é seu e por nada deste mundo
iriam lá onde estão, onde é a sua cidade natal, porque isto é justamente um
inferno.
51

E lembrem, a doutrina cristã reza que o homem é mau desde o início e o seu
lugar de origem é o inferno, então porque deveria ele preocupar-se de ir lá?...
Nós achamos que não somos influenciados por tal espécie de ensinamento,
mas é ainda esse o nosso credo. Mesmo se alguém pensa que o Novo
Testamento inteiro é uma bobagem, parece para ele bastante ruim e mórbido
estar sozinho consigo mesmo. Se eu solicitasse a essa pessoa permanecer só
durante uma hora consigo mesma, ela me acharia um louco, porque se
considera uma espécie de monte de esterco, uma cesta de lixo e então por que
dedicar tempo a uma tal insensatez? Esse é o ensinamento cristão. A origem
do ser humano é má e ele necessita a intervenção dos santos e a graça de Deus
para poder chegar a qualquer ponto. Deixado a si mesmo ele é um verme
miserável, pronto para descer aos fogos eternos de onde veio. Uma punição
terrível no inferno não nos toca muito, mas setenta ou oitenta anos da nossa
vida fez parte daquela fórmula e nós, naturalmente, sofremos do efeito
psicológico de tal educação. E não há escapatória. Podemos ser bem liberais
quanto ao nosso ponto de vista, talvez até ateus, mas não podemos nos afastar
dela, porque está no nosso sangue. Na cabeça estamos libertos dela, mas
descendo um pouco mais para baixo, estamos bem no meio da Idade Média.

E assim o caminho para si mesmo é a coisa mais dolorosa e mais chocante e


por isso não é para se espantar perante todas essas dificuldades na estrada da
minha sonhadora, os tantos desejos de não encontrar o seu caminho. Por isso
ouve ela a voz daquele homem, do guia espiritual – o Animus – que a adverte:
“Você devia ter sabido que este era o caminho”. Ela mais ou menos sabe disto,
mas teria preferido demais não sabe-lo. Ele diz que há outros carros na
estrada, ela podia ter visto que outras pessoas estão trilhando o mesmo
caminho, e por isso ela não tem desculpa por ter se desviado para trechos
52

solitários. Ela recorreu a todas as formas de outras possibilidades – desvios –


em vez de ficar firme na estrada principal. Aqui podem ver que a voz aparece
na sua forma verdadeira, como um espírito, um guia, um pastor.

A toupeira e o canário

 Sonho: Havia uma toupeira e um canário. Eu cortei suas unhas e me


preocupei se não as cortei muito curtas, causando dor a eles. Alguém
disse: “A toupeira vai para baixo na terra”. Retirei o canário da sua
gaiola. Ele não foi embora. Eu esperava que ele fosse.

Aqui temos dois animais; um é a toupeira. Esse é um bicho noturno que vive
sob a superfície – e cava embaixo da terra. O outro é um pássaro, um habitante
do reino do ar. Assim esses dois animais são extremamente simbólicos. Um
poderia ser tipificado como uma espécie de tendência instintiva, uma
tendência inconsciente para mover-se para baixo, dentro da terra e o outro é
um similar movimento instintivo para cima, no ar, que é um símbolo do
espírito ou da idéia.

Percebam que tudo que pertence à idéia (pensamento) ou ao espírito, é ar. O


espírito é ar. Mesmo a palavra “spiritus” significa alento. ANIMUS, mente, é
vento. PNEUMA, em grego, é vento e espírito. Assim, os pássaros são,
usualmente, símbolos de pensamentos, inspirações, entusiasmo, tudo que
eleva ou que é leve; os animais escuros como cabra, toupeira, camundongo e
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os animais aquáticos, simbolizam coisas pesadas e escuras. Eles podem


denotar sexualidade e todos os tipos de desejos terrenos ou instintivos ou
emoções, porque usualmente as emoções, supostamente, estão localizadas
numa esfera abaixo da cabeça, ou no coração ou mais embaixo, no abdômen...

Quando o ser humano era menos desenvolvido do que hoje em dia, o processo
psíquico foi localizado em centros diferentes e nós ainda temos vestígios
daqueles centros. A cabeça, em nós, é predominantemente a sede das idéias e
dos processos de raciocínio, enquanto os nossos processos emocionais têm um
centro entre o de cima e o de baixo, no coração. E ainda temos a sensação de
um centro psíquico no abdômen, porque certas coisas apresentam-se bem
claramente nos processos abdominais; por exemplo, perturbações gástricas são
bem freqüentes em casos de neuroses e praticamente não há casos de histeria
sem sintomas no abdômen. O estômago funciona como se fosse um órgão
psíquico, que expressa determinados pensamentos ou emoções através de
certos distúrbios.

Como estão vendo, a toupeira representa uma função psíquica vital que se
move para baixo, embaixo, embaixo da consciência, ao passo que o pássaro
como que se movimenta para cima. Ele está na esfera cerebral ou acima desta,
já que o pensamento sai da cabeça como um pássaro e se nós seguimos o
pássaro, então elevamo-nos para cima, acima de nós mesmos e deixamos
atrás, por assim dizer, o nosso corpo ou a parte correspondente da nossa
psicologia, a nossa psicologia terrestre! É interessante que a toupeira é um
animal selvagem e o canário é, decididamente, o mais domesticado, sempre
mantido dentro da gaiola. A sonhadora está cortando a unha de ambos. Sabem
certamente que o canário mantido na gaiola tem sempre a tendência de ter
54

unhas tão crescidas que já nem saberá usa-las de modo adequado; por isso elas
terão que ser cortadas artificialmente. Mas para a toupeira nunca é preciso
cortar as unhas, porque as usa constantemente para cavar; por isso, de modo
algum tem sentido e é até ridículo cortar as garras ou unhas desse animal
selvagem; obviamente ela comete um erro tratando a toupeira como se fosse
um animal de gaiola, um canário.

A conclusão que tiramos, então, é que, como o pássaro simboliza a mente,


assim nela o pensar é uma função engaiolada. Vejam, o inconsciente é
inteiramente livre para falar sobre uma água ou sobre qualquer ave selvagem
não engaiolada, mas no caso dela a mente é inteiramente domesticada, sendo
uma função diferenciada sobre a qual ela tem controle completo. Está
absolutamente à sua mercê. É uma coisa selvagem que perdeu essa sua
categoria, sua liberdade, e está à disposição dela na gaiola. Mas lá embaixo
existem as coisas emocionais, ou aquilo que a função inferior possa ser. Eu
uso o termo “inferior” para aquela função no caso dela o sentir – que está mais
baixa e mais distante daquela diferenciada. E na medida em que sua mente é
de tipo científico, a função que segue o seu pensar poderia ser a sensação, que
lhe outorgaria uma mente empírica. O pensar, assim, estaria acima, na cabeça,
a sensação mais ou menos no nível da boca, a intuição na área do coração e lá
embaixo, no abdômen, ficaria o sentimento. Ela sentiria com o abdômen e não
com o coração.

Esta é, naturalmente, uma espécie bastante particular de sentir. É uma coisa


peculiar que quanto mais baixo desce alguém a esses centros psíquicos, tanto
mais perderá a consciência de Si-Mesmo separado e tanto mais tornar-se-á
coletivo e tanto mais está na condição da “participação mística”, e quando
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chegar ao centro mais inferior já perdeu totalmente a consciência de Si-


Mesmo (Self), já não tem mais Self e o ego é também apenas um nome. Não
há força de vontade real, está funcionando apenas pela influência tribal, sendo
apenas uma parte de um clã em que só reina o instinto de rebanho e a
consciência individual foi perdida. Qualquer função que está no nível mais
baixo participará nas mesmas qualidades, indiferenciada e absolutamente
coletiva no seu caráter, sem estar discriminada de qualquer modo das funções
de outras pessoas, e por isso constantemente no estado de completa projeção.

Os sentimentos daquela mulher, por exemplo, seriam do mesmo modo em


participação mística com o seu meio, como os de gente muito primitiva. Ela
nunca realizará claramente um sentimento como seu próprio porque não é
dela, é aquele sentimento que prevalece em outras pessoas. Ela é
absolutamente dependente da atmosfera emocional; se está é azul, então ela é
azul, e não pode impedir isso. É ingovernável, explosivo, é e não é. Alguém
pode ter em certo momento um sentimento lindo e no momento seguinte está
desesperançosamente perdido e não se sabe porque está completamente
perdido. Essas são as qualidades da função inferior.

Esta mulher, por exemplo, está repleta de uma tremenda emoção que é
temivelmente forte e a possui completamente ou, ela está da mesma maneira
tomada pela falta dela. Ela não pode faze-la emergir nem pode afasta-la com
sua vontade. A função inferior é como um animal selvagem com uma força
superior e alguém não pode abater um leão ou algo semelhante, porque ele
poderia come-lo. Mas ela, nesse sonho, lida com tendências instintuais do
mesmo modo. No caso do canário, sendo uma função inteiramente
domesticada, os sinais do crescimento autônomo (representado pelas unhas)
56

podem ser cortados e isto até pode ser uma vantagem. Mas, pegar uma
toupeira e cortar suas unhas é um erro, pois se trata de um animal selvagem.
Com outras palavras: a função que é “selvagem” não deve ser “podada”
porque assim nem poderá jamais funcionar de modo apropriado. Isto significa
que sua não domesticada função inferior pode atuar melhor se deixada livre e
é um erro se ela interfere. Pode culpar sua função cogitativa por um pensar
ilógico, pode fazer o que bem entender com a sua mente, mas não pode fazer a
mesma coisa com a sua função inferior do sentir. Querendo estabelecer
qualquer contato com um animal selvagem, temos que nos adaptar a ele,
estudando seus hábitos, e é a mesma coisa com a função inferior: temos que
estudar suas próprias leis e seus hábitos próprios devendo realizar que ela
funciona melhor deixada a si mesma. Já que está ligada a nós, devemos
estabelecer contato com ela, mas esse contato deve ocorrer ao longo das linhas
da função da mesma.

No sonho, esta mulher percebe que devia ter feito algo errado com os animais,
que poderia ter cortado as unhas muito curtas, com isso causando dor a eles.
Este é o fato para o qual o sonho chama sua atenção: que ela tem que ser
cuidadosa com isso, e então alguém menciona que a toupeira penetra bastante
baixo no solo. Esta, então, é uma verdade banal, mas o sonho insiste em tal
fato. Evidentemente ela já foi doutrinada no sonho sobre o que significa a
toupeira, e está sendo enfatizado que ela é aquela função que penetra
profundamente no solo. Isto agora parece ser novidade para a paciente.
Obviamente ela não realizou isto, porque cortou as unhas da toupeira, o que
atrapalhará o animal na execução do seu trabalho. Trata-se, evidentemente, da
idéia de que algo tem que ir para baixo, porque nada se move para cima. Ela
abre a gaiola do canário e este não vai embora. Esse é o problema com a nossa
57

função diferenciada: ela permanece ao nosso alcance, está esterilizada pela


domesticação. Tais pássaros não alçam vôo, apenas permanecem conosco,
nunca funcionam como a pomba de NOÉ ou o corvo de WOTAN que voa
longe e traz informações de áreas aonde não podemos ir, sobre as quais nada
podemos ouvir ou das quais nada podemos ver. Isto é o que uma função pode
fazer quando é “selvagem”. Como vêem, ela nada pode esperar de sua mente,
porque essa mente é domesticada e esterilizada pela diferenciação, mas ela
pode ter a esperança de que algo virá de sua função “selvagem”, pela primitiva
função inferior, que se estende naquelas áreas escuras nas quais ela já não
pode ver nada. Necessita-se o instinto da toupeira para encontrar algo lá.

O significado do sonho é bastante óbvio: a intenção é enfatizar a função da


toupeira e o fato de que ela não pode esperar nada de sua mente. Até então ela
estava sob a impressão de que análise e coisas semelhantes são feitas através
da mente e que o trabalho principal seria mental. Por isso eu tenho uma
particular relutância em explicar certos assuntos a ela. Ela quis sempre as
coisas explicadas e depois eram colocadas numa gaveta – uma forma de
assassina-las – e depois disso nada acontecia.

Nós abusamos da nossa função diferenciada para nos proteger a nós mesmos,
com muita freqüência de uma maneira errada e a usamos para assassinar a
vida quando ameaça tornar-se incômoda. Até certo ponto essa proteção é bem
valiosa, mas quando chegamos àquela fase da vida em que o desenvolvimento
da personalidade torna-se um problema inevitável, já não é permitido
assassinar a vida. Então temos que aceita-la...
58

Na filosofia hindu existe a idéia de karma, o nosso destino. Até certo ponto
nós trabalhamos contra o karma, contra – por exemplo – o destino da família.
De outro modo a criança deveria ser absolutamente subjugada pelo destino
herdado, pela maldição da família e nunca começaria a viver, sendo sufocada
desde o princípio. Assim muitos jovens têm que trabalhar para descartar o
karma, têm que se diferenciar para poder viver, têm que se livrar do feitiço
familiar e estar em condições de rasgar todos os véus do estado inconsciente.
Mas depois de se libertar do oprimente destino familiar – pecado inato –
chegará o momento no meio da vida quando a sua tarefa torna-se difícil. A
tarefa última da vida, de acordo com a doutrina hindu, é assumir o karma e
perlaborá-lo, porque se isto não acontecer, o karma passado acumula-se e na
próxima existência haverá um inferno para passar. Mas, afortunadamente, é
possível fazer algo assumindo-o, aceitando-o. E, via de regra, as pessoas,
particularmente aqueles que estão em na´~alise, são simplesmente forçadas
pelo desenvolvimento lógico da análise, a assumirem seus destinos
individuais, sua situação particular com todas as suas desvantagens e
imperfeições. Podem chamar isto: individuação.

Então nesse grande empenho de perlaborar o karma a pessoa chega


simplesmente a um beco sem saída, se tenta fazer isto pela sua função
diferenciada. Aquela servia bem para liberta-lo do seu original estado
inconsciente – do passado – de modo que podia colocar-se como uma figura
separada ou unidade social. Mas quando emerge a questão sobre a totalidade
ou o arredondamento da personalidade ou o assumir o karma, então terá que
escutar também as outras funções e particularmente a função inferior, porque
chegará a descobrir que há situações na vida com as quais não podemos lidar
com uma função apenas. Em geral, na vida humana, uma pessoa com função
59

cogitativa (pensar) diferenciada, deparar-se-á com uma situação a qual não


poderá resolver com a sua mente apenas porque necessitará o sentir. Um
intuitivo encontrar-se-á num impasse que só a intuição não basta, de modo
algum; necessitará então a sensação (percepção), a função da realidade, para
estar em condições de continuar sua vida, porque deixou muitas situações não
resolvidas e no fim será sobrepujado por elas, pregado pelos problemas
anteriormente deixados sem solução e apenas sua função da realidade pode
trazer ajuda. E nos tipos com sensação predominante é possível ver como se
metem as pessoas num buraco que é simplesmente nada, apenas a realidade, e
necessitam arduamente a intuição para poder sair disto, arrastando-se, e ter a
sensação de que sua vida é realmente vivida.

A nossa paciente estava num tal buraco. Sua mente científica não servia para
nada. O sentimento diferenciado poderia orienta-la, mas deste ela não tem
nada, apenas o sentir de um homem muito primitivo e naturalmente este não
estava de forma alguma à altura desta situação. Assim emergiu a necessidade
de seguir a função inferior no seu próprio campo, nas profundezas, para baixo
da sede abdominal da função inferior. Esse é o motivo para ir “abaixo”. Logo
chegaremos de novo a isso. E esta é a coisa que parece prometer vida – a sua
solução. Porque com o canário não há qualquer esperança.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE II

Seminários entre 12 de novembro a 9 de dezembro de 1930

SPRING 1960

Primeiro Livro
2

O Santo e o Touro

 Sonho: Encontrei-me num cemitério, na área devastada da França. Os


túmulos eram feitos de arenito vermelho. Vi poucas pessoas andando
sobre um grande túmulo em que muitos soldados estavam enterrados.
Alguém disse: “Olhe essa pedra de túmulo”. Eu olhei e vi nela,
engravada, a estátua de um santo. Um touro comia um dos dedos do
santo (o relato da paciente aqui é um pouco curto. Tratava-se, então, de
uma grande pedra de túmulo e nela estava engravada a figura de um
santo e perto dela a figura de um touro, e apesar do fato de que ambas
as figuras estavam engravadas na pedra, elas eram vivas – meio mortas
e meio vivas). Vendo que o touro estava mastigando os dedos do santo
eu senti náusea, com horror, e fui embora sacudindo a minha mão como
querendo libertá-la do touro (como se a sua própria mão tivesse sido
comida pelo touro).

Então, esse lugar é bem específico, um cemitério na França. Se o sonho se


refere a um cemitério da guerra de 1914, isto significa mais do que as vidas lá
desperdiçadas ou a destruição da parte norte da França ou a devastação
econômica: trata-se da devastação espiritual – os posteriores efeitos espirituais
da guerra. Por isso a conseqüência da grande guerra é a cena em que está
sendo apresentada essa particular idéia na figura do santo com o touro. Então,
qual é a conexão entre o touro e o santo?

Resposta: Mitraismo e cristandade.


3

Dr. Jung: Sim... porque a figura central do culto mitraico era o touro. O touro
aqui tem o papel do cordeiro da mitologia cristã, mas ainda mais do que isso.
Vejam, o cordeiro é meramente o culto da vítima sacrificial, foi simplesmente
levado à pedra e lá abatido, e isto não significa muito mas o touro mitraico
sim, significa bastante. É o poder criativo, o grande Touro do Mundo, o touro
do princípio, o Touro-Deus, o mais poderoso e admirável. E a sua sorte é a
causa imediata do renascimento, do renascimento natural... A idéia do culto de
Mitra (ou Mitras) era que Deus está sacrificando o Touro Divino, sua própria
libido, sua própria força vital e de fertilidade, para aumentar a fertilidade na
terra, como uma espécie de benção para a terra. A idéia mitraica, do ponto da
simbologia, é muito semelhante ao dogma cristão e é um fato que o culto
inicial dos cristãos emprestou bastante do ritual mitraico.

Mas, quando alguém sonha com um touro não significa necessariamente que
isto vem do mitraismo por qualquer canal desconhecido; é meramente a
mesma idéia natural que foi expressa originalmente no culto mitraico. Repito:
não é uma derivação do culto mitraico, se alguém, nos dias atuais, sonha com
touros. Por exemplo, neste sonho, é uma reprodução autóctone da mesma
idéia; a nossa mente pensa do mesmo modo e nós pensamos as mesmas coisas
que já foram pensadas antes e serão sempre pensadas. Por isso podem
encontrar o culto do touro ou o culto de animais semelhantes em todos os
recantos mais remotos da Terra, nas mais diferentes épocas, porque é
arquetípico. E o arquétipo é eterno, encontra-se fora do tempo.

Nesse sonho vê-se que o touro, com esse fundo de idéias mitraicas por trás
dele, está comendo os dedos do santo, o que significa que, de uma maneira
amistosa está começando a devorar um santo cristão. E a nossa paciente,
4

naturalmente, está inteiramente do lado do santo cristão – um fato do qual ela


é inteiramente inconsciente. Se lhe perguntasse, responderia que é chocante
perguntar dela tal coisa, que ela abomina tal idéia, mas em segredo ela
gostaria de ser como o santo cristão – e, sem o saber, está flertando com essa
idéia. “Mas, como isto é possível?” diz ela. “Eu não sou uma cristã”. Ela não
canta hinos cristãos, não vai à Igreja e anda com idéias blasfêmicas em relação
a sacerdotes, e assim está certa de que não é uma cristã. Mas o fato é que sua
atitude em relação com os próprios problemas, com seu mundo próprio, é
totalmente cristã e ela nada pode fazer contra o fato de que se sente uma
espécie de santa, porque lida com sua própria psicologia à maneira de uma
santa. Mas então, o que chamariam uma atitude “santa”?

Resposta: Renúncia, Martirismo? Perfeição?

Dr. Jung: Então percebem o quadro? Como vêem, cada um disse uma verdade.
É fazer toda e qualquer coisa com “perfeição”, é a atitude de nos sacrificarmos
por uma “causa”, independente da categoria da “causa”. Alguém pode fazer as
coisas mais absurdas com uma “santa” atitude.

Eu lhes digo: só com a maior dificuldade podemos “extrair” a nós mesmos da


ilusão ou delusão dessa “santidade”. Não acreditarão: mas, se querem
aprender algo e tomam o tempo necessário para isso, pensando bem não há
nenhum grande mérito espiritual em fazer tal e tal coisa, mas sentem-se
terrivelmente bons e naturalmente há um Deus no céu que anota o que estão
fazendo e, naturalmente, haverá um tal e tal prêmio. Evidentemente não
pensam tudo isso conscientemente, mas sentem o acúmulo da graça quando
estão fazendo as coisas de modo adequado e esta é uma sedução tal que
5

dificilmente resistem a ela. Eu vejo isto nas pessoas analisadas, é a coisa mais
difícil educa-las para sair da ilusão da “santidade”. É uma espécie de
preconceito, um efeito ancestral das antigas idéias cristãs. Não tem nada com
as convicções conscientes, mas é a fundação de toda a nossa atmosfera
mental... Nós supervalorizamos tremendamente a consciência... mas em certas
esferas da psicologia é possível ver que a consciência não significa nada.
Podem convencer alguém quanto a uma verdade psicológica, por exemplo, e a
pessoa responderá: “Oh, sim, eu percebo...” mas é como se tivessem dito a ela:
“Você tem uma pequena cobra no seu bolso” e ela responderia: “É mesmo,
que interessante”. Tal pessoa pensa que está perfeitamente convicta, acha-se
esclarecida, mas na realidade nunca poria sua mão no bolso se realizasse o que
significa ter lá uma cobra. E assim é na psicologia quando se chega a uma
atitude básica. Por exemplo, a nossa sonhadora certamente teria dito: “oh, eu
percebo exatamente o que o Senhor pensa”, mas ela exatamente não teria
percebido nada, porque aquele preconceito é demais forte, aquele preconceito
que se estende mil anos para trás ou mais além da sua existência individual.
Isto não pode ser tão facilmente removido, é algo formidável e significa um
longo trabalho até poderem chegar ao fundo de tal atitude, até realmente
conseguirem lidar com ela.

E o fato importante com a “santidade” é que não é uma coisa que ocorre por si
mesma, não está simplesmente lá, mas é questão de um treinamento ou auto-
educação; é um produto cultural, é um ideal. Por exemplo, o pajé não quer ser
pajé e fará tudo para evitar isto. Um santo cristão tem uma face inteiramente
diferente, uma figura diferente de um sábio chinês ou hindu, mas
naturalmente, o ponto que eles têm em comum é a diferenciação intencional
do tipo. Eles até constroem sistemas mais complicados como yoga ou ritos
6

cristãos para elaborar o tipo escolhido... O santo, supõe-se, é o indivíduo


perfeito... e a educação de um santo, a técnica pela qual um santo está sendo
produzido é realmente uma técnica que exclui de modo cuidadoso o
inconsciente coletivo.

Nesse sonho é aparente o material de produto cristão, o ideal de “santidade”


que está peculiarmente revirado pela guerra. A idéia central do cemitério
parece ser representada na pedra do túmulo, isto é, a idéia da santidade cristã
devorada pelo touro, pelo animal.

Então essa é uma idéia realmente profunda, porque se alguém perscruta a


psicologia da guerra e pergunta a si mesmo: “Que coisa produziu a guerra,
qual é a idéia psicológica que ajudava as pessoas a continuar a guerra?”, a
resposta é que era meramente o seu idealismo, sua devoção extraordinária à
sua própria causa, porque se dois estão lutando, cada um está devotado ao seu
próprio lado, e então continuam lutando. E eles fizeram isto com a maior fé,
com a maior convicção, em ambos os lados e assim continuaram...Se alguns
desses poderes, ou até apenas um tivesse tido menos atitude cristã, o que
significa menos atitude idealista, tudo isto teria atrofiado... teria sofrido um
colapso depois de alguns meses, como ocorre com os primitivos. Tais coisas
terríveis só acontecem quando se foi induzido a isto, quando se tem um ideal e
uma devoção extraordinária.

Então tudo isto mostra o que o simbolismo do sonho significa: o touro


comendo o santo, os dedos do santo. Por exemplo, existe um ditado: “Não dar
ao diabo um dedo senão tomará a mão inteira”. A mão também simboliza a
atividade da pessoa, aquilo que está fazendo. Sem as mãos a pessoa é
7

inefetiva, não pode criar, não pode fazer nada; então, se as mãos do santo
estão sendo comidas, ele não pode mais manter-se efetivo.
Agora, obviamente, esse touro não é apenas o animal no ser humano, teria que
ser algo mais. Acho, então, por assim dizer, que não é a consciência animal
versus a consciência espiritual ocidental. Como vêem, tem que haver algo
especial em relação com esse animal. Não é um touro comum. A paciente
mesma, instantaneamente, associava-o com Mitra; assim, não podemos
assumir que seja como qualquer outro bovino. É o Touro Divino, como o
santo é também divino. Assim, é um princípio divino colocado contra um
outro princípio divino, o que, naturalmente, faz uma grande diferença.

O touro divino é um touro abstrato. Por isso, se falam da força dos instintos ou
de uma atitude instintual, não seria isso em alguém meramente uma
inconsciência animal, uma falha? Tem que ser em relação com um princípio...
algo universal. Deve ser da mesma maneira bom ou eficiente como a
santidade, porque o touro está em condições de comer o santo. Assim, deve
significar uma atitude instintual que é equivalente a uma atitude cristã... temos
que tentar entender essa atitude instintual e, ainda mais, uma atitude instintual
baseada num princípio. Podem imaginar o que eu acho quando estou falando
de uma atitude instintual baseada num princípio?

Resposta: Fecundidade.

Dr. Jung: Esperamos que seja o princípio da fecundidade, mas por enquanto
está comendo o santo – uma atitude que obviamente solapa a idéia cristã de
santidade. Então como compreenderiam isto? É o simbolismo da primavera. O
touro é Taurus, o signo de maio. Não é o verão, é realmente o pleno
8

desabrochar da primavera na astrologia e podemos toma-lo como tal. Como se


justifica essa assumpção? Nós já tivemos isso nesses sonhos, já lidávamos
com o simbolismo da primavera nesses seminários.

Sugestões: A ovelha da primavera. O pavão.

Dr. Jung: Tem razão, esta é a ovelha cristã. E o pavão é o símbolo da


primavera nos ritos orientais. Eu não inventei o pavão como símbolo da
primavera, porque foi encarado como tal na antiguidade. Assim este touro
pode ser entendido como uma espécie de primavera, uma nova manifestação,
um poder natural. Mas, e sobre a idéia disto estar baseado num princípio? Isto
sempre envolve um credo. Vejam, não é possível fazer um santo dizendo
simplesmente: “Agora te tornaste efetivo”. Terão que dizer a ele para que;
num caso como este, terão primeiramente que colocar o “point d’honneur”...
Há sempre uma idéia ou padrão em conexão com isto...

Contra essa atitude o touro seria a atitude instintual baseada num princípio e é
bastante difícil para nós entender o que significa, porque a atitude cristã
sempre dirá que é o “laissez faire, laissez aller”, um sistema de desorganização
individual. E podem ver que aqui nós tropeçamos na nossa mentalidade cristã.
Esquecemos que o animal é a coisa mais piedosa que existe. É a única coisa,
excetuando-se as plantas, que realmente consuma o seu destino ou a vontade
superior – a vontade de Deus – se quiserem colocar isto em linguagem
religiosa. Nós somos do diabo, porque estamos sempre desviando, porque
sempre estamos vivendo algo do nosso jeito e não cumprimos a vontade
divina. Os animais são piedosos, já que vivem exatamente como são
destinados.
9

Aparentemente a atitude de santidade tem que ser reprimida por um fator real,
simbolizado pelo touro, que é a força criativa ainda indiferenciada. Compara-
se ao touro mitraico que é o touro do começo, o touro do mundo,
ABUDABAO (de origem persa). Como vêem, o touro do começo é a cega,
inconsciente força criativa, nesse caso representando um grande valor, porque
a atitude de santidade é uma culminação, é um fim. Porque qualquer coisa que
é diferenciada e atingiu a sua completude é, naturalmente, linda e respeitável e
boa e nobre – e estéril. Depois de certo tempo mostra-se “seca”. Pode-se
admitir: “Sim é lindo, é maravilhoso”. No entanto não funciona mais. Como
se tivesse perdido a sua eficiência e, em tal caso, o inconsciente faz emergir o
contrário, um cego e indiferenciado impulso, um signo de primavera na
astrologia. A astrologia é a psicologia do inconsciente projetada e nós vemos
aqui Taurus, o touro, como o signo da primavera, o tempo criativo, a parte
criativa do ciclo inconsciente.

(Pouco tempo depois ocorreu a primeira grande visão da paciente. Nota do


Editor).

A cabeça do Carneiro

 Visão: Eu olhava a cabeça de um carneiro. Este, de repente e com força


temível, atacou e foi acertado na testa pela lança de um índio.
10

(FIGURA PÁG. 25)


Como vêem, o novo elemento aqui é que
não se trata de uma visão estática, mas
agora está em progresso. É a visão que
tem dynamis, movendo-se por si mesma.
Antes ela ainda retinha sua própria
atividade, ou o que podem chamar seu
próprio livre arbítrio, ela não emprestou
seu próprio poder aos conteúdos de sua
mente, por isso eles não se
movimentavam, não tinham nem poder
nem movimento. Nesse momento seu
dinamismo passou aos objetos
inconscientes, aos conteúdos da mente,
os quais agora movimentam-se por si
mesmos, com aquela energia que
anteriormente era a sua própria e que
ainda é sua quando está num nível
diferente; ela ainda é capaz de retirar-se
dessa visão e elevar-se até a superfície
da consciência onde aquelas coisas não
se movimentam, onde não há carneiro
que ataca e tudo é assim como sempre é.
Mas nesse momento ela desce através disso, entrega o seu próprio poder e,
como vêem, os conteúdos inconscientes estão se movimentando
violentamente.
11

 Visão: (continuação) E nesse momento – acertado na testa pela lança do


índio – o carneiro desapareceu. O índio deitou-se junto com sua lança.
Depois, de repente, montou no seu cavalo – que era preto – e correu
através de planícies e montanhas até chegar a um lago preto circundado
por montanhas pretas. Aqui o cavalo não quis ir mais adiante, deitou e
morreu. O índio permaneceu na beira do lago e olhou o sol, mas este
não era mais visível, já se punha, era crepúsculo. De repente o índio
transformou-se num chinês que se ajoelhou perto do lago e abaixou sua
testa até o solo três vezes.

A natureza destas visões

Vejam: esta visão é muito semelhante a um sonho, mas não inteiramente. Não
sabendo se era um sonho ou uma visão, o que diriam? Qual é o critério?
Bem... Nesta visão ou nesta série de imagens nada há que a sonhadora pudesse
experimentar na vida cotidiana. Se fosse um sonho... seria aquilo que os
primitivos chamam de grande sonho, um sonho visionário, um sonho de
importância, de longo alcance. Então esse é o critério. Quando as séries de
imagens não contêm o material costumeiro da vida, vamos dizer, carros,
parentes, titias, e assim por diante, sendo em todo caso não costumeiro, é bem
provável que seja um sonho visionário. Mas nós temos também outros
critérios, além da falta de material da vida cotidiana...

Como vêem, há algo muito peculiar nesta visão. No sonho poderiam


encontrar, provavelmente, mais interferência emocional: seria menos claro
quanto às suas seqüências. A seqüência aqui é singularmente objetiva e exclui
12

a participação pessoal, ao passo que nos sonhos a pessoa não é tão excluída.
Está “dentro” mesmo só que como expectadora. Por exemplo, é possível ter
sonhos nos quais... não há sujeito. Não aparecemos dentro do sonho mas os
conteúdos emocionais estão lá, assim estamos no sonho. Se a sonhadora
tivesse dito que se sentiu triste quando o cavalo morreu ou se o índio tivesse
sentido isso, não faria diferença, teria sido sua própria emoção; mas aqui não
há nada disso, na ocorrência inteira não há emoção. Assim pode-se ter a
peculiar impressão como se se tratasse de séries de “flashes” ou de um filme.
Não existe a participação do sentimento. Qual seria a razão disso?

Resposta: A sua atitude consciente.

DR. Jung: está certo. Então esse é o critério positivo para o fato de que deve se
tratar de uma visão. Recordem seus sonhos: estavam repletos de emoção. Ela
era ansiosa, excitada, tocou música. O último sonho sobre o cemitério na
França está repleto disto, existe lá uma extraordinária atmosfera emocional,
mas nessas séries de imagens falta inteiramente o sentimento. Isto só pode
ocorrer pelo fato de que esta visão não era um trabalho exclusivo do
inconsciente; é como se houvesse nele um certo estado de ânimo. É a atitude
consciente que exclui seu sentir e, sabendo disto, podem ver: como estão
sendo produzidas essas fantasias. Antes de tudo, seu inconsciente está
operando; ela não sabe o que está por acontecer. Se eu tivesse perguntado: “O
que chegará a ver em seguida?”, ela não saberia, nem teria a mínima idéia; as
coisas que acontecem são repentinas e inesperadas, o que prova a atividade do
inconsciente. Mas o inconsciente, como estávamos vendo nos seus sonhos, é
muito emocional, está repleto de sentimento, mas aqui isto não aparece. A
razão é que um outro fator está operando, isto é, a sua consciência. E sua
13

consciência extingue o sentir, porque sua atitude consciente é intelectual e isto


elimina o sentimento. Assim, a imagem original que o inconsciente tenta fazer
emergir é peculiarmente desnaturalizada pela luz perscrutante da consciência
intelectual e aquilo que percebem é uma espécie de compromisso entre as
funções consciente e inconsciente.

O rápido e potente movimento aponta aqui que entrou energia nas visões ou
imagens... Isto significa já um tremendo progresso, porque então elas têm a
sua própria vida e querem continuar a se desenvolver, mas enquanto estão
estáticas, podemos ficar quase certos de que não terão qualquer continuidade e
são apenas uma chance de que a paciente obtenha um vislumbre da vida, de
vez em quando uma espécie de “flash”. Mas logo que há movimento pode
ocorrer um pleno fluxo de imagens que se desenvolverão em uma seqüência
lógica e isto, naturalmente, conduz ao drama. Não haverá apenas um fluxo
inconsciente de imagens: haverá drama. E logo que vem o drama, pegará o
indivíduo, o indivíduo será como que sugado para dentro e entrará no jogo. A
paciente mesma começará a representar o papel a ela assinalado no drama, ela
realmente estará dentro do drama-mistério, fará parte deste e será
transformada. Enquanto está apenas observando a continuidade ou o fluxo de
imagens, ela é destacada, só olha, como se costuma olhar os filmes; talvez
esteja interessada, ou “mexida”, mas não está representando um papel
assinalado. Logo que somos uma figura no drama-mistério, então servimos o
drama, somos parte dele e ele se apossa de nós e nos transforma. Então
chegaremos a conhecer um poder superior, o poder do drama. Essa é a idéia
do drama antigo, isto é, era uma espécie de ritual que poderia ser chamado um
mistério ou transformação. O drama antigo apossava-se do indivíduo ou o
indivíduo assimilava-o e ficava transformado; era como o mistério da
14

transubstanciação. Agora, interpretando o que significa este momento, temos


começar bem do modo como fazemos ao analisar sonhos. Por exemplo,
lembrem que sempre ao tratar um novo sonho, olhamos para trás, vendo os
sonhos anteriores, ou o último sonho anterior, porque assim obtemos uma
espécie de base, da qual o julgamento se torna possível. Mas esse não é um
sonho, mas um produto que emergiu em condição acordada e por isso lidamos
com ele de modo um tanto diferente do que com os sonhos; temos que
considerar a mescla já mencionada da consciência, para encarar isto como um
tipo de produto meio da consciência, meio da inconsciência.

O último sonho, como recordam, era sobre o santo e o touro e toda aquela
atmosfera de guerra e nesta seqüência de fantasias e imagens não vemos
conexão com aquele sonho. Isto é devido ao fato de que os sonhos vêm
realmente da esfera inconsciente e não em virtude de qualquer impressão
consciente da vontade, embora naturalmente, haja uma certa quota de
atmosfera consciente em qualquer sonho; de outro modo não poderíamos ser
conscientes deles. Mas nunca estamos inteiramente certos de que o sonho que
vemos ou que recordamos é realmente aquilo que de fato era no inconsciente.
Aquele assunto no inconsciente nunca saberemos. O que podemos saber é algo
associado à consciência; e assim, se alguém sugere a teoria (e olhem, ela foi
sugerida) de que os sonhos ocorrem pela interferência de um resíduo da
consciência ou seriam distorcidos por aquela interferência da consciência, eu
diria: “Bem, certo, isto poderia ser assim”. No entanto, tal mescla da
consciência é muito pequena em comparação com a mescla do inconsciente
nestas imagens: por isso podemos supor que os sonhos se originam realmente
de conteúdos que se encontram muito mais embaixo do que os conteúdos de
tal fantasia.
15

E assim, o sonho sobre o touro e o santo refere-se realmente a um problema


muito mais profundo ou além da consciência da paciente; aquele sonho, se nós
nos aprofundamos mais nele, é realmente uma antecipação de idéias que
voltarão ainda nesse drama-mistério, mas bem mais tarde. Nesse estágio não
estamos, de forma alguma, certos de onde veio o sonho e, querendo encontrar
seu ponto de partida, temos que voltar às idéias expressadas nas visões; estas
derivam, originalmente, de sonhos, porque a primeira coisa que ocorreu era
um desenvolvimento que aconteceu no inconsciente – assim, bem no começo,
os sonhos prepararam o caminho para a primeira visão estática.

E lembrem agora que a primeira visão era o pavão e depois veio o símbolo do
sol nascente, o homem solar, o homem com halo ou nimbo. O pavão é o
desabrochar do sol, o levantar do sol, e por isso é o símbolo da primavera e da
ressurreição. Isto tudo era um modo de antecipar as coisas que estão
acontecendo agora; assim, sob tal aspecto podemos entender o primeiro
movimento que se apresenta nas novas séries como uma espécie de
simbolismo da primavera ou de ressurreição.

Simbolismo astrológico

O carneiro é o símbolo da primavera. É o signo astrológico de Áries. Pode ser


que a astrologia seja para os senhores bem desconhecida conscientemente,
mas para o seu inconsciente é intimamente conhecida; porque as idéias
fundamentais da astrologia, por exemplo, os signos do zodíaco, são projeções
nos céus do nosso funcionamento inconsciente. Naturalmente, as constelações
nada têm que ver com os nossos caprichos terrenos e certamente não há lá
16

nenhuma ursa ou leão ou qualquer outro. Não é assim como achava um


famoso amador da astronomia, grande admirador da ciência. “Porque”, disse
ele, “além de saber o peso das estrelas e sua composição, os seres humanos
foram, de certo modo, bastante hábeis, perguntando às estrelas sobre os seus
nomes!” Aí podem ver o engano fundamental sobre a astrologia. Espanta-nos
como essas constelações podem influenciar-nos desse modo maravilhoso, mas
somos nós que projetamos todos esses fatos sobre elas. Não há nada com
aquelas estrelas. Bem, eu não quero entrar nisso, mas vejam, as qualidades dos
diferentes meses do ano, em outras palavras, os signos do zodíaco, são
realmente as projeções do nosso conhecimento inconsciente sobre o tempo e
sobre as qualidades do tempo. É como se existisse um conhecimento profundo
ao nosso inconsciente, conhecimento baseado em experiências inconscientes
de que certas coisas, originando-se em certos tempos do ano têm tais e tais
qualidades, de modo que, pelo conhecimento empírico armazenado no nosso
inconsciente, somos sempre mais ou menos acertadamente ajustados ao
tempo. Assim, Áries, o carneiro, expressa certas qualidades que caracterizam a
época da primavera. Depois do mês de Áries, vem Taurus, o touro e, desse
modo podemos dizer que Áries, mais ou menos, está na mesma linha com o
touro. O touro, sabemos, sempre foi encarado como símbolo da fertilidade,
forma consumada do poder gerador, quando a natureza inteira incandesce com
uma tempestuosidade irresistível. Áries é também o símbolo da fertilidade,
mas é menor, apenas no início... Como um símbolo da primavera, simboliza
os primeiros brotos verdes que emergem de novo na terra. O simbolismo do
zodíaco originou-se em qualquer parte do Sul, mais provavelmente na
Mesopotâmia; então tratar-se-ia daqueles brotos verdes que aparecem depois
das chuvas do inverno. Não há signos de neve no zodíaco, porque tais signos
originaram-se num país onde não houve neve, apenas as primeiras chuvas em
17

fevereiro e março. Vejam, em fevereiro temos o signo do Aquário,


representado por um homem com cântaro. Esse é o deus da chuva, e depois
vem o de Peixes. Quando o Aquário inundou a Terra com o dilúvio, nessa
água encontravam-se os peixes, eles são a semente da terra fertilizada, como
esperma; são idéias-semente, conteúdos inconscientes. Peixes sempre
significam conteúdos inconscientes.

Assim a terra é fertilizada e depois chegam os primeiros brotos verdes,


simbolizados por Áries; poder-se-ia dizer: agora o carneiro aparece, o
primeiro broto verde que emerge...

O Índio como Animus

Mas aqui vem uma lança da mãe de um índio pele-vermelha e obstrui o


movimento de Áries – o primeiro rebento está impedido por uma lança.
Então, o que supõem em relação com esse simbolismo? Quem é o índio?
Lembrem, a paciente é norte-americana.

Resposta: O Animus.

Dr. Jung: O Animus, naturalmente. Seria a representação da mente


inconsciente, o que significa a mente realmente primitiva. Sabem essas figuras
inconscientes, como Anima e Animus, estão sempre um pouco inferiores em
comparação com a nossa consciência – Deus sabe o que são elas em si
mesmas, mas nós não. Assim, aquele Pele-Vermelha representaria seu opinar
inconsciente que susta aquele movimento, reprime-o. E a lança é a arma típica
do homem primitivo, que está sendo dirigida contra aquele brotar, que é o
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movimento independente. A lança como qualquer implemento aguçado e


pontiagudo ou arma para cutilar, simboliza a qualidade dissecante do intelecto.
Como sabem o intelecto sempre disseca e penetra, e assim a lança simboliza a
opinião dissecante ou penetrante. Tem que ser a opinião que surgiu nela
quando tal impulso cego se manifestou; instantaneamente veio uma reação do
Animus e ela diz: “Oh! Mas isso não passa disso ou daquilo” e, se for
possível, acaba com a coisa.

Esse é o modo como o Animus trabalha. E certamente do mesmo modo


trabalha a Anima, só que ela não emprega uma arma de modo masculino; ela
usa veneno, trabalha de maneira feminina, que é um modo ardiloso e não uma
ação direta. Aquilo que a Anima faz não parece ser absolutamente a atuação
de um homem, é o estilo feminino, secreto e venenoso; assim os sentimentos
de um homem envenenam o impulso criativo por um tipo de mistura de
substância venenosa que mata o impulso que vem de dentro, é uma espécie de
ressentimento. Poder-se-ia falar bastante sobre isso porque é uma coisa que a
mulher não entende: como pode ter Eros tal efeito, mas tem mesmo.

Bem, essa reação do inconsciente mesmo, é o Animus e nisto podem observar


algo tremendamente interessante na estrutura do inconsciente, isto é, o sim e o
não. Há o impulso criativo e depois vem a destruição, acabando com isso; é
possível ver também a diversidade das figuras do inconsciente coletivo. É
como uma cena em que várias figuras aparecem; há o herói nobre e o vilão, a
pessoa maravilhosamente virtuosa, o rei, o mendigo e assim por diante. Agora,
o efeito desta reação do Animus é que o carneiro desaparece imediatamente,
como naturalmente o faria. A reação foi tão ruim – poderiam dizer que uma
opinião tão ruim emergiu – que o impulso foi destruído em germe.
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Na imagem seguinte o índio deita-se junto a sua lança. Poder-se-ia dizer que
agora seu trabalho foi executado e ele descansa. Não se sabe o que isto
significa, mas é obviamente uma situação passiva. Podem observar que, com
bastante freqüência – quando o Animus reagiu e tudo foi arrasado até cerca de
20 quilômetros de circunferência – ele descansa, e as pessoas ficam
intensamente perturbadas, porque não sabem o que ocorreu e porque tudo é
tão morto e tão parado. E o que pode fazer o Animus, sozinho? Sente um tédio
mortal e vai dormir. Mas não por muito tempo, porque quando o Animus
consegue matar o impulso criativo, não pode descansar muito porque o
impulso criativo entra nele. Sabem que certas tribos de peles-vermelhas têm o
costume de comer o cérebro ou o coração do inimigo morto para assimilar a
força ou a sabedoria ou a astúcia dele.

Essa idéia, então, vem do fato – de novo um fato de observação ou de


experiência psicológica – de que se destruímos algo, simplesmente obtemos
como herança o seu espírito... Por isso, em seguida, o índio põe-se nos seus
pés e monta o seu cavalo e sai a galope; apossou-se do poder que reprimiu no
carneiro. É bem possível que o impulso cego no carneiro tinha que ser
aniquilado. Tais coisas ocorrem na natureza. Se o lobo come a ovelha, isto é
certo ou errado? Naturalmente o dono da ovelha vai dizer que é errado, mas o
lobo sabe que é certo – tais coisas ocorrem... Assim, todo o movimento
intenso está agora no Animus e no seu cavalo. E seu cavalo é preto. O que
diriam sobre esse cavalo preto?

Sugestão: Não seria a idéia de um poder elementar que pode ser destrutivo?
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Dr.Jung: Sim é um poder elementar. A cor preta sempre carrega a conotação


do mal. Um cavalo preto significa um cavalo demoníaco. Lembrem-se dos
cavalos de PLATÃO, o cavalo preto e o cavalo branco com o homem como
cocheiro, e o cavalo preto era sempre o indomado... A cor preta do cavalo tem
a conotação de algo mau, isto é, ctônico; é telúrico, e mais certamente, “pouco
cristão”; por isso o diabo monta um cavalo preto, como o fazem todos os tipos
de espíritos malévolos. Assim o cavalo preto é sempre, de certo modo,
inadequado. Uma pessoa boa nunca apareceria num cavalo preto mas num
branco, se quer usar cavalo para isso. Assim, o cavalo preto na visão significa
um pode ctônico elementar; é simplesmente uma forma nova, mas a
derivação direta do poder do carneiro.

No caso de nossa paciente o cavalo preto é o dynamis do seu Animus. E o


Animus, utilizando a energia que obteve do carneiro, adquiriu a força que
agora está incorporada pelo cavalo preto que se move com rapidez; e tal
cavalo – poder-se-ia dizer – a conduz para um lugar muito remoto, para um
deserto cercado por montanhas pretas onde há um lago preto. Lá termina o
ímpeto do cavalo. Morre; o ímpeto do Animus, que obteve ao matar o
carneiro, fez o seu trabalho – levando-o como um projétil a um certo lugar
muito distante. Agora que o cavalo morreu, qual será o efeito seguinte? Eu
lhes disse que a energia não pode desaparecer.

Resposta: Muda a sua forma.

Dr.Jung: Sim, nenhum outro animal vem em vez do cavalo, mas essa energia
entra diretamente no Animus e este começa a atuar. Assim a única figura que
ainda age aqui é o índio; ele está à beira do lago e procura o sol. Mas o sol já
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se punha, o que significa que a consciência “se punha”; torna-se escuro e o


Animus observa aquele lago. Depois, de repente, passa por uma peculiar
transformação, torna-se um chinês que se ajoelha à beira do lago preto e
inclina sua testa três vezes na direção do solo.

Aqui podemos ver que o poder do cavalo que entrou o índio é um poder
ctônico, é um poder elementar, que, com toda a certeza, está procurando a
terra. As montanhas pretas, naturalmente, são terra preta e o lago preto é um
buraco profundo na terra, poderia ser chamado o ventre na terra; cavalo preto
é o poder que conduz o índio para entrar no submundo, no lago, e o
transforma num chinês – a raça que provavelmente está mais próxima da terra,
isto é, absolutamente idêntica com aquela terra amarela, tendo a mesma cor
amarela e cuja filosofia, poder-se-ia dizer, é a filosofia da terra. E o chinês
coloca sua testa no solo, isto é, abaixa a sede da sua consciência, da sua
mente, até o solo, estabelecendo uma conexão próxima com a Mãe-Terra.

Isto é extremamente significativo, porque o tipo consciente da mulher é


intelectual, aqui com mais tendência mais para a intuição, e por isso o ponto
de vista da realidade, a sensação (percepção), é como se estivesse embaixo do
horizonte. Como vêem, o desenvolvimento da sua intuição e da sua sensação é
quase igual, a ênfase em uma ou na outra flutua, as medidas são quase
igualmente equilibradas, naturalmente o sentir é sempre a função inferior.
Assim embora ela esteja ainda funcionando intuitivamente, seu Animus agora
afasta-se, procurando o fundo, a função da terra; ele está, obviamente,
venerando o “princípio Terra”. Agora, isto é uma lição importante, não exige
ação da parte da mulher; é uma espécie de performance no interesse dela; um
drama desenrolou-se perante seus olhos, uma série de imagens foi mostrada a
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ela, deixando praticamente ao critério dela tirar suas conclusões... porque se


trata, obviamente, de uma seqüência lógica, conduzindo a um resultado
definido. É como se qualquer “inteligência” estivesse atuando atrás dos
bastidores, para coloca-la num trajeto inteiramente novo sobre o qual ela,
anteriormente, nem tinha idéia.

Pássaros brancos

 Visão: Um pássaro branco desceu e pousou na cabeça do índio, mas ele


jogou-o fora e o esmagou com os calcanhares. Tudo tornou-se escuro,
era noite. As nuvens abriram-se e apareceu a face de Deus que falou,
dizendo: “Agora terás que andar até encontrares de novo o pássaro
branco que mataste”. O chinês e o índio lentamente andaram várias
vezes em redor do lago. De repente, do lago emergiu um cisne e atrás
do cisne uma mão. Durante muito tempo o índio e o cisne miraram-se e
depois o cisne disse: “Eis que cheguei a ti”. Depois disso o chinês
empurrou o índio para o lago e a água prega fechou-se sobre ele. O lago
tornou-se mais comprido e estreito, numa das suas pontas estava o
chinês e na outra, um grou. Depois de muito tempo o índio emergiu
onde estava o grou. Ele estava coberto de água preta. E o grou disse a
ele: “Enxuga as lágrimas da tua face”. O índio sentou-se em seguida na
beira do lago, com a cabeça baixa, entre as mãos, porque estava muito
preocupado. Depois de certo tempo apareceu um camelo; o índio
montou-o e correu para o deserto. Logo chegaram a um wigwam (tenda)
indígena, onde o índio entrou para dormir. Quando alvoreceu ele veio
para fora e viu três cruzes flamejantes no céu.
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Vamos acrescentar a esta visão a subseqüente:

 Visão: Vi um grande pássaro branco que se transformou em um gavião


escuro que desceu à terra, pegou um ovo com o bico e de novo alçou
vôo. De novo vi um pássaro com asas abertas, também branco. Ele
pousou na minha mão. Eu estendi um grão de trigo que o pássaro tomou
com seu bico, para depois voar de novo para o céu.

Eu chamo sua atenção par o gesto peculiar do índio, segurando sua cabeça, o
que não está inteiramente explicado pelos conteúdos da primeira visão. Pode
ter algo com isso o ato de tocar o solo com a testa, durante sua transformação
em chinês, mas eu não sinto que tal gesto esteja totalmente justificado por
aqueles conteúdos. Mas aqui estamos vendo porque segura a cabeça. É porque
o pássaro branco desceu e pousou na sua cabeça e o índio, obviamente, tomou
isto como algo desagradável – tirou o pássaro de lá e o esmagou com os seus
pés, o que é um feito bastante brutal. Desse ato temos que concluir que aquela
ave devia ser muito desagradável para o índio. O que pensam sobre isso? O
que é o pássaro branco?

Resposta: De novo o carneiro, só em forma diferente.

Dr. Jung: Sim, a energia saiu de novo do índio. Poder-se-ia dizer que o poder
gerador foi exaurido no fim da visão. É aconselhável encarar essas visões em
séries como algo semelhante a sessões espíritas. A paciente mesma
denominava essas condições como transes. Certamente a mesma palavra está
sendo usada no oriente nas escolas tântricas: THYANI, que significa transe e
constitui uma das técnicas de Tantra-Yoga. Podem sempre observar em
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sessões espíritas que se fala muito de um certo poder, um poder criado pelo
pensamento eu se manifesta movimentando objetos físicos no espaço...
Interessantes experimentos foram feitos para acertar: o que é esse poder, mas é
muito misterioso, muito elusivo; embora tenhamos fatos definidos, ainda
estamos longe de entender do que se trata. Psicologicamente diríamos: era a
libido, uma forma de energia psicológica. Energia psicológica evidentemente
não existe, é um conceito, mas no equivalente físico – ou fenomenal – da
energia, nessas condições podem encontrar a mesma peculiaridade, isto é, que
esse poder criativo depois de certo tempo exaure-se e então tudo volta à
condição em que estava anteriormente...

Assim, no fim da visão anterior, o inclinar ao solo bem pode ser o


desaparecimento na terra, o que significa: no corpo, quer dizer, o poder
gerador dissolveu-se de novo em processo fisiológico, como se nunca tivesse
existido. E, depois, na seguinte condição THYANI, no transe seguinte, emerge
de novo na sua forma animal, como era quando na forma do carneiro.
Acontece que o carneiro é ctônico, mas agora trata-se de um pássaro. O que
indicaria isso.

Resposta: O espírito Santo.

Dr.Jung: Sim, o Espírito Santo seria a interpretação. Então o Espírito Santo


pousa sobre o índio. Qualquer pássaro branco pousando sobre uma pessoa
indicaria, naturalmente, o Espírito Santo, para qualquer um com educação
cristã. Mas ela, porque dá ao pássaro tão cruéis boas-vindas?
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Resposta: Porque destruiria o seu próprio modo de funcionar. A opinião-


Animus não poderia resistir ao Espírito Santo que quer destruí-la.

Dr. Jung: Bem, poderia ser dito que o índio é uma figura nada santa, um
Animus nada santo e o Espírito Santo descendo sobre ele não poderia ser vem-
vindo porque contrasta demais. Isto é, se interpretam aquele pássaro branco
como sendo o Espírito Santo, têm perfeitamente o direito de fazer isso, porque
é um elemento cristão; o Espírito Santo é uma idéia cristã, e do índio não se
supõe que seja cristão. Ainda mais: está montando um cavalo preto e parece
estar num lugar preto, por isso temos razão para crer que o Espírito Santo seja
algo quase hostil para ele. Assim o índio destrói tal forma. O que ocorre em
seguida, quando ele o esmaga com seu calcanhar: desce uma escuridão como
se o pássaro branco tivesse significado uma fonte de luz; e depois que ele
matou o pássaro segue-se uma completa escuridão, exatamente o que poderia
ser esperado, porque ao extinguir a luz do Espírito Santo, ele já eliminou
também o elemento espiritual.

O que se segue é bastante convencional, isto é, as nuvens abrem-se e aparece a


face de Deus, o que significa que foi cometido um pecado contra o Espírito
Santo e o índio é amaldiçoado como AHAUSER que rejeitou seu Senhor e
tem que andar na terra até encontrar de novo o pássaro branco. A idéia de ter
sido um pecado contra o Espírito Santo significa aparentemente que ela
entregou-se aos poderes do mal, a uma espécie de diabo que é o inimigo
eterno, do espírito. O diabo é um poder ctônico, por isso é representado como
a escuridão mesma (trevas), não tem a cabeça do carneiro ms tem os chifres
do bode, tem também as patas do bode, sendo meio animal, um tipo de sátiro.
Na Idade Média era também um deus fálico; assim é a encarnação de todas as
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imagináveis coisas ctônicas e parece como se o índio fosse um desses, mas de


forma bastante mitigada. Não aparece como o diabo mesmo, antes como um
primitivo, um homem que é ainda pagão, que se atem à terra, sua meta é a
terra e por isso ressente qualquer tipo de intrusão de cima, pássaros brancos e
semelhantes.

Agora essas duas figuras, o índio e o chinês andam em redor do lago preto. Na
visão anterior o índio transformou-se em chinês, perdendo de repente a sua
identidade. Aqui ele permanece índio mas o chinês torna-se uma figura
independente: assim, podemos supor que são duas formas do Animus, o índio
primitivo e o chinês civilizado. Isto vem do fato de que a paciente leu muito
material chinês. Gosta especialmente de LAO TSÉ e da filosofia taoísta
chinesa e isto, naturalmente, produz uma determinada espécie de Animus,
uma certa forma de opinião. É muito engraçado: quando lemos filosofia
oriental, inclinamo-nos a ficar tremendamente encantados; os
pronunciamentos de LAO TSÉ são muito impressionantes e gostamos de cita-
los, sem perceber de fato que estamos vestindo uma roupagem que não nos
pertence. Como podemos expressar-nos por LAO TSÉ? É absolutamente
impossível, perfeitamente grotesco porque não somos chineses. O que ocorre
é que ela forma opiniões (tipo Animus) que não são genuínas, não surgiram
dela mesma e não expressam o fato claro na sua psicologia... Esta é a razão
porque a visão apresenta aqui o primitivo, o índio. Este é um artigo genuíno,
sabem, já que ela é uma mulher norte-americana. O oriental é um Animus
filosófico – uma Assumpção. Representa seu papel – e isto não é uma mera
cavilação, naturalmente – mas aquilo que ele representa é uma opinião, uma
coisa que pode ser mudada, que pode desaparecer; opiniões são apenas
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roupagens e se acontece serem roupagens exóticas, bem, isso significa apenas


um pequeno carnaval mental.

Agora essas duas figuras estão interessadas naquele lago misterioso. Sua
mente primitiva preocupa-se com a descida ao submundo, com as
possibilidades de ir mais a fundo na água preta, o que significa no ventre, no
lugar do renascimento. E o oriental é interessado na sua opinião filosófica,
porque interessar-se pela filosofia chinesa de LAO TSÉ significa algo,
expressa algo do seu inconsciente, porque a filosofia chinesa sabe formular
certos conceitos do inconsciente; mas não era ela que os formulava, apenas
tomou-os emprestado.

Agora, de repente, pelo efeito de mirar a água, essa se torna animada por certa
idéia, o cisne. Vejam: um lago, um olho d’água, é como um espelho; olhá-lo é
como mirar um cristal com transformações e andando em redor expressa
interesse – as duas figuras estão interessadas na água, contemplando-a,
concentrando-se nela. De modo semelhante as pessoas, adorando um relicário
ou um recinto sagrado, andam em redor dele... Essa era a cerimônia usada
pelos romanos quando fundavam uma nova cidade. Aravam um sulco ao redor
dela – a circum ambulação – e andavam em círculo pra a direita, no sentido do
relógio. Depois, no centro, um buraco no solo, chamado fundus e acima disto
faziam sacrifício. Aqui, essas duas figuras, pela circum-ambulação, fertilizam
o centro e pela contemplação, carregam-no com vida...

E depois, algo acontece no centro. De novo o pássaro branco foi esmagado


pelos calcanhares e pisado terra adentro, e assim desapareceu, foi morto. Mas
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com este rito mágico de novo emerge, transformado, e não é mais um pássaro
do ar mas uma ave aquática .

Anteriormente, comentando o desenho da mulher sobre o pássaro branco, Dr.


JUNG apontou sua forma peculiar, muito semelhante à de m peixe-voador.

E atrás do cisne emerge uma mão. Bem, isto é obscuro. Eu não me proporia a
qualquer interpretação daquela mão... embora, mais tarde, esse simbolismo da
mão ocorrerá de novo, tanto como a idéia de puxar algo para baixo como de
criar algo.

Agora o índio e o cisne não se reconhecem um ao outro imediatamente e por


isso miram um ao outro como se já se conhecessem de uma vida anterior – até
que o cisne começa a falar. É uma coisa muito importante que, com
freqüência, a visão tem a tendência a permanecer estática, mas, se nos
concentrarmos sobre ela, começa a se movimentar. Ainda pode permanecer
calada, até pode ser muda – mas, concentrando-se mais, a imagem começa a
falar. Quanto mais concentramos aquela energia criativa sobre a imagem,
tanto mais a animamos com vida real. Evidentemente, quanto mais
carregamos a imagem com a vida real, tanto mais perdemos a nossa própria
consciência e, por isso tem a condição THYANI, o transe, um efeito de
contração do campo de visão, isto é, uma espécie de “abaixamento do nível
mental” ou um rétrécissement de la conscience. É um perder de si mesmo ao
realizar a vida do objeto mais plenamente... Essa é a razão da convicção dos
antigos de que as imagens dos deuses respondem às questões. Há inúmeros
casos quando a pintura ou o ídolo acenava com a sua cabeça ou falava ao fiel.
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Bem, o cisne emprega uma fraseologia peculiar, quase bíblica. Ele diz: “Eis,
eu cheguei a ti”. Então, naturalmente, trata-se do Espírito Santo, sem dúvida,
porque não é possível mata-lo, mas aqui podemos ver que o elemento
espiritual aparece de baixo da escuridão das águas, de Hades. O que significa
isto? Neste caso é de tremenda importância psicológica.

Temos que encarar essas coisas do ponto de vista da consciência. Sua


consciência suporia que o espírito está em cima e que não há espírito na
matéria, na terra. E aqui, pela primeira vez, ela percebe o fato de que o espírito
pode chegar do mesmo modo da terra e é a mesma espécie de Espírito Santo.
Isto é, o Espírito Santo de forma alguma é um pássaro do ar, porque pode ser
também uma ave aquática. O símbolo da ressurreição vem de baixo, desta vez
do espírito da terra, não do ar.

[Aqui segue-se uma discussão: como foi empurrado o índio para as águas
pretas. Está sendo enfatizada a idéia de que o Animus cumpre a sua função
mais apropriada quando relaciona uma mulher com o inconsciente coletivo. O
caráter às vezes predatório do pássaro que representa o Espírito Santo,
também foi tratado e mencionou-se o trajeto destrutivo em que a inflação pelo
espírito pode quebrar uma normal adaptação psicológica individual.
EDITOR.]

Algo faz sair da depressão


No final da visão, esse arranjo do chinês numa ponta do lago e o grou na outra
é como se algo estivesse sendo esperado e, de fato, algo acontece mesmo. O
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índio emerge da água preta, coberto de limo, e aparece no lado do grou, o que
indica que ele se move na direção da representação do Espírito Santo,
afastando-se do oriental, que é um sistema da filosofia chinesa. O grou é o
espírito vivente – uma espécie de forma animal – porque o animal, sendo não
humano é o símbolo do super-humano, do divino. É como se o índio tivesse
sido empurrado numa ponta da água e emergisse na outra ponta pelo Espírito
Santo, o grou, que agora fala a ele dizendo: “Enxuga as lágrimas da tua face”.
Mas nada foi dito em conexão com o seu choro, é como se o grou interpretasse
as águas pretas como lágrimas. Mas essa água preta é uma condição, uma
escuridão profunda, é uma espécie de curta viagem em baixo do mar a qual,
vendo externamente ou observando pela nossa própria consciência, parece
uma profunda depressão em que as coisas são pretas e a água já cobriu a
cabeça e sente-se de modo infernal; uma terrível depressão, melancolia, e isto
significa lágrimas.

Depois o índio saiu da água. Ele “sentou na beira do lago com a cabeça
abaixada e apoiada nas mãos, porque estava muito preocupado”. Isto é
simplesmente a case posterior da sua melancolia. E depois de certo tempo algo
novo acontece – vem um camelo, o índio monta nele e sai galopando. O
camelo, naturalmente, é o animal que carrega o fardo. É um instinto

Vejam, se alguém estava numa profunda depressão e ainda está bastante


deprimido, depois de certo tempo algo aparece e tira a pessoa daquela
depressão. Eu me lembro de uma paciente que permanecia num estado
relativamente razoável enquanto eu estava “por perto”, mas logo que tirei
minhas férias ela caiu num buraco, teve fantasias suicidas e tudo isso. Mas eu
firmemente fui, como costumava, porque sabia que ela nunca sairia desses
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buracos senão pela própria força e mesmo que eu me sacrificasse


completamente, ainda assim ela não sairia deles, só afundaria mais. Assim eu
saí, decididamente; ela caiu num profundo desespero e decidiu cometer
suicídio. Foi ao lago para se atirar, mas no caminho, passando por uma loja de
calçados, viu lá uns sapatos lindos que nunca vira antes e achou que talvez
ficassem bem nela; assim, entrou e comprou os sapatos e tudo passou: sentiu-
se inteiramente renascida. Estava completamente curada e sua depressão
passou em não mais que três semanas. Totalmente espantada contou-me isto e
já começou a criar sentimentos de inferioridade pelo fato de que um par de
sapatos pudessem cura-la de sua melancolia. Se eu tivesse colocado uma
montanha inteira em baixo de seus pés não a teria curado, mas aquele par de
sapatos conseguiu fazer isso, que a fez duvidar de seus próprios valores
internos. Eu a aconselhei, energicamente, que no caso de outra profunda
melancolia comprasse mais um par e assim, na próxima vez, ela adquiriu algo
inteiramente louco.

Agora, tais experiências não podem ser inventadas, e desta ela aprendeu que
toda a sua melancolia não valia mais do que 50 francos. Deste modo aprendeu
a agir objetivamente contra aqueles ataques da água preta. Era um tipo de
camelo que veio e a carregou para fora da situação. Era perfeitamente um
instinto animal, uma coisa altamente pueril, mas o fato era que ela entrou
naquelas condições pretas porque não sabia seguir as indicações da natureza.
Houve uma porção de camelos ao redor dela mas ela nunca deu atenção a eles,
estava se atendo a uma convicção consciente e assim despencou no escuro
porque não queria seguir os instintos. Logo que seguia a indicação instintiva –
um par de sapatos lindos é instintivo – ela ficou instantaneamente curada. Para
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ela era como uma espécie de bruxaria, era tão simples – já que seguia aquela
pequena, fútil intimação.

Isto é como as figura dos animais prestativos nos contos de fadas. Quando o
herói está num aperto e não sabe como sair, aparecem um ou dois animais que
o auxiliam bastante e mostram-lhe o caminho, às vezes bastante próximo e
muito evidente, o que ele não percebera. Essa é a função do instinto e ajuda
em situações nas quais nada mais ajuda e quando a mente nos abandonou
completamente. Há certas situações difíceis na vida quando tudo que foi
aprendido e edificado se esvanece e não ajuda mais e então vem uma pequena
idéia ou palpite mais bobo e a gente o segue. E assim, aqueles que seguem
seus instintos estão melhor protegidos do que com toda a sabedoria do mundo,
naturalmente se não têm outra coisa, apenas instinto; sim, eles seriam
protegidos numa floresta virgem, mas não o seriam numa situação civilizada,
onde a mente está sendo necessitada.

Bem, então, o índio, o Animus, está representado aqui em conexão com um


impulso simples; ele se mostra a si mesmo como uma mente verdadeiramente
natural, é levado pelo instinto. A grande vantagem da mente natural é que
pode viver por impulso instintivo. Isto é, essa é uma grande vantagem de um
lado, mas de outro é, naturalmente, uma desvantagem, uma espécie de
restrição, porque pelo contínuo contato com animais, um homem assimila
demais da verdade da mente natural e isto o aliena da mente cultural-
espiritual. Às vezes torna-se bem difícil ou desajeitado lidar com a gente
natural porque ela se encontra bem longe da opinião da mente espiritual.
Assim, é uma grande vantagem se o Animus segue os impulsos naturais, mas
deixado sozinho durante muito tempo com os animais, o Animus pode ser
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levado por eles a uma inconsciência mais profunda e então a conexão com o
ego consciente seria interrompida, o Animus pode começar a deleitar-se
demais no mundo animal. Isto nunca deve ser mal entendido como, vamos
dizer, fantasias sexuais. Vejam, a terra tem o seu próprio espírito, a sua
própria beleza e bastante coisa com o que se deleitar além da sexualidade. A
mente natural realmente tem para si o mundo da beleza terrestre. Como vêem,
nada permanece excluído. Então não é tão terrivelmente materialista como se
pressupõe, porque o animal pode – isto nós não sabemos – ter um
conhecimento melhor da deidade do que o ser humano, embora se trate,
evidentemente, de um conhecimento inconsciente e esse é o perigo: o estado
inconsciente. Se o Animus torna-se demais semelhante ao animal, torna-se
demais inconsciente e então a conexão não funciona mais e ainda está
animando o inconsciente coletivo em tal extensão, que é muito difícil lidar
com ele; este é sempre o caso quando há uma falta de conexão entre o
consciente e o Animus.

Assim eles viajaram pelo deserto até chegar a um “wigwan” onde o índio
estava entre os seus e foi dormir. O índio, naturalmente, está no seu lugar
adequado, no “wigwan”, a isto pertence; então o Animus chegou a uma
posição onde devia estar. Ele é a mente natural. O instinto levou-o de volta à
sua condição natural, acima da água; não se trata de viver nas profundezas do
inconsciente, na escuridão, mas sim na superfície da terra. Tem que estar em
contato com a consciência, não deve desaparecer da consciência e deve
sempre saber onde está a mente natural. Logo que se torna invisível qualquer
coisa pode acontecer. Que está no seu lugar adequado é instantaneamente
mostrado na visão pelo fato de que quando alvoreceu ele veio para fora e viu
três cruzes flamejantes no céu. Aqui o Animus está funcionando de modo
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adequado. O Animus precisa ter a visão, ele tem que ver o que está ocorrendo
no inconsciente e agora informa o consciente que viu as cruzes flamejantes,
algo que o consciente não vê.

A visão é representada como uma espécie de “estória” porque o consciente é


absolutamente desconectado; o ego consciente é um mero espectador e por
enquanto não entra no jogo. Nesse sentido o Animus e os animais são as ativas
dramatis personae. Mas o drama mostra a função própria do Animus: revelar
as leis do inconsciente ao espectador e verão o que vai ocorrer depois de um
certo tempo.

[Sumário: o que a paciente deixou de ver conscientemente aqui, é a inevitável


importância, para ela, da situação sacrificial, isto é, a “potência de suportar”
da doutrina cristã, que ainda representa a sua mais recente formulação. O que
é importante: ter o Espírito Santo, o espírito de entusiasmo pela vida, embora
“de vez em quando mesmo o Espírito Santo” – como na visão o pássaro
branco se torna gavião – “tem que se transformar numa ave de rapina para
pegar o germe da vida”. E Dr. Jung repete: “o conteúdo da vida não está
sempre em cima, às vezes está em baixo”. EDITOR].

Agora, no subseqüente, o pássaro voa para uma mulher vestida de azul,


sentada como uma estátua antiga, e pousa sobre suas mãos. No seu desenho
sobre isso, a mulher está com um grão de trigo, o pássaro toma isso no seu
bico e voa para o céu. Vejam: o pássaro traz obviamente um ovo àquela figura
e essa figura é a MÃE. O azul, naturalmente, é o manto celestial de MARIA,
sua roupagem típica, da cor do céu. Essa é a MÃE UNIVERSAL... A mãe
segura um grão de trigo. Isto parece com o misterioso iniciado ou EPOPTES
35

nos mistérios eleusianos, só que lá não houve um grão de trigo mas uma
espiga de trigo que o sacerdote mostrou na cerimônia da meia-noite. Poder-se-
ia dizer que aquela cerimônia representava a mesma coisa que o Natal – a
situação é a mesma. O Filho nasceu da Grande Mãe que é a Terra e o filho é a
espiga de trigo. Assim, essa visão poderia ser uma espécie de antecipação...

(É para saber que quando a paciente tinha essas visões eu nunca as explicava.
Apenas escutava e tínhamos bastante trabalho com os sonhos; assim, as
visões, via de regra, permaneceram absolutamente intocadas).

O índio como redentor FIGURA PÁG. 34


Visão: Eu vi um cavalo que se
transformou num carneiro e
depois num touro. (Essa é a série
típica e pode-se ver como as
coisas se iniciam, no fundo: o
cavalo é o símbolo, no animal,
que significa a libido inconsciente
associada com o homem e este se
torna carneiro e depois o carneiro
torna-se touro. Como já foi visto
este é o simbolismo da
primavera). Vi que o índio
montava o touro segurando-o
pelos chifres. (Isto significa que o
Animus é renovado por aquela libido renovada). Depois: o índio estava
conduzindo o touro que o seguia bem quietamente. Lentamente subiram uma
36

montanha alta e no fim pararam no cume da rocha. Muitas pessoas que


estavam em baixo da rocha levantaram as mãos como que suplicando.

Há aqui um ponto interessante. A libido ressuscitada, expressada pela figura


do touro, é uma idéia muito primitiva. A razão dos festivais de primavera é
descartar o ano passado e renovar o poder curador ou mana, a saúde, para o
ano seguinte. Por isso tais cerimônias são ainda celebradas na primavera para
nos fazer saudáveis e fortes para o ano que vem.

Por exemplo, na minha cidade natal, no fim de janeiro, quando aparecem os


primeiros sinais da primavera, ainda executam uma cerimônia peculiar, uma
dança mascarada – o que é altamente primitivo – com três figuras; é uma
coisa bem curiosa. Primeiro há um homem muito forte, muito primitivo,
carregando uma árvore jovem, e ornado com coroas de hera na cabeça e em
redor do corpo – tudo verde – indicando que é o renovado demônio da
vegetação. Desce ao Reno e é saudado por dois animais, um leão e um grifo
que esperam por ele na beira do rio e pedem para vir à terra; ele vem,
aparentemente com certa relutância, e depois dançam juntos uma dança
peculiar com tambores. É uma coisa muito impressionante e é realmente uma
cerimônia primitiva.

Aqui temos o espírito renovado de Áries, o carneiro e o touro-espírito. O novo


poder da vegetação, a nova mana para a cidade interia, durante o ano inteiro,
que desce no Reno no fim do inverno ou bem no começo da primavera. O
carnaval tem o mesmo sentido e também, naturalmente, nas festas dionisíacas
em Atenas, carregavam o símbolo fálico. Há também evidências de tais
cerimônias na Itália dos tempos dos etruscos, simbolizando a força renovada
37

da natureza. A força renovada tem, naturalmente, nesse caso, um valor


espiritual e leva o Animus, o índio, a um ponto alto, ao cume da rocha, onde
ocorre uma cena notável, muito semelhante à cena bíblica – Moisés na
montanha –com o povo embaixo, adorando o milagre que ocorreu no Sinai,
ou algo dessa espécie, porque todos estendem suas mãos ao índio como que
suplicando. Dessa cena temos que supor que o Animus e também o touro
assumiram um significado divino. O desenho não se baseia em nada da
experiência externa da paciente. É algo que ocorre no seu inconsciente e ela vê
isso como numa cena de cinema, mas precisam ver que as figuras nessa cena
têm que expressar ou ao menos devem ser espelhamentos de fatos
correspondentes no seu inconsciente.

Há, por exemplo, no inconsciente, um touro, um índio e todo aquele povo que
olha o ocorrido, uma espécie de auditório em si, e esse auditório são todas as
partes e partículas e átomos do inconsciente coletivo. Existe lá um líder, o
Animus e um poder, a libido renovada, para o inconsciente esses são fatos
importantes. Como se existisse no inteiro inconsciente um desejo tremendo de
ser conduzido – talvez também renovado – porque aquilo que esperam do
touro e do índio é o renascimento, o milagre da primavera, e é interessante ver
como visivelmente o inteiro inconsciente coletivo está esperando que tal
milagre aconteça.

Lembrem-se, talvez, nas epístolas de SÃO PAULO, daquela passagem


interessante sobre o APOCATASTASIS, palavra grega que significa
“restituição” e contém a mesma idéia de que a natureza inteira está esperando
junto conosco a revelação, de que os animais e toda a criação estão em
caminho paralelo com a humanidade. Da mesma maneira nós, filhos de Deus,
38

estamos esperando uma manifestação, uma revelação do Espírito Santo como


diz SÃO PAULO, assim tudo, mesmo animais e plantas estão esperando isto
também, porque o milagre espiritual da redenção ou consumação, o que ocorre
no ser humano, significa a coroação de toda a natureza ao mesmo tempo;
assim todos que foram “algemados” serão libertados com a liberação dos
filhos de Deus. Como podem ver, essa é a idéia de que os humanos são
representativos da criação inteira e qualquer coisa que ocorre para eles, de um
modo mágico ocorre para o mundo inteiro.

Encontra-se a mesma idéia entre povos muito primitivos. Os membros do


totem-clã, por exemplo, submetem-se a certas cerimônias para mudar a si
mesmos e com isso a natureza do totem também mudará; o totem-animal é
afetado também, em certo modo. Se eles chegam a se colocar em ceras
condições psíquicas então está sendo assegurada a propagação ou a fertilidade
do totem. No centro da Austrália o crescimento da grama é extremamente
importante; assim eles têm uma espécie de semente de grama como seu totem;
eles executam seus ritos e o totem-semente-de-grama é responsável pela
colheita. E há um totem-água em lugares onde é muito difícil obtê-la e eles
crêem que pelas suas cerimônias o totem-água assegurará bastante água
potável. Esta é uma idéia extremamente mística. E como SÃO PAULO
pensava, assim pensa ainda o inconsciente. Esta é também uma idéia entre
gente comum. Às vezes fomentam a convicção de um paralelismo absoluto
entre os homens e os animais: aquela idéia de que quando Cristo apareceu no
mundo, então para cada espécie de animal apareceu um salvador, um Dr.
Raposo, um Dr. Cobra, um Dr. Coelho e assim adiante, e que eles todos
pregaram a mesma coisa para elevar a criação inteira junto com os seres
humanos. Esta é de novo a idéia de APOCATASTASIS em uma forma bem
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primitiva. E isto ainda continua. Evidentemente, lá em cima, no ar rarefeito


das universidades, ninguém sabe de tais coisas, essas coisas vêm de baixo.

E aqui temos a mesma coisa. É como se o inconsciente mostrasse à nossa


paciente como emergem as esperanças do inconsciente coletivo e como se o
índio no touro fosse realmente um salvador para o inconsciente coletivo.

Isto nos leva a uma idéia muito paradoxal – vejam: aqui neste plano da
consciência nós nos sentimos sós e como se a coletividade fosse uma espécie
de oposto para nós. Dentro é diferente, lá há uma multitude e de novo algo
similar ocorre, mas de modo revertido, como se nós fossemos uma multitude e
como se o índio sobre o touro estivesse nos confrontando. Poderiam dizer que
é um tipo de teatro particular, se não fosse tão desagradável; quando entram
nessas coisas no inconsciente coletivo, podem sentir como são horrivelmente
reais e expressadamente ingovernáveis e logo afastarão a idéia do teatro
particular, porque nunca assistiram algo tão ingovernável em qualquer teatro
anteriormente. A idéia do teatro faz isto um pouco leve demais. Mas pode ser
uma forma de drama antigo, uma “performance” entre gente primitiva em que
as pessoas são realmente exterminadas, realmente torturadas. É algo
semelhante a uma seqüência num mistério em que até podem realmente
derramar sangue. É como se cada um fosse um pequeno universo dentro, um
pequeno microcosmo no macrocosmo. Mas como se dentro existisse também
um macrocosmo contendo muitos microcosmos...

Percebam: grandeza infinita e pequenez infinita são infinitamente verdadeiras


e é bem possível que nós contenhamos povos inteiros em nossas almas,
mundos, onde podemos ser tão infinitamente grandes como somos
40

infinitamente pequenos externamente – tão grandes que a história da redenção


de uma nação inteira ou de um universo inteiro pode ocorrer dentro de nós.

Bem, então aqui há uma parte de tal seqüência nos mistérios. Essa mulher está
antes na posição do povo nesse caso, porque o índio e o touro são os
redentores ou aquilo que significa a mesma coisa, e este Salvador com seu
touro é, naturalmente, a figura de Mitra. Mas ela não tem idéia de que esse
índio, sendo um guerreiro, é Mitra. Estou certo que se ela tivesse conhecido
essa possibilidade o teria adornado com qualquer símbolo de Mitra ou o teria
chamado diretamente por esse nome. Mas ela não fez isto e ele permaneceu
um índio e o touro, um touro, apesar da sena em que eles aparecem
positivamente divinos. Agora a visão continua. Ela não entendia o ocorrido e
por isso as imagens seguem-se como num filme.

 Visão: (continuação): O índio e o touro atravessaram uma ponte alta


sobre um rápido rio de montanha. (Tal atravessar sempre indica a
passagem para uma condição diferente, segue-se um novo capítulo...)
Depois de atravessarem a ponte viraram para a esquerda e desceram até
uma floresta. (Assim a situação agora tornou-se inteiramente diferente.
O esquerdo significa o lado do inconsciente, i. é, o esquerdo é o signo
do inconsciente, como o direito o é do consciente. Eles então vão mais
para baixo, descendo a uma floresta escura que é de novo o signo do
inconsciente). O índio parou para beber numa nascente.

E depois acontece algo muito importante, i. é, a paciente mesma aparece no


quadro; ela é agora uma figura no palco. Desde agora as visões serão antes
como experiências reais e não tanto séries de imagens que se movimentam.
41

Ela será ativa nelas, ela é parte do jogo de mistério e isto ocorre no momento
em que o índio desce da montanha e bebe. Agora isto está muito próximo da
terra. Omo se ela deixasse as esferas do mistério divino, descendo às fontes da
libido da vida e essas estão nas profundezas do corpo. Podem ver: ele se torna
quase físico e desse modo ele a acorda, esse é o ponto em que ele a pega, e o
meio que usa é o beber água.

Como sabem o “beber água” tem efeito transformador: é um antigo símbolo:


beber da fonte mágica outorga todos os tipos de qualidades mágicas; bebendo
de certa nascente a mulher engravida. E conhecem o simbolismo da fonte no
Novo Testamento: a mulher samaritana, a água vivente e assim por diante.
Nesse caso é o descer ao corpo na direção da terra e lá embaixo, no corpo, ele
bebe a água. Isto significa que estabelece um momento de comunicação entre
as fontes da vida e si mesmo e assim a traz “para dentro”.

Como vêem, isto é semelhante a trazer o ovo à mãe. E também é algo


semelhante ao grão que vem da terra, porque agora ela entra no jogo de
mistério e entra numa aparentemente peculiar espécie de roupagem – ela está
velada.

 Visão (continuação): E o índio levantou o véu do meu rosto e nós nos


miramos um no outro. E ele deu-me água da fonte para beber. Depois
eu segui o índio que ainda estava conduzindo o touro, e chegamos a
uma cidade medieval.

Agora o beber a água transformou o índio, de certa maneira o fez entrar em


conexão com a terra e a terra é a realidade tangível. E a sua entrada em cena
42

velada, indica que ela não vê e não está sendo vista – ela é inconsciente. É
uma forma de nascimento. Como sabem, o ser velado nos mistérios significa o
morrer do iniciando e o desvelar significa ressurreição; como, por exemplo, o
tomar o véu para uma freira significa morrer para o mundo porque ela se torna
velada para o mundo; já não está sendo vista nem tem mais qualquer efeito...
Assim, o levantar o véu significaria ressurreição, entrar em ação, ter efeito. O
mirar um o outro expressa que ele tem um efeito sobre ela e ela sobre ele. Isto
significa uma associação próxima desde então, com aquele princípio que
conduz, que primeiramente encarnou-se no índio, e o propósito óbvio de uma
união tão próxima é que ela agora deve adquirir do Animus a função de
conduzir. O Animus não deve mais conduzir, não é bastante humano para essa
tarefa, é apenas uma figura parcial e merece ser conduzido por algo que seja
mais igual a ela do que ele.

Para trás no tempo

O subseqüente movimento que fazem junto é a movimentação pela máquina


do tempo; eles voltam para trás no tempo, a uma cidade medieval. O
inconsciente pode mover-se em todas as direções possíveis e mesmo no tempo
pode ir para frente ou para trás, já que desconhece o espaço; assim, eles
viajam, voltando à Idade Média, indo para uma cidade medieval.

 Visão (continuação): Havia lá um grande espaço quadrangular no meio


da cidade e lá foi erguida uma cruz; e nós vimos uma mulher que
estendia seu bebê à cruz. (Obviamente um símbolo cristão). O índio
aproximou-se em silêncio e então a mulher, com raiva, jogou o bebê
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para o índio e instantaneamente o bebê transformou-se em dois cabritos


que o seguiram atrás do touro.

Então essa é uma coisa bastante complicada. O movimento para trás, na Idade
Média, é um tipo de regressão no passado do inconsciente coletivo. Tal
regressão ocorre... quando na frente há um obstáculo. Então voltam, e
regridem a uma cidade medieval que não é uma cidade especial, mas
simplesmente exemplifica a atmosfera medieval, i. é, o modo medieval para
resolver um tal problema.

Bem, a visão continua, eles sacrificam uma criança, eles oferecem a criança à
cruz. A mulher que oferece a criança é, evidentemente, Maria; foi ela que deu
à luz uma criança para ser sacrificada na cruz. Isto significa que qualquer
coisa que brota na mente e se estende para o futuro tem que ser sacrificada.
Por isso não há progresso algum... A nossa paciente está sendo mostrada a ela
mesma como a mulher medieval, está sendo mostrado a ela o que fez a mulher
medieval e, naturalmente, ela tem uma “participação mística” com aquela
figura, e ela oferece a criança à cruz. Mas o índio vem, i. é, aquela coisa que
agora está aviventada nela, o princípio condutor, com frieza põe-se diante da
cruz e diz: “Nada disso para ti não funcionaria”. Então, sob a forma daquela
mulher, ela fica com raiva e joga a criança para o índio, o que significa que ela
a oferece àquela coisa peculiar que ela representa. Como se ela dissesse: “Eu
sou essa mulher medieval e eu ofereci a minha criança à cruz, mas desde que
tu atuas desta modo, então maldito, podes tê-la. E agora, leva-a contigo”.
Como vêem, ela se rebela contra aquela nova coisa dentro dela, que não é
respeitosa e desconsidera a sua medieval intenção cristã. Então,
instantaneamente, o futuro, a criança transforma-se e toma um aspecto
44

inteiramente novo. É agora dois cabritos... Isto apontaria um começo


inconsciente, um futuro que é ainda inconsciente para ela, mas no qual sua
libido pessoal expressar-se-á em forma de cabra... Nos afrescos da Villa dei
Mysteri, perto de Pompéia, onde as mulheres foram iniciadas nos cultos
dionisíacos, a mulher a ser iniciada aparece com dois pequenos cabritos,
indicando que para ela torna-se clara a sua conexão absoluta com a natureza...

Depois continuaram e de novo subiram a montanha... E agora, para ela, a idéia


de que está seguindo aquele pastor é bastante opressiva, sendo ela mesma dois
cabritos; isto é bastante desagradável e ela está repleta de dúvidas. De novo
pensa assim: “Como uma mulher cristã, quem deveria seguir? Certamente não
o índio, mas Cristo”. Mas ela é já tão cabra, que segue o pastor, i. é, segue,
instintivamente, o índio e deixa a cruz para trás. Nessa visão não há escolha,
ela vê isto, simplesmente ocorre assim e, observem, ela não está ainda lá,
antes disto terá que passar por muitas experiências, antes de chegar lá.

[No resto da visão ela joga uma rosa vermelha ao índio e um avestruz está se
juntando ao grupo. EDITOR].

O avestruz indica que ela põe sua cabeça na areia para não ver. Não ver o que?
Bem, a situação inteira, porque ela se entrega ao índio de corpo e alma, e é
melhor não ver isto, porque ela tem medo, o que é perfeitamente
compreensível. Como percebem, as coisas estão se movimentando, o grupo
vai adiante, o sonho volta no tempo e eles chegam a templos gregos.

A visão seguinte é muito misteriosa.


FIGURA DA PÁGINA 37
45

Visão: Eu vi uma face com os olhos fechados. Eu


Eu rogava à face: “Abre teus olhos olha nos
meus olhos para que eu possa vê-los”. (Ela usa
uma linguagem bíblica, mostrando que essas
coisas têm um caráter hierático para ela e já não
são mais material fantasiado). Então a face
tornou-se muito escura e lentamente eu vi o que
ninguém devia ver: olhos cheios de beleza e
sofrimento e luz, e eu não podia mais suportar
isso.

Essa é a primeira visão em que ela é


positivamente atingida; até então ela viu as
coisas, mas agora isto vai “embaixo da pele”.
Mostrarei o desenho que ela fez. É um animal,
uma face escura e hirsuta, com o lho melancólico
do animal. O que realmente ocorre é que ela
viajou para trás, não apenas para a antiga Grécia,
mas muito mais no passado; os animais a levaram inevitavelmente para a
época dos animais. Esse é, como lembram, o propósito dos mistérios
dionisíacos: levar as pessoas de volta ao animal; não àquilo que nós
conhecemos como animal, não para se identificarem com ele, como nós agora
entenderíamos, mas ao animal dentro delas. Essa visão era como o fundo,
realmente. Ela olha diretamente nos olhos do animal e eles estão cheios de
sofrimento e beleza, porque eles contêm a verdade da vida, uma soma igual de
dor e prazer, a capacidade de ser alegre e a capacidade de sofrer. Por isso o
olho é extremamente perturbador como é o olho do primitivo; o olho do
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homem muito primitivo e inconsciente e o olho do animal têm a mesma


expressão peculiar daquele estado mental antes da consciência, e que não é
dor nem prazer. Não se sabe exatamente o que é, são os dois. Isto é que ela vê
e não entende o que é.

Ela olha a alma do animal e essa é uma experiência que ela devia ter, senão
está desconectada da natureza. Essa é uma experiência que cada um deveria
ter, para encontrar de novo a conexão com a natureza dentro de si; isso é como
a sua própria natureza e como o Deus dos primitivos. Da mesma maneira
poderiam dizer: esses são os olhos do principiar, do criador que era
inconsciente, porque no princípio tudo era inconsciente; nós não sabemos o
que é isto em si porque certamente, se estamos dentro do animal não nos
sentimos inconscientes, mas essa é exatamente aquela coisa que, do nosso
ponto de vista, denominamos estar inconsciente. Não posso entrar num
argumento filosófico sobre isso, mas podem ver que é vem possível: naquilo
que nós chamamos estar inconsciente – isto é, a soma de conteúdos
autônomos – cada conteúdo tem uma consciência em si. Por que não?

O nosso consciente é apenas um complexo autônomo há também outros


complexos e cada um desses pode ter uma consciência independente: e é bem
possível que a soma total dos estados consciente e inconsciente tenha um
centro ao qual seriam relacionados os complexos autônomos e isto significaria
consciência, porque essa é a única definição do estado consciente que
podemos produzir: que o estado consciente é o fato que as coisas estão
associadas com o centro EGO. Assim, sempre que há um tal centro, é bem
possível que lá haja estado consciente. E então, aquilo que nós chamamos
47

inconsciente poderia ser uma outra forma de estado consciente, consciência de


algo mais em alguém mais.

Então, decerto, se a nossa paciente chegou a essa camada, ou àquele fundo,


poderia ser dito que ela passou pela experiência essencial dos mistérios
dionisíacos, o que então, cria uma ponte entre ela mesma e o homem original,
o ser humano primordial oculto debaixo das camadas históricas do passado. E
depois disso há uma chance de que as coisas se endireitem e se tornem
justamente assim como deveriam ser, porque o modelo original é desvelado e
a lei original de novo explicada . Nessas condições as coisas tomam aquele
trajeto que devem tomar necessariamente, porque já não há possibilidade de
perder de novo a conexão, a brecha entre o homem e a natureza está abolida,
existe de novo a ponte e assim, a possibilidade de criar sistemas dissociados
para os quais ela poderia desviar, está abolida já em princípio. Naturalmente é
ainda possível em certa medida, mas a possibilidade de correção está sempre
presente e mais provavelmente ela não quererá arriscar emaranhar-se em
sistemas ou idéias arbitrárias.

Aqui, essa mulher Chega a tocar o segredo, e a conexão com a terra é


estabelecida; ela não pode mais desviar-se em fantasias conscientes, em
invenções da mente consciente, coisas que a cegaram anteriormente, já que
agora o fundo foi atingido. Vejam, essa é uma experiência tão convincente,
uma revelação tão espantosa e extraordinária que não é possível afastar-se
dela. Torna-se uma verdade. Uma verdade que, certamente, não podem provar
para ninguém, não podem dizer: “Eu olhei nos olhos do animal”. As pessoas
diriam que estão loucos, mas para o indivíduo é uma experiência profunda e
fora do comum, que contém a verdade absoluta.
48

Sente-se algo dessa coisa estudando-se os resíduos do culto eulesiano;


encontram-se lá confissões de impressões tremendas daqueles que receberam
tais iniciações. Isto explica porque viveram esses mistérios mais do que mil,
talvez 1500 anos, durando até 622 d.C., quando foram abolidos por decreto do
prefeito bizantino. Não é certo que tenham permanecido durante tanto tempo
na sua forma original, mas naquele tempo houve um decreto contra eles. Na
antiguidade representaram a coisa mais sagrada. Se alguém sussurrava apenas
uma palavra sobre eles podia ser imediatamente morto, era até um dever matar
essa pessoa. Esta é a razão porque não temos quase nenhum conhecimento
sobre eles; mas os poucos fragmentos que possuímos indicam a realidade de
experiências extraordinárias.

Agora essa visão tem o valor de uma tal experiência e a grande emoção que
ela sentiu quanto viu aquela coisa, prova a sua realidade, o que quer que ela
signifique. Nós apenas tentamos entende-la em termos psicológicos, mas
naturalmente não podemos indicar sua profundidade, a não ser que a
tivéssemos tido. Mas ao menos podem imaginar que chegando a essa
profundeza, bem abaixo de toda a história, nas regiões do nosso sangue, deve
ser mesmo uma experiência sobrepujante, porque entra-se numa esfera mental
ou psicológica que é ainda uma com a natureza, a qual, evidentemente, é uma
coisa inteiramente diferente da nossa consciência

Agora ela tem que voltar

[Resumo: A visão seguinte é comprida. Nela o índio envolve-se num conflito.


Depois, na multidão dos adoradores do Sol, oferece-se em sacrifício, mas não
49

fazem nada a ele. Mais tarde fica ferido por uma flechada e retorna à sua tribo.
Lá todos os animais o saúdam com grande alegria. EDITOR].

A coisa principal para se notar aqui é que o séquito dionisíaco desaparece e só


resta o índio. Aquele séquito dionisíaco era necessário para leva-la de volta à
experiência inicial do inconsciente, à identidade com as coisas “embaixo”, à
experiência do ser na origem das coisas, à alvorada da consciência; o
movimento seguinte será para frente. Como vêem, a volta na história é como
uma espécie de sacrilégio; nessa regressão ela viu coisas sacrílegas, o
abandono do cristianismo e também a passagem pelos templos gregos – tudo
foi deixado para trás como se nada significasse.

E agora ela tem que voltar. Ter tocado o animal é, naturalmente, algo que
podia tê-la retido embaixo, podia ter sido aprisionada pelo animal, e assim
agora ela tem que aprender o sentido de todas as religiões, de todos os cultos,
e tem que mover-se para cima, desde o início da consciência até os tempos
modernos. Primeiro ela atravessa aquele grupo eu adora o Sol, e o Animus
agora é submetido a uma tortura, o que poderia significar um antigo culto
índio...

Ela fez um desenho explicando a situação. O índio está no centro, o Wol em


cima, à direita e à esquerda flechas, e no lado direito há fogo e no esquerdo
água. Obviamente, a situação está sendo caracterizada pelos pares opostos
quente-frio, fogo e água e flechas na direita e na esquerda. É uma condição de
conflito... Nessa situação, então... o índio mostra como ela pode suportar a luta
com estoicismo índio e com um tipo de convicção religiosa, sendo a relação
com o Sol, a luz que o orienta. No fim, ele é liberado dessa tortura e pode ir
50

embora, para o seu povo. E quando volta a eles, liberado daquela tortura,
ocorre o “apocatastasis”. Trata-se de novo de uma antecipação... Os animais
alegram-se, tudo é reconciliado, o ser humano com o animal, o animal com o
ser humano, um tipo de condição paradisíaca.

O conflito da paciente vem do fato de que ela tocou o fundo, olhou nos olhos
do animal e assim a alma animal entrou nela; ela foi unida ao animal, à parte
mais profunda, ao inconsciente coletivo, e essa, evidentemente, é uma
experiência inesquecível, a qual prender-se-á a ela e causará, inevitavelmente,
um tremendo conflito na sua vida.

Talvez dirão que esse é um efeito bem deplorável; mas devem saber, se não
sofrem tal conflito, estão apenas inconscientes dele, porque quer o
experimentem conscientemente quer não, ainda está lá. Em um dos casos,
experimentam algo que não entendem, não sabem porque sofrem e estão
absolutamente insatisfeitos com o modo pelo qual Deus leva o mundo adiante,
achando que é muito estúpido da parte dele tortura-los dessa maneira; no outro
caso, sabem porque sofrem porque há um sentido nisto. Quando se tem esse
tipo de experiência como a paciente teve, então sabem contra o que estão se
arvorando, sabem que sentem o animal em si mesmos do mesmo modo como
sentem também a pessoa civilizada, sabem que o conflito vem do querer ser
um animal do mesmo modo como querem ser um ente espiritual e então não
podem culpar ninguém por estarem em tal provação...

Assim, esse conflito da paciente não é tão deplorável; ela é muito feliz
sabendo do que se trata, porque então sabe que é a responsável, “mea culpa,
mea culpa”, “é o meu pecado”. E ela, ao menos, deixará em paz os outros, ao
51

passo que aqueles que não sabem do seu próprio conflito, sempre estão
querendo melhorar os outros. Então andam por aí, bufando sobre educação, ou
são ralhões habituais ou atuam representando a consciência pública. Sempre
interferem em assuntos dos outros e, naturalmente, estão numa condição
miserável, porque é uma neurose, não perceber seu próprio conflito. Assim,
ela é bem sucedida, apesar do fato de que é bem difícil não ser mais criança.

 Visão (continuação): O touro levantou do solo um infante e levou-o a


uma antiga estátua de mulher, deixando a criança a seus pés. Uma
jovem, nua e com os cabelos coroados com flores chegou, montando
um touro branco, pegou a criança, jogou-a para o ar e segurou-a de
novo. O touro branco levou-as a um templo grego. Aqui a moça deitou
a criança no chão. Por uma fresta no teto irradiava um raio de sol. Esse
raio tocou a criança na testa, imprimindo lá uma estrela. Ela
transformou-se num jovem que estava num bosque sagrado. Apareceu
um sátiro e perguntou: “Por que estás aqui?”

Bem, o infante, naturalmente, é a personalidade recém-nascida dentro dela,


porque descer ao animal significa uma espécie de jornada noturna no mar, que
é a vida entre a morte e o renascimento (simbolizada pelo trajeto noturno do
sol), a vida no útero. E quando sai disto, recomeça a vida nas raízes de um
longo desenvolvimento, primeiro como criança. E agora o touro, o poder
pleno da primavera, leva o infante até a antiga estátua de uma mulher. A
atmosfera, obviamente, é grega – não mais exatamente uma civilização
primitiva; agora é uma civilização mais alta, mas de natureza antiga. E depois
a jovem nua, montando um touro branco. Isto é muito semelhante ao quadro
tão conhecido de Europa montando no touro que é Zeus. Naturalmente esta é
52

uma idéia muito antiga. É uma antecipação daquilo que poderia tornar-se essa
pequena criança se continuassem no nível antigo. A jovem, a antecipação do
futuro, agora pega a criança e a joga ao ar como se fosse uma bola, o que
significa que a nova personalidade, nessa fase, está absolutamente nas mãos
da tendência antiga. Bem, isso é um tanto perigoso e essa é a razão pela qual
as pessoas temem o inconsciente coletivo: porque são vítimas absolutas dele,
tornando-se tão desamparadas como crianças e então tais visões podem jogar
com elas, empurrando-as como se fossem bolas, e não há defesa contra isso.

No subseqüente, a moça da antiguidade põe a criança no chão e desce aquele


raio de sol que marca um certo ponto na sua testa com o símbolo de uma
estrela. Esse é um símbolo que eu só poderia elucidar por um paralelo na
filosofia hindu. Sabem que a luz tem sempre o valor de estar consciente: é o
primeiro raio da consciência que atinge a criança, e por isso toca a sua testa,
porque esta é tida como a sede da forma mais alta do estado consciente.

Agora ela tornou-se o filho do sol, do Deus na forma antiga, uma estrela ela
mesma, o que significa que ela agora está continuando sua união ou comunhão
com a natureza num nível muito mais elevado, num nível quase universal,
cósmico. Isso não é poesia, vejam, é história, é psicologia. Não pensem que as
coisas que falo são metáforas poéticas. Se conhecem a história dos cultos e
mistérios e as religiões comparativas, então sabem que se trata de metáforas
sagradas nas quais a psicologia humana expressava-se desde tempos
imemoriais; elas não teriam vindo à existência se não correspondessem a fatos
psicológicos viventes e reais, e na medida em que fatos psicológicos são fatos
reais, tais metáforas são igualmente reais, salvo se forem usadas meramente
como palavras. Se os atingem apenas como palavras poéticas, meramente
53

como metáforas, então a falha está nos senhores. Cada um que teve
experiências correspondentes saberá que tais palavras são as tentativas
inadequadas para caracterizar fatos psicológicos altamente poderosos, os quais
podem transformar completamente seres humanos.

E agora, a visão continua. O Animus conduz de novo. A mulher saiu por certo
tempo do mistério, como que deixando o papel ativo para o Animus, porque
transformou-se em um jovem que está num bosque sagrado, quando um sátiro
aparece e pergunta: “Por que estás aqui?” Então o sátiro é a razão pela qual ela
saiu de repente do processo, porque encontrar-se com um sátiro é algo
embaraçoso, até desagradável e como sabem, ela é uma mulher educada, e
assim quando o sátiro emerge, ela, mui naturalmente, retira-se com muita
decência, deixando seu lugar a um homem, isto é, manda seu Animus para a
frente e diz: “Agora vá você. Sinto o cheiro de um rato, então vá você por
mim. Lá dentro há um sátiro...”

Já que a situação é embaraçosa, como sabem, algo tem que acontecer. Então,
de repente, avista aquele jovem em pé, irracionalmente, na proa de uma canoa,
com uma lança levantada.

 Visão: A canoa aproximou-se de um penhasco, uma espécie de muro de


rocha e o jovem jogou sua lança contra o penhasco, onde ela fixou-se e
uma gota de água saiu do lugar atingido. A canoa, então, estremeceu e,
desaparecendo, deixou o jovem na rocha. Ele olha na água e vê a face
de uma mulher. Pulou
54

FIGURA DA PÁGINA 40

na água seguindo-a, e
chegou a uma caverna em
que haviam três bruxas;
elas disseram que haviam
vindo da terra do
abençoado. Ele tirou um
dente da boca de uma das
bruxas e saiu correndo da
caverna. Depois foi
atacado por animais
selvagens e bravios e
chegou a sangrar de muitas
feridas. Depois apareceu
um velho que expulsou os
animais selvagens.
Embrulhou o jovem num
cobertor e deitou-o na rocha com o rosto voltado para o céu, e nesta noite
houve um círculo de fogo que desceu e ardia numa roda flamejante em redor
dele. Então o jovem disse: “Eu sou o sacrifício” e o fogo o consumou. Do seu
peito elevou-se um pássaro branco que voou além das chamas.

Agora, essa coisa que ocorre depois, explica plenamente porque tivemos tanto
vexame anteriormente. Como vêem, o sátiro é uma alusão ao Deus-bode, ou
55

ao homem-bode; ele é simbólico, quase divino; ela tem medo de encontrar-se


com Deus, então manda o Animus e ele também se encontra numa condição
bastante perplexa. Depois é como se saísse para uma nova busca, porque não
pode continuar com aquele sátiro. Sai com uma canoa e depois atinge a rocha
com sua lança, o que significa uma forma de abrir caminho; e o encontra, ou
encontra a água, uma espécie de milagre, e depois viram o que aconteceu: ele
sta na rocha a aparece uma mulher que é a paciente mesma nas profundezas do
inconsciente. Ela fez-se inconsciente para não deparar com aquela situação
embaraçosa e ele seguiu-a até aquela caverna onde há três bruxas, como
sabem, as três mulheres fadas que tecem os fios do destino, ornando-os com
rosas cortando-os com tesouras. E ele comporta-se de modo bastante rude,
porque de acordo com o mito grego, elas têm apenas um dente e ele o tira
delas: obviamente ele retira um item desagradável, roubando o destino de um
mau aspecto. Mas isto é uma violação contra a sina, é algo que não deve ser
feito, é uma prepotência e por isso ocorre depois o ataque dos animais
selvagens. Podem ver que essa é uma punição típica para todos os heróis
gregos que entram na “hybris”.

O que é hybris? Não é exatamente orgulho, antes uma arrogância presumida.


A palavra alemã é übermut (audácia insensata, petulância atrevida). É uma
intensificação da coragem que camufla uma insolência ou estupidez contra os
deuses e o castigo pela assumpção da divindade é o desmembramento, o
chegar a ser dilacerado, como ocorreu por exemplo com Dioniso Zagreu. Ele
foi rasgado em pedaços pelos Titãs, pelos próprios poderes criativos. E
também este jovem que tentou roubar o destino do dente venenoso, é
desmembrado ou dilacerado por animais selvagens porque, resistindo ao
destino ultrajando-o, coloca-se em oposição a ele, o que não devia fazer,
56

porque a sina contém a vontade divina e ninguém deve opor-se a esta. Mas ele
é salvo pelo ancião. Isto é, de novo um motivo típico dos contos de fadas:
sempre, no momento supremo, alguém aparece para ajudar; ele teria sido uma
vítima, sem qualquer recurso e os animais selvagens o teriam destruído se não
tivesse acontecido a intervenção daquele velho. Ele é o velho sábio, o pagé,
que entende a fala dos animais, que é o senhor dos animais e assim pode
mante-los domados. Dessa forma o jovem é salvo, mas salvo para algo
melhor, para o sacrifício divino. Não é capaz de escapar da necessidade de
tornar-se a vítima dos deuses, mas numa forma diferente. Assim, durante a
noite, aquele círculo de chamas desce do céu e o consome, o que é o sacrifício
sobre o altar.

Percebam: esse é o efeito do velho sábio que faz dele um sacrifício voluntário,
não um sacrifício às paixões desenfreadas mas um cumprimento consciente do
destino. Ele é consumido por chamas mas o pássaro branco sai do seu corpo e
eleva-se no céu; esta é a libertação da alma imortal, representada desde
tempos imemoriais pela alma-pássaro. Agora mostrarei o desenho. Podem ver
o círculo de chamas descendo de cima e a idéia é que aquele círculo
flamejante desce sobre ele e o consome, e está lá o pássaro branco voando
para cima, para o céu.

Deixo agora a visão seguinte que lida com a união com o Deus belo. É
realmente a união com o Animus, aquele jovem que, pelo fogo, passou por
uma transformação – no fogo adquire qualidades divinas; ele é sacrificado e
por isso alcança a divindade. Então ela é unida a ele o que significa que o
papel do Animus por enquanto terminou. Cumprindo o ritual de auto-
sacrifício, mostrando-lhe o que ocorrerá, entregou a ela toda a sua força,
57

entrou nela e agora ela é ENTHEUS, o que significa que ela está infundida por
Deus. Estando nossa condição, naturalmente, terá que encarar aquilo de que
recuou e... a visão continua.

 Visão: Eu vi um sátiro embaixo de uma arvore tocando uma siringe. Ele


levantou-se. Grandes estrelas caíram sobre ele e um feixe muito
brilhante de luz movimentava-se através de sua face. Eu só podia ver
seus olhos, que eram verdes. Tratei de repartir o feixe de luz que
ocultava seu rosto de mim, mas não consegui. Ele estava com as palmas
das mãos estendidas para mim. Rastos pelos de seu peito e jogou-os
para cima. Ao fazer isto os pelos transformaram-se em pequenas
chamas. Depois ficou escuro. Ele agachou-se e soprou sobre um fogo.
Eu roguei que falasse comigo. Ele colocou um manto azul sobre mim e
pérolas no meu pescoço. Eu ajoelhei perante ele. Então ele falou a mim,
dizendo: “Eu sou o Imortal, Eu sou o Passado, Eu sou também o Futuro,
tu me conhecerás”. Fez o sinal da cruz sobre o meu rosto e sobre o meu
peito. Depois desapareceu e eu não o vi mais.

Agora podem ver, essa experiência com o sátiro toma um rumo interessante,
diferente do que ela esperava. Porque se eu dissesse a algum dos senhores:
“Há um sátiro lá, vá então”, provavelmente ele não faria isso, a não ser que
fosse psiquiatra ou policial. Ela estava com medo, naturalmente, então recuou
e deixou o lugar para o homem, para o Animus. Mas agora confronta-se com o
sátiro e a situação é totalmente diferente das suas expectativas. O que ela
esperava era algo indistinto, algo sexual, e naturalmente é Deus. Esse é o
preconceito quando falamos de animais. É difícil dizer a alguém que deve
assimilar o seu animal, tornar-se familiar com seu animal, porque as pessoas
58

logo pensam em um asilo para psicóticos, pensam num animal que pula sobre
os muros e cria uma situação infernal na cidade inteira. Mas o animal é um
cidadão bem comportado na natureza, é devoto, segue seu caminho com
grande regularidade e nada faz de extravagante. Só o ser humano é
extravagante, o animal nunca. Assim, se assimilam a natureza do animal
tornam-se cidadãos que permanecem peculiarmente dentro da lei, que andam
mui lentamente e na medida em que podem, que fazem tudo de modo
razoável, porque é muito difícil ser razoável. Isto é bem diferente daquilo que
supõem ser o animal, porque só o ser humano pode comportar-se de modo
ultrajante. Já viram um animal ficar bêbado em coquetéis? Esse é o homem, só
o ser humano pode fazer isto. Nós temos uma idéia inteiramente errada sobre
o animal.

FIGURA PÁG. 42
Esse é o desenho do seu
confronto com o sátiro.
Podem ver que o os olhos
verdes e as chamas que
caem sobre seu peito; são
símbolos da emoção, ela
justamente tem
‘cocegazinhas’ de emoção,
muitas pequenas chamas
estão prontas para
inflamarem numa grande
labareda, as esperanças
que querem fazer dela uma
59

grande chama. Mas nada


disto acontece. A mulher é

A paciente mesma, com o manto azul e o colar de pérolas. E esse sátiro, bem
peculiarmente, está sem genitais, o que evidentemente é bastante incomum
num sátiro, porque a forma costumeira é andar com genitais bastante vistosos,
como conhecemos de pinturas antigas. Assim, agora podem ver como é
realmente o animal “dentro” e que Deus é o espírito do animal. Ela esperava
algo muito repugnante mas o que aquele espírito de animal faz é colocar um
manto celestial sobre ela, o manto azul de Maria e doar a ela um colar de
pérolas que são, naturalmente as lágrimas de Maria, a tristeza junto à
divindade. Ele a coroa para os mistérios. Isso é que faz o espírito do animal.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE III

Seminários entre 13 de janeiro a 25 de março de 1931

SPRING 1962
2

Iniciação

Essas séries de visões avançaram agora para um ponto muito importante, isto
é, até a visão do sátiro, que é o Deus Pan. Lembrem, eu comparei essas séries
de visões com o decurso dos fenômenos mentais que ocorrem durante uma
iniciação. Agora, naturalmente, o processo da iniciação é algo do qual muito
pouco é conhecido. Lendo sobre a iniciação dos primitivos, pensa-se que se
está lendo alguma coisa inteiramente nova; e lendo sobre os mistérios antigos
sente-se que se chegou ao fim do conhecimento e da compreensão humana,
porque se depara com a mais espantosa psicologia. E esses assuntos não são,
geralmente, conhecidos embora os especialistas, naturalmente, saibam sobre
eles. Os fatos psicológicos correspondentes, com os quais estamos lidando
aqui, são também pouco conhecidos – ainda não foram descobertos – mas eu
encontrei uma boa quantidade de coisas sobre eles...

Essa série inteira de fenômenos decorre em uma espécie de fragmento de


mente. Não é a psique inteira da paciente, mas apenas uma parte da sua psique
que está tendo a visão. Nas iniciações primitivas a estrutura da mente do
homem a ser iniciado era diferente do seu estado mental quando estava
pescando ou caçando; ele não estava no estado cotidiano da sua consciência. E
a paciente também não estava no seu estado cotidiano de consciência quando
passou por estas experiências. Devem perceber que alguém que passa por este
processo está num estado exaltado e, naturalmente, uma experiência em uma
tal condição é bem diferente de uma experiência tida numa condição ordinária.
Essa ultima visão de Deus é muito inusitada; tem todas as características de
uma antiga imagem dionisíaca, do mesmo modo como o estado inteiro da
3

mente em que a visão ocorreu é de cunho dionisíaco... Podem dizer-me, por


que é tão importante que ela realize este conceito particular de Deus?

Sugestão: Ela é de origem puritana e o conceito dionisíaco está muito distante


dela; assim talvez constitua o item seguinte para ela ver.

Dr. Jung: Sim. Por causa dos seus preconceitos puritanos, ela, na sua mente
inconsciente, anda com uma concepção muito peculiar sobre o supremo fator
psicológico – que, evidentemente, é chamado Deus – e assim, é absolutamente
necessário que ela realize essa forma inteiramente diferente como uma
compensação. Porque, como podem ver, a definição usual de Deus parece ser
algo terrivelmente abstruso e remoto, e a definição é altamente importante do
ponto de vista psicológico, porque expressa a idéia suprema sob a qual nós
agimos. Naturalmente, não podemos supor que, se há um Deus, ele seja da
maneira como nós o definimos. Ele prefere ser Si-mesmo e aquilo que nós
dizemos sobre Ele não conta mais do que o que as formigas diriam sobre o
Papa ou sobre Mussolini. Do mesmo modo como permanecemos intocados
pela opinião pública do formigueiro, assim Deus, certamente é o que é, e não
aquilo pelo qual nós definimos o que Ele é. Mas aquilo que o formigueiro diz
sobre o seu próprio princípio superior, sobre seu fator supremo, é de extrema
importância, porque mostra o conceito do formigueiro sobre si mesmo e
podemos estar certos de que mesmo um formigueiro está sendo influenciado
por uma tal concepção. Porque se o homem formula seu princípio mais alto,
isto é ele mesmo, ele formulou-se a si mesmo. Mas isto não é necessariamente
verdade. Nós falamos que o nosso Deus é amor, e podemos estar certos de que
se trata de uma compensação. Sabemos que não é verdade. Nós dizemos isto
para compensar o fato de que não amamos o bastante, que odiamos demais. O
4

nosso ideal é amor porque somos demais separados. As pessoas falam de


comunidade, de relacionamento, porque não têm nada; sempre falam de coisas
que não possuem... O modo como definem seu Deus é muito característico.

Mas na experiência prática, como na nossa visão, não se trata mais de


formulações auto-redigidas ou definições criadas para certo propósito. Aqui é
um fato. Acontece. Uma tal visão vem justamente a uma tal pessoa. Esse é o
ponto na técnica da observação de sonhos e de visões. A psique é livertada da
mera atuação arbitrária e está entregue a si mesma, a um fator que não é mais
idêntico com a nossa vontade consciente ou com a nossa intenção consciente.
Nós treinamos a paciente para que deixasse as coisas ocorrerem e assim
poderia ver o que é a sua psique; de outra maneira, ela trabalha sob a
impressão de que sua psique é exatamente o que ela quer que seja, que ela a
está fazendo. Mas se sua relação com ela é tal que poderá experimenta-la
como um fato objetivo, então saberá sobre a verdade e o valor dos eventos
psíquicos. Uma tal visão ocorre apenas, não está sendo arranjada nem
elaborada, nem procurada. Ocorre justamente do modo como aqui está
ocorrendo e tem o caráter de objetividade. Mas mesmo assim constitui uma
compensação. O preconceito original, com o qual a paciente começa, é
evidentemente, sua concepção sobre o divino, que se enquadra nas idéias
puritanas, e assim, naturalmente, o Deus aparece aqui em forma justamente
oposta. A visão de Deus é uma parte da iniciação, é a experiência da presença
vivente e da objetividade absoluta da psique... Se podem exercitar-se até o
ponto de estarem em condições de experimentar os conteúdos psíquicos como
objetivos, então poderão sentir uma presença psíquica, porque saberão que os
conteúdos psíquicos não são algo feito por nós. Eles ocorrem, e assim não
estamos sozinhos no mundo psíquico. Cada um pode ser uma ótima
5

companhia, que sabe entreter, se querem treinar-se para tomar tais coisas
como objetivas... Naturalmente, toda a gente moderna sente-se sozinha no
mundo da psique, porque supõe que nada existe lá que não ela mesma
organizava. Esta é uma ótima demonstração da nossa onipotência divina, e
que simplesmente vem do fato de que achamos que formos nós que
inventamos tudo que é psíquico – que nada teria sido feito se nós não
tivéssemos feito, porque essa é a nossa idéia básica e esta é uma suposição
extraordinária. Porque cada um está sozinho na sua própria psique, exatamente
como o Criador antes da criação... Mas através de certa exercitação, por certo
treinamento – o que é, evidentemente, uma prática de Ioga – de repente algo
acontece, que não foi criado por nós, algo objetivo, e ninguém está mais
sozinho. Esse é o objetivo dessas iniciações, treinar as pessoas para
experimentar algo que não é a sua intenção, algo estranho, algo objetivo, com
o qual não podem identificar-se. Então eles dizem: “Aqui está o objeto. Aqui
está a realidade”.

Essa experiência do fato objetivo é todo-importante, porque denota a presença


de algo que não é Eu, mas ainda é psíquico. Uma tal experiência pode atingir
um clímax, onde se torna experenciar Deus. Mesmo a coisa mais pequena
dessa espécie tem qualidade “mana”, qualidade divina. É fascinante. Um poço
mais e é a divindade total, o doador da vida. É uma experiência decisiva...
6

A regeneração da relação entre o Homem e a Mulher

 Visão: Eu vi um escaravelho que se abriu. Emergiram um homem e uma


mulher. Desceram por umas escadas até um lago e olharam suas
próprias imagens. Depois o homem entrou no lago, submergiu nele e
emergiu segurando um anel. Colocou-o na testa da mulher e o anel
incrustou-se na carne e ficou lá.

Depois da visão do grande Deus Pan vem uma nova revelação quanto à
relação entre o homem e a mulher. É como se o relacionamento entre o
homem e a mulher tivesse sido regenerado (já que o escaravelho, no Egito
simbolizava a regeneração do sol) e a dupla regenerada está agora aparecendo.
Qual seria a idéia: porque poderia ter sido afetada, por tudo que aconteceu a
relação entre homem e mulher?

Resposta: Do mesmo modo como a idéia de Deus vem em uma nova forma,
assim a idéia de amor e relacionamento tem que aparecer em uma nova forma
e esta talvez fosse um modelo inaceitável para suas idéias convencionais?

Dr. Jung: Sim, e podem ver que a forma convencional é idêntica à atual
suposição da consciência de que está sozinha e de que todo que acontece
psiquicamente seria uma invenção arbitrária sua. Se alguém pensa o mesmo
sobre o amor, então existe apenas uma relação amorosa dentro das formas
convencionais, nada mais existe, nada mais ocorre. Assim, se ela tiver uma tal
7

experiência da realidade psíquica, em geral, isto é, se algo acontece que ela fez
e que não é responsabilidade sua, então, naturalmente ela tem que admitir
também a possibilidade de que algo pode acontecer nos seus sentimentos que
não tenha sido inventado por ela e que se encontra fora dos moldes do
convencional. Isto, naturalmente, projeta uma luz inteiramente nova sobre
tudo, e a renovação do relacionamento entre homem e mulher constitui
apenas uma aplicação desta nova luz... Qualquer coisa pode ocorrer e não
pode ser negada, percebem? Ao passo que a consciência convencional sempre
parte da suposição de que é possível negar o sentimento, da maneira como está
fazendo, porque não quer sentir “daquele jeito”. A convenção lida com tal
problema como se assumíssemos a responsabilidade pela maneira como
sentimos, mas isto é absolutamente impossível, porque nós não inventamos tal
espécie de sentimento. É como se eu dissesse: “Não me levem a mal pelo fato
de que o tempo hoje é inclemente...” O fato é que eu não sou responsável pelo
tempo. Assim, sair do escaravelho é como o levantar do sol... É simplesmente
a chegada da luz... Ela está, de certo modo, “iluminada”. Agora ela está dentro
do quadro – e já sabem como é importante isto – e vê os seus relacionamentos
de um modo novo... Está vendo seu sentimento sob uma luz nova e essa
renovação é devida à visão do Doador da Vida, do Deus da Vida, do Grande
Pan. Assim, podem ver, a realização que ocorre aqui está dentro da
experiência do mistério, é uma parte da experiência do mistério.

Com o mistério, no entanto, ocorre certa exaltação.

Tal condição, fora do normal, de forma alguma é patológica. Desde que a


humanidade existe, houve sempre uma espécie de exaltação religiosa. É uma
tentativa para chegar a uma forma mais alta de consciência, o que é legítimo.
8

Mas devem estar em condições de desliga-la e voltar de novo à sua assim


chamada condição normal... Numa condição exaltada não é necessário estar
no espaço e não necessariamente estar no tempo, mas isto deve ser sabido e
isto é exatamente o que os mentalmente desequilibrados não sabem. Tornam-
se insanos porque não têm a mínima idéia: o que estão experimentando. Uma
pessoa normal sabe que certas coisas pertencem ao nível da consciência
cotidiana e outras a um nível mais elevado de consciência. Até é possível que
uma certa coisa pertença a ambos os níveis de experiência, isto é, que a
atividade ordinária possa conter um aspecto que não tem nada a ver com o
nível físico., mas pertence a uma consciência mais elevada. Mas na medida
em que pertence àquela consciência, tem o caráter numinoso ou de tabu; por
isso é extremamente imprudente deixa-lo aparecer na esfera da vida ordinária.
É necessário para nós – como psicólogos – fazer todas as distinções, senão,
não poderemos capacitar as pessoas para completarem suas vidas. As pessoas
necessitam experiências em um nível mais exaltado; é absolutamente
impossível para elas juntar todas experiências em um nível mais exaltado; é
absolutamente impossível para elas juntar todas as suas experiências no nível
físico apenas. Essa é a razão das religiões – porque anteriormente as religiões
tiveram algo com a exaltação...

A última visão contém a realização de um aspecto do relacionamento entre


homem e mulher bem diferente do relacionamento deles num nível físico ou
convencional. Percebam eu falo de físico ou convencional e podem ficar
espantados por eu coloca-los como absolutamente idênticos. A convenção,
porém, nada mais é do que a verdade média. Da mesma maneira como o
código penal pode informar o que é possível ser feito com segurança, até que
ponto é possível ir, de modo semelhante as convenções são justamente os
9

pólos que indicam até que ponto é possível arriscar-se no nível das visíveis,
isto é, nesse mundo convencional. Mas há uma outra maneira de
relacionamento entre homem e mulher que, obviamente, pertence a uma
ordem diferente das coisas. Pertence à condição exaltada.

Agora, isto é um reconhecimento altamente importante e é seguido


instantaneamente pela imagem de uma união que é de natureza muito divina,
isto é, o anel que o homem traz das profundezas do lago e insere na carne da
testa da mulher. Isto significa pensamento. Vejam, o anel comum que está no
seu dedo pode ser retirado; mas quando inserido na carne, incrustado na carne,
é uma coisa diferente, mesmo retirando-o por um corte, deixa cicatriz; está
mais seguramente fixado do que no dedo, E isto é, evidentemente, a idéia... O
lugar na testa indica a sede do pensar, da consciência suprema, e se alguma
coisa acontece lá, aponta que tem algo com o processo da individuação,
porque consciência suprema e individuação são idênticos.

Assim, o relacionamento realizado pela paciente está inteiramente conectado


com a sua própria individuação e, ao mesmo tempo, é importante como uma
experiência num nível elevado, o que a fez “duas-vezes-nascida”, como dizem
na Índia. As estátuas de Buda, por exemplo, têm uma certa marca na testa: é o
sinal do indivíduo com consciência despertada, duas vezes nascido, que já
passou pela iniciação. Assim, essa marca significa que a mulher passou pela
iniciação, mas, naturalmente, naquele tempo, nem ela nem eu realizávamos
isto... A visão, porém, indica realmente o momento da iniciação completa, ou
da individuação, isto é, ela está definitivamente tocada ou marcada, como o
criminoso era marcado na sua testa com uma queimadura – ou é a marca da
“escolhida”... Ela era justamente como alguém que acredita que duas vezes
10

dois pode ser cinco ou seis ou talvez quatro, mas não tinha certeza, e daqui
para diante sabe que duas vezes dois é quatro, e nunca esquecerá disto. Tal
iluminação ou realização tem aquele caráter inesquecível. Por isso, têm todas
essas experiências o caráter do divino, da imortalidade. É como se tivesse
acontecido algo de natureza eterna.

Dionisíaco e Apolíneo

FIGURA PÁG. 45
Visão: Eu vi um belo
jovem com címbalos de
ouro, pulando alto no ar
com alegria e
despreendimento. Era
seguido por cachorros que
também pulavam. O
cabelo do jovem era preto
e em redor de suas virilhas
havia pele de leopardo. Ele
foi ao encontro de um
velho com turbante e uma
foice, parado com os
braços estendidos. O
jovem parou e os címbalos
cairam. O velho mirou a terra e flores brotaram aos seus pés. O jovem caiu ao
solo e enterrou sua face nas flores. O velho ergueu o rosto. Suas faces eram
escuras, mas seus olhos eram brancos. Ele era cego.
11

Aqui temos de novo o caso em que o Animus assume a liderança. No


seminário anterior já expliquei que numa situação em que os conteúdos estão
demais distantes da consciência, de modo que esta não pode realiza-los, então
serão atuados ou representados pelo Animus, como se ele estivesse
interessado neles. (Assim é no caso de uma mulher. No caso de um homem,
evidentemente, a atuante seria a Anima).

Durante a dança do jovem aparece um velho, descrito como um tipo oriental,


com turbante na cabeça, que está parado, com os braços estendidos e tem um
efeito peculiar sobre o jovem, que pára e deixa cair os címbalos, mostrando
que o velho obstou seu entusiasmo... Esse velho está no lado apolíneo,
evocado por aquilo que o lado dionisíaco propõe. Tudo isso é performado pelo
Animus. Quando um aspecto dele emerge de maneira dionisíaca, isto
instantaneamente evoca o outro lado (apolíneo).

[Comentário: Trata-se dos dois tipos postulados por NIETZSCHE. Jung


apresenta-os mais detalhadamente em Tipos Psicológicos. (Em português: O.
C., vol. VI. Ed. Vozes, Petrópolis)]

Um resumo breve, apenas informativo, sobre as características dos dois tipos:


1. Apolíneo: Artes plásticas, sonho, visão interna, o reflexo belo dos
mundos oníricos, do mundo interno: a base de todas as forças
formativas, das cifras e delimitações e o domínio sobre tudo que ainda é
selvagem e indomado. É a “majestosa imagem divina” do “princípio da
individuação”. Percepção das imagens internas de beleza, da medida e
dos sentimentos domados pelas proporções adequadas. Percebe-se como
12

um estado de introspecção, de contemplação do mundo onírico, das


ideais eternas, isto é, o estado da introversão.

2. Dionisíaco: Música, êxtase, estado inebriado, enlevado, embevecido.


Libertação sem limites das pulsões, o irromper dos dinamismos
indomados de natureza animal e divina. Por isso, no coro dionisíaco, o
ser humano aparece como sátiro, meio deus, meio animal. É o horror
perante o rompimento do princípio da individuação, e ao mesmo tempo,
o extasiar deleitoso com o acontecido. Nesse embevecimento dissolve-
se o individual em pulsões e conteúdos coletivos numa explosão do Eu
até então fechado. Os seres humanos encontram-se entre si e também a
natureza alienada, animosa ou subjugada, celebra sua festa de
reconciliação com seu filho perdido, com o ser humano. Cada um destes
sente-se “um” com seu próximo e não apenas unido, reconciliado ou
fundido. Essa expansão dionisíaca corresponde à extroversão.]

Este princípio está expressado pelo velho, obviamente uma espécie de Velho
Sábio. Ele faz parar a manifestação dionisíaca, o que significa, simplesmente,
que o raciocínio inconsciente da paciente passa por uma alteração, já que
ambos estes aspectos do Animus, na realidade representam opiniões
inconscientes sobre o trajeto que o seu futuro desenvolvimento interno deve
tomar... Agora o velho mostra o seu trajeto, que é bem diferente daquele do
jovem; ele está parado, como que enraizado, e mira o solo, do qual flores estão
brotando. O jovem, então, cai no chão e enterra o seu rosto entre as flores.
Como percebem, isto é simplesmente a demonstração de dois movimentos
contrastantes; o primeiro seria o modo dionisíaco, isto é, extravertido, pulando
sobre as coisas ou dentro das coisas, saltando sobre obstáculos ou passando
13

por cima dos fatos difíceis; e agora o outro princípio, apolíneo, intovertido,
que seria o não fazer nada, o não se mover, não se entusiasmar, permanecendo
contemplativo. Assim o velho mira o solo, utiliza a contemplação, e isto
produz alguma coisa, produz flores para desabrocharem e crescerem. E o
jovem, o movimento dionisíaco, acaba nessas flores. Não sei se entendem essa
fala simbólica do inconsciente. Como interpretariam aquilo que o velho está
fazendo?

Sugestão: Reflexão, de tal modo que o velho induz crescimento, sendo o


princípio interno do crescimento, e as flores desabrocham, dessa maneira.

Dr. Jung: Absolutamente certo. É a questão dos dois trajetos aqui. Um seria a
ação entusiasmada; o outro, o reflexivo, contemplativo, que também causa
algo, para ocorrer ou desenvolver-se. O velho está com turbante, o que aponta
o oriente; esse é o modo inconsciente de dar palpites sobre as coisas.

Há um outro pormenor no fato de que o velho mira o solo. Isto significa que
ele está se concentrando na terra, o que indica que esta é de particular
importância neste caso. Como se ele dissesse: “Não ande pulando por aí, não
se torne bulhento. Contemple agora a terra, porque da terra virá a última
solução”. Depois as flores emergem da terra, indicando que a solução não
ocorrerá por qualquer espécie de excitamento, ou por grandes saltos ou por
qualquer coisa deste tipo, mas por desenvolvimento lento, por um modo lento,
impessoal de crescimento.

Um outro pormenor é que o velho é cego. Isto torna-se patente só depois da


cena em que ele faz emergir flores do solo. Seus olhos são inteiramente
14

brancos e ele não pode enxergar. Este é, então, um símbolo. Na nossa mente
ocidental, quando vemos uma coisa, quase temos uma concepção intelectual a
respeito. Por isso falamos: “Não está vendo? Não está entendendo? O “ver” é
uma força de entendimento intelectual. Mas na visão consta que o velho não
vê, não tem uma compreensão intelectual, ele olha a terra sem entendimento.
Evidentemente, se traduzem isto para uma real consciência psicológica, isto
significa que, se o problema chegar à paciente, ela sentará e o contemplará
sem compreensão, com uma espécie de contemplação cega, não sabendo e não
pré-vendo e sem qualquer intenção a respeito das coisas que estarão se
desenvolvendo. E isto é importante, porque se entendem – isto é, se opinam
que sabem – se têm um modo de ver as coisas, isto é errado, porque as estarão
matando. Côo se tivessem um mau olhado, que envenena as coisas atingidas...
O olho branco significa uma condição extática, em que a pupila vira para cima
e desaparece embaixo da pálpebra; quando estão virando o olho para dentro,
impedem a si mesmos ou ao seu intelecto, por tal condição, de ver as coisas de
muito perto ou de modo muito agudo, dessa maneira destruindo-as. Nunca
devemos olhar as coisas, se queremos que cresçam. É muito melhor ser surdo
de um ouvido e cego de um olho do que ter uma percepção aguda e consciente
das coisas. Assim matam-nas. O olho agudo do nosso intelecto tem a
qualidade do olho do basilisco (lagarto ou dragão fabuloso, ao qual, na
antiguidade, atribuiram a capacidade de matar com seu olhar. Fala-se isso de
certos sapos “mágicos” também). Esse é o ensinamento do inconsciente para
essa nossa paciente que possui um intelecto muito vivo e um olho muito
agudo.

PRIMEIRA FIGURA DA PÁGINA 47 (Basilisco)


15

A renovação do Animus

Visão (Continuação): De repente o jovem solta-se no regaço de uma Mãe


Antiga.

Na parte seguinte da visão percebemos porque o velho mirava a terra,


porque...

2a. FIGURA PÁGINA 47


Não se sabe de onde veio essa
mãe antiga (mas o modo mais
adequado para entender essas
visões é encarar cada seqüência
como se fosse uma imagem
projetada, como um filme). Na
cena anterior o jovem estava
deitado no chão e enterrava seu
rosto nas flores, depois, de
repente há um movimento de
soltar e está no regaço de uma
Mãe Antiga. A paciente fez um
desenho dessa Mãe; é como uma
estátua enorme, além das
proporções humanas, antes uma
figura divina. Mas o regaço da
Mãe antiga é, evidentemente, a
16

Terra, de novo, o regaço da Mãe Terra. Já tivemos uma indicação quando o


velho mirava a terra, porque sentia que era o lugar onde alguém cresce. Se o
jovem cai no regaço da Mãe Antiga, ele pode desenvolver-se. Ele cai lá,
naturalmente, para que seja de novo carregado, para ser transformado em uma
espécie de planta no ventre da terra... Poder-se-ia dizer que este jovem tem
semelhança demais com um elfo. Então existira o perigo de pular até o céu ou
algo parecido; não tem a necessária consistência no caminho da terra, por isso
está a terra tão particularmente acentuada.

Mas esta é uma verdade geral a respeito da gente moderna. É possível tratar
casos nos quais há bastante terra, mas não bastante espírito e nesses casos
encontraremos uma insistência constante no ar, no espírito. Mas aqui a terra
está enfatizada, e na nossa civilização e no mundo da nossa consciência, o
inconsciente insiste na terra, dando-lhe, em geral, maior importância. Por isso,
digo que esta é uma verdade geral – não apenas um caso individual – que a terra
está depreciada e mal compreendida, e assim o inconsciente regularmente
enfatiza muito mais o fato do ctônico (telúrico). NIETZSCHE expressa isso de
modo muito bonito: “Dedeis tornar-nos de novo amigos das coisas mais
próximas”. E as coisas mais imediatas são a terra, esta vida. Durante bastante
tempo os nossos ancestrais – e nós mesmos – ensinávamos que esta vida não é
real, apenas passageira e só vivemos pelo céu. Era assim, porque toda a nossa
moralidade baseava-se na negação da carne e por isso o nosso inconsciente atua
freqüentemente para convencer-nos quanto à importância de viver aqui e agora.
No decurso dos séculos o ser humano repetidamente experimentou que a vida
não estava sendo vivida aqui, e que esta vida aqui vivida é apenas provisória, o
que é inteiramente insatisfatório e leva à neurose... Na medida em que se
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mantém a idéia de vida provisória, o nosso inconsciente permanecerá num


estado de irritação contínua...

 Visão (continuação): o jovem agora dá um pulo dos joelhos da mãe e


mergulha na água. Quando emerge de novo seu cabelo, que era preto,
tornou-se dourado.

Isto mostra que ele é como o Sol, o Sol renascido; quando mergulhou no
inconsciente, mobilizou um tipo de mecanismo de renascimento pelo qual ele
passou por uma mudança e agora emerge com cabelo dourado. A visão relata
uma certa movimentação do inconsciente; anteriormente o assunto era bem
espiritual, era o nascimento do homem e da mulher exaltados, do escaravelho, e
isto foi seguido pela visão de Deus, o espírito da natureza: tal visão causa,
evidentemente, uma exaltação. Olhar a imagem da deidade tem o efeito mágico
da deificação. Esta é a razão pela qual existem, por exemplos, ícones, porque
mirando a imagem sagrada produz-se a deificação... Nesse caso resulta uma
inevitável exaltação. A imagem de Deus teve o efeito deificante sobre essa
mulher, na forma do sátiro divino, um tipo de sátiro espiritual. Ela mesma
tornou-se assim, uma entidade divina e isto está em relação com o tipo
particular de pulo do Animus... Esta é a parte dela deificada. Como vêem, ela
não realizou inteiramente ainda que se tornou deificada pela visão de Deus,
apenas o Animus, e por isso comporta-se como o homem-bode divino, dando
pulos como se fosse um ente da natureza...

Sempre se aplica um mecanismo de renascimento, tanto no inconsciente como


nos momentos reais, quando alguma coisa se encontra em uma condição em que
não deveria estar. Por exemplo, se alguma coisa é “enferma” ou imperfeita, o
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rito mágico está sendo executado para renova-la. Então, se a condição semi-
divina do jovem fosse satisfatória, não necessitaria passar por uma renovação,
mas aparentemente não é satisfatória, porque o princípio apolíneo está contra
ele, e por isso é forçado a passar pela renovação. Esse momento de pular na
água tem a conotação de uma forma de ablução ritualística, de um renascimento
pela água... Isto significa que ocorrendo a deificação de um rite de sortie tem
que ser celebrado para tira-lo da condição de semi-divindade, já que a
deificação é algo bem perigoso; é uma exaltação que eleva a pessoa a um tipo
de estado divino em função do qual pode fazer coisas bem violentas como, por
exemplo, rasgar com os dentes corcinhas ou bodinhos (como fizeram as
Mênades, sacerdotisas de Dioníno), como se ela mesma fosse um animal
feroz...Depois de estar em tal condição é necessário uma “rito de saída”...

Assim o Animus dionisíaco tem que baixar para que seja purificado e lavado
nas águas. Por isso também, o seu cabelo, que era preto – com a conotação do
noturno, de desgraça – torna-se dourado, depois de estar na água.

O cabelo está sendo encarado como se fosse uma emanação da cabeça, tendo
ligação com a mente e com forças espirituais e mágicas. O cabelo preto levanta
a idéia de escuridão, idéias negras ou uma mente obscurecida e o cabelo
dourado significa consciência ou idéias claras. E, decerto, no estado de
exaltação perde-se a própria consciência e a mente se torna obscura. Mas depois
do rito de saída, supõe-se que apareça o cabelo brilhante, o cabelo luzente,
radiante...

Quando o Animus submerge na esfera corpórea e nas camadas profundas do


inconsciente entra na paciente mesma; não está mais no ar mas encontra-se na
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esfera corpórea onde se mescla com ela e assim, quando emerge de novo com
cabelo dourado, ele entra na cena. Ele cumpriu sua tarefa como uma espécie de
arauto.

O papel do Animus

 Visão: Estávamos correndo de mãos dadas até que chegamos a uma


grande fenda e não sabíamos como atravessar. O jovem fixou suas pernas
em ambos os lados da fenda e me disse para ir através dele para o outro
lado. E assim eu fiz...

Aqui o Animus está no lugar certo. Funciona como ponte, ajudando-a a passar
para uma nova área no inconsciente. Está naquele lado da paciente que é o
inconsciente coletivo, e não em frente a ela, não no lado do mundo óbvio, assim
chamado material.

 Visão (continuação): Eu o segurei pela mão, mas ele não podia passar.
Lutava para manter seu equilíbrio, e depois caiu na água, no fundo da
fenda.

Há sempre o perigo de que o Animus abandone o seu ponto, como que indo
para trás e querendo desaparecer no inconsciente coletivo e depois, durante
certo período, a conexão com o inconsciente será cortada. O Animus é como
uma ponte móvel, ancorada no inconsciente. Quando levantada, fecha a porta
ao inconsciente coletivo. Essa é, mais ou menos, a imagem acertada do Animus,
porque, se posicionado adequadamente, na realidade pertence mais ao
inconsciente do que ao consciente. Vejam: o Animus não é criado realmente
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pelo consciente, mas é criação do inconsciente e, por isso, a personificação


deste. É a porta do inconsciente coletivo e por uma determinada atitude pode
ser evocado para aparecer e funcionar neste sentido, mas quando volta a si
mesmo e levanta a ponte, então fecha a porta ao inconsciente.

Repito: a Anima e o Animus não foram inventados pelo consciente, mas foram
achados por este. Não é assim como se fizéssemos alguma coisa no consciente
com o intuito de edificar uma ponte para o inconsciente: aconteceu, antes, que o
inconsciente coletivo aproximou-se de nós na forma de Anima ou Animus e,
evidentemente, quando foi percebido seu aparecimento, fomos ao seu encontro
e assim estabeleceu-se o relacionamento.Todas estas introvisões quanto às
peculiaridades do inconsciente coletivo não foram originalmente produzidas
pelo consciente, porque o nosso consciente é, de modo peculiar, passivo e
incompetente. Todo aquele mundo interno, na realidade aparece para nós pela
sua própria atividade contínua. Se estudarem a atividade da mente humana,
ficarão impressionados sempre e de novo pelo fato de que os pensamentos não
foram feitos pelo indivíduo, mas apareceram para ele. Eles se manifestavam de
tal modo que, com freqüência, nem eram percebidos como pensamentos. Por
exemplo: os primitivos vêem fantasmas ou obtêm revelações sobre assuntos
mentais que nós já sabemos pensar conscientemente. É a mesma coisa com os
sonhos, nos quais recebemos intimações sobre idéias as quais não teríamos
pensado conscientemente.

Essa é a razão para analisarmos os sonhos: de outro modo isso seria


perfeitamente fútil, perfeitamente estéril, porque não encontraríamos neles nada
que não soubéssemos conscientemente. Por isso, se chegamos a uma conclusão
pela análise de um sonho, que é exatamente aquilo que foi já encontrado no
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consciente, não nos aproximávamos de forma alguma da verdade, simplesmente


não foi atingido o fundo do sonho, porque cada sonho é uma intimação, uma
criação, produzida pelo inconsciente e, de modo algum, causada pela
consciência.

Esse é o ponto de vista freudiano: alguém tem um desejo, mas afasta-se dele e
então isto pode produzir um sonho. Mas isto na verdade não é assim. Já em
1904 escrevi uma vez para Freud comunicando a ele que aquilo que ele
chamava repressão não era exatamente repressão, porque há casos nos quais
não é possível encontrar qualquer traço de repressão. Eu disse que a produção
do sonho era uma função automática que tem suas raízes no inconsciente e, em
relação a isso, o consciente é um espectador perfeitamente destacado. Ele
respondeu que isso é verdade, que ele observara a mesma coisa, mas isto nunca
apareceu na sua teoria e ele manteve sempre seu antigo ponto de vista. Isto foi,
no entanto, uma das primeiras insinuações da minha própria convicção de que o
inconsciente tem as suas próprias idéias e pode produzir mudanças espantosas
no consciente, tirando coisas dele e pondo coisas nele, e o consciente pode
interferir vem pouco em conexão com isso. Porque a nossa consciência, na sua
origem gera uma mera atenção passiva e tudo aquilo que nós denominamos
concentração e pensar ativo ou qualquer convicção intencional, veio bem mais
tarde. É de ato, uma aquisição bem recente. É quase chocante, por exemplo,
perceber como uma pessoa primitiva só pouco pode pensar ou atuar ativamente.
Não sabe concentrar-se, não tem atenção...
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Ela consuma a experiência do mistério

 Visão (Continuação): Depois eu estava com medo, sozinha na floresta


escura. (Ela realiza que seu companheiro-fantasma desapareceu e ela
sozinha tem que empregar os próprios recursos. É interessante observar:
o que ocorre quando ela é deixada sozinha). Deitei perto da corrente e
vieram animais e lamberam meu rosto. (Ela está junto a seus instintos...
as pessoas que estão mais ou menos em bons termos com sua própria
natureza são amigas dos animais e eles sabem disso e as procuram).
Levantei e fui até a beira d’água. Então uma mulher emergiu da água:
na cabeça trazia um barrete pontiagudo. Ela riu quando eu sentei num
barco dourado puxado por um cavalo-marinho branco. Indo, eu vi um
arco-iris estendendo-se em todas as direções no céu.

O peculiar barrete pontiagudo que a mulher está usando é o “pileus” (píleo –


barrete de feltro usado pelos antigos romanos; também o barrete do bispo).
Isto origina-se do culto de MITHRAS, que é uma figura solar, uma divindade.
A mulher é a paciente mesma: assim ela tem uma visão dela mesma numa
condição exaltada, sendo idêntica ao Sol. Isto refere-se para trás, à iniciação e
deificação na visão anterior e essa é a razão do riso dela – aquele riso divino
que está além das incertezas e dúvidas de um mortal imperfeito ela é a mulher
que emerge do inconsciente com uma visão. Também é ela que senta no barco
dourado, o que demonstra a identificação com o Sol e, ao progredir na água,
ela vê no céu vários arco-iris. Ela é que os faz aparecer – do mesmo modo
como o Sol faz aparecer o arco-iris, já que ela, agora, é o Sol.
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Como percebem, isto completa as coisas. Estar junto significa estar junto com
os seus instintos inferiores, isto é, terrenos, com os instintos do seu corpo, com
todos os fatos imagináveis do animal, com percepção completa da sua
existência ctônica, isto é evidentemente, um tipo de profunda humilhação; um
ser humano degrada aos animais, estando entre os animais como se fosse um
deles. E isto causa o aparecimento do seu ser superior: é a única coisa possível
de ocorrer. Porque o Self nessa forma divina é o balanço e a contra-parte
necessária ao instintual, do animal. Assim, essa figura do Self, juntada, é o
divino em cima e animal embaixo, como a visão do Sátiro-Deus.

Termina assim, então, essa visão particular. Na última parte observaram que
ela conseguiu por o Animus em seu lugar adequado, fazendo-o funcionar de
modo adequado, como ponte. Então, ela passou pelo Animus-ponte para o
outro lado, estabelecendo dessa maneira uma conexão com o inconsciente
coletivo. No momento em que isso ocorre, poder-se-ia dizer que o objetivo foi
atingido e então o Animus pode submergir, voltando ao inconsciente coletivo.
Agora a ponte está levantada, a porta fechada, e ela permanece sozinha na
escuridão, com os animais, o que é perfeitamente certo. Estar com os instintos,
estar entre os animais significa, evidentemente, estar conscientemente na
escuridão... Quanto mais voltamos às épocas anteriores, tanto mais sentimos o
animal e temos a intuição: o que é o animal...

Depois, do outro lado, ela tem a visão da Grandeza, do Self no seu aspecto
divino, o que é absolutamente aquilo que devia ser, porque ela nunca pode
esperar ser mais ou ter mais do que a visão do Self. Ela é glorificada ou
deificada. Entra no domicílio dourado do Sol e produz um arco-íris, que é o
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halo que pode ser visto em redor da cabeça dos santos. Aquele símbolo de
halo ocorre várias vezes no decurso de suas visões. Assim, é uma completa
santificação ou deificação no sentido dos antigos mistérios... Isto é tudo que
pode ser desejado aparentemente. E agora, o que esperariam? Como poderiam
as visões ter uma continuidade?

Lembram daquilo que eu falei sobre o olhos nos olhos do animal? Ela atingia
o fundo e chegou lá embaixo, através de todas as civilizações. Agora ela está
retornando. Lembrem, ela estava com os adoradores do Sol, e depois alcançou
a esfera dos mistérios dionisíacos. Agora, quanto aos cultos-mistérios ela está
no segundo ou terceiro século a.C., porque ela é o Sol, o propósito dos antigos
mistérios era tornar-se Hélios. O remate total das cerimônias dos mistérios era
ser o Sol mesmo, como no Asno Dourado de APULEIO. Mas, decerto, essa é
uma condição absolutamente sobre-humana; o elevar-se da escuridão às
alturas tremendas do Sol. E ela, além disso, é apenas uma mulher comum.
Essa é meramente a sua experiência numa condição exaltada. Então, qual é a
conexão de uma tal condição com a nossa vida? Isto está faltando ainda,
porque o problema está estacionado, como se tivesse ocorrido dois ou três mil
anos antes. Naquele tempo era suficiente para eles estar quase inconsciente
para ser aquele que, em certos tempos na vida ficava exaltado em inefáveis
profundezas e inefáveis alturas; isso era tudo e essa experiência era suficiente
naquele tempo. Ao=inda temos fragmentos de confissões de iniciandos de
Eleusis que relatam algo do que experimentaram lá, e que maravilhosa
experiência tiveram. Aparentemente, naquela época, era suficiente, mas com o
decorrer do tempo já não era. A consciência humana desenvolveu-se e
surgiram novas necessidades com soluções novas. A solução seguinte era a
Cristandade.
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Agora, então, algo tem que acontecer nas visões mais próximas da
Cristandade. Já estamos tocando os princípios dela e algo deve acontecer em
que ela descobrirá o sentido e a estrutura interior da cristandade inicial, do
mesmo modo como descobriu o sentido e a estrutura interior dos cultos
pagãos. Temos que esperar que ela continue no seu caminho através das
épocas para chegar aos tempos modernos.

O castigo divino

 Visão (início): Eu vi uma ovelha que foi sacrificada num altar de


pedras.

Percebam, nessas palavras é possível descobrir a idéia cristã, o sacrifício da


ovelha. A idéia do sacrifício já está aqui. Até o presente não tivemos símbolo
de sacrifício, exceto nos adoradores do Sol e ela nada teve a fazer naquilo.
Mas, agora, obviamente, ela tem que lidar com a idéia do sacrifício. O que
pensam? Porque entra aqui a questão do sacrifício?

Resposta: Para que possa encontrar o caminho do meio ela tem que sacrificar.

Dr. Jung: Exato. Enquanto ela é o Sol, ela é o Deus Supremo, e lá embaixo,
nas profundezas, ela é o animal. Ela estende-se além de si mesma em ambas as
direções, tanto em cima como embaixo; ela não é mais humana. Ela é quase
rasgada em pares-opostos, ela está sendo distendida até um grau assombroso.
Essa é exatamente a situação descrita por um antigo filósofo cristão, SINÉSIO
DE EDESSA, um velho bispo. Ele viveu entre o quarto e o sexto século e
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escreveu um livro muito interessante. Lá ele filosofa sobre um certo “espírito


fantástico” (spiritus phantasticus) – esta é simplesmente a imaginação criativa
no ser humano – que causa sonhos. Nós o chamaríamos fantasia visual ou
criativa; mas nele é quase personificado. Sua idéia é que existe este “espírito
fantástico” no ser humano e que faz coisas extraordinárias. Pode descer, por
exemplo, a profundezas enormes e elevar-se a alturas inefáveis. Pode
aproximar-se da figura de um Deus e na medida em que vai além da extensão
humana, torna-se divino – vejam: realmente divino. Se as experiências da
mulher tivessem sido mais reais – como estão nós podemos mais ou menos
imagina-las pintadas numa parede – se ela realmente as tivesse sentido no seu
corpo, teria se tornado divina: divina na categoria humana, isto é,
evidentemente só na medida em que podemos imaginar algo como divino. Ela
teria experimentado a si mesma como um ente-sobre-humano. Isto é que
SINÉSIO postulava: se o “espírito fantástico” no ser humano – isto é, sua
fantasia criativa – chega, em qualquer sentido, além do seu estado, para cima
ou para baixo, ele realmente torna-se divino. Depois ele diz algo
extraordinário: “sendo divino, como tal, tem que passar pelo castigo divino”.
E este é o desmembramento: será rasgado em pedaços, será sacrificado como
um animal de sacrifício está sendo cortado em pedaços no altar. Nessas
palavras SINÉSIO entrega o segredo inteiro da transição da religião pagã à
Cristandade. Ele realmente formulou isso.

Como vêem, a experiência religiosa da antiguidade era de modo que as


pessoas experimentavam-se como divinas: isto foi uma enorme descoberta que
fizeram e era uma verdade vivente. Elas provavelmente disseram uma à outra:
“Não fomos divinos? Não fomos deuses, juntos?” Era algo tremendo; eles
foram exaltados, foram elevados a uma condição mais alta... Mas a tremenda
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desvantagem disso era que assim atingiam uma esfera sobre-humana e isto se
tornou para eles, de certa maneira, impossível e por isso cairam. Então
sentiram que o único modo pelo qual podiam curar o padecimento causado por
essa ascensão e descida era o sacrifício. Eles precisavam matar algo. Assim
ocorreu que escolheram um símbolo que realmente significa o sacrifício do
animal, a ovelha, a qual ao mesmo tempo é Deus... o Deus-animal...

Por isso tem o culto cristão uma grande vantagem espiritual sobre o culto
mitraico, porque não sacrificava apenas a parte animal, mas também a forma
humana-divina do homem, na imagem do crucifixo. Isto indicava que não
apenas as coisas inferiores ao homem têm que ser sacrificadas, mas também as
coisas superiores. Este é um modo peculiar de interpretação; eu estou
perfeitamente ciente disto, e se um teólogo estivesse aqui, provavelmente
arrancaria a minha cabeça. Mas, agora, naturalmente, temos que ver o que isto
significa... O que foi realmente sacrificado?

Resposta: Um indivíduo, sacrificando sua divindade, não se encontra mais em


participação mística com Deus. Depois do sacrifício ele arrisca colocar-se no
lugar de Deus.

Dr. Jung: Exato.Percebam: através da antiga experiência religiosa o indivíduo


torna-se inteiramente coletivo, tornando-se Deus. Eu me torno HELIOS, tu te
torna HELIOS, ele se torna HELIOS e assim nós todos somos HELIOS. Um
homem que era muito triste e terrivelmente sozinho me disse uma vez que ele
poderia curar-se com a idéia de que também os outros eram tristes. Eu sou
triste, tu és triste, todos nós somos tristes; assim ninguém está sozinho. Deste
modo, o efeito da participação mística está se fortalecendo. É realmente um
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retorno à condição primitiva. Os dionisíacos procuraram este efeito, isto é, ser


semelhantes a todos os outros, sentir-se em tudo. A idéia era que o sangue de
Dioniso circulava em todos os seres viventes, que cada um continha um
pedaço de Dioniso. Isto, evidentemente, reforçava a participação mística. Mas,
naturalmente, acabou com a individualidade, era uma ofensa contra ela. Foi o
primeiro aparecimento no ser humano de um existir que se estende para além
do humano, mas o efeito era demais extenso. Eles identificaram-se com este
estado e foram rasgados em partes e não existiram mais. Foram despedaçados,
assim que nada mais restou, apenas a recordação do momento divino. Depois,
já que eles não existiam, tornou-se necessário, em prol do indivíduo, sacrificar
também a participação mística. Que eles não existiam realmente como seres
humanos, é demonstrado pelo fato de que não tiveram sentimentos reais como
seres humanos. Pensem nas coisas horríveis que fizeram nos circos! Isto não
teria sido possível se tivessem tido quaisquer sentimentos reais pela
humanidade. Eles não possuíam individualidade e por isso tiveram que
venerar um ser individual-humano. Por isso foram deificados os Césares e por
isso tornaram-se estrelas depois de morrer; as quais os astrólogos tiveram que
descobrir. Ou, no Egito, o individual era o faraó. É assim porque todos nós
somos indivíduos e o individual não pode existir se a individualidade está
completamente negada.

Houve uma grande tristeza naqueles tempos – os poetas apontaram isto – e um


desejo tremendo para que viesse um redentor. Assim, o próximo sacrifício foi
o sacrifício da experiência que constituía a vida santificada, a verdadeira vida
espiritual da antiguidade, que chegou a ser completamente abolida. (Eu
enfatizo isso acentuadamente, porque estamos numa época em que as coisas
do passado começam a expirar... Haverá uma tremenda abolição dos antigos
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valores. Eu acho que o tempo é tal que parece quase chegado...) Podemos
certamente acreditar que para o indivíduo pagão, realmente religioso, era um
horrível conflito moral e espiritual o sacrifício da experiência que para ele era
a mais sagrada. Porque essa experiência da divindade é a essência real da
religião, e eles tiveram que sacrifica-la. Tiveram que aceitar o fato de que
todos somos desajeitados, miseráveis, repletos de pecado, perante o humilde,
pobre Deus na cruz. Essa é uma coisa que não podiam entender e eu posso
entender que eles não podiam...

Agora vou dar o texto inteiro de séries de visões referentes ao sacrifício da


ovelha. Como costuma ser, consiste de sentenças “telegráficas”, apenas
impressões “telegráficas” de mudanças que estão ocorrendo.

Uma ovelha foi sacrificada

 Visão: Eu vi uma ovelha que foi sacrificada sobre um altar de pedras.


Muitos índios dançaram em círculo ao redor dela. (É curioso que o
sacrifício ocorra em tal meio. É o homem relativamente primitivo, isto
é, aquele tipo de homem primitivo que é mais imediatamente acessível à
sonhadora, o índio norte-americano). Eles jogaram a ovelha para o ar e
untaram seus rostos com o seu sangue. Arrancaram suas entranhas e as
penduraram o pescoço. As entranhas transformaram-se em grandes jóias
vermelhas. Eu apareci vestida de branco.

Primeiramente vem a parte objetiva, depois ela mesma entra na cena do


sacrifício. Como soi acontecer a atividade está projetada, em primeiro lugar,
sobre os índios. Sabem que seu Animus aparece com freqüência na forma de
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um índio pele-vermelha, mas aqui em vez de um índio, há um grupo inteiro,


em vez de um Animus, uma tribo inteira. Isto é perfeitamente possível porque
o Animus é como uma multitude; assim, ela poderia ter dito com razão: “Um
índio está sacrificando a ovelha”. Os índios, aqui, executam de modo
antecipatório aquilo que é o sentido real de toda essa cerimônia.

[RESUMO: Jung também explica aqui que muitas cerimônias primitivas, de


modo semelhante coligadas com sacrifício, eram executadas com a intenção
de ajudar o sol a levantar-se. Ele diz que essa cerimônia mágica significa que
se necessita sangue...que está sendo planejada uma espécie de renovação da
vida. A renovação é necessária porque, pela queda do Animus nas
profundezas e na escuridão do inconsciente coletivo, por causa dessa perda de
conexão, a comunicação foi cortada.. Nisto sua condição assemelha-se à nossa
consciência moderna no seu todo, porque foi perdida a ponte simbólica do
dogma que costumava conectar-nos com o inconsciente coletivo. Do mesmo
modo pelo qual ela experimenta uma espécie de identificação com o Sol, nós
somos capazes de imaginar-nos como super-homens. (De modo semelhante ao
super-homem de NIETZSCHE, que dizendo que Deus estava morto, pensava
ser ele o Deus). Mas esta é uma inflação, uma “hybris” e temos que pagar por
isso. No início dá uma sensação maravilhosa de elação e grandeza, mas depois
a pessoa permanecerá alta e seca, porque está separada das fontes da vida.
Esta é a condição da paciente no fim da última visão. Agora a comunicação
tem que ser restabelecida, porque a vida começa a desvanecer... Por isso o rito
para fazer levantar o sol. Também o ato subseqüente, untar os rostos com
sangue, tem o valor de um ritual de renascimento. EDITOR.]
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Então eles arrancaram as entranhas e as penduraram no pescoço, e as


entranhas transformaram-se em jóias vermelhas. Conhecem algo que poderia
esclarecer-nos sobre este simbolismo peculiar?

Resposta: Nos tempos antigos observavam o estado das entranhas para


augúrios (adivinhação).

Dr. Jung: Sim. As entranhas tiveram sempre um papel notável nos sacrifícios
de sangue. Eles necessitavam as entranhas para todos os tipos de propósitos
proféticos, supondo que elas e particularmente o fígado continham a
imprimadura do destino. Do mesmo modo como nós temos livrinhos sobre
interpretação de sonhos ou sobre as linhas da mão, e livros astrológicos, assim
na antiguidade eles profetizavam com base na particular condição do fígado
ou no tamanho das entranhas. Naturalmente, essas podem alterar; há grandes
diferenças individuais quanto à sua forma e tamanho e isto basta,
aparentemente, para oferecer uma oportunidade de atribuir-lhes,
intuitivamente, um sentido. Ainda, o fígado era particularmente importante
porque, supostamente, era a sede original da vida, como seu nome indica. No
inglês “liver” indica a coisa que vive.No alemão é “leber” (o vivente), que
significa a mesma coisa – fígado; higado, higides, higiene!

Naturalmente parece razoável – do ponto de vista primitivo = supor que para


chegar perto do conhecimento do destino, é necessário ir até as fontes da vida.
Essa era uma idéia muito antiga, e por isso estavam os oráculos sobre fontes
ou cavidades da terra, como as nascentes em Delfos (Grécia); e há muitos
outros exemplos sobre isso em mitos e na literatura da antiguidade remota. Por
isso consultaram o fígado, como também consultaram as entranhas, supondo
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que são a sede da vida psíquica e do conhecimento secreto.... Como vêem, nós
identificamos, mais ou menos, o cérebro e a consciência, supondo que a nossa
consciência está localizada no cérebro, mas consciência de pessoas muito
primitivas não estava localizada lá; era decididamente mais embaixo... E nos
nossos dias ainda é possível conscientizar aquela forma primitiva da mente
que estava locada nas entranhas. Como já mencionei, há muitos poucos casos
de neurose nos quais as vísceras não estão perturbadas. Por exemplo, depois
de um certo sonho pode ocorrer uma diarréia ou aparecer espasmos no
abdome. Sei sobre um bom número de casos quando as pessoas não sabiam o
que deviam fazer, gente que ficou na indolência quando deveriam ter
organizado suas vidas numa escala um tanto mais ampla, que se omitiram
quanto aos seus deveres e tentaram vives como galináceas e que depois
tiveram espasmos medonhos nas tripas... Assim, se alguém que já analisei
anteriormente, volta com tais sintomas, eu pergunto: “Então, o que significa
isso? Sobre o que está falando este sintoma? Espero que você tenha a
necessária imaginação para me dizer o que está tentando apontar o sintoma,
exatamente como um primitivo o faria”...

Esse retirar as entranhas, usando-as como uma espécie de decoração, uma


guirlanda indica na realidade, o revelar dos conteúdos ocultos. A ovelha,
quase invariavelmente simboliza a inconsciência ou impulsos inconscientes,
isto é, impulsos ovinos para o gregarismo, o fazer exatamente a mesma coisa
que os outros estão fazendo. Sabem como é, quando uma ovelha vai adiante,
todas as seguem e todas vão juntas até o inferno. Assim são os seres humanos
quando inteiramente coletivos; esse é o gregarismo inconsciente. O sacrifício
de uma ovelha é sempre o sacrifício de um impulso meramente coletivo, de
uma imitação ou de um fazer algo que todos também estão fazendo. O
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sacrifício significa: “Então, corta isto fora. Não viva mais cegamente como
uma ovelha no rebanho”. Não é possível só existir num rebanho. Se alguém
vive como uma ovelha, saberá só aquilo que uma ovelha sabe, indo apenas
junto com a grei. Assim, sacrificar a ovelha significa o abandono do
preconceito coletivo de que uma pessoa é uma entre milhares. É verdade que o
ser humano é gregário, mas se não passa de ser apenas gregário, então não é
humano. Gregarismo inconsciente é apenas animal e com isso ocorre aquela
espécie famosa de pensar que faz as pessoas se preocuparem dia e noite: o que
seria bom para onze mil virgens – mas não se preocupam com elas mesmas...

Então chegávamos ao ponto de ver que aquelas entranhas estão intimamente


ligadas com uma forma muito primitiva de funcionamento psíquico. E
podemos ver que tira-las para fora da ovelha seria um tipo de procedimento
analítico. No entanto, não tenho qualquer evidência da antiguidade que possa
confirmar que existia, em qualquer tempo, tal rito, e até tenho as minhas
dúvidas a respeito. Acho que isto é uma tentativa bastante moderna para
simbolizar uma maneira de dissecar ou mostrar os conteúdos da ovelha: em
outras palavras: para simbolizar a extração dos conteúdos da antiga mente
primitiva da forma inconsciente, usando-os abertamente. E então, ocorreu um
milagre. Transformaram-se em jóias, o que significa que o inconsciente
mesmo comunica: “tais conteúdos, enquanto internos e inconscientes, são
apenas entranhas de ovelhas e nada mais, mas trazendo-os de dentro para fora,
elevando-os até a condição consciente, transformam-se em pedras preciosas,
como rubis”.

Com isso podemos perceber que a coisa tornou-se muito positiva. Já que a
paciente entre na cerimônia, agora ela é aceitável. Antes era uma forma
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primitiva de rito de sangue para ela, de certo modo, horrível, mas no momento
em que ela nota que essas coisas são preciosas, ela já pode até aceita-las.
Como vêem, a inconsciência coletiva que nos força cegamente a aderir
cegamente à grei e ser como todos os outros (aqui simbolizada pelos
conteúdos da ovelha) é uma força que tem um grande valor quando revelada à
nossa consciência. Primeiro encontram-se conteúdos bastante crus e
repugnantes, mas depois eles revelam seu valor interior e nota-se que são, na
verdade, jóias preciosas. Na aplicação prática isso indicaria que a força
extraordinária que faz com que todos se assemelhem a todos, que mantém
cada ser humano tão baixo quanto possível – baixo na sua consciência, baixo
na sua qualidade, baixo a todo respeito – essa força, se elevada ao estado
consciente, revelará conteúdos de qualidade sem preço. Aplicando isto à vida
psicológica, significaria que até este momento a paciente estava distante
demais da sua própria realidade. Ela viu as coisas de certo modo na forma de
uma visão destacada – e mesmo essa ainda poderia ser uma visão mais ou
menos destacada – mas já está se aproximando do problema central, com
numa espiral, vendo as coisas no decorrer do tempo, sempre mais próximas.
Agora ela está já bastante perto para ser capaz de perceber o grande valor na
crueza e na primitividade, embora no início ela tenha se retraído delas.

Aquele desaparecimento do Animus no inconsciente, como vêem, mostra a


sua peculiar natureza autônoma. Aponta que o Animus é capaz de fazer coisas
sem o controle da consciência, isto é, a consciência não pode rete-lo. O
inconsciente coletivo pode fechar suas portas e deixar o indivíduo humano
isolado, de modo que depois de certo tempo ele se verá forçado a voltar ao
rebanho, na inconsciência, pelo funcionamento autônomo do inconsciente
coletivo. Por isso esse funcionamento é que tem que ser sacrificado; ela tem
35

que matar a ovelha dentro de si mesma para fazer-se consciente. Então ela
obterá os conteúdos daquela inconsciência, as jóias preciosas.

A grande jóia vermelha

 Visão (Continuação): Agora, vestida em branco, eu pedi dos índios uma


jóia vermelha.

O branco refere-se ao estado de renascimento. É a vestimenta dos novamente


nascidos – quase modo geniti. Depois ela pede dos índios uma jóia vermelha.
Obviamente ela anela o valor que a jóia simboliza. Mas então, o que está
simbolizado pela jóia vermelha? E toda essa cerimônia de sangue?

Resposta: Seria a força vital, não é?

Dr.Jung: Sim. Sangue é sempre força vital, o símbolo da alma. Nas crenças
primitivas o sangue é a sede real da vida; por isso ao beber o sangue do
inimigo supõe-se receber seu mana. A magia sempre trabalhou com sangue.
Assim, quanto ao sangue está bem claro, mas o que há com aquelas jóias que
aparecem das entranhas?

A paciente é um tipo cogitativo-intuitivo, de modo que seu sentir estaria na


posição da função inferior. Essa função, se muito reprimida, localiza-se no
abdome. Em tal caso, quanto a função do sentir é mobilizada, há perturbação
no abdome, por exemplo, podem notar que, com freqüência, em conversas
com pessoas, em certos pontos da conversa de repente o abdome começa a
murmurejar, porque as emoções que de algum modo aparecem na superfície,
36

causam uma peculiar estimulação nas entranhas... Evidentemente nós não


entendemos essa linguagem, mas se conseguirmos tirar esses conteúdos da
escuridão das entranhas, saberemos o que tencionavam dizer. Quando essas
coisas emergem da mente natural são horríveis, até insuportáveis, mas lidando
com elas durante certo tempo descobre-se que são extremamente preciosas.
Sim, a função inferior é extremamente preciosa, em virtude da vida que
contem. A função superior é como um velho e fino material, um pouco
desgastado, mas também altamente diferenciado, ao passo que a função
inferior é bastante crua, uma espécie de diamante bruto, mas pleno de
promessas. Uma pessoa, tipo cogitativo (pensar), provavelmente tornar-se-á
um tanto seca e estéril no seu pensar. Mas quando chega o sentimento, ela é
ainda jovem e viçosa, aqui nada foi desgastado, há inda uma boa quota de
vida, e isto é um grande tesouro. Isto explicaria o vermelho, por exemplo;
refere-se ao sangue, ao poder da alma. A função inferior contem o tesouro sem
preço da força vital e essa é a razão do ser tão importante...

Temos que trazer à superfície essas qualidades inferiores nas pessoas, porque
contém a jóia inestimável da vida, coisas que elas não quereriam perder para o
mundo; porque o que é mais precioso para uma coisa vivente do que a vida?
Se alguém vive só a metade ou a terça parte da vida, para que serve o viver?
Qual é o seu sentido?A vida só vale se está sendo realmente vivida. De outro
modo, é semelhante a uma pereira que floresce em cada primavera, mas nunca
produz sequer uma pêra. Sabem que Cristo mesmo amaldiçoava
simbolicamente a figueira que não produzia frutos. Pessoas que vivem de
modo infrutífero são como aquela figueira que tinha que ser amaldiçoada,
porque tais pessoas não cumprem a vontade do Senhor. Se querem viver, têm
que viver com a totalidade do seu ser. Muitas vezes elas não podem aceitar
37

isso, porque suas entranhas começam a murmureja; elas são demais estéticas,
ou como denominam isso, demasiadamente morais. Mas então elas não vivem,
elas não cumprem o sentido de suas vidas, e não resolvem o problema do seu
próprio existir.

Esse é o problema aqui. Ela é ainda demais ovelha... e mesmo assim é


realmente uma pessoa que não é uma ovelha, decididamente não... Por isso
deve fazer um sacrifício, deve matar a ovelha para se tornar indivíduo e ser si
mesma. Depois, evidentemente, ela confrontar-se-á com a necessidade de
assumir sua função inferior, o que não é uma brincadeira. Mas a visão diz a
ela que se trata de uma jóia, e a jóia é tão linda que ela a deseja. É interessante
como a visão encena isto: ela a deseja não na sua forma comum, mas na forma
de quase modo geniti, isto é, na condição de alguém com vestimenta branca,
no estado da inocência recentemente readquirida. Isto denotaria que ela deseja
aquela jóia não porque esteja ávida dela – há pessoas que querem uma jóia por
mera cobiça, por concupiscência – mas ela não a quer por cobiça, mas em
virtude da inocência.

 Visão (continuação): Eles fugiram de mim e me deixaram sozinha.


Depois apareceu um índio que veio na minha direção. “Por que eles
fugiram?” Perguntei. Ele respondeu: “Porque tu violaste o sangue”.
Então muitos animais apareceram e ficaram atrás do índio.

Aqui o simbolismo subseqüente não explica o significado de ter violado o


sangue. Mas o que acham, o que significa? Como percebem, não pode ser algo
pessoal, porque estas coisas com as quais a paciente lidava estavam alem do
pessoal...
38

Resposta: Significa que ela feria a participação mística da lei primitiva,


separando-se como indivíduo...

Dr. Jung: Esta sugestão vale para ser discutida, mas não haverá talvez uma
outra possibilidade? Pode ser que o “Tu violaste o sangue” não se refira
verdadeiramente à cerimônia. Ela não matara a ovelha, mas os índios, e assim
tais palavras talvez se refiram a uma outra coisa: pode significar que ela
violara o sangue de uma outra forma... Percebem, para responder uma tal
questão temos que olhar sempre para trás, para as coisas que aconteceram
antes, embora eu admita que essas coisas criam uma perplexidade,
naturalmente, é muito fácil perder a orientação.O que ocorreu antes foi a
deificação e, é certo, esta eleva a pessoa da condição ordinária; e isto a infla, o
que é uma violação da qualidade humana. E a qualidade humana significa a lei
da terra, que está contida no sangue. Isto vale para qualquer pessoa que
imagina que é mais do que é, e todos nós tentamos ser melhores do que
somos. A idéia geral é: “Como podemos nos tornar melhores do que somos?”
Mas nós somos tão bons quanto podemos ser e nem um centímetro mais. Do
mesmo modo como não podemos acrescentar nem um centímetro ao nosso
tamanho físico, assim temos também o nosso tamanho moral. Nós tentamos
viver acima do nosso nível, como milionários ou príncipes, mesmo não tendo
um tostão para o pão cotidiano. É apenas inflação. Mas vejam, isto não
significa que não podemos melhorar. Tentar ser aquilo que se é...

Comentário: Mas nesse caso eu não iria a um psicanalista...


39

Dr. Jung: A gente vai ao psicanalista justamente para descobrir o que é.


Vejam: nós simplesmente esquecemos o que é um ser humano na realidade...
As nossas inflações são preconceitos sobre nós mesmos. São as nossas
tentativas para viver acima do nosso nível ou abaixo do nosso nível. Porque há
pessoas que, decididamente, vivem abaixo dos seus níveis. A nossa ignorância
quanto ao ser humano como ele realmente é significa uma violação do sangue.
Isso é particularmente assim quando tentamos viver acima do nosso nível,
quando tentamos viver com os pés no ar: essa é a verdadeira violação do
sangue. Porque uma tal atitude nos faz tão semelhantes ao Deus-onipotente,
como por exemplo, quando dizemos: “Quando há vontade, há caminho” ou
“Se você tenta seriamente conseguir algo, então conseguirá”, como se fosse
possível sair da pele! Percebam: tudo isso é o mesmo tipo de tolice, mas nós
temos uma convicção a respeito dessas coisas, e elas estão sendo ensinadas em
todos os lugares.

Então, é claro do que se trata quanto à violação do sangue? Ela não é natural,
Ela vive acima de si mesma e acha que é melhor do que na realidade é. Ela
separou-se da sombra e por causa disso seu Animus casou-se com a sombra e
foi para o inferno. Porque dá poder ao Animus para se comportar como
quiser... Querendo controlar a Anima ou o Animus, temos que trazer a sombra
para junto da consciência e assim libera-la da possessão da Anima ou do
Animus. Se a consciência continua sem conexão com a sombra, então ocorre a
violação acima da própria cabeça e esta é uma ofensa contra a terra. Se
alguém vive próximo à terra, se alguém vive com o sangue, então
simplesmente não pode fazer ou imaginar certas coisas...
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No momento em que o índio = como se fosse o chefe das cerimônias, o


Animus principal – dá a explicação de que ela violou o sangue, muitos
animais aparecem e ficam atrás dele. Então, ele recebe suporte dos animais, o
que psicologicamente significa que os instintos chegam para apoia-lo. Depois
ele faz algo que a inicia no sangue.

A reconciliação com o sangue

 Visão (continuação): Ele aspergiu sangue sobre a minha cabeça e a


minha vestimenta tornou-se escarlate.

Agora ela está tingida com sangue; é o banho de sangue, a reconciliação em


conexão com o sangue, exatamente como na TAUROBOLIA mitraica...
/Taurobóleo: entre os antigos gregos e romanos, o sacrifício de um touro –
também em honra de Cibele. Era um batismo de sangue para aquele que
oferecia o sacrifício, pois descendo numa fossa, recebia sobre si o sangue do
animal imolado/. E isto é bem a mesma coisa, Como vêem, as pessoas tinham
que ser iniciadas ou batizadas para aquilo que não eram, ou para aquilo que
deviam possuir, mas não possuíam. Por isso ela tinha que ser batizada, ou com
outras palavras, renascida, já que o batismo é o símbolo do renascimento.
Assim, sangue está sendo derramado na sua cabeça, como numa cerimônia de
batismo e sua vestimenta, que era branca em virtude da perfeita inocência,
agora tornou-se escarlate.
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 Visão (continuação): (Com essa revelação particular ela ouviu um


estranho, rítmico palpitar em redor dela. E diz): E me envolveu um
grande remoinho de sangue, vibrando com um estranho e terrível latejo.

A descrição era como se ela ouvisse o ruído de sangue nos ouvidos ou o pulsar
do coração. Evidentemente, ela sente o movimento do sangue, a vida
específica e rítmica do sangue. Podiam observar que sua linguagem, aqui,
altera-se um pouco e seu estilo torna-se mais abstrato. Ela descreve,
obviamente, uma sensação bastante física. Quando ela me falou sobre essa
particular seqüência da visão, insistiu na realidade extraordinária da
experiência; era como se ela estivesse nas suas próprias artérias, no seu
próprio coração. Quando uma pessoa tem uma experiência sensorial tão viva,
é como se o inconsciente enfatizasse isso, aumentando a qualidade da
sensação para tornar a coisa mais real. O fato de que podia ter sido muito real
está de acordo com a tendência natural do inconsciente de insistir na realidade
do sangue.

Depois, notem, ela usa as palavras: “com um estranho e terrível latejo”. O


“terrível” significa, naturalmente, o terror pelo fato de estar submergida em
sangue, porque neste caso, ela é quase uma partícula deste, como um glóbulo
vermelho, sendo arrastado e carregado: sente-se, então, que não se pode mais
dominar o destino... Se alguém está no sangue, está nos instintos, está no ser
primitivo, nos animais que viveram antes do homem primitivo, está na
natureza, como sempre esteve. Só por uma tal experiência realizamos o temor
extraordinário de que escapávamos através da civilização, porque esta é um
tipo de muro espesso contra todas as coisas sem limite e sem confinamento,
contra todas as coisas críticas que podem ocorrer com aquele que se encontra
42

numa condição incivilizada. Assim, evidentemente, tudo que sopra contra o


muro espesso da civilização é um terrível perigo, porque coisas podem
acontecer sem que sejam previstas, dominadas ou abolidas. De repente nos
sentimos como uma apenas uma parte da natureza, sem qualquer recurso, Em
tal momento é como se sentíssemos pela primeira vez: como é quando as
coisas tornam-se reais.

Eu os faço lembrar do Tartarin de Tarascon, quando percebeu que as geleiras e


abismos eram reais e não encenadas pela Companhia Anglo-Suissa, e se
alguém despencar numa fenda poderá morrer mesmo. A atitude de tais pessoas
é: “Mas você está querendo me dizer que eu realmente poderia ser morto!”
Mas o caso realmente é que poderia ser morto... Muitos vivem durante toda a
sua existência, até morrer, sem perceber que as coisas são reais, como se
tivessem vivido num mundo em que tudo pode ser alterado, mudando-se o
cenário. Vi mesmo pessoas tornarem-se psicóticas ou muito neuróticas quando
depararam com uma situação que não podiam mudar; por exemplo, quando
um filho morreu – quando, apesar dos melhores médicos, enfermeiros,
hospitais – morreu mesmo, realmente. Então eles arvoraram-se contra uma
realidade com a qual nem nunca sonharam. Ou, quando alguém vai ao
encontro do mundo, inteiramente certo de que conseguirá uma posição e
depois percebe que isto não é verdade, o choque o faz perder a razão ou torna-
se neurótico, simplesmente pelo impacto da realidade. Alguém, facilmente
poderia dizer que, para a maioria das pessoas civilizadas, a realidade constitui
uma espécie de sonho distante. Qualquer coisa que toquem, a estão tocando
condicionalmente. “Sim”, dizem eles, “é real até um certo ponto, na medida
em que eu permito que sejas real. Mas se te tornas mais real do que eu quero
que sejas, então estou te abominando. Eu tenho que te matar, ou tenho que
43

matar a mim mesmo”. Nesta altura já estão loucos. É quase como se, para a
maioria das pessoas, o descobrimento da realidade causasse pânico. É
interessante que, se falamos uma coisa dessas para aquelas pessoas eu vivem
uma existência provisional, elas acenam sabiamente com a cabeça, e sabem
tudo sobre isso. Depois passam adiante como se tudo estivesse certo, e
continuam adormecidos.

 Visão (continuação): (Agora a paciente tem tal impressão da realidade


absoluta: uma impressão atemorizante quanto a uma situação superior
às suas próprias forças). Eu me realizei no remoinho, o qual me levou
para cima, em espirais.

Obviamente, ela entregou-se ao movimento do sangue, e depois descobriu que


o caminha não a leva para baixo, mas para cima, em espirais. O que supõem
em conexão com isto? Quando estamos na correnteza rápida de qualquer
espécie de líquido, a suposição natural é que afundaremos. Isto é o que nós
tememos, o que causa o nosso terror, mas aqui ela descobre que está sendo
levada para cima.

Comentário: O sangue é uma espécie peculiar de líquido. /Esta é uma


conhecida expressão do Fausto de GOETHE./ É a fonte da vida, e por isso não
carrega para baixo, como a água.

Dr.Jung: E aquele movimento do sangue? Não se dirige para baixo, mas flui
para cima. Assim é bem possível entrar no movimento para cima e não no
movimento para baixo.
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Comentário: Não entra aqui a associação do sangue co o vinho? O vinho


também leva para cima.

Dr.Jung: O vinho mais tarde terá um papel, mas por enquanto trata-se do
sangue. Às vezes é permitido pelos deuses substituir o sangue pelo vinho, mas
não agora. O que estou querendo saber é o segredo da espiral.

Sugestão: É o símbolo do desenvolvimento.

Comentário: A espiral expressa o funcionamento dos opostos.

Dr. Jung: Sim. É o símbolo mesmo do desabrochar... em plantas, os brotos, ou


o início do crescimento das folhas, estão se arranjando em espirais; a planta
cresce em espiral. Como foi apontado, é o funcionamento dos opostos, a
reconciliação dos opostos. O homem que descobriu a lei matemática da espiral
está enterrado na minha cidade natal, Basiléia; na pedra do seu túmulo há uma
espiral com a divisa: EATA MUTATA RESURGO; traduzindo literalmente:
“DE UM MODO IDÊNTICO, MUDADO, EU ME ELEVO”. Essa é a lei da
espiral, uma coisa muito bonita... Mesmice, não-mesmice. Assim, a espiral é
realmente um símbolo bastante adequado para expressar desenvolvimento.
Percebem , essa visão diz: “Se tu te entregares ao terror do sangue, descobrirás
que ele conduz ao desenvolvimento”. Não conduz para baixo, ao inferno, mas
sim para cima, mas isso é um desenvolvimento realmente terrível.
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Três visões secundárias

 Visão (Continuação): (Estando no remoinho de sangue ela tem visões


em rápida sucessão). Passei pela face branca de Deus, eu vi o Sol, eu vi
um lago de ouro...

Essas são visões secundárias, como que pensamentos visualizados, enquanto


ela está dentro do movimento do sangue. São bastante difíceis, mas acho que
estou em condições de explica-las aos senhores, para mostrar que cada palavra
dessas visões tem sentido – como ocorre com o sonho. Quanto à “face branca
de Deus”, ela escreve Deus com maiúscula e isto ela sempre faz quando
escreve em termos do moderno conceito cristão de Deus, em contraposição
aos antigos deuses pagãos.

Questão: A face branca estaria em contraste com o sangue vermelho?

Dr, Jung: Certamente. Como percebem, a sua idéia sobre Deus é uma
concepção mais pálida, fantasmagórica, o anêmico conceito cristão das
últimas épocas, mas ela está sendo carregada para além disto, o que é muito
significante. E agora vê o Sol.

Comentário: O Sol é um Deus subalterno, mais primitivo.

Dr Jung: Sim. Certamente mais primitivo, mais real e mais concreto. Mas,
além disso, esse é o caminho que ela percorria. Nas visões anteriores ela
46

deixou o cristianismo para pousar bem nas profundezas do nível animal,


depois de novo veio para cima através dos cultos antigos – nós falávamos
justamente sobre o seu conseguimento de deificação como o sol, Hélios.
Assim ela atravessou o inteiro sentido interno dos deuses antigos; essa é a
segunda fase correspondendo à visão do Sol – e agora vem o lago de ouro. O
que há com isso? É bem enigmático.

Resposta: Ela encontrou valor.

Dr.Jung: Sim. O ouro significa valor. Mas primeiro tentem visualizar o rosto
de Deus; nas pinturas antigas Deus é representado com um halo bem pálido
em redor de sua cabeça – aparentemente um sol bastante palito. Ela ave na
seqüência o sol real, que é também um disco dourado, depois um lago de ouro,
um disco de ouro. A idéia é sempre a mesma, mas a qualidade altera-se
consideravelmente... O lago de ouro é o retorno à terra. O ouro é um metal
pesado e tem que estar, naturalmente, no ponto mais baixo. Deus está muito
longe, o sol está mais perto, mas o lago de ouro está encamado na terra, ao seu
pé e é muito concreto. Pessoas que têm essa visão inconscientemente essa
visão, podem ficar emperrados aqui, por exemplo, desenvolvendo um grande
desejo de dinheiro, de ouro. Sabem que toda a filosofia dos alquimistas estava
imbuída com a idéia de fazer ouro; simbolizava a substância preciosa feita da
substância sem valor.

Sugestão: Sol e ouro são idênticos na Alquimia. Assim, o ouro seria talvez o
sol terrestre.
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Dr. Jung: Sim. Seria o sol terrestre. Na alquimia o sol é o equivalente


astrológico do ouro. Isto, evidentemente, está contido também na visão. Mas o
que pensam sobre esse desenvolvimento peculiar? Vimos que o sol poderia ser
um substituto de Deus; conhecemos isto da história; assim podemos
facilmente compreender tal transformação... Mas como podem resolver tal
enigma pela hipótese de valor? O que significa essa inteira descida? Como
podem resolver tal enigma pela hipótese de valor? ... A definição de Deus
seria “Summum bonum” (o Bem Supremo); o maior valor acima de tudo é,
certamente, Deus. Depois, o maior valor para a vida é o Sol. Porque é fonte de
energia e fornece o calor. Mas agora vem essa visão e diz que o maior valor é
o ouro. Isto é terrivelmente chocante não acham?

Bem podia ser que tudo isso devesse ficar no inconsciente. Enquanto ela é
idealista e atualmente se encontra nas nuvens, não está seguindo a lei da terra;
por isso seus valores mais altos escoam para o ouro. Esta é a razão pela qual,
pessoas muito piedosas costumam estar muito bem de vida. Nesses casos a
avaliação espiritual foi solapada, porque eles justamente proclamam demais
que só crêem no espírito... Isto é uma depreciação dos valores espirituais pelo
uso demais freqüente. Assim ficaram desgastados e todo o valor está no ouro.
Comentário: Isso me parece uma coisa muito boa para a mulher em questão. O
ouro é materialistico; ela agora percebe o grande valor no materialismo.

Dr.Jung: Sim, mas só é bom se ela for consciente disto. Se for inconsciente,
acumula-se uma resistência inconsciente contra todo valor consciente. Ela
acreditava que seu Deus era um espírito no céu, ao passo que seu Deus estava
escondido num cofre, no Banco. Ela vivia na terra, o que foi uma descoberta
terrível. As pessoas têm mais medo de perder seu dinheiro do que perder
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Deus. Ele não é, de forma alguma, o valor mais alto para elas... De fato, a
idéia de Deus tornou-se muito abstrata e irreal. Não age como um verdadeiro
determinante, mas sempre há um valor supremo, um centro de gravidade que,
no fim, decide. Assim como vêem, esta mulher, enquanto inconsciente do fato
de que seu Deus está no cofre, é uma materialista e realmente impede a si
mesma de viver, porque sacrifica, mais ou menos, seus ideais de vida por seu
dinheiro. Mas aqui ela descobre que seu Deus é um lago de ouro, e é um deus
poderoso, porque o fato se torna consciente. Ela sabe onde está o seu “temer a
Deus”, já que tudo isto nela está conectado com dinheiro. No momento em
que isto se torna consciente, ela tem que admitir que isto é chocante. É
inteiramente errado, de acordo com suas idéias, o ouro ser para ela, na
realidade, o valor supremo... e, naturalmente, isto causa um conflito terrível
com seu idealismo.

Mas ela não pode livrar-se do fato de que o ouro é mana, tanto faz se o
desprezamos ou não. Já o fato de desprezo indica que é mana, que é valor. O
ouro é uma coisa soberba, maravilhosa e muito insinuante; é como o sol, que é
uma fortuna de luz. É desejável e tem-se que admitir que é desejável. Há um
mana especial para o ouro, como há um mana especial para a prata, e um
mana especial para as pedras preciosas. Todos têm um valor intrínseco que
não pode ser negado... Agora ela perceberá o valor do ouro em dinheiro e,
fazendo isso, descobrirá que o ouro tem mais valor do que tantos e tantos
dólares e que é um erro pensar que o ouro pode ser avaliado por dinheiro,
porque há lá sempre um valor místico. Justamente em função do conflito, ela
descobrirá que no mana do ouro há um valor além do valor do dinheiro. Esse
lago de ouro é um símbolo. Sabem o que simboliza? Esta é uma “virada”
muito peculiar e inesperada da estória.
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Resposta: É o seu Self (Si-mesmo).

Dr. Jung: Sim. Podemos chegar a uma interpretação com relativa facilidade,
pela teoria do valor supremo. O valor supremo é Deus, depois o Sol, e depois
o lago de ouro. Agora surge a questão: “Será que esse lago de ouro é eu
mesmo? É um valor bem embaixo dos meus pés – talvez a terra...” O sangue é
a vida da terra e vivendo na terra é possível descobrir o tesouro nela encamado
e assim facilmente, poderia ser feita a descoberta de que o valor mais alto está
em nós mesmos. Esse é o passo seguinte.

Então essas tais visões com as quais lidávamos não passam de impressões
fugazes, apenas “flashes” e a paciente mesma é absolutamente desinformada
quanto ao sentido nelas envolvido. Como provavelmente perceberam, é difícil
propor que tais coisas tenham até qualquer sentido. Mas se alguém medita
sobre essas impressões fugazes, é possível ver como descem, enriquecendo-se
com todos os tipos de associações. Então descobre-se que são, na realidade,
elos muitos importantes no processo inteiro, são como um texto à margem que
explicam o que está acontecendo se a paciente entre no remoinho de sangue.
Ela torna-se uma árvore

 Visão (continuação): Depois eu estava numa floresta escura. P remoinho


de vermelho flamejante circundava a floresta. Podia percebe-lo através
das árvores.

A situação alterou-se completamente. Desde o momento em que recebeu o


batismo de sangue ela estava numa espécie de trans, transplantada no sangue e
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elevada pelo remoinho de sangue a uma nova condição. Isto é agora


simbolizado por uma floresta que pode parecer, antes, um grupo de árvores e
em redor o remoinho de vermelho flamejante... É como um tipo de sangue
ardente que a estaria circundando, sendo ela uma floresta encantada. Dos
eventos subseqüentes podemos ver o que isto significa.

 Visão (continuação): Minha vestimenta tornou-se verde e meus pés


afundaram na terra fofa. Levantei os braços e folhas cresceram deles.
Então eu soube que me tornara uma árvore e levantei o rosto para o sol.

Como vêem, o que ocorreu é uma verdadeira metamorfose clássica – um ser


humano em uma árvore. Chegar à floresta significa que ela é uma das árvores.
Assim comporta-se como árvore, seus pés tornam-se raízes, suas mãos galhos;
ela toma a forma de uma árvore. Ela fez um desenho: no fundo a cor é
realmente vermelho-sangue, por isso hesito chamar isto, sem mais, fogo.
Temos um simbolismo muito peculiar. Qual a opinião?

Sugestão: A árvore é um elo entre a Terra e o Sol... Antes ela era


impulsionada por uma torrente de sangue e não podia, por isso, influenciar seu
51

FIGURA PAG. 59
Destino e seu desenvolvimento.
Mas agora torna-se árvore, e se é
verdade que de um lado a vida da
planta é a condição mais baixa da
vida, de outro, as plantas são a
única forma de vida que pode
alimentar-se a si mesma. Nesse
sentido são autônomas e é isso
que ela tem que aprender.

Dr. Jung.: Sim, exatamente, um


simbolismo bem adequado...

Comentário: A árvore não seria


um desenvolvimento lógico da
espiral? Anteriormente houve a
idéia da espiral, mas agora temos aqui a planta em crescimento – a espiral
representada organicamente, como árvore.

Dr. Jung: É como se ela houvesse entrado aqui em algo inteiramente estranho
para o mundo animal. No mundo animal a espiral é coisa praticamente
desconhecida. Mas, no mundo das plantas é todo-importante para o
desenvolvimento e para o crescimento. Enquanto ela está no sangue – isto é,
na substância animal do seu corpo – descobre, de repente, um princípio
inteiramente diferente. E este é também um princípio vital, mas não aquele no
sangue. Já tivemos várias visões nas quais houve um pular em alguma coisa:
52

no início, o lago prego, na beira do qual o índio estava pensativo e o chinês


também meditava; recentemente o jovem dionisíaco saltou de uma coisa para
outra. E agora aqui encontramos o segredo de todo esse “pular”, essa tentativa
de chegar ao fundo: era a antecipação do pulo final no sangue, em que ela está
descobrindo o grande tesouro. O grande tesouro no seu primeiro aspecto – o
ouro era apenas uma impressão fugaz – e o sentir da espiral, que temos que
tomar como uma experiência muito real e imediata, quase uma sensação... esta
é a primeira descoberta de um princípio vital inteiramente diferente, isto é, o
princípio da planta. Como sabem, a vida desenvolveu-se, principalmente em
duas formas: uma é a animal, a outra, a da planta, mas que já pertencem à
mesma vida: plantas e animais pertencem um ao outro. Ainda mais, os animais
vivem sobre as plantas; somos parasitas, somos um tipo de piolho nas florestas
da terra. A vida do homem e a vida das plantas é uma espécie de simbiose e,
inevitavelmente, sempre que há uma simbiose ocorre uma associação, O nosso
sistema inteiro adapta-se ao sistema do companheiro – em outras palavras, a
vida da planta está em nós como a nossa própria vida – e torna-se em nós o
símbolo de uma qualidade não biológica, que nós chamamos espiritual. O
desenvolvimento do espírito baseia-se em uma analogia com a vida das
plantas. Assim, a primeira descoberta, aqui, do que pode ser chamado
desenvolvimento espiritual, é a sensação da espiral. O desenvolvimento do
espírito baseia-se em uma analogia com a vida da planta. Assim, a primeira
descoberta, aqui, do que pode ser chamado desenvolvimento espiritual, é a
sensação da espiral. Podem ver a partir da visão, que, de acordo com o ponto
de vista inconsciente, é uma coisa do mais alto valor; o desenvolvimento não
conduz para baixo, mas para cima, para um nível ou camada superior, poder-
se-ia dizer, onde há uma floresta na qual ela cria raízes entre outras árvores...
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As plantas recebem seus alimentos diretamente dos elementos... Assim, a


forma primária de vida é a vida da planta...

Como sabem, o animal sempre simboliza a vida fisiológica e biológica do ser


humano, porque nesses aspectos ele nada mais é do que um animal. Deste
ponto de vista nós, muito naturalmente, negamos a realidade do espírito. Por
isso é preciso um tipo muito especial de experiência para fazer as pessoas
acreditarem em algo como uma lei espiritual. Exatamente essa experiência é
necessária aqui para provar a existência de um tipo inteiramente diferente de
viver, embora ele não seja em si mesmo necessariamente espiritual. Poder-se-
ia dizer que isto simplesmente significa a planta, a planta per se (em si
mesma). Mas, já que não somos plantas e não podemos viver como plantas,
não pode significar uma planta real; portanto, tem que significar sua real vida
de planta, a qual é o caminho inconsciente do espírito.

Estando a vida do espírito em absoluto contraste com a vida animal, vê-se que
sempre que o espírito se manifestou ele tem sido hostil a muitas formas da
nossa vida animal, a muitos dos nossos costumes e convenções. Qualquer
nova forma de manifestação do espírito tem sempre significado uma voa dose
de confusão. Pensem nas manifestações do espírito no Islamismo, no
Cristianismo – quantas toneladas de sangue derramado, porque a vida da
planta cresce diferentemente da vida animal. Vejam: a vida animal é um
crescimento que primeiramente ascende e depois descende. Também não é
regular: há diferentes estações na vida animal: as estações de acasalamento, os
períodos de cópula, e mudanças em conexão com as migrações sazonais. E é a
mesma coisa com o homem. Ele experimenta elevações e abaixamentos,
porque o desenvolvimento animal é sempre crescente e decrescente. A vida de
54

planta mostra alguma oscilação sazonal, também, mas basicamente o


crescimento de uma árvore é sempre para cima, tem um real decrescer, até
morrer abruptamente, no fim. Até o seu último ano ela floresce, produz frutos,
exatamente como fez desde o começo. Também neste tipo de vida as
oscilações sazonais são muito menos violentas. Naturalmente, elas teriam que
ser menos violentas, uma coisa que está enraizada, porque uma árvore não
pode mover-se, não pode tirar os seus pés do solo. O animal pode pular, pode
desfrutar da sua excitação; então aproveita-se do fato, deleita-se no seu
excitamento, do mesmo modo como nós o fazemos. A maioria das pessoas
deleita-se com seus excitamentos, gosta de ficar excitada e pula para lá e para
cá. Mas se as pessoas que têm a idéia da árvore sentem que tal excitamento de
modo algum é bom. Por isso no Oriente, o primeiro princípio básico da yoga
chinesa ou hindu é que devemos afastar-nos das nossas emoções; temos que
nos retirar; é exatamente como se alguém devesse se retirar daquela curva do
crescimento animal com seu tolo movimento insulso...

O círculo mágico

Lembrem-se, a paciente está na floresta como uma das árvores e o círculo de


vermelho flamejante de sangue está circulando em redor da floresta... Na
pintura pode ser visto como uma faixa vermelha oscilando em redor das
árvores.

Comentário: Não vejo porque deve o sangue circundar a floresta.

Comentário: É como Brunilda circundada por um anel de fogo.


55

Dr. Jung: Ou um fogo em redor da terra. O que ocorreria se chegasse até a


terra? O mundo seria consumido pelo fogo. Vejam: enquanto ela estava no
sangue não podia desenvolver-se espiritualmente; por isso retira-se do sangue,
e é justamente como se o fogo estivesse se retirando dela, como se estivesse
de exsudando dela. Assim, agora ela vive como uma árvore e o sangue está ao
redor dela como um flamejante círculo vermelho;como ao redor de Brunilda,
enquanto ela dorme. É o grande círculo que podem encontrar em mandalas
como círculos de desejo, o círculo ardente da cupidez, da cobiça intensa.

Pergunta: Significa ele proteção?

Dr.Jung: É uma proteção enquanto não nos identificamos com ele. Mas se isso
acontece, isto é, se colocamos o pé dentro dele, seremos consumidos pela
chama e dissolvidos. Da mesma maneira como a madeira pode ser consumida
pelo contato com o fogo, assim também podemos ser consumidos. Por isso
tem essa mulher que realizar que pode viver sem o fogo, sem o sangue; de
outro modo seria simplesmente a vítima de ilusões, a vítima de desejos, de
doença e de crime, e da ilusão - de fazer o bem e fazer o mal.

FIGURA PÁG. 61
Tentando visualizar isto,
chegarão a alguma coisa
assim. Farei um desenho
(fig. 1). Ela estaria aqui,
como uma árvore, no
centro, com as outras
árvores em redor dela, e o
56

círculo vermelho em volta de tudo. Depois, lembram-se, a visão do lago de


ouro de que falávamos antes... isto estaria no centro... embaixo (enquanto o
sol, é claro, está em cima).

Vejam: a idéia seria que a árvore é, na realidade, uma espécie de símbolo de


transformação entre esses dois símbolos equivalentes; o que é o lago de ouro
embaixo, é o sol em cima e a árvore, obviamente, é a função entre eles. As
raízes da árvore são equivalentes aos seus galhos, e na medida em que ela
eleva seus galhos para receber o Sol – ou os raios do sol) – assim também suas
raízes protegem o ouro embaixo, ou retiram mana do ouro para com isso
crescer. Esse é o tipo de idéia simbólica que muitas vezes aparece em contos
de fadas, quando o tesouro está enterrado sob as raízes de uma árvore, ou
ainda mais, duendes vivem lá e são associados com tesouros na terra, pedras
preciosas, ricos em minerais e assim por diante. O simbolismo sugerido nessa
visão é algo como isto. Aponta para a idéia do lago, ao qual de novo
voltaremos, mais tarde. Também numa visão mais a frente encontramos a
idéia de descer a uma cova, para a escuridão, o que seria, certamente, ir para
baixo do tronco de árvore, até a escuridão lá embaixo.

Esse desenho é uma mandala, um círculo místico, expressando a totalidade do


indivíduo. Mas a totalidade do indivíduo é um conceito muito difícil.
Psicologicamente seria a totalidade do ego consciente e daquilo que se poderia
chamar o Si-mesmo (Self) inconsciente; isto é, do sujeito (o ego) e o objeto
psicológico (o inconsciente). O inconsciente é de uma natureza muito
indistinta, assim nunca se pode delimitar adequadamente suas fronteiras, onde
ele toca cada um, nem se pode dar dele uma descrição racional, como um
conceito psicológico. Podemos apenas descreve-lo como uma área quase
57

arbitrariamente circunscrita do inconsciente coletivo. É como se partes do


inconsciente coletivo fossem selecionados por um poder desconhecido, que
colocaríamos no centro, uma espécie de mônada vivente, a qual faz sua
escolha de elementos que realmente pertencem ao inconsciente coletivo e que
não estavam originalmente, separados de seus outros conteúdos por qualquer
círculo mágico. Mas, pela individuação, é como se um círculo mágico fosse
realmente produzido. E algumas vezes, um círculo mágico é realmente usado.
Por exemplo, os alquimistas, quando o ouro estava para ser feito ou o tesouro
juntado, começavam por fazer um círculo mágico em volta deles mesmos,
para proteção, uma parede para manter afastadas influências estranhas, forças
eruptivas estranhas; porque, tão logo alguém inicia o trabalho secreto de fazer
ouro ou juntar tesouro, imediatamente evoca forças do inconsciente coletivo.
Então fantasmas começam a aparecer na linha divisória, e se ela se quebra em
algum ponto, eles entram e isto significa perigo mortal... Portanto, o círculo
tem que estar completo. Naturalmente, trata-se de uma proteção psicológica; é
a visualização do processo de individuação. Juntar o tesouro é uma espécie de
símbolo concretizado da centralização ou do arranjo do material psicológico
de alguém em redor do seu maior valor, em redor da sua idéia mais
importante, a idéia de maior poder, a idéia que se pode designar como Deus.
Na antiguidade, esta idéia central era chamada o daimon individual. Mas um
valor tão importante de forma alguma é idêntico a nós mesmos, porque é
superior a nós... mas mesmo assim mora em nós; até mesmo supõe-se que
morre conosco. Agora, se a idéia de uma deidade individual como esta é
colocada no centro, e se este elemento ou fator exerce então uma certa atração
sobre os conteúdos coletivos, ela produzirá uma parede mais ou menos
artificial entre os conteúdos em geral e aqueles que são atraídos e assim
apropriados como sendo posse pessoal. Mas, analisando os conteúdos do Si-
58

mesmo dentro da linha divisória, verão que em nada diferem de outros


conteúdos coletivos: é justamente a escolha especial dos conteúdos que produz
o individual.

Tais assuntos são difíceis de explicar; é bem difícil entender a estrutura do Si-
mesmo, em virtude do fato de que seus conteúdos são de natureza coletiva e
mesmo assim pertencerem ao indivíduo. Daí se origina o erro bem comum de
acreditar que o inconsciente coletivo está dentro de nós mesmos. Todos falam
do meu inconsciente coletivo, o que é uma insensatez total – alguém poderia
dizer também “minhas estrelas, meus planetas, meus continentes”. Nós nunca
supomos conter o mundo inteiro, porque o estamos vendo; podemos ver esta
sala, mas não supomos, por causa disso, que ela está lá, dentro do nosso olho.
Naturalmente está fora de nós. Mas, psicologicamente, o centro aqui é um
olho... o famoso olho de Horus. É este olho que determina o que vemos dos
conteúdos do inconsciente coletivo, no nosso campo visual psicológico.
Podemos dizer que essas coisas são nossas na medida em que as vemos, mas
não são nossas a ponto de dizermos que fazem parte de nós mesmos.

Assim, carregamos certos conteúdos inconscientes que são meramente


separados por uma espécie de círculo mágico dos conteúdos coletivos
circundantes, e este círculo pode ser quebrado. Por isso é a individuação uma
coisa tão delicada e sensível; porque se o círculo mágico rompe-se a qualquer
momento, coisas começam a mover-se para fora ou para dentro, e temos o que
se chama uma irrupção do inconsciente coletivo – isto é, o EGO é inundado
por conteúdos coletivos. Desde tempos imemoriais a humanidade tem
insistido que o processo de individuação e a produção de um círculo mágico
com essa espécie de centro constitui o maior valor do ser humano, o bem que
59

deve ser o mais desejado, e todos os esforços da filosofia oriental têm como
propósito produzir esse lago de ouro ou esse círculo mágico. É considerado o
mais alto conseguimento, por exemplo, em toda a yoga tântrica, e na filosofia
lamaísta e chinesa.

Desenhos de Mandala

Desenhos especiais, como aqueles que lhes mostrei, são usados como
instrumentos para produzir essa espécie de centralização. Também alguns
estão reproduzidos em O Segredo da Flor de Ouro. Qualquer mandala é um
tipo de mapa bidimensional da atual condição psicológica. Porque há
condições em que se vê mandalas perturbadas em vez das normais. Nelas um
adequado círculo mágico acaba de repente; ocorrerá uma quebra, perturbando
toda a configuração, e então é justamente como se tivesse ocorrido um efluxo
ou influxo de forças, ou como se um quarto ou um terço daquilo que pertence
ao todo tivesse sido cortado fora e substituído por elementos estranhos. Tal
desenho (fig. 2) reproduz um estado de possessão ou obsessão em que as
pessoas abrigam estranhos fantasmas em sua psicologia. Esta é uma das razões
porque os primitivos têm sua teoria sobre fantasmas; eles explicam todas as
possíveis peturbações do corpo ou da mente como uma possessão por espíritos
malévolos, o que simplesmente descreve o fato de que conteúdos autônomos
do inconsciente coletivo entraram e tomaram posse de uma parte do ego...
Estes conteúdos peculiares são sentidos como pensamentos estranhos.

Por exemplo, às vezes uma pessoa não pode livrar-se de uma determinada
idéia ou convicção. Ela sabe que é completamente errada, mas a coisa tomou
conta dela e não pode ser afastada. Tomem um caso muito simples: uma certa
60

melodia fixa na nossa cabeça durante dias, de modo persecutório, como se um


pequeno fantasma continuadamente sussurrasse aquela toada. Naturalmente
parece absurdo, mas se analisamos a melodia, sempre encontramos um
conteúdo com certa autonomia que explica porque foi ele capaz de tomar
posse de nós. Agora, o propósito principal da construção de mandalas é
manter afastadas essas forças possessoras, manter afastados os assim
chamados estranhos conteúdos coletivos e isso só pode ser conseguido se o
círculo mágico é bastante sólido. Mas este círculo não pode ser construído
pela concentração nele; só pode ser produzido pela concentração no centro.
Quando mais nos concentramos no centro, tanto mais será fortificado o muro.
Mas se a atenção vagueia fora do centro começando a se concentrar no muro
circundante, transformar-se-á num circulo de fogo – as chamas serão
estimuladas até que todo o conjunto esteja ardendo. Aquele fogo não nos
consome enquanto não nos ocupamos com ele.

O que estamos vendo aqui é o processo reverso. A paciente estava


primeiramente no sangue, e através do sangue descobriu esse pequeno Jardim
de Éden particular, o espaço circular com árvores, com o lago de ouro e a
Árvore do Conhecimento no centro. Assim ela escapa da corrente flamejante,
mas ainda é possível que seus olhos se voltem outra vez para fora e fiquem
fascinados pelo muro de fogo; então, instantaneamente, as chamas a
consumirão uma vez mais. No momento presente, entretanto, ela está no
centro, e na sua visão ela descreve o que é sentir-se lá. É como ser uma árvore,
ela está crescendo como uma árvore, sua vestimenta tornou-se verde, seus
braços transformaram-se em galhos e seus pés em raízes. Assim aprendemos
desta visão, que estar no centro equivale a ser semelhante à planta. Aqui temos
a vida psíquica da planta, que cresce inconscientemente, apenas centrada no
61

Si-mesmo. Quando alguém está centrado deste modo, existe a possibilidade de


que possa crescer para ser algo mais a dar à luz a alguma coisa que de outra
forma não seria atingível.

Um corte transversal na continuidade

Voltando à mandala representada na Fig. 1 (pág. 54) [no original, pág. 61],
podemos ver que contém um pequeno círculo (a) no centro. Este pequeno
círculo (a) é visto novamente na Fig. 3, onde ele parece como uma secção
transversa do tronco da árvore no centro da Fig. 1. Olhando para baixo desta
secção transversa estaríamos olhando na direção das raízes da árvore e para o
lago de ouro que estaria, por assim dizer, embaixo. Mas olhando para cima
vemos o Sol, que ela descreve. Pode-se imaginar os ramos e o disco do sol
acima, quando ela ergue seu rosto para o sol. Esta parte da mandala, portanto,
é como um corte transversal em alguma coisa que continua para cima e para
baixo. O que se experimenta aqui é a especial tendência da árvore para
desabrochar, a sensação dos galhos abrindo-se para cima dela e as raízes para
baixo. Assim, visto de outra dimensão, o pequeno círculo no centro da Fig. 1,
na sua forma mais simples, mais abstrata, lamaística, é na realidade o símbolo
cunha de trovão (Fig. 4). Pares de opostos estão unidos neste símbolo; é o
sinal de energia concentrada, porque a função que une pares de opostos é
energia; o choque de opostos produz energia.

Agora lhes mostrarei uma mandala tibetana com o símbolo cunha de trovão
bem no centro e emanando dele há oito pétalas, exatamente como as pétalas de
uma flor, cada uma contendo de novo o mesmo símbolo, o que significa o
desabrochar da energia concentrada do centro. Isto é chamado a Cunha de
62

Diamante, por causa de sua consistência dura, sua força extraordinária e seu
grande valor. Como o diamante emite raios de luz, assim essa energia
concentrada emana a energia radiante que agora forma a Flor de Ouro. Isto é
como um desenho da libido; se querem visualizar a fonte de libido ou energia
do inconsciente, essa seria a imagem adequada...

E já que esta energia concentrada nem sempre estava lá, significa que pode ser
vertida lá, ou que foi vertida lá. Assim, uma tal mandala lamaística sempre
tem portões (entradas) e em cada uma dessas entradas está o mesmo signo da
cunha de trovão, significando que este é o caminho, ou a entrada. Muita
energia pode, assim, deixar o círculo mágico por estas portas e expandir-se no
mundo – ou no infinito. Energia pode também ser atraída para dentro por estas
portas e expandir-se no mundo – ou no infinito. Energia pode também ser
atraída para dentro por estas portas, por concentração e contemplação, dessa
maneira produzindo o tesouro no centro, o qual é simbolizado pela Cunha de
Diamante ou pelo Lago de Ouro – porque o ouro, também, é energia
concentrada. E onde quer que haja energia concentrada, há a possibilidade de
soltá-la; então temos de novo emanação.

Podem ver, então, que o símbolo da Flor de Ouro representa o atrair da libido
e a possibilidade de emana-la e já que tudo isto é o equivalente de um corte
transversal no tronco da árvore, isto significa que ela pode movimentar-se para
cima e para baixo. Se se dirige para baixo, a energia será pesada, será
semelhante à terra, formar-se-á o lago de ouro; se se move para cima, teremos
o disco solar, porque a energia manifestar-se-á na forma de radiação, luz e
calor. É bem claro? Trata-se de um tipo bem difícil de filosofia, porque
63

expressadamente irracional. É uma filosofia oriental típica, a moderna forma


lamaística da Yoga Tântrica.

Questão: O senhor aplicou a idéia de uma mandala à árvore ou isto também


está contido no conceito oriental?

Dr. Jung: Bem, na idéia oriental o centro da mandala não é a secção transversa
de uma árvore. Isto é algo que eu tirei da visão desta paciente e de outras
fantasias de meus pacientes. No oriente poderiam ver este símbolo na forma
de um lótus. A própria flor de lótus corresponde ao corte transversal. Este é o
símbolo universal da taça. E deste cálice de lótus aparece o Deus... O lótus
tem a peculiaridade de emergir acima da água, isto é, a flor não pousa apenas
na superfície da água, mas eleva-se dela... Assim, é como uma coisa que se
eleva das profundidades do inconsciente e se desdobra, e no meio está o centro
dourado, no qual se supõe que o Deus apareça – ou onde o sol se ergue. Por
isso o sol é mágico. Assim como o lótus emerge das escuras profundezas
lodosas de baixo, e vem à superfície da água, assim levanta-se o Sol. Pelo fato
de ser o lótus a imagem do sol nascente, tornou-se o símbolo mais comum no
Oriente para o receptáculo de nascimento do Deus. Conhecem este símbolo: a
figura de Deus sentado na flor... E se olhamos o lótus de cima, percebemos a
mandala...

Mas o que falta no Oriente é a idéia de continuação; esta idéia de um corte


transversal na continuidade não é oriental. A idéia no Oriente é que a mandala
represetna a condição perfeita, justamente a finalização de tudo... Mas nossa
mandala ocidental – sejamos bastante modestos para dizer: porque não somos
perfeitos, não somos acabados, mas porque nos sentimos expressadamente
64

acabados – é um corte transversal em algum ponto, e nós não sabemos em que


altura. Provavelmente não muito alto. Nós não supomos que a mandala que
percebemos é a mandala mais perfeita, como o lótus no centro da mandala
oriental, o lótus do conhecimento absoluto. Assim, modestamente, suponho
que nossa mandala está em algum ponto mais baixo. E certamente, no estágio
desta visão, estaria fora de qualquer cogitação para esta senhora que ela tenha
percebido algo como uma perfeita mandala. Tenho uma excelente evidência
para dizer isto, porque mais tarde ela começou a desenhar mandalas e fez
algumas irregulares e uma que era obviamente errada – era como uma
inflamação, uma mandala meio consumida pelo fogo – o que mostra a sua
percepção de uma mandala estava muito perturbada.

Vejam: no Oriente temos que lidar com um tipo de filosofia absolutamente


terminada – terminada como poderia ocorrer naquela forma – mais aqui
estamos apenas começando a adivinhar a psicologia de tais coisas...

As portas

Pergunta: O senhor nos mostrou há pouco uma pintura oriental de um círculo


mágico com portões. Mas, de outro lado, o senhor diz que é proibido romper o
muro protetor. O que significa isso?

Dr. Jung: Bem, o centro é absoluto... As portas, na realidade, são idênticas às


quatro funções... Os quatro portões através dos quais a libido pode entrar e
sair...(Encontramos isto no BARDO THODOL, o Livro Tibetano dos Mortos).
A idéia é que o centro não devera ser abandonado, mas dever-se-ia funcionar
através das portas, como o governador de uma cidade. Ele mora no templo
65

mais interno na Cidade Proibida, e seus empregados, seus subordinados


entram e saem pelos portões; mas não ele. Ele permanece no centro e está bem
protegido, Esta é a razão pela qual existem portas e um muro; isto mostra que
a aspiração do Oriente não é ser morto e enterrado na mandala, mas funcionar
através da mandala. É uma ingenuidade do ocidental tentar compor a mandala
mas não funcionar através dela. Logo que ele se identifica com uma função (a
intuição, por exemplo) é como se ele se tornasse um balão e fosse carregado
pelos ventos; torna-se ele mesmo uma bola de gás porque perde contato com a
realidade; ou, se se identifica com uma outra função (a sensação, talvez), ele
apenas será enterrado, e já não pode andar porque pende para um lado. O fato
de que estamos mais ou menos identificados com nossas funções é, com
certeza, uma das razões da nossa desorientação. A idéia oriental é, antes, criar
uma harmonia das funções, enquanto o indivíduo mesmo seria central, se
desindentificaria delas, sentindo-se à parte de tudo isso. “Estar livre dos
opostos” é uma frase repetida sempre e de novo nos textos sagrados. A
mandala, portanto, não significa necessariamente um retirar-se da vida, mas
pode significar, do mesmo modo, um voltar-se para a vida.

Há certas mandalas, naturalmente, onde os portões estão trancados ou não há


portões, e estas pretendem produzir uma parada – porque uma parada, às
vezes, é bastante necessária, por exemplo, há certas civilizações que avançam
com excessiva rapidez – como nós fazemos e se não conseguimos fazer uma
parada ela será forçada pelas circunstâncias... Assim, algumas mandalas têm,
realmente, o propósito de produzir morte, são mandalas de completo
reconhecimento. E seu simbolismo parece ser meramente abstrato. Mas outras
mostram Shiva e Shakti num amplexo e é maravilhoso ver como este amplexo
se repete, como suas reverberações se irradiam para o mundo. Essas figuras
66

repetem-se em oito, de novo e de novo, o que significa que todos os amplexos


no mundo são reverberações daquele amplexo central. Uma tal mandala é uma
mandala de vida, não de morte...

[Sumário: para completar a temática do crescimento de uma árvore, nesta


secção dos excertos, temos que passar por cima de muitas visões.

Na primeira delas, ela desce em um buraco. Isto é o que o Dr. JUNG


mencionou ir para baixo, dentro do tronco da árvore. Aqui ela finalmente toma
contato com a terra, engolindo uma serpente preta. Quando ela retorna à
superfície, este elemento ctônico pula fora e o seu corpo é queimado até as
cinzas sobre um disco dourado, o que significa que está transformado numa
pulsão espiritual que a força na direção da consciência. Em seguida ela chega
a um muro preto, o futuro desconhecido, no qual ela nada vê além de um olho
e uma estrela, simblizando a emanação de luz e sua recepção. Este olho – isto
é, consciência vivente – parece ser o ponto onde é possível atravessar o muro.
Dentro, ela se aproxima de uma mulher que personifica a essência de toda a
feminilidade e vê uma cena brutal de prostituição sacrificial. Numa nova
profundidade, a mulher mostra seu caos increado e sopra vida numa figura
masculina de cristal que se forma lá. O homem de cristal é o “corpo-diamante”
o centro individual e tesouro de vida. Ela vê o tesouro fora dela mesma, num
homem, e isto indica que ela ainda não está madura para ele... Ela tem que
aceitar este fato e aguardar seu crescimento natural. EDITOR]
67

A árvore cresce acima do muro

Na visão seguinte ela está de novo perante um muro preto, está perante o
mesmo obstáculo, ainda é o mesmo muro com a estrela e o olho.

 Visão (continuação): Eu estava perante o muro preto e disse ao olho:


“Como poderei escalar este muro?” O olho virou para dentro de si
mesmo. Eu também virei meu olho para dentro, e dentro de mim mesma
vi uma árvore crescendo.

O olho é como uma peculiar forma de passagem; ele vira-se para si mesmo e
olha. Ela faz o mesmo, então tem uma visão e vê uma árvore em crescimento,
o que é. Evidentemente, um símbolo de desenvolvimento.

 Visão (continuação): Depois olhei para fora novamente, para o muro e


vi uma árvore crescendo perto dele. Aproximei-me da árvore. Ela me
recolheu nos seus galhos e me ergueu sobre o muro...

Ela cresce, literalmente, acima do obstáculo. E faz isto assumindo a posição


ou atitude da árvore, isto é, não faz isto por vontade própria. Ela não faz
nenhuma tentativa violenta para forçar o muro, mas deixa isto para um
crescimento natural. Isto significa, simplesmente, que se quiser chegar a
algum ponto, ela terá que crescer. Não há outro caminho. Ela tem que ficar
parada e esperar até que tenha crescido o suficiente para ultrapassar o topo.
Esta é uma situação psicológica bem definida.
68

Como vêem, o inconsciente sempre tende a criar um problema impossível, e


enquanto um paciente não deparou com um tal problema – enquanto ele pode
prometer a si mesmo uma solução para este problema – ele certamente ainda
não encontrou com a correta, mas apenas com alguma coisa preparatória.
Assim, o inconsciente sempre tenta produzir uma situação impossível, para
forçar o indivíduo a lançar mão de seus melhores recursos. De outra forma, o
indivíduo usa pouco suas melhores aptidões, não se completa, não se realiza.
Torna-se necessária uma situação impossível, onde temos que renunciar à
nossa própria vontade, às nossas habilidades, e nada fazer, só esperar e confiar
no poder impessoal do crescimento e do desenvolvimento. A visão diz: “Aqui
há este muro, cujo outro lado só poderás ver virando o olho para dentro. Não
te é possível galgar, a não ser crescendo como uma árvore”. E isto é
evidentemente, um mecanismo absolutamente diferente do mecanismo animal
que ocorre atrás das coisas – ou pula para pega-las como um cachorro.

 Visão (Continuação): No outro lado do muro eu percebi um velho.


Olhei nos seus olhos e vi neles um grande rio, repleto de corpos que se
retorciam. Umas poucas pessoas estavam na beira do rio e chamavam e
voz alta a massa de gente que se debatia na água impetuosa. A água
lançou algumas almas à margem. Aqueles que já estavam lá
levantaram-nas e mostraram a elas uma estrela e um sol. Depois eu
mesma estava nos olhos do velho. Ele disse: “Tu percebeste” e afundou
na terra.

O que é este intermezzo?Ela chegou ao outro lado do muro e lá encontra um


velho sábio, neste caso, é o Animus disfarçado de velho. E ela olha nos olhos
dele. Temos aqui, de novo, o olho. Isto significa que ela vê pelo modo de ver
69

dele, ela vê o que ele vê. Esse homem, naturalmente é de uma idade lendária –
eu não sei qual é a sua idade. Personifica o inconsciente coletivo, que é de
uma idade imensa, e naquele olho ela vê o modo de ver do inconsciente
coletivo...

É o rio do tempo, em outras palavras, o rio da vida. Os corpos são,


evidentemente, os destinos individuais, vidas que se debatem e contorcem,
tornando-se uma espécie de modelo, que se dissolve, de novo e de novo. E há
alguns poucos na margem... São as pessoas com consciência já destacada,
conscientes de si mesmas e da vida. Estão na ribanceira, chamando as massas
que labutam nas águas impetuosas. E o efeito do chamado sobre os corpos
que só se debatem nesse rio caótico é tal, que algumas poucas almas podem
chegar à margem, e a estão são mostrados uma estrela e um sol. O que
significaria isto?

Resposta: Destino e consciência individuais.

Dr. Jung: Sim. O sol significa a luz do dia e é também o símbolo da deidade. E
a estrela é o destino individual, consciência da vida individual e da deidade,
essa é a idéia. E o velho disse: “tu percebeste?” e depois desapareceu. Então, o
que estava ela percebendo?

Resposta: Para mim, quando ele diz “tu percebeste?”, sem qualificação,
significa eu ela percebeu tudo.

Dr Jung: Exato. O que ela vê é, na realidade, um ponto de vista, uma


Weltanschauung (cosmovisão, modo de ver o mundo) se quiserem chamar
70

assim. É uma idéia muito simples mas, naturalmente, de conseqüências


tremendas. Ela contempla o caos da vida, um rio interminável, que flui até a
eternidade, não apresentando qualquer sentido, porque tudo é meramente
caótico. Poucos estão na margem, conscientes disso.

Assim, no nosso mundo terreno só poucos estão na margem e só poucos


compreendem realmente e vêem realmente, com seus olhos o que está
acontecendo; todos os outros labutam, cegos, como sempre. Aqui, então, o
inconsciente enfatiza a importância extraordinária da consciência, como um
redentor da roda eterna da morte e do renascimento. Isto é o que a roda
significa na filosofia budista: a morte e o renascimento, a maldição da eterna,
ilusória existência sem sentido. Nessa visão, como no budismo, encontramos o
que ocorre na consciência em termos de um princípio redentor. Aqueles que
estão na margem do rio são conscientes, compreendendo o destino individual
e a relação com a deidade; ou com a estrela e o sol. Esses são dois princípios
importantes. Então essa consciência explica algo à paciente. O que poderia ser
isto?

Resposta: As coisas perecem, evidentemente, e isto é um fato bastante


pessimista. Mas, realizar isto na consciência é, de certa maneira, um elevar-se
acima dele, conquistando-o. Aceitar o fato de que perecemos no tempo, é uma
espécie de vitória sobre ele. Talvez isto fosse o sentido da tragédia no drama.
Essa visão é a apresentação do sentido do conhecimento – uma vitória sobre o
destino, pela aceitação dele.

Dr. Jung: Essa visão é uma espécie de reconciliação consigo mesmo, com seu
ponto de vista, com o grande contra-senso do mundo. Fornece-lhe uma
71

explanação filosófica: “Está vendo”, diz, “aquele rio inteiro só tem um sentido
se alguns escapam e tornam-se conscientes”. O propósito da existência é:
tornar-se consciente. O estar consciente nos redime da maldição do eterno
fluxo. Essa é uma idéia extremamente importante. É um outro paralelo com a
central doutrina budista. Então, percebam, essa mulher não tem nenhuma
educação particular nesses assuntos que vêm diretamente da cozinha do
inconsciente. E está sendo mostrado a ela de uma forma bem impressionante:
qual é o sentido da existência humana.

De acordo com essa visão, o significado real da vida é que umas pessoas
devam tornar-se conscientes. Esse estado consciente redime da maldição do
fluxo contínuo no rio do inconsciente. Parece quase como se pelo estar
consciente assegura-se uma posição fora do tempo. E isso é exatamente o que
as filosofias lamaístas e budistas ensinam: que a consciência forma uma ponte
sobre a morte. O indivíduo que morre nunca deveria perder sua consciência,
deve reter sua continuidade, de modo que o renascimento não deve toma-lo
inesperadamente.

Comentário: Supondo que ser consciente do tempo é como estar fora do


tempo, é ser intemporal e, portanto, imortal.

Dr. Jung: Exatamente; como se o estado consciente fosse um meio para


conseguir a intemporalidade. Essa é uma interessantíssima idéia filosófica
que, evidentemente, é de tremenda importância para esta mulher, do ponto de
vista prático. E isso é onde eu quero chegar. O que transmite para ela, bem
pessoalmente?
72

Resposta: Que vale a pena trabalhar por isto.

Dr. Jung: Mas naturalmente. Vale a pena, altamente, o trabalho pelo estar
consciente e aceitar a vida como é: porque isso é que dá o sentido acima de
tudo.
73
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE IV

Seminários entre 6 de maio e 24 de julho de 1931

SPRING 1962
2

Nos olhos do velho

 Visão: Do outro lado do muro eu percebi um velho. Olhei nos seus


olhos e vi neles um grande rio repleto de corpos retorcendo-se. Umas
poucas pessoas estavam na beira do rio e chamavam em voz alta as
massas de gente que se debatiam na água impetuosa. A água lançou
algumas almas à margem. Aqueles que já estavam lá os levantaram e
mostraram a eles uma estrela e um sol. Foi isto que eu vi nos olhos do
velho. Ele disse: “Tu percebeste?” e afundou na terra. Alguns pequenos
animais e flores crescendo em sangue apareceram no lugar onde ele
estava.

Como foi visto, este é um arquetípico velho sábio, simbolizando a sabedoria


adquirida que é a herança comum do ser humano. Em certa profundidade da
mente inconsciente não pode ser evitado o encontro com esse tesouro, a
herança da sabedoria. Aqui temos uma quota desta, aquilo que está dentro está
também fora e isto está sendo proclamado como a verdade mais vital. É uma
verdade que pouco tem com os nossos valores racionais. No entanto é a mais
importante para a vida da nossa alma. Se somos capazes de ter um tal ponto de
vista, um caminho está se abrindo dentro, através do qual é possível chegar a
uma condição mental serena, em que estamos em harmonia com as coisas. Se,
porém, nos adaptamos ao mundo como sendo apenas uma enleada cadeia
causal, nunca chegaremos a uma atitude mais assentada, não teremos a
sensação de certeza ou segurança.
3

O que parece ser a real condição das coisas simplesmente não tem
conseqüência, porque se nossa atitude é certa, as coisas são certas; elas serão
as coisas pertinentes. Se, de um outro ponto de vista, elas são sadias, ou
morais ou erradas, simplesmente não importa; porque esta é a nossa
experiência subjetiva no momento, e assim como experimentamos a nossa
vida no mundo, assim é. Naturalmente, de um ponto de vista, poder-se-ia dizer
que é a vida mais miserável, ou que é a mais linda que se pode imaginar. Mas
tais especulações são perfeitamente inanes; a única questão é: como vivemos a
nossa vida, como a experimentamos. Se nossa atitude é acertada, as coisas,
então, são acertadas...

Aqui a vida está sendo encarada como um rio no qual seres humanos flutuam
e são arrastados – todos completamente inconscientes – porque estão
submersos na água, o que significa no inconsciente. Um pequeno grupo na
margem é consciente, e estes chamam os que estão no rio, de modo que alguns
deles emergem e também tornam-se conscientes e distintos, mas eles são
poucos, apenas. Nas palavras do Novo Testamento: “Muitos são os
chamados, mas poucos os escolhidos”. A crença central budista é que
continuamos a circular interminavelmente na roda da morte e do renascimento
enquanto não somos conscientes, mas se pela meditação adequada e pelo
modo de viver adequado – seguindo o Caminho Óctuplo, como o expressa o
budismo – nos tornamos conscientes, então, eventualmente, alcançaremos a
emancipação. Assim, se juntam duas convicções centrais, a cristã e a budista,
e esta é a sabedoria do velho. Mas nossa paciente não inventou ou excogitou a
idéia, ela simplesmente a viu como imagem...
4

O que ela tira disto é um modo de ver muito universal quanto ao propósito da
vida. De acordo com a colocação do inconsciente, muitos estão sendo levados
pelo rio, mas uns poucos ouvem as vozes que chamam e saem da água; eles se
tornam conscientes, eles já não mais são arrastados pelo grande movimento
inconsciente. Assim, tornar-se consciente está sendo mostrado a ela como o
sentido de sua vida, e isto a reconcilia com o fato de que ela mesma estava se
sentindo completamente em desacordo com suas condições. Em virtude de
seus problemas, ela cresceu distante da atmosfera de sua família e de seus
amigos, das convicções de seu meio, e, naturalmente, sente-se isolada. Com
certeza lhe será dito que é neurótico e errado estar isolada, mas o inconsciente
diz que exatamente assim é que ela deve permanecer. Uma tal visão pode
ajuda-la a reconciliar-se com sua particular tarefa na vida. Porque todo aquele
que se empenha em viver a vida individual confrontar-se-á com uma situação
como esta, isto se repete eternamente...

 Visão: Depois que o velho falou, minha roupa tornou-se verde e depois
branca. Em redor de minha cabeça pairavam chamas brancas.
Atravessei campos ondulantes de trigo.

A imagem que ela pintou para ilustrar este estado, muito obviamente
simboliza iluminação. Isto é tipicamente simbolismo oriental. Na Yoga
Tântrica Kundalini, quando a introvisão (ou compreensão dos conteúdos
inconscientes) atingiu o centro mais alto (a sede da consciência), então
irrompe a luz – uma luz branca. O fato de que sua vestimenta se torna verde,
primeiramente, refere-se simplesmente à vegetação; indica que ela se torna
vivente, que ela é parte da vida. Quando se torna branca, significa que a vida,
anteriormente inconsciente, agora torna-se luz; e luz é, evidentemente,
5

compreensão, consciência. Depois disso, ela deve tornar-se consciente em um


modo inteiramente diferente. Deve tornar-se consciente da vida com total
clareza – bem como das coisas. Uma luz branca supõe-se ser a luz mais
brilhante e a luz mais brilhante outorga o maior poder de discriminação. E nos
campos, o trigo é maduro – é o tempo de consumação, da completa
maturidade... O que significaria este trigo?

Sugestão: Mestre ECKHART diz que o trigo é a mais alta forma de semente.

Dr. Jung: Sim. O trigo é muito simbólico porque é pão, o fruto da terra. Por
isto diz Mestre ECKHART: “A natureza mais íntima de todos os grãos
comporta trigo, de todos os metais, ouro, de todos os nascimentos, homem”.

FIGURA PÁGINA 68
Assim, o trigo seria quase a
essência da vida vegetativa, da
vida da planta. E já que a vida da
planta é o símbolo das qualidades
espirituais da vida humana, o que
simbolizaria o trigo?

Resposta: Ressurreição.

Dr. Jung: Sim, e também é símbolo


daquele que ressurge; de
JACCHOS, o filho divino da terra,
que nasceu no peneiro; de OSIRIS,
6

de cujo sarcófago cresceu trigo; de


CRISTO, na medida em que ele é a
hóstia, feita da farinha do trigo. STO. AGOSTINHO chamava MARIA a terra
virgem, ainda não fertilizada pela chuva, e assim CRISTO é o filho da terra, o
trigo. Aqui outra vez deparamos com o fato de que assim como é dentro,
assim é fora. Porque nesta visão nossa paciente é iluminada, ela tornou-se
plenamente consciente e, ao mesmo tempo, da terra nasceu o trigo. O mistério
de Eleusis, o nascimento místico de BRIMOS, ocorreu, da terra nasceu o
Deus. Esta condição seria expressada na filosofia chinesa como uma
condição, no momento, de completo TAO – isto é, da mais alta iluminação
dentro e da mais alta fertilidade fora, o Deus nascido dentro e fora,
ressurreição.

[Mas essa visão de iluminação é imediatamente seguida, como explica Dr.


Jung, por uma percepção das dificuldades que a esperam. Ela tem uma visão
da “face de sofrimento” no solo (isto é, em realidade) que se transforma em
uma criança morta. Quando ela imerge esta criança numa corrente de água, ela
revive e coloca em torno do pescoço da paciente uma corrente com uma jóia
em forma de coração que penetra queimando no seu peito. A criança cresce,
então, e transforma-se num homem (específico) que a deixa sozinha para
comungar com uma face que ri, surgida numa chama que emergira da água.
EDITOR].

Anteriormente, um anel incrustou-se, incandescente, na sua testa, significando


uma convicção intelectual chegara a ela. Agora o símbolo do coração-jóia
indica que a percepção tocou seu coração... As duas funções racionais foram
atingidas; então podemos supor que será dado um importante passo à frente.
7

Geralmente, tentando convencer uma pessoa, nada melhor podemos desejar do


que tocar seu coração tanto quanto sua cabeça. Mas às vezes, nem isso é
plenamente convincente; isto é, não impele. Porque, embora possa ser
compelente no que respeita a personalidade consciente, ainda é possível que o
inconsciente esteja contra, e neste caso mesmo uma séria tentativa do
consciente seria barrada por interferência inconsciente. Isto muitas vezes
acontece: as pessoas têm uma convicção consciente, mas não podem leva-la
adiante, porque alguma coisa, de um modo obscuro, sempre interfere.

A dificuldade é esta: quando alguém conseguiu uma tal realização, então


parece que o caminho foi aberto e é possível progredir; e progride-se mesmo,
mas assim fazendo, sempre e invariavelmente o passado fere com o seu poder.
A caminhada nunca é suave. Mesmo que o progresso assuma a forma mais
razoável, mais bem-vinda e útil em todos os aspectos, mesmo assim nos
ferimos contra o passado... Algum obstáculo sério intervém e não se pode
entender porque. Mas olhando para trás e percebendo a diferença entre o
progresso presente e a natureza dos eventos do passado, é possível entender.

As pessoas raramente possuem um tal senso histórico – um senso dos eventos


como eles eram anteriormente. O mundo dos nossos pais esvaneceu-se da
nossa consciência; nós não avaliamos a enorme distância que existe entre o
nosso mundo e o mundo de nossos pais e avós. Vivemos tanto no momento
que só com a maior dificuldade podemos reconstruir suas preferências e
convicções – para não falar daquelas de nossos ancestrais mais remotos. Se
tivéssemos mais senso histórico poderíamos compreender melhor o sentido do
progresso. Na história do mundo, também, qualquer progresso importante
sempre significou derramamento de sangue e guerra e revolução. Nós todos,
8

por exemplo, estamos convencidos de que os intentos espirituais da primeira


cristandade eram uma coisa muito boa, que sua intenção e propósito gerais
eram maravilhosos. Ainda assim, a Cristandade causou uma terrível
reviravolta no mundo; levou à destruição de milhares e milhares de vidas. A
razão para tal conflito é a diferença, a fricção, entre o momento atual e o
passado. Tudo isso é uma introdução à sua visão seguinte.

O gigante do passado

 Visão: Eu vi um gigante deitado no chão. Era repugnante. Sua pele era


branca e frouxa. Ele gritou para mim: “Tu me temerás, porque
esfregarei teu rosto no pó e esfolarei teu corpo com chicotadas”. Falei a
ele, dizendo: “Oh, mundo! Não estou com medo”. Então tudo tornou-se
escuro e borbulhante de formas e vultos medonhos. Eu estava no rio de
sangue fervente. O gigante ergueu-se sobre mim e projetou uma sombra
tão grande que eu não conseguia ver as estrelas do céu. Eu estava sendo
sugada para dentro de uma grande correnteza fervente e gritei agoniada.
O gigante desapareceu e eu vi uk grande ovo brilhando na sua brancura.

O gigante reaparecerá em outra visão posterior na qual ela carrega sua grande
figura. Mostrarei o desenho que ela fez então. Foi feito muito mais tarde,
quando houve de novo um movimento para a frente e ela de novo feriu-se em
conflito com o passado. Só então ela compreendeu o que deveria ser feito com
o passado – que ele deve ser carregado. Este desenho é a contra-parte da idéia
histórica do TRANSITUS (trânsito, passagem) – o carregar o símbolo – que
fazia parte de muitos mistérios antigos. No culto de ATIS, era o carregar da
árvore o símbolo da mãe. Usualmente era um pinheiro que se carregava para
9

FIGURA PÁG. 69
uma caverna. Atravessar um
rio ou passar por um
obstáculo pode ser também
o “transitus”. MITRAS é
muitas vezes representado
carregando sobre seus
ombros o touro morto e isto
também é o “transitus”; o
touro é a sua própria vida e é
o mundo, é o assim chamado
‘touro-do-mundo’. Há uma
antiga lenda de que o mundo
foi feito por Deus na forma
de um touro e esta lenda
ainda existe na África...
Foi um pouco do antigo misticismo persa absorvido pelos místicos
maometanos que se transferiu ao sufismo e assim estendeu-se da costa
africana até Zanzibar. Menciono isto porque na visão a paciente chama o
gigante “o mundo” e o touro mitraico é o mundo, é a vida da terra, porque o
sacrifício do touro fez crescer toda espécie de víveres. A forma mais
conhecida do “transitus” é CRISTO carregando a cruz, sendo a cruz, outra
vez, a árvore. É o mesmo símbolo no Cristianismo como no culto de ATIS, e
tem o mesmo valor: significa carregar a mãe – o mundo é a mãe, MÃE
TERRA.
10

Assim, este quadro estranho – a minúscula figura da mulher carregando o


gigante, aquele enorme corpo branco com braços pendurados, aquela enorme
massa de carne – representa o passado no sentido do mundo como ela o
encontra. E, naturalmente, ela não estaria agora encontrando o mundo se não o
tivesse perdido. Ela perdeu seu relacionamento com o mundo do seu passado
porque passou por longas séries de mudanças internas. E todos os que
atravessaram tais extensões do deserto interno – aquele ermo interno, aquela
selva – têm a mesma sensação de haver, por causa disso, perdido seu mundo
anterior.

É um fato que a maioria dos cultos espirituais conduz a uma alienação da


sensação do mundo. No início do Cristianismo milhares e milhares se isolaram
no deserto, cidades inteiras se despovoaram, e nos países católicos uma boa
porcentagem da população ainda vai para os mosteiros. Também há agora um
número enorme de monges nos mosteiros do Tibet. Obviamente, a vida
espiritual tem uma tendência para alienar o homem do seu passado e – com
reservas, é claro – esse é o seu propósito; é um procedimento adequado e
proposital, porque a maioria das pessoas acha extremamente difícil manter um
desenvolvimento espiritual contra o mundo... Portanto, todo intenso
movimento espiritual tem sido acompanhado de tais fenômenos como
conventos e mosteiros, lugares de retiro.

Mas o movimento progressivo da paciente a conduz agora, natualmente, para


o mundo. O mundo é o único lugar onde ela pode criar, porque não podemos
criar quando nos recolhemos inteiramente no ar rarefeito. Necessitamos o
mundo porque este é a matéria prima, a MATÉRIA. Temos que sujar as mãos,
para fazer um trabalho sério; assim, precisamos tocar o mudo, precisamos
11

misturar-nos com a matéria. Uma existência espiritual é realmente uma


condição em suspenso. Pode se ser um eremita e viver no espírito e este é um
modo de vida, mas não é visivelmente criativo. Por outro lado, embora se diga
que este é um fazer nada, não estou convencido disto. Estou certo de que
aqueles eremitas nos desertos da Síria e da Líbia fizeram uma coisa
extraordinariamente boa. Suas vidas foram de tremenda importância, porque
eles demonstraram o poder do espírito a um mundo absolutamente
materialista... Mas quando os tempos mudam, quando o poder do espírito está
amplamente demonstrado e a humanidade está convencida de suas vantagens,
afastamento do mundo perde, naturalmente, sua utilidade, torna-se uma reação
obsoleta. Porque aparece, então, a necessidade do outro lado: chega o tempo
quando o poder da matéria tem que ser demonstrado.

Yang e Yin

A nossa terminologia para expressar isto é muito inadequada. Deveríamos, na


realidade, usar os termos da filosofia chinesa; é muito melhor falar de um
tempo em que Yang prevalece e de outro quando Yin prevalece. Na nossa
época há muitos sinais da crescente importância de Yin. (Talvez eu deva
explicar que Yang é um princípio masculino, luminoso, ardente, criativo; é o
firmamento, os céus, o lado sul da montanha, e o dragão é o seu símbolo;
enquanto Yin é o princípio feminino, maternal, úmido, escuro, receptivo, o
lado norte da montanha, a noite, a terra [tigre]). Esses dois conceitos, que a
mente ocidental dificilmente pode apreender, são extremamente adequados
para explicar os princípios básicos da nossa psicologia. A princípio sentimos
que são vagos, como nuvens de poeira; mas par a mente oriental são bem
definidos, e quando nos familiarizamos com eles, vemos, de súbito, que são
12

absolutamente inteligíveis e claros; que caracterizam os dois princípios de


uma norma insuperável...

No caso desta mulher, o progresso não conduz a mistérios espirituais; ela tem
que tomar o caminho descendente, o caminho Yin e aqui Yin é alguma coisa
muito impessoal. Se eu falo em seguir o caminho descendente, nenhum
julgamento moral está implicado; não significa arruinar-se, degeneração, ou
completa autodestruição moral ou estética. Nada desse tipo. Ela está no
caminho para Yin, literalmente; ela acabou de se iniciada pela Grande Mãe.
Isto é o simbolismo ctônico e não apenas a terra: Yin não é apenas a terra.
Antes, ontem a terra, a escuridão da humanidade – e talvez a caverna, talvez a
serpente. Isto tudo que se pode dizer, mas contrasta caracteristicamente com
Yang. Como vêem, a mente oriental sempre pensa nestes pares de opostos, ao
passo que nós estamos sempre tentando estabelecer a univocidade das coisas.
Se construímos uma imagem completa do que cerca um objeto é para
diferencia-lo como um fato único, para destaca-lo do seu meio. Mas a mente
oriental não pode pensar um Yin definitivo sem ter, ao mesmo tempo, o
conceito de Yang em mente; tanto assim que no TAI-GI-TU – aquele símbolo
circular contendo duas formas semelhantes a peixes, uma preta e a outra
branca – o peixe preto que é Yin, sempre tem um olho branco e o peixe
branco, que é Yang, um olho preto. Em cada forma plenamente desenvolvida,
está sempre a caminho o germe do oposto. Este é o paradoxo chinês, o nascer
do sol inicia-se à meia noite...

Assim, a correta caracterização para o progresso desta mulher seria, não o


caminho descendente, mas o caminho Yin. Ele não conduz a monastérios
espirituais, mas à terra. Conduz a coisas tangíveis que são destrutivas se
13

encaradas do ponto de vista Yang, porque Yin é a negação de Yang. Mas um


filósofo chinês nunca pensaria que apenas Yang é bom, porque então Yin
tornar-se-ia algo infernal a ser combatido; nem pensaria – do ponto de vista de
Yin – que Yang deve ser superado. Ele é ciente desses opostos como um par e
nunca sonharia em ter apenas Yin ou em mobilizar um partido Yang contra
um partido Yin. Mas esta é a forma como nós pensamos... Vejam, esta é a
nossa psicologia histórica, inclinada a pensar que aquilo que sempre foi tabu é
necessariamente mau – uma vez mau, sempre mau. É um ponto de vista
destrutivo.

Podem encontrar exatamente a mesma idéia no antigo livro pagão de


APULEIO, “O Asno de Ouro” – praticamente a única novela romana ainda
existente. O livro narra a vida de um jovem filósofo, o próprio APULEIO, que
viviva a vida comum de um cavalheiro romano, uma vida sensual
perfeitamente natural, como a de qualquer jovem – como STO.
AGOSTINHO, por exemplo, vivia na sua juventude. A novela mostra que, por
sua simples vida natural, o filósofo, lentamente, torna-se mais e mais
animalesco, e por fim é enfeitiçado e transformado em asno. Então é usado no
teatro para as mais abomináveis atrocidades e obscenidades. Ele é
terrivelmente infeliz na forma de asno, até que um dia encontrando a procissão
dos sacerdotes de ISIS e vendo o Sumo Sacerdote que carrega uma coroa de
rosas, ele abocanha as rosas e as come. Torna-se então espiritual, transforma-
se num iniciando. [E transforma-se novamente em ser humano].

Lembrem-se: isto foi escrito por um pagão, não por um cristão. Mostra a
necessidade psicológica da época; mostra que se alguém vive a vida natural
inteiramente, torna-se um animal, e por isso necessita uma iniciação espiritual.
14

Era perfeitamente verdadeiro que naqueles dias, quem vivesse no estilo


costumeiro ia para o inferno, e o bom caminho era o caminho Yang. Mas se o
caminho Yang se torna tão estabelecido que conduz a uma completa
esterilização e paralisação da vida, então o caminho Yin é o caminho vivente;
é o caminho da graça, da salvação. Mesmo assim, parece trazer à tona todos os
demônios no mundo. Para os romanos, por exemplo, os cristãos apareciam
como os piores vermes que um demônio poderia inventar, porque eles
transtornaram suas famílias. Um filho se convertia e se tornava uma perfeita
praga tentando converter o pai. A razão principal para a perseguição aos
cristãos era o transtorno da vida familiar. CRISTO mesmo diz que ele não
vem com a paz, mas com a espada – separar famílias fazia parte do programa.
Isto foi muito mal recebido pelos cidadãos romanos; assim, não toleraram
aquele culto oriental – mesmo os judeus eram tolerados, mas não os cristãos.
Naturalmente, para o velho caminho Yin o novo caminho Yang era diabólico
e por isso foi combatido...

Hoje a situação é exatamente a mesma, mas invertida. Acreditamos no


caminho Yang e pensamos que o caminho Yin que está aparecendo agora
representa todo o mal.

Assim, esta mulher experimenta todos os medos e dúvidas do novo caminho.


Ela sente que, de certa maneira, tudo está errado; isto aparece sob o aspecto de
uma cobra preta, tudo é pecaminoso, destrutivo, impossível; mas o tempo todo
seu inconsciente a empurra para a forma Yin, e quanto mais ela pode aceitar
isso, tanto mais uma grande luz surge diante dela de tempos em tempos, ou ela
experimenta uma tremenda realização emotiva e cada vez mais se convence,
contra sua vontade, de que o caminho Yin é o caminho da salvação.
15

Penso que agora entendera o simbolismo da primeira parte da visão... Aquele


tremendo gigante deitado no solo simboliza um poder enorme associado à
terra. Os gigantes são sempre poderes ctônicos, como os Titãs, por exemplo,
na mitologia grega, ou os gigantes da mitologia nórdica. A pele branca
daquele gigante é brancura da morte e a frouxidão é aquela de um corpo mais
ou menos em decomposição... Ele quer pressiona-la terra a dentro, no pó, e
reduzi-la a nada. Este é, certamente, o poder sobrepujante do seu mundo
anterior, no qual ela, como uma frágil entidade espiritual, como uma tênue
centelha de vida, simplesmente se perde.

A relação do tesouro com o Yin e Yang

Aqui deparamos de novo com um simbolismo bastante típico, que é a idéia do


tesouro. Por exemplo, quando CRISTO fala do tesouro no campo, ele alude ao
Reino do Céu que está dentro de nós. Esta pequena luz, este germe de vida,
começo de uma nova consciência, é bastante pequeno e, como qualquer
germe, pode ser facilmente destruído. Mesmo o carvalho mais forte começa
com uma tenra plantinha que facilmente pode ser arrancada. E assim, a nova
consciência desta mulher é frágil, em comparação com os gigantes do seu
mundo anterior. No budismo o tesouro é simbolizado pela jóia que pode ser
vista na testa de BUDA ou dos Bodhdisattvas. Na versão chinesa é a pérola.
Nas imagens do clássico dragão chinês, sempre pode ser vista uma pequena
pérola lunar diante do dragão, ou uma pérola dourada, quando tudo é dourado.
Nunca está na boca do dragão: ele parece estar sempre querendo apanha-la.
Naturalmente, o dragão é, para nós, um símbolo extremamente desfavorável,
mas no Oriente o dragão é favorável; representa a força criativa, Yang. Do
ponto de vista europeu, encaramos a pérola, a imagem do sol ou da lua, como
16

a coisa preciosa, a nova luz, em perigo de ser tragada pelas forças escuras, por
Yin. Mas esta idéia seria um engano, porque aqui, outra vez, a mente oriental
tem um tipo peculiar de objetividade. A mente oriental está absolutamente
ciente do fato de que Yang é tão perigoso quanto Yin – é preconceito nosso
pensarmos que Yang é todo o bem e Yin é todo o mal. Assim, talvez, o dragão
poderia bem engolir a pérola; de modo algum é certo, como encara isto a
mente oriental, que engolir a pérola seja particularmente perigoso ou
indesejável. Vejam, a pérola representa a unicidade, o pequeno corpo, o
grande valor, o qual é perfeitamente indefeso contra o dragão, e não se
compreende de forma alguma porque durante toda a eternidade, aquele dragão
não a engoliu. Minha idéia é que a pérola simboliza a unicidade do indivíduo,
o indivíduo imperecível que está sempre lá. É o herói, realmente, que é
tragado pelo dragão, mas sempre reaparece, tendo destruído de dentro o
dragão.

Aquela coisa pequenina, aquele indivíduo único, aquele Self (Si-mesmo), é


pequeno como a ponta de uma agulha; mas por ser tão expressadamente
pequeno, é também maior do que o grande. Aí está de novo a fórmula orienal
e ela é de tremenda importância...

Mas quando a centelha de luz, que é a nova consciência, vem ao mundo,


encontra-se naturalmente frente aos grandes poderes da banalidade. Todas as
coisas acabadas, todas as coisas estabelecidas, são grandes. Uma coisa nova é
sempre pequena, feia, inaceitável, enquanto as coisas crescidas e plenamente
desenvolvidas são belas, poderosas e preferíveis.
17

Pensem na beleza e na perfeição da Igreja Católica, por exemplo. É uma coisa


absolutamente acabada e perfeita e, naturalmente, ama-se a beleza e a
perfeição; e então lá vem uma minúscula centelhazinha com tendências
luciferianas, para desviar daquela forma e, naturalmente, a Igreja engole-a ou
liquida-a, exatamente como fez com todos os heréticos: alguns foram
habilmente engolidos, como São Francisco, outros inteiramente liquidados...
Porque na especulação da igreja cristã, a individualidade é realmente má, uma
invenção do diabo, porque significa separação de Deus.

Enantiodromia

Assim podemos entender que, quando nossa paciente desafiou o gigante (que
era o mundo, do qual ela, equivocadamente, clamava não ter medo), então o
mundo agarrou-a. Ela caiu no abismo, agitado por formas e vultos horrendos,
e foi arrastada de volta ao rio de sangue do qual havia emergido. Aqui o
gigante não está mais estendido no chão, como Golias abatido pela pedra de
Davi, mas ergue-se acima dela e produz uma sombra tão grande que ela não
pode ver as estrelas ou o céu: toda orientação foi perdida; a escuridão é
completa; ou, como diria o I Ching, ela está “perto do coração das trevas”. E
ela está sendo puxada ainda mais para baixo, porque relata: “Estava sendo
sugada para dentro do grande fluxo fervente e soltei um grito de agonia”. Esta
é a morte do herói, indica o desaparecimento do herói na barriga da baleia-
dragão. Então, na escuridão sobrepujante mesmo o gigante desaparece.

Poderia parecer ilógico supor que o poder que dominava alguém totalmente,
desapareça quando este é eliminado. Mas insto é verdadeira filosofia chinesa.
Se Yin consegue tragar e abolir Yang completamente, então Yang penetra na
18

escuridão e incendeia tudo e a luz de novo vem para fora. Por isso, se Yin quer
superar Yang, ou Yang Yin, se um homem quer dominar uma multidão ou se
um rei quer governar seu povo, ele tem que ser engolido pela multidão, ele
tem que se entregar completamente a eles, porque só assim ele pode aparecer
em cada um deles. Esta verdade está simbolizada na comunhão cristã. Lá
supõe-se que Cristo está sendo literalmente comido; ele penetra na escuridão
de cada um e reaparece em cada um... Aqui é como se o gigante fosse
engolido pela sua própria escuridão; mas então o Yin no auge do seu poder,
supera-se a si mesmo e pela lei da ENANTIODROMIA transforma-se a si
mesmo no seu próprio oposto. Este é o famoso conceito que significa o
cruzamento para o oposto, criado por HERÁCLITO que dizia que todas as
coisas movem-se para o seu oposto. Esta é uma lei psicológica extremamente
importante que pode ser encontrada em todo lugar. Provavelmente já
perceberam que na seqüência dessas visões as coisas se desenvolvem de novo
e de novo através da ENANTIODROMIA. Sempre que uma certa coisa chega
a um topo, ao cume, então decai e transforma-se no seu oposto.

Assim aqui, no momento supremo, quando a escuridão é absoluta, mesmo o


gigante desaparece e, notem, um ovo aparece, de brancura ofuscante...
Completamente indefesa, a paciente sucumbe aos poderes do mundo e desse
gigante surge um ovo – um ovo que ela pode segurar na mão, com o qual ela
pode lidar. Ainda mias: o ovo é uma promessa de vida. Isto evidentemente,
não é para ser entendido numa forma lógica, é apenas para ser entendido como
uma imagem intuitiva. Assim como ela era aquela figura minúscula, aquele
pequeno germe de luz, antes de ser tragada pela escuridão universal, assim a
escuridão universal subitamente torna-se um germe de vida que ela segura nas
mãos como se ela fosse um gigante. Agora, esta é uma idéia muito difícil, mas
19

como uma imagem é perfeitamente clara... Como explicariam tal mudança


tremenda? Essa experiência de forma alguma é privilégio apenas dela. Tenho
visto o mesmo tipo de mudança ocorrer inúmeras vezes em momentos
importantes e decisivos como este. Agora, como poderia ser, que a coisa que
era o mund0o do passado, um cadáver, subitamente é transformado em ovo?

Resposta: O passado é o útero do futuro.

Dr. Jung: Isto é perfeitamente verdadeiro. É ele também o germe do futuro?

Resposta: Sim, o passado e o futuro são opostos e mesmo assim o futuro


emerge do passado.

Pergunta: Gostaria de perguntar se a mesma idéia está expressada quando se


coloca um grão de trigo na terra para produzir o novo germe?

Dr. Jung: Sim, a morte do grão de trigo para produzir o novo germe.
Naturalmente ele não morre, simplesmente transforma-se, mas isto é usado
como um símile – como um cadáver é colocado na terra e se entende que
ressurgirá no dia do Juízo Final.

Bem, esta idéia, então, ou esta imagem, é a representação simbólica da idéia


de que o passado é o germe do futuro. Vejam, aqui ocorre uma coisa muito
estranha. Falávamos da sua consciência como uma centelha, uma luz tênue na
grande noite universal. Ela está, naturalmente, dominada pelos poderes do
mundo e sua luz está extinta; mas então o mundo se transforma – o mundo de
antigamente se transforma em virtude do fato de que ela se perdeu nele...
20

Poder-se-ia formular isto talvez assim: se pensamos do indivíduo como sendo


uma substância imperecível de qualidade mágica ou divina, e se a escuridão
cósmica sobrepuja esta luz individual, então esta luz desaparece, ela não é
mais visível; mesmo assim entra no coração da obscuridade, está dentro da
obscuridade, e uma vez que é imperecível, a escuridão não pode destruí-la. Ao
contrário, o efeito disto é que a escuridão universal fica transformada, e Yang
emerge de novo de Yin.

Comentário: Os romanos que conquistaram os gregos foram conquistados


espiritualmente por estes. Não é a mesma coisa?

Dr.Jung: Sim, isto é bem a mesma coisa. Um exemplo melhor seria a


conquista de Roma pela Ásia Menor e Egito. A mesma coisa acontece
conosco: conquistamos o Oriente e o Oriente está nos conquistando. Aqui, no
âmago da civilização, estamos falando de filosofia chinesa e nos declaramos
incapazes de encontrar algo melhor.

Renascimento da Divindade em Deus através do Homem

O que estou colocando aqui é um pensamento muito estranho e devemos


dizer, certamente, que e uma hipótese. Não sei se estarei em condições de
torna-lo claro. Vejam, é óbvio que um ser individual, uma luz ou consciência
individual, pode perder-se no mundo. Vemos isto todos os dias; é tão óbvio
como o fato de que morremos. Mas esta visão diz, se a sua luz é apagada pela
grande escuridão de modo que nem é possível ver as estrelas e o céu, então
algo muito grande acontece, então a sua luz se torna universal; então é
exatamente como se você tivesse dado à luz um Deus, já que a coisa universal
21

é o Deus. Agora, isto coincide com as idéias místicas de MESTRE


ECKHART, por exemplo. Ele faz uma diferença entre Deus e a Divindade,
como se a Divindade fosse nada – ou alguma coisa inteiramente inconsciente e
não feliz em si mesma. É como se a divindade tivesse que renascer em Deus
através do homem.

Para o primitivo, um Deus é algo original, um princípio das coisas como têm
sido feitas ou criadas até aqui, e isto é justamente como se essa coisa toda não
tivesse cabeça; e então o homem individual chega, com sua consciência
individual, e é como se este homem fosse a cabeça, como se ele tivesse dado
uma cabeça à Divindade. Esta é a criação da luz. É como se ele estivesse
fazendo a Divindade toda contrair-se em um ovo, o qual se torna uma nova
luz. Ele se perde mas o que ele produz é eterno.

Temos a mesma idéia no cristianismo. Cristo é aquele ovo – a lenda


dogmática não corresponde inteiramente a isso, mas a lenda gnóstica sim. Já
lhes falei sobre a lenda gnóstica do Demiurgo que criou um mundo muito
imperfeito mas que pensava, na sua vaidade, que ele era maravilhoso. Então,
muito acima dele, viu uma luz – alguma coisa que ele não havia criado. Então
subiu e lá encontrou um mundo espiritual que ele não conhecia antes, feito
por um Deus estranho. Foi este Deus estranho que – olhando para baixo e
vendo a miséria do homem que o Demiurgo fizera apenas semi-consciente –
compadeceu-se e mandou seu filho ao Paraíso, na forma de serpente, para
dizer ao homem que ele deveria comer daquela árvore proibida. Como está no
Gênese: “Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal”. Este é bom
conselho psicológico: comer da árvore, ver todo o mal, compreender quanto
ele necessita melhoramentos. Mas, então, todos aqueles que comeram daquela
22

árvore e aumentaram a luz do mundo, eram perseguidos. O Deus estranho –


notem, este não é o Deus que fora o Criador do mundo – viu a humanidade
lutando em vão contra as intenções malévolas do Demiurgo. De novo, então,
enviou seu filho, esta vez como Cristo, e Cristo conseguiu abrir os olhos das
pessoas para o fato de que este mundo é realmente podre, muito mal feito, e
que por isso deveriam libertar-se dele. Esta é a razão pela qual os ofitas – uma
das seitas gnósticas – adoraram a serpente como Cristo e tiveram na mesa da
comunhão a serpente junto com o pão e o vinho.

O Ovo

Deveríamos agora falar um pouco mais sobre o ovo... porque o ovo é o


exemplo eterno do germe perfeito numa adormecida condição potencial. Com
freqüência é representado em antigas gemas gnósticas circundado por uma
serpente. Este é um simbolismo importante que se encontra na filosofia
tântrica hindu, onde a serpente se enrola no ovo, o ponto criativo chamado
BINDU...O ponto é interpretado como o Deus masculino; é chamado o ponto
de SHIVA e muitas vezes foi representado como um falo, o símbolo das
forças geradoras. A serpente enrolada em torno dele seria o princípio feminino
que recebe ou circunda o ponto criativo; é chamado SHAKTI, sendo SHAKTI
a Deusa, o feminino. Pela união do ponto SHIVA com SHAKTI, cria-se a
ilusão do mundo, ou MAYA. Agora, quando este sistema começa a atuar, é
simbolizado na filosofia tântrica pela elevação da serpente KUNDALINI. A
palavra KUNDALINI vem de kundali, “enrolado”. E, à medida que esta
serpente se eleva, emana o sistema de aparências, o que é chamado mundo,
mas que eles dizer sr essencialmente uma ilusão.
23

Menciono estes detalhes porque, na medida em que progredimos na


interpretação destas visões, verão que há, indiscutivelmente, uma tendência no
inconsciente da paciente para aproximar tais idéias orientais, embora, na sua
consciência, ela esteja totalmente desinformada delas. Por razões que
desconhecemos, seu inconsciente está tentando expressar este particular
aspecto da verdade. No entanto, essas idéias são arquetípicas e distribuídas
pelo mundo inteiro; encontramos o mesmo tipo de simbolismo nos mistérios
órficos, na Grécia, onde o ovo, o germe do mundo, é exatamente paralelo à
idéia de SHIVA-BINDU na filosofia tântrica.

Nada está indicado nesta visão em conexão com a serpente; só sabemos que
no lugar do gigante aparece um ovo. Sabem porque desaparece o gigante? Isto
é muito importante. Lembram-se que o gigante simboliza o poder
sobrepujante do seu mundo do passado. Como dissolveu-se aquilo?

Pergunta: O gigante não é Maya?

Dr. Jung: Sim, mas como seria aquilo dissolvido?... A resposta aparece
claramente aqui, mas não a notamos; o estilo telegráfico destas visões nos
vendo os olhos. Vejam, os eventos imediatamente anteriores foram, na
verdade, a culminação do poder do gigante... Agora ela está completamente
entregue... (Ela solta um grito de agonia) e é neste ponto que o gigante
desaparece... Poder-se-ia supor que o gigante permaneceria lá por toda a
eternidade e que ela simplesmente seria sugada e desapareceria. Mas não,
gigante desaparece. Como é isto?

Sugestão: Ela solta um grito de agonia.


24

O poder do sofrimento

Dr. Jung: Exatamente, é seu grito lancinante que mata o monstro; é sua agonia
que o supera. Isto mostra o valor criativo do sofrimento. Mestre ECKHART
diz assim: “O sofrimento é o cavalo mais veloz para levar-te à perfeição”. É o
sofrimento que transforma; ela se permite sofrer agonias e, expressado como
está no seu estilo telegráfico, podemos toma-lo no seu pleno valor. É o
momento de absoluto sofrimento e isto faz desaparecer o gigante. Agora, este
é um ponto muito importante. Naturalmente, para a psicologia masculina isto
soa muito brando e fraco. Não podemos entender como poderia ser isto, e
assim, o homem, quando é o herói, toma uma lança e mata realmente o
monstro, de dentro. Lembram-se da minha “Psicologia do Inconsciente”? Mas
a mulher o mata através do sofrimento. Podem entender uma tal coisa?

Pergunta: Seria o sofrimento de Cristo na cruz uma coisa semelhante? E ele


era um homem.

Dr. Jung: Sim, exatamente. E isso é o que não podemos entender. É a mesma
idéia, o efeito mágico do sofrimento... Sofrimento agudo tem o efeito
extraordinário de que, subitamente o passado inteiro não importa em
comparação com a dor... Pessoas que não possuem seus centros, que estão um
tanto fora deles, necessitam uma grande dose de sofrimento antes que possam
sentir-se a si mesmas – elas quase inflingem a si mesmas situações nas quais
têm que sofrer. Mas ninguém pode impedi-las, porque é uma necessidade. Só
através da dor podem elas sentir-se a si mesmas, ou perceber certas coisas, e
se nunca perceberem, nunca poderão progredir.
25

Se a humanidade não tivesse sofrido por viver em cavernas ou nos galhos das
árvores, casas nunca teriam sido inventadas. Então, mesmo se o sofrimento
não é infligido de fora, é infligido pelas pessoas a si mesmas, com o propósito
inconsciente de sentirem-se a si mesmas. Se temos uma dor de dente
torturante, o mundo inteiro não importa; se no mar estamos enjoados, é
indiferente se o navio afunda ou não; ficamos desmoralizados. Mas o efeito
positivo disto é que nos sentimos a nós mesmo, adquirimos uma percepção e
aprendemos a nos afirmar contra o gigante.

Assim, através de uma agonia tão aguda a paciente percebe a si mesma e isso
é exatamente o que ela necessita. Naquele momento, tudo que antes era
sobrepujante torna-se um ovo; ela diz: “Eu vi um grande ovo, ofuscante na sua
brancura”. Ela o representa na pintura que fez, como se estivesse acima dela e
ela estende seus braços para ele como se fosse uma aparição divina. Parece
uma invocação.

Pergunta: O senhor explica o sofrimento como um meio de atingir a


consciência de si mesmo. No Cristianismo a renúncia do ego parece ser uma
parte ideal de santidade, como no caso de Cristo e dos mártires. Qual é a
filosofia do sofrimento?

Dr. Jung: A idéia cristã do sofrimento, isto é, do martírio intencional, era


negar os interesses egoísticos do homem e sua evitação da dor. Os mártires
afirmaram-se a si mesmos como unidades imortais: era realmente para
enfatizar o Self (Si-Mesmo), porque para eles o Self era idêntico ao Reino do
Céu. Nos “logoi” (Ditos) recentemente descobertos em Oxyrynchus, está
escrito:
26

FIGURA PAG. 75
“O Reino do Céu está dentro
de vós; e todo aquele que
chega a se conhecer o
encontrará. Esforçai-vos,
portanto, para vos
conhecerdes a vós mesmos e
perceberais que sois os
filhos do Pai; sabereis que
sois a Cidade de Deus.”
Assim, quando o Si-Mesmo
afirmou-se através do
sofrimento, isto significa
que o Reino do Céu se estabeleceu, e este era o propósito do martírio e a razão
pela qual os cristãos foram doutrinados para buscar a arena.

O martírio cristão significava a completa abnegação do ego, o que era


absolutamente necessário naquele tempo. É impossível viver como um ego
eternamente, porque isto é demais pueril. Naturalmente, muitas pessoas
cometem o grande erro de tomar o ego pelo Self (Si-Mesmo). O ego não passa
de um Si-Mesmo artificial.. Isto, certamente, é claro para nós, mas naqueles
tempos o egoísmo era um fato evidente por si mesmo. A Bíblia disse: “Ama
teu próximo como a ti mesmo”. Era óbvio para eles, então, que eles amavam a
si mesmos, todo mundo amava a si mesmo, e mais tarde tornou-se nosso ideal
amar o nosso próximo; atualmente amamos o nosso próximo e não a nós
27

mesmos. Todos odeiam retornar a si mesmo, porque cada um é repugnante


demais para si mesmo...

Agora prosseguiremos até a abertura do ovo. Ele contém algo e a paciente está
bem curiosa para saber o que é.

 Visão: Eu disse: “Abre, para que eu possa saber o que está dentro de ti”.
O ovo abriu-se em toda a sua extensão e dentro eu vi uma antiga
escultura preta de uma cabeça. Tirei-a para fora e limpei dela a poeira
de épocas. Ao fazer isto, línguas de fogo saíram dos lábios e a cabeça
disse: “Beija-me, mulher!” Eu disse: “Não posso, me queimarei.” A
cabeça ordenou de novo, e eu a beijei. Então senti o fogo espalhar-se
dentro de mim. Eu me levantei, a cabeça caiu no chão e se partiu em
fragmentos.

Antes de tudo temos que voltar e encontrar a origem dente ovo. Certamente
veio do passado, está no lugar do passado, ou poderíamos dizer que estava
dentro do passado, um ovo que esteve escondido dentro do gigante; isto é, o
mundo até então estava prenhe com um ovo invisível, agora este aparece,
enquanto o mundo desaparece. É um germe que talvez remonte às idades
passadas; porque ela diz que a cabeça estava coberta com a poeira de épocas.
No passado remoto um ovo foi posto, ou originou-se o germe de um novo
mundo, que permaneceu oculto dentro do gigante, mas quando ele desaparece
o ovo torna-se evidente e dentro está aquela cabeça preta. A cabeça tem que
simbolizar a coisa que permaneceu oculta no passado, e isto nos fornece a
chave quanto ao seu sentido...
28

Sugestão: É o Yin.

Dr. Jung: Sim, é um germe do Yin, mas esteve escondido nas eras. Preto
sugere o mal, e as línguas de fogo saindo daquela cabeça não são
particularmente amistosas, lembra-nos o fogo do inferno...

Vejam, é importante realizar que para nós, hoje em dia, Yin ou a terra, muito
freqüentemente tem o caráter de mal. A que referir-se-ia aquela cabeça?
Alguém tem a conexão?

Sugestão: É de novo o Animus negro? Parece ser muito americano. É um


negro?

Pergunta: É o Messias negro?

Dr.Jung: Bem, ouviram a sugestão de que seria um negro e sabem sobre o lado
instintivo que não foi aceito. Mas, na realidade, precisamos ter uma conexão
simbólica; estamos interpretando sem considerar o que houve anteriormente.
Lembram-se do Deus sem uma cabeça, de que falávamos antes? O Deus sem
cabeça é o gigante e aqui, quando o gigante desaparece, a cabeça aparece
dentro do ovo. O gigante é branco, a cabeça é preta. Isto é espantoso. O que
estaria transmitindo?... Naturalmente, não dito em nenhum momento que o
gigante não tinha cabeça, mas eu digo isto, falando do pesado fardo que tem
que ser carregado. Nós, no presente, somos a cabeça do passado. Nós
“encabeçamos” o passado, literalmente e somos os olhos “pré-videntes”, os
cérebros criativos, que dão uma cabeça ao passado. Pelo menos, isso é o que
deveríamos fazer. Se não nos afirmamos, se não criamos uma nova cabeça, o
29

passado é, então, um pesado corpo opressivo que nos esmaga. Mas se


colocamos uma cabeça no corpo, estamos dando sentido e significado à coisa
toda. A complicação é que não sabemos: que cabeça deveríamos dar; o
passado é uma árvore em crescimento e não sabemos eu tipo de fruto ele teria,
que espécie de desenvolvimento ele necessitará. Nossa paciente não sabe o
que é o significado, mas ele já existe, está no ovo...

Sugestão: a cabeça preta é também luciferiana, o que é um princípio de


mudança.

Dr.JUNG: Bem, sim, eu diria que cada cabeça doada ao passado é luciferiana,
porque traz luz. Mas aqui é, muito obviamente, uma cabeça de negro, e isto é
confirmado numa imagem posterior onde o negro aparece inteiro... aqui
estamos lidando com um simbolismo vivente. Esta mulher está em busca de
uma atitude que a ajudará a enfrentar os problemas de sua vida; ela não
encontrou a convicção ou a atitude que a ajudaria a aceitar seu próprio destino
individual. Para isso ela necessita uma espécie de atitude religiosa que ela não
pode encontrar de outro modo senão pela análise. (FIGURA PÁG. 76).
Minha razão para lidar com estas visões é que elas nos proporcionam uma
introvisão realmente maravilhosa quanto às operações secretas do
inconsciente. Elas nos mostram como elabora o inconsciente certos símbolos,
através dos quais ela é ajudada para adquirir uma atitude que lhe possibilita
viver, não convencionalmente como nós o entendemos, mas sua própria
específica vida individual.
30

Agora, a grande dificuldade é esta cabeça sem o corpo, ou este corpo sem a
cabeça. Eu lhes afirmo que é extremamente difícil tanto entender como
explicar este simbolismo... Mas deixem-me mostrar-lhes esta imagem do
Cristo sem a cabeça, na Catedral de Autun. Vejam que Ele não está realmente
sem uma cabeça, um sol simbólico é a cabeça; isto não significa apenas o
disco solar, significa um sol espiritual. E o sol espiritual no Cristianismo é a
sua verdade específica, é o Logos, e ele é simbolizado como o círculo com a
cruz, o que no Oriente é chamado uma mandala. É o símbolo da individuação,
do completamento do indivíduo humano, ou sua entelequia (finalidade
inerente) e, ao mesmo tempo ele representa a nova luz do Logos, isto é, a nova
luz que brilha nas trevas, como está dito no início do Evangelho de são João.

Nos primeiros séculos, por volta do tempo de Cristo, havia, evidentemente,


uma espécie inteiramente diferente de psicologia. Cristo significava, então, a
descoberta de uma nova atitude, uma nova hipótese a respeito do sentido da
vida. Por isso Ele foi chamado a nova luz, ele foi mesmo comparado com o
sol... Esta é a razão pela qual cristo não recebeu uma cabeça humana, mas um
sol, significando que o Logos, sua mente ou introvisão, era o sol, uma nova
luz. Há uma inscrição latina que diz: “Quisque resurget ita quem non trahit
ímpia vita et lucebit ei sine fine lucerna diei”. Isto significa que todo aquele
que não se emaranha na vida ímpia erguer-se-á como o Senhor se ergue –
como o sol se ergue – e a luz do dia brilhará sobre ele, eternamente. A palavra
“pio”, na realidade, significa “obediente”, assim ímpia vita indicaria uma vida
que não obedece ou não é conforme a nova luz; mas, se alguém consegue
consumar o novo sentido, vivendo pelo novo Logos, então, a luz do dia
brilhará sobre ele eternamente.
31

Esta é exatamente a fórmula que poderíamos aplicar ao símbolo da cabeça. A


cabeça representa uma certa idéia, ela representa o Logos, ela dá introvisão,
ou consciência das coisas, ela explica; e, compreendendo isto, viveremos na
luz, conquanto que a ímpia vita ou a vida do passado, não nos desvie do
caminho. Esta é sempre a grande dificuldade, porque o mundo do passado é o
gigante que pode nos dominar.

Agora, esta mulher fez o gigante desaparecer pelo seu sofrimento. Ela tornou-
se intensamente consciente de si mesma e isto causou o aparecimento de uma
nova idéia que agora está se imprimindo sobre ela. Naturalmente, ela ainda
não compreende, mas é bem óbvio, naquele simbolismo, o que está sendo
significado. A cabeça que não pertence ao corpo é como o disco solar que não
pertence ao corpo de Cristo. Nós, naturalmente, esperaríamos uma cabeça
humana em Cristo, mas não, é um símbolo abstrato, o sol espiritual. O corpo é
o passado, a nossa terra, o mundo como tem sido até agora; mas, dele emerge
uma nova luz, que não é idêntica ao corpo; do enorme corpo branco do
gigante surge um ovo que contém esta cabeça. E vejam, aqui ela tem um novo
significado, nada abstrato, ela é muito concreta, uma cabeça de negro – preta;
mas, aparentemente ela dá vida. É, naturalmente, de muita idade, como o
homem primitivo é de muita idade. Na realidade, em lugar da palavra “negro”,
poderíamos dizer aqui “primitivo”, já que a qualidade da condição primitiva é
o que a cabeça preta expressa nesta visão...

Então, a coisa que sai do ovo é, na realidade, uma mente primitiva, o Logos
primitivo, e ele pronuncia palavras de fogo – são as línguas de fogo que saem
da sua boa. Isto é como o simbolismo da espada flamejante que sai da boca de
32

uma figura estranha, uma espécie de salvador ou mediador, no início do


Apocalipse. E que ela deve beijá-la significa, simplesmente, a união com ela,
aceitando-a. Nos mistérios de ELEUSIS, lembram-se, o iniciado tinha que
unir-se com os poderes da terra beijando uma serpente. Não há texto
corroborando esta cerimônia, mas numa escavação apareceu um tipo de relevo
em que o iniciado é depictado (representado) beijando a serpente que
representava DEMETER, a Deusa da terra; é uma repetição daquilo que já
discutimos em relação ao simbolismo de engolir a serpente preta. Isto é
simplesmente outra forma, uma forma original da mente primitiva.

Certamente, alguém poderia perguntar aqui, porque aquilo deveria ser assim,
mas em vez de especular sobre isto agora, eu tenho que dizer que isto é assim,
simplesmente; o principal é entender ou aceitar como um fato, que as coisas
primitivas são as mais sugestivas, e para o nosso inconsciente, as mais
aceitáveis, enquanto tudo mais, todas as coisas belas, são menos
estimuladoras. Não há nada mau com elas, certamente, mas parecem ter se
esgotado, enquanto as coisas primitivas conservam um peculiar poder de
sugestão, uma espécie de encantamento.

Nossa paciente diz que foi permeada pelo fogo que saia da cabeça; isto é, as
palavras de fogo mágico a atravessavam. São as línguas de fogo do milagre de
Pentecostes; é o Espírito Santo, o Logos outra vez, como desceu sobre os
discípulos. Aqui, em vez de descer sobre ela, a está permeando; é algo como a
serpente preta, mas não é a serpente preta, é o fogo mágico da graça; a graça
tem sido sempre representada como luminosa. Não vem do céu, neste caso,
mas de baixo; ela segura a cabeça e o fogo sai dela.
33

Sugestão: Em alguma religião gnóstica há um salvador, um Deus, que foi


enviado para baixo como o homem primitivo, Adão. A idéia é a mesma, de
que o primeiro homem está mais próximo da força da vida e que, portanto, ele
é o Deus.

Dr. JUNG: Mas veja, esta não é a qualidade primitiva como nós a entendemos.
Este é o homem primordial que era no princípio, mas ele é uma força
inteiramente espiritual... No primeiro século, eles não enfatizavam a qualidade
primitiva, eles enfatizavam o homem primordial que era realmente um Deus-
homem, o Theos Anthropos dos gnósticos do Oriente. Cristo, o filho de Deus,
chamava-se a si mesmo o filho do homem. Mas o filho de homem é o Deus-
homem... o ser espiritual, enquanto esta coisa aqui tem que ser tomada sob o
aspecto do primitivo, não do homem primordial. É o homem primitivo dela e
só quando for aceito nesta forma revelará sua intenção – sua irmandade ou
identidade com o homem primordial, o atemporal, inespacial, o Theos
Anthropos. Mas nós estamos ainda longe disso.

A dificuldade toda da paciente é que ela está se confrontando com a negridão.


Ela teria sido enganada se alguém lhe dissesse; “Oh, isto é meramente Adão”.
Algumas pessoas, os teósofos, por exemplo, ensinariam que é Adão Kadmon,
quando na realidade é o Sr. Smith. Mas, se alguém chega a uma situação real,
ele não pode aceitá-la, se está procurando por Adão e na realidade é o Sr.
Smith. Se dizemos a um jovem que uma determinada moça é sua alma eterna,
a virgem Mãe, talvez, ou algo semelhante, é um engano; ela é uma muito
comum jovem macaca. Assim, o importante para o nosso tempo é que
deveríamos ver as coisas e aceitá-las como são. Em outros tempos, quando o
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elemento ctônico é demais óbvio, é importante ensinar às pessoas o aspecto


espiritual. Nos dias de Cristo era importante saber que os homens eram
divinos; por isso dizia a seus discípulos: “Sois deuses”. Certamente, eles não
entenderam isso. Nós, imediatamente, abraçaríamos a idéia; seríamos muito
inclinados a ela, porque queremos nos afastar do comum Sr. Smith. Mas para
esta mulher é de todo importante que ela aceite o aspecto preto das coisas; se
ela puder aceitar a terra, descobrirá também o aspecto espiritual desta.

Agora, quando ela foi permeada pelo fogo, ela ergueu-se e a cabeça caiu no
solo e partiu-se em pedaços. Como vêem, ela agora aceitou esta peculiar
manifestação do homem primitivo. Ela está permeada pelas palavras ígneas,
pelo mana emanado do Logos. Agora esta forma pode quebrar-se porque ela
aceitou-a – ao menos na visão.

Aqui deveríamos dizer alguma coisa sobre o simbolismo geral e sobre o


Messias negro que foi mencionado. Veja, estava cabeça que temos que
colocar em paralelo com a idéia mítica ou lendária do salvador, tem realmente
o valor do salvador. (Isto será confirmado nos eventos subseqüentes onde o
negro representa este papel – dando seu sangue pela humanidade). Estamos
bem seguros quando presumimos que ela descobriu o salvador nesta forma,
para ela censurável. E aqui, de novo, tenho que me referir ao passado. Vejam,
se fossemos antigos romanos e alguém nos dissesse que o divino salvador do
mundo tinha sido pregado na cruz – como um vil escravo – seria o mais
censurável para nós. Com o forte esteticismo da antiguidade, nós rejeitaríamos
essa doutrina porque ofenderia nosso bom gosto – seria demais blasfema.
Seríamos tão pouco capazes de aceitar isto como bons cristãos o seriam de
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aceitar que alguém dissesse coisas blasfemas sobre Cristo. Mas, há uma
verdade eterna na afirmação de ISAÍAS e outros profetas de que o salvador
sempre vem de um lugar de onde menos o esperamos. Justamente onde não
esperamos vida, lá ela estará; porque a vida que nós conhecemos está quase
exaurida, a nova vida sempre vem de algum canto inesperado. Por isso, a idéia
paradoxal do Messias negro é, certamente, uma expressão simbólica que
coaduna com a nossa psicologia.

O fato de que a cabeça se parte em fragmentos significa que esta forma pode
ser abandonada pela mulher porque ela absorveu o fogo que emanava da
cabeça, e isto é uma grande coisa. O fogo que a atravessava é a essência da
visão; é inspiração, força dinâmica; instiga para ação ou para empreendimento
– como o fogo de Pentecostes que inspirou os discípulos para sair à rua e falar
diferentes línguas...

O exorcismo do fogo

Mas fogo, como foi dito, é também luciferiano. Naturalmente não esperariam
que esta cabeça preta difundisse uma influência particularmente espiritual. É
uma influência duvidosa. Ela diz:

 Visão: Eu vagava numa grande planície, onde vi uma serpente e eu pedi


à serpente que me levasse embora. Ela me conduziu através de um
gramado fresco à beira de um rio. No rio vi a bela forma de um homem.
Entrei na água e o segui. Ele me tomou pela mão, subimos uma
ribanceira e entramos num templo. Eu disse: “Expele de mim o fogo”.
36

Ele me disse que ajoelhasse perante o altar e deu-me água para beber,
mas eu disse: “O fogo, dentro de mim, ainda queima”. Ele
desembainhou sua espada e golpeou as paredes do templo de modo que
elas, com ruído de trovão, desabaram. O homem, então, colocou a mão
na minha testa e disse: “Mulher, está perdoada. Levanta-te e comunga
com o povo”. Eu vi muitas pessoas em redor de nós. Caminhei até elas e
elas me tocaram com as mãos. Por fim eu disse> “O fogo já não está
dentro de mim, estou purificada”. Ergui meus braços para o céu
enquanto os raios do sol desciam sobre mim.

A serpente é, aqui, uma indicação de que ela tem que ser cautelosa, tem que
estar alerta, mas que a conduz para o rio da vida. A bela figura do homem que
ela encontra lá refere-se ao homem que é o obstáculo na sua estória pessoal.
Isto indica que no rio da vida real, no curso dos acontecimentos, aquela
imagem reaparecerá e ela terá que encontrá-la. Aqui podem ver algo referente
à parte da mente primitiva que ela descobriu no ovo e que diz a ela> “Esta é a
tua pedra de toque. Esta é a coisa que, eventualmente, tens que encarar.” E
porque, as pessoas muitas vezes me pergunta, isto tem que ser rebaixado a um
tal teste? Porque as coisas têm que entrar na realidade? ... Porque se a coisa
permanecesse simplesmente como um pensamento, então, o ovo não conteria
vida; ele seria praticamente uma casca vazia. Neste caso, o jogo não valeria a
pena, não teria sentido abrir o ovo, ou incomodar-se, absolutamente, com tais
fantasias. Mas temos que nos preocupar com elas porque elas realmente
contêm os germes da vida, sem os quais aquela vida em particular
permaneceria mutilada ou estéril... Por isso, quando ela abre o ovo, quando
aquela cabeça fala com ela, quando o fogo entra nela, ela inevitavelmente será
37

confrontada com a realidade. Assim, podem compreender porque a serpente


significa que ela tem que ser prudente. As coisas estão se tornando reais.

Agora ela entra na água; ela se entrega ao curso dos acontecimentos e segue o
homem. Já vimos antes que o Animus geralmente a precede em situações onde
as coisas são obscuras e onde ela não confia em si mesma – antecipando-a ou
cumprindo o rito de entrada, assumindo de novo o papel de condutor de almas,
do HERMES psichopompos , ele a toma pela mão e, deixando o rio, entra num
templo na ribanceira... Esta mulher não sabe o que está à sua frente; ela
simplesmente permite que ele tome a liderança... e pede q ele que retire dela o
fogo. Ela está repleta do fogo que saiu daquela cabeça, mas não sabe como
aplicar sua nova aquisição...

Primeiramente, ele tenta os meios usuais, levando-a do rio para um lugar


retirado, onde ela está protegida pelas grossas paredes e pelo mana do templo,
dando-lhe água para beber, com a razoável idéia de extinguir fogo com água...
mas há certas situações onde a razão são ajuda. Ela tem que confessar que o
fofo ainda queima... Agora ele entende que nenhuma santidade, nenhuma
sacralidade pode apagar aquele fogo... Ele não a leva para fora, mas destrói o
recinto sagrado, o lugar de quietude bem murado, e depois disto todo o mundo
circundante pode entrar, por assim dizer. O lugar sagrado já não é sagrado, ele
agora é profano e, certamente, o efeito disto é que ela é praticamente levada de
volta ao rio. Isto é muito importante. Então, o homem coloca as mãos na testa
dela e diz: “Mulher, estás perdoada”. O que lembra isto?

Resposta: São as palavras de Cristo à prostituta.


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Dr. JUNG: Sim, o caso da mulher adúltera é análogo a este – lembram-se,


tivemos a veste escarlate. E aqui o Hermes Psychopompos desenvolve-se um
pouco mais; assume o papel de Cristo e a suposição é, através da analogia com
a história da mulher adúltera, que ele agora apagará o fogo, isto é, criará uma
situação psicológica que a livrará dele, permitindo a fusão dos elementos
contrastantes. Porque sentimos alguma coisa nos queimar quando ela é
incompatível com nosso anterior sistema de adaptação; se mudamos aquele
sistema, então a coisa ígnea pode entrar sem nos destruir, mas se o deixamos
como era, ou o fogo será posto fora ou nossa carne será queimada – isto
deixaria uma terrível cicatriz.

Assim, o rito no templo serviria o propósito de unir duas coisas que até então
eram incompatíveis; há uma idéia de adultério nesta fantasia, que tem que ser
aceita no todo do seu sistema sem queimá-lo. Ela não pode, simplesmente,
destruir a idéia toda – porque esta é a vida do fogo eterno; ela tem, portanto,
que mudar seu sistema de adaptação. Isto foi o que Cristo fez pela mulher
adúltera, e como ele era o filho de Deus, teve efeito; Ele a mudou tanto que ela
pôde aceitar isto no seu sistema, e pôde manter-se firme e não mais ser
moralmente destruída.

Como vêem, é tremendamente importante que as pessoas sejam capazes de


aceitar-se a si mesmas. De outro modo, a vontade de Deus não pode ser
vivida: elas ficam, de certa forma, restritas ou mirradas; elas não produzem,
realmente, a si mesmas de forma a expressar a totalidade da vontade criativa
que está dentro delas; elas pretendem um julgamento melhor do que o próprio
Deus, assumem que o homem deve ser “assim e assado”. Desta forma,
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excluem muitas das suas melhores qualidades... O que o senhor fez pela
mulher adúltera foi alterar o seu sistema, de modo que ela podia aceitar o fato
e sentir-se, mesmo assim, redimida. Ninguém é redimido por arrependimento,
continuamos o mesmo velho Adão, porque por arrependimento não mudamos;
podemos estar batizados ou algo como isso, mas esta não é uma mudança
verdadeira. Tem que haver uma mudança do sistema, uma aceitação das coisas
que anteriormente eram inaceitáveis. Quando aceitamos o fato da nossa
inferioridade, ela vive conosco; somos ela também, mas não exclusivamente.
Não somos apenas brancos; uma parte é preta, mas ambas fazem o homem
todo. Não estamos eliminando a substância branca quando podemos aceitar a
preta – ao contrário, só quando não o podemos é que as coisas vão mal,
quando não há outra coisa a não ser apenas branco ou apenas preto. Isto é
simplesmente neurótico.

Assim, a cura evangélica é muito sábia. Cristo ajudou a mulher a aceitar-se a


si mesma como era e isto é o que o Animus está fazendo aqui, quando assume
o gesto de Cristo. Agora veremos o efeito da cura. Ele diz: “Levanta-te e
comunga com o povo”. Qual é o significado disto?

Resposta: Se te aceitas a ti mesmo, então o mundo pode aceitar-te.

Dr. JUNG: Sim, é justamente isso. Podem observar pessoas com sentimentos
de inferioridade que não são aceitas, porque elas não se aceitam a si mesmas.
Se querem ser apreciados ou amados, apreciem a si mesmos, amem a si
mesmos, sejam justos consigo mesmos, e todo mundo fará o que for justo para
os senhores. Às pessoas que dizem: “Oh! Eu estou muito interessado nas
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pessoas, amo-as, mas odeio a mim mesmo”, eu respondo: “Ninguém te


suporta porque carregas contigo o mau cheiro dos teus estábulos; vai e limpa-
os primeiro, e então, nós te aceitaremos como um ser humano limpo; então
gostaremos de ti, se houver alguma coisa para se gostar”. Isto é que eles
sempre esquecem, o que vem do nosso errado tipo de educação cristã...

Comungar com o povo significa: reconhecer que somos todos iguais, que
sofremos pelos mesmos problemas; não permanecer mais isolado, mas antes
ser humano entre seres humanos. Isto é, evidentemente, uma tremenda
aquisição que remove os sentimentos de inferioridade desta mulher; ela é
aceita, ela está na humanidade, ela está sobre o solo que é comum a todas as
coisas vivas. Ela é justamente uma árvore entre muitas que conseguiu
enraizar-se; não há sentimento de inferioridade... Apenas as nossas mentes
causam tais sentimentos e fazem aquela tremenda e blasfema suposição de que
sabemos melhor do que a vontade dentro de nós...

Disto podemos tirar a conclusão que não deveríamos interferir, para que a
coisa possa funcionar. Se apenas pudéssemos aprender a arte de não interferir!
Nós nos atrapalhamos demais pela interferência intelectual, sempre sabendo
melhor; este é o obstáculo. O que devemos fazer na análise é remover essas
opiniões conscientes, ajudando a natureza para que ela possa trabalhar no seu
modo quieto, através dos seus símbolos, sem a nossa muito detestável
intervenção. Vejam que este rito mágico agora atuou. O fogo está extinto e ela
confessa num estilo realmente antigo: “Estou purificada”, como se
confessasse: “Eu estou renascida”. Através da aceitação, não cortando fora a
coisa – isto não ajuda – mas aceitando-a, ela está purificada e é trazida de
41

volta ao regaço da humanidade. E então, ela diz: “Ergui meus braços para o
céu enquanto os raios do sol desciam sobre mim.” Sendo humana,
comungando com a humanidade, ela pode receber a benção do sol que é, sem
dúvida, uma experiência religiosa.

Só aquelas pessoas que realmente podem tocar o fundo, podem ser humanas.
Por isso, Mestre ECKHART diz que não devemos nos arrepender demais dos
nossos pecados, pois isso poderia nos manter afastados da graça. Só se
confronta com a experiência espiritual aquele que é absolutamente humano...
Uma boa dose de antiga verdade religiosa está colocada aqui, de uma forma
muito incomum; por esta razão, a paciente não a reconhece, e isto ajuda muito
– porque ela não pode destruí-la... Este é um belo exemplo de uma verdade
eterna que se introduz furtivamente no seu sistema, quando ela não está
percebendo isto, e assim pode atuar...

O negro aparece inteiro

 Visão: Eu vi um negro deitado sob uma árvore. Nas suas mãos havia
frutas. Ele cantava com uma voz cheia, ressonante.

(FIGURA PÁG. 80)


Agora mostrarei a pintura realmente linda que ela fez sobre isso. Sempre que
os pacientes produzem uma imagem especialmente bela, pode-se ter a certeza
de que a coisa que tentam expressar representa para eles um particular valor,
assim que suas habilidades são mobilizadas e entram em ação. Em geral, meus
pacientes não têm conhecimento de desenho ou pintura, mas quando uma
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imagem que expressa uma idéia particularmente abrangente insinua-se por si


mesma, então, todas as faculdades do indivíduo são evocadas, e é como se o
próprio corpo as sustentasse no seu empenho. Com freqüência, eles começam
fazendo um tipo de imagens ideográficas, usando apenas as suas mentes e
nada de natural surge nelas, mas no momento em que uma imagem
especialmente abrangente constela-se no inconsciente, o corpo, de repente,
ajuda-os a produzir um verdadeiro desenho... Agora, o que sugere aos
senhores esta pintura?

Resposta: Parece um homem em êxtase dionisíaco.

Resposta: Para mim, sugere o Deus Attis.

Dr.JUNG: Attis é um deus da vegetação. Talvez conheçam outros paralelos?


Eles são os deuses que morrem e ressuscitam e Cristo pertence a esta
categoria, também.

Resposta: Mithras, Osíris, Adonis, Odin trespassado pela lança. Jacchos, que
na realidade é Dionísio de novo, a forma específica nascida na peneira.

Dr. JUNG: Os deuses pranteados também pertencem a este grupo. Na


Grécia havia Linos, o famoso deus que morre jovem, e na Babilônia, Tammuz
que, cada ano, era lamentado pelas mulheres. Os deuses que morrem e
ressurgem representam uma idéia especial que é, certamente, muito e muito
antiga – como a idéia de Osíris no Egito. Todas as diferentes formas disto
foram, por assim dizer, coligadas e preservadas para uma fase posterior de
43

civilização, na forma de Cristo. Porque também Ele é o grão de trigo que


ressuscitou. Tais deuses são chamados os deuses da vegetação e usualmente,
seus ritos eram executados na primavera – conhecem o súbito aparecimento da
primavera nos países do sul, depois das chuvas de inverno e a forma como
desaparece rapidamente perante os ardentes raios de sol. O milagre da
primavera é particularmente impressionante na Mesopotâmia, onde tais
figuras provavelmente têm sua origem...

Mesmo assim, embora esses assim chamados deuses da vegetação sejam


expressados externamente pela primavera que chega e desaparece, são de
origem psicológica. Não estamos vendo um deus quando as flores
desabrocham, mas isto é o que a nossa psique faz disto; é uma espécie de
reverberação na nossa psique, um fenômeno psicológico que originalmente
coincidiu com os processos da natureza; isto é, coincidiu enquanto o homem
estava, como os animais, em completa participação mística com a natureza.
No estado paradisíaco ele era tão idêntico com seu meio que experimentava
todas as diferentes fases da natureza ao chegarem...

No entanto, pelo desenvolvimento, ele percebeu que não era a primavera fora
que lhe dizia respeito; assim, o processo destacou-se dos eventos externos...

Agora, nesta visão, o negro tomou o lugar daquela figura arquetípica do deus
da vegetação, o deus que morre cedo. O relacionamento dele com a vegetação
é perfeitamente óbvio pelas frutas. Na América temos Mondamin, o deus da
semente, em estreito paralelo com Jacchos ou qualquer um dos outros, porque
todos são deuses da colheita. Por isso tem este negro fruta em suas mãos. E ele
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está sob uma árvore, o que mostra que a árvore é, de certo modo, um atributo
seu. (Neste sentido, esses desenhos são como as antigas representações dos
deuses, sempre apresentados com seus atributos particulares.)... Também o
sangue que jorra, seria uma manifestação da fertilidade da terra: a vida da
planta espalha um rio de opulências sobre a terra, os campos férteis são como
uma correnteza de trigo dourado – essas são figuras poéticas bem conhecidas.

Em conexão com a idéia do negro como um deus da vegetação, o que mais


simbolizaria o sangue? Tempos que ver também este aspecto.

Resposta: Vinho.

Dr. JUNG: Sim, vinho e trigo sempre caracterizam a fertilidade da terra e são
também símbolos na comunhão cristã; assim, o sangue pode muito bem ser
uma correnteza de vinho. Daí, este gesto absolutamente dionisíaco do negro.
Todos estes atributos e o inteiro contexto mitológico confirmam uma idéia que
tivemos sobre este negro. Qual era?

Resposta: O Messias negro?

Dr. JUNG: Sim, ele é um mediador. Todos aqueles deuses foram mediadores,
porque participaram da destinação humana. Deuses, em geral, não morrem,
mas aqueles deuses morreram. Por isso, nos períodos posteriores da história
egípcia, Osíris era simplesmente uma designação ou uma palavra técnica para
a própria alma, a parte imortal do homem. O Osíris do rei ou do Faraó era
encarado como uma substância imortal, como uma coisa que ele tinha em com
45

um com o Deus que morreu como homem e que podia superar a morte pela
ressurreição. Este negro, como um mediador, está realmente representando
algum papel arquetípico desta espécie; ele indica a reconciliação entre o
homem e a coisa que está contra ele, ou da qual ele se tornou destacado. Neste
caso, ele é uma espécie de mediador psicológico... Poder-se-ia dizer que ele
está mediando entre o moderno ponto de vista dela, com sua exclusividade e
unilateralidade, e o instintivo e natural ponto de vista que compensa aquele...
Os senhores sabem, já encontramos o Animus indo à frente, fazendo a ponte
para o passo seguinte, e aqui, ele atua do mesmo modo outra vez, para a nossa
paciente, ele mostra a ela o símbolo reconciliador. Que atitude pode ela
aprender deste gesto particular?

Sugestão: “Stirb und werde”. Morre e vem a ser.

Dr. JUNG: Sim, mas é exatamente isto o que as pessoas não entendem...

Sugestão: Um sacrifício?

Dr. JUNG: Sim, mas muito involuntário. Ele é natural, um sacrifício dentro do
propósito da natureza. Uso outra vez uma frase de GOETHE, “A natureza
exige uma morte”. É natural, ninguém a estava impondo. Como uma casca
que se rompe, ou uma fruta caindo da árvore, assim o vinho ou o sangue flui.
É um fluxo natural, uma manifestação natural, não uma morte imposta, nem
um sacrifício auto-infligido. E a atitude é de... alegria, ou o amor pelo seu
próprio destino – amor fati. Uma espécie de entusiasmo... por seguir o
caminho da natureza, por seguir a lei que está dentro de nós mesmos. O negro
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mostra um completo abandono às leis que estão operando nele, e isto conduz à
fertilidade...

Mas, realmente, torna-se necessário um extenso comentário para interpretar


uma tal imagem. Dizer “Siga o caminho da natureza” não é
inconfundivelmente claro, porque temos idéias preconcebidas sobre a
natureza. Se eu dissesse isto para uma sociedade de filósofos ou teósofos, eles
retrucariam: “Exatamente, naturalismo, Rousseau, isto é o que nós
esperaríamos”. Mas vejam, eles esquecem totalmente que a natureza demanda
uma morte. Isto é o que Cristo diz nos “Logoi” recentemente descobertos, que
os antigos padres da Igreja cuidadosamente não admitiram no Novo
Testamento, a despeito do fato de que são muito mais antigos do que os
Evangelhos e igualmente autênticos. Os discípulos perguntaram a Cristo quem
os elevaria, porque o Reino do Céu está tão acima, no céu (os antigos egípcios
usavam colocar uma pequena escada na tumba do morto para que ele pudesse
subir ao céu), e ele disse: “Os pássaros do ar e todos os animais que estão em
cima e embaixo da terra, e os peixes do mar, são estes que vos conduzirão ao
Reino”. Isto significa os instintos – quase os instintos cegos; o caminho da
natureza os levará muito naturalmente aonde devem estar. Esta é a idéia de
Tertuliano: anima naturaliter christiana, isto é, a alma é naturalmente cristã;
em outras palavras, um processo natural nos conduz à formulação cristã...

De acordo com muitas das nossas idéias preconcebidas, o homem é todo


errado e pecaminoso, mas essas idéias são absolutamente falsas. Porque,
quem, senão o homem, criou as religiões do mundo? Quem produziu Cristo?
Quem produziu Buda? Tudo isto é crescimento natural do homem. Deixado a
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si mesmo, o homem pode efetuar sua própria salvação bem naturalmente. O


homem sempre produziu símbolos que o redimiram; assim, se seguimos as leis
que estão na nossa própria natureza, elas nos conduzirão ao fim correto.

Vejam como as coisas se desenvolvem aqui; esta mulher não se desvia, nem
um pouquinho. Poder-se-ia esperar, que se alguém foi entregue às suas
próprias fantasias, isto resultaria, como diz FREUD, apenas em satisfação de
desejos, e tudo iria para o inferno, completamente. O teólogo pensa que o
homem é do diabo, que todo mal vem do próprio homem; então, ele pensa que
não se pode confiar na própria lei. Mas, se não confiamos na nossa própria lei,
temos que nos contentar com uma neurose. Temos que confiar em nós
mesmos com a nossa própria experiência porque, de acordo com a lei natural,
seremos conduzidos a um estado de inteireza; não falo de um estado de
perfeição – isto é preconceito – mas de inteireza, que parece ser uma espécie
de crescimento e que contém todos os valores espirituais que se possa desejar.
Como percebem, esta visão não conduz a qualquer coisa destrutiva; conduz a
uma natural fertilidade.

Pergunta: O senhor diria que auto-julgamento e auto-crítica são também partes


da natureza humana?

Dr. JUNG: Naturalmente são e nós sabemos disso.

Pergunta: Faz parte também de nós, não apenas aceitar a nossa natureza, mas
também julgá-la, modificá-la?
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Dr. JUNG: Sim e nós fazemos isto com maior ou menor sucesso. A questão é:
são bons os nossos critérios?...

Tenho que te conhecer?

 Visão: Eu disse ao negro: “Tenho que te conhecer?” Ele respondeu:


“conhecendo-me tu, ou não, eu sou”. Eu lhe perguntei: “Oh, negro, o
que está cantando?” ele me respondeu: “Pequena criança branca, eu
canto para a escuridão, para os campos flamejantes, para as crianças
dentro do teu ventre.” Enquanto ele cantava, o sangue jorrava de seu
coração, em lentos e rítmicos batimentos. Fluía numa corrente que
cobria meus pés. Eu segui a corrente de sangue...”

Tanto faz se a conhecemos ou não, a coisa acontece, quer a chamemos lei da


natureza ou apenas aquele particular pensamento; ela sempre existe – a
questão é somente: nós a contatamos ou não? Podemos nos tornar conscientes
dela? Esta figura do negro, de certa forma está completamente desligada, não
particularmente interessada nela. Ele existe para si mesmo, como a natureza; a
natureza não está especialmente interessada no homem; não de tal forma que
nós sintamos isso; mas, já que a natureza está também no homem, temos que
admitir que ela está interessada na existência dele...

Que o negro, de fato, tem um certo interesse por ela, vê-se pela sua resposta,
em que ele explica que canta para a escuridão, para os campos flamejantes,
para as crianças do seu ventre. Ela diz “canta para”, mas o termo técnico mais
adequado seria sem a preposição – como os pescadores escoceses quando vão
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ao mar para pescar ostras, cantam as ostras; ou os bugres australianos, que


cantam a água, ou cantam a semente de grama ou o canguru. É uma espécie de
encantação para produzir abundância, um procedimento mágico pelo qual a
fertilidade é assegurada... Assim, o negro, obviamente, está executando uma
encantação mágica, acrescentando poder, um valor produtivo ou fertilizante, à
consciência dela.

Tais símbolos têm que ser conscientizados, pois do contrário, seus efeitos
permanecem ou invisíveis ou quase nada. É como se alguém tivesse uma
cédula em algum canto do bolso mas não soubesse dela; ela não teria valor,
seria como se não existisse. E assim é na natureza. Certamente, mesmo não
sabendo dela, ela produzirá certos efeitos, mas estes serão avessos, interferirão
em nós; porque não saber do inconsciente significa que nos desviamos dele,
que não estamos em harmonia com ele, e assim, ele trabalha contra nós. É
bem possível que se esta mulher não estivesse consciente dessa figura, ela
simplesmente formaria um complexo que atuaria contra ela. De fato, esta
figura sempre trabalhou contra ela, e ela só pode perceber o poder positivo de
tais figuras, tornando-se consciente delas. O valor destas visões é que elas a
ajudam a perceber os conteúdos inconscientes , porque eles não podem atuar
de modo adequado se não são admitidos à consciência. Mas, se alguém pode
perceber conteúdos inconscientes, isto em si mesmo já é valioso, porque já
está próximo na natureza, e então, o próximo passo é admiti-los. De outro
modo, o consciente não tem suporte, não tem raízes, a natureza assume uma
atitude contrastante e torna-se mesmo um oponente. O inconsciente, então,
não se interessa pelo homem, rola nos seus próprios ciclos, e o homem é
largado em qualquer parte, abandonado, encalhado.
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Por exemplo, eu citei o caso daquela pessoa psicótica que sonhava com os
mais magníficos mitos de morte e ressurreição, mas nada acontecia ao seu
consciente; ele não era afetado. Se ela tivesse sido capaz de entendê-los, o
inconsciente teria sido atraído, teria emergido e aumentaria sua consciência.
As pessoas, muitas vezes, apontam que a escola freudiana encara o
inconsciente como algo estranho, selvagem, oponente e criminoso. Mas,
mesmo supondo que o inconsciente tenha tal atitude, isto tem que resultar do
fato de que a consciência era hostil com o inconsciente; tem que ser porque a
consciência tomou um rumo muito diferente e, por isso, evocou o aspecto
negativo do inconsciente. Mas, se alguém aproxima-se do inconsciente de
maneira amistosa, ele perde seu aspecto perigoso, e o que era inteiramente
negativo, torna-se positivo. Vê-se isso nos sonhos. Muitas vezes, pode-se ter
sonhos e considerá-los destrutivos e ruins, os quais apresentam a coisa que
não se pode aceitar, mas isto é devido, meramente, ao fato de que a atitude
consciente é inadequada. Se alguém diz: “Isto parece bem errado e preto, mas
talvez, eu tenha que aceitá-lo”, instantaneamente a coisa muda de cor e torna-
se compatível com a consciência.

Assim, o interesse do negro pelo bem-estar ou pela fertilidade da nossa


paciente, é devido à sua prontidão para contatar o inconsciente ou aceitá-lo;
assim, enquanto ele canta e ela entrega-se a uma conversa com ele, ela
percebe que ele faz jorrar a corrente de sangue. Lembram-se que já
encontramos esta corrente de sangue numa visão anterior; ela nadava nela, e
seguindo-a, chegou ao lugar central, ou ao centro do seu próprio Si-Mesmo.
Aqui, há de novo a mesma coisa – ela tem que seguir a corrente de sangue.
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 Visão: A corrente me levou mais e mais para baixo. Por fim, encontrei-
me numa caverna rochosa, embaixo da terra. Era muito escuro. Vi um
fogo em brasa. Acima do fogo eu vi uma fênix que, constantemente,
elevava-se e batia a cabeça contra o topo da caverna. O fogo criava
pequenas serpentes que desapareciam. Ele criava, também, homens e
mulheres. Eu perguntei à ave: “Para onde vão eles?” A ave respondeu:
“Embora, embora.” A ave disse: “Entra no fogo, mulher.” Eu disse: “
Não posso, me queimará.” A ave mais uma vez me ordenou. Assim, eu
fiz e as chamas subiram, queimando minha roupa. Por fim, eu estava
nua.

O que é essa caverna para onde a leva a corrente de sangue?

Resposta: O abdome.

Dr. JUNG: Sim, ela é levada para baixo... para a cavidade abdominal, que é,
aqui, uma localização psíquica... Significa que ela alcança em baixo, com a
sua intuição, por assim dizer, a região abaixo da consciência; e lá ela encontra
um fogo já incandescente... Agora, o que é este fogo? Eu mesmo, durante
muito tempo, não sabia dele.

Resposta: A Kundalini Yoga.


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A Kundalini Yoga

Dr. JUNG: Sim, o fogo da serpente. Há peculiares idéias no sistema tântrico


hindu que foram descobertas pela prática da yoga, e encontramos praticamente
o mesmo simbolismo nestas visões (como foi sugerido antes em conexão com
o ovo). Descendo à caverna do inconsciente, os yogis tântricos descobriram
uma série de centros corpóreos, começando em baixo do abdome, através dos
quais, diziam eles, o Kundalini – isto é, o poder da serpente – eleva-se, se uma
vez foi despertada. A mais baixa destas regiões é muladhara no períneo, na
base da pelve menor. Aquele é o centro-raiz, onde se inicia o sistema inteiro, e
onde a serpente Kundalini jaz enrolada em redor do Shiva Bindu. A região
seguinte, acima de muladhara é a região da água, a região da bexiga na
entrada pélvica. Não há evidência, mas a terceira região abdominal,
correspondendo ao plexo solar e chamada região do fogo, parece ser,
claramente, um centro psíquico. Existem, ainda, na África, membros de tribos
que afirmam que os pensamentos estão no estômago. E, realmente, é possível
sentir lá, certas emoções. Por isso se diz que é difícil digerir uma idéia, ou que
o estômago está virado quando não se pode digerir certas emoções ou
ansiedades... O centro seguinte acima é próximo à região do diafragma. A
palavra vem do grego PHREN, que significa mente. Este centro é idêntico
com o coração, que, certamente, é uma espécie de centro do sentir. É também
um centro emocional, mas de natureza diferente, porque acima do diafragma,
a consciência, possibilidade de reflexão, parece começar... Inicia-se, aqui, um
tipo de continuidade moral. Acima do coração vem o centro na região da
laringe, e ainda outro na cabeça. Seis ao todo.
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Os senhores compreendem, naturalmente, que esses centros são meramente


metafóricos. As pessoas, as vezes, supõem que tais centros existem
realmente, mas os hindus mesmos dizem apenas que é “como se” existissem
tais centros; não é para se tomar literalmente. Mas, o interessante é que os
sintomas que ocorrem quando, como se diz, o Kundalini se eleva através
desses centros localizados, quase apontam fatos fisiológicos; é, realmente,
“quase como se” existissem centros como estes, que influenciam certos
órgãos. Pessoas na quais a serpente Kundalini chegou à região cardíaca,
provavelmente sofrerão de sintomas neuróticos no coração; e, enquanto o
Kundalini é inconsciente, sofrerão perturbações abdominais. Como já lhes
disse, dificilmente há algum caso de histeria que não seja acompanhado por
perturbação abdominal; também por peculiares excitações sexuais. Quando
Kundalini inicia seu movimento, há perturbação sexual, e em seguida, haveria
irritação na bexiga, como um urinar forçado. Então, vem o estômago, depois o
coração e depois as regiões psicológicas superiores...

Aqui chegamos ao centro do fogo, no centro do abdômen, e o fogo está vivo,


mas adormecido. Nos mitos mais primitivos, este é o fogo que o herói faz na
barriga da baleia-dragão... Mas em nós, o fogo já está aceso, já não precisamos
fazer aquilo; porque o tempo do mito primitivo já passou. Assim, esta mulher
já encontra um fogo lá e ela vê uma ave-fênix continuamente voando para
cima e batendo a cabeça contra o teto da caverna.

A fênix é um símbolo de renascimento – como a água ou qualquer outra, que


no misticismo ou na alquimia, emerge do fogo. Isto significa que, deste centro
incandescente de paixões, emoções, lá de baixo no plexo solar, alguma coisa
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pode elevar-se ao reino do ar, à consciência; é um germe de consciência


superior que, originalmente, está contida no fogo embaixo, mas que pode
tornar-se airosa e subir até a cabeça, ou talvez a uma altura maior, além da
cabeça. Essa é, realmente, a idéia que deu origem tanto ao sistema tântrico,
como ao nosso sistema de filosofia alquimista na idade Média. Mas aqui a ave
está encerrada; ela bate-se contra o teto da caverna e não pode sair; está presa.
Isto significa, obviamente, que o germe, aquela forma superior de consciência,
não pode romper o teto da caverna... e agora, o que seria essa ave? Eu a
chamei um germe de consciência superior, alguma coisa que realmente é
destinada a elevar-se até uma grande altura.

Resposta: Espírito.

Dr. JUNG: Mas o que significa, na realidade, o mito da fênix? Bem, em


linguagem psicológica, este centro de fogo é o centro da paixão e do
entusiasmo, e é exatamente o centro da emoção do primitivo; e está embaixo,
na barriga, é pré-psicológico. Alguma coisa que poderia ser chamada espírito
ou alma, origina-se em uma espécie de fogo naquele nível pré-psicológico. A
consciência origina-se na paixão...

Mas agora o produto daquele fogo, ou o produto da paixão, neste caso, não
pode escapar para a consciência; está preso no inconsciente. Porque não pode
ele subir para o ar, tornar-se visível? Obviamente, a consciência não está
pronta para aceitá-lo, mas porque não? Uma fênix pareceria ser antes
agradável.
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Resposta: Porque vem da região abdominal.

Dr. JUNG: Exatamente; vem da primitiva cabeça negra, vem do abdômen;


assim parece a ela, de certo modo, inadmissível. Ainda há um resíduo na
consciência de nossa paciente que não permite aparecer aquela espécie
particular de mente ou espírito...

Comentário: Mas é o inconsciente mesmo que impede a ave de voar para


cima.

Dr. JUNG: Isto é perfeitamente verdadeiro, o inconsciente não tem chance de


entrar no consciente, a não ser que este faça um orifício para que ele passe...
Mas aqui a visão está centrada no fogo e ela diz: “eu vi o fogo criar pequenas
serpentes que desapareceram.” Então, por isso chamam os hindus aquela
serpente encolhida Kundalini, o fogo de serpente, porque observaram visões
como esta. Esta mulher, não conhecendo absolutamente as visões tântricas,
reproduz exatamente a mitologia da filosofia tântrica...

Talvez a ave não possa elevar-se até a consciência devido ao fato de que seu
consciente supõe que lá embaixo há apenas serpentes, e estas são encaradas
como perigosas e venenosas. Mas, como vêem, o fogo produziu ambos; as
serpentes seriam o contra-peso para a ave inofensiva. Então, ela diz que o
fogo criou também homens e mulheres. É um fogo extraordinariamente
criativo; parece ser o criador do mundo. E isto coaduna exatamente com a
idéia na filosofia tântrica de que o fogo é o criador... Finalmente a ave disse:
“Põe-te no fogo, mulher!” Ela replicou: “Não posso, ele me queimará.” A ave
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ordena de novo. Ela obedeceu e as chamas queimaram sua veste e, por fim, ela
está lá, nua.

O fogo da purificação

Isto explica porque permanece ela embaixo, com aquele fogo vivente; é o fogo
da purificação... Aparentemente, ela agora é a própria fênix e entra no fogo
para arder. Mas o que acontece? Só suas roupas se queimam e ela permanece,
nua – uma evidência, novamente, de que ela está se tornando ela mesma. Esta
passagem significa, simplesmente, que através do fogo da paixão, na condição
pré-psicológica, quando não se consegue e não se raciocina, quando se entrega
completamente e se permite que a dor ou a emoção domine totalmente, ocorre
a purificação, tornamo-nos nós mesmos. Este é o teste do ouro: o verdadeiro
ouro mostra sua qualidade no fogo. Esta é também uma idéia alquímica – ela
se torna a substância verdadeira. Então, o fogo se extingue e a ave desaparece,
porque ela mesma é, agora, a ave. Esta consciência superior é a consciência do
Si-Mesmo. E ela chegou a perceber o fogo falando com o preto Negro...

Porque é tão importante que a nossa paciente tenha sido forçada de tal forma a
uma absoluta nudez? Porque ela não pode tolerar, pelo menos em certa
medida, uma leve condescendência à persona?

Resposta: Porque assim, ela tomaria apenas meias medidas; ela não encararia
a situação inteira.
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Dr. JUNG: Isto é exato, mas há aqui um outro ponto. Naturalmente, ela tem
que se ver como realmente é; ela já encarou uma boa parte, mas agora ela é
chamada a uma ainda mais intensa consciência de si mesma. Vamos supor,
por um momento, que ela já se convenceu realmente de seu problema. O que
mais pode haver aí?

Resposta: Saber o que adquiriu que a ajudaria a ir para a frente.

Dr. JUNG: Exatamente. Estar consciente de si mesma como ela está, ajuda-a a
encarar seu próprio problema, porque neste caso ela está convencida de que se
trata de seu próprio problema individual. A maioria das pessoas não acredita
nisto. Elas supõem que é apenas um engano quando se confrontam com certos
problemas na vida. Por exemplo, uma pessoa me diz que no ano tal e tal
cometeu um erro fatal. Mas não existe uma coisa assim – isto é o destino e não
há erros no destino. O destino é maior do que nós. O que ocorreu com esta
pessoa, então, era apenas o que tinha que acontecer; não houve erro, olhando
do lado da sua estrutura interna. Se esta pessoa se conhece saberá que o erro é
ela mesma e que portanto, tem que encará-lo.

Mas este é apenas a metade do valor do conhecimento da própria


individualidade. Se uma pessoa encara seu problema, se o vive, ela realmente
dirige sua própria vida com pleno conhecimento do que está fazendo, e
mesmo assim ela ainda pode fazer isto com uma ilimitada falta de
consideração que é peculiar à consciência... O perigo do nosso modo de viver
consciente é que, constantemente, perdemos de vista a verdadeira meta e
perseguimos metas imaginárias. Isto nos impede, por completo, de avançar;
58

sempre leva a um tipo de falta de limites. Os processos conscientes, como


também o inconsciente – isto é, o poder de trás, dos instintos – estão sempre
empurrando para fora, com um movimento centrífugo contra o qual é
necessária alguma proteção, e a única proteção é o conhecimento ou
consciência das limitações individuais, daquilo que se é, sem véus. Temos
que saber o que podemos fazer... Se temos uma imagem consciente do que
somos, sabemos que espécie de vida coincide com o nosso feitio individual.
Mas podemos estar certos de que erraremos se imitamos alguém mais, se
seguimos uma convicção ou um princípio que não se adapta ao nosso feitio
individual.

Assim, neste momento, quando as coisas ficam mais e mais quentes, nossa
paciente é outra vez, enfaticamente, chamada de volta ao conhecimento de si
mesma; sua imagem é colocada diante de seus olhos, de modo que quando as
visões avançarem, ela nunca perderá outra vez de vista a si mesma; ela sempre
saberá quem ela é. Porque as figuras do inconsciente coletivo que aparecem
nestas visões poderiam facilmente insinuar que ela é bem outra coisa do que
aquilo que é, e então, ela perderia a convicção sobre si mesma e perderia seu
caminho. É uma tremenda tentação porque naquele caminho as pessoas fazem
descobertas espantosas, descobrem coisas com as quais nem sequer
sonharam...

Para todos os efeitos, aqui está ela na cavidade abdominal, na região onde se
inicia o fogo e onde não há absolutamente, pré-concepções. É exatamente
como se a vida estivesse começando outra vez, como se nada tivesse
acontecido ainda.
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No início da vida, na tenra infância, vê-se o que um indivíduo realmente é;


crianças que já são introspectivas, já bem cedo, têm uma intuição sobre si
mesmas, que talvez, nunca as abandonará. Elas sabem exatamente o que são.
Mais tarde, elas perdem esse conhecimento; ele é parcialmente “espremido”
delas e elas sucumbem parcialmente a certas ilusões; e só muito mais tarde
elas se descobrem novamente. Esta é a razão porque a teoria freudiana dá tanta
importância às reminiscências da primeira infância: se alguém pode recordar
aqueles fatos, saberá aquilo que foi, porque o que quer que tenha acontecido,
então era ele mesmo.

Naturalmente, de um certo modo nada acontece a nós, nunca, que nós não
somos. A vida que vivemos é a nossa vida. Todas as nossas experiências são
nós mesmos – aquilo é exatamente o que somos. Assim, quando alguém se
queixa de ter sido vítima de um ataque sexual, digamos, na primeira
juventude, e explica toda a sua vida por aquela ocorrência, tem-se que dizer
que isto é lamentável, mas ainda assim era ele mesmo, ele o experimentou.
Veja, se uma tal coisa aconteceu a uma pessoa, mas não foi sua própria
experiência, não deixaria qualquer impressão. Geralmente, pacientes
neuróticos pensam que uma coisa ou outra teve tal e tal efeito, mas outras
pessoas passam através de numerosas experiências potencialmente
devastadoras que não deixam impressão porque não eram delas. Mesmo
assim, algumas vezes as experiências são traumáticas, e temos que ser
acrobatas mentais para explicar porque – e era porque um cachorro abanou seu
rabo para nós, ou algo semelhante.
60

O perigo de evocar a serpente

(FIGURA PÁG. 86)


Agora, o medo desta mulher, de tornar-se demente porque está aprisionada na
caverna, não é fora de propósito, porque há um particular risco naquela
associação íntima com os centros inferiores e todo iogi que estuda a
Kundalini-Yoga está consciente do fato de que trilha um caminho perigoso;
ele está bem ciente dos peculiares perigos de evocar a serpente. Porque ela,
certamente, completará seu caminho, se possível – isto é, se o iogi é capaz de
suportá-lo. Quanto mais a serpente progride, maior é o perigo e o momento
mais perigoso é quando ela alcança a cabeça. Por isso é provável que poucos
iogis atinjam o estágio em que a serpente entra no sexto centro (ajna) da
consciência.

Mas essa experiência da Kundalini não deve ser confundida com a nossa
consciência cotidiana; esta nada tem a ver com ela. Alguém pode ser
perfeitamente consciente sem ter o tipo de consciência que é causado pela
serpente. Todo esse processo de yoga é algo adicional ao desenvolvimento
mental normal. Eu sempre tento deixar claro que este desenvolvimento da
consciência não é um processo normal; poderia ser dito que é um
desenvolvimento anormal, uma consciência adicional. Possivelmente não se
pode dizer qual poderia ser o resultado de tal coisa; de certo modo será
diferente de tudo que conhecemos. Como vêem, a experiência do despertar da
serpente não é meramente uma experiência sexual; há milhões de experiências
sexuais e não há uma verdadeira experiência de yoga entre elas. Isto é alguma
coisa à parte, é um tipo particular de experiência sexual. Assim, o processo de
61

yoga é realmente algo que acontece num plano diferente, por assim dizer, e há
perigos e riscos que não atendem ao desenvolvimento usual da consciência. Se
alguém, por exemplo, alcança o ponto mais baixo, muladhara, poderia ser
preso nas raízes. Tais experiências são tão reais, que pessoas sem o mínimo
conhecimento da filosofia oriental pintaram figuras humanas presas nas raízes
de uma árvore; há uma em “O Segredo da Flor de Ouro”, uma figura feminina
deitada, adormecida nas raízes – em muladhara.

Está associada ao perigo de insanidade porque a insanidade realmente é aquela


fixação nas raízes da consciência. É exatamente como se neste processo de
Kundalini alguém estivesse abrindo mão de todos os conseguimentos da
civilização e vivendo de novo toda a experiência do mundo e, naturalmente,
há o perigo de que, quando alguém retorna ao estado animal, possa ser
aprisionado no animal; a psicologia animal pode dominar a consciência
humana e torná-la demente ou dissociada. Por isso, um típico caso de
insanidade poderia ser chamado uma experiência de yoga que não deu certo;
alguma coisa foi tocada nas raízes de tais pessoas, de modo que a serpente
elevou-se e elas foram apanhadas; emergiu uma quota de psicologia que elas
não foram capazes de absorver. Quando se estuda um caso de esquizofrenia ou
demência precoce, quase sempre se encontra uma experiência dessas no
início da doença...

Pergunta: E qual é a diferença entre esses casos e o caso desta mulher?

Dr. JUNG: Oh! Ela pode enfrentar isto.


62

Comentário: Mas aquilo que ela faz é mais do que psicologia normal?

Dr. JUNG: Sim, é psicologia supra-normal. Percebam, a Providência


realmente propunha que a psicologia neurótica fosse supra-normal, mas
muitas vezes ela permanece infra-normal.

Comentário: Então, o neurótico deveria usar sua neurose para fazer dela
alguma coisa?

Dr. JUNG: “Muitos são chamados mas poucos são escolhidos”; esta é uma
verdade esotérica. É verdade que o neurótico só pode ser realmente curado por
uma psicologia supranormal, uma psicologia adicional; e se isto não pode ser
efetuado, ele ficará simplesmente mutilado. Ou são aleijados ou são
supranormais...

Esta conexão com as raízes é uma experiência nova e muito peculiar. Como
disse, é como se todo o processo do tornar-se consciente fosse repetido; assim,
ele é expressado como um segundo nascimento, e aquele que passou por isto é
chamado duas-vezes-nascido e supõe-se que entrou numa condição que é
mana, ou tabu, ou redimido – qualquer que seja o termo religioso. De qualquer
forma, é uma experiência que cria um novo tipo de consciência, que poderia
ser caracterizado psicologicamente como uma consciência destacada, uma
consciência que não está mais em participação mística. Não quero avançar em
tudo isto agora, mas menciono-o para explicar-lhes a experiência pela qual
nossa paciente está passando, o seu medo de insanidade...
63

Agora, esta mulher tem que permanecer um pouco lá embaixo, na escuridão,


naquele medo muito compreensível, enquanto puder suportá-lo. Geralmente,
tais estados de pânico ou de grande emoção duram ou se repetem enquanto
alguém não os pode agüentar. Quando podem ser suportados, estão superados;
se alguém pode tolerar uma tal condição e manter-se calmo, então ela se
desvanece, é superada. É como se a energia fosse tomada da sua forma
emocional e transformada em um tipo de consciência. Este é o processo da
Kundalini.

O negro abre o Caminho

 Visão: Finalmente eu ouvi o Negro descendo. (Aquele |negro que estava


deitado no solo, com as mãos cheias de frutas, aquele Deus da
vegetação que estava acima enquanto ela estava embaixo.) Ele cantou:
“Eu canto para ti, sobre a escuridão e os campos flamejantes”. Ele abriu
a porta da caverna.

Como vêem, ele é aquele que abre caminho para ela. Qual é o significado
dele estar acima, enquanto ela está embaixo no inconsciente, dele estar fora,
enquanto ela está dentro?... É porque ele é aquele poder que está no fogo da
serpente, aquela parte que ela não podia suportar e que, por isso, estava
projetada. Ele vive, ele carrega os frutos da terra, e ele está fazendo jorrar seu
sangue. Agora, esta é uma idéia cristã, a idéia do herói. Nós não somos
capazes de viver isto; assim, se temos um fardo, nós o jogamos sobre o herói o
mais depressa possível e nos livramos dele. Pensamos que o herói pode
carregá-lo e, mais ainda, ele promete redimir-nos – e esta é exatamente a razão
64

pela qual ninguém é redimido. Isto é totalmente impossível: é uma mera


projeção, uma espécie de ilusão histórica que uma vez foi verdade e funcionou
durante um certo período da história, mas que para nós não funcionará mais.
Sabemos muito bem que se despejamos todos os nossos pecados sobre o
Senhor, isto não terá efeitos; nada acontece e nós apenas nos tornamos
neuróticos. Assim, o Negro simplesmente antecipou o que ela tinha que fazer
– vir à superfície, receber os frutos e fazer jorrar o sangue. Agora, ele é aquele
que abre o caminho, o psychopompos. Então ela diz:

 Visão (continuação): Ele riu ao ver-me. Ele disse: “Agora tu estás unida
comigo”. Subimos os degraus para a luz do dia. Ele disse outra vez:
“Agora tu estás unida comigo.”

Isto significa que eles estão em uma união inquebrantável. Como diriam os
cristãos: Cristo tornou-se meu irmão e meu irmão sou eu mesmo, assim eu sou
Cristo. Mas isto, naturalmente, é a mais blasfema suposição; qualquer um que
dissesse isso seria considerado insano. Mas não, Cristo era simplesmente um
indivíduo moderno. Ele apenas viveu sua própria mentalidade. Ele carregava
um tipo interessante de convicção e fez uma experiência: ele identificou-se
com seu próprio caminho contra todas as tradições, contra todas as pessoas
respeitáveis da Palestina. Isto era o que ele tencionou fazer e pagou por isso. E
isto é o que esta mulher está destinada a fazer, nada mais, apenas isto. É como
um cristão dos primeiros tempos indo para a arena, ou como o próprio Cristo
que teve suas dúvidas sobre côo a coisa toda terminaria e assim teve seus
maus momentos no jardim, antes de ser crucificado.
65

Vejam, essas coisas são tão sérias como nos primeiros tempos do cristianismo.
Tertuliano ensinou seus discípulos a buscar a arena, e esta é a idéia aqui –
tornar-se si mesmo, arriscando até ser jogado aos cachorros ou ser feito em
pedaços. Isto é o que espera esta mulher e, por isso, ela necessita uma
consciência supra-normal.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE V

Seminários entre 11 de novembro e 16 de dezembro de 1931

SPRING 1964
2

Procurando as raízes

Partindo do ponto de vista moderno, as visões desta mulher levaram-na para


trás, muito rapidamente, através das épocas, dos tempos medievais cristãos,
mais para baixo, nos templos de romanos e gregos, aos confins do reino
animal, onde ela teve uma visão dos olhos do animal, na realidade a alma do
animal. E depois ela começou a subir outra vez, voltando primeiro á adoração
do Sol – um culto cujo significado ela agora entende completamente através
de sua experiência vital. Mas, naturalmente, além de experimentar tais coisas
ela mesma, ela também vê qual seria seu significado atual. Seu ponto de vista
não é o de uma pessoa antiga, mas o de uma pessoa moderna com
experiências que os homens costumavam ter no passado remoto... Ela, agora,
ascendeu aos primeiros tempos do cristianismo quando ocorreu a transição do
culto dionisíaco para os ideais cristãos...

Na última visão que discutimos (o Negro Deus da vegetação , com o sangue


que fluía do seu lado) havia uma peculiar transformação do simbolismo da
comunhão; porque na comunhão cristã o vinho significa o sangue, mas aqui o
sangue jorrando do lado do Negro significa o vinho... As idéias religiosas da
paciente parecem estar voltando de um modo muito interessante ao ponto de
vista pré-cristão... É como se na nossa última era cristã, ela houvesse atingido
um ponto que já não mais contém vida e agora ela tivesse que procurar as
fontes da vida ou as raízes das quais novos brotos de vida possam emergir ....
No tempo da transição para o cristianismo, havia duas figuras, Dionísio e
Cristo, representando dois diferentes princípios. O princípio dionisíaco era,
decididamente, arcaico e Cristo era seu novo oponente... Mas esta mulher não
3

está avançando de Dionísio para o cristianismo... ela está tentando


desenvolver alguma coisa nova das idéias dionisíacas... É como se ela abrisse
mão da abstração cristã pela concretude dionisíaca, o sangue transformando-se
em vinho, o vinho tornando-se sagrado... Também aqui, temos fruta em vez de
pão (uma expressão imediata da natureza, em vez do produto refinado pelo
homem).

No fim da visão, o Negro diz: “Agora está unida comigo”, e repete esta frase.
Obviamente isto significa que ela, agora, está unida ao novo salvador, aquele
estranho espírito dionisíaco. E se ela está realmente unida com ele, aquele
espírito atuará como uma espécie de instigador dentro dela; ele continuará a
atuar e a conduzirá através da vida num caminho especial. Porque sem aquele
espírito dionisíaco ela encararia os problemas de sua vida, do recente ponto de
vista cristão, daquele desvitalizado, quase triste, empoeirado ponto de vista
que a deixou neurótica anteriormente. Mas agora, ela tem esta outra forma de
vida que está longe de ser desvitalizada; esta vida tem um “largar-se”, um
espírito de abundância, que a influenciará singularmente. Assim, ela
confrontar-se-á com os mais espantosos problemas no seu caminho, e nas
visões subseqüentes podemos esperar que passará por sérios obstáculos,
continuando no caminho com o Dionísio preto.

O potro preto

 Visão: Eu vi um potro preto. Com seus cascos ele tirava fogo das
rochas. Eu estava no mar e chamei por ele, perguntando como
4

poderia montá-lo. O potro desceu para a beira do mar e eu montei


nas suas costas.

E agora esse potro preto? Na psicologia medieval o diabo cavalga um potro


assim. Mas porque deveria ser ele o animal do diabo?

Resposta: Porque é preto.

Dr. JUNG: Ele é preto, como o inferno, e potros pretos são considerados,
particularmente, geniosos ou nervosos. Lembrem-se da famosa comparação de
Platão: ele diz que o homem é como um cocheiro que tem que guiar dois
cavalos: um é branco, um dócil e meigo cavalo, o outro é preto, desobediente,
sempre teimoso e rebelde. Esse é, obviamente, o cavalo mau, porque em
épocas passadas os potros pretos foram encarados como maus, não apenas
devido à sua cor, mas porque realmente são quase sempre perigosos e
geniosos. E o que significa este aqui?

Resposta: É a força da natureza nela.

Dr. JUNG: Sim, mas porque um macho e não uma fêmea?

Sugestão: Trata-se de um Animus animal, eu suponho.

Dr. JUNG: Sim, é uma força do animus... significa que o animus está na posse
de sua libido. É idêntico a ela, é o potro preto... Assim, sua visão a está
5

inteirando do fato de que a coisa eu agora a está conduzindo de forma alguma


é ela mesma, mas o seu animus. Acham que isto está certo? Ou seria perigoso
ou errado: Como tomariam isso se uma tal coisa acontecesse com os senhores?
Isto é o que faz toda a diferença. Se, por exemplo, um tal potro chegasse para
mim, que sou homem, ele carregaria todo o resto, e eu diria: “Naturalmente,
eu o aceito.” Mas, se uma égua preta aparecesse, eu não estaria tão certo de
que me pertenceria.

Pergunta: Mas se ela já está dentro do senhor?

Dr. JUNG: Espero que não! Não estou bem certo de que poderia aceitá-la.
Coloquem-se no lugar desta mulher. Suponham que se confrontaram, na
realidade, com um potro preto. Não estariam nem um pouco certos de que ele
era os senhores. Vejam, a suposição geral é que isto é a psicologia pessoal
dela, mas não é. É bem possível que isto seja algo estranho que está chegando
a ela, uma manifestação do não-ego. Este potro preto não pertence a ela e isto
faz toda a diferença no mundo, se ela o assume para ser usa psicologia pessoal
ou não.

Observação: Mas só reconhecendo-o pode ela, realmente, tornar-se


familiarizada com ele e ganhar o poder de exorcizá-lo... Ele está lá e ela tem
que reconhecê-lo.

Dr. JUNG: Certamente ele está lá. Mas a questão é: qual será sua atitude?
Identificar-se-á com ele e dirá “Isto é eu mesmo”?
6

Resposta: Ela tem que fazer o que ela fez.

Dr. JUNG: Suponha que o diabo lhe ofereça um cavalo preto. O senhor
montará?

Resposta: Poder-se-ia tentar um pouquinho.

Dr. JUNG: Bem, é realmente um problema mesmo. Como pode ela confiar-se
a ele? Não deveria ela recusar?

Pergunta: Ela não poderia controlá-lo?

Dr. JUNG: Porque deveria ela controlá-lo? O senhor sentiria necessidade de


controlar todos os elefantes selvagens da África se os encontrasse?

Observação: Mas ela estava no mar e teria sido desejável para ela sair.

Dr. JUNG: O senhor chegou lá... Esse cavalo vem como um tipo de libertador;
é o único meio pelo qual ela pode sair. Num caso destes, partiríamos numa
tartaruga ou mesmo no diabo se ele próprio se apresentasse. ... Mas, o que
significa ela estar no mar? Na última visão, ela subiu da caverna subterrânea
para a luz, para a superfície da terra, e agora, ela está no mar. Naturalmente,
isto se refere ao inconsciente, assim poderíamos, da mesma forma, perguntar:
“Porque está ela, de repente, no inconsciente? O que poderia ter acontecido
depois que conheceu o Negro salvador?”... Quero que se lembrem,
7

particularmente, do fim daquela visão, quando o Negro diz: “Agora estou


unido a ti.” Ele enfatizou isto fortemente, ele repetiu a observação. Qual
poderia ser a conseqüência de tal fato?

Resposta: Que ela está possuída por ele e teria que segui-lo.

Dr. JUNG: E o que aconteceria então?

Resposta: Ela se perderia a si mesma.

Dr. JUNG: Sim, ela se tornaria inconsciente como aquela figura primitiva, que
estava num estado de êxtase, de “largar-se”. Isto foi o que aconteceu entre esta
visão e a anterior, e por isso ela está no mar; ela acabou numa condição
inconsciente. É isto, exatamente, que observamos numa tal situação
psicológica. Se uma pessoa segue o espírito dionisíaco de “largar-se”, vai
embebedar-se, por exemplo, além de qualquer proporção razoável, até tornar-
se inconsciente, até que se encontre no mar; então, algo parece chegar e tira-a
de lá. Ainda mais, estar no mar significa estar abaixo do nível da terra, sito é,
estar numa condição demais baixa; ela deveria ser elevada até uma condição
mais alta, e para isso nada é melhor do que a força instintiva. Porque com
muita freqüência, quando estamos num estado inconsciente, nossa vontade nos
abandona; não podemos empregar a força de vontade e, então, alguma coisa
tem que nos dar o necessário empurrão para tirar-nos do inconsciente. Aqui, o
instinto é representado pelo potro; o único caminho para fora desta condição
que se apresenta a esta mulher é subir nas costas do cavalo.
8

Podem ver a estreita conexão entre o cavalo preto e o Negro; é, praticamente,


a mesma idéia. Assim, aquilo que a levou para baixo, ao inconsciente, é
também o que a eleva para fora dele. Esta é uma afirmação muito paradoxal,
mas é uma parte da mais antiga sabedoria do Oriente. Por isso existe a locução
de que quem vai sobre a terra estará – ao levantar-se – sustentado pela terra ...
assim, o Negro a leva para baixo, para dentro do inconsciente e o potro preto a
eleva, uma vez mais.

O gigante de novo

 Visão: galopamos durante muito tempo. Por fim chegamos até um


grande girante que se atravessava no nosso caminho. O potro
dissolveu-se no solo e eu fiquei sozinha diante dele. “Quem és tu,
oh! Gigante?”, perguntei. Ele respondeu: “Eu sou a voz do
mundo.” Seus dentes eram compridos e da sua boca saía fogo.
Tentei passar por ele, mas não pude.

Já encontramos este gigante antes. Lembram-se da imagem em que ela


carregava o grande corpo? Este é o mesmo gigante: é a voz do mundo, da
opinião pública, em outras palavras, do gigantesco ser humano que representa
a sociedade.

Comentário: Pensei que o senhor havia dito que ele significava o passado, que
ela tentava carregar todo o passado.
9

Dr. JUNG: Sim, eu disse isso. Nossa sociedade humana, todas as nossas
funções, a opinião pública inteira, é o resultado do passado; portanto, ela é
gigantesca. Todas as coisas velhas são grandes. As coisas novas são
extremamente pequenas e fracas e delicadas. Assim, podem observar que ela
enfrenta um grande poder. O gigante representa a opinião pública de todo o
mundo dela, as convicções da nossa atual sociedade. E aí o potro se dissolve.
Agora, porque deveria aquela libido desaparecer exatamente quando ela a
necessita? Parece bastante lamentável que ela devesse ser abandonada pelo
poder instintivo que a estava carregando. Porque deveria um animal
tremendamente forte e vital, de repente, desfazer-se completamente?

Pergunta: Será que ela voltou para trás, para sua antiga atitude?

Dr. JUNG: O senhor pensa que isto é realmente uma regressão? Então, temos
que explicar porque ela recua.

Sugestão: Medo.

Dr. JUNG: Sim, mas o que acontece a este potro preto, a este animal de
combate, que de repente é vencido e se desvanece? Um potro é muito
corajoso.

Pergunta: Será o potro um Animus-opinião?


10

Dr. JUNG: Mas evidentemente. O grande obstáculo no seu caminho é a


opinião pública, que funciona na sua própria psicologia como um Animus-
opinião, e o potro se desfaz perante a gigantesca opinião pública, porque ele
próprio é a energia daquela opinião. Veja, um Animus-cavalo é libido numa
certa forma opiniosa de Animus, e ao mesmo tempo é opinião pública.
Animus-opinião é sempre opinião pública, opinião universal. Por isso
perguntei aos senhores, se teriam montado aquele cavalo imediatamente. Teria
sido um tanto perigoso, mas aqui era necessário. O fato é que, ela foi para o
inconsciente seguindo o salvador negro. Isto não era muito maus, tinha que
ser; mas então, ela tinha que sair de lá outra vez, e o que a ajudou nisso foi a
opinião pública. Porque a opinião pública sustenta que tudo aquilo que
fazemos no mar, no inconsciente, é totalmente errado. Ela diz: “Agora seja um
homem, não degenere, seja moralmente responsável” – um “slogan” muito
geral – e nas costas desse “slogan” ela vem para a terra... Porque a opinião
pública, a moralidade convencional, idéias convencionais, naturalmente são de
utilidade; elas não existiriam se não fossem boas para alguma coisa; tais idéias
são extremamente úteis para quem está lá embaixo, no mar. Mas, se as
acompanhamos por muito tempo, no fim nos encontramos completamente
desamparados, porque nossa libido inconsciente se esvanece.

Ninguém pode forçar-se além de um certo ponto. Tem-se que viver dentro dos
limites do ponto de vista convencional, se se quer seguir aquela libido
coletiva; se tentamos o caminho individual, ela nos deixará. Podemos nos
confiar ao padrão convencional apenas enquanto permanecermos sob o padrão
do homem normal fictício. Se tentamos ir além disto, erguemo-nos contra o
gigante e o cavalo se esvanece, simplesmente nos deixa; somos abandonados
por aquilo que se poderia chamar o instinto coletivo.
11

A Cidade Branca além

Surge, então, um problema inteiramente novo: o que pode nos ajudar quando
somos abandonados pelos nossos instintos? Quando somos carregados pelos
instintos as coisas são relativamente fáceis, a vida é cômoda, tudo anda;
cometemos muitos erros, mas eles pouco importam, porque estamos com
nossos instintos e permanecemos mais ou menos inconscientes. Mas, o que vai
ajudar quando nos erguemos contra o gigante, contra a opinião pública? Não
há mais “tu deves”, nem admonições, e ninguém nos sustentará, porque já não
se trata de assunto coletivo. Se vamos em frente, é uma empresa inteiramente
individual. O que nos ajudará então? Deixarei que a fantasia responda.

 Visão (continuação): Tentei passar pelo gigante, mas não pude.


Além dele eu si uma cidade branca. Eu disse a ele, novamente: “Eu
tenho que passar”, mas ele apenas riu.

Agora, o que é esta cidade branca que ela vê além do gigante? O que significa,
psicologicamente, este vislumbre à frente? É um encorajamento, uma
esperança, como se ela visse além do obstáculo, algo que se seguirá, quando o
obstáculo for superado. É uma promessa e por isso, é uma cidade branca.
Podem reconhecê-la?

Resposta: A Nova Jerusalém.


12

Dr. JUNG: Sim, a Jerusalém celeste é uma cidade branca. E há outro exemplo.
Como sabem, o cristianismo não abrange o mundo inteiro; há religiões
maiores que o cristianismo em números e, talvez, também em idéias; o
bramanismo, por exemplo. A cidade de Brama é a cidade mais alta no mundo;
é uma cidade imensa, no cume do Himalaia. Eu penso que ela é feita de
diamantes – alguma coisa branca brilhante – e está sobre uma montanha cujos
lados são sustentados por quatro outras montanhas ... estas idéia da cidade de
Brama – que significa naturalmente, o próprio Brama – [e muito mais antiga
do que o cristianismo ... Agora, o que é esta cidade?

Resposta: É um símbolo de individuação.

Dr. JUNG: Sim... a branca cidade celeste transmite a idéia da condição final,
definida e completa, a idéia da meta.

Comentário: De novo é um símbolo coletivo não uma coisa individual ou


isolada. Poder-se-ia supor que o refúgio fosse só para si mesmo, mas está lá
para todos.

Dr. JUNG: Exatamente, mas devemos encará-lo, primeiramente, do ponto de


vista do pertencer a ela exclusivamente, porque ela não sabe ainda, que aquilo
que parece ser apenas dela, é a coisa mais coletiva de todas. Esta idéia vem
muito mais tarde; a primeira percepção é a da coisa mais íntima, da coisa
absolutamente única que pertence apenas a si próprio. Que esta coisa seja
também coletiva é um terrível paradoxo... Não podemos contorná-lo, mas
podemos dizer, para mitigar o paradoxo, que falando dela tornamo-la coletiva,
13

na medida em que é uma palavra; na medida em que é um fato, nunca


podemos torná-la coletiva. Mas isto é um pouco difícil; assim, faríamos
melhor se ficássemos, no presente, com a fórmula simbólica ou metafórica da
coisa que ela vê além, com a idéia da Jerusalém Celeste. Alguém, entre os
senhores, conhece os contornos desta cidade celeste?

Pergunta: Não é uma mandala?

Dr. JUNG: O senhor pode prová-lo? Devemos ler a Bíblia ou não


entenderemos psicologia. Nessa psicologia, toda a nossa vida, nossa
linguagem e nossa imagética são edificadas sobre a Bíblia. De novo e de novo
deparamos com ela no inconsciente das pessoas que, praticamente, nada
sabem sobre ela; mesmo assim, essas metáforas estão nos seus sonhos, porque
elas estão no nosso sangue. Vou ler agora alguns trechos:

(Revelações XXI;2) E eu, João, vi a cidade santa, a nova Jerusalém,


descendo de Deus, saindo do céu, preparada como uma noiva adornada para
seu esposo.

Os senhores sabem que a mandala é uma yoni, um símbolo do feminino; é


uma noiva.

[Aqui Dr. JUNG leu a descrição inteira da cidade celeste. EDITOR]


14

Este é um belo símbolo de mandala, o símbolo da quadratura, os quatro


cantos; é um quadrado como o claustro no centro da mandala budista. A
mandala é o símbolo da individuação, assim, a cidade branca é a cidade da
individuação; é o domicílio perfeito, a morada eterna que não conhece nem
sol, nem lua. O mesmo é dito no BRIDHADARANYAKA UPANISHAD. Ali,
numa conversa que vou resumir um pouco, o rei pergunta ao sábio
YANJAVALKYA:

“Qual é a luz pela qual um homem sai, faz seu trabalho e volta?”
E o sábio responde: “Pela luz do sol”. “Mas se a luz do sol se
apaga?”, pergunta o rei. “Pela luz da lua.” “E se a luz da lua se
apaga?”, pergunta o rei. “Pela luz do fogo.” “E se o fogo se
apaga?”, insiste o rei. “Então”, replica o sábio, “o homem sairá e
fará seu trabalho e retornará ao lar pela luz do Si-mesmo (Self)”.

Não se necessita nem sol, nem lua, porque a própria cidade é feita de pura luz.

Esta é, certamente, a luz da consciência, mas ela é um símbolo da consciência


que não é a consciência do ego. Este aspecto coletivo da cidade, vem do fato
de que uma cidade nunca é um ego apenas, mas uma multitude. Assim,
deparamos com o tremendo paradoxo. O Si-Mesmo significa a mais recôndita
singularidade e unicidade desse ser particular, mas ainda assim, é simbolizado
por uma cidade. Esta é, também, uma idéia do cristianismo antigo.
Encontramo-la nos famosos fragmentos de papiro que datam do primeiro
século d.C. e que foram escavados em Oxyrhinchus, no início do século XX.
Numa conversa entre Cristo e os discípulos, estes, primeiramente, lhe
15

perguntam como entrarão no Reino dos céus e ele explica isto naquela
maravilhosa passagem sobre os animais, conduzindo-os para lá. Depois Ele
diz: “Esforçai-vos, portanto, para conhecer-vos a vós mesmos, e tereis a
consciência de que sois os filhos do Pai; sabereis que estão na cidade de Deus
e que sois a Cidade.”

Pergunta: este não é um paralelo exato da concepção hindu de Atman-


Brahman como a centelha de vida dentro do homem, cujo encontro dentro de
si mesmo é a experiência mais individual e, ao mesmo tempo, a mais coletiva,
já que Brahman é vida em toda a criação e além da criação?

Dr. JUNG: É exatamente a mesma coisa. Está, também, absolutamente de


acordo com o ensinamento evangélico de que o Reino do céu está dentro de
nós mesmos. É nossa natureza mais íntima e nem um pouco aquilo que certos
teólogos querem fazer dela, alguma coisa entre nós mesmos e os outros. Dizer
que o Reino de Deus está entre as pessoas – como cimento – é teologia
degenerada. Não, ela é o homem inteiro, a completude, a totalidade do
indivíduo, e isto não é idêntico ao ego; o ego nunca é o Si-Mesmo, ele não
inclui o homem todo, de forma alguma ... é por isso que temos neuroses: a
consciência o ego é demais estreita. No que quer que consista o estranho não-
ego, é bem certo que a nossa consciência de ego não é suficiente para abrange-
lo inteiramente. Assim, o símbolo para o Si-Mesmo transmite uma idéia de
uma totalidade que não é idêntica ao ego. É uma consciência que não é
exatamente a nossa consciência, uma luz que não é exatamente a nossa luz.
16

Isso concorda com aquilo que eu disse anteriormente: que estas visões são
processos psicológicos que nada têm a ver com a vida do ego consciente; elas
são manifestações do não-ego psicológico. Poder-se-ia dizer que é um
alargamento para fora da consciência do ego e, entrando na visão da
consciência absoluta ou consciência não-individual, a consciência que está
além do homem. Isto soa terrivelmente abstrato e metafísico, mas de modo
algum é metafísico. Significa, simplesmente, o desenvolvimento de uma
consciência mais ampla e mais abstrata, a qual está relacionada com a outra
consciência mais estreita e mais concreta, de mesmo modo como a álgebra
com a aritmética, por exemplo, ou o pensamento abstrato com o comum
pensamento cotidiano. Assim, a visão de nossa paciente da cidade além do
gigante é a intuição de uma consciência além da consciência comum do ego,
uma consciência mais completa, mais perfeita, mais destacada. Porque na
cidade branca, estamos, certamente, num estado que é fortificado contra a
destruição circundante; a cidade transmite sempre a idéia de um lugar
fortificado, cercado por muros e torres e fossos, centro do qual estamos
protegidos. Neste ponto, não quero dizer mais nada sobre o símbolo do Self
como um símbolo coletivo; nosso texto, no momento, não justifica irmos tão
longe.

Os anões são mitológicos

 Visão (continuação): Eu disse, de novo, ao gigante: “Eu preciso


passar você”, mas ele apenas ria. (Evidentemente, esta visão da
cidade branca não basta para ajudá-la.) Enquanto ele ria, muitos
17

anões brotaram da terra e arrancaram de mim as roupas, deixando-


me nua.

De onde vêm subitamente os anões e o que significam?

Resposta: Da terra. Eles são fatores instintivos.

Dr. JUNG: Os anões são peculiares. Eles são mais do que apenas instintos.

Sugestão: Forças ctônicas?

Dr. JUNG: Sim, mas o anão é também mitológico. O anão contra o gigante.
Davi e Golias, o Polegar contra o grande homem. Na antiguidade, os anões
eram “polegares” e foram chamados também “dactyl”, que significa “dedos”.
Como vêem, eles são mais que apenas instintos; animais de todos os tipos
podem simbolizar instintos, mas os anões são mitológicos, o que é algo mais.
Os instintos saem da terra, muitas vezes sob a forma de serpentes ou outros
animais, mas os seres mitológicos também saem da terra. Agora, os anões
arrancam suas roupas até deixá-la nua... Para elucidar uma coisa dessas,
necessitamos certo conhecimento, é preciso estudar a literatura sobre anões. O
que fazem eles na mitologia?

Resposta: Os anões são inteligentes. Eles são criativos. Eles são capetas. E são
também os úteis cabiri.
18

Dr. JUNG: Originalmente, os anões eram instrutores. Ensinavam as pessoas a


lidar com minérios e todos os tipos de artes e habilidades. Eram tidos como
portadores de uma particular sabedoria e, por isso, tinham, muitas vezes, uma
importância educacional. O homem HÓRUS foi educado pelo anão BES, por
exemplo. Também SIEGFRIED cresceu sob os cuidados de MIMIR. Eles
realmente representam a sabedoria que está oculta dentro da terra, a
extraordinária astúcia e habilidade da natureza. Eles sempre são os guardiões
dos tesouros secretos ocultos na terra. Eles escondem os tesouros; sabem onde
estão as pedras preciosas. Aí está a conexão com o Self. Mas porque eles
arrancam as roupas desta mulher?

Resposta: Porque ela hesitou em ser autêntica consigo mesma contra a opinião
pública.

Dr. JUNG: Sim, ela manteve as aparências, usou certas roupas, adotou certas
atitudes externas – ela conservou tudo isso para manter-se simpática junto à
opinião pública. Mas, nua, ela é natureza. As coisas mudarão, a opinião
pública desmoronará quando ela tiver do seu lado as forças da natureza, o
espírito inato das coisas.

Pergunta: Porque o senhor diz que eles são o espírito inato das coisas?

Dr. JUNG: Bem, uma das conexões é que eles são as assim chamados
KANOPOI, os espíritos de vasos, ânforas, potes e outros. Havia uma idéia de
que os espíritos ancestrais viviam nos vasos das casas. Isto, provavelmente,
veio do fato de que nas civilizações antigas, os mortos eram enterrados em
19

grandes jarros de vinho, ou naquele tipo de ânforas utilizadas para guardar


sementes. No Peru, como também no Oriente Próximo, esses vasos eram
usados para o enterro ou, se os corpos fossem queimados, as cinzas eram
colocadas em ânforas.

Talvez, seja essa a origem racional de tal idéia, mas nós temos outra
explicação psicológica muito melhor do porque podem os anões ser
considerados o espírito nas coisas, e é o fato peculiar de que, de acordo com a
lenda, eles sempre faziam o serviço doméstico. Por exemplo, se uma mulher
era bondosa e colocava alguma coisa afastada, para eles – um pouco de leite,
talvez – e se não fosse curiosa, especialmente quanto aos pés deles, então
durante a noite, eles limpavam a casa com água e escova. Quando ela se
levantasse, pela manhã, tudo já estaria feito, tudo limpo pelos bons duendes,
os anões – a palavra alemã para eles é heinzelmünner. Há um lindo drama
intitulado “O dia Morto”, escrito por um artista alemão BARLACH – que não
é um escritor, mas um escultor ou pintor – sobre o espírito das coisas; ele lhes
dava nomes, chamando aqueles que limpam a casa durante a noite por um
nome alemão que significa “pernas de vassoura”.

A origem real desta peculiar animação de objetos é psicológica: vem de fato


de que a nossa psicologia, no início, de forma alguma é nossa, tudo é psíquico
através da “participação mística”. Isto significa “por projeção”, poderiam
dizer, mas nunca é feita por projeção. Nada jamais foi projetado; isto
realmente é uma concepção errônea; e termo “projeção” é errado. Tal
conteúdo psicológico sempre esteve fora, ele nunca esteve dentro. A assim
chamada projeção é, simplesmente, uma coisa que se descobre estar fora e,
20

então, é integrada pelo descobridor, a si mesmo. Nossa psicologia encontrava-


se sempre fora, nunca esteve nos nossos bolsos, para começarmos com ela. E
assim é com o primitivo; seu inteiro funcionamento psicológico é
exteriorizado; é idêntico às coisas e as coisas são sua mente... seus
pensamentos estão espalhados como uma rede sobre todo o território.

Qualquer país com tradições antigas tem sobre si esta rede de inconsciente;
nós temos, ainda, lugares na Suíça com lendas ligadas a elas. Se dizemos a um
camponês que lhe daremos vinte francos se ele nos contar todas as lendas do
lugar, ele não saberá de que estamos falando. Mas à noite, entre um copo de
cerveja e um cachimbo, ele poderá dizer: “Lá adiante é um lugar ruim. Um
homem construiu um estábulo lá, mas ele não deveria ter feito isso. Ele vai ter
problemas.” Se perguntarmos porque, ele repetirá que o lugar não é bom, há
algo mau com ele. Isto é folclores, lenda local. Eles concordaram em projetar
uma parte de sua psicologia, um certo efeito psicológico, sobre um certo lugar,
e se, por acaso, alguém compra aquela terra e constrói lá um estábulo, associa-
se com tal efeito e ele se torna um fato psíquico. Ele é parte do inconsciente
geral das pessoas que ainda vivem.

Assim, para o primitivo, não apenas sua terra, seus rios, suas florestas e
montanhas são vivos, mas também seus pertences pessoais, lanças, espadas,
canoas, tudo que pertence a ele, e isto vai tão longe que se expressa mesmo na
linguagem. Em todas as línguas primitivas há prefixos e sufixos para expressar
se um objeto é vivo ou morto. Em vez de falar simplesmente de “um
cinzeiro”, mostrando que é um cinzeiro masculino ou feminino ou neutro,
vivo ou morto. Mesmo em alemão ou francês (e também em português) tem-
21

se que dizer “o cinzeiro”, mostrando que é um cinzeiro masculino, e na


linguagem primitiva ter-se-ia que dizer “o cinzeiro vivo”. Se ele pertence a
mim ele é vivo, se pertence a outro, ele é morto. Em certas línguas tem-se que
ir mais longe e dizer se ele está de pé ou deitado, se está dentro ou fora; afinal,
se alguém fala dele tem que dizer: cinzeiro, masculino, vivo, em pé, dentro da
casa.

Tudo isto mostra a origem nos anões; eles são o espírito dos objetos... Os
anões são os últimos representantes daquela original condição mental em que
os objetos eram a minha vida, ou onde a minha vida era os objetos. E aquelas
partes psicológicas, os anões, tornaram-se personificados porque cada um é
parte da psique... Os lunáticos ouvem vozes vindas dos objetos, das menores
coisas, até mesmo de fósforos, como se fossem pequenos seres humanos. Por
isso é extremamente difícil convencer estas pessoas de que as vozes não são
reais, o que os torna quase incuráveis. Se elas conseguem deixar atrás esse
estágio, se a personalidade torna-se de novo sintetizada, elas podem perceber
que as vozes eram alguma coisa fora; mas, enquanto as vozes continuam
falando, elas se aferram à convicção de são reais... Podemos ver a mesma
coisa em médiuns ou pessoas muito sensitivas. Neles, uma porta ainda está
aberta, uma parte de suas mentes não é deles, está fora, em um objeto e sabe o
que o objeto sabe. Uma pessoa assim pode produzir os pensamentos de
alguém, como se estivesse na posse dos bens daquele indivíduo, por assim
dizer. Da experiência destas pessoas, pode-se tirar conclusões a respeito das
condições nos primeiros tempos, quando a mente humana estava ainda nos
objetos. O homem, então, só tinha que perceber e aplicar o que lhe era
sugerido pelas próprias coisas. Ouvem-se observações deste tipo de artistas,
22

ainda agora, se eles são um pouco primitivos: que certos materiais sugerem
tais e tais formas e assim por diante.

Agora, destes fatos surgiram as idéias em relação com os anões. Num nível
mais alto – nos tempos modernos – os anões, como espíritos domiciliares,
foram suprimidos, mas psicologicamente eles ainda estão presentes; isto é,
eles ainda não fazem parte da consciência do ego. É questionável se em algum
momento eles poderiam vir a fazer parte dela. Mas já não mais se encontram
nos objetos; estão agora, no nosso inconsciente, onde são o equivalente dos
objetos e lá funcionam psicologicamente da mesma forma como os objetos
funcionaram anteriormente, isto é, como sugestões espontâneas , as quais
podem ser tanto úteis como perniciosas. Certamente poderíamos dizer que,
nada nos foi sugerido, que apenas aconteceu de vir à nossa mente; uma vez
que não podemos traçar a origem da sugestão, somos inclinados a negar que
foi sugerido; pensamos que parece quase patológico e que seremos acusados
de ouvir vozes ou de depender de coisas que não podemos admitir. Mas são
vozes, tanto faz como as entendemos. Aqui temos um caso assim: esses
poderes auxiliares estão sugerindo que esta mulher apareça nua. E dissemos
que estar nua significa estar como ela realmente é, sem adornos especiais, sem
especiais exageros e arranjos convencionais, para enganar outros ou a si
mesma. Ela deveria ser como é, sem véus. Agora, porque seria isso
necessário? Lembrem que ela quer passar pelo gigante, que está no seu
caminho para a cidade branca.

Resposta: O gigante é feito, essencialmente, da mesma matéria que suas


roupas; se ela as tira, isto levará embora a força dele.
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Dr. JUNG: É isto mesmo. Suas roupas são também uma persona, e jogar fora
aquele véu ou engano seria aquilo que se chama magia de simpatia – um
feitiço por analogia. Para produzir chuva por magia, borrifa-se água ou leite
ou sangue sobre o solo; ou imitava-se o som do vento ou da chuva para criar a
disposição de chuva... Assim, jogando fora a coisa que, nela, é como o
obstáculo, ela estaria jogando fora ou superando o obstáculo.

Blefe

 Visão (continuação): Joguei pedras contra o gigante, cegando-o


num dos olhos. Ele ainda permaneceu lá. Golpeei-o no peito, várias
vezes. Ele ainda permaneceu lá. Olhei para o céu e vi uma estrela
que emitiu raios até a minha testa, e a lua crescente desceu sobre
minha cabeça. “Olha”, eu disse ao gigante. Mas ele ainda
permanecia lá.

...Nada daquilo impressionava o gigante; aparentemente ele não foi


eliminado... Mesmo quando, muito ingenuamente, ela aponta para uma lua
crescente na sua cabeça, isto não funciona. Agora, o que indicaria a lua
crescente na sua cabeça?

Resposta: Que ela é a Deusa da lua.


24

Dr. JUNG: Nada menos! Mas isto não impressiona o gigante e a razão é que
isto não passa de uma bobagem, não é real. Ela nunca poderia ser uma deusa
da lua, isto é mera inflação. Ela está tentando blefá-lo. Os senhores conhecem
certas pessoas que, quando confrontam o seu próprio medo ou a opinião
pública, imediatamente se identificam com uma divindade qualquer, na
esperança de receber ajuda; mas não há ajuda, porque é apenas uma farsa.
Assim, a identificação com a Deusa da lua prova ser inútil...

É como se uma espécie de fascinação tivesse tomado conta dela; ela está presa
nos seus próprios conceitos, nas suas próprias palavras; ela tem uma sensação
de divindade por uma inflação vinda do inconsciente. Sua contínua
preocupação com estes conteúdos inconscientes deu-lhe um senso de poder e
importância, que está bem afastado dos pequenos efeitos usuais, daquela
pequena vaidade de ser capaz de produzir algo que interesse ao analista. Esta
outra coisa, a inflação que atinge quem se ocupa com o inconsciente coletivo,
é muito mais forte. Depois de um certo tempo, a pessoa sente que tudo é
bastante simples e muito lindo; que ela tem que ser muito dotada para ver
coisas tão maravilhosas, que um influxo divino deve estar atuando nela e
imbuindo-a com tais imagens. Também a idéia de que tudo está vindo das suas
próprias profundezas criativas indica que ela mesma é, talvez, a origem de
tudo; assim, lentamente, uma identificação com a deidade infiltra-se na sua
psicologia, quer ela goste disso ou não. Com a devida modéstia ela pode dizer:
“Naturalmente eu não sou um Deus, mas afinal, é maravilhoso o que se pode
fazer, que coisas lindas se pode ver.” ... então, aparece uma dificuldade e a
pessoa se recolhe em Napoleão ou alguma coisa semelhante. É uma espécie de
prontidão inconsciente para o blefe.
25

Isto é bastante legítimo, até um certo ponto, mas aqui não ajudará, porque o
gigante não é humano e não pode ser morto com um blefe comum. Porque o
blefe é feito da mesma matéria que o gigante, que sabe tudo sobre ele. Mais
uma vez ela usa uma roupagem, um véu divino; desta vez é uma divina
nudez... Muita gente faria o mesmo num momento destes.

Mesmo quando não há uma particular dificuldade para enfrentar, as pessoas


são inclinadas a lembrar a si mesmas da sua própria grandeza e importância.
Tivemos um belo caso aqui em Zurique – na verdade eu deveria contar a
estória em dialeto suíço – que mostra o blefe e a auto-importância numa
pequena escala. Certa vez, um homem muito popular aqui, encontrou alguns
meninos na rua jogando bola e pôs-se a jogar com eles, de maneira bem tola.
Depois de algum tempo, ele não pode conter-se mais, ele mesmo achou
maravilhosos que um homem como ele tivesse se curvado ao ponto de jogar
na rua com aquelas criaturinhas; elas deveriam, pelo menos, ser capazes de
contar isso em casa. Assim, perguntou a um dos meninos: “Você sabe com
quem estão jogando? Você sabe quem eu sou?” O menino respondeu: “Oh!
Sim, você é um....” bem, o equivalente a um tonto; nós temos uma palavra
ótima para isso, em suíço: Lëli (Lelé). Como vêem, a criança enxergou através
do véu.

O Pássaro Branco ajuda-a

 Visão (continuação): Então eu vi um fauno, que da floresta me


chamava com um gesto e me deu um cálice para beber. Depois que
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bebi, uma grande foca entrou em mim e eu voltei ao gigante. Um


pássaro branco voou até a garganta do gigante, sugando-lhe o
sangue de lá, até que ele caiu ao chão. Então, eu passei sobre o
corpo e entrei na cidade branca. A luz cegava, as pedras brancas
feriam meus pés.

O fauno sugere uma antiga reminiscência; é uma regressão à floresta. Ela


volta à mentalidade dionisíaca; por isso o cálice, que pertence ao culto de
Dionísio, o sangue ou o vinho. E este toque da terra é suficiente para dar-lhe a
necessária força para superar o gigante. Não que ela faça isso; é o pássaro
branco que voa até ele. O que diriam deste pássaro branco?

Resposta: É o espírito que uma vez foi morto pelo índio.

Dr. JUNG: E mais tarde voou para baixo, até a figura da Grande Mãe. Aqui
nós temos aquele pássaro outra vez, depois do intermezzo dionisíaco... Ele
aparece, não como posse dela, mas como o típico animal auxiliar,
aparentemente porque ela seguiu o fauno e acenava. Beber o sangue significou
uma re-identificação com a natureza... e depois disse a natureza provou ser
útil, enviando o pássaro branco. Na moderna psicologia cristã, um pássaro
branco está sempre associado com o Espírito Santo, mas é difícil entender
como pode, de algum modo, entrar aqui em cena o Espírito Santo... quando foi
celebrado um mistério dionisíaco.

Pergunta: O senhor pode encarar isto como o resultado da união entre ela e o
dionisíaco?
27

Dr. JUNG: Nós temos que encarar assim: este é o resultado. Os animais se
tornam úteis porque ela se reconciliou com a natureza, mas como é possível a
entrada em cena do espírito Santo, depois do episódio do fauno? Isto é difícil
de explicar.

Resposta: O espírito é também uma parte da natureza.

Dr. JUNG: O senhor está consciente daquilo que diz? O espírito como uma
parte da natureza! Espero que não tenhamos teólogos aqui! Mas eu sou
exatamente da sua opinião; estou certo de que não existiria espírito se ele não
fosse uma parte da natureza.

Comentário: Assim, estaria submetido às mesmas leis como a natureza em


geral.

Dr. JUNG: Por qual princípio os senhores explicariam isto, ou tornariam isto
plausível? Bem, não podemos nos esquecer que “os extremos se tocam”, e que
significa que quando alcançamos um extremo, no minuto seguinte
encontramos o outro. É a lei da enantiodromia, a lei de Heráclito, que quando
as coisas atingiram sua culminação, transformaram-se no seu oposto. Este é o
ensinamento do I Ching. Assim, esta mulher vai até um extremo com aquele
fauno, para trás até um culto pré-cristão e, naquele momento, começa a volta...
28

Num instante a situação é completamente transformada, o pássaro é realmente


o espírito da natureza, e este é o Espírito Santo. O Espírito Santo é sempre
expressado por uma coisa natural, ou por fogo ou por um pássaro. Jesus disse
que os animais nos levariam para o Reino. Vou ler-lhes outra vez aquela
passagem de papiro de Oxyrhynchus:

“Jesus disse, vós perguntais quem são aqueles que nos levam ao reino se o
reino está no Céu? As aves do ar e todos os animais que estão embaixo da
terra ou sobre a terra, e os peixes do mar, estes são os que vos levarão ao
Reino. O Reno do céu está dentro de vós, e todo aquele que conhecer a si
mesmo o encontrará”.

Sem realizar o animal que está dentro de nós, como é possível algum dia
compreendermos nós mesmos? Ainda assim evitamos o conhecimento de nós
mesmos. E, se perguntam por que, a resposta é: por causa do gigante. Só
podemos chegar a nos conhecer se realmente entramos em nós mesmos e só
podemos fazer isso se aceitamos a condução do animal... Assim é possível
dizer que através daquela regressão ao ponto de vista dionisíaco, através do
contato com a terra, ocorreu o milagre de ANTEU. O gigante ANTEU, como
o filho da terra, era tão forte quando em contato com ela, que não podia ser
vencido, mas quando HÉRCULES o ergueu ele perdeu a força e Hércules
venceu-o facilmente. Descer à terra significa força; então, tocam-se fatos que
não podem ser negados. E imediatamente, quando a terra é tocada, o outro
fenômeno que pertence à natureza emerge; o fenômeno compensador é o
espírito. Por isso, os encontramos juntos no culto dionisíaco...
29

Nada existe sem espírito, porque o espírito parece ser o interior das coisas.
Dionísio está em relação com o exterior das coisas, com as formas tangíveis,
com tudo que é feito da terra, mas dentro é o espírito, que é a alma dos
objetos. Se isto é a nossa própria psique ou a psique do universo, nós não
sabemos, mas, se tocamos a terra, não podemos evitar o espírito. E se a
tocamos no modo amistoso de Dionísio, o espírito da natureza será útil; se de
um modo inamistoso, o espírito da natureza se oporá a nós. Por isso há tantas
lendas sobre pessoas que ofenderam o espírito das coisas.

O pássaro branco que suga o sangue do gigante significa que o poder da


opinião pública está completamente solapado pelo espírito. O espírito é aquilo
que nos torna livres. Esta mulher está imediatamente libertada do peso da
convenção quando foi ajudada pelo espírito natural. Sem ela, ela é
completamente impotente. Agora, o que é o espírito? Esta é a questão. Bem, o
espírito é, realmente, uma certa atitude – fala-se, por exemplo, do fazer
alguma coisa com um certo espírito, ou de ser movido por um certo espírito, o
que significa uma espécie de idéia geral ou arquétipo. Mas ele não é feito pelo
homem; nenhuma idéia feita por um homem pode nos mover. O melhor que
esta mulher pode fazer foi a idéia da deusa lua. Isso era uma invenção sua e
provou ser completamente ineficaz. Mas, se o pássaro está do lado dela, o
gigante sofre um colapso, isto é, quando uma atitude espiritual natural está
presente, ela funciona imediatamente; é como se o gigante nunca houvesse
existido e como se nunca houvessem existido quaisquer convenções.

Agora, é necessário ter convenções; nada seria mais insensato do que destruí-
las. Elas nunca teriam chegado a existir se não fossem realmente necessárias.
30

E é adequado o colapso perante uma convenção; somos destinados a isso. De


outro modo não poderíamos superar o gigante, ou se pudéssemos, de nada
adiantaria, sempre teria sido muito cedo na vida. É muito melhor ceder,
porque assim, pelo menos, permanecemos numa condição ordenada.
Combater convenções por motivos fúteis e ataques à sociedade só nos conduz
a uma nova convenção pior que a anterior. Nós não podemos contornar isso,
na realidade. A única coisa que pode quebrar convenções é o espírito; vale a
pena quebrar convenções por um novo espírito. Opor-se a convenções por um
capricho ou moda nada mais é do que tola destruição, se de alguma forma
temos êxito. Mas pelo espírito é alguma coisa mais. O espírito é construtivo;
dele pode vir alguma coisa, porque ele é vivente e fecundante. Assim,
naturalmente, ele tem uma grande vantagem sobre as meras convenções. A
convenção nunca é criativa, mas o espírito é sempre criativo. Podem encontrar
esta psicologia nas Epístolas de São Paulo; tudo que estou dizendo aqui ele já
disse.

A luz da Cidade Celeste é ofuscante

Quando o gigante desmorona, ela caminha sobre o seu corpo e entra na cidade
branca, isto é, ela chega ao Si-Mesmo (SELF) e poderíamos esperar aqui, algo
muito impressionante. Mas a luz ofusca e as pedras brancas ferem seus pés.
Assim, sua chegada à cidade branca, que deveria ter sido uma espécie de
entrada triunfal, não é tão maravilhosa.

Sugestão: Ela ainda não suporta isso. Ela não está pronta para isso.
31

Dr.JUNG: Mas porque não? Provavelmente ela tinha uma ilusão. Quando ela
viu, de longe, a cidade branca, ela naturalmente pensou, como todos fariam:
“Lá está o lugar do descanso, o lugar da completude, a verdadeira meta”. Mas
a visão diz: “De forma alguma.” Bem, freqüentemente este é o caso. É o
preconceito cristão que conecta a idéia de uma condição perfeita, quase
paradisíaca, com a idéia de redenção... Mas, na realidade, não é tão simples
assim. O SELF pode ser, e freqüentemente é, a tarefa mais difícil; é quase
insuportável. Por isso as pessoas o evitam; elas empregam seus melhores
esforços para não se encontrarem consigo mesmas, porque tudo mais parece
ser mais fácil.

É como se as pessoas tivessem uma noção muito clara do Si-Mesmo e por isso
muito cuidadosamente o evitassem, porque se chegassem a conhecê-lo,
provavelmente entrariam em dificuldades. Isto foi também antecipado na
lenda cristã – aprendemos isto lá – porque, para nós, JESUS foi o primeiro
homem que mostrou o que acontece quando alguém se torna si-mesmo. E nós
não estamos prontos para ir tão longe. Ele entrou numa terrível confusão e
seus verdadeiros seguidores também entraram; eles morreram na arena ( e de
outras formas desagradáveis)... Nossas arenas são de uma natureza muito mais
sutil. No nosso tempo, as coisas estão se tornando muito psíquicas, muito
menos visível – dentro e fora dos quintais e pelas esquinas – a tortura é muito
mais refinada. Mas, de qualquer modo, a vida não se tornou mais fácil.

O fato de que as pedras ferem seus pés e a luz a ofusca, mostra simplesmente
que ela de modo algum está pronta para encontrar a luz ou aceitá-la; ela não
está em condições de agüentar esta consciência ofuscante. Alguém poderia ter
32

pensado – e ela certamente deve ter esperado – que, tendo superado o gigante,
que parecia ser o obstáculo maior, sua entrada na cidade branca seria como a
entrada de um cristão na Jerusalém celeste... Mas o céu, de forma alguma é
adequado para todos... Requer-se algum conseguimento ou realização
particular para tornar satisfatórias as condições celestes. Em todo caso, ela
achou a nova situação pouco simpática. Mas então, subitamente, ela viu
alguma coisa e o que ela viu provavelmente explica sua condição: porque não
estava, ainda, a altura daquela cidade branca e não se sentia particularmente
redimida.

 Visão: eu vi uma multidão adorando um touro dourado que se


encontrava sobre um pedestal. O touro perguntou: “Onde te
perdeste mulher?” Eu respondi: “Eu não pude passar o gigante
enquanto não bebi do cálice.” O touro disse: “Daquele cálice
deverás para sempre renovar tua força. Bebe outra vez.” Então, eu
bebi de um cálice que tinha sido deixado sobre o pedestal como
libação. Quando tinha feito isso o touro desceu e deitou-se ao meu
lado.
(FIGURA PÁG. 98: DESENHO DO TOURO)
Este é, aparentemente, o touro-Deus mitraico – ou o bezerro de ouro: uma
referência a APIS, certamente, o touro-Deus egípcio. O fato de ser dourado
sugeriria o culto do touro-sol, que é extremamente arcaico. Pertence ao
período entre 4 e 2 mil anos A.C. e ninguém esperaria que aparecesse na
cidade celeste, que deveria ser um lugar de perfeita consciência. Se o touro
ainda está lá, ela não pode, naturalmente, suportar a cidade branca sobre a
montanha do mundo. A Jerusalém Celeste, a cidade de Deus, ou a cidade do
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SELF, evidentemente nada tem a ver com um tal culto, realmente ctônico e
arcaico. Veja, isto simplesmente aponta o fato de que alguma coisa nela, de
uma natureza bem telúrica, está resistindo à idéia da cidade branca. Agora, o
que diriam de uma pessoa que teve uma visão como esta?

Resposta: Penso que ela estaria desigualmente desenvolvida.

Dr. JUNG: Sim, há enorme lacuna entre sua intuição introvertida, de longo
alcance, e sua situação real. Este cálice, contendo a substância doadora da
vida, o sangue ou o vinho, enfatiza o culto do touro e sugere alguma coisa em
total contradição com a idéia de uma cidade celeste... O que fica fortalecido
nela, quando ela bebe o sangue do touro – aquela libação?

Resposta: O lado ctônico de sua natureza, o lado instintual.

Dr. JUNG: Em outras palavras, tudo que caracterizava o culto de Dionísio,


que era um touro, lembrem-se. Na Trácia, Dionísio era Zagreu; ele é chamado
Dionísio-Zagreu. Sagundo a lenda, naquela época tão espalhada, ele foi
perseguido pelos Titãs e transformou-se a si mesmo em todas as formas de
animais para escapar deles. Finalmente o apanharam na forma de touro,
despedaçaram-no e o colocaram num caldeirão e banquetearam-se com eles;
mas Zeus, descobrindo de repente o que haviam feito, resgatou uma parte
dele, o coração que ainda pulsava e inseriu-o em sua coxa. Esta é uma versão;
a outra é que ele o comeu; em ambos os casos, Zeus fê-lo renascer... Zagreu é
a mais típica forma do Deus desmembrado, dos desmembrados poderes
ctônicos, e ele simboliza também fertilização e a morte sacrificial...
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Assim, este touro aconselha nossa paciente a beber do cálice da vida, o que a
retira inteiramente da cidade branca – ainda não é o tempo para a cidade...
Ninguém entra na Jerusalém celeste com seu corpo, e ela ainda não está
morta; portanto, é melhor para ela viver na terra e beber o vinho da vida. Se
ela viver sua vida, em tempo hábil estará apta para alcançar a condição
celeste, mas ainda não agora. O tipo intuitivo muitas vezes se esquece disto;
quando ele vê pelo seu telescópio o topo da montanha distante, acredita que já
está lá; sua intuição – seu telescópio – o leva lá; mas ele está à milhas de
distância, quatro ou cinco mil metros abaixo do topo, e todo o trabalho da
subida ainda tem que ser feito.

Descobrimos, agora, o papel útil do gigante e compreendemos porque ele era


tão inabalável. Ele queria conservá-la aqui nesta vida, até que ela pudesse voar
além dele como um fantasma. Isto também explica o pássaro Espírito Santo
que sugou o sangue, a vida do gigante, até que ele se exaurisse e
desmoronasse. A idéia é que o espírito pode vencer o gigante, mas um ser
humano vivo não; enquanto ela estiver num corpo, ela não pode passar o
gigante, mas se ela se transforma num espírito, ela pode passá-lo facilmente.
Para o corpo, esta morada que ela procura é, obviamente, um lugar impossível,
assim, a aparição do touro é uma espécie de compensação frente a uma
tentativa intuitiva de desviar-se da vida, de negar a vida.

O touro deita-se ao lado dela


35

Depois que ela bebeu do cálice, o touro desce do seu pedestal e deita-se ao
lado dela... O poder divino está, agora, domesticado e, através do que ele se
domesticou?

Resposta: Aceitação. Ela bebeu outra vez o que significou que ela aceitou a
vida.

Dr. JUNG: Sim, pela aceitação da vida como ela é, este poder divino torna-se
domesticado. Não é uma idéia peculiar?

Resposta: Não, porque de certo modo está assimilado.

Dr. JUNG: Como é possível assimilar um poder divino?

Resposta: De um modo muito semelhante ao que fizeram os Titãs com


Zagreu.

Dr. JUNG: Bem, eu diria, exatamente como somos capazes de comer a Hóstia,
somo capazes de comer o Deus. Comer os Deuses era uma prerrogativa real
dos Faraós, a idéia tornou-se o mais familiar rito religioso, a Comunhão... Isto
iniciou, na realidade, nos repastos totêmicos, onde se comia o animal-totem, e
no decurso de milhares de anos, degenerou-se na idéia de comer o Deus de
uma forma mais comum. Em estágios posteriores desenvolveu-se na idéia de
matar e comer o rei, e a idéia de matar os reis conduziu naturalmente à lenda
cristã de matar o filho de Deus. Aí, as duas coisas vêm juntas, comer o animal-
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totem e matar i réu; Cristo é o rei que foi morto, por isso Jesus Nararenus Rex
Judaeorum, INRI, está em todos os crucifixos, e então Ele é comido. Uma
antiga idéia canibalística torna-se a idéia central da comunhão... O Deus não é
apenas morto, Ele é também distribuído entre a multidão e assimilado...

O inteiro complexo de lendas é muito misterioso, mas esta fantasia análoga o


elucida. Veja, bebendo o vinho, aceitando a vida terrena como ela é, ela
supera o poder divino que está nos instintos. Isto é, os instintos têm um poder
sobrepujante, mas só quando alguém se opõe a eles. Se aceitamos a vida
como ela chega, estamos com eles, então, não sentimos o impacto de uma
resistência. É como viajar num balão durante um vendaval: enquanto
seguimos o vento, dificilmente o sentimos; é possível riscar um fósforo e
acender um cigarro, ou uma vela queimará firmemente; mas, se um balão
tentasse ir contra o impacto da tempestade, seria reduzido a pedaços numa
fração de segundo. Ou é como um barco num rio rápido: se ele vai com a
corrente, é muito fácil, mas contra ela é um trabalho duro. Então, se aceitamos
os instintos da vida, não há dificuldades; é como um paraíso, mesmo se um
touro se posta ao lado. Mas se não fosse um paraíso, se alguém sabe demais,
coloca-se contra os instintos e há dificuldade.

Esta é a razão pela qual muitas pessoas sonham com touros, talvez um touro
selvagem que os persegue, e é sempre quando eles se levantam contra um
instinto – qualquer que seja. Não é sempre sexualidade. As pessoas entendem
que, quando sonham que estão sendo perseguidos por um touro, trata-se de
sexualidade reprimida, mas isto de modo alguém é verdadeiro. Quando se
peca contra o instinto coletivo, por exemplo, contra a própria adaptação à
37

condições coletivas, pode-se ser perseguido por um touro representando o


instinto de rebanho. O touro pode até representar a polícia.

Assim, aqui, quando o touro desce do pedestal, seu poder instintivo-telúrico já


não é mais divino. Isto é, tal poder já não precisa ser divino, já não exige que
ela o adore, porque ela agora o aceitou, ele tornou-se, simplesmente, uma
parte da vida dela e já não tem nada de divino. Podemos, agora, pressupor que
algo se tornará o princípio divino, ou que o princípio divino tomará outra
forma.

 Visão (continuação): Sobre o pedestal cresceu uma árvore verde.


Na árvore estavam muitos pássaros. Ergui minhas mãos para eles e
eles desceram sobre mim.

O touro foi sucedido agora pó uma árvore, e o que significa isto?... Bem,
primeiro o touro é o princípio divido, e lá ela o aceita, bebe o sangue e torna-
se uma amiga do touro. Ela agora é apenas uma vaca, um animal. Esta idéia
muitas vezes foi expressada em cultos antigos. Por exemplo, os seguidores de
ARTEMIS denominavam-se a si mesmos arktoi (ursos) porque o urso era um
dos animais de caça da deusa. Depois, no culto mitráico os iniciados eram
divididos em quatro classes ou graus separados (os mais baixos deles eram
chamados leões e águias)... Praticamente em todas as religiões há tais
hierarquias, mas as designações por animais ocorreram apenas em cultos
antigos. Assim, esta mulher seria uma vaca divina, o que explica sua
identificação anterior com ISIS, a Deusa-lua que, como HATHOR, foi
coroada com cornos no formato de lua crescente...
38

Muitos pássaros

Não sei se podem apreciar plenamente o real significado de uma tal analogia.
Veja, como eu venho repetindo, não se trata do ego, na psicologia desta
mulher, mas do não-ego; é com o não-ego que ela está lidando. Trata-se aqui
de uma psique impessoal, não da sua psicologia pessoal; é o desenvolvimento
– ou a transformação, se poderia dizer – de seu inconsciente, mas ela não é
este inconsciente. O inconsciente vem a ela e é sua tarefa corresponder a ele –
fazer o que for necessário – de forma que ele possa transformar-se através da
sua atitude consciente. É como se ela tivesse a sagrada tarefa de mudar certa
parte do inconsciente – uma espécie de missão, poder-se-ia dizer – a tarefa de
domesticar ou transformar o inconsciente. E o que ela vê nestas visões é uma
parte deste grande trabalho, que é feito nela e através dela, de transformar as
forças cegas do inconsciente coletivo em algo consciente, algo como o homem
– ou como na direção do homem. Mas ele nunca se torna humano, ele mesmo;
ele transcende o humano.

Aqui vemos um importante estágio da transformação da psique impessoal que


está em andamento nesta mulher; ela aceita o poder divino dos instintos na
forma do touro e assim, necessariamente, ela se torna uma vaca. Ela está
muito contente aceitando sua identidade com ISIS, tendo a lua crescente sobre
sua cabeça e dizendo ao gigante, “Agora, olha-me”. Mas ela não percebeu que
dizer, “Agora olha-me, eu sou uma cava” , o teria impressionado muito mais –
embora provavelmente, tivesse impressionado mais do que ser apenas uma
Deusa. Na realidade, é a mesma coisa. Se alguém tem uma sensibilidade em
39

relação com os animais, e olha nos olhos de uma cava, pode perceber nela
uma peculiar expressão de tristeza. Projetamos nossa melancolia nos olhos dos
animais e temos razão de nos sentirmos tristes, porque nada mais vemos lá do
que o animal. Por outro lado, este “nada mais do que”, é também uma grande
coisa Na realidade, vê-se alguma coisa divina nos olhos do animal, porque se
vê ali a expressão da vontade criativa e do espírito criativo. Assim, sendo uma
vaca, ela seria apenas como era a mulher arcaica – nas apenas um animal, mas
também uma participadora da divindade.

Comentário: Uma vaca tem a virtude da docilidade.

Dr. JUNG: Sim, não se trata apenas de aceitar o fato de ser uma vaca, mas
também de tornar-se dócil como uma vaca, o que é uma forma mais alta da
mesma idéia; para os chineses ser dócil como a vaca é o caminho do TAO. Por
isso, a aceitação da docilidade da vaca – que para qualquer mulher moderna é
uma idéia abominável, mesmo assim é o caminho mais próximo da perfeição.
A aceitação desta mulher, através da participação do sangue ou no vinho, a
conduziu para dentro da condição animal, dentro do ritmo do reino animal.
Mas depois do touro aparece a árvore. Assim agora, a única coisa que ainda é
divina para ela, que significa força – que está ao lado dela e a compensa – é a
planta, a árvore. E isto simboliza um princípio inteiramente diferente do
animal...

[A vida na planta, simbolizando o princípio da vida espiritual e o crescimento,


foi tratada anteriormente pelo Dr. JUNG, nestas séries de seminários. Uma
40

grande parte dos excertos da Parte Três contém bastante material a este
respeito. Aqui ele lembra o que foi dito lá. EDITOR]

Nossa paciente parece invocar os pássaros que vivem nos ramos da árvore,
porque agora eles descem sobre ela. O que seriam os pássaros?

Resposta: Suas intuições.

Dr. JUNG: sim, mas porque intuições? Há qualquer outra idéia?

Sugestão: Eles não seriam antes representantes do Espírito Santo?

Dr. JUNG: muitos pequenos Espíritos Santos! Eu penso que isto seria
depreciar um pouco o Espírito Santo; se existem tantas pequenas edições, ele
perde sua unicidade.

Sugestão: Como se fossem mensageiros?

Dr. JUNG: Penso que isto é um pouco lindo demais; eles deveriam ser
pássaros muito comuns Ela diz: Eu ergui minhas mãos para eles e eles
desceram sobre mim.” Lembram-se daquele famoso indivíduo no Jardin des
Tuileries com os pardais? Ele estende migalhas de pão para eles e eles descem
sobre ele, mas não há nada lá com o Espírito Santo. E terão visto muitas vezes
pinturas onde pombos pairam sobre mulheres e não presumimos que são
41

Espíritos Santos; nós temos antes uma idéia mundana e carnal sobre eles,
porque estes pombos brancos são o que?

Resposta: Símbolos de paz?

Dr. JUNG: Oh! Mr. FORD foi o causador principal desta idéia de paz – o
famoso navio com as pombas brancas.

Sugestão: Eles são os pássaros de Vênus.

Dr. JUNG: Sim, o pombo é a ave de ASTARTE, a Deusa do amor – é uma ave muito
pouco santa. Lembro-me de uma mulher que vivia no Hotel Sonne, em Küsnacht e ela uma
vez se queixou do comportamento muito indecente dos pombos de lá; ela descobriu porque
eram eles chamados de aves de Vênus. Eles são realmente muito eróticos. Por isso é
engraçado que uma tal ave seja o Espírito Santo; mostra algo muito interessante sobre a
natureza feminina, também um pouco da estória do Espírito santo, originalmente chamado
de Sophia.Sophia é a palavra grega para a sabedoria, e na igreja dos primeiros tempos o
Espírito Santo era entendido como Sophia, o correspondente feminino do Deus masculino,
a esposa de Deus e a mãe do Redentor. Mais tarde este modo de ver foi considerado
heresia, mas ainda há traços dele. E um é a pomba.

Agora, esta figura de sabedoria é uma figura materna; é a mais alta forma da
Anima, poder-se-ia dizer – a mulher espiritual ou a mãe universal; ainda, de
acordo com o ensinamento gnóstico, Sophia foi a última a tomar forma numa
série antes escandalosa de mulheres... Houve quatro estágios nesta série.
Chawwa ou Eva, a mãe terrestre primordial, é a primeira; a segunda é Helena
de Tróia – como sabem, uma mulher com reputação um tanto má, mas
42

simbolicamente ela é o segundo estágio da mãe universal. O terceiro estágio é


Maria, a Mãe de Deus. Isto é muito chocante. A Igreja odiou a idéia e assim
ela foi coibida... Mas esta estória foi preservada nos antigos fragmentos
gnósticos, e pode ser interpretada como o verdadeiro e não adulterado
desenvolvimento da anima. A primeira forma da Anima de um homem é sua
mãe, Eva, a mãe de todos os seres humanos; e a série culmina em Sophia. É
uma forma ocidental da Kundalini Yoga.

... Agora nossa paciente está se movendo em algum ponto entre Helena e
Maria, mas no sentido oposto. Ela não se desenvolveu de Eva, mas está
realmente descendo. A situação é invertida, ela está indo para baixo porque a
nossa civilização só desce mais ou menos até Maria, e para baixo disto tudo é
inconsciente; imaginamos que tudo está no céu e não tem raízes na terra. E
porque as coisas não têm raízes na terra não têm viço, e secam junto com o
viver; mas através da análise, ou abrindo os portões de Hades, a seiva começa
a emergir de novo... É como se todos os canais se enchessem com o líquido
original; quando o contato com a terra é reestabelecido, o sangue volta a
circular, a seiva emerge e preenche os galhos mais distantes da árvore, uma
vez mais. Certamente esta árvore tem que ser vivente, porque está viva com os
pássaros, e eles são símbolos, entes alados, que desde tempos imemoriais têm
significado fatos psíquicos, aquilo que chamamos pensamentos, ou idéias ou
intuições. Qualquer coisa que tenha a ver com a mente possui uma qualidade
airosa. Como os peixes são sempre conteúdos do mar, o inconsciente, assim os
pássaros são os conteúdos da mente ou do espírito ou do ar – fatos mentais.
43

A árvore é a mesma que encontramos numa visão anterior. Lá, nossa paciente
foi transformada em árvore, era idêntica com ela, enquanto aqui, a árvore
aparece como uma visão destacada. Esta é a árvore da yoga, o crescimento
natural do relacionamento entre o consciente e o inconsciente – ou a árvore do
conhecimento, da sabedoria, que naturalmente contem pensamentos. Assim,
quando seu desenvolvimento atinge o estágio da árvore, ele começa a
funcionar através dos pássaros – os resultados da vida da árvore. Esta visão
termina com a constatação de que ela agora está imbuída com pensamentos.
Mas nós não sabemos com que pensamentos.

Muitos homens em marcha

 Visão: Eu vi muitos homens marchando; estava com outras pessoas


na beira da estrada, observando-os passar. Eles gritavam em voz
alta: “Nós somos o caminho”. Então, eu entrei na fileiras dos
homens em marcha. Eles me conduziram a uma alta montanha. Lá
eles se dissolveram e eu fiquei sozinha na neve.

Percebem a continuidade com a visão anterior?

Resposta: Eles são como aqueles pássaros.

Dr. JUNG: sim, muitos pássaros ou muitos pensamentos são aqui muitos
homens; e muitos homens significam, evidentemente, o animus, que é, como
44

sabem, uma multitude... Mas faz uma grande diferença se os pensamentos


aparecem em forma de pássaros ou de homens.

Observação: O sexo oposto está constelado.

Dr. JUNG: Sim, há atração. Quando as coisas estão representadas como tendo
o sexo oposto, então haverá atração; assim, os pensamentos serão atrativos.
Porque enquanto eles forem pássaros, haverá muito pouco “rapport” psíquico.
Eles serão muito “tímidos” e a qualquer momento podem voar para longe.
Mas, quando os pássaros tomam formas humanas, particularmente do sexo
oposto, isto significa que uma união é possível. O inconsciente usa este
simbolismo para expressar a idéia de união ou reconciliação, exatamente
assim como a assim chamada transferência sexual é usada pelo inconsciente
como uma ponte. Onde há uma grande distância entre analista e paciente,
aparece uma transferência sexual para pontear o abismo; esta transferência
desaparece como um fenômeno compulsório assim que se estabelece o
contato.

Aqui, os pássaros, aparecendo em formas de homens, perderam sua original


estranheza e aproximam-se dela. No início, ela apenas os observa, depois
deixa as pessoas na beira da estrada e junta-se às suas fileiras... Os
pensamentos caracterizados como uma multidão de homens, entretanto,
significam provavelmente que não é capaz de controlá-los... Ainda mais,
aquilo parece-se com uma parada, um movimento dos mais coletivos na
mente, quase um sistema de idéias. Eles seriam, provavelmente, parte de um
grande exército, ou poderiam ser homens representando uma poderosa
45

instituição pública coletiva; isto é, um definido poder impessoal que a assimila


muito mais do que o outro caminho.

Tais coisas podem acontecer na mente; as pessoas temem o inconsciente


porque sentem instintivamente que há trajetos de pensamento de uma estranha
natureza coletiva, não pessoal, que podem apanhá-las e levá-las para longe. Já
que ela não pode controlar este Animus, esta corporação de homens, eles
podem deixá-la onde quiserem. Neste caso eles se dissolvem quando ela
atingiu o topo da montanha e a deixam sozinha na neve. O que aconteceu?

Resposta: Ela está fria e absolutamente sozinha.

Dr. JUNG: Bem, estes são sinônimos: estar frio e estar só é o mesmo. Estar no
rebanho ou estar cercado por seres humanos tem sempre alguma coisa daquele
tempo muito remoto quando éramos macacos e nos sentávamos num galho,
bem juntos um do outro. Esta é a razão pela qual as pessoas muitas vezes se
sentem particularmente bem numa multidão, especialmente quando estão
pressionados um contra o outro – isto as lembra daqueles dias. Isto é assim
quando não apenas por causa do instinto gregário, mas pelo calor físico em si.
A maioria das pessoas não admitem esta peculiaridade, comumente, mas é um
instinto animal gostar do calor físico de outros corpos peludos... Assim, ser
deixada sozinha no topo de uma montanha, isolada na neve, significa
simplesmente ausência de qualquer contato humano, significa que ela está
privada do calor animal. Naturalmente, o Animus é capaz de conduzir uma
mulher a uma região inumana, onde não existe nenhum calor humano, porque
o animus não é humano...
46

[Para entender porque esta visão vem a ela agora, precisamos voltar à sua
incapacidade de suportar a cidade branca, e à visão do touro e ao beber do
sangue, a libação, que ocorreram logo antes. EDITOR]

A adoração do touro é um culto terreno e astrologicamente o touro é um signo


de terra;Touro é a casa onde reside Vênus. Assim, ela chegou em baixo, ao
nível da terra, participando do vinho da terra, da libação oferecida ao touro.
Depois, no fim desta visão apareceu a árvore da yoga e disso podemos
concluir que ela estava no centro MULADHARA, nas raízes da árvore. Em
outras palavras, ela estava na esfera dos instintos, em comunhão com a carne;
ela era a vaca divina, dócil às intimações dos Deuses da natureza... Assim, o
fato de que em seguida ela é levada para cima pelo Animus, para o isolamento
na montanha, uma reação compensatória... E agora veremos o que vai
acontecer em seguida.

O leão aparece

 Visão: Um leão apareceu para mim e eu perguntei: “Porque estou


aqui, oh!” O leão respondeu: “Porque tomaste o caminho”.

Isto nos leva de volta ao fato de que os homens em marcha gritavam: “Nós
somos o caminho.” O que significa isto?

Resposta: É exatamente o caminho coletivo.


47

Dr. JUNG: Sim, que não era o seu caminho, era o caminho da multidão...
Aqueles homens em marcha gritavam um sistema de opiniões que afirmava
ser o caminho. Nós conhecemos isto muito bem. Mas, quando as coisas
chegam a uma culminação, um tal sistema de idéias simplesmente desaparece
e nos vemos abandonados numa situação desagradável... Neste caso,
particular, ela deve ser criticada por seguir a sugestão dos homens. Eles a
conduziram para fora da atmosfera humana, e de qualquer modo foi um erro
dela deixar-se conduzir por eles. Agora chega o leão como uma espécie de
compensação para o sistema de idéias. O leão representaria os instintos.
Entretanto, um símbolo como este nunca deveria ser designado por uma
palavra tão extremamente vaga – sabe Deus o que entendemos nós por
instintos. É melhor seguir a intimação do inconsciente e tentar caracterizar o
símbolo. Porque não uma águia ou uma serpente ou qualquer outro animal?
Porque justamente um leão?

Pergunta: Terá algo a ver com duas diferentes formas de ritual que se
sucederam, primeiro um touro pertencente ao culto da Magna Mater e depois
o leão no culto mitráico?

Dr. JUNG: Há uma antiga conexão astrológica entre o touro e a Mãe... Na


astrologia, o touro é, como já disse, o domicílio de Vênus. O culto de Attis
pertence ao grande grupo de cultos da Mãe, Assis era muito o filho da Grande
Mãe; e naquele culto o taurobolium, uma cerimônia de iniciação, era
celebrado no lugar onde hoje se ergue a catedral de São Pedro, em Roma. O
iniciado ou candidato era colocado num buraco no chão, coberto com uma
48

grade e sobre esta grade o touro era sacrificado. Sua garganta era cortada e o
iniciado, em baixo, untava-se com o sangue que jorrava para baixo através da
grade; este sangue representava o sangue do nascimento, e assim, de
renascimento, do batismo. Depois o iniciado era retirado de lá e alimentado
com leite e lhe davam uma nova vestimenta branca, sendo tratado como
QUASE MODO GENITUS, o renascido, porque era duas vezes nascido;
agora ele tinha uma alma, ele tinha acesso aos Deuses. Assim, o touro está
muito ligado ao culto da Magna Mater.

O mitraismo realmente é também um desses cultos... Como ATTIS, MITRAS


é o Deus que morre e torna a viver, porque ele mesmo é o touro; o significado
do famoso sacrifício do touro no culto mitráico era o sacrifício das paixões
“taurinas” do homem, ou a falta de disciplina...

O leão, entretanto, tem um papel curioso no mitraismo, antes um papel


indeciso, meramente simbólico... Nas representações do sacrifício do touro, no
altar de pedra onde o Deus mata o touro, o leão aparece em algum ponto
abaixo da cena do sacrifício; ele nada tem a ver com o ritual em cima
Algumas vezes o leão está oposto a uma serpente, com uma ânfora entre eles,
e aprece como se estivessem competindo para chegar primeiro àquele
receptáculo. Astrologicamente, o leão é a posição mais elevada do sol (no
hemisfério norte), o mês depois do solstício do verão, o fim de julho e o
começo de agosto, ígneo, seco e terrivelmente quente; a serpente, do outro
lado, é fria e úmida, uma criatura noturna, que rasteja no escuro. Assim, temos
de novo o par de opostos. Em uma representação mitraica a ânfora está
colocada sobre o solo e dela ergue-se uma chama, e o leão está acima, no ar,
49

como se estivesse se precipitando justamente no fogo. O receptáculo é um


símbolo feminino, o vaso do renascimento, ou o uterus ecclesiae; assim, o leão
está obviamente se preparando para renascer no fogo.

O receptáculo é também chamado KRATER, derivado do verbo grego


keránnymi, misturar; originalmente era o receptáculo onde se misturavam o
vinho e a água. Usamos a palavra para designar a cratera de um vulcão que
contém a lava líquida ígnea. A idéia original era, provavelmente, o recipiente
utilizado ocasionalmente nos ritos secretos, contendo fogo ou talvez óleo
fervente, no qual ocorria a transformação mágica; era uma espécie de cadinho
alquimista. Possivelmente, o leão mitráico atirando-se ao fogo do KRATER,
era um símbolo alquímico. A idéia de jogar-se na cratera para renascer é muito
antiga. EMPÉDOCLES, um filósofo grego, segundo dizem, acabou sua vida
na cratera do Etna; quando ficou bem velho, jogou-se nas chamas da cratera
para unir-se aos Deuses, para renascer da cratera da morte como um Deus.
Sabemos que o propósito principal nesses antigos cultos era renascer como um
Deus...

Como mencionamos antes, os membros de uma certa classe ou grau no culto


mitráico, eram chamados leões (leontes); provavelmente, era aqueles que
ainda não haviam passado pela prova de fogo, que ainda tinham que ser
levados à cratera. Esta é apenas uma conjectura, mas em todos estes antigos
cultos havia os graus inferiores, dos quais as pessoas progrediam para outros,
e cada vez tinham que passar pela caldeira, através de um ritual de
renascimento; assim, elas renasciam inúmeras vezes...
50

Agora, é óbvio que quando um paciente moderno sonha com um leão ou


desenha um leão, não significa um leão particular, é um leão mitológico;
portanto, estamos justificados quando supomos que o leão desta visão tem o
sentido, em geral prevalecente, de um princípio que é ígneo, forte e nobre e
que, ao contrário de um leão do zoológico que é tudo menos régio, tem todas
as antigas qualidades mitológicas.

Comentário: O leão é exatamente o contrário da neve fria.

Dr. JUNG: Isto é verdade. O leão é passional, ígneo, perigoso e extremamente


másculo. O princípio chinês de YANG expressa a qualidade do leão; este
conceito realmente foi formulado na China, mas eu não conheço qualquer
expressão ocidental que transmita exatamente essa idéia. Naturalmente, o leão
não existe na nossa literatura filosófica, mas no nosso inconsciente ele existe,
e deveríamos ter uma palavra adequada para isto... No entanto, explicar aqui o
leão, como o oposto da serpente, nos termos da filosofia chinesa, é antes, uma
interpretação demais geral...

Mas, há ainda um outro aspecto do leão como um animal simbólico. Ele é o


símbolo do poder. O leão britânico seria um exemplo. Podem vê-lo em cada
exemplar do Punch (revista tradicional na Inglaterra). O poder da Roma
imperial era simbolizado por um leão; aquelas colunas erguidas sobre leões
agachados na entrada das igrejas normandas significam a vitoriosa igreja cristã
erguida sobre o poder do paganismo... E o leão como símbolo de poder na
astrologia vem do fato de que é o signo para a época mais quente do ano,
quando o poder do Deus-sol, o soberano do céu, está no seu auge. Também o
51

leão tem sido encarado como o animal mais forte, com exceção do elefante, e
para os ocidentais era muito mais conhecido do que o elefante, o que é
possivelmente a razão pela qual ele era considerado o animal real...

O leão, expressando a idéia de poder, é realmente a forma mais antiga do


símbolo. Muitas tribos primitivas chamavam seu chefe o leão da tribo – o
Leão de Judah, por exemplo, significa o grande homem de Judah ... e os reis
da Babilônia e da Assíria eram representados como matadores de leão, isto é,
mais fortes que os leões, super-leões; assim, um rei usava uma pele de leão, da
mesma forma como o rei da Abissínia ainda usa uma coroa feita da juba de
um leão, para expressar seu poder supremo. Como vêem, o leão realmente
nasceu dentro de nós com este sentido.

[Aqui Dr. JUNG interrompeu sua interpretação para mostrar algumas imagens
de um livro medieval sobre alquimia que apresentavam uma combinação
simbólica de leão, pássaro e árvore. Para perceber o estreito paralelo dessas
imagens com o material da paciente basta lembrar que, depois que ela aceitou
o vinho e assim entrou em comunhão com a terra, uma árvore cresceu no
pedestal onde antes estava o touro e apareceram os pássaros, seguidos pelo
simbólico do leão.

A primeira imagem mostra uma árvore crescendo da cabeça de uma mulher


nua. Há também uma águia sobre sua cabeça e pássaros voam para cima e
para baixo em redor dela. Ela está de pé sobre um forno alquímico que tem, de
ambos os lados, um dispositivo para destilar uma substância volátil, espírito,
separando-a da matéria bruta. A aparência destes dispositivos sugere uma
52

analogia sexual; assim, aparentemente, o processo alquímico que se processa


em baixo, dentro da terra, é uma espécie de processo sexual. EDITOR.]

Aqui os pássaros elevam-se e descem num movimento peculiar que não consta
ainda nas nossas visões, mas mesmo assim, a imagem tem uma estreita
analogia com a nossa situação. No lado esquerdo da imagem da mulher está o
símbolo do sol, no lado direito a lua referindo-se à união de masculino e
feminino (na realidade, àquele processo alquímico) e o texto correspondente
diz que à esquerda os pássaros do sol estão morrendo a morte branca e à
direita os pássaros da lua estão morrendo a morte preta.

(FIGURAS PÁG. 105)


Esta idéia está também representada por uma árvore que solta suas folhas;
estas caem à direita e à esquerda, e então o processo começa outra vez.

Uma paciente certa vez desenhou algo que é um outro paralelo. Embaixo há
um recipiente onde queima um fogo com chamas azuladas, e dessas chamas,
como um tronco de árvore, cresce uma coluna brilhante que se ramifica em
uma linda cascata de luz; esta desce então até o fogo que se eleva de novo para
encontrá-la. Este é o processo circular, a árvore crescendo do fogo, depois
soltando suas folhas que caem e alimentam o fogo, que assim se eleva de
novo... Esta é uma fórmula simbólica que encontramos também na antiga
filosofia grega, onde está dito que o touro é o pai da serpente e a serpente é o
pai do touro – eles são então, o pai um do outro.
53

Ou pode-se inverter a idéia; o touro gera a serpente e a serpente gera o touro.


É um processo eterno que decorre em um ciclo. E este é, obviamente, o
processo que ocorre no inconsciente quando a consciência não intervem para
interrompê-lo. Os pássaros voariam para cima e para baixo na terra outra vez,
para sempre, se a consciência do homem não interferisse. Os processos
inconscientes revolvem-se neste ciclo misterioso: eles emergem, eles se
desenvolvem, eles florescem; eles decaem, eles morrem e são engolidos pelo
caos; então, do caos eles emergem de novo.

Vê-se o mesmo movimento nos sonhos de psicóticos. Eu observei séries de


sonhos que atingiam uma grande beleza, às vezes; assim, poder-se-ia pensar
que alguma coisa estava para acontecer, mas depois tudo se dissolvia e recaia
no caos – até começar a erguer-se de novo.

Este é o caminho regular pelo qual o inconsciente é trazido à consciência. Em


certos casos de análise pode-se ver com muita clareza como o significado dos
sonhos noturnos cresce mais e mais, e o paciente quase pode assimilá-lo; mas
aí ele não o faz entrar na consciência, e assim a coisa dissolve-se e volta aos
caos e é como se nada houvesse acontecido; mas então tudo começa mais uma
vez... HERÁCLITO expressou isto há muito tempo, de outro forma: ele disse
que a alma se torna água, depois terra, e depois água outra vez; e depois disso,
torna-se o fogo do “empyreon”, e está nos espaços superiores com os Deuses.
Ele disse também que quando um homem bebe muito vinho, a alma se torna
úmida e retorna à terra. Assim ele descreveu o ritmo da alma: ela está sempre
mudando, para baixo e para cima.
54

A águia sobre a cabeça da mulher na imagem é um pássaro muito especial na


alquimia: ela está, geralmente, no topo de tudo, como se fosse o fruto
inexpressável. Aparentemente foi proposto como um ser alado; sugere o
antigo simbolismo babilônico. Nos cilindros babilônicos de chancela
encontram-se representações da árvore da vida, em geral com duas figuras
rendendo culto, uma de cada lado; desta árvore emerge o símbolo do disco
alado, um círculo com uma cruz. Agora, é bastante curioso que isto é um
símbolo de individuação, e individuação é a realização do modelo individual,
a entelequia. Este é o fruto inexpressável da árvore. Assim, a individuação
deveria emergir deste processo. Mas se a consciência não interfere, o fruto
nunca aparece, os pássaros simplesmente continuam elevando-se e descendo
de novo. Como vêem, esta é uma imagem muito psicológica. Como é bem
sabido, passa-se através de estágios muito estranhos no decurso da análise;
todos os tipos de aves alçam vôo; a pessoa tem todos os tipos de fantasias.
Mas todas as vezes, no fim, oh! Céus, todos os pássaros vêm para baixo e isto
é um triste desapontamento. Pode-se pensar: “Não era nada, apenas uma
fantasia”, tudo está parado, e a pessoa volta ao começo uma vez mais. Então, a
árvore cresce de novo, e os pássaros aparecem. Pensa-se: “Ah! Agora”, mas é
a mesma estória, do mesmo modo. A pessoa é desencaminhada pelas fantasias
e não se concentra no fruto inexpressável da árvore.

[Na segunda figura alquímica só os ramos do topo da árvore podem ser vistos
no centro, emergindo de trás de um muro protetor circundante. Acima deles os
pássaros ainda voam para cima e para baixo, para cima e para baixo; mas
agora o leão aparece duas vezes em primeiro plano: à esquerda ele em sua
forma natural, e à direita com as patas cortadas. O texto em baixo reza: “Todo
aquele que bebe o sangue do leão e se comporta correspondentemente, todo
55

aquele que incinera o corpo de seu pai no fogo incandescente e depois joga
água benta nas cinzas, produzirá disto um ungüento que cura todas as doenças,
e assim adiante. – EDITOR.]

O Poder da Vontade e a Inflação

Aparece agora a idéia da intervenção consciente. A idéia alquimista era que o


processo natural continuaria a ocorrer se o homem não interferisse. Mas aqui
nesta figura o homem interfere; ele corta as patas do leão, ele incinera o corpo
de seu pai e asperge a água benta nas cinzas; e isso produz o ungüento, a pedra
filosofal, aquilo que no início da igreja cristã era chamado pharmakon
athanasias, o remédio da imortalidade.

Esse texto é muito interessante. O leão, obviamente, representa a vontade de


poder, que é idêntica à realeza do homem, na qual a vontade do homem é uma
arma que ele impõe à natureza. Esta é a diferença entre o homem e o animal.
O animal é obediente, piedoso, ele obedece as leis da natureza; mas ele só
pode obedecer as leis da natureza, seu poder vai apenas até este ponto; porque
o poder do animal não é dele, é o poder da natureza que se manifesta a si
mesma através dele. Mas o homem tem um verdadeiro poder, porque,
desobedecendo a natureza, ele conseguiu arrancar ou abstrair dela uma certa
quota de energia e a transformou no seu próprio poder de vontade. O perigo
está no fato de que este poder era originalmente um poder do animal que pode
ainda afirmar-se e arrastá-lo consigo. O homem roubou algo dos Deuses, e foi
por isso punido por eles, como no mito de Prometeu.
56

A posse do poder da vontade causa uma espécie de inflação, uma hybris, que
dá um valor excessivo ao lado consciente... A vontade do homem, então, o
carrega, como pode ser visto nas nossas presentes condições culturais – onde
as máquinas que inventamos se tornaram nossos senhores... Sua vontade
torna-se o seu Deus, e é um Deus terrível que o arrasta consigo como um leão
fugindo com sua presa. Por isso devem ser cortadas as suas patas.

A idéia de incinerar o corpo do pai tem uma específica conotação mística, mas
psicologicamente significa a destruição do que era o corpo do pai e da
condição que prevalecia antes da condição presente; o touro é o nosso pai e
tem que ser sacrificado para que possamos nos libertar, isto é, temos que
sacrificar o passado para iluminar o futuro... Se podemos fazer esta mudança,
se podemos destruir o corpo do pai, se podemos cortar as patas do leão,
podemos produzir o remédio da vida eterna; isto é, podemos ajudar a vida a
continuar...

Pergunta: Em relação com o leão o senhor falou do princípio Yang e agora


também do humano poder da vontade. Neste caso, isto não significa que o
leão representa o poder do Animus? A procissão de homens levou a paciente
ao topo da montanha e lá a deixou sozinha no frio, para enfrentar o leão, em
outras palavras, a concentração das próprias energias deles.

Dr. JUNG: A lógica desta questão é correta. É verdade que depois do


sacrifício do touro a paciente foi levada por aqueles homens em marcha ao
topo da montanha e lá foi deixada, sozinha na neve, e dissemos que esta era
uma forma de animus. Assim, muitos pensamentos coletivos naturalmente a
57

levaram, como uma compensação, para fora da comunhão com a terra, do


calor do sangue, para a neve fria, justamente ao extremo oposto.

Percebam: sempre que uma mulher faz alguma coisa que parece ser errado
(indo longe demais, de uma ou de outra maneira) de modo a tornar-se
extremamente perplexa, então é seguro que o animus virá e expressará alguma
opinião tradicional – e ela concordará, para um lado ou para o outro. Isto foi o
que aconteceu neste caso, e então ela está agora encarando o leão, um poder
instintivo que é, aparentemente, a essência do Animus, e que também
representa o poder da vontade – na medida em que se é vítima do próprio
poder da vontade. Poder-se-ia dizer, o pensamento-Animus de que se está
numa condição humilhante quanto embaixo, na terra, se tem um certo poder e,
seguindo-o, se assegura um poder sobre os poderes da terra. É como se
estivéssemos livres para dizer: “Eu não quero esta comunhão com a terra, ela é
demais bárbara e primitiva. Portanto, eu me elevo para fora dela.” Esta é a
vontade de poder.

Mas, a questão verdadeira é: “Devo eu ficar junto à terra, ou posso assumir o


poder de erguer-me acima das leis do sangue até o topo de uma montanha?”
De um lado está a vontade de poder que a levou para cima, mas de outro,
ninguém pode dizer que aquilo é errado. Temos certa liberdade de escolha e
por isso podemos dizer, “Eu não quero tocar a terra, prefiro permanecer no
céu.” Apenas, é natural, não seria muito agradável ficar lá muito tempo!
Quando ela chegou à cidade celeste ela não a agüentou e voltou à terra; mas
agora ela voltou, por assim dizer, ao topo da montanha. Como vêem, ela tem
todas essas escolhas, mas em qualquer caso ela é devida a uma involuntária
58

oscilação para lá e para cá; primeiro, ela é conduzida pelo inconsciente para
baixo, para a terra, e depois, subitamente, ela é elevada outra vez por aquela
fora instintiva que está por trás do Animus. Porque o Animus está baseado
numa força instintiva; todas estas forças foram liberadas pelo homem vem
instintivamente. Tanto faz se alguém vive a vida do corpo ou se suprime o
princípio do corpo e se torna um espírito.; o trajeto da vida desenvolveu-se ao
longo das linhas estabelecidas por forças instintivas. Primeiramente, os
homens eram as leis da natureza humana, eles eram essas forças; só mais tarde
eles deram nomes a elas, e só muito mais tarde pensaram nessas leis como
princípios morais ou filosóficos.

Por exemplo, a repressão do sexo, da qual tanto ouvimos falar nos nossos
tempos, de forma alguma é uma invenção moderna de certas pessoas bem ou
mal intencionadas. É um fenômeno da natureza, a natureza mesmo força as
pessoas para ela; a interferência de outros instintos produz tal repressão... É
uma reação muito natural que esta mulher fosse forçada para fora da terra
quase antes de ter entrado nela; é uma reação dos poderes históricos dentro
dela que a puxaram automaticamente para fora do buraco em que havia caído.

Aí podemos ver o eterno movimento do inconsciente para cima e para baixo...


alguma coisa pressiona-a terra adentro e depois alguma coisa vem e a tira de
lá. O leão é uma expressão deste princípio. De acordo com a minha idéia é
melhor entender o leão como uma espécie de princípio filosófico que formula
o erguer da onda, a parte positiva desta; a isto eu aludi quando o coliguei com
YANG; então, o descer da onda seria o princípio YIN.
59

Porque tu tomaste o caminho

 Visão (continuação): Então um pássaro chegou a mim e eu disse a


ele: “Porque estou aqui, nas neves eternas? Eu desejo calor.” O
pássaro respondeu: “Segue-me.” Assim fiz e o pássaro me
conduziu à esfinge do deserto.

O leão é o começo de um novo desenvolvimento na visão... nossa paciente


está justamente chegando ao próximo estágio de transformação que é
caracterizado pelo leão. Isto é, ela tem vontade de sair daquela anterior
condição humilhada e então eleva-se, e quando está totalmente só, encontra o
leão, percebendo então, seu próprio poder régio, que a afastou da participação
com a terra e a elevou àquela altura. Ela pergunta a ele: “Porque estou aqui? “
– isto é, nesse particular isolamento. O leão replica: “Porque tomaste o
caminho.” Esta resposta indica, poder-se-ia dizer, uma conexão entre seus
instintos e sua busca. Ela não entende o que a levou para cima ou o que a
trouxe de volta outra vez para baixo, mas ela sente intuitivamente que isto
deve ter algo a ver com os instintos. E o leão lhe dá a resposta correta:
“Porque tomaste o caminho.”... Podem ver que o leão obviamente se refere a
alguma coisa como uma decisão nela, a decisão de tomar o caminho... Como
entendem isto?

Resposta: Era a decisão de beber o sangue?

Dr. JUNG: Sim, mas esta decisão é apenas uma parte do procedimento inteiro;
muito antes ela começou a tomar o caminho. O início real foi bem no começo,
60

quando ela se decidiu a observar suas visões; esta foi a sua aceitação. Ela teve
sonhos no começo nos quais o inconsciente chegava mais e mais perto dela e
começou, finalmente, a desenvolver uma certa atividade autônoma. Quando
esta chegou a ser percebível e ela começou a vê-la como um fator objetivo,
decidiu-se a continuar a observá-la. Ofereceu-se uma espécie de hipótese de
como viver. Porque, como podem se lembrar, ela não sabia o que fazer com
sua vida nem como continuá-la, ela tinha se arvorado contra um problema
impossível. Então, ela disse a si mesma: “Eu devia seguir aquele caminho.”

As visões são o caminho e ela, naturalmente, entrou mais e mais no verdadeiro


ritmo dele – naquele eterno para cima e para baixo, que é uma qualidade
específica do inconsciente. Por isto, o leão respondeu que ela esta lá em cima,
na neve, porque tomara o caminho.

E então ela pergunta ao pássaro: “Porque estou aqui, nas neves eternas? Eu
desejo calor.” Ela acabou de chegar do sangue e já está tão fria, ela quer agora
voltar, ela já está idêntica com o ritmo. O pássaro diz: “Segue-me”, e a conduz
diretamente para baixo, da neve eterna para o deserto tórrido e lá ela chega à
esfinge (Parte 6). Uma parte da descida está feita mas verão que ela irá
adiante.

Assim, sua vida começa agora, lentamente, a funcionar naquele estranho


ritmo, ao passo que antes era plana, ou uma linha reta. Quando ela viu alguma
coisa à distância que parecia ser boa, ela se dirigiu para aquilo. Este é o modo
moderno de viver; decidimos nas nossas mentes, que uma coisa é boa e vamos
para ela, em vez de viver no caminho em que a natureza pretende que vivamos
61

– naquele caminho oscilante. Dizemos, está é a meta, e traçamos uma linha


reta até ela, mas o que a natureza quer que façamos é nos movermos com esse
movimento de serpente. Por isso o simbolismo da serpente no inconsciente
daquelas pessoas que vivem numa linha reta. Pessoas que vivem na cidade
nunca vêem uma serpente, mas todas sonham com serpentes e,
particularmente, aqueles que vivem uma linha reta têm sonhos e medos em
relação com serpentes, porque o inconsciente quer que eles se movam do
modo natural da serpente. Assim, a serpente é o símbolo da grande sabedoria
da natureza, porque o caminho muito reto não é o melhor caminho; o caminho
curvo, com voltas, é o caminho mais curto.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE VI

Seminários realizados entre 16 de dezembro de 1931 a 10 de


fevereiro de 1932

SPRING 1965
A Esfinge e a Árvore

O que a esfinge?... Devemos sempre perguntar a nós mesmos em que consiste


tal monstro. Se consiste apenas de partes animais, sabemos que é o
conglomerado de instintos conflitantes mantidos juntos à força. Se é ao
mesmo tempo humano e animal é uma combinação das partes humanas e
animais do homem. A esfinge é uma combinação de animal e humano e visto
que o monstro é mitológico, não é muito real, não pode viver como um ser
autônomo. Um animal com uma cabeça humana é uma impossibilidade, por
isso significa uma tentativa de juntar a humanidade e o reino animal, uma
espécie de tentativa provisória de reconciliação entre animal e homem.

Até aqui, não ocorreu esta união nas visões; houve vários animais e pássaros,
mas esta mulher, ela mesma, foi sempre um ser humano destacado. Os
senhores viram que o ritmo do inconsciente a influencia, mas ainda assim, ela
tem uma divergência com ele; ela não pode aceitá-lo e ainda se pergunta
porque ele não se move numa linha reta como um ser humano. Evidentemente,
ela não está com os animais e assim, o inconsciente faz , pelo menos, uma
tentativa de união, e isto é simbolizado pela esfinge. Poder-se-ia, também,
dizer que neste caso o animal está prestes a transformar-se em um ser humano,
uma vez que já tem uma cabeça, ou vice-versa, que o ser humano está para
mudar em um animal. Mas, precisamos entender mais sobre o simbolismo da
esfinge...

Pergunta: ela não é uma guardiã do morto? Ela é sempre conectada com as
pirâmides que são túmulos.
Dr. JUNG: Ela está próxima das pirâmides mas não sabemos se serviu em
qualquer cerimônia de sepultamento, embora possa ter servido. A esfinge, na
realidade, é uma espécie de dragão – o animal que devora o animal – podendo
assim, ser um símbolo do grande enigma, da morte. Se fossemos capazes de
resolver o mistério da vida, viveríamos eternamente, mas já que não podemos
resolver o enigma da esfinge, ela nos devorará. E há algo mais... A esfinge é
um objeto religioso, existe lá um templo e um altar entre suas patas anteriores;
isto mostra que ela não é apenas um dragão ctônico ou um monstro devorador,
mas também um fato espiritual. Não sabemos que espírito estranho pode estar
contido na esfinge, mas talvez encontraremos mais sobre isso na elucidação
posterior destas visões. Seria melhor deixarmos esta questão, por enquanto, já
que é de uma natureza que só pode ser entendida quando a união entre o
homem e os instintos perdidos tiver sido estabelecida. Provavelmente tem a
ver com a sabedoria da serpente.

 Visão: Agora nossa paciente colocou-se muito intrepidamente


diante da esfinge e disse: “Revela-me teu segredo”.

O que diriam os senhores sobre tal atitude?

Resposta: Que é bem impertinente.

Dr. JUNG: Sim. Podemos supor que ela está num estado de inflação.
Sugestão: É parte das características do leão.

(FIGURA DA PÁG. 109 – A ÁRVORE MULHER)

Dr. JUNG: Mas há uma outra razão também... Quando uma pessoa está
inflada como um balão, é uma compensação. Significa que ela confrontou-se
com algo desagradável que nem quereria tocar, que preferiria olhar “de cima”.
Mas o que é triste é que nenhum balão pode permanecer no céu para sempre.
Ele tem que descer... Nossa paciente tenta sair de alguma coisa. Esta é a razão
porque assume esta atitude “de Deusa”. Então ela diz:

 Visão (continuação): Os olhos da esfinge se abriram. Vi que eram


verdes e dentro deles percebi uma árvore. Os ramos da árvore
alcançavam em cima, a neve branca. As raízes da árvore, embaixo,
atingiam uma corrente de sangue sob a terra.

De novo está aqui a árvore. Nós a vimos pela última vez sobre o pedestal onde
antes estivera o touro. E agora ela a vê nos olhos da esfinge. O que fazem os
senhores com isso?

Resposta: É uma combinação do fluxo de sangue e da árvore, de uma visão


ainda mais interior.

Dr. JUNG: É verdade. A árvore é uma combinação de, ou pelo menos uma
ponte entre, as coisas em cima e as coisas embaixo. A temática geral, aqui,
parece ser o conectar aqueles opostos, sangue e espírito, calor e frio. A
tentativa foi feita para encontrar aquela união na esfinge, no nível do ser
humano e do animal, mas agora, nos seus olhos ela vê a árvore, que parece ser
uma conexão melhor e bastante real.

Aqui devemos falar de novo sobre os aspectos gerais da árvore... As plantas


estão inteiramente enraizadas na terra, vítimas sem recursos ou absolutamente
conformes com as leis básicas da natureza. Os animais têm a faculdade de se
mover e procurar seu próprio lugar; eles são, literalmente, menos ligados às
leis da terra. E a vida do homem é desligada num grau muito lato; produzimos
para nós um mundo artificial que está muito distante das leis da natureza e tem
um ritmo inteiramente diferente. Por isso, a planta demonstra um princípio de
vida que é muito mais próximo das leis da terra do que mesmo o animal.
Agora, isto é que a nossa paciente vê nos olhos da esfinge, e a esfinge é agora
não mais um templo ou monumento no deserto, feito de pedra; ela é um ser
vivo. O que se vê nos olhos do ser vivo?

Resposta: A alma.

Dr. JUNG: Sim. Deste modo a árvore é realmente a alma da esfinge, e é o que
resolve o enigma da esfinge. É a união dos opostos que, de certo modo, foi
interrompida na vida humana e animal... A melhor tentativa do homem é a
esfinge, e esta é um monstro, mas a planta é humilde... Não está sempre
correndo atrás de uma meta, devorando tudo que pareça ser bom; ela cresce
muito silenciosamente, em absoluta submissão às leis da terra. Mesmo assim,
uma árvore pode crescer até uma enorme altura. Por isso a árvore aparece
como um símbolo, sempre que se torna necessário um desenvolvimento
espiritual para reconciliar opostos ou decidir um conflito.

Sugestão: O senhor se lembra da pergunta que a esfinge fez a Édipo sobre o


modo como o ser humano se move na juventude, na vida adulta e na velhice?

Dr. JUNG: Sim. Ela se refere à vida humana em geral: primeiro, ao curso da
vida – juventude, maturidade e velhice – e depois a movimentos particulares, à
habilidade de mover-se. Para os homens primitivos o movimento é sempre o
símbolo da vida... a vida é o destacamento do solo, exatamente o oposto da
vida da planta. Mas, o enigma da esfinge e o ponto crucial do nosso problema
é que o princípio meramente animal na nossa vida tem que ser compensado
por um modo diferente de viver, e a planta simboliza isso, porque é o único
exemplo que temos... Se acompanhamos o simbolismo, entendemos o
problema de nossa paciente e lembramos as ocasiões anteriores em que a
árvore apareceu, vamos que ela é invariavelmente o símbolo do caminho que
ela deveria tomar para reconciliar os pares-opostos, e decidir o problema
impossível com o qual ela ainda se confronta na vida...

Comentário: O senhor disse que a paciente interrogou a esfinge de um modo


impertinente, mas parece que surtiu efeito, porque a esfinge abre os olhos e
mostra seu segredo.

Dr. JUNG: Isto é verdade, funcionou, e não é fácil explicar por que.
Deveríamos encarar de outro modo. O que pensa o senhor sobre isso?
Resposta: Porque é o caminho certo.

Dr. JUNG: Para lidar com que? O que é a esfinge psicologicamente?

Resposta: O inconsciente.

Dr. JUNG: Exatamente... Numa fantasia como esta, é necessário assumir o


papel para o qual se pareça designado. Não é possível manter relações sociais
com a esfinge, assim isto nada tem a ver com o mundo exterior. Tudo que
temos que explicar é porque ela toma um ar tão importante. Mas, está certo,
porque é o seu papel. Ela tem que representá-lo até que alguém estoure o seu
balão e, então, ela desmontará. Agora a visão continua:

 Visão (continuação): a esfinge falou, dizendo: “Mulher, o caminho


é duplo.” Então, os olhos se fecharam. Eu supliquei à esfinge, outra
vez, que falasse comigo, mas ela permaneceu calada. Eu me
encostei a ela, atônita.

Esta é uma resposta bastante obscura. A esfinge, evidentemente, refere-se às


palavras do leão de que ela tomou o caminho...

Comentário: Os opostos estão aí para serem vividos.

Dr. JUNG: Exatamente... Temos que viver nos dois extremos; como a
serpente: para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda. Não é
possível tomar o caminho da vida sem tomar ambos os lados dela, porque um
lado apenas levaria a uma parada; se queremos viver temos que suportar os
opostos, porque o caminho é duplo.

Obviamente, esta mulher não entende o sentido profundo daquela resposta.


Devem lembrar-se que, quando ela teve essas visões, de modo algum ela
percebia o que lhes estou dizendo agora. Havia tal jorro delas, no mínimo a
cada dois dias, que tomaria um enorme tempo analisá-las com ela, e ela tinha
sonhos e problemas conscientes, além disso. Assim, era impossível lidar mais
extensamente com estas fantasias, e embora ela sentisse que de certo modo
eram importantes, ela não entendia o que significavam. Por isso, quando ela
diz: “Eu me encostei à esfinge, atônita.”, é meramente uma questão de fato.
Ela esta perplexa.

[Agora uma serpente a conduz a uma caverna profunda e escura, onde ela
vê a múmia de um antigo rei, incrustada em ouro. Há aqui, um paralelo com
seu primeiro encontro com a árvore da YOGA, depois de sua imersão na
corrente de sangue. Naquela fase do sangue, ela emergiu para o sol, na forma
de uma árvore, e mais tarde, desceu para a iniciação à Grande Mãe na terra
(Parte Três). Aqui, temos de novo a árvore erguendo-se do sangue, seguido da
sua descida – através da esfinge, um símbolo da mãe que, no começo, dá a luz
e que também como o sarcófago (sarx = carne e phagein = comer), no fim
devora a vida. Mas agora ela encontra a múmia de um rei. EDITOR]
A Múmia de um Antigo Rei

Nossa paciente já foi iniciada pela Grande Mãe do reino feminino, tanto
espiritual como fisicamente, mas não havia Grande Pai, e o que ocorreu,
então, era uma partenogênese, um nascimento de uma virgem. A ausência do
Grande Pai era, naturalmente, uma grave omissão e, na realidade, foi isto que
a perturbou desde então. Por isso, tem ela que descer de novo, para encontrar
o que perdeu ou não percebera. Desta vez, o antigo rei que ela descobre,
simboliza não o pai humano mas, o pai divino, o pai da humanidade, uma
espécie de Criador... Mas este pai está morto, ele é uma múmia.

Aqui está outra vez uma conotação egípcia, porque ela conhece alguma coisa
sobre mitologia egípcia... O Deus que é adorado predominantemente sob a
forma de munia é OSIRIS. Como rei do submundo ele atingiu seu maior poder
somente através de sua morte. Lembram-se, ele foi desmembrado por SET e
novamente juntado pela MÃE ISIS, mas ele era um espírito e, em particular,
seu falo estava faltando. Mesmo assim, ele foi capa\z de gerar como um
espírito – espiritualmente...

Este estranho mito mostra uma tendência na mente inconsciente para destronar
o óbvio Deus do mundo – o visível princípio da existência, é isto – e substituí-
lo por um princípio espiritual, algumas vezes um princípio do submundo, que
só pode prosperar com segurança na escuridão e no segredo, escondido do
olho do sol e tendo realmente mais a ver com a lua. Isto é porque o espírito do
homem não é masculino, ele pertence à mãe, ao inconsciente lado feminino. O
homem quereria que isto não fosse verdade, e está sempre tentando fazer do
espírito algo intelectual e masculino. Mas o espírito na sua forma original é
sempre feminino, ele vem da Grande Mãe...

A idéia é que OSIRIS só se tornou um espírito pela morte, que é preciso


morrer para tornar-se livre ou desenvolver o espírito. Este é o princípio
essencial da religião cristã; só através da morte pode-se obter a imortalidade,
ou através de uma morte figurativa, ou de uma morte real... O antigo rei morto
que ela encontra agora é uma múmia e não foi transformado ainda num
princípio espiritual, mas é como OSIRIS. Esta parte da visão tem uma
conexão com a ressurreição do morto... e que a múmia está coberta com outro
indica seu caráter real muito precioso. Olhando para o sarcófago, ela continua:

 Visão: Ele abriu-se, lentamente, e ouvi uma voz que dizia:


“Desenrola a faixa de linho que me envolve.” Assim, fiz e lá
apareceu uma estranha criatura, meio animal, meio homem.
(Vejam, é um homem, não uma mulher como a esfinge, e ela o
descreve mais tarde como parecendo um fauno.) “Quem és tu?” ,
eu perguntei. Ele respondeu: “Eu sou aquele que habita embaixo da
própria esfinge. Embora me envolvas com linho não podes matar-
me porque estou dentro de ti e lá eu cresço.”

Obviamente, este é o princípio que ela tentou manter sob controle. Ela mesma
executou o serviço com o corpo, envolvendo-o em longas faixas de linho de
múmia. Ela está no papel da MÃE ISIS que trouxe a morte ao Deus, mas
agora lhe dá um enterro decente e o prepara para uma nova vida. Este
envolver em faixas tem alguma coisa a ver com o enfaixar ou vestir uma
criancinha. Também o caixão da múmia é uma espécie de forma maternal.
Esta é a razão pela qual encontramos às vezes representações da Grande Mãe
dentro do sarcófago; no fundo ou na parte inferior do sarcófago de madeira
está pintada uma mulher com braços estendidos, segurando o sol. Assim, o
homem morto realmente jaz na mãe. Os etruscos tinham um rito similar: as
cinzas do morto eram colocadas numa ânfora e postas dentro de uma estátua
de barro da mãe. E os cristãos nos tempos medievais punham seus mortos em
solo sagrado dentro da igreja, como mãe, para lhes dar a possibilidade de
ressurgir na vida eterna.

Assim aqui, o ser estranho, meio-humano, meio-animal, aquele homem-


OSIRIS, está sepultado na mãe e é preparado para a ressurreição final. E este é
o momento da ressurreição. Naturalmente, ninguém esperaria que a múmia
fosse meio-animal e meio-humana... Que OSIRIS tivesse tal aparência é uma
idéia inteiramente nova. Esta é uma representação do espírito tal como aparece
a uma mulher na sua genuína forma vivente, ela o vê como meio animal e
meio homem... Agora, que espécie de mente tal animus indicaria?

Resposta: A mente natural.

Dr. JUNG: Sim. A assim chamada mente natural, que diz as coisas de modo
absolutamente direto e inclemente.

 Visão: (continuação): Eu vi que numa das mãos ele segurava um


bastão e na outra uma taça. Olhei dentro da taça e vi refletido meu
próprio rosto. Era preto e em redor da minha cabeça havia um halo
branco. Eu disse: “Isto a esfinge me disse. O caminho é duplo.”

(FIGURA PÁG. 112 – A CRUZ EGÍPCIA)

Vêem que a figura agora tem atributos... Ela desenhou o bastão na forma de
uma crux ansata (cruz de alça), mas parece-se com o bastão de pastor. Ele
significa orientação; com freqüência encontramos o bastão no Velho
Testamento – nos salmos e também nos livros proféticos – significando um
guia... Deus providencia um bastão seguro no qual se pode apoiar. Assim, isto
dá à mente natural a qualidade de guia, o poimen ou pastor. Depois ela olha
dentro da taça seja um espelho, mas desde que aqui ela funciona como ambos,
podemos ter certeza de que duas funções vêm juntas neste símbolo. O que
indicaria o espelho?

Resposta: Auto-exame.

Dr. JUNG: A compreensão ou conhecimento de si mesmo. Geralmente, um


espelho simboliza a mente ou intelecto. SCHOPENHAUER usa esta metáfora.
Ele diz que o intelecto ergue um espelho para a cega vontade primordial de
modo que ela possa reconhecer-se a si mesma e negar-se a si mesma quando
percebe aquilo que é, isto é, um cego e tateante impulso que só conduz ao
sofrimento. Compreendendo a cegueira do seu próprio propósito, ele negará a
si mesmo. Assim, o mundo chega a um fim para o indivíduo que reconhece a
ilusão do mundo. Certamente, esta é também uma idéia oriental... Assim, o
espelho é, obviamente, uma função de auto-conhecimento. Mas o que é a
taça?

Resposta: Os dois símbolos juntos, talvez sugeririam Yin e Yang.

Dr. JUNG: Sim. A taça seria a forma feminina e o bastão a forma masculina, o
que significa a união dos opostos; masculino e feminino estão juntos neste
POIMEN. Também significa nem masculino, nem feminino. Isto está
expressado naquilo que se chama o Evangelho de acordo com os egípcios
(apócrifo) citado por CLEMENTE de Roma na conversação entre Jesus e
Salomé. Salomé pergunta a Jesus quando as profecias serão consumadas e
Jesus diz: “Quando houveres pisado sobre a vestidura da vergonha, e quando
os dois se tornam um e quando o macho com a fêmea nem é macho, nem é
fêmea...”

A coisa irreconhecível e incompreensível só pode ser expressada por um


paradoxo; quando não podemos entender uma coisa na sua essência, quando
não podemos captá-la pelos meios da razão, nós a descrevemos desta forma...

A união do masculino e do feminino, nesta figura, significa simplesmente


além do sexo; não é nem masculino, nem feminino, é alguma coisa
compreensível. Isto é, a mente natural já não está sujeita a um ponto de vista
sexual, não é nem o ponto de vista de um homem, nem o de uma mulher, é o
ponto de vista exatamente além, e isto aponta a sua divindade. O que está além
do humano é animal e divino, e nem animal nem divino. Por isso temos
símbolos animais para o divino, por exemplo, o Espírito Santo como uma
pomba; todos os deuses antigos tinham sua contra-parte animal. Assim, a
mente natural não é uma função do homem; é uma parte da natureza, a mente
de árvores, rochas, água, nuvens ou ventos, e tão implacável, tão
absolutamente além do homem, que dificilmente o leva em consideração.
Quase se sente que as formas de expressão da mente natural carregam uma
inclemência quase animal, junto com uma estranha espécie de superioridade
que vai muito além do homem. Ela contém uma verdade fundamental que a
torna superior, e por causa desta superioridade ela é também divina.

Agora temos que admitir que esta paciente tem uma particular capacidade para
perceber a assim chamada mente natural. Nesta figura de OSIRIS ou PAN,
está expressado isto. O que significa ele mostrar a ela, no espelho, que seu
rosto é preto, que ela parece um negro?

Pergunta: É uma alusão ao Messias negro? (ilustração 13)

Dr. JUNG: Sim, ao negro que duas vezes disse a ela: “Agora tu estás unida
comigo.” Esta era a declaração de uma união muito íntima, o que significa que
a negridão entrou nela, que ela se tornou preta. E se tomamos a cor como
simbólica, o que indica ela?

Resposta: Não é a cor de Yin?

Dr. JUNG: Sim, é a cor da terra... Ela é agora extremamente feminina e muito
no lado Yin; seu rosto é preto porque ela é nada mais que terra... Mesmo
assim, ela tem um halo branco.
Pergunta: Isto não significa que a luz sai da escuridão?

Dr. JUNG: Sob certas condições... É verdade que o dia nasce da noite, mas
não é tão certo que a ausência de luz produz luz Isto é, outra vez, um
paradoxo. Temos que supor que o preto e o branco existem simultaneamente.
Nesse caso, o halo indicaria que ela é uma santa, mas uma santa preta; que ela
está santamente na sua negridão...

Quando alguém se encontra num pólo, o outro pólo está naturalmente


constelado. Neste sentido, pode ser dito que a noite sempre produz o dia. É da
posição extrema dela que vem a luz branca, o halo, que dá uma aparência de
santidade à sua atitude Yin.

Comentário: O rosto preto e o halo branco dão a idéia de um par de opostos


dentro dela.

Dr. JUNG: Sim, mas os opostos não teriam aparecido se ela não se tornasse
absolutamente preta; é porque ela foi para um extremo que o outro se
constelou... De outro modo o branco não teria aparecido, e ela teria se mantido
cinza. Se não somos capazes de ir para um extremo, nunca podemos constelar
ou produzir o outro extremo. Por isso, está dito nas Escrituras, “Assim, porque
tu és morno, e nem quente nem frio, eu te cuspirei para fora da minha boca...”
(Rev. 3:16)
[O espírito estranho agora desaparece depois de lançar a taça ao solo,
quebrando-a, e um bode, não uma serpente, a conduz de volta à superfície. Dr.
JUNG explica que agora, que ela adquiriu a “mente natural”, ambos os
animais lhe dão melhor orientação do que as figuras de Animus que ela
costumava seguir. Era natural ser conduzida, quando descia, por uma serpente,
e agora seguir um bode, ao subir, já que os bodes costumam sempre subir
muito alto. (Capricórnio) – EDITOR]

Lembram-se: quando a estranha figura de PAN apareceu pela primeira vez, ela
lhe perguntou quem ele era, e ele respondeu: “Eu sou aquele que habita
embaixo da própria esfinge.” Agora, quando ele desaparece, podemos ver que
é como se ele se tivesse tornado uma parte dela, como se o renascimento
tivesse ocorrido dentro dela. O que significa que a mente natural, ou o Deus-
homem, que antes estava fora como sempre esteve, agora está dentro? O fato
de que ele teve eu nascer fora antes de poder tornar-se uma coisa dentro
explica a necessidade do ritual de renascimento? Qual é o significado
psicológico disto?

Resposta: Esta parte dela estava projetada, antes, e agora está assimilada.

Anima e Animus como Funções Psicológicas

Dr. JUNG: Sim. Agora não está mais projetada. É o Animus, que sempre
esteve fora dela. Psicologicamente, a projeção tem sido a condição costumeira
das coisas, desde o começo do mundo. Mas agora chega o grande momento do
renascimento, quando ela assimila o animus e começa a entender que ele é
uma função psicológica. |Pela primeira vez na história o Animus está
aparecendo agora como uma função humana. Antes disso, Animus e Anima
nunca tinham sido parte da psicologia humana, eram sempre projetados. Esta é
a razão pela qual eu uma vez disse que me parecia como se a mente humana
tivesse crescido de objetos externos no mundo inteiro. É como se nossa
consciência tivesse realmente começado com as estrelas, não no cérebro, e
como se nós houvéssemos apenas começado esses fatos psicológicos no nosso
tempo. Na Idade Média, quando um homem descobria uma Anima, ele a
aprisionava e o juiz mandava queimá-la como uma bruxa. Ou talvez uma
mulher descobria um Animus e este homem era condenado a tornar-se um
santo, ou um salvador ou um grande mago.

Os magos são feitos por projeção. Muitos tornaram-se líderes bem contra a
sua própria intenção, eles são forçados a isso porque o papel de líder é
projetado sobre eles. Os coitados tornam-se vítimas das expectativas de outras
pessoas. Só agora, através do processo analítico, Anima e Animus – que antes
sempre estiveram fora – começam a aparecer transformados em funções
psicológicas...

Mas é muito difícil ver a mente natural... como uma parte integrante da nossa
própria psique. Vejam, quanto mais nós assimilamos tais funções, tanto mais
duvidamos da existência de uma mente ou psique humana. Tivemos que
assimilar tantas coisas que tenho receio de que isto esticou demais a “malha”
da nossa capacidade mental... Estivemos comendo os Deuses e existe o perigo
de ficarmos demais empanturrados e explodirmos... Isto explica a nossa atual
inflação; nosso tamanho aumentou enormemente porque estamos hospedando
os Deuses de cima e de baixo. A consciência humana tornou-se quase divina,
e as pessoas acreditam que estamos de fato no topo do mundo. Em vez de
duvidar mais e mais da nossa própria identidade, realmente pensamos que
somos Vênus e Marte e todo o céu astrológico.

Deveríamos desidentificar. Não deveríamos nos identificar com aqueles


imensos poderes que em tempos idos eram os grandes Deuses adorados nos
templos. No passado, um homem que estivesse possuído por uma
incontrolável emoção era sempre encarado como um possesso e ninguém se
enganava o suficiente para pensar de outra forma; ele era apenas uma triste
pobre vítima. Mas agora, se um homem está com raiva, nós o
responsabilizamos.

Os primitivos teriam medo de fazer isto, eles esperariam até que o espírito o
tivesse deixado. E num plano superior, o analista deve fazer a mesma coisa;
quando um paciente fica fora de controle, deve-se dizer: “Agora vamos apenas
esperar. Você está possuído por um espírito mau, um pensamento que o está
cegando. Esperaremos até que a tempestade tenha passado.” Eu não o faço
identificar-se com sua raiva, porque ele tem que aprender que ele não é
necessariamente idêntico às suas emoções. Nenhum de nós responsabilizaria
alguém por uma tempestade, e é igualmente impossível responsabilizar
alguém por sua psique. Só quando aprendemos que a alma ou psique é
realmente um mundo com suas próprias leis, como o muno no qual vivemos e
nos movemos, desceremos às nossas proporções naturais. Enquanto nos
identificamos com nossa psique, somos apenas megalomaníacos e as coisas
andarão muito mal para nós... Mas continuemos com a próxima visão.

Aparece a Gárgula

 Visão: Vi uma catedral gótica com altas formas lanceoladas. Uma


grande procissão religiosa estava entrando na igreja e cantava um
Te Deum. Um animalzinho grotesco, semelhante a uma gárgula
agarrava-se à vestimenta dourada do sacerdote. Este tentava afastá-
la, mas não conseguia. Eu entrei na catedral com a procissão. O
sacerdote subiu os degraus para o altar e elevou ao alto o cálice
sagrado. Quando ele fez isso, pequenos animais e sapos saltaram
dele.

Aqui está uma situação nova. Nós nos movíamos numa atmosfera antiga e
pagã, e agora, de repente, vem o motivo cristão. Isto é muito natural. Quando
alguém esteve profundamente imerso no paganismo, pela lei do contraste o
posto se constela...

Comentário: Talvez a catedral cristã apareça aqui apenas para mostrar que não
é adequada para ela, porque ao mesmo tempo entra a gárgula.

Dr. JUNG: A gárgula mostra que alguém ainda está representando o papel do
diabo, mas a cena cristã está constelada pela sua face negra... sua aceitação
incondicional de um ponto de vista antigo, ctônico. (O paganismo não é,
necessariamente, ctônico, ele pode muito bem ser espiritual. Mas para nós ele
tem, usualmente, um caráter ctônico quando ocorre nessas visões
inconscientes, porque tudo o que a antiguidade produziu de natureza
espiritual, foi assimilado pelo cristianismo... Os elementos ctônicos do
paganismo foram excluídos e suprimidos e por isso estão no inconsciente;
quase todos os produtos inconscientes estão saturados com qualidades ou
alusões ctônicas.) Então, emerge a reação histórica... E quando costumam
cantar o Te Deum?

Resposta: Para expressar gratidão.

Dr. JUNG: ele faz parte, usualmente, de um rito para celebrar um particular
conseguimento, uma vitória, por exemplo, sendo assim uma espécie de ação
de graças – TE DEUM LAUDAMUS. Faz parte de todo momento que
celebra o triunfo da igreja, ou a solene entrada de um cardeal ou do Papa.
Significa sempre uma culminação de alguma espécie; pode ser a culminação
do próprio rito. Aqui significa o triunfo da igreja cristã. E neste momento, que
expressa o extremo oposto daquilo que a negridão de sua face representa,
aparece o animalzinho grotesco como uma gárgula. Já viram aquelas figuras
nas igrejas góticas. São, frequentemente, escoadouros para a água, e os
assentos góticos dos coros muitas vezes são belamente decorados com
pequenos gnomos e anões, sapos e lagartixas, e todos os tipos de criaturas
estranhas. Tais animais grotescos representam as raízes ctônicas e por isso
supõe-se que vivam em covas ou entre as raízes de árvores; são os animais da
escuridão, das profundezas da terra, e são sempre um tanto cômicos – em vivo
contraste com o mundo da luz. De onde vem esta idéia?

Resposta: eles interrompem a linha gótica que sobe até as nuvens.

Dr. JUNG: Sim. A linha gótica, essa maravilhosa elevação, esse efeito
ascendente, é naturalmente interrompido por esses espíritos zombeteiros...
Também os encontramos na poesia, na segunda parte do Fausto aparecem
entes grotescos, os Lêmures. Lá eles são fantasmas malévolos do morto,
chamados pelo diabo para cavar a sepultura de Fausto... Tais figuras podem
ser vistas também no Egito. O ctônico Deus BES é uma figura arquetípica; ele
é um anãozinho extremamente grotesco, mas é também o instrutor de
DORUS, do mesmo modo como MIMIR é o instrutor de SIEGFRIED. Assim,
a aparência mais grotesca é associada com sabedoria. Foi apontado muitas
vezes que o busto de SÓCRATES é como um fauno ou como SILENUS;
mesmo para a gente da antiguidade aparecia grotescamente feio, e no entanto,
era o pai da sabedoria.

Comentário: Encontra-se a mesma idéia entre povos primitivos. Depois de


muitos rituais sérios, alguns índios norte-americanos usam máscaras grotescas.

Dr. JUNG: Sim... Algumas vezes há um grupo especial dentro de uma tribo
índia cuja tarefa particular é ridicularizar os Deuses. São os palhaços dos
Deuses e são chamados os “deleitadores”. Na igreja Católica, ainda no século
XIII, celebrava-se uma missa burlesca na qual canções vulgares e obscenas
eram cantadas como respostas, para que uma vez por ano a estrutura
hierárquica da Igreja fosse interrompida...

Comentário: Os reis costumavam ter bufões que eram deformados.

Dr. JUNG: Muitas vezes eles eram personagens importantes, como também a
fonte da maior sabedoria que o rei poderia ouvir...

Estes exemplos mostram que a sabedoria ctônica tem sido sempre associada
com uma forma grotesca. E isto não é apenas lenda; é um fato que o anão é
especialmente sábio. Isto é assim porque um anão ou uma pessoa de alguma
forma deformada ou mutilada é em geral muito ambiciosa – ela, de outro lado,
realiza um desenvolvimento compensatório – como WAYLAND, o ferreiro,
cujos tendões eram cortados, e VULCÃO (HEFAISTOS), o Deus dos
ferreiros, que era manco. E o vidente é muitas vezes cego, MELAMPUS, por
exemplo, o famoso vidente da antiguidade. Provavelmente, os primeiros
intelectuais, num tempo em que os homens eram, principalmente, guerreiros,
foram aqueles que tinham que ficar em casa, por serem aleijados por nascença
ou incapazes devido a doenças. Ainda mais, pessoas anãs ou mutiladas sempre
exercem um fascínio porque há algo estranho nos seus olhos; muitas vezes são
reconhecidos por uma peculiar expressão do rosto, embora não se saiba que
são mutilados. E sabem como as crianças reagem a estas pessoas, como têm
medo delas...

Quando o sacerdote subiu ao altar e foi atacado pela gárgula, isto significava
que o fator ctônico estava se afirmando; embora parecesse ser completamente
superado pela qualidade espiritual da mentalidade gótica, não foi reprimido
mas começou a perturbar a cerimônia. A pequena criatura manteve-se
agarrada às roupas douradas do sacerdote, que tentava livrar-se deste fator
pagão, mas não o conseguia. Então, quando o sacerdote ergueu o cálice
sagrado no ritual, pequenos animais e sapos pularam para fora dele...
É bem possível que a paciente, aqui, esteja aludindo a alguma coisa que leu,
como é muitas vezes o caso, nessas visões. Ainda mais, é provável que ela
tenha visto no meu “Psicologia do Inconsciente”, a reprodução de uma pintura
muito famosa de SÃO JOÃO por QUENTIN MATSYS. Muitas vezes SÃO
JOÃO é representado como um cálice, mas esta pintura é incomum por haver
um pequeno dragão com pés e asas no cálice. Isto se refere a uma lenda de que
foi dado um cálice de vinho envenenado a SÃO JOÃO, mas ele fez
desaparecer o veneno fazendo sobre o cálice o sinal da cruz. Provavelmente,
esta é uma lenda explanatória, já que muitas vezes inventam-se lendas para
explicar algo de outra forma inexplicável. Mas ela realmente não explica esta
pintura, porque se tivesse havido uma serpente real no cálice, SÃO JOÃO a
teria visto. Portanto, a serpente deve simbolizar o veneno. E quando ele anula
o poder do veneno, a eficácia da poção, porque surgiria do cálice uma cobra
ou dragão?... Provavelmente isto tem a ver com o antigo simbolismo; no início
da cristandade, muitos motivos foram tomados de antigas ilustrações e modos
de pensar.... Assim, o cálice na visão pode originalmente ter parecido
diferente, como o cálice com a serpente.

(FIGURAS DA PÁG. 116 – S. JOÃO E O SIMBOLO DE ESCULÁPIO)

A Serpente como um “Daimon” da Alma


A serpente era o animal sagrado de ESCULÁPIO, o Deus dos médicos, eu
tinha um clínica famosa para todas as doenças, em Epidauro. Uma enorme
serpente era mantida lá e no tempo de uma grande peste, quando
DIOCLECIANO era o imperador, a serpente – que não era mítica mas real –
foi levada de Epidauro a Roma como uma espécie de feitiço apotropáico.
Provavelmente o cálice tem algo a ver com aquela serpente. Como podem ver,
a idéia do antigo símbolo é que a taça ou cálice contém o remédio, mas para
torná-lo poderoso, para dar-lhe mana e verdadeira virtude curadora, é
necessária uma gota de veneno, a adição da serpente. Poder-se-ia dizer que a
serpente era o “daimon” familiar de ESCULÁPIO. E ESCULÁPIO era uma
espécie de Deus-herói. Ele era o mediador – um Cristo pagão, realmente uma
figura de Messias – e ele tinha, como todos aqueles antigos heróis o tinham, a
alma de uma serpente. Na mitologia do norte dizia-se que era possível
reconhecer o herói pelo fato de que ele tinha olhos de serpente... Isto não era
de forma alguma depreciativo, simplesmente denotava o seu caráter divino...

Assim, a serpente é um “daimon” da alma e a idéia é que, quando o médico


prepara seu remédio, este é um trabalho humano – está tudo bem,
perfeitamente certo – mas não tem eficácia até que o “daimon” da alma do
médico ponha pelo menos uma gota de veneno nele, então ele produz efeito,
então há nele poder mágico. Esta é uma concepção extremamente moderna.
Quando o remédio de um médico nada mais é do que rotina, quando ele o
extrai de um manual de farmacologia... não há “essência” nele, falta-lhe a
coisa real; mas quando o “daimon” da alma está nele, ele atua. Haverá nesse
caso uma forma especial de participação mística: a serpente, como uma alma,
representa as camadas inferiores da personalidade humana, o animal de
sangue frio, o animal da escuridão, da medula espinhal e do plexo solar.

Desde tempos imemoriais, o plexo solar tem sido associado com o sistema
nervoso “simpático”; a palavra “simpático”, significando “sofrer com”, vem
do grego “sympatheia” (syn=junto, com e pathos=sentimento, sofrimento).
Paradoxalmente – já que ele não tem órgãos do sentido nem cérebro e é
representado por um animal de sangue frio, a serpente – é através do sistema
nervoso simpático que, principalmente, nós sentimos. Nossa experiência de
“participação mística” vem através deste sistema psíquico interno,
profundamente no inconsciente. É como se estivéssemos conectados com
todos os demais através desta região hipocondríaca. Nos livros dos antigos
médicos alemães, como JUSTINUS KERNER, ou no livro de PASSAVANT
sobre magnetismo, o sistema simpático tem papel importante, (o sistema
simpático é denominado, hoje em dia, “sistema autônomo”. Incluía também a
parte parassimpática! Atualmente começa a aparecer de novo esse antigo
modo de ver, só fazendo didaticamente, uma diferença entre simpático e
parassimpático) e particularmente a região hipocondríaca – que é o triangulo
bem acima do estômago, em frente do plexo solar. A paciente de KERNER, a
famosa vidente de PREVOST, dava especial importância a esta região; tudo
que ela queria ler ou entender ou com que queria entrar em contato
“simpático”, ela colocava neste ponto altamente sensitivo.

Agora, aplicado ao nosso simbolismo, isto significaria que o remédio do


médico é bom ou de valia, somente se a serpente colocou nele uma gota de
“simpatia” – de participação mística – e podem entender a extraordinária
sabedoria aí contida. Porque SÃO JOÃO estava munido de um símbolo como
este, podemos apenas especular, já que, segundo se diz, o médico era SÃO
LUCAS. A interpretação cristã, entretanto, é muito simples: o cálice contém o
vinho ou o sangue, é o pharmakon athanasias, o remédio da imortalidade, e o
vinho não é bom e forte, a menos que seja o sangue de CRISTO . Mas ele só
se torna o sangue de CRISTO pela graça de Deus; isto é, através da
“intercessus divinus” no sacramento, no rito da transubstanciação. Assim,
CRISTO apareceria na forma da serpente.

Que CRISTO era uma serpente curadora é uma idéia gnóstica. Seu sangue é a
essência de sua vida, e o veneno curador para o mundo.Somente quando
CRISTO põe esta gota mágica de sua essência no cálice, o vinho se torna o
sangue, só então ele se torna mágico, o remédio da imortalidade... É bastante
curioso que não há dificuldade em identificar o dragão ou a serpente com
CRISTO, mesmo dentro da iconografia cristã; porque o que se vê usualmente,
no cálice é a Hóstia como o sol nascente, e a Hóstia é o corpo de Cristo – é o
Cristo no cálice. Assim, quando encontramos o dragão ou a serpente lá,
podemos estar certos de que significa CRISTO. A interpretação gnóstica foi
adotada, mais ou menos inconscientemente, no início da Igreja... Porque
embora a igreja perseguisse os gnósticos como herejes, absorveu tanto, se não
mais, das heresias como da antiguidade.

Os Sapos e Pequenos Animais

Agora, falando psicologicamente, de onde vêm os sapos e outros pequenos


animais que pulam do cálice? Temos que ver onde se iniciam estes símbolos,
porque há uma espécie de transformação aqui, com um começo e um fim. Isto
não é meramente uma série desconexa de imagens; há um interno
encadeamento causal dos fatos.

Resposta: Eles vêm do elemento ctônico que estava nela, depois foi para a
gárgula e de lá para a serpente.
Dr. JUNG: Sim. A gárgula é a serpente. Ela mantém-se agarrada às roupas do
sacerdote, ele não pode livrar-se dela e ela entra também na cerimônia
sagrada. A gárgula rasteja para dentro do cálice e reaparece transformada –
embora não muito transformada, porque o sapo e outros pequenos animais são
muito similares. Provavelmente há, também, no fundo da mente da paciente
aquela figura da “Psicologia do Inconsciente” que mostra o pequeno dragão
alado, como uma gárgula, saindo do cálice. Estas criaturas são como a gárgula
também, mas menos grotescas – presumivelmente apenas pequenos animais
de sangue frio. A única coisa que ela viu realmente com clareza foi um sapo
pulando para fora do cálice... O sapo também aparece na alquimia sob a forma
de rã – eles não prestavam muita atenção a pequenas diferenças zoológicas,
naquele tempo; assim, podemos juntá-los e chamá-los por um único nome...
Na alquimia a rã bebe leite dos seios da Virgem. E há uma fonte em Nürnberg
onde a água jorra dos seios de mulheres para dentro da boca de sapos. A rã é
também um símbolo medieval para o útero. E há aquele lindo conto de fadas
do sapo e da princesa:

“A princesa brincava com uma bola dourada que caiu dentro de um poço de onde ela não
podia retirá-la. Mas no poço havia um sapo que disse que ele poderia levar a bola se a
princesa cumprisse três desejos dele: sentar-se na sua mesa, comer do seu prato e dormir na
sua cama. Ela prometeu tudo porque estava muito desgostosa com a perda de sua bola.
Assim, o sapo a trouxe para cima, mas então, é claro, ela quis esquecer as condições e ele
teve que lembrá-la de sua promessa. Cada vez ela obedecia com relutância, porque o sapo
era tão terrivelmente escorregadio e frio e repulsivo, que cada exigência era pior que a
anterior. Estar na mesma sala, tudo bem, mas comer na mesa e do mesmo prato! A última
condição, então, de que o sapo dormisse na sua caminha, esta então, nem ouvir falar; ela
não permitiria isso. Mesmo assim, o sapo introduziu-se na cama dela, de onde ela o retirou
e o jogou contra a parede. Nesse instante o sapo desapareceu e em seu lugar surgiu o
Príncipe Encantado.”

A bola dourada é o sol que representa a nossa libido. Quando a libido da


princesa escapa, a pobre menina tem uma depressão, perde sua alegria de
viver. Ela não sabe para onde foi e quer recuperá-la. Então, a voz das
profundezas diz que se ela cumprir aquelas condições ela voltará a ter seu
encanto de viver. Em outras palavras, ela tem que assimilar alguma coisa fria
e repulsiva, e se ela for capaz de fazê-lo, recuperará sua alegria e seu príncipe
aparecerá.

Esta é uma verdade eterna e ao mesmo tempo uma quota de sabedoria que tem
muitas aplicações práticas. Eu tenho que dizer bem a mesma coisa umas três
ou quatro vezes ao dia. Há também um grande simbolismo religioso nisto: o
sol, a luz do dia desaparece; nosso mais alto valor – porque a bola dourada é o
nosso mais alto valor – desaparece na escuridão, e não sabemos o que fazer.
Somos deixados em uma total escuridão, na tristeza do desespero. Então,
ouvimos as vozes das profundezas e elas apresentam condições das quais não
gostamos nem um pouco. Mas, se podemos cumprir essas condições, a luz da
divindade retornará, o super-homem. Porque o Príncipe encantado é sempre
um homem superior, um modelo de virtude, e representa a renovação do
homem, sua própria ressurreição.

A idéia aqui é semelhante> isto é, os sapos que aparecem não significam uma
profanação do cálice sgrado, indicam a substância curadora ou símbolo
curador que emana do ventre do cálice. Esta é a conexão entre a Virgem e o
cálice: a Virgem é o vaso, o vas insigne devotionis, como a chamam na
ladainha de Loreto, o excelso vaso de devoção no qual é lançada a devoção
dos fieis. E a Virgem é, ao mesmo tempo, o signo astrológico VIRGO,
indicando a terra; assim, a terra é a taça, o receptáculo ou vaso de devoção no
qual é lançada a devoção dos fiéis. E a Virgem produz o Príncipe Encantado, o
homem superior, e belo jovem, uma espécie de mediador de qualidade pagã
(já que os contos de fadas são inteiramente pagãos) ou ela produz o amado rei
espiritual, CRISTO. De outro lado, a virgem dá à luz ou nutre a rã ou o sapo.

Assim, o sapo é um símbolo peculiar. Se pensam na transformação do sapo


em Príncipe Encantado e nos sapos alimentados pelo leite da Virgem...
percebem que esta é simplesmente uma outra analogia; o sapo é um animal
simbolizando a criança.

Sugestão: Esta é a coisa que NIETZSCHE não pode aceitar.

DR. JUNG: O “homem mais hediondo” em “Assim falou Zaratustra” era a


coisa que ele não podia aceitar. Como esta paciente, NIETZSCHE voltou à
experiência dionisíaca, e a idéia do “homem mais hediondo” seguiu-se a isto;
então, depois de muitas voltas – um movimento serpenteante do simbolismo –
o livro termina com a idéia do super-homem. Ele recusou-se a aceitar o outro
lado porque era demais repulsivo e porque associou-se à sua fobia. (Ele sofria
da idéia de que tinha que engolir um sapo ou uma rã, e sempre que via um
deles sentia uma inclinação compulsiva para engoli-lo). Isto apareceu num
sonho em que ele tinha uma rã sentada em sua mão; isto se referia à sua
infecção sifilítica, que ele realmente não podia aceitar. Foi aí que ele colidiu
com a terra, e onde a terra o derrubou. Mas esta é uma questão paralela.

Mas, o sentido geral do sapo é bem claro ... Ele simboliza um estágio
transitório... e representa seres bem definidos – crianças, naturalmente.
Talvez, nunca tenham pensado que o sapo é a primeira tentativa da natureza
para produzir uma criatura como o homem, um animal com duas pernas, duas
mãos e sem rabo. Mas, quando as mães dão banho em seus filhos, chamam-
nos pequenos sapos ou girinos na água; também uma criança anã ou
moleques de rua são chamados rãzinhas. E aqui na Suíça dizemos também que
uma garota (“flapper”) é uma rãzinha. Assim, o sapo é uma espécie de
criança; é uma tentativa “infantil” da natureza de produzir algo como o
homem no nível dos animais de sangue frio; é um homemzinho de sangue frio.
O sapo no conto de fada poderia ser chamado uma espécie de homem
embriônico no qual o belo príncipe ainda não é reconhecível. Este conto de
fada, em certo sentido, é muito profundo.
O Homem como Ele é: a Pedra Rejeitada pelos Construtores

Como percebem, a idéia mais profunda é que o príncipe sapo é homem. O


homem, como ele é, é a forma-sapo do homem superior ainda a vir, do belo
ser que está no homem, mas que ainda não se revelou. Nós somos as
repulsivas, feias cascas envolvendo o cerne dourado, a alma divina do homem.
Este pequeno conto de fada é, na realidade, um grande mito, uma espécie de
mito de iniciação; talvez derive, ou é a fonte, do antigo mito de que o homem,
por uma violenta intervenção, possa romper a casca, possa tornar-se o ser
superior.

Assim, quando o sapo aparece em sonhos, visões ou contos de fadas, significa


o homem no seu aspecto ctônico, seu aspecto “nada mais do que”; nossa
consciência do que é o homem de ser humano, é o sapo; significa o homem
visto como um ser meramente biológico. Mas isto é apenas a casca exterior de
algo muito mais belo e perfeito dentro, a casca que será quebrada e descartada,
ou pela morte, quando o homem belo é liberado ou pela intervenção de um
rito místico na iniciação. Esta é a razão pela qual em certas tribos africanas, os
membros da tribo que se recusam a entregar-se aos cruéis testes de iniciação
são chamados animais pelos outros. Eles não foram libertados da casca
animal. Eles ainda são sapos de sangue frio, vivendo apenas parcialmente na
terra – isto é, ainda parcialmente imersos na condição primeva do inconsciente
– e não atingiram ainda o calor do ser divino semelhante ao sol. Como animal
de sangue quente, o homem está num nível mais alto, assemelha-se mais ao
sol. Isto explica porque o homem interno é sempre entendido como o sol do
céu ou filho do sol.
Aqui, então, o sapo surge do cálice como a serpente curadora e mediadora e
expressa mesma função; é um símbolo de cura. E isso significa que o homem
como ele é, é um símbolo de cura, que ele é a coisa que não foi aceita, a coisa
que foi suprimida ou evitada. O homem como ele é, é a pedra rejeitada pelos
construtores que se torna a pedra angular. (MARCOS - 2:10 – A pedra que
fora rejeitada pelos que edificavam, essa veio a ser a principal.); ele é a planta
delicada que cresce em solo seco e estéril, onde ninguém esperaria que
qualquer nada aparecesse, cumprindo as profecias messiânicas do profeta
ISAIAS (53:1-3).

Mas o sapo, simbolizando o homem como ele é, só atinge a dignidade de um


símbolo de cura quando é compensatório; isto é, quando encontra um
auditório – individual ou público – que o identifica com o homem interno
superior. Porque se nós, na forma de sapos, nos identificamos com o belo
Príncipe Encantado, necessariamente sofremos de inflação; então, somos
unilaterais e inaturais, porque possivelmente não podemos ser aquele homem
superior. NIETSZCHE que tentou se, excedeu-se completamente, e foi
ameaçado com o “homem mais hediondo”. Por esta razão ele sucumbiu e esta
é a razão pela qual sucumbimos quando assumimos uma superioridade que
não é nossa. Mas é redentor e curador para nós aceitarmos a nós mesmos
como somos em vez de sempre querer que as coisas fossem diferentes.
Constantemente dizemos: “Ele seria ótimo se não fosse assim e assim, “ ou
“Eu poderia realmente aceitar-me se não fosse o que sou”. ... Mas a sabedoria
começa quando tomamos as coisas como são; de outra forma não chegamos a
lugar algum, simplesmente tornamo-nos balões inflados sem os pés no chão.
Somente concordando com os fatos como eles são, podemos viver sobre a
terra nos nossos corpo, só então podemos prosperar... É injusto com os nossos
amigos e injusto conosco mesmos assumir que os seres humanos podem
tornar-se super-homens. Aquela coisa feia e repulsiva é, exatamente, o que
leva à redenção: a princesa conseguiu seu Príncipe Encantado da pele do sapo.

Assim, a idéia nesta visão é que o remédio redentor que emerge do cálice
sagrado é meramente o homem como ele é, incompleto, uma primeira
tentativa da natureza de fazer, no nível daqueles de sangue frio, o homem de
sangue quente. E porque seria o homem, a última idéia do Criador? ... Tantas
coisas na sua estrutura e disposição são tão tolas e impróprias, não apenas no
seu corpo, mas também na sua mente. É bem possível que aqueles que
existirão no futuro distante, isto é, uns cem mil anos à frente, olharão para trás
como nós olhamos para o pitecantropo e dirão: “Isto não era homem, era uma
besta!”. E ainda assim, o pitecantropo, se de algum modo pensava, poderia
também ter assumido que estava no topo da criação.

Nós reconhecemos isto e partindo de um extremante amplo senso de


inferioridade, nos identificamos com o que é mais belo. Temos vislumbres
dele e pensamos que já o atingimos, que somos realmente bons, por exemplo.
Mas não somos bons... Olhem para nossas idéias e nossas condições. Tudo
está desesperadamente em embrião, e apenas começamos a perceber isso...
Somos como um bando de girinos; cada girino quer fazer alguma coisa, mas
porque os girinos são um bando nenhum deles pode; porque um bando não
tem cérebro, as psicologias dos assim chamados líderes e a do bando são
idênticas.
O homem está num estado extremamente embrional e o homem superior
nunca pode se desenvolver quando os girinos decidem que eles não são
girinos, mas alguma coisa muito mais maravilhosa, quando eles negam que
têm rabos e nadadeiras, quando os sapos supõem ter sangue quente e lindas
vozes canoras. Primeiro, precisamos aceitar o fato de nós mesmos, o que nós
somos; então, podemos nos desenvolver. Aceitando-nos na condição
embrional, acolhemos a nós mesmos, como uma mãe acolhe uma criança no
seu ventre, onde ela é alimentada e se desenvolve. Se podemos realmente nos
aceitar, podemos alimentar a nós mesmos e nos desenvolver; esperar alguma
coisa mais é como esperar que uma criança prematura cresça por si mesma.
Assim, quando nesta visão o sapo surge do cálice no lugar da serpente,
significa que o sapo é aqui o símbolo da redenção... Não a perfeição do
homem, mas a sua imperfeição é que se espera...

O Advento do Anticristo

 Visão: (continuação) O sacerdote ajoelhou-se cantando: “Perdoa-


nos, oh! Senhor, porque pecamos.” Uma serpente com capuz preto
sobre a cabeça, silenciosamente, deslizou degraus acima até o altar
e enrolou-se na cruz. Eu fui até a serpente e perguntei por que ela
estava ali. A serpente respondeu: “Eu sou aquele que tomou o lugar
de Cristo”.

A paciente desenhou esta serpente


(FIGURA PÁG. 120: SERPENTE ENROLADA NA CRUZ)

Dissemos que o sapo é, de certa forma, um símbolo de redenção, mas aqui não
havia um sapo, havia muitos... A multitude sujere uma multitude de seres
humanos; poder-se-ia dizer que assim como uma multitude de sapos salta do
charco depois da transformação do estágio de girino, assim do cálice emergem
símbolos para muitas pessoas, e para o indivíduo também, na medida em que
faz parte de uma multitude. Então, quando cada um aceitou sua imperfeição
individual, a serpente aparece e enrola-se no lugar do redentor, indicando que
a serpente é o equivalente do redentor.

Esta é de novo uma extraordinária idéia gnóstica de JESUS como a serpente


no paraíso que foi considerada herética e amplamente rejeitada pela igreja
primitiva. Mas essa idéia nunca morreu, realmente, e tem voltado de novo e de
novo. É o mesmo que a serpente Kundalini, e esta é idêntica ao agathodaimon,
a serpente do Egito (o bom demônio) e do antigo sincretismo helenístico, nos
primeiros séculos, antes e depois de CRISTO. Além disto, a serpente é o
Anticristo, o irmão de JESUS, de acordo com a lenda que remonta ao primeiro
século. Esperava-se o aparecimento do anticristo logo depois de JESUS, no
futuro bem imediato, porque foi entendido então que JESUS retornaria antes
que o último de seus discípulos ou testemunhos vivos tivesse morrido, e
supunha-se que seu irmão, a serpente, chegaria antes da sua volta.

Segundo a lenda, o Anticristo nascerá também na Palestina, realizou milagres


em Jerusalém, fez tudo em exata analogia com a vida de CRISTO, mas que
tudo isto era maligno, magia negra. Isto mostra que naqueles dias a idéia do
salvador era sentida como testada internamente por um poder contrário... A
realidade ctônica, na medida em que era oposta ao esforço espiritual realizado
pelos homens naquele tempo – a tentativa da cristandade para espiritualizar-se
– tinha que ser necessariamente diabólica...

A lenda do Anticristo era portanto, uma verdadeira expressão do espírito


daquela época, que se expressou também no simbolismo da astrologia, porque
naquele tempo iniciou-se a era de Peixes. De acordo com a atual configuração
da constelação de Peixes ( que difere da astrológica), um peixe está em pé e o
outro na posição horizontal, e entre eles há a “comissura”, uma espécie de
corda de rabo para rabo. (Notem: as linhas vertical e horizontal indicam uma
cruz). O que está em pé seria o peixe cristão e o horizontal o peixe anticrístico.
Por isso CRISTO foi chamado ICHTHYS. Ele é aquele que se eleva ao céu, a
cabeça apontando para cima, para o alto, enquanto o anticristo nunca deixa a
terra, é o “o homem mais hediondo”, o Diabo.

(FIGURAS DA PÁG. 120 – OS PEIXES: o signo astrológico e o signo


astronômico – e duas moedas)

Assim, essa psicologia cristã pertence à era de Peixes e estamos ainda lá


(1932), mas a nossa psicologia presente está se aproximando da cabeça do
peixe horizontal. Este segundo peixe diferentemente do símbolo astrológico
tradicional não aponta a direção exatamente oposta; o Anticristo não é
contraditório, é apenas horizontal e não é claro porque este peixe seria tão
maligno. Ele é mau apenas porque não se eleva ao céu, ele permanece na terra.
Quando o ponto vernal se moveu de primeiro peixe para o segundo, o símbolo
redentor afastou-se sempre mais e mais do herói espiritual, e a humanidade do
homem, seu aspecto ctônico, foi crescentemente enfatizado. Isto ocorreu no
meio da “comissura” no ano 1500, o tempo da renascença, seguido pela
Reforma. Ele entrou no rabo do peixe horizontal perto de 1720, quando
começou o Iluminismo francês, que conduziu à derrubada do cristianismo em
Paris e à entronização, em seu lugar, da Deusa Razão. A linha divisória está
bem no meio da “comissura”; desde então tivemos os humanistas e um
inteiramente novo ponto de vista.

É como se as alturas tremendas dos tempos góticos estivessem desmoronando,


afundando na terra, e como se o homem se estendesse para fora em vez de
elevar-se ao céu como o primeiro peixe. A energia já não era mais acumulada
para cima mas estendida horizontalmente. Foi a época das grandes viagens e
das grandes descobertas, do crescimento da ciência natural, quando o homem
se tornou todo-importante.

E agora nos desenvolvemos tanto ao longo dessas linhas que já nada mais
existe a não ser o homem. Os céus ficaram inteiramente despovoados... todas
as hierarquias de anjos e arcanjos, e o próprio Deus, entraram no homem ... e o
homem foi deixado inteiramente sozinho com uma tremenda inflação.

Anteriormente, citei uma passagem de SINÉSIO, bispo de Edessa, que era na


realidade, meio pagão e também um poeta. Ele disse que o “spiritus
phantasticus” que na realidade é a imagianção humana, pode entrar até na
divindade ( e SÃO PAULO diz exatamente o mesmo: que pelo pensamento
podemos conhecer Deus), mas se o faz, terá que agüentar, ou sofrer, o caso
destrutivo, o desmembramento de tudo que foi acumulado no primeiro peixe,
o inteiro ponto de vista espiritual desmembrado pela nossa extraordinária
extensão horizontal... O homem espalhou-se sobre a terra, e tudo nela é
subserviente a ele, mas nós estamos ainda sob a influência do primeiro peixe e
ainda não o aceitamos. Nós pairamos como espíritos sobre a terra e acima de
nós mesmos.

Mas agora temos que aceitar a nós mesmos. A completa aceitação do homem
como ele é parece ser a conclusão necessária da era dos Peixes. Já que ele se
julga divino e comporta-se como se fosse, ele tem que assimilar a si mesmo,
conhecer-se a si mesmo. E entender-se a si mesmo é um terrível choque...

A aceitação do homem como ele é, é o problema psicológico, ou se preferem


chamá-lo assim, o problema espiritual ou religiosos dos nossos dias; é contra
isso que nos arvoramos agora. Mas a visão diz que quando isto acontece, a
serpente tomará o lugar do redentor na cruz. Isto significa que o anticristo, que
pensamos ser o princípio do mal, será o símbolo redentor. Então, um ciclo terá
se completado, e estaremos de volta aonde eles estavam no primeiro século a.
C., quando descobriram que a serpente era realmente o redentor. Depois disto
alguma coisa nova pode começar.
Ela Olha no Disco Dourado

 Visão: (continuação) eu saí da catedral e ajoelhei-me sobre as


pedras da praça diante de um disco dourado no solo. Perguntei ao
disco porque a serpente tomara o lugar de CRISTO na cruz. Olhei,
então, no disco e vi meu rosto refletido nele. Meus olhos eram
verdes, meus lábios vermelhos e meu cabelo estava entrelaçado
com folhas de parreira. Voltei à catedral e disse à serpente: “Agora
eu entendo”.

O primeiro ponto importante é a praça com o disco dourado sobre o solo.


Lembram alguma coisa a respeito disso?

Resposta: Era a poça de ouro nas raízes da árvore.

Resposta: Ela passou pela face de Deus e então chegou à poça de ouro.

Resposta: Era como o sol em cima e o sol embaixo.

Dr. JUNG: O sol em cima tem sido símbolo de uma divindade espiritual desde
tempo imemorial... Mas aquela poça de ouro caracterizava um valor muito
concreto, não um valor espiritual. Era a face de Deus, por assim dizer, mas
materializada sob a forma de ouro... Nesta visão o disco de ouro tem o sentido
de matéria versus espírito. O ouro realmente indica a substância concreta; não
é apenas emblemático, é o verdadeiro material valioso, que agora assume um
valor quase espiritual. Ele substitui o valor espiritual porque o espírito está
como que exaurido; nestas visões há uma nova consideração da matéria como
uma espécie de objeto religioso.

Isto é completamente estranho à nossa mentalidade cristã. Não podemos


conceber a matéria como uma entidade espiritual, ou imaginar que ela possa
ter uma conotação espiritual ou um valor espiritual. Parece um paradoxo
absoluto. Mas, se estudamos a filosofia hindu, vemos que a matéria, como o
posto do espírito, é, na realidade, bem a mesma coisa... Porque o espírito, para
eles, é o que eles chamam CIT, ou consciência, significando uma consciência
universal que não deve ser definida por nenh7um conteúdo específico; é uma
consciência destacada, sempre-presente, que imbui tudo. E, quando esta
consciência cria uma idéia, eles dizem que ela se expressa como matéria
concreta; assim, a matéria é o definido pensamento concreto da divindade ou
do CIT; quando CIT torna-se específico ele é matéria... Em outras palavras,
quando a consciência universal – ou podem chamá-la BRAHMAN... produz
um pensamento definido, então ela é matéria...

Quando essa mulher olha no disco de ouro e se vê com uma aparência


diferente, ela subitamente compreende porque a serpente subiu na cruz. O que
é o seu novo aspecto? Como está ela transformada?

Resposta: Agora ela tem uma aparência dionisíaca e seus olhos são verdes.
Dr. JUNG: Exatamente, a grinalda de folhas de parreira na sua cabeça é
dionisíaca. E o grande Deus PAN tinha olhos verdes na pintura que ela fez
dele. Assim, agora, ela se reconhece como um ser semelhante à natureza,
porque PAN era o Deus da natureza, de acordo com a última interpretação...

Há uma lenda muito simbólica que parece referir-se a um fato real – que no
fim dos tempos antigos espalhou-se um rumor nas ilhas gregas de que PAN
havia morrido. Tomado como um sintoma da mentalidade daqueles dias, isto
significaria que o inconsciente sentiu a necessidade de informar as pessoas
que o grande PAN morrera, que aquele princípio tinha chegado a um fim – e
realmente foi o tempo quando PAN, como a deidade da natureza, chegou ao
fim.

Agora, nos nossos tempos, de novo, depois do reinado do espírito, algo


semelhante está acontecendo. Em “Assim falou Zaratustra”, NIETZSCHE diz:
“Deus está morto”. Isto é o mesmo, mas agora significa que o Deus espiritual
chegou a um fim. E o inconsciente reage imediatamente, fazendo emergir
novamente os símbolos de PAN... Espelhada no disco de ouro, na criação
material de suas próprias mãos, a paciente é semelhante a PAN, ela é um ente
da natureza. E, na medida em que ela é um ente da natureza, ela é a réplica
exata da deidade; através da sua identidade com a natureza, ela experimenta
sua identidade com o Criador.

Poderíamos supor que sentirmos-nos idênticos com o Criador só é possível


através da espiritualidade, mas o nosso cultivo extremo do espírito fez que
sentíssemos nossa diferença da deidade. Estamos repletos com a idéia de
extrema pecaminosidade, e assim como poderíamos nos identificar com a
deidade? Antes parece-nos uma extraordinária impertinência da parte dos
místicos insistirem na sua identidade com Deus. E foram apenas os últimos
místicos que ousaram fazer isto.

O melhor exemplo para isto é aquele poeta, um dos mais místicos e ingênuos,
ANGELUS SILESIUS. De modo muito inocente, ele confessava sua
identidade com Deus, mas ele só podia fazer isso numa condição mais ou
menos sonâmbula... Ele foi sobrepujado pela visão e ficou incapaz de vivê-la
plenamente, de assimilar a tremenda verdade que havia descoberto... Nele
pode-se ver que, mesmo sem qualquer particular perseguição, passar por tal
mudança nas suas convicções religiosas pode matar um homem.

Há uma mudança semelhante em andamento no caso desta mulher. Quando


ela se vê como um ser da natureza, ela pode entender porque a serpente
curadora tornou-se de novo o símbolo do redentor, do curador, o SOTER
(libertador), o HEILAND (Salvador). É o “daimon” de ESCULÁPIO, a forma
natural do curador... A serpente, ou o dragão, é o outro lado do herói, porque a
verdade é que eles são dois aspectos da mesma coisa. Como reza o BHRIGU
UPANISHAD, do ponto de vista humano, ESCULÁPIO era um homem semi-
divino; e do ponto de vista da natureza, ele era uma serpente. Sua qualidade
essencial era não-humana, era super-humana e portanto, simbolizada por uma
figura animal.

Poder-se-ia quase dizer que numa certa fase da história, quando as pessoas
olham as coisas de um ponto de vista humano, os Deuses se tornam humanos;
e quando elas olham o mundo do ponto de vista da natureza, as formas
materiais ou as formas animais aparecem. Assim, depois desta recognição,
quando a paciente volta à catedral e diz à serpente que ela agora entende,
alguma coisa deste tipo pode estar sendo sugerido.

Casada por uma Bruxa

 Visão: eu vi muitos homens a cavalo, carregando brancos


estandartes tremulantes. Eles usavam elmos. À medida que
passavam, arrancavam seus elmos e os jogavam ao solo. Eu
apanhei um e dentro vi gravadas estas palavras: Usa este elmo se
queres proteger-te do mundo. Joguei fora o elmo e fui adiante. Vi
um dos cavaleiros descer do seu cabalo e colocar-se diante do
fantasma de uma velha mulher. Em frente do fantasma havia um
caldeirão com fogo, fervendo. Juntei-me ao homem e a velha
mulher disse: “Vou casá-los com fogo”. Ela jogou fogo sobre nós.

Estes homens a cavalo são, obviamente, soldados. O que sugere isso?

Resposta: O Animus coletivo.

Dr. JUNG: Sim. É o motivo que encontramos muitas vezes antes: sempre,
quando se torna necessário um novo empreendimento que ela não pode
encarar, o Animus a precede, ou sozinho ou como uma multitude... Estes
soldados sugerem uma disposição para se empenhar... Há alguma coisa
triunfante nisso... Usualmente o Animus é uma opinião coletiva, e esta
costuma dirigir-se contra ela, mas esse é apenas o Animus negativo... Como
função involuntária da mente, o Animus não é necessariamente negativo;
algumas vezes ele é muito positivo... Assim, o fato de que estes soldados
jogam ao chão seus elmos, poderia indicar, antes, uma ação amistosa, e a
inscrição dentro do elmo que ela apanhou poderia ser para proveito dela...,
sugerindo que tome as necessárias precauções contra o mundo cobrindo sua
cabeça com um elmo. Agora, porque precisamente isto?

Resposta: É porque agora ela tem aquela aparência dionisíaca?

Dr. JUNG: Sim. Se ela aparecesse no mundo com olhos verdes, lábios
escarlates e folhas de parreira no cabelo, ela não seria vista como deveria.
Seria pouco reputável sair com olhos de PAN. Ninguém deve suspeitar que
alguém é um ser da natureza... Não esqueçam que o diabo medieval era
representado com chifre e rabo, justamente como PAN. É perigoso expor-se
no mundo como um ser da natureza. Seu Animus está lhe dando uma boa
advertência quando lhe diz que cubra sua cabeça, que a esconda, porque é ela
que o mundo mais certamente irá vergastar. Mas, ela não percebe contra o que
está se movendo. Como os soldados, ela também joga o elmo ao chão e vai
adiante para encarar as dificuldades corajosamente, sem se proteger, o que é
antes, temerário. Seria melhor permanecer perfeitamente quieto em toda essa
situação... mas a disposição de Animus toma a forma de uma espécie de
atitude beligerante; como propor uma afirmação absurda para lutar por ela,
como se a luta fosse por Jerusalém.
Então, um cavaleiro desce como se viesse ajudá-la. Isto é, uma parte do grupo
de figuras e animus condensa-se ou concretiza-se num homem, e quando o
animus se torna um, é muito provável que esteja projetado sobre um homem
real... Neste caso ela o vê perante o fantasma de uma velha mulher,
evidentemente uma bruxa, porque há um caldeirão no fogo e isto sugere
sempre uma bruxa. Expressando psicologicamente, o Animus dirige-se agora
ao inconsciente; o fantasma indica o inconsciente; o inconsciente coletivo é o
mundo do fantasma e a bruxa é uma figura do inconsciente coletivo. Esta
mulher estava saindo para encarar o mundo, mas uma vez que o seu Animus
se volta para o inconsciente coletivo, ela tem que ficar com ele. O seu
procedimento temerário fez seu Animus desmontar; em vez de continuar, ele
volta antes para trás, para o inconsciente. Agora, quem seria a bruxa?

Resposta: Ela é a sombra.

Dr. JUNG: Sim. Naturalmente é um pouco desconcertante que a nossa


paciente seja, de repente, representada por uma velha mulher, mas isto é
inteiramente lógico devido ao fato de que ela estava procedendo tão
temerariamente. Ela é muito jovem, por isso a velha mulher aparece dentro
como compensação. Pode-se ver isso nos sonhos: quando a atitude consciente
é demais imatura, demais infantil, uma mulher velha aparece como figura
compensatória... Assim, a velha mulher é realmente sua sombra.

Aqui, novamente, sua condição subjetiva é encenada perante seus olhos...


Naquele aspecto dela de olhos verdes, lábios escarlates... ela vai para o lado
do homem, e a velha mulher lança fogo sobre eles, ao se colocarem perante o
caldeirão. Ela não é sua própria sombra aqui porque ela está num cerimonial
mágico. A velha mulher é sua sombra, e é a figura que se coloca entre o
consciente e o inconsciente; nesta posição ela é bem ela mesma destacada da
sombra, bem como da consciência do Ego. Agora, o que sugere o caldeirão?...
sempre que ele aparece indica o processo alquímico, o processo de
transformação. Assim, o que deveria ser transformado?...

Resposta: Sua atitude beligerante.

Dr. JUNG: Sua ousadia em aparecer no mundo como uma mênade


(sacerdotisa de Dionísio), uma PAN fêmea. Isto não funcionará de forma
alguma, isto é muito insensato. E agora o cerimonial; porque diz a velha
mulher: “Eu vos casarei com fogo”?

Resposta: Ela quer que a paciente se case com seu Animus.

Dr. JUNG: E quais as razões psicológicas para isso? Antes de tudo, o Animus
não deveria normalmente, estar conectado com a sombra, porque nesse caso
há dois contra um: a sombra mais o Animus, contra a consciência. Isto é
demais: ou a consciência escapa de “pinta e borda”, ou sucumbe à
inconsciência predominante e se apaga. Então, ocorre a possessão pelo
Animus. Ela deveria estar relacionada com o Animus, exatamente como
deveria ser a proprietária de sua própria sombra.

Vejam, aqueles que não estão na posse e não percebem seu lado inferior
sombrio, podem aparecer como pessoas maravilhosamente boas, ninguém
pode descobrir neles qualquer falha, são brancos como leite. Eles mesmos nos
dizem que nada há de errado com eles. Todos os outros são errados, mas eles,
nunca. Mesmo assim, porque negam suas sombras, tais pessoas são
absolutamente possuídas por diabos; as mulheres são todas devoradas pelo
Animus. Reforçado por este excelente alimento, ele cresce tão forte que é
capaz de possuir a consciência, de dirigi-la. Em tal caso, a conexão entre o
Animus e a sombra deveria ser quebrada e aqui está sendo mesmo quebrada
pela sombra.
Quando vemos nosso lado inferior, podemos nos destacar do Animus ou da
Anima, mas enquanto não o percebemos, não temos uma chance. Assim, o que
a bruxa faz é muito útil; ela tenta casar o Animus com o eu consciente,
jogando fogo sobre eles, uma espécie de procedimento de fusão.

A Sombra

Pergunta: Como ocorre que a sombra assuma um papel tão positivo? Será que
cansou-se do Animus?

Dr. JUNG: A sombra nada fez, na realidade... a própria paciente adquiriu uma
atitude ativa. Ela se mostra num papel muito masculino, até mesmo jogando
fora o elmo que o animus lhe oferecera para sua proteção. Como resultado, um
dos cavaleiros desce e vem para o seu lado; em outras palavras, ela força o
Animus a descer até ela; ela destaca o Animus da sombra e com isto faz da
sombra um fantasma, uma coisa irreal, ainda que com a qualidade positiva do
fogo. Uma bruxa pode ser uma bruxa, quer seja real ou um fantasma, ela pode
jogar fogo sobre eles, e a questão é se o fogo é positivo. Minha suposição é
que se trata de uma má vontade destrutiva...

Tem que ser feita uma diferença entre a sombra e o inconsciente pessoal... O
conceito freudiano do inconsciente é apenas o inconsciente pessoal, na media
em que FREUD supõe que, praticamente falando, a existência do inconsciente
está baseada em repressões. Esta, ao menos, é a sua principal hipótese de
trabalho. De acordo com sua idéia, o inconsciente existe apenas como uma
função do consciente, ele não tem qualquer virtude própria, nenhuma
existência por si mesmo. FREUD supõe que se alguém muda sua atitude
pessoal consciente, não terá mais um inconsciente; que se a sua interpretação
do simbolismo neurótico fosse amplamente conhecida, os neuróticos estariam
curados, que eles só têm neuroses porque não sabem o que é tudo isto. Diga a
um homem que ele tem um complexo de incesto; tão logo ele sabe isto, não
mais será neurótico. Mas isto está errado, porque baseia-se, para começar, na
idéia de que a neurose é causada por repressões, o que FREUD simplesmente
tem como certo; ele está convencido de que necessariamente se estará bem de
novo se se conhecem os conteúdos das próprias repressões. Mas isto não é
verdade.

Parece um esmiuçar exagerado quando tento explicar a sutil diferença entre


este conceito de inconsciente pessoal e o que eu chamaria a sombra... mas é
muito importante saber isto por razões práticas. Porque a sombra é um fato
normal e natural, enquanto o inconsciente freudiano, ou o inconsciente
pessoal, não é necessariamente um normal fato natural; é, até certo ponto, um
fato cultural. Se perguntamos às pessoas o que é a sua sombra, eles tendem a
falar daquilo que reprimem; isto é, a sua suposição consciente da natureza de
suas sombras. Mas devem perceber que tal suposição não coincide,
necessariamente, com a realidade. Geralmente cometemos o erro de supor que
a sombra coincide com as nossas repressões, nós a explicamos nestes termos.
Mas embora isto possa ser assim, não é necessariamente assim. O verdadeiro
mal nas pessoas é, com freqüência, bem diferente, elas reprimem alguma coisa
que talvez nem mesmo seja mau, mas apenas um engano, uma ilusão.

Vou contar-lhes um caso. Um homem chegou e contou-me, entre outras


coisas, que era homossexual. Ele não aprecia sê-lo e eu tenho as minhas
suspeitas quando as pessoas me afirmam que têm peculiaridades sexuais, e
assim lhe perguntei se ele fizera antes uma análise freudiana e descobri que
sim – durante alguns meses. Disse-lhe então: “Agora me diga, teve ligações
amorosas com rapazes?” “Oh! Não” ele disse, bastante perturbado, “a coisa
não está tão ruim”. “Mas no que consiste sua homossexualidade? O senhor
tem fantasias sobre moços ou gosta mais deles do que das moças?” “Oh! Não,
eu sempre namorei moças. Quando o analista me disse que eu era
homossexual, eu fiquei chocado, eu não sabia disso.” “Mas como o analista
soube já que o senhor não sabia?” “Foi uma grande surpresa; sonhei uma vez
que estava dormindo com alguém que eu pensava ser uma mulher e que se
revelou ser um rapaz. Acordei terrivelmente chocado.”

Naturalmente pode-se sonhar qualquer coisa, pode-se sonhar que se está


dormindo com um animal, mas isto não prova que se é um pervertido sexual,
isto é simplesmente um símbolo. Mas estas pessoas tomam isto muito
literalmente, e estão convencidos de que é sexual, o que simplesmente não é
verdade. Aquele simbolismo não vem de uma repressão; a teoria da repressão
não é necessariamente uma verdade eterna, é um ponto de vista, nos dá um
esboço...

O inconsciente pessoal de certo modo coincide com a sombra, mas ainda


assim pode ser também como uma camada de ilusão, uma espécie de
suposição sobre a natureza má da sombra. Porque embora a sombra seja o
negativo da personalidade consciente, ela pode ser muito mais decente e ter
muito mais qualidades positivas do que o consciente. Muitas pessoas vivem
conscientemente seu lado escuro, e sua vida consciente é a vida da sombra...
Elas vão por aí caindo num buraco depois do outro, e se lhes perguntamos
sobre suas sombras eles dizem que são assassinos, degoladores, jogadores,
tudo que há de errado, quando na realidade são gente inteiramente decente; se
alguém arranca fora aquela camada de ilusão sobre suas sombras, descobrirá
que elas são oitenta por cento ouro puro, pessoal realmente boas. (Há sempre
um tipo de oculto complexo de Cristo numa tal atitude; também aquele
princípio infantil: “É bom para você quando você me fere.”)... Assim, a
camada de ilusão que temos a respeito de nossa sombra não deve ser tomada
como a sombra; para descobrir o que a sombra realmente é, às vezes é uma
tarefa e tanto...

Aqui não estamos falando de tais suposições, mas da sombra como geralmente
ela é na realidade, isto é, a parte inconsciente da personalidade – e esta é uma
coisa extremamente real. Dizer que a sombra é meramente a ausência de luz é
como a famosa definição que as pessoas otimistas dão do mal – que ele não
passa da ausência do bem, apenas um engano. Mas quando se vê como as
coisas se desenvolvem no mundo, vê-se que o diabo está realmente nelas, que
há um mal abismal em atuação. Não se pode explicar a tendência destrutiva
que há no mundo como uma mera ausência do bem ou como um erro
cometido em alguma coisa originalmente boa. As pessoas dizem que no fundo
o homem é bom, mas isto não é verdade; poder-se-ia da mesma forma dizer o
oposto...

E assim, a nossa sombra realmente existe. Ela é tão má quanto nós somos
positivos e construtivos na consciência... Quero dizer: quanto mais
desesperadamente tentamos ser bons e maravilhosos e perfeitos, tanto mais a
sombra desenvolve uma definida vontade para ser escura e má e destrutiva. As
pessoas não podem ver isso; estão sempre se esforçando para serem
maravilhosas, então descobrem coisas terríveis e destrutivas acontecendo e
não podem entendê-las. Elas podem negar que tais coisas tenham algo a ver
com elas ou, se as admitem, tomam-nas como aflições naturais, ou tentam
minimizá-las e transferem a responsabilidade para alguma outra coisa. O fato
é que se alguém tenta ser perfeito além da própria capacidade, a sombra desce
ao inferno e torna-se o diabo. Porque é tão pecaminoso do ponto de vista da
natureza e da verdade estar acima de si mesmo como abaixo de si mesmo...

Agora me perguntarão se esta velha mulher, a sombra que tenta jogar fogo
sobre a paciente e seu Animus, está se comportando de um modo positivo,
fazendo alguma coisa boa para a psique toda. Isto não é tão simples. Temos
aqui que nos lembrar do texto: a paciente vê um dos cavaleiros postar-se
diante do fantasma de uma velha mulher, e diante da mulher há um caldeirão
com fogo fervente. E como dissemos, o caldeirão indica que a velha mulher é
uma bruxa. Não há nada muito positivo nisso. Ainda mais, ela nem mesmo é
uma bruxa real, ela é o fantasma de uma bruxa, o que a torna ainda mais
negativa, é muito fantasmagórico... Aquele fogo vem do lado inconsciente, é
um fogo telúrico das entranhas da terra.... Assim, evidentemente, a sombra
não se tornou positiva, a despeito do fato de que ela casa a paciente com o
Animus.

Casada com o Animus

Mas esta união da paciente e seu Animus cria uma situação diferente, é claro;
ela agora está separada da sombra, ou em oposição a ela e ainda assim casada
com o Animus. Isto significa que ela gora tem uma conexão imediata com o
inconsciente coletivo; isto fornece uma possibilidade ao inconsciente coletivo
de mesclar-se com o consciente, e os dois podem unir-se e produzir,
naturalmente, uma nova condição. Porque o mundo consciente e o mundo
inconsciente são o principal par-oposto; quando os dois se juntam, é como se
homem e mulher se juntassem, como a união de masculino e feminino, de luz
e trevas. Então, ocorrerá um nascimento.

Esta é a razão pela qual a alquimia , a pedra dos filósofos é


caracteristicamente representada como uma reconciliação de opostos – isto é,
de Yang e Yin. E para esta mulher, estar casada com o Animus significaria
uma união de Yang e Yin que resolveria nela o conflito entre os dois mundos,
o mundo da luz e o mundo da escuridão, o mundo visível e o mundo invisível.
Seria o começo – ou pelo menos a antecipação – do TAO. Esta é apenas uma
condição psicológica, naturalmente; neste caso é uma mera intuição, alguém
procuraria em vão sintomas do TAO na sua vida externa, ou mesmo na sua
sensação geral sobre si mesma. O caminho para estabelecer TAO está apenas
indicado aqui. Se TAO estivesse realmente estabelecido, tudo cairia no lugar;
não haveria conflitos exigindo soldados e elmos e outros meios de proteção.

 Visão: (continuação): Uma chama cresceu da cabeça do homem e


do meu peito cresceu uma chama também. Então, a velha mulher
disse: “Vão e vejam o que podem encontrar.” Nós partimos.

O fogo de EROS irrompe do seu coração e o fogo de LOGOS da cabeça dele.


A mente involuntária inconsciente da mulher está em chamas e mescla-se com
seu coração de mulher, com EROS. Poderíamos supor que agora ela está
equipada. Mas sair no mundo tão descuidadamente, mostra uma falta de
consideração pelo sentimento; se ela tivesse uma função de EROS
diferenciada e não estivesse inteiramente possuída pelo Animus, ela veria
imediatamente que tal “performance” não teria êxito. Se ela percebesse seu
próprio sentir não poderia aparecer como um ser da natureza semelhante a
PAN, porque o amor, afinal de contas, tem alguma coisa a ver com bondade.
Na maioria dos casos, admito, ele é apenas uma posse infernal, mas o amor
deveria ter algo a ver com bondade – eu estou apelando pelo amor.

No Oriente, onde eles pouco sabem deste nosso tipo de amor, existe um belo
símbolo para ele em KWANNON, a Deusa da benevolência. Ela alimenta
todos os seres vivos, mesmo os maus espíritos no inferno, e para fazer isso ela
deve descer ao inferno; mas assustaria os demônios se ela aparecesse lá na sua
forma celestial e, como Deusa da benevolência ela não pode permitir que isso
aconteça; assim, com tal extraordinária consideração pelos sentimentos dos
diabos, ela se transforma num espírito mau e sob esse disfarce ela desce com o
alimento. Há uma bela pintura tradicional onde ela está representada no
inferno como um diabo entre os diabos, alimentando-os; mas há um fino fio
subindo da sua cabeça até um ser celestial acima, que é ela mesma em todo o
seu esplendor.Esta é a atitude psicológica que o amor verdadeiro sugere...

Mas, pra que se realize a união dos opostos na nossa paciente é necessário,
antes de tudo, que tanto o princípio Yang como o princípio Yin sejam ativos
na sua psicologia. Ela precisa conter o princípio de luz e não perder a
consciência e a compreensão; de outro lado, ela precisa ter também o poder da
escuridão; isto é, a chama no seu peito.

Coisas como esta foram apontadas antes, quando influências escuras chegaram
até ela e quando o seu Animus transformou-se no princípio escuro, como no
Negro. Aqui está na forma da chama de EROS emanando do seu coração e na
chama de LOGOS saindo da cabeça do homem. Estas chamas não são
sagradas e têm a ver com os fogos do inferno mais do que com o calor e a luz.
Elas mostram a intensidade do propósito escuro. E a velha bruxa diz: “Vão e
vejam se eles encontrarão tremendos obstáculos, porque agora eles têm que
lidar com a muito imediata e notável resistência da terra.”

 Visão: (continuação) Os estandartes brancos dos homens deixavam


rastros no solo. Chegamos a uma floresta e lá vimos um dragão
semelhante a uma serpente. Na boca ele segurava uma faca. O
homem puxou-a e arrancou os dentes do dragão, jogando-os para
trás de si. Continuamos e logo chegamos a um bloco de gelo. Eu
disse: “Dentro deste gelo há uma bonita jóia vermelha. Como
derreteremos o gelo para obter a jóia?” O homem respondeu:
“Somente o teu corpo o derreterá.” Então, deitei-me sobre o gelo,
e ele se desfez. Eu dei a jóia ao homem, que a colocou sobre o
peito. À medida que caminhávamos na escuridão, vimos perante
nós, no céu, as luzes radiantes da aurora boreal.

Esta é uma situação típica, o herói e sua dama numa busca. É provável que
apareça um dragão, ou eles entrarão numa floresta escura, ou qualquer coisa
deste tipo. E agora começam as aventuras na caminha até a meta distante. O
dragão segura uma faca na boca, o que é bastante inusual. Não há paralelo
mitológico, mas ela leu “A Psicologia do Inconsciente” e provavelmente viu lá
uma antiga lenda cristã sobre um dragão que vivia numa caverna e ao qual se
sacrificavam virgens. Um antigo santo cristão entrou na caverna e destruiu o
dragão que ele descobrira ser um aparelho mecânico. Sua língua era uma
espada que se projetava, e as moças eram lançadas pela espada para dentro do
rabo do dragão. Nossa paciente provavelmente referia-se a esse dragão, tendo-
o adotado porque o simbolismo era uma expressão adequada para o seu caso
particular. Porque o que representaria um dragão com uma espada na boca?

Resposta: Opiniões de Animus?

Dr. JUNG: O dragão é um monstro tragrador, envolvedor ou devorador, eu


penso que ele significa aqui uma multitude, uma coletividade. E a língua, que
é afiada como uma faca, seria o mexerico, a calúnia, o criticismo público ou a
depreciação, qualquer coisa que “mata”. Assim, poderíamos chamar este
dragão outra forma de Animus. Mas não devemos exagerar o uso do termo
animus, então, seria melhor dizermos que o dragão é aqui a opinião coletiva,
que não é necessariamente representada pelo Animus, porque é também um
fato externo...

Ela tem que encarar isto. Assim o homem, que é a sua mente, tira a espada –
ou a faca – do dragão e, arrancando seus dentes, joga-os para trás, indicando
que a mente dela arranca o ferrão do mexerico. Como sabem, na análise,
naturalmente é preciso lidar com mexericos todo o tempo, e pode-se perceber
que, geralmente, há uma ferroada neles, porque contém um elemento de
verdade. Ainda mais, eles picam porque, na medida em que somos coletivos,
temos também opiniões coletivas; assim, quando ouvimos de fora alguma
coisa que já temos dentro, isto nos “ferra” por trás, ficamos momentaneamente
dominados e nosso raciocínio nos abandona. Por isso costumo dizer a todos
que são atingidos por mexericos: “Vamos então pensar sobre isto. O que
aconteceu realmente e que importância tem isto?”... Como sabem, o pensar é
uma atividade do LOGOS que discrimina entre as coisas, enquanto uma
mulher que outra coisa não tem senão a atitude de EROS está ligada às coisas
que aguilhoam e é aguilhoada de novo e de novo. Ela não tem absolutamente
armas contra isto porque seu princípio EROS sempre tenta estabelecer um
relacionamento nesse sentido; mas se começa a pensar, isto cria um espaço
entre tal situação e ela mesma. Assim, ela fica relativamente salva. Então, aqui
nossa paciente tem que aprender a desarmar mexericos e observações ferinas
da forma como um homem chega às suas próprias convicções, isto é,
independentemente da opinião pública...
A Jóia dentro do Gelo

 Visão: (continuação) Continuamos a andar e logo chegamos a um


bloco de gelo. Eu falei: “Dentro desse gelo há uma bonita jóia
vermelha. Como derreteremos o gelo para conseguir a jóia?” O
homem respondeu: “Somente o teu corpo o derreterá.” Então,
deitei-me sobre o gelo, que se derreteu. Eu dei a jóia ao homem
que a colocou sobre o peito.

O que é este bloco de gelo com a jóia vermelha dentro? Como vêem, o
simbolismo aqui enfatiza a importância do corpo. Quando uma mulher está
casa com o Animus, ela usualmente é alçada a uma esfera mental onde se
ocupa apenas com coiss espirituais, como se tudo pudesse ser feito por uma
atitude espiritual. Mas esta é a forma errada da espiritualidade, porque há uma
secreta alegria por trás do fato de escapar do problema complicado do corpo.
E esta visão diz que somente o calor do corpo derreterá o gelo que contém a
jóia vermelha. Uma patente influência do Animus que, de outra maneira, a
elevaria demais para a esfera espiritual, está aqui contrabalançada pela ênfase
no corpo, ao fato de que o gelo não pode ser derretido sem ele, que o corpo
tem um papel decisivo ao seu futuro desenvolvimento. Agora, obviamente,
muita coisa depende da interpretação desta jóia vermelha.

Ela é o coração ou o sangue; é o calor do sentimento, e uma jóia desta


substância poderia ser chama amor. Já que o coração é uma jóia vermelha,
penso que podemos supor com segurança que esta jóia significa o tesouro ou a
jóia da vida, aqui circundada por gelo. Porque se alguém é elevado às camadas
superiores da atmosfera, lá tudo é congelado, até o coração pode ficar frio em
uma mulher, justamente por causa do Animus.

Porque quando as mulheres começam a pensar,elas, muitas vezes ao mesmo


tempo deixam de lado o coração, e quando o Animus reina sozinho, muitas
vezes é como se o mundo já não contivesse qualquer sentimento ou o que quer
que se assemelhe a EROS. A afirmação do Animus está sempre peculiarmente
distante do alvo porque é feita de um modo absolutamente insensível. Assim,
esta visão confirma o que vimos antes, que através do seu contato com o
animus ela se torna descorporalizada e fria, seu coração está dentro do bloco
de gelo.

Mas o coração humano tem a ver com o corpo, ele não é feito de ar, e ela só
pode obter a jóia usando seu corpo para derreter o gelo, porque o calor, aquela
chama, está no corpo, e ele vem do lado escuro. Se ela tentasse ser
maravilhosa e perfeita, sua sombra conteria as chamas do inferno, mas ela
mesma não as conteria. Ela seria um puro bloco de gelo, ela teria um coração
vermelho-ardente dentro, mas seu calor não atingiria ninguém. E os raios
quentes do coração de alguém mais, teriam que passar através do gelo para
alcançar o dela, mas o gelo os aniquilaria, eles se extinguiriam
completamente. A existência de um coração no gelo nada significa, ele tem
que chegar ao próximo.

Ideais são adequados e maravilhosos, mas eles podem transformar uma pessoa
em um fantasma abstrato que não emana qualquer calor... Uma gota de fogo
do inferno é absolutamente indicada. Ela está sempre lá, mas se alguém
negligencia o corpo, negligencia aquela gota de fogo do inferno, e ela não
funciona.

Isto não é invenção minha, a idéia vem de uma antiga lenda judaica sobre
Jezer Horra que é o espírito mau da paixão. A história é que havia um homem
muito sábio e piedoso, que percebeu que todos os pecados do mundo eram
causados por esse espírito mau. Então, sendo um homem piedoso e portanto
em muito bons termos com Deus, subiu ao telhado de sua casa, certa noite, e
implorou a Deus que removesse do mundo o mau espírito da paixão. Deus
atendeu seu pedido e o homem piedoso agradeceu-Lhe e sentiu-se muito
contente e desceu para o mundo agora redimido do mau espírito. Mas quando
foi ao seu jardim, embora as rosas estivessem belas como sempre, ele não
pode usufruir a beleza e o perfume; elas pareciam muito comuns e seu
perfume de algum modo não era bom. Ele disse a si mesmo: “Deve haver algo
errado comigo,” e lembrou-se de um maravilhoso sinhô velho de sua adega;
então desceu até á para se deliciar com ele, e era o mesmo vinho mas não
tinha sabor, não estimulava. Lembrou-se, então, de que tinha no seu harém
uma bela e jovem esposa e foi até ela e beijou-a, mas sem nenhum prazer. Já
estava desesperado quando lhe ocorreu a idéia de que aquilo podia ter algo a
ver com Jezer Horra. Então ele subiu ao telhado e rogou a Deus, suplicando-
lhe que deixasse Jezer Horra livre de novo no mundo. E já que era um homem
piedoso, Deus libertou o espírito da paixão e desde então ele tem estado no
mundo.
Como vêem, esta é a gota de fogo do inferno, a chama, e sem ela nenhum
gelo pode ser derretido. Não haverá calor, coração não tocará coração, e
nenhum fogo será despertado.
Bem, esta mulher consegue derreter o gelo e ela dá, então, a jóia ao
homem, que a coloca no seu peito. Isto é, o Animus agora atinge o seu
coração, há uma união entre o animus e o sentimento. Ele já não é mais
meramente a função LOGOS, ele contém sentimento, o que é um tremendo
acervo. Porque então, o pensamento da mulher, sua concepção das coisas, não
é mais uma mera abstração; é ajustada e adaptada pelos valores do sentir, o
que corrige os erros do Animus.

 Visão: (continuação): À medida que caminhávamos na escuridão,


vimos perante nós, no céu, as luzes radiantes da aurora boreal.

O que indica isto?

Resposta: A aurora boreal não é, ela mesma, a luz da terra?

Dr. JUNG: Não. Ela é elétrons descendo do espaço. Por isso está estreitamente
ligada com tempestades magnéticas; quando há uma tempestade, muitas vezes
a aurora boreal pode ser vista ao mesmo tempo, mas ela vem realmente dos
espaços cósmicos. Isto calha particularmente bem aqui porque a situação é
agora muito terrena, o LOGOS agora está conectado com o sentimento, com
aquela gota de fogo do inferno no seu coração, e assim ela está inteiramente
na terra e na escuridão. Então, vem a visão da luz dos espaços cósmicos.
Agora, psicologicamente, o que é esta luz?
Resposta: A luz do TAO.

Sugestão: É de novo a constelação de Yang, tendo aceitado o Yin?

Dr. JUNG: Sim. Esta última parte da visão contém um pleno reconhecimento
do Yin, e da psicologia essencial de uma mulher. Então chega o fenômeno
cósmico, em outras palavras, uma iluminação, um esclarecimento que só é
possível quando alguém está nas profundezas da escuridão. Só então pode esta
luz não terrena ser vista. A aurora boreal é particularmente impressiva porque
ocorre nas quase intermináveis noites de inverno das regiões árticas; é um
fenômeno de brilho extraordinário, de beleza quase metafísica, uma luz muito
espiritual e mística.
;

“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE VII

Seminários entre 17 de fevereiro e 9 de março de 1932

SPRING 1966
2

Espírito da Natureza e Espírito Cristão

Hoje iniciamos uma nova série de visões. No começo, ela se encontra de novo
em uma catedral. A aurora boreal preparou o caminho para que o movimento
dessa série começasse num contexto espiritual; uma aparição de cima, já que
ela estava vindo de baixo, onde terminou a última série. Mas que espécie de
espírito esperariam os senhores numa catedral?

Resposta: Um espírito cristão.

Dr. JUNG: Obviamente, e isto não combina com a aurora boreal, que é o
espírito natural, uma espécie cósmica de espírito. Já encontramos este conflito
entre o espírito cósmico da natureza e o espírito cristão. Lembram-se de um
exemplo?

Resposta: PAN.

Dr. JUNG: Sim, o deus PAN é um espírito da natureza, um tipo de filosófico


Deus da natureza. Originalmente ele era uma divindade campestre local... um
Deus dos prados e das florestas... A palavra “pânico” vem de PAN. Ele
andava por aí assobiando ou tocando sua seringe e assustando os pastores. O
medo deles era como o medo da boiada quando “estoura”. Ocasionalmente as
manadas “estouram” sem razão aparente, como se o gado houvesse sido
amedrontado por alguma coisa. Dentro da natureza a mesma coisa acontece
conosco ocasionalmente; subitamente somos apanhados por um terror sem
saber porque. Algumas vezes o lugar é particularmente solitário e sinistro,
3

outras vezes, não podemos explicar porque somos tomados por um medo
animal. É o grande Deus PAN que causa terror, causa pânico. Mais tarde,
através de uma transformação no significado do nome, esse “daimon” da
natureza tornou-se um grande Deus filosófico. A palavra grega PÂS significa
“tudo”, o todo, e PAN, o neutro, significa o universo; este sentido ficou ligado
ao Deus – que se tornou o espírito universal da natureza.

Este espírito da natureza foi confrontado pelo espírito cristão. Os primeiros


cristãos dos primeiros séculos repudiaram a adoração da natureza de qualquer
espécie; a natureza não era para ser contemplada ou admirada. Mas as
religiões antigas adoraram intensamente a natureza, em particular o mitraismo.
Esta é a razão pela qual os “mithraeums” são sempre encontrados em lugares
bonitos – perto de nascentes nas florestas ou em grutas e cavernas naturais....
Era uma bela forma de adoração e o mais tremendo inimigo do cristianismo;
porque o espírito cristão tinha que combater a espontânea alegria que sentimos
na natureza. Os cristãos diziam que esta era a tentação do demônio, que a
beleza natural seduzia os homens para as belezas da carne e os deixavam
obtusos em espírito.

É verdade que o contato com a natureza faz os homens mais ou menos


inconscientes; assim, a esse respeito, a influência da natureza é hostil. Pessoas
primitivas quando expostas a intensas influências naturais, simplesmente,
tornam-se inconscientes. E isto ocorre ainda; as pessoas procuram as florestas
e montanhas, hoje em dia, para tornar-se inconscientes; é um grande alívio
identificar-se com a natureza depois das tensões da vida consciente nas
4

cidades. Mas isto pode ser exagerado e produzir um efeito negativo, pode
deixar as pessoas demais primitivas.

Tenho visto muitos casos em que a influência da natureza teve que ser
combatida, casos de pessoas que estavam sempre evitando certos assuntos e
escapavam para a natureza, esquecendo-se completamente de si mesmas,
usando a natureza como uma espécie de entorpecente. Assim, era no começo
do cristianismo, na Idade Média, e muito mais tarde também. A natureza tinha
que ser amaldiçoada como ímpia para que os homens percebessem o poder e a
importância do espírito. Isto aconteceu porque o grande Deus PAN não estava
realmente morto, o fascínio ainda existia.

Naturalmente, o espírito cristão não deve ser inteiramente rejeitado; quando


um excesso de natureza inunda as pessoas, elas perdem aquilo que os cristãos
ganharam ao repudiá-la. O espírito cristão é a tentativa ocidental – ainda
muito modesta – de negar a carne; é um estágio no caminho que o Oriente
sempre trilhou, em direção à negação da realidade. O argumento do início do
cristianismo era que a carne definha como a grama, enquanto o espírito
continua na eternidade. Este é o começo da idéia de que a realidade não é
aquilo que parece ser, mas uma ilusão.

Nossa paciente sofre o mesmo conflito. Quando se confronta com uma


manifestação natural do espírito, há sempre o perigo de que caia debaixo da
influência de PAN e entre numa condição inconsciente. Este terror pânico da
natureza, podem ver, não vem da própria natureza, mas da natureza do
homem; é o medo de ser dominada pelo inconsciente, o terror de enlouquecer
5

na solidão. Sua visão da aurora boreal era uma manifestação do espírito da


natureza, e se agora ela puder evitar o que poderia ser chamado o aspecto
estético daquele fenômeno, se puder olhá-lo e entendê-lo sem perder-se a si
mesma nele, então ela estará mantendo uma atitude espiritual em relação a ele.
Mas, se a qualidade estética da visão a domina, isto significará que ela perdeu
a consciência e merece cair num pânico; então, ela necessita ser cristã.

Isto explica porque a aurora boreal imediatamente constela o espírito cristão;


uma catedral significa refúgio; lá ela encontra proteção contra os demônios da
natureza. Porque na igreja não se permite nada que seja natural; os animais são
proibidos de entrar nela. Tudo que é usado no ritual tem que ser
desnaturalizado. A água usada na pia batismal, a cera das velas e mesmo o
incenso têm que ser purificados, desnaturalizados antes de serem usados. Esta
desnaturalização das coisas parece ser estranha, mas a natureza humana
necessita-a para chegar a um ponto de vista espiritual. Quando alguém já está
desnaturalizado, entretanto, já não é necessário continuar com isto; então o
problema torna-se semelhante àquele de ensinar um cavalo a viver sem aveia;
quando se consegue ele morre.

Então, a volta à natureza torna-se um problema. Não deveria ser uma


regressão; não se deveria afundar abaixo do conseguimento cristão, do encarar
a carne como ilusória; antes se deveria conservar a visão cristã e usando-a
como salvaguarda, voltar à natureza. De outro modo, se cairia no demonismo
dos tempos primitivos e todo o desenvolvimento subseqüente se reduziria a
nada. Este tem sido o perigo para esta mulher, e por isso ela volta ao problema
da espiritualidade cristã sempre que toca o espírito natural. Mas agora há uma
6

diferença: ela chegou a uma manifestação do espírito natural que está além da
desnaturalização do cristianismo, assim se ela volta agora ao cristianismo, será
uma regressão. E tal regressão, podem estar certos, terá que ser trabalhada de
novo; terá que ser transformada em uma nova tentativa de aproximar-se do
espírito da natureza de um modo consciente.

Do Meu Ventre Faço Nascer o Sofrimento

A visão seguinte conta uma estória muito coerente, por isso apresento-a toda
de uma vez:

 Visão: Eu estava numa catedral. Vi um Cristo escuro sobre o


crucifixo e ao pé do crucifixo a Mãe de Cristo, chorando. Eu disse
a ela: “Porque choras, ó Mater Dolorosa?” Ela respondeu: “Antes
disso ele estava comigo. Agora ele está lá em cima, sobre a cruz.
Algo se partiu entre nós.” Então, tomei-a pela mão e levei-a dali,
dizendo: “Mulher, porque temes ficar só?” Pusemo-nos juntas lá,
olhando o Cristo agonizante que voltou seu rosto para nós e nos
fitou. Então falou, dizendo: “Ó vós ambas que me criastes, olhai-
me agora. Vós me haveis criado só para que fosse crucificado?” Eu
respondi a Cristo: “Sim, do meu ventre faço nascer o sofrimento.
Eu te criarei de novo do meu corpo e outra vez serás crucificado.”.
Ao ouvir estas palavras, os olhos de Cristo se fecharam. Ele voltou
sua cabeça para o outro lado. Então a mãe de Cristo lamentou em
voz alta: “Tu não deves dizer tais palavras.” Ela chamou uma
enorme multidão que se aproximou, ameaçando-me. Cobri meu
7

rosto com um véu e aí da igreja. A multidão irada clamava: “Tu


disseste palavras que ninguém deve dizer.” Eu continuei meu
caminho através das ruas tortuosas da cidade e por fim cheguei às
margens de um rio. Aqui me ajoelhei e erguendo meu véu banhei
meu rosto na água. Um cisne veio até mim e numa cesta vi um
bebê recém-nascido.

Esta visão contém a reconstrução do seu contato com o espírito da natureza.


Nela a regressão é transformada em progresso. Ela está obviamente,
identificada, ou em paralelo com a mãe de Cristo, como se pode ver pelas
palavras: “Pusemo-nos lá, olhando o Cristo agonizante.” Depois ela fala com
Cristo como se fosse a mãe e ele diz:” ... vós ambas mulheres que me
criastes.” Só Maria o criou, mas é como se a paciente fosse uma segunda
Maria, como se ela tivesse sido assimilada à história, e ela lhe responde: “Sim,
do meu ventre faço nascer o sofrimento, eu te criarei de novo...”
Compreendem isso?

Resposta: Seu conflito constela-se entre o espírito e a natureza, porque Maria


é natureza e ela se queixa do início que alguma coisa colocou-se entre ela e
Cristo. E também, o Cristo não é preto?

Dr. JUNG: Ela não disse preto, mas escuro. O Cristo escuro significa obscuro,
baço, referindo-se talvez à antiguidade da madeira eu penso que aqui é melhor
encarar Maria antes no seu significado cristão medieval do que idêntica com a
terra. Como vêem, Maria não concorda com a paciente. Ela diz: “Não devias
pronunciar tais palavras.” Ela chama a multidão ameaçadora e desaprova a
8

paciente, não quer ser identificada com ela. Ela não quer saber que trouxe
Cristo ao mundo só para ser crucificado. Ela o criou supondo que fosse para
uma vida feliz e exitosa, não para uma morte cruel... Em contraste com Maria,
a paciente diz que o criou para o sofrimento e que se ela o fizesse uma
segunda vez, seria de novo para a crucifixão.

Ela parece ser perfeitamente consciente... muito mais consciente do que


Maria... e quase impiedosa, muito sem sentimento. Agora, como
interpretariam isso? O que dizer do modo pelo qual ela toma o lugar de Maria,
como se ela estivesse para criar um Cristo, como se ela própria fosse Maria? ...
Na igreja Católica seria extremamente blasfemo se alguém se identificasse
com Maria.

Sugestão: Não se trata da idéia coletiva sobre mães de que elas devem sofrer?

Dr. JUNG: Que as crianças são sempre filhos da dor, certamente é verdade, é
o eterno destino. O sofrimento do mundo continua através do fato de que mães
têm filhos; cada mulher que tem um filho está continuando o sofrimento do
mundo. É um ponto de vista muito consciente, muito maduro, dizer: Estou
criando esta criança para o sofrimento do mundo...

Comentário: Parece como se ela tivesse assimilado o ponto de vista cristão ou


medieval sobre Maria, como se ela tivesse Maria dentro dela.

Dr. JUNG: Sim, percebemos progresso aqui. Ela obviamente atingiu uma
certa consciência, já que é capaz de dizer: Não há nada particularmente divino
9

em Maria, nós todas somos como Maria, dando à luz filhos que irão sofrer, até
é nosso propósito fazer assim. É melhor supor que se procriará sofrimento do
que a eterna mentira de que todos serão felizes. Uma consciência madura não
pode assumir tal insensatez. Assim, aqui ela toma a iniciativa, ela fala com
Cristo como se ele fosse seu filho e, colocando-se no lugar de Maria, ela
praticamente se coloca no lugar de Cristo. Cristo é o símbolo do homem que
carrega a cruz, que vai para a morte com uma consciência deliberada, uma
clara visão consciente de que as coisas têm que ser como são, e que temos que
aceitar o nosso sofrimento individual. E quando ela diz que o está fazendo
nascer uma segunda vez, isto significa que ela está fazendo assim com a
mesma finalidade; ela está, então, fazendo o que Cristo fez, quando
deliberadamente caminhou para sua morte cruel.

O que está descrito aqui é realmente a assimilação da psicologia cristã


medieval. Isto é, o homem medieval – que hoje ainda vive em grande número
– considerava Cristo o redentor, e pensava na vida de Cristo como um mistério
divino. Mas o homem moderno vê que ela de forma alguma é única, que ela é
a vida humana comum – a vida de uma pessoa que deliberada e
conscientemente aceita seu próprio destino, aceita o que ela é. Todo homem
que aceita seu feitio individual e sua condição individual do mesmo modo
como Cristo o fez, seria irmão de Cristo, seria um Cristo ele mesmo.
Provavelmente ele não seria crucificado. Ele poderia ser enforcado, ser morto
por um tiro, ou morrer de uma doença comum ou algum outro tipo de
sofrimento... Mas ele chegaria ao seu fim asseverando que uma vida como a
dele tinha que ser. E quando ele aceita a si mesmo desta forma, como Cristo
aceitou sua vida, ele desempenha a condição da vida humana. Depois disto o
Cristo (externo) já não é mais necessário para ele. Cristo veio ao mundo para
10

cumprir a vontade do Pai; e na medida em que fez isso, ele é o filho do Pai, ele
é a manifestação visível de Deus, e como tal ele morre. Por isso, aquela alusão
no Novo Testamento “Vós sois deuses.” (João 10:34).

Vejam, Cristo fez tentativas desesperadas para ensinar seus discípulos que eles
não deviam imitá-lo, que eles deviam viver suas próprias vidas, que só então
eles seriam como ele. Mas eles não entenderam: eles o tomaram como Deus, e
sua vida como um mistério divino, o qual eles deixavam para ele muito
alegremente; eles preferiam esconder-se atrás dele, organizar uma igreja onde
tais eventos, como Cristo, nunca aconteceram. Ninguém tentou viver sua
própria vida, como Cristo viveu a sua...

Agora, nesta passagem, torna-se evidente que nossa paciente intuitivamente


atingiu tal maturidade de caráter que pode colocar-se junto da mãe de Deus e
tomar a situação nas suas próprias mãos; ela está suficientemente disposta e
consciente para aceitar os fatos da vida, isto é, que a mulher que tem filhos
decidiu-se a continuar a ilusão e o sofrimento do mundo. E com essa
compreensão ela pode sair da igreja...

Agora temos outra vez o símbolo do véu. Lembram-se que ele apareceu numa
das visões anteriores... Lá o véu cobria a parte posterior de sua cabeça e
destinava-se a cobrir o seu inconsciente. Aqui ela oculta seu rosto, o que
indica que, como um proeminente indivíduo social, ela tem necessidade de
ocultar-se; usar o véu agora tem a ver com a sua renúncia do seu respeitável
papel. Assim, ela sai da igreja e se vê frente à multidão hostil. Naturalmente,
todo aquele que é suficientemente corajoso para viver sua própria vida de um
11

modo individual encontra-se na mesma situação avessa como outras pessoas


semelhantes a Cristo, todos os mártires e santos que foram torturados e mortos
porque estavam em desacordo com o seu meio coletivo.

Em seguida ela chega a um rio, que é natureza, e ajoelha-se junto dele porque
ele agora é um objeto de adoração para ela. Ela está suficientemente
consciente, já sofreu o suficiente, para agüentar a influência da natureza, para
ser capaz de, conscientemente, adorar a natureza. Eu não pretendo com isso
transmitir a impressão de que a paciente atingiu realmente essa tal maturidade;
isto é meramente uma antecipação intuitiva.

Então o cisne aproxima-se dela. O que é o cisne?...

Sugestão: Não é um símbolo de Afrodite?

Dr. JUNG: Nós temos a história escandalosa de Leda, e... o cisne está um
pouquinho ligado com isto... O cisne é uma espécie diferente de espírito, ele
raramente voa, mas prefere viver entre a água e o ar. Assim, é o símbolo dos
dois elementos, alguma coisa entre a água, o inconsciente, e o ar ou a luz da
consciência; ele é mais ctônico do que o pombo. Então, numa cesta, que
aparentemente foi trazida pelo cisne, ela viu um bebê recém-nascido. O que é
isto?

Resposta: Um novo nascimento.


12

Dr. JUNG: Sim, uma nova tentativa, como se ela fosse um bebê recém-
nascido. É como Cristo, sendo de novo erguido, nascido mais uma vez,
quando a voz disse: “Tu és meu Filho; neste dia eu te gerei.” (Hebreus 1:5).

Comentário: O fato de que o cisne traz a criança não é um paralelo com o


Espírito Santo como um pombo?

Dr. JUNG: Sim, na arte medieval o Espírito Santo é muitas vezes representado
como um pombo trazendo o Cristo infante...

Agora espero que a idéia principal desta visão esteja clara porque é de
fundamental importância. Realmente é a continuação lógica da idéia
protestante. Como sabem, a Igreja Protestante, como uma instituição de
intercessão entre o homem e Deus, lenta mas muito decididamente vem se
esfacelando. Ela já está dividida em mais de quatrocentas denominações, e
finalmente cada um será sua própria igreja... Cristo estava sozinho com a
divindade e todo aquele que vive sua vida como Cristo está só com seu Deus,
ele é sua própria igreja.

Pergunta: O que significa o rio na visão?

Dr. JUNG: Um rio sempre significa vida natural, as águas da vida, e atravessar
a correnteza da vida é um motivo muito importante. Em sonhos de pessoas
modernas muitas vezes se encontra o mesmo motivo expressado em outros
símbolos; um fio de alta tensão, por exemplo, em vez da corrente de água...
13

Pergunta: Se uma pessoa assimilou esta corrente de força natural até um certo
ponto – suficiente para alcançar outro estágio de desenvolvimento consciente
– o Senhor diria que ela, então é uma com Deus?

Dr. JUNG: Não, sozinha com Deus.

Pergunta: Mas isto não significa, na realidade, que a pessoa simplesmente


atingiu uma outra camada, ou nível, cercado completamente por uma outra
corrente da qual ela tem que se desidentificar? Ela não é ainda parte de uma
vasta camada de não-entendimento?

Dr. JUNG: Naturalmente. Sempre temos que ser, de outro modo seríamos o
Deus mesmo. A questão é que temos que assimilar a nós mesmos e não
projetar metade de nós mesmos em outras pessoas ou instituições. Certamente,
estamos longe de sermos perfeitos, ou perfeitamente conscientes. E tornando-
nos integrados podemos ser tão inconscientes quanto antes, só que não nos
projetaremos mais; essa é a diferença. Nunca deveríamos pensar do homem
como capaz de atingir a perfeição, ele apenas pode almejar inteireza. E
inteireza seria uma condição necessária e indispensável, se em geral se
levantasse a questão da perfeição. Porque como é possível tornar perfeita uma
coisa que é incompleta? Primeiro temos que torná-la completa, então vemos o
que ela é... então a polimos, se nos sobrou tempo e fôlego... Agora
continuaremos.
14

O Vulcão e o Oásis

 Visão: Eu estava na beira de um vulcão. Olhei dentro da cratera e


vi um mar de fogo fervente. Corpos mortos eram erguidos e caiam
para trás outra vez. Uma grande cruz de fumaça com o símbolo
egípcio da vida acima dela ergueu-se, subiu para o ar e desfez-se.

Agora que o bebê foi trazido a ela na correnteza da vida pelo cisne
(simbolizando o Espírito Santo numa forma natural)... esperaríamos encontrá-
la numa condição redimida. Em vez disso, ela está à beira de um vulcão
prestes a entrar em erupção. Obviamente, é um lugar dos mais perigosos, e
este é um momento bastante crítico. Mas a rápida enantiodromia que ocorre
aqui expressa uma profunda verdade... Como vimos, ela se retirou do seu
mundo coletivo e lá deixou um vácuo. Agora o espaço vazio está sugando
tudo para dentro. É uma catástrofe semelhante a uma explosão...

Esta verdade tem sido reconhecida em muitos lugares sob diferentes formas.
(Há um mito hindu sobre tesouros obtidos do mar). Entre estas está MÂNI,
que significa a jóia em sânscrito. MÂNI é o título de BUDA no budismo
MHAYANA, e a famosa oração tibetana ÔM MÂNI PADME HÛM significa
Ó Jóia no Lótus... Agora, quando a jóia e os outros tesouros são trazidos à
superfície do mito, poder-se-ia supor que tudo estaria certo, mas um veneno
destrutivo emerge do mar e ameaça destruir o mundo. Este é um exemplo
desta rápida enantiodromia... De modo semelhante depois do nascimento de
Apolo, o terrível dragão PYTHON tentou tragá-lo. E Cristo, logo depois de
nascer, por pouco escapou de ser morto no assassinato em massa dos infantes
15

meninos por Herodes. E quando, nas Revelações, a mulher dá à luz um


menino para governar todas as nações, há um dragão esperando para devorá-
lo... Assim, depois do renascimento vem o vácuo, o vazio, desapontamento,
destruição, e a questão é: como lidar com isto. Este é o conteúdo desta visão.
Corpos mortos foram erguidos e de novo caíram para trás; isto é destruição,
pessoas foram mortas.

E então uma cruz aparece na fumaça sobre a cratera. A cruz cristã significa
sacrifício, mas esta é a crux ansata, a cruz com a alça na parte superior, o
símbolo egípcio da vida. Este sinal indica que a cratera não é apenas
destrutiva; a crux ansata, também chamada ankh, sempre denota vida, ou dada
pelos Deuses aos Faraós ou pelos Faraós aos Deuses; há representações de
ambos... A fumaça de um vulcão realmente cria uma tal figura; quando há
bom tempo o ar quente sobe e esfria-se, expandindo-se numa espécie de forma
de cogumelo; se a forma então é um pouco mais abstrata, torna-se a crux
ansata.

Assim, a cratera aqui é a cratera da vida. O sinal mostra que ela não significa
extinção. Esta cratera é como uma pia batismal; é como uma cratera no antigo
sentido místico da palavra, isto é, uma vasilha em que diferentes constituintes
são misturados para criar um novo ser... Seu sentido positivo é a vasilha de
amálgama...

 Visão (cont.): O fogo na cratera extinguiu-se e em vez de fogo eu


vi um lindo oásis verde.
16

Subitamente ocorreu uma completa transformação, outra enantiodromia. O


vulcão destrutivo transforma-se numa bela porção de terra fértil, o verdadeiro
símbolo da vida. Mas o que aconteceu para esta mudança? Tudo que vimos foi
uma cruz de fumaça; mas deve haver uma chave para desvendar esta
misteriosa transformação.

Resposta: Ela não se identificou com a situação, e isto a manteve acima dela.

Dr. JUNG: De outra forma o que poderia ter ocorrido?

Resposta: Ela teria voltado ao inconsciente. Ela teria sido destruída.

Dr. JUNG: Mas como teria sido destruída? De que forma específica?

Resposta: Eça teria enlouquecido, eu penso. Geralmente, quando uma coisa


desaparece em chamas, é um símbolo de insanidade.

Dr. JUNG: Uma psicose pode muito bem ser descrita dessa forma. Num caso
de demência precoce a primeira eclosão da doença está muitas vezes ligada a
visões cósmicas de terremotos e outras coisas que correspondem aos
fenômenos observáveis numa cratera. O paciente pode cair numa tremenda
agitação emocional; as chamas da paixão em explosão são como forças
vulcânicas, como uma lava de fogo fervente, caótica, jorrando das entranhas
da terra. Em termos psicológicos elas seriam a insanidade, uma eclosão de
loucura...
17

A feição esperançosa aqui é que a nossa paciente não se identificou com a


cratera ela mesma não é a cratera nem a cratera está dentro dela; ela está
colocada fora, na beira, e olha para ela. Este destacamento é um sinal de
maturidade nela... Se olharmos para a destruição sem permitir que as nossas
emoções participem nela, de uma forma destacada, podemos ver que isto tem
um lado positivo, que alguma coisa nova pode advir dela. Por esta razão a
cena muda subitamente e torna-se um belo oásis verde.

 Visão (cont.) Desci para dentro da cratera e caminhei por uma


grama verdejante. Vi uma mulher tirando água do poço. Ela usava
na cabeça a jóia de Cibele. Olhou-me e disse: “Tu és uma estranha
aqui”. Eu respondi: “Sim, queres me orientar?” Ela perguntou:
“Terás força para descer bem até o fundo deste poço do qual eu
tirava água?” Vi então que havia degraus que conduziam para
dentro do poço e comecei a descer, cada vez mais para baixo. Por
fim cheguei ao fundo.

O funil da cratera, de onde fogo e fumaça e lava saem, é agora a escavação de


um poço dentro do qual ela pode descer, um lugar de onde se pode tirar água.
E a mulher que ela encontra lá usa a jóia de Cibele – como sabem Cibele era
uma Deusa da Ásia Menor, outra forma de Astarte ou Ishtar, a Deusa do
Amor. E o que é esta jóia?

Resposta: A jóia que estava no gelo, uma jóia vermelha.


18

Dr. Jung: Sim, e aquela era um coração, assim aqui, presumivelmente, é a


mesma coisa, porque o coração é o símbolo do amor, e esta é a jóia de Cibele,
a Deusa do Amor. E a mulher?... Temos que supor, já que ela está usando a
jóia, que ela é, ou a própria Ciblel ou uma suma-sacerdotisa de Cibele;
também ela tem que viver ali por magia – nenhuma pessoa comum poderia
viver num lugar como aquele, que às vezes era um vulcão.

Podemos encontrar uma analogi8a para este simbolismo em “Ela” (“She”) de


H. RIDER HAGGARD. “Ela”, que era a filha de um sacerdote de ISIS,
desceu como uma suma-sacerdotisa a cratera da vida. Lá ela conseguiu
encontrar uma imortalidade relativa permitindo que o pilar (de fogo) da vida
passasse através de seu corpo...

O fato de que ankh, o sinal egípcio da vida, aparece aqui, sugere que a
paciente lembrava-se inconscientemente do simbolismo em “Ela”; mas não é
uma influência direta e inconsciente, está oculta no significado. Esta analogia
indica que a descida para dentro do vulcão não é apenas um mistério de
renascimento psicológico, mas alguma coisa mais, porque relativa
imortalidade significa divindade. Podem lembrar-se que “Ela” muitas vezes
aparece como uma pessoa divina, a despeito de muitos traços mortais de
caráter. Deste modo RIDER HAGGARD imaginava algo como uma Deusa
grega...

As divindades gregas poderiam ser explicadas de ambos os aspectos: elas


eram peculiarmente divinas e ao mesmo tempo peculiarmente humanas. Tal
concepção parece um tanto estranha para nós, mas não era de forma alguma
19

estranha para a antiguidade; há mesmo uma sugestão dela na idéia de Cristo.


Ele foi, de certo modo, um ser humano comum; ele poderia ter tido todas as
imperfeições de um ser humano, e provavelmente as teve, mas de outro lado
ele era um Deus...

Agora nesta visão nos encontramos a mesma curiosa mentalidade. A mulher


que nossa paciente encontra é uma Deusa, ou figura como “Ela”. Isto se deve
ao fato, como eu já disse antes, de que todas essas visões decorrem numa
atmosfera antiga, a atmosfera da qual emergiu o cristianismo; assim, elas de
um lado são cristãs, por outro, pagãs. É como se uma camada da mentalidade
antiga, datando de cerca de 100 a.C. até 100 d.C. estivesse sendo de novo
trazida à superfície; encontramos muitos modos de pensar ou concepções das
coisas tipicamente antigas...

O fato de que essa mulher no fundo da cratera é uma Deusa ou, em todo caso,
uma pessoa de competência e autoridade, prova-o a atitude da paciente. Ela
pede à mulher que a oriente, mostrando que imediatamente reconheceu sua
superioridade, e a mulher responde questionando se ela terá força para descer
ao mais fundo do poço.

Envolvida por uma serpente

Assim agora a paciente descerá de novo ao inconsciente, mas a uma


profundidade ainda maior. Por fim, ela atinge o fundo.
20

 Visão: (cont.) Lá, sobre o chão, eu vi um homem e uma mulher


deitados como se estivessem no útero e em volta deles estava
enrolada uma serpente.

Eu lhes mostrarei o desenho que ela fez disto:

(FIGURA DA PÁG. 136: UM CASAL SENTADO DENTRO DE UM


ÚTERO ENVOLVIDO POR UMA SERPENTE)

Observem a posição embriônica dos corpos. Quem são eles? O que pensam
desta estranha descoberta no fundo do poço?

Resposta: É um renascimento, mais completo. Até agora, ou um menino ou


uma menina renascia, mas aqui é o homem total.

Sugestão: eles poderiam ser SHIVA e SHAKTI. E esta poderia ser a serpente
KUNDALINI antes de elevar-se.

Dr.Jung: Sim, então aquele canal ou escavação que ela desceu seria
SHUSHUNNA, o canal através do qual KUNDALINI se eleva. Aqui temos
um fato muito notável: que ela está descendo. Aqui se vê a tremenda diferença
entre a Índia e o Ocidente... Ela já está em cima, e o que ela tem que assentar
está embaixo, ela tem que descer de lá de cima... Assim, podem ver o grande
erro que as pessoas fazem quando imitam as práticas da Yoga oriental, porque
elas servem uma necessidade que não é a nossa; é o maior erro para nós subir
21

mais e mais alto. O que deveríamos fazer seria estabelecer a conexão entre em
cima e embaixo. Mas nós nos lançamos avidamente à prática da Yoga que,
naturalmente, não funciona... porque a nossa necessidade é justamente o
contrário.... Eu nunca vi um caso (de prática de Yoga) que não fosse aplicada
com o propósito errado de chegar ainda mias para cima – de adquirir mais
poder ou mais controle, ou sobre o próprio corpo, ou sobre outras pessoas ou
sobre o mundo...

No sistema Kundalini o Deus é representado como o linga (representação dos


órgãos genitais masculinos, relacionada a Shiva) fertilizante, envolvido por
Shakti na forma da serpente Kundalini. Mas aqui temos simplesmente um
homem e uma mulher envolvidos por uma serpente e não temos certeza se são
Shiva e Shakti. Vejamos como funciona a serpente. Ela diz:

 Visão: quando eu apareci a serpente veio até mim e disse:


“Também ao redor de ti eu me enrolarei”. Eu disse: “Mas eu estou
só”. Então a serpente envolveu meu corpo e colocou sua cabeça
junto ao meu rosto. Eu vi que ela tinha uma coroa sobre a cabeça e
anéis de ouro em volta do seu corpo. Eu olhei nos olhos da
serpente e colocando os braços em redor dela, disse: “Serpente, tu
és bela para mim.” Então ela dissolveu-se e eu subi de novo.

Isto mostra que o elemento ativo lá embaixo é a serpente; o homem e a mulher


absolutamente não funcionam, eles estão apenas adormecidos. É evidente que
a serpente é divina pelos anéis de ouro e pela coroa. Tais decorações
enfatizam um símbolo, assim esta deve ser uma serpente muito incomum. Ela
22

é a divindade aqui, e o homem e a mulher não têm esta qualidade. Se nós


estivéssemos na Índia, eles seriam Shiva e Shakti, mas já que se trata uma
mente ocidental, eles não são. Aqui a ênfase está na serpente que faz com ela
exatamente o mesmo que o casal. Qual é o sentido disso?

Resposta: Eles não são apenas um exemplo?

Dr. Jung: A paciente diz: “Mas eu estou só”, como se a serpente então fosse
responder: “Oh, bem, neste caso eu não me enrolarei ao redor de ti, porque
faço isso apenas com casais...” Mas vejam bem, a serpente enrola-se ao redor
dela como se ela fosse um casal.

Pergunta: Ela está se enrolando ao redor das partes masculina e feminina dela?
Há sempre essas duas partes para começar e elas estão ainda dentro dela.

Dr. Jung: Podemos super que aquele par estava lá desde o começo dos tempos,
um tipo de símbolo eterno daquilo que a serpente, enrolando-se em redor de
uma imagem de masculino e feminino, realmente significa. Como tal seria
uma sugestão de que a inteireza vem da compreensão pelo enrolar da serpente,
de que masculino e feminino estão unidos formando Um, por aquele abraço.
Isto é nada mais que óbvio, simbolicamente.

Como vêem, a função essencial da cratera, sua qualidade mágica de doar vida,
está expressa na serpente que jaz no fundo dela: quem quer que seja envolvido
pela serpente é tornado inteiro, masculino e feminino juntam-se lá. Alguma
coisa semelhante está indicada em “Ela”, quando AYESHA tenta fazer LEO
23

entrar com ela no pilar de fogo... Também podemos nos lembrar do rito nos
mistérios eleusianos, onde o iniciado tinha que beijar uma serpente; isto
significava uma espécie de união. E havia outro rito representando união ao
qual uma serpente dourada era introduzida pela gola e descia sob as
vestimentas do iniciado, sendo retirada por baixo; isto simbolizava uma
completa penetração pela serpente divina. Supunha-se que o iniciado fora
então criado ou gerado como um homem duas-vezes-nascido e obtinha a
imortalidade...

Assim, essa cerimônia no fundo do poço é a união do divino princípio,


representado pela serpente, com a paciente... Por um momento ela está na
posse de Deus...

Confiando na Serpente

A cerimônia a está fazendo inteira... mas ela mesma não está fazendo nada.
Usualmente ela é bem ativa, mas aqui ela está passiva e a serpente é ativa.

Sugestão: Isto não tem a ver com a aceitação do princípio divino? A parte
adormecida no útero poderia ser conectada com fé no princípio divino. É
possível conectarmos a serpente com o rio da vida?

Dr. Jung: O Senhor está no caminho certo. O ponto particular desse


simbolismo é a atitude passiva dela; ela é equivalente àquele casal,
24

adormecido como se estivesse no útero, indicando que ela se rende


inteiramente ao meio estranho lá de baixo. E quando ela está absolutamente
inativa, o inconsciente assume a atividade – atuando por ela ou sobre ela – e
isto é visto pelo enrolar da serpente em volta dela. Ela aqui submete-se
quietamente ao efeito do inconsciente. Não se esqueçam que esta série de
visões começou com o perigo de psicose: o vulcão, e agora ela está se
entregando completamente às atividades do vulcão. Isto está enfatizado pelo
seu gesto de colocar os braços em volta da serpente e dizer: “Tu és bela para
mim” – não horrenda ou terrífica, mas bela.

Sua aceitação da serpente indica que ela está fazendo amizade com o elemento
que antes ameaçava destruí-la completamente. Quando ela consegue isto,
experimentará um efeito muito peculiar. Por isso mencionei o paralelo com os
mistérios eulesianos, onde o iniciado tinha que beijar a serpente, o que era
asqueroso e terrificante. Isto era feito porque significada união com a serpente
o que por sua vez significava a entrada de Deus. Deus entrava no corpo do
iniciado que então era chamado entheus, significando Deus dentro. Um dos
títulos de DIONISO era ENKOLPIOS, que significa “na vagina”. DIONISO
entra nos iniciados como se ele fosse o falo e cada iniciado uma vagina. Ele
está, então, contido nos iniciados, seus seguidores, e como tal é chamado
ENKOLPIOS.

Desta seqüência podemos ver que a loucura que ameaçava nossa paciente era
na realidade um pânico pela proximidade imediata de Deus... Se alguém se
identifica com tal emoção simplesmente explode em pedaços e a conexão com
Deus não se acaba. Mas se podemos nos destacar deste pânico, se podemos
25

suporta-lo, podemos penetrar nele, e então Deus entra no iniciado. Por isso a
paciente é vista aqui numa atitude passiva, entregando-se completamente e
aceitando a atividade do inconsciente, que se enrola nela como uma serpente.
Isto, em si mesmo, é um momento terrível: nada poderia ser mais terrível do
que ser atacado por uma sucuri – pode-se morrer de medo. E sem erguer um
dedo, ela tem que agüentar aquele momento supremo, quando o próprio medo,
a serpente, enrola-se em volta dela. Agora, se ela é capaz de fazer isso, ela
será capar de suportar o medo, e com isso obter muitas vantagens. Porque é
um momento supremo quando alguém pode suportar a investida de um tal
pânico, e este é o modo como ela poderia ultrapassar o perigo que a ameaçava
no começo. Está claro?

Vejam: se ela fosse capaz de realizar esta visão, ela adquiriria uma espécie de
proteção: qualquer outro poderia se perturbar, mas seria como se a serpente
estivesse enrolada em redor dela e ela nunca mais se perturbaria
profundamente. As coisas poderiam ainda atingi-la, mas ela estaria numa
profundidade mais profunda do que a mais profunda emoção.

 Visão (cont.) Eu subi do poço. O céu ficou escuro, com nuvens


pesadas. Esqueletos a cavalo passaram galopando. (Outra vez uma
espécie de visão louca sugerindo pânico). As nuvens
transformaram-se em fumaça e correntes de água fervendo
começaram a fluir atrás de mim. Eu sabia que a erupção começara
de novo. Tentei escapar da cratera, mas não encontrava caminho
para a margem. Então gritei que estava perdida e que seria
queimada viva. A lua crescente desceu até mim. Agarrei-a com
26

minhas mãos e ela me ergueu. Desci pela encosta do vulcão e


cheguei a uma aldeia no vale. Eu disse às pessoas: “Como chamais
a montanha?” Eles responderam: “A Grande Mãe”. Eu disse: “Mas
a vossa Grande Mãe é uma destruidora”. Eles responderam: “Ela
apenas fumega”. Eu disse: “Vêde, minhas roupas estão
chamuscadas e rasgadas pelo fogo”. Eles responderam: “Mas tu
foste perto demais. Nós só olhamos nossa Grande Mãe aqui de
baixo, do nosso vale”.

Aqui temos uma interpretação do vulcão. Ele é chamado a Grande Mãe, e se


não se chega perto demais, não se é queimado pelo fogo. Nossa paciente
chegou perto demais... Mas podem ver que ela ganhou pela sua experiência
com a serpente: ela está agora, aparentemente, em muitos bons termos com a
lua, então esta a ajuda a sair da situação embaraçosa de estar no fundo de um
vulcão ativo. Mas onde ela conseguiu uma conexão com a lua crescente?

Resposta: com a Deusa no poço.

Dr. Jung: Sim, Cibele é a lua, e o crescente é seu emblema...Que a própria Lua
devesse descer e tirar nossa paciente do perigo é um simbolismo bem
fantástico, mas psicologicamente significa que a sua completa rendição aos
poderes inconscientes os tornou seus amigos: agora o inconsciente funciona de
modo proveitoso e produz um milagre em seu favor. A mente ocidental nunca
aceita a possibilidade de que o inconsciente possa ser outra coisa além de um
terrível estorvo, que ele possa fazer outra coisa além de causar neuroses do
estômago ou do coração, ou trazer sonhos ruins; ela nunca supõe que o
27

inconsciente possa ter uma conduta inteligente... No entanto, é realmente uma


verdade que se alguém melhora seu relacionamento com o inconsciente, ele se
mostra como um poder auxiliar; passa a ter uma atividade própria dele,
fornece sonhos que ajudam, e de vez em quando produz realmente pequenos
milagres.

As pessoas normais

Agora, quem são as pessoas que vivem na vila ao pé da montanha?

Resposta: Aqueles que reprimem suas emoções.

Dr. Jung: Eu não acho que eles reprimem suas emoções, especialmente. Eles
são pessoas muito confiantes que nunca chegam muito perto do fogo, apenas
pessoas comuns para quem o mundo nada significa em particular. Para eles
aquela montanha é inteiramente inofensiva, ela é chamada a Grande Mãe só
por causa da sua forma um tanto massuda; e a atividade vulcânica não tem a
menor importância. É a velha avozinha fumando seu cachimbo. Naturalmente
fica-se queimado chegando muito perto. “Nós nunca vamos lá”. Como vêem,
eles são as pessoas comuns que nada encontram no mundo para se maravilhar,
para eles a história inteira do mundo é uma história “só assim”. Esta paciente
ficou espantada que tais pessoas pudessem existir, que lhes fosse permitido
existir sem ficaram neuróticos. Mas eu me lembro de ter dito a ela: “Você não
deveria se espantar, porque de certo modo você é “diferente”. Diferente de
outras pessoas, está fora da ordem usual, assim tem certas experiências
peculiares: por isso tem que saber mais do interior da montanha”. Outras
28

pessoas não sabem disso porque elas nada encontram em suas vidas que as
force a saber; elas vivem num mundo de todo dia onde nada extraordinário
acontece.

Naturalmente seria perigoso se alguém dissesse: Sim, eu admito que sou


“diferente”, mas sou um “diferente” muito divino. Este seria um grande erro,
porque vivemos nessas vilas de pessoas normais. E mesmo ser um “diferente”
divino não vai vem com a existência comum. Não há absolutamente razão
para qualquer inflação, e é melhor isso longe das pessoas assim chamadas
normais, porque de modo algum seria entendido. Agora chegamos à serie
seguinte de visões:

 Visão: Eu estava à margem da água. Um peixe lançou-se fora da


água aos meus pés. Eu o ergui, pus minha mão na sua boca e de lá
retirei uma pedra preta áspera. Esfreguei a pedra contra o peito e
ela se transformou em âmbar. Dentro do âmbar eu vi um rosto em
sofrimento. Coloquei o âmbar contra o seu seio, por dentro da
roupa e fui embora.

O que é isso? Temos que nos lembrar sempre do fim da visão anterior para ter
uma pista que nos permitirá decifrar a seguinte. Ela acaba de chegar da aldeia
de pessoas normais, onde o mundo é uma história “apenas isto”, e agora está,
provavelmente, bastante perplexa, não sabendo se eles são loucos ou se ela é
louca... Esta é a situação na qual começa a nova fantasia.
29

Comentário: o peixe traz a ela uma pedra que se transformará outra vez em um
jóia e assim ela percebe que ela própria não era uma daquelas pessoas comuns,
que ela com certeza ganhou alguma coisa...

Dr. Jung: Mas que deve ter sido perdida, uma vez que o peixe a trouxe de
volta. Como foi isto perdido?

Resposta: Depois que ela esteve com as pessoas comuns, por certo tempo ela
perdeu sua crença naquelas experiências.

Dr. Jung: Exatamente, foi isto que aconteceu. As pessoas podem ter as mais
extraordinárias experiências no curso da análise, mas quando elas saem para o
mundo, esquecem-se delas. Quanto mais elas se afastam daquela montanha,
menos impressiva ela parece; ela apenas fumega e a experiência é esquecida.
O que eles ganharam é perdido, como o anel de POLYCRATES, que teria
sido perdido no oceano se o peixe não o trouxesse de volta. Sob a influência
desta gente da aldeia, a mulher perdeu sua preciosa experiência, que na
realidade é um tesouro se como tal é conservada na consciência.

Assim ela se coloca, bastante desamparada, às margens das grandes águas, e o


peixe traz a ela, de novo, a jóia. Mas desta vez é uma pedra preta e de forma
alguma se parece com uma jóia; é semelhante a qualquer pedra, ninguém a
teria percebido. Aparentemente, a cor preta vem do vulcão, e ela não nota que
é uma jóia até que a esfregue no seu peito e a imbua com sua libido outra vez;
mas, quando ela começa a perceber o que é, coloca-a contra o coração e a jóia
30

é o coração. Transforma-se numa substância preciosa, âmbar.Em que difere o


âmbar da áspera pedra preta?

Resposta: É transparente, e ocasionalmente pequenas plantas e insetos podem


ser vistos nele, flutuando como na água.

Dr. Jung: Sim, o âmbar é uma substância muito preservativa; as mais tenras
algas e os mais delicados órgãos de insetos microscópicos podem ser
conservados nele. Reminiscências de milhões de anos atrás estão
maravilhosamente preservados no âmbar.

O Âmbar

E aí ela vê a face do sofrimento. O que é isto?

Resposta: A dela mesma.

Dr. Jung: Poderia ser a dela mesma, a lembrança do seu próprio sofrimento.
Vamos ver. Ela diz:

 Visão (cont.) Então eu senti o âmbar pulsando com um forte latejar


e me senti cansada e deitei no chão. Lá o âmbar pulsava como um
grande coração e logo o chão e as árvores ao meu redor pulsavam
também. Comecei a sentir a pulsação por toda a parte.
31

Este âmbar simboliza a jóia vermelha ou o coração que vimos anteriormente


no gelo... Mas é um coração muito peculiar, porque está pulsando não apenas
nela mesma, mas também fora, ele imbui todo o meio ao redor com sua
pulsação... É como se o coração fosse uma parte da natureza: ela não pode
distinguir se o coração ou a natureza inteira está pulsando. É uma espécie de
fenômeno sincronístico.

Sugestão: Não é semelhante ao conceito chinês do TAO, a força vital, a


energia da vida?

Dr. Jung: A realização de TAO tem essa qualidade de estar em relação


sincronística com tudo mais; é como se a mesma corrente de eventos, ou a
mesma corrente de vida, passasse através de tudo, e desse modo tudo tem, por
assim dizer, o mesmo ritmo, o mesmo sentido.

Sugestão: Outra analogia poderia ser o que os maometanos descrevem no


sufismo – uma essência transcendental, uma verdadeira sensação do coração,
na qual toda a realidade exterior está refletida.

Dr. Jung: Sim, é a experiência mística geral, a coincidência da condição


individual com o universo, de modo que os dois se tornam indistinguíveis.
Este momento na visão é como uma realização do TAO.

O simbolismo é bem inusitado; eu nunca vira a experiência expressada nestes


termos, mas é uma excelente maneira de coloca-la. Mas, devem ainda
perceber, a experiência é indescritível, não pode ser definida. TAO é
32

incompreensível. Nem pelo maior esforço de nossas mentes podemos


imaginar uma condição de completa coincidência ou harmonia entre duas
coisas incomensuráveis. Nossa condição subjetiva parece o oposto exato de
uma condição objetiva.

Essa incompreensibilidade de TAO está aliada ao fato de que a mente é


incapaz de esconder, ou a consciência de captar qualquer coisa que não seja
dessemelhante ou não tornada distinta. Somente por meios de discriminação
podemos ser conscientes, ao passo que TAO deveria ser formulado como a
condição das coisas antes da consciência. Assim, falar da consciência de TAO
é paradoxal. TAO é um tipo de semi-consciência – quase inconsciência. Por
isso TAO é o começo das coisas, a mãe de tudo, e também o efeito culminante
de tudo; o começo e o fim. Mas isto é o que nós chamamos o inconsciente,
onde a consciência do ego simplesmente chega a um fim. Não podemos, aqui,
ir mais adiante no sentido de uma tal experiência. Podemos, entretanto,
discutir como uma tal experiência psicológica está conectada com o fluxo das
visões... Seria valioso saber como uma experiência central deste tipo pode ser
efetuada.

Sugestão: Teria sido porque os habitantes da aldeia fizeram-na sentir-se


totalmente só? Estar agora conectada com o universo poderia ser uma
compensação para a sensação de solidão.

Dr. Jung: Isto é verdade. Primeiro, ela foi ameaçada com imediata destruição
pelo vulcão, depois salva de um modo miraculoso... Ela tinha tido uma
tremenda experiência... e o mundo em que ela chegou depreciou-a... Ela saiu
33

do calor para o frio, com absolutamente nada no meio, nenhuma mediação.


Mas aqui ela retira algo da experiência – o âmbar. É tão pequeno que ela pode
esconde-lo no peito e carrega-lo consigo, e mesmo assim, quando ela o
contempla, entra no TAO. O âmbar é a condição do meio, ele simboliza
TAO... Deste lado é um pedaço de âmbar, de outro é o grande mistério... Esse
talismã, ou “lápis” é um emblema feito de material de senso comum
compreensível... Ela pode usá-lo como uma jóia e as pessoas dirão: você tem
aí uma coisa linda. E ela retrucará: Sim, embora na realidade seja uma coisa
muito barata, apenas um pedaço de âmbar... Mas há algo em relação com ele,
que só ela sabe, que terá um efeito mágico sobre ela. Agora, com relação ao
rosto de sofrimento que apareceu no âmbar:

 Visão: (cont.) Senti que tinha que livrar a face de dento do âmbar,
mas não podia.

De onde vem esta face?

Resposta: a feitura de uma tal pedra está sempre conectada com grande
sofrimento.

Dr. Jung: Esta é, realmente, a idéia; ela não pode entrar na posse do “lápis”
sem sofrer. Ele significa individuação, que só pode ser obtida através do
sacrifício. A lembrança do sofrimento torna uma pedra particularmente
preciosa; uma jóia que não carrega a lembrança de muito sofrimento, de
muitos medos, dificilmente tem um valor, porque as coisas boas bem cedo
34

perdem seu brilho, enquanto a lembrança do sofrimento tem um poder muito


mais forte sobre nossas mentes.

O Animus aprisionado

 Visão: (cont.) Muitas serpentes apareceram, olharam para o âmbar


e afastaram-se. Um touro chegou e lambeu o âmbar, mas este
permaneceu o mesmo. Então cortei meu peito e o sangue caiu
sobre o âmbar, que desapareceu. Em seu lugar surgiu um homem
amarrado com correias e atravessado por muitas flechas. Retirei as
flechas tão cuidadosamente quanto podia e livrei-o de suas
amarras.

Então, esta é a face do sofrimento que estava aprisionada na pedra.


Anteriormente, ela derretera o gelo com o calor de seu corpo, e aqui ela segue
o mesmo tipo de atuação, despejando seu sangue sobre o âmbar, o que
significa um sacrifício, para libertar este homem desconhecido de dentro da
pedra. Vejam, quando a pedra foi feita, um homem foi incluído nela – e
lembram-se do homem e da mulher enrolados pela serpente – assim esta é a
sua contraparte masculina, que estava trancada na pedra.

Comentário: É o Animus.

Dr. Jung: E obviamente o Animus positivo, porque ele aparece aqui como uma
absoluta contraparte masculina. Isto também explica o grande sofrimento; o
35

amarramento de sua masculinidade foi que causou o sofrimento. Mas como


aconteceu que seu Animus ficou acorrentado e aprisionado na pedra?

Resposta: O outro lado de sua natureza emergiu, o lado Yin.

Dr. Jung: E isso significou o encarceramento do Animus. Temos que


diferenciar entre os dois aspectos do Animus: na sua forma real ele é um
herói, alguma coisa divina o envolve: mas no caso desta mulher temos que
lidar, usualmente, com uma forma bastante irreal do Animus, um substituto
opinante, porque ela estava tomada por demônios-Animus. Através do
processo de transformação que ocorreu nessas visões, entretanto, sua mente –
o que ela chamava sua mente – tornou-se prisioneira da terra – do feminino,
da mão, do emergente material Yin: assim, seu Animus lentamente foi
suprimido. Ela não mais tinha opiniões sobre as coisas, como pensava que elas
deveriam ser, mas deu à matéria uma oportunidade de falar por si mesma.
Assim, coisas começaram a acontecer a ela, pensamentos vinham a ela... Uma
atitude de animus irreal negativa (como tinha antes) impede uma percepção
acurada de fatos psicológicos: sempre está sendo colocada uma opinião no
lugar da verdadeira percepção... Mas agora ela aprendeu a experienciar as
coisas objetivamente, a ver o que acontece realmente e que havia aprisionado
seu Animus.

O motivo do aprisionamento do Animus tem sua contra-parte no


aprisionamento da Anima, mas naturalmente isto é diferente na medida em
que concerne às emoções e disposições. Quando um homem é capaz de
distinguir entre a situação objetiva e a sua disposição, quando ele não mais
36

permite que sua disposição cegue sua mente, mas pode reconhecer que ela é
característica e deixá-la de lado, este é o começo do aprisionamento da Anima.
Depois de certo tempo ele será capaz de dizer à sua disposição de ânimo:
Você não tem direito de existir, vou colocá-la num tubo de ensaio para
analisá-la. Isto certamente importa num enorme sacrifício... engarrafar a
Anima exige um esforço sobre-humano, então eu reconheço a extraordinária
proeza que é para uma mulher por de lado o Animus... para análise.

Na alquimia o procedimento começa pondo-se algo num tubo de ensaio ou


num caldeirão de modo similar, o Animus ou a Anima é aprisionado com o
propósito de transformação. Este é o verdadeiro processo de sublimação – não
há sublimação do sexo; isto é imaginário – isto é uma transformação, não do
sexo, mas de formas, de experiências. Através do aprisionamento, o Animus é
despojado do seu mundo e passa por uma mudança. Se alguma coisa é
colocada num tubo de ensaio lacrado, as influências externas ficam excluídas;
ela não é perturbada nem perturba seu meio, porque nada pode entrar nem sair
do tubo de ensaio. Quando o Animus não pode sair para a atmosfera, não tem
objeto. E então tem tempo de transformar-se.

Como vêem, nesta transformação é essencial afastar os objetos desses


demônios do Animus ou da Anima. Eles só se interessam pelos objetos
quando permitirmos a nós mesmos sermos auto-indulgentes.
CONCUPISCENTIA é o termo para isso na Igreja – STO. AGOSTINHO
falou sobre ela de modo particularmente forte; (em português a palavra é
também concupiscência), em francês, diz-se CONVOITISE; em alemão
BEGEHRLICHKEIT ou DESIRE em inglês. Neste assunto as grandes
37

religiões se encontram. O fogo desejoso é o elemento que deve ser combatido


no bramanismo, no budismo, no tantrismo, no maniqueísmo, no cristianismo.
Isto é também importante na psicologia.

Quando alguém compraz à desejosidade, quer o desejo se dirija para o céu ou


para o inferno, está dando ao Animus ou à Anima um objeto; eles saem, então,
para o mundo, em vez de manter-se dentro, no seu lugar. O que deveria ser
uma coisa da noite aparece à luz do dia, e aquilo que deveria estar sob os
nossos pés, está no topo da nossa cabeça. Mas se podemos dizer: Sim, eu
desejo isso e tentarei obtê-lo, mas eu não tenho que o ter, se decido renunciar;
então não há chance para o Animus ou a Anima. De outro modo estamos
governados por nossos desejos, estamos possuídos. Uma mulher não pode ser
possuída por um homem real, mas só por causa de uma projeção de Animus;
da mesma maneira um homem pode ser possuído por uma mulher real através
de uma projeção de Anima.

Assim, em resumo, trata-se da nossa própria condição subjetiva, da nossa


complacência com nossos desejos. Mas se colocamos nosso Animus ou
Anima em uma garrafa, estamos livres da possessão, mesmo se passamos por
maus pedaços internamente, porque quando nosso demônio passa por um mau
pedaço, nós também passamos... Certamente ele vai urrar nas nossas
entranhas, mas logo constataremos que era adequado engarrafá-lo. Lentamente
estaremos aquietados e começamos a mudar. Então descobriremos que há uma
pedra crescendo na garrafa, o âmbar ou o lápis. Essa solidificação ou
cristalização significa que a nossa maneira de conduzir a situação tornou-se
habitual; na medida em que o autocontrole ou não-indulgência tornou-se um
38

hábito, é uma pedra. Quanto mais se torna um hábito, mais dura e mais forte
será a pedra. Quando esta atitude torna-se um “fato consumado”, a pedra será
um diamante.

Pergunta: O senhor já viu um tal diamante? Algum paciente já conseguiu este


diamante?

Dr. Jung: O senhor nunca deve fazer tais perguntas. – se já vimos um salvador
ou uma virgem santa. É absolutamente certo que não... mas talvez algum dia
alguém possuirá um diamante. Se alguém fala dessas coisas não a possui; e
quando alguém a possui, porque falar?

Agora o Animus real sai da pedra – e ele não deveria ser engarrafado.
Conservar o Animus num tubo de ensaio é um expediente temporário. Tem
que ser feito até estarmos a salvo, até que nada foi deixado da velha
concupiscentia, ou o espírito mau tomará posse outra vez. Mas estando
suficientemente livres e se a pedra foi feita, podemos tirar o lacre e deixar
aparecer o novo Animus. Então poderemos ver o que ele faz, como se
comporta.

Neste caso, o homem que surge está amarrado com correias e atravessado por
flechas, e isto é bem compreensível, é o resultado do que ela já fez. Ela tinha
que acorrentar o Animus para suprimir suas opinações sobre coisas e descobrir
o que elas realmente eram. Ela tinha que submetê-lo para chegar a uma
experiência imediata. Como vêem, o Animus é como um filme entre a
realidade e a mente de uma mulher...É como uma névoa ante seus olhos... Um
39

esforço enorme... e uma cuidadosa auto-educação sistemática são necessários


para penetrar nesta névoa. A razão pela qual o homem está atravessado por
flechas bem como amarrado com correias, é que as flechas se movem com
rapidez e penetram. Elas são como pensamentos, como feixes de luz ou de
introvisão que atravessam o véu do Animus. Nossa paciente conseguiu, aqui,
penetrar... na miragem entre ela mesma e a realidade – porque este é o
verdadeiro Animus... Ele foi ferido, porque é preciso ser rude com o Animus,
usar a força. Não podemos esquecer que estar possuído pelo Animus ou pela
Anima era a condição original do Homem. Nós estávamos todos possuídos,
éramos todos escravos, e... não sabemos até que ponto somos ainda possuídos;
é provável que nossa libertação seja muito relativa.

Assim, a supressão do Animus ou da Anima é um ato de extrema violência e


crueldade... E, naturalmente, o Animus fica bastante ferido no processo e
posteriormente tem que ser todo recomposto. Por isso ela está retirando as
flechas. Todas aquelas tentativas para submetê-lo, causaram-lhe ferimentos
que devem ser curados. É como se ela agora tivesse que tornar o Animus
consciente do fato de que está curado e diferente.

Depois que ela o libertou de suas amarras:

 Visão: (cont.) Ele fugiu de mim com grande rapidez. Até que
chegou a um enorme precipício. Lá ele gritou como ÍCARO: “Eu
vou voar.” Eu respondi: “E como ÍCARO, serás morto.”
Lentamente e com grande pesar ele voltou para mim e ajoelhou-se
ao meu lado.
40

O Animus tenta retomar sua antiga posição no mundo dos objetos, ele quer
saltar para o espaço outra vez e enchê-lo com ilusões. Ele quer atingir o
impossível, o SOL. Mas ela lhe dia: nem mais uma chance de voares por aí
criando mais ilusões. Nada de opinações aqui. Então ele deita obedientemente
ao lado dela... Este é um grande momento nas suas visões... é um enorme
conseguimento ser capaz de dizer ao Animus: Couche toi... Mas e agora? Qual
é a situação de uma mulher com um Animus obediente, ou de um homem que
controla sua Anima?

Resposta: Têm que assumir total responsabilidade.

Dr. Jung: Exatamente, e ser forçado a assumir a responsabilidade de si mesmo


é uma situação muitíssimo incômoda e aversiva. É disto que se tem medo, por
isso não queremos ver as coisas. É melhor não saber o que se passa no quarto
ao lado, porque assim não somos responsáveis; podemos até enganar a nós
mesmos e dizer que não sabemos porque aconteceu... As pessoas dizem: “Eu
não sabia o que ele ia fazer. Como poderia eu ser responsável?” Naturalmente
elas poderiam saber se quisessem. Mas as coisas parecem tão mais fáceis
quando não se enxerga através delas; elas correm mais ou menos suavemente,
e então se acontece isto ou aquilo, sempre se pode dizer que aconteceu, por
acaso. Mas quando podemos ver, torna-se ao mesmo tempo bastante claro
como preparamos todo o “espetáculo”. Assim, no momento em que o Animus
a obedece, esta mulher tem que assumir responsabilidade; ela tem que viver
com os olhos abertos. Não sabemos quais serão as dificuldades, mas podemos
41

estar certos de que se ela controla seu Animus, ela entrará numa situação
extremamente difícil; ela será testada...

Agora começamos uma nova série de visões.

 Visão: Desci muitos degraus para dentro da terra preta até que, por
fim cheguei a uma catacumba onde jaziam muitos mortos.

Estamos de novo numa viagem HADES adentro. Como emergiu esta situação
da anterior?

Resposta: Não está conectada com o precipício da última visão?

Dr. Jung: O precipício sugere uma descida, uma queda... As tumbas são
HADES, ou o submundo, o lugar das sombras; e HERMES PSICOPOMPO, o
guia das almas, está conduzindo... à morada dos mortos... Em “Ela”, a Anima
mora nas tumbas, cercada por múmias; o corpo do seu anterior amante grego,
KALLIKRATES, mantém “Ela” na tumba. Encontra-se uma idéia similar em
“Atlantide” de BENOIT: ANTINEA, a rainha, vive num lugar onde ela tem
um enorme mausoléu de todos os seus amantes anteriores...

 Visão: (cont.) Passei por eles até que cheguei a um homem morto
cuja carne era vermelha. Ele era muito bonito e pensei que fosse
um índio.
42

Vejam, o outro Animus, o homem amarrado com correias, desapareceu e seu


lugar foi ocupado por esta figura tão diferente: é como se ela retornasse ao
começo de suas visões onde o Pele-Vermelha a cavalo conduziu-a às suas
aventuras iniciatórias. Agora ela o descobre de novo, como uma bela figura
que parece um cadáver, mas cuja carne é vermelha, o que indica que ele está
vivo, embora adormecido. É interessante que ele devesse ressuscitar
justamente quando ela descobre um Animus positivo. Ele a adaptaria ao solo
americano, porque o índio é um Animus positivo, não ofensivo. A realização
dos valores índios por um americano é uma conquista, não uma dependência.
O Pele-Vermelha tem grandes qualidades, a despeito do fato de que é
primitivo. Ser primitivo não é argumento contra ter valores.

Ainda mais, o americano está peculiarmente colocado entre o Ocidente e o


Extremo Oriente, o que confere uma qualidade muito peculiar, especialmente
ao americano ocidental. Quando mais se vai para o Ocidente, mais se encontra
aquele algo indescritível, e quando se depara com um chinês ou alguma coisa
chinesa lá, tem-se uma sensação de que isto se encaixa, de que “combina” de
algum modo. Na Califórnia as condições de vida são tão peculiares, que se
poderia esperar, no decorrer de milhares e milhares de anos, a formação de
uma nova espécie de homem. Eu não me espantaria se a influência do
Extremo Oriente tivesse lá um papel importante. Se não houvesse leis de
imigração (1932), o extremo Ocidente da América seria mongólico. Se alguma
coisa devesse acontecer para a América, se ela devesse talvez cair, certamente
todo aquele lado do país tornar-se-ia mongólico. E isto ocorreria através do
espírito do Extremo Oriente, que seria a mais lógica compensação para o
temperamento e a mentalidade do californiano. A mentalidade americana, em
geral, que se caracteriza por uma incrível extraversão, só pode ser compensada
43

por uma passividade telúrica, e quase apatia, da atitude mental do Oriente. O


americano está realmente pedindo por isto, assim eu não me admiraria nem
um pouco se isto acontecesse.

 Visão: (cont.) Do seu pescoço eu tirei um colar de dentes e


continuei andando com ele na mão.

O que significaria isto?

Resposta: Que ela levou o mana dele, talvez.

Dr. Jung: Sim, dentes são, em geral, amuletos, uma proteção contra o mau
olhado ou “perigos” da alma. Esta é outra variação do tema da jóia.

 Visão: (cont.) Um anão seguiu-me e tentou arrebatar de mim o


colar, mas eu o segurei firmemente. Cheguei a um fogo de chama
azul e segurei os dentes no fogo. Os dentes se transformaram em
jóias vermelho-sangue que queimaram a minha mão.

O anão é uma figura que já encontramos inúmeras vezes. É uma forma


malévola de Animus. Esta é, provavelmente, uma tentativa abortiva (anã) do
Animus de tornar-se negativo e tomar dela o talismã... Vejam, quando um
homem controla sua Anima, ou a mulher o seu Animus, estão fazendo algo
que ninguém antes sonhou fazer; porque a humanidade sempre foi possuída.
Quando alguém se atreve a libertar-se, entra numa nova ordem das coisas, e
44

isto significa um desafio para a ordem antiga, então nem bem se livra ele de
um demônio, já os outros estão contra... tentando trazê-lo de volta ao redil da
Mãe Natureza...

Se um homem faz uma modesta tentativa de controlar sua Anima, ele


imediatamente será forçado para dentro de uma situação onde será tentado até
o limite... e acontece o mesmo com uma mulher; todos os diabos disponíveis
em milhas ao redor farão tudo para chegar até seu Animus. Outra vez é como
seu um vácuo tivesse sido criado e tudo corre para preenchê-lo. Por isso,
pessoas que tentam controlar essas figuras entram em novas situações que
quase as forçam a voltar à condição anterior; isto atua bastante
automaticamente. Então agora, essencialmente porque ela fez uma tentativa
dessas, há a possibilidade de que entre numa situação-teste, em alguma coisa
muito difícil para ela, demais para que ela a carregue.

Porque temos que estar cientes de que nos arriscamos a uma solidão incomum
se controlamos o Animus ou a Anima. Porque cria-se uma participação
mística se não os controlamos; quando alguém permite que uma parte de si
mesmo ande por aí e se projete em outras pessoas, isto dá uma sensação de
estar “conectado”. E a maior parte das conexões no mundo é desse tipo. A
participação mística oferece esta aparência de conexão, que nunca é realmente
uma conexão, um relacionamento; ela apenas dá a sensação de ser uma ovelha
no rebanho. E isto é, certamente, alguma coisa; porque se alguém se
desqualifica como ovelha, estará forçosamente fora do rebanho e terá que
sofrer uma certa solidão. Mas então terá a chance de restabelecer uma
45

conexão, e desta fez ela poderá ser um relacionamento consciente que é muito
mais satisfatório.

A participação mística cria uma peculiar inconsciência; de certa maneira


funciona como uma mãe, sustentando alguém na inconsciência. Algumas
vezes é ótimo, e algumas vezes de forma alguma, mas via de regra, as pessoas
preferem porque o homem “médio” sente medo quando tem que fazer algo
que ele não pode compartilhar com seu mundo; ele tem medo de estar só, de
pensar alguma coisa que outras pessoas não pensam, ou de sentir alguma coisa
que os outros não sentem. Tão logo alguém tenta transcender a consciência
ordinária, entrará em choque com o instinto gregário do ser humano.

Por causa de alguma dificuldade como esta, um índio aparece agora, e não
está completamente vivo. Ele ainda tem a potencialidade da vida, e se assumir
um papel de guia, saberemos que ela desistiu de sua responsabilidade e de
novo está se submetendo ao Animus. Assim, é importante ver o que ocorre em
seguida. Quando ela toma o colar de dentes do pescoço do índio e continua
andando, isto mostra que ela não entra aqui numa regressão, que ela não se
submete ao Animus. Pelo contrário, ela tira dele o talismã.

Este colar de dentes é o poder do Animus; isto é, sua capacidade de “enfiar”


os dentes numa coisa. É uma arma assustadora, mas se ela está a ponto de ser
responsável por si mesma, necessitará dela para dar-lhe a agressividade e a
coragem do Animus. E o que diriam do anão que tentou arrancá-lo de sua
mão?
46

Resposta: Ele seria um dos demônios de que o Senhor falou.

Dr. Jung: Sim... o anão é sempre um poder criativo subalterno no


inconsciente, que pode ser de ajuda e fazer emergir coisas do inconsciente, ou
pode ser prejudicial e surrupiá-las. Então seu efeito é como uma momentânea
eclipse da consciência, durante a qual o poder e a decisão de repente
desaparecem. Isto acontece freqüentemente. Por exemplo, depois de grandes
labutas e deliberações, decidimo-nos sobre alguma coisa e pensamos: Agora
está decidido, então vem um momento de inconsciência e tudo vai embora, tão
de repente como se tivesse sido roubado por um poder maligno... o anão o
surrupiou.

Depois nossa paciente continua dizendo que ela chegou a um fogo com
chamas azuis e que manteve os dentes sobre ele e eles se transformaram em
jóias vermelho-sangue que queimavam suas mãos. Porque ela os manteve no
fogo?

Resposta: Ela os está espiritualizando.

Dr. Jung: A chama azul seria adequada para tal propósito, azul é a cor
geralmente usada para expressar o espírito. Mas porque deveriam os dentes ser
espiritualizados?...

Sugestão: No início o índio a estava guiando, ele possuía o sentimento dela,


ela não o controlava, e isso dava a ele o poder.
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Dr. Jung: Exatamente isso, mas agora ele já não controla seu sentimento. Ela
tem o seu poder – os dentes.

Sugestão: E este é um poder espiritual, diferente de qualquer coisa que ela


tenha tido antes.

Pergunta: Mas porque os dentes se transformam em jóias vermelhas?

Dr. Jung: Isto é o que eu estou perguntando... os dentes certamente significam


sentimento negativo, antes ódio ou hostilidade do que amor; enquanto a jóia
vermelha – que sempre se refere ao coração – significaria amor. Assim, este é
um par-oposto. Poderia ser dito que a agressividade ou hostilidade dos dentes
do Animus transforma-se aqui num sentimento de amor. Mas isto não parece
peculiar?

Comentário: Isto ocorre sempre, se alguém pode suportar o tempo necessário.

Dr. Jung: E muitas vezes, se não suportamos, acontece, e já significa isso!


Quando uma mulher faz um ataque de Animus sobre um homem, isto significa
que o Animus está diligentemente usando todos os argumentos negativos que
estão ao seu alcance contra aquele homem porque ele se tornou extremamente
importante para ela. Revolvam um pouco a coisa, e verão emergir o
sentimento positivo, o coração... Um ataque de Animus é, geralmente, um
substitutivo de um sentimento positivo... Quando uma mulher não assume a
responsabilidade pelo seu sentimento, quando não cuida dele conscientemente,
o Animus o consome e se torna poderoso e poderá devorá-la ou qualquer outra
48

vítima inocente. Mas aqui este sentimento está simbolizado por uma jóia
vermelha, então aí deve haver alguma coisa mais para isto, do que poderia ser
expressado por um quente coração vivo. Para o quê aponta esta jóia?

Pergunta: Trata-se de alguma coisa mais durável e valiosa do que o sentimento


costumeiro?

Pergunta: É como o diamante no centro da mandala oriental?

Dr. Jung: Esta pedra preciosa tem a ver com o centro da mandala; encontra-se
nela, de novo, a idéia do cristal, e desta vez acontece que é vermelho. Uma
gema é uma coisa verdadeiramente imutável, poder-se-ia dizer uma coisa
quase eterna, e sendo semelhante a uma estrela na sua qualidade, é o
equivalente de uma estrela. Assim, refere-se ao centro da mandala, refere-se a
SI-MESMO (SELF), que aqui aparece no sentimento. Naturalmente, quando o
Animus está na posse disto, ele tem um poder quase místico, ele está
circundado pelo tabu de algo quase divino... Se um homem primitivo
transgride seu tabu, ele morrerá; ele se sente tão só e rejeitado que prefere
morrer. Acontece o mesmo com o Animus ou a Anima, eles são tabus
viventes, se nós os violamos, provavelmente nos encontraremos num diabo de
situação cheia de transtornos; necessitamos uma força tremenda para controlar
o Animus e a Anima. Isto explica porque ter a força para fazer isso é
geralmente simbolizado pela posse de um precioso talismã – um feitiço
apotropáico para afastar o mal que resulta da violação do tabu. Depois nossa
paciente disse que as jóias queimavam sua mão. Por que isto?
49

Resposta: Porque há libido demais nelas.

Dr. Jung: Mas dificilmente é possível que sua libido fosse suficiente para
aquecer as jóias ao gosto de queimar sua mão. O corpo não poderia produzir
tanto calor

Pergunta: Não é como as pedras na cidade branca que feriram seus pés?

Dr. Jung: Justamente. Na cidade branca havia tanto resplendor que ela não
podia suportá-lo e agora ela está numa situação semelhante. Estas jóias
vermelhas não são tão insuportavelmente brilhantes como a cidade branca,
mas são tão não naturalmente quentes que são quase mais do que ela pode
lidar... Agora, porque são elas tão quentes? E porque era a cidade tão
resplandecente?

Resposta: Porque um ser humano não pode suportá-lo.

Dr. Jung: Exatamente. Isto não é em si mesmo humano, e assim seres


humanos não podem suportá-lo. Isto explica o tabu; tais tabus existem porque
existem em nós coisas que simplesmente não agüentamos, elas são demais. Eu
conheço pessoas que simplesmente não podem ver certas coisas, porque são
incapazes de suportá-las... e elas não devem vê-las. Há coisas que não
precisam acontecer... Se temos resistências insuperáveis, não devemos tentar
superá-las; poderíamos violar um tabu e não ser capazes de suportar a
realização. Fiquemos com as coisas exeqüíveis. Esta mulher não se forçou a
permanecer na cidade branca. Era melhor para ela voltar, e depois mais tarde,
50

ser conduzida a um outro teste. Aqui temos o teste das jóias vermelhas. Se ela
puder suportá-lo, saberemos que ela pode quebrar o tabu do Animus. Ela
estará em condição de segurar sua própria jóia. Até aqui o Animus tem tido
que carrega-la, ela não podia suportar a dor da queimadura.

Comentário: É difícil saber quando continuar e quando recuar.

Dr. Jung: Não, isso de modo algum é difícil. Eu lhe digo: quando chegamos a
algum lugar próximo deste calor e não podemos toca-lo, simplesmente
viramos as costas, instintivamente. Quando nos deparamos com a coisa
inacessível, sabemos disso... Naturalmente, as pessoas muitas vezes são tão
venturosamente inconscientes, que julgam nunca ter encontrado uma tal coisa,
mas isto é apenas a névoa do Animus. Se elas abrissem um pouquinho os
olhos, saberiam que haviam encontrado o tabu vivente – quer sob a forma de
uma introvisão ou compreensão que teria sido possível, ou como um
sentimento, uma emoção, uma experiência que era intocável.

Comentário: Suponho que a paciente não percebeu que estava diante de um


teste, nesse caso. Mas se ela o tivesse percebido, teria ela que voltar ao
inconsciente para colher mais força para enfrentá-lo?

Dr. Jung: eu não sei qual era a sua situação consciente... Mas se ela tivesse
percebido que isto era um teste, ela certamente teria feito o melhor que
pudesse para agüentá-lo... Se alguém está agarrado à própria vida, se
empenhará mais do que se estiver apenas segurando seu guarda-chuva; se
estamos pendurados à beira do telhado de um edifício de seis andares,
51

encontraremos força adicional para agüentar. Assim, muitas vezes é uma


questão das pessoas perceberem sua situação ou não; se elas percebem a
importância, colocarão todas as suas reservas de força nela. Como podem ver,
a percepção consciente da situação é o seu único recurso...

Comentário: Parece que a sua consciência progrediu.

Dr. Jung: Decididamente. Mesmo que ela não saiba conscientemente o que
está acontecendo nesta visão, a visão mostra que ela adquiriu mais força, mais
consciência como pessoa, porque agora ela leva a coisa adiante. Ela pode
apoiar-se na pedra. Como percebem, estas coisas são muito sutis, mas da
maior importância prática. Elas simbolizam as decisões fundamentais que
ocorrem dentro dos seres humanos – e estas são as decisões importantes.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE VIII

Seminários entre 9 de março a 22 de junho de


1932

SPRING 1967
2

O Velho Sábio e o Anel

Visão: Deparei com um ancião cego que barrava o caminho. Na sua


vestimenta havia dragões chineses. Ele colocou um anel num dedo da minha
mão direita. Olhei o anel e vi escritas nele as palavras: “Esse caminho é para
aqueles que conhecem. Se o violares, conhecerás a morte”. O velho afastou-
se para que eu pudesse passar.

... Este velho com os dragões chineses na sua roupa é, evidentemente, o


arquetípico velho sábio. Ele é presumivelmente, uma figura positiva. O vidente
cego é mitológico; ele é fisicamente cego e, por isso, possui a visão interna...
A razão pela qual o sábio aparece agora é que, conservando a jóia, ela está
quebrando o tabu, ela avança para uma nova esfera de experiência sem as
necessárias compreensão e introvisão... Até então ela estava possuída pelo
Animus e, embora o Animus tenha explorado esta esfera, ela não o havia
feito... Assim agora ela necessita de orientação; ela não pode prosseguir sem
perceber o que está fazendo, sem recorrer à antiga sabedoria do
inconsciente... Ela necessita a mente, não a comum ciência intelectual, mas a
sabedoria das épocas, que é bem diferente... E o velho sábio, ou vidente, é o
clássico exemplo disto... Ele é o indispensável guardião do limiar que ela está
agora atravessando. Então ele colocou um anel no dedo dela. O que significa
isto?

Resposta: Um relacionamento com ela, uma espécie de promessa de que


estará com ela se ela fizer o que for adequado.

Dr. Jung: Sim, um anel sempre significa uma união, assim ela está se
comprometendo quando usa o anel, e ele está transmitindo a ela sabedoria,
desta forma. Sabem, pelos contos de fadas, que muitas vezes a sabedoria é
transmitida na forma de um anel mágico. Há uma estória sobre um Boy (um
tipo de Conde) da Tunísia que certo dia pediu ao Grão Vizir que lhe dissesse a
palavra que muda o prazer em dor e a dor em prazer. Ele disse que mandaria
cortar a cabeça do Vizir se ele não encontrasse a palavra dentro de três dias e
três noites. O Grão Vizir viu-se num tremendo embaraço. Foi à Academia da
Mesquita mais próxima para saber se a palavra era conhecida lá, mas todos
sacudiram a cabeça: era absolutamente desconhecida. Ele foi então para o
3

pátio e perguntou a um marabu (homem santo, sacerdote) que visitava a


cidade. Ele também não conhecia a palavra, mas falou ao Vizir de um outro
marabu que vivia no deserto e que saberia a palavra, se alguém a conhecesse
– só que ele estava a três dias de viagem da Tunísia. O Grão Vizir enviou
mensageiros nos camelos mais velozes que pode encontrar. Eles correram dia
e noite até que chegaram ao marabu que estava sentado diante de sua
cabana. Imediatamente ele disse: “Eu sei porque viestes a mim. Quereis a
palavra para o Boy. Isto é muito fácil”. E removendo do dedo o anel, deu-o
aos mensageiros, dizendo: “Levai este anel ao Grão Vizir para que o dê ao
Boy. Esta é a palavra.” Eles levaram o anel ao Grão Vizir que acordou o Boy
depois da meia-noite do terceiro dia e disse: “Encontrei a palavra. Ela é Tout
passe, tudo passa, tudo muda, tudo está em transição”. Esta é a estória de
um anel que possuía a sabedoria ou a mágica para produzir o efeito que é
necessário.

Tao é o Caminho

Dentro do anel está escrito: “Este é o caminho para aqueles que conhecem”.
O que significa isto na realidade?

Resposta: Este é o caminho da consciência – um fato interessante que a


paciente não sabe. TAO está escrito em hieróglifos cujo significado tem que
ser decifrado; a escrita não é mais do que um sinal, o sentido está na
interpretação. Os ideogramas chineses não têm um sentido absolutamente
definido. O sentido é sempre criado na leitura... O sinal para TAO combina o
sinal para cabeça e para andar (originalmente um pé) e então significa andar
com a cabeça. E em particular no Oriente, isto significa clareza, consciência,
visão; assim TAO significa ser consciente do caminho, o trilhar consciente.
(ideograma TAO) “Este é o caminho para aqueles que conhecem”,
simplesmente significaria TAO. O significado da ultima sentença do velho
sábio. “Se o violares conhecerás a morte” é apresentado de uma bela forma
por LAO-TSE, no Tao teh Ching. Vou ler a tradução de Mrs. SAWYER do
vigésimo aforismo. É a confissão de alguém que quebrou tabus, alguém que
viu atrás do véu. É chamado “Longe da Turba”.
4

Mrs. SAWYER provavelmente utilizou-se da tradução de ERWIN RUSELLE (do


texto original chinês):

Abandona a erudição e assim livras-te de cuidados!

Entre Sim e Sim – na verdade, onde está a diferença?

Entre Bem e Mal onde está a diferença?

O que todos reverenciam não se pode deixar de lado impunemente.

Ó Deserto, não alcancei ainda o teu centro?

Os homens da turba estão radiantes

Como se celebrando uma grande festa,

Como se subindo às alturas da primavera.

Só eu estou vagando, e ainda sem um sinal para minhas ações.

Como um infante que não pode ainda rir!

Um exausto viandante que não tem pousada!

Os homens da turba vivem todos na abundância.

Só eu estou como um desamparado!

Na verdade, tenho o coração de um parvo!

Caos! Ó Caos!

Os homens do mundo são claros, tão claros.

Só eu estou como que turvado!

Os homens do mundo são tão sôfregos de conhecimento,

Só eu sou inútil, como um bom-pra-nada!


5

Só eu sou diferente dos outros homens

Porque preso à mãe todo-doadora.

Apresentamos o mesmo aforismo em uma outra versão, que não é uma


tradução, mas o “repensar” dos originais chineses em termos ocidentais, por
ALEXANDER ULAR:

A razão é o detrimento da vida,

Oposição no desígnio – que tolice!

Oposição no agir – que recurso!

Fazer como todo mundo!... Dever excogitado!

Não! Estultice culposa!

Todo mundo está arrebatado por prazeres fáceis,

Por um feriado festivo, por uma noite de primavera...

Mas eu, ancorado no profundo fluxo do sentir,

Sou sereno e feliz como o infante,

Vivo e engendro... mais e mais...

Todo mundo almeja tudo, mas eu almejo o nada,

Sou inábil na vida, dispenso objetivos...

Todo mundo sabe tanto, mas eu tenho só a mente perplexa.

Todo mundo está unido, juntos,

Mas eu, ao contrário, gosto das alturas isoladas.

Estou serpenteando como as ondas, vagando sem repouso...


6

Todo mundo experimenta tanto,

Mas eu sou simplório como um parvo!

Sou diferente do todo-mundo,

Mas eu sou EU!

A última linha (da primeira versão) explica o fim da mensagem no anel. A


mãe todo-doadora é TAO e, se violamos o caminho que conhecemos, o
caminho da consciência, estamos pecando contra a mãe todo-doadora. Ele
diz: “Só eu sou diferente dos outros homens, porque prezo a mãe todo-
doadora”. Isto é que o torna diferente. Outras pessoas têm suas metas
pessoais, elas podem servir seus próprios propósitos, mas a meta dele é TAO,
o qual não pode ser violado. Tendo transgredido todos os tabus, ele deve
agora seguir seu próprio caminho, e se ele violar seu próprio caminho ele
mata a única coisa pela qual ele pode viver.

Entendem isto? Ele não pode viver por nenhum outro tabu. Como vêem, tabus
são modos de viver. Pessoas que estão sob um tabu podem viver de acordo
com as linhas prescritas pelo tabu, mas uma vez que o transgridem só podem
viver de acordo com as suas consciências. E se violam este caminho, estão
completamente perdidas, porque então terão violado o inconsciente, a mãe
todo-doadora e, depois disso, nada mais lhes resta... Como podem ver, a mãe
todo-doadora era o tabu de LAO-TSÉ. Agora, como poderia esta paciente
violar seu próprio caminho?

Resposta: Voltando à multidão, ao rebanho, novamente.

Dr. Jung: Sim, a coisa mais comum é que a pessoa se sente mais ou menos
no deserto, em absoluta desolação, e então volta para a multidão, perdendo a
compreensão do TAO. Isto é fatal, é aquilo que não se deve fazer. Porque
então se perde o grande valor que uma vez foi tocado, e se alguém perde
isso, alguma coisa muito ruim acontece, alguma coisa destrutiva. Com
freqüência tem os mais destrutivos efeitos sobre a saúde também.
7

Sem falar dos casos que vi na minha prática, temos o famoso exemplo
histórico de ANGELUS SILESIUS, o poeta místico do séc. XVII, que já
mencionei várias vezes. Ele era um protestante, e como um protestante ele
concebeu a série de poemas místicos que compõem seu belíssimo livro “Der
Cherubinische Wanderamann” (O Andarilho Angelical). Neste livro ele quebrou
os tabus da sua época, ele criou uma inteiramente nova compreensão da
relação do homem com Deus... indo além do protestantismo para uma
compreensão quase psicológica da experiência mística. Mas isto estava muito
à frente do seu tempo... Ele se viu sozinho no deserto e aí perdeu a coragem.
Sentindo uma muito natural necessidade humana de companhia, buscou isto
no passado (da Igreja). Porque no futuro nada se vê, não vemos ossos amigos
no futuro, ou nossos companheiros espirituais: só podemos vê-los no passado
– atrás de nós. Assim, ANGELUS SILESIUS converteu-se do protestantismo
para o catolicismo, e teve então uma terrível neurose, perdendo por completo
seu dom poético. Ele escreveu cinqüenta e duas polêmicas venenosas contra o
protestantismo e morreu miseravelmente num monastério. Como podem ver
ele foi um homem que se voltou contra o TAO. Ele deveria ter tido a coragem
de sustentar seu isolamento sob todas as condições; tendo tocado uma coisa
tão preciosa, deveria ter permanecido na solidão que estava designada. Todo
aquele que chega a tocar um tesouro como este está forçado a uma certa
solidão.

Isto explica as palavras do anel: “Se o violares conhecerás a morte”. Tendo


compreendido seu significado, esta mulher vai adiante e o velho com roupas
chinesas, que é talvez um sábio como LAO-TSÉ, coloca-se ao lado no
caminho.

Caem as estrelas

 Visão: Entrei num quarto. No centro do quarto elevou-se um


grande fogo. Ele atingiu o céu e derretia muitas estrelas que
caíram no fogo. Eu passei através do fogo e cheguei a um jardim.
Andei por um caminho até que cheguei a uma poça.
8

Dr. Jung: Vêem alguma conexão aqui?

Resposta: O fogo.

Dr. Jung: Sim, nós já o encontramos na cratera. Era uma antecipação. Agora
ela tem que passar através do fogo como uma purificação; o fogo significa
uma grande eclosão de paixão que ela tem temido... Porque o fogo da paixão
pertence à natureza animal... Qualquer coisa com a qualidade da intensidade
animal, ou da rapidez, ou da impulsividade é expressa metaforicamente pelo
fogo... e passar através do fogo é o símbolo do superá-lo; não se extingue o
fogo, porque ele não pode ser extinto, mas agüenta-se a provação. Esta é a
razão pela qual certas seitas hindus secretas valorizam a arte de caminhar
sobre brasas incandescentes sem se queimar. É uma aplicação concreta deste
simbolismo... Também DANTE teve que atravessar o fogo para queimar os
últimos resíduos do amor terreno; só então ele pode entrar no céu. Assim,
este fogo é uma explosão de paixão, da mais indomada concupiscentia, e isto
fará descer sobre ela a lei eterna. Então ela encontrará seu destino, então ela
estará no seu próprio lugar, ela será exatamente aquilo que está destinada a
ser. Concupiscentia é a expressão do Si-Mesmo (SELF) enquanto estamos na
consciência do Ego.

Pergunta: Mas por que estas chamas podem atingir as estrelas e trazê-las
para baixo? As estrelas deveriam estar fora do alcance da concupiscentia.

Dr. Jung: É verdade. Elas estão acima da nossa concupiscentia. Mas elas são a
consumação daquele fogo...

 Visão: (cont.) Andei por um caminho e cheguei a uma poça.

O que é isto?

Resposta: Um mandala.

Dr. Jung: Sim, é como um mandala oriental. No centro há uma poça, que
poderia ser o disco de ouro, o grande vazio, a vesícula germinal, o lugar do
9

renascimento, ou a fonte. Assim, este fogo que derrete as estrelas e as faz


cair é, na realidade, o fogo ao redor do mandala, ao redor do SELF. Jóias
vermelhas (como as que ela está carregando) emergem da terra, do corpo,
por assim dizer. Primeiro (na sua visão da festa de sacrifício dos peles-
vermelhas) eram mesmo as entranhas da ovelha; os índios untaram-se com o
sangue da ovelha, depois retiraram as entranhas, que tornaram jóias. Assim,
as jóias se originam nas entranhas, elas vêm de baixo, da terra, e as estrelas
estão acima... Ainda, como eu disse a jóia está simbolicamente conectada ao
fogo, a idéia de uma pedra preciosa é a idéia de uma estrela... O fogo que
purificou as jóias (fazendo-as emergir dos dentes primitivos) também derrete
as estrelas e as traz para baixo... É como se ela estivesse recebendo de volta
o que havia projetado nelas... Porque se as estrelas parecem ter qualidades
que se coadunam com a nossa psicologia, é porque a astrologia foi,
originalmente, a projeção da psicologia inconsciente do homem nas estrelas...

Vi certa vez uma mandala que sugeria isso. A figura do paciente estava no
centro, e caiam estrelas no centro, também, significando que mesmo as
estrelas são constituintes do SI-MESMO. Este pensamento é muito difícil
porque tem a ver com as correspondências cósmicas do homem, uma idéia
inteiramente não científica, saída do inconsciente... Ainda assim, a idéia de
almas transformando-se em estrelas, ou descendo de estrelas, é muito antiga.
A estrela de Belém era a alma de CRISTO que desceu sobre a terra. Outra
idéia bem conhecida que para nós parece quase infantil, era que depois da
morte as almas viajavam para suas estrelas, que elas eram então como
estrelas...

E assim, o símbolo de estrelas que caem tem o eterno sentido da alma do


homem descendo. A estrela que apareceu no nascimento de CRISTO
anunciava um fenômeno cósmico. Uma alma cósmica havia descido; em
outras palavras, um homem que estava consciente do seu destino cósmico,
que entendeu que sua vida era absolutamente regulada e ancorada na lei –
que era uma expressão absoluta dos mandados do céu. O chinês chamaria
esta vida uma expressão do TAO. Porque TAO é a condição que estão em
sintonia com os desígnios do céu, uma completa expressão da ordem que
regula céu e terra. Assim, quando alguém cria alguma coisa que é certa,
10

deveria estar consciente de que ela está imbuída com as estrelas... Vejam:
isto carrega aquilo que é chamado o aspecto eterno, o encarar as coisas sub
specie aeternitatis; encaramos, então, a vida humana, não na sua perspectiva
pessoal comum, mas na perspectiva impessoal de um decurso cósmico...

Regressão e uma Nova Tentativa

[Ocorre agora uma regressão. Em vez de oferecer o colar inteiro de jóias –


sua individualidade total – à poça no centro da mandala, e que é um símbolo
de renascimento, ela joga apenas uma jóia, para esfriá-la. Isto é errado: não
é o bastante. O inconsciente volta-se contra ela, e mãos emergem da poça
para puxá-la. Assustada, ela foge e joga ao mar o resto do colar, isto é, ao
inconsciente coletivo. Mais tarde as ondas o devolvem para ela. Ela o apanha
e continua. Muitos animais a seguem e as árvores inclinam-se diante dela.
Finalmente ela estende o colar perante uma estátua chinesa e deita-se para
dormir. DR. JUNG aponta que, embora ela tenha de novo o colar, a dificuldade
é que ela não o mereceu, ela não conseguiu suportar o calor. Lançando a jóia
ao mar, ela a esfriou, mas ao mesmo tempo o contato com o inconsciente
coletivo dissolveu sua individualidade. Como mostra o comportamento dos
animais e das árvores, ela está de novo reduzida à participação mística com
eles. Quanto à estátua chinesa, seu significado aqui é negativo.] Editor.

Uma estátua chinesa, no caso dela, representaria a filosofia chinesa.


Lembram-se... uma vez, antes, um sábio chinês apareceu quando ela estava
perdendo o fio... Ela agora está no caminho coletivo, onde quando alguém não
sabe o que fazer, é preciso aderir a alguma coisa como yoga – fazer exercícios
respiratórios e aprender a sentar-se de modo especial – na esperança secreta
de encontrar um truque que funcione. Provavelmente ela está se escudando
atrás do TAO TEH CHING, substituindo a sua própria tolice ou incapacidade
pela sabedoria do Oriente. Isto é de novo – numa forma levemente mitigada –
uma concessão ao ponto de vista medieval: Não carregues teu fardo; joga-o
sobre a Igreja; Deixa que eles se preocupem com os teus pecados. Cristo já
fez alguma coisa por ti e ele fará mais. Como vêem, este é o ponto de vista
medieval, uma declaração da mais completa impotência moral, e isto é de
11

certo modo o mesmo... No fim ela se deita para dormir. Isto indica que todo o
seu recente desenvolvimento está se esvaecendo, tornando-se inconsciente. É
um fim bem negativo de uma visão que começou de modo tão esperançoso...
Na visão seguinte, veremos uma tentativa semelhante outra vez, sob
diferentes condições.

 Visão: Parei diante de um templo branco. Através da porta eu


pude ver... o fogo sacrificial.

Observem o fogo sacrificial... a situação demandava seu sacrifício


incondicional e foi isto que ela evitou antes. E o templo branco é, de novo, a
cidade branca, ou o centro dela. Os templos são muitas vezes construídos
como mandalas: o famoso Borobodur em Java, por exemplo. Todos os
templos circulares da antiguidade e dos primórdios do cristianismo têm a
qualidade de mandalas. Assim, este templo é o mesmo que a cidade branca
ou a poça...

 Visão: (cont.) Apareceu um sacerdote. Ele colocou-se nos


degraus do templo lê chamou em voz alta: “Sê bem vinda, a
palavra será proferida por línguas de fogo.”

O que é isto?

Resposta: O reavivamento do Animus.

Dr. Jung: Sim, o sacerdote é o Animus... E aqui ele faz uma proclamação
pentecostal. Ele desempenha um papel importante... tendo se tornado de
novo poderoso pela posse do tesouro que caiu no inconsciente coletivo.
Porque o tesouro é poder... no sentido de que representa a força instintual do
inconsciente coletivo.

 Visão: (cont.) Ele desceu os degraus e voltou-se de um modo que


encarou o templo. Saíram então do templo muitos jovens, belos e
fortes. (Uma horda de Animus! E todos, naturalmente, com um
toque erótico). Cada homem conduzia pela mão um pequeno
anão aleijado. O sacerdote disse: “Que os mortos retornem para
os mortos.”
12

Esta é uma situação enigmática. Como podem ver, o Animus aparece em


grande forma, no papel de sumo sacerdote... Ainda assim, o resultado não é
favorável ou negativo: é antes bom. A atividade está no lado interno e isto
parece ser propício; o sacerdote é o mediador entre o inconsciente coletivo –
assim poderíamos chamar o templo – e a paciente. O templo é equivalente à
mandala. É como se ele estivesse negociando novas conexões com a mandala.
Talvez ele ensine a esta mulher o que ela deve fazer para voltar ao jogo que
ela perdeu anteriormente...

Agora, o que dizer do grupo de belos jovens, cada um conduzindo um anão


aleijado? Quando pares opostos aparecem juntos são como fogo e água; ou
uma imediata colisão, uma tremenda catástrofe ocorre ou eles meramente
contra-agem um ao outro. Aqui está claro que os jovens estão impedidos
pelos anões que são os seus opostos. Cada um desses heróis seja impedido
por um anão aleijado é uma espécie de criticismo; significa que esta forma de
Animus está agora controlada. Nas visões anteriores os grupos de homens –
como os soldados em marcha, por exemplo, ou os jovens na visão do templo
subterrâneo da Grande Mãe – eram belos heróis, mas estavam desimpedidos,
não tinham anões com eles. Aqueles heróis Animus eram válidos, então, eles
existiam, mas aqui eles estão controlados pelos seus opostos. Isto significa
que a forma “herói” do Animus agora é ineficiente, ela não funcionará mais.
Mas estes jovens saem do templo, então têm algo a ver com a questão da
individuação... Antes de poder tomar posse de sua jóia, eles têm que aparecer
(e os anões também, já que o Animus consiste também em pares de
opostos); de outro modo, o Animus ocuparia o lugar central.

 Visão: (cont.) Quando os homens ouviram isso eles jogaram os


anões em uma cova no chão e os cobriram com terra.

Lembram-se do que disse o sacerdote: “Que os mortos retornem para os


mortos”. Obviamente, isto se refere aos anões, porque imediatamente depois,
os jovens enterraram vivos os anões. Assim, os pares-opostos que estavam
juntos, separaram-se, a parte que paralisaria os heróicos jovens está
enterrada; ou o modo de ser deles fiaria completamente mutilado. E temos
que supor – já que o Animus até agora teve uma parte muito importante
13

como psicopompo – que o sumo sacerdote, advertindo-os para que se


separassem, os adverte para o próprio bem deles, e não os está enganando...

Pergunta: Estão eles sendo separados para renovar sua atividade?

Dr. Jung: Sim, para que possam atuar de novo... Penso que terem estado
juntos no templo refere-se à mesma coisa que a estátua chinesa na última
visão. A paciente sabia que a principal idéia na filosofia chinesa era a união de
pares de opostos. Ela disse a si mesma: “O alto é edificado sobre o baixo. O
direito é tão bom quanto o esquerdo. A noite é dia e o dia é noite”. Ela tomou
este ponto de vista e ele provou ser um ponto de vista de Animus, porque foi
meramente adotado. Tal colocação tem que ser adquirida por experiência, e
isto significa fogo e dor. Não pode haver fogo, nem sofrimento, se os pares de
opostos estão unidos. Quando conseguem legitimamente juntar os opostos,
chega-se de uma vez a um nível onde não há dia nem noite, onde tudo é
relativo, nem isto nem aquilo. É o estado que os hindus chamam ananda, a
consciência na bem-aventurança, a condição de BRAHMAN. Mas ela não a
mereceu, na realidade ela se apavorou com ela. Assim, os pares-opostos têm
que ser separados, para que a batalha possa começar outra vez.

 Visão: (cont.) Os homens feriram-se com facas e deixaram o


sangue cair sobre a terra. Depois que eles fizeram isso, a terra
abriu-se e um grande escaravelho verde apareceu sobre o túmulo
dos anões.

Aqui o Animus está realizando, como se numa dança cerimonial ou num “rito
de entrada” o que ela mesma deveria fazer... O escaravelho, o khepera,
simbolizou, e ela sabe disso, o renascimento do sol. Verde significa o verdor, a
vegetação, a primavera é um renascimento espiritual. Ainda mais, o
simbolismo do renascimento sempre implica uma nova união dos opostos no
processo de transformação. Mas junta-los numa condição estática é um
compromisso lastimável. Pode-se dizer tristemente: “Infelizmente, sim, preto
é branco e branco é preto”, mas isto produz uma mistura indiferente, uma
parada apática. A união só é correta quando os opostos crescem juntos num
processo vivente. Os jovens aqui quase arruínam a si mesmos, eles se ferem
até que seu sangue jorre sobre a terra; deste modo eles são sacrificados
14

quase tanto quanto os anões enterrados. Assim, os pares-opostos são ambos


feridos, eles perdem sua força e então se unem. Através do sangue sacrificial
que flui de cima sobre os corpos dos anões embaixo, o escaravelho é criado.

O escaravelho é um símbolo da união de opostos, e aqui é um símbolo de


renascimento, efetuado pelo Animus. Isto é como uma cena de mistério, uma
antecipação do que deveria acontecer. É como se o inconsciente dissesse a
esta mulher: “O que eu estou te mostrando é realmente um mistério de
renascimento, significa vida, mas não como tu a entendes; a visão diz que
fugiste do mistério do renascimento porque o entendeste mal. Pensaste que
dor e fogo não deveriam ser, e assim enganaste a ti mesma. O que está
sendo realizado perante os teus olhos é o que deveria ser”.

Aqui um símbolo de vida foi criado que é também um símbolo de


reconciliação. Muitas vezes pode-se ver a mesma coisa acontecer na análise,
quando um sonho não foi satisfatoriamente interpretado, ou seu sentido não
plenamente percebido. Um paciente pode fazer uma tentativa abortada de
colocar em prática sua compreensão da situação, e desapontar-se com sua
falha, concluindo que estava inteiramente no caminho errado. Então ela pode
dissolver-se de novo na inconsciência, isto é, na coletividade. Mas o Animus
começa a atuar, para mostrar-lhe como voltar, qual o sentido que ela perdeu.
Esta mulher perdeu o banho do renascimento, ela deveria ter agido
diferentemente em relação à poça, e agora o Animus lhe mostra qual deveria
ser sua atitude no caso de que a oportunidade ocorra outra vez. Porque
quando se está pronto, a oportunidade psicológica aproxima-se, e quando
estamos preparados para ela, ela acontece bem naturalmente.

Agora veremos até que ponto ela está em condição de apreender o significado
do escaravelho... Ele representa o renovar da libido, e a questão é qual era
sua atitude em relação a ele. Tomará a libido novamente o seu próprio
caminho como um desempenho do Animus? Ou aparecerá ela mesma em cena
na visão seguinte e continuará sua aventura?
15

Preto e Branco

 Visão: Andei ao longo de um caminho pavimentado com pedras


pretas. Ao meu lado seguia uma corrente de metal derretido.

Sim, ela retomou o caminho. O fato de que esta corrente de metal derretido
corre paralela a ele, significa que agora ela está perto de uma corrente que
poderia ser a corrente da vida. Mas, neste caso, ela é perigosamente quente.
A nova libido está incorporada nesta correnteza derretida que poderia ter
fluido de um corpo cósmico a uma temperatura tremendamente alta.

 Visão: (cont.) Todas as casas eram pretas.

O que indicaria isto?

Comentário: É justamente o oposto da cidade branca. É a cidade preta.

Comentário: Soa como se fosse o inferno.

Dr. Jung: Sim. É o oposto da cidade branca. Está embaixo, na escuridão, no


calor infernal, um lugar sinistro. Poderia ser chamado sombra ou Mônada
individual. Porque o individual não poderia ser uma realidade sem projetar
uma sombra, e este projeta uma sombra tremenda. A cidade branca só pode
existir se há outra cidade embaixo dela, tão preta quanto ela é branca.

 Visão: (cont.) Bati à porta de uma grande casa preta com muitas
bandeiras esvoaçantes... e uma estranha criatura com duas
cabeças de animal abriu-a para mim. Passei através da casa e
cheguei a um jardim além dela.

Talvez este seja um templo, com bandeiras de templo. Não sabemos. Uma
criatura com um corpo humano e duas cabeças de animal sugere,
obviamente, o diabo... Onde estamos nós agora, o que pensam?

Resposta: No inferno.
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Dr. Jung: Mas passamos para um jardim; isto sugere a idéia de Paraíso.
Inferno pode ser a margem do fogo que se tem que atravessar para chegar ao
jardim.

 Visão: (cont.) No centro do jardim erguia-se uma alta coluna


branca...

Porque uma coluna, um símbolo fálico no lugar da poça, que era um símbolo
materno? E poder-se-ia dizer também, que a poça significava uma descida,
era uma cavidade no chão, e a coluna significa uma subida. Porque isto se
elevaria justamente agora?

Resposta: Porque ela está no fundo.

Dr. Jung: Sim. Ela está no fundo do inferno. Ela só pode subir. E porque é
branca a coluna?

Resposta: Em contraste ao preto.

Figura página 153

T’AI CHI (YIN E YANG)

Dr. Jung: É a luz na escuridão do inferno, o princípio oposto. O fato de que ela
está lá, nos dá a chave para saber como é a nossa estrutura interna. Tivemos
uma cidade branca com uma poça preta e agora uma cidade preta com uma
coluna branca. Isto sugere o T’AI CHI, o signo chinês dos dois peixes, um
preto com um centro branco e ou outro branco com um centro preto. Ela
simplesmente cai da condição de um lado para a condição do outro... e a
criatura que abriu a porta para ela parecia ser uma espécie de diabo, ou
elemento ctônico... Devemos entender esta coluna branca como a idéia de
subida, simplesmente. É o Yang no Yin; ela está agora em Yin, e a coluna é
Yang, o poder masculino celestial em contraste com as escuras profundezas
aquosas...
17

 Visão: (cont.) Agora, enquanto ela contempla a coluna branca


aparece uma figura coberta com plantas marinhas e carregando
um tridente. Esta deidade ou demônio da água fala com ela. Ele
diz: “Por esta coluna tu perderás a ti mesma.”

Trata-se obviamente, de um Animus de novo, um psicopompo... Como


explicariam aquilo que disse: “Tu perderás a ti mesma”?

Resposta: Ela tem que desistir de si mesma para encontrar a si mesma, como
deveria ter feito na poça.

Dr. Jung: Exatamente, é a mesma situação de novo. Ela fugiu... ela


simplesmente teve medo da situação, e agora... ela tem que assumir mais
uma vez toda a coisa. A questão de ser capaz de desistir de si mesma
incondicionalmente está mais uma vez colocada diante dela. E seu
psicopompo diz: “Por esta coluna – ou por este princípio – perderás a ti
mesma”. Isto não é voluntário, ele não diz que sob tais e tais condições ela
pode evitá-lo. Isto é como uma profecia, porque ela agora está sob um
princípio diferente. Podem ver, antes ela lidava com o princípio feminino, a
poça, o princípio materno, e devia aceitá-lo. Mas isto é Yang; diferente de Yin,
não está recebendo ou concebendo, não é uma forma côncava; é o princípio
ativo e agora vai conduzi-la. Ela poderia ter aceito o outro, mas ela o negou.
Então chega Yang e ela entra numa confusão...

 Visão: Eu estava junto ao mar e olhava para o horizonte. Um


navio apareceu e veio na minha direção.

O mar é sempre o símbolo do inconsciente coletivo, e estar à beira-mar é uma


situação simbólica que ocorre frequentemente em sonhos ou visões. Indica
que alguém está, por assim dizer, na “orla” do mundo consciente... que está
olhando a superfície de uma profundidade imensa na qual estão contidos
todos os tipos de formas misteriosas. Colocando-se lá olhando à distância ou
para dentro do mar, ela naturalmente espera que alguma coisa aconteça ou
apareça, e psicologicamente esta espécie de olhar ativa a situação; alguma
coisa parece emanar do olho espiritual e ativa o objeto da visão.
18

O verbo inglês “to look at” não transmite esta idéia esta idéia, mas o alemão
corresponde, “betrachten”, também quer dizer “tornar prenhe”. “Trächtig”
significa estar “prenhe”, “carregar crianças”, mas só é usado para animais,
não para seres humanos. Assim, olhar par ou concentrar-se num objeto
transmite para ele a qualidade da prenhez. E se está prenhe, está vivo,
produz, multiplica. Este é o caso com qualquer imagem fantasiosa. Concentra-
se nela, depois já é difícil conserva-la quieta; ela fica inquieta, altera-se,
alguma coisa se acrescenta a ela ou ela se multiplica; a pessoa a imbui com
poder vivente e ela torna-se prenhe... Mesmo seres humanos se comportam
assim... Se queremos saber algo de um paciente devemos olhá-los
firmemente. Então ele pensa que sabemos tudo sobre ele, embora não
saibamos nada.

Quando esta mulher olha para o mar... é como se o germe de alguma coisa
latente no inconsciente aparecesse quando ela o fita intensamente. Ela
simplesmente olha dentro do espaço vazio – isto é, dentro daquilo que é
chamado inconsciente – e aparece o navio.

O Self (Si - Mesmo) escuro nas Profundezas

 Visão: (cont.) As velas do navio eram pretas e em cada vela


havia um anel de ouro. Na proa do navio estava a imagem de
uma mulher, em madeira.

Que cena dramática sugere a vela preta?

Resposta: TRISTÃO esperando ISOLDA.

Dr. Jung: Sim, e lá a vela preta era um augúrio sinistro, significava morte, a
morte de TRISTÃO. Ele esperava em vão. “Tristão e Isolda” é a história de um
grande amor, por isso os anéis; um anel sempre indica uma união. A figura na
proa enfatiza o fato de que o navio é feminino – a figura de uma mulher na
proa é freqüente – mas aqui o navio é uma mulher com velas pretas. O que
sugere isto?
19

Resposta: A Anima preta, mas uma mulher não devia ter uma Anima.

Dr. Jung: No caso de um homem seria uma Anima preta; na realidade, aquele
navio estava trazendo ISOLDA; que era a Anima de TRISTÃO, apenas as velas
pretas a ocultavam. Mas já que uma mulher não tem uma Anima, aqui é a
parte “sombra” da paciente. Seria natural para tal navio vir do inconsciente,
porque a cidade preta da visão anterior significava o Self preto nas
profundezas. Assim, logo que ela olha para dentro do inconsciente, ela vê
assomar este navio.

 Visão: (Cont.) Desci para o navio e entrei num quarto forrado de


azul.

Aqui ela desce para o âmago da escuridão... Para as entranhas do navio e


entra num quarto forrado de azul... Este azul refere-se à água ou ao ar, já
que camadas de ar são sempre azuis como a água. Por isso simboliza intuição,
ou mente ou espírito – alguma coisa mais ou menos mental em oposição à
dura, pesada matéria... O significado original da palavra spiritus era alento...
o espírito era um corpo sutil, ou um sopro de vento, uma expiração de ar.
Assim o azul aqui se refere a alguma coisa espiritual no amplo sentido original
da palavra. Mas descer para o âmago da escuridão significaria descer para a
negritude, para a matéria, tudo que contrasta com a luz. Como explicam a
presença de um quarto azul lá embaixo?

Resposta: Seria outra vez como o Yang e o Yin no símbolo chinês, o T’Ai Chi.

Dr. Jung: Sim, como as duas figuras semelhantes a peixes e com olhos
contrastantes, outra vez... Ao meio-dia, quando o dia está no seu cume, o
germe da escuridão aparece, e similarmente, à meia-noite o germe do novo
dia já começou. Este quarto em que ela entra é o germe da nova luz.

A Serpente no Tapete de Pele

 Visão: (cont.) No centro do quarto havia um tapete branco de


pele e sobre ele, encolhida, uma serpente.
20

O centro do quarto é a sua verdadeira essência, e lá está o tapete branco. Por


que não um tapete comum? Por que de pele?

Resposta: A pele pertenceu a um animal, talvez um urso polar, e um tapete


teria sido feito por um homem.

Dr. Jung: Mas a pele não é um animal vivo, é a pele preparada de um animal.

Sugestão: Poder-se-ia dizer em alemão que ela é abgezogen.

Dr. Jung: Sim, é um animal abstrato, porque a pele foi destacada, retirada.
“Abgezogen” significa alguma coisa “retirada”, mas significa também alguma
coisa destilada ou abstraída.

Pergunta: Poderia ser o animal sacrificado?

Dr. Jung: Bem, é um animal que foi desnaturalizado; ele foi esfolado. Mas
esfolar fazia parte de um famoso rito sacrifical... No México todo ano um
criminoso era esfolado, depois o sacerdote entrava na sua pele para
representar o Deus. Simbolicamente, isto significa que o homem tem que ser
desnaturalizado para chegar a Deus. Desnaturalizar o homem em favor dos
Deuses tem sido sempre uma idéia religiosa. Poder-se-ia dizer que os
monastérios foram grandes instituições esfoladoras e que as práticas ascéticas
dos eremitas cristãos eram tentativas de sair de suas velhas peles – como se
eles fossem lagartas, e esfolando-se, poderiam tornar-se borboletas.

Como disse São Paulo, é a idéia de descartar o velho Adão para revestir-se de
Cristo. Ou como a primitiva idéia africana sobre a chegada da morte ao
mundo; eles pensavam que, originalmente, os seres humanos eram como
serpentes que trocavam suas peles uma vez por ano: mas então uma velha
mulher distraída entrou de novo na sua pele antiga e assim veio a morte ao
mundo. A idéia de esfolar é realmente arquetípica. Assim, o tapete de pele
refere-se, provavelmente ao animal esfolado, significando a consciência
animal que foi transformada numa consciência destacada. Agora, um animal
consciente é uma consciência instintiva, e, portanto compulsória, uma
consciência que é sempre dependente, sempre em participação mística com
as circunstâncias – como a consciência de uma pessoa que não pode imaginar
21

algo além do que está debaixo do seu nariz, que não pode pensar
hipoteticamente ou levantar suposições, que não pode dize o que faria se...

Todas as invenções humanas começaram com alguém dizendo “Como seria


se...” Mesmo os romanos nunca descobriram a máquina a vapor porque eles
simplesmente não podiam pensar “Como seria se...” Eles não podiam abstrair
suas mentes do aspecto meramente ocasional ou belo das coisas. Eles sabiam
tudo que poderia capacitá-los a construir uma máquina a vapor, até tinham
mesmo uma espécie de máquina a vapor, um brinquedo chamado “Bola de
Heron”, mas eles o consideravam apenas divertido e pararam por aí... E,
naturalmente, as pessoas primitivas não podiam de modo algum abstrair suas
mentes, o que explica o fato de que todas as sociedades primitivas são tão
excessivamente conservadoras. Durante milhares de anos nada de novo
aconteceu. Mas no momento em que o homem atingiu o ponto em que pode
perguntar a si mesmo “Como seria se...?”, seus pensamentos tornaram-se
destacados, ele libertou-se da participação mística e começou a experimentar.
A civilização é o resultado deste processo de destacamento no
desenvolvimento da consciência individual, e o processo ainda está em
andamento... Com uma regra, entretanto, estamos ainda tão em participação
mística com as coisas que não vemos as razões para elas...

Agora aqui a paciente está prestes a descobrir alguma coisa que até agora
operou inteiramente no escuro, alguma coisa que pode explicar muitas. Esta é
a serpente enrolada sobre o tapete de pele... A serpente de sangue frio
significa alguma coisa inconsciente. Como um símbolo está localizada (pela
Yoga-Kundalini, por exemplo) na espinha inferior, que é profundamente
inconsciente. Isto faz com que a serpente, muito obviamente, pareça
representar Yin, embora aqui nós a encontremos representando Yang, isto é,
já que ocupa o centro da área Yang na escuridão do navio Yin. Como é
possível isto? Como pode Yang, o brilho e a claridade do dia, em que tudo é
evidente em si mesmo, existir também na escuridão, como um demônio do
sub-mundo, como uma serpente? No entanto é isto que nos está sendo
mostrado aqui.

No início da análise muitas pessoas encaram seus sonhos como uma atividade
imaginativa, sem nenhum real significado. Elas admitem que se pode tirar
22

certas conclusões; um sonho pode, talvez, ser um desejo suprimido da


consciência, mas isto aponta apenas uma espécie de negligência, que alguma
coisa foi deixada cair embaixo da mesa. Seu ponto de vista exclui totalmente
a idéia que o inconsciente possa produzir alguma coisa séria, como um
pensamento consciente. Assim espantam-se quando descobrem que o
inconsciente pode dizer alguma coisa por si mesmo, alguma coisa substancial
que elas não sabiam e da qual nunca haviam ouvido falar antes. Pode ser uma
coisa muito pequena; uma imagem pode apresentar-se a eles enquanto estão
escrevendo uma fantasia, ou uma voz pode fazer-se ouvir dizendo algo
inesperado. Geralmente, este é o ponto decisivo, a experiência que as pega:
elas então percebem que o inconsciente tem uma atividade própria... Até que
isto aconteça, elas tomam a aparência dos fenômenos psicológicos como um
jogo mais ou menos subjetivo de representações, tendo todos uma origem
consciente. Mas com uma experiência dessas eles descobrem o Yang no Yin, e
isto, pode-se dizer, é uma extraordinária experiência espiritual. Ela
demonstra, de um modo absolutamente irrefutável – certamente subjetiva,
não objetivamente – que algo psíquico está vivo dentro delas, alguma coisa
que não é EU, mas AQUILO.

Isto é que torna interessante interpretar e analisar visões como estas, que se
fossem apenas pessoais, seriam insuportavelmente maçantes. Inicialmente,
lendo-as sem qualquer elaboração, é possível ficar impressionado apenas pelo
seu caráter subjetivo, que é fastidioso além de qualquer descrição. Não posso
dizer-lhes como me aborreceram, como as achei desinteressante. Durante
muito tempo elas me enervaram e eu não podia tocá-las... Somente quando
se pode ver atrás do subjetivo e do pessoal nelas, pode-se perceber que estas
visões são uma expressão de um problema muito geral, que elas estão
demonstrando diferentes aspectos do desenvolvimento inconsciente para
trazer esse desenvolvimento um passo à frente, um passo mais perto do
destacamento da consciência...
23

A Serpente como TAO

Pergunta: Gostaria de perguntar se a serpente, que apareceu tantas vezes


nas visões dela, não significa aqui alguma coisa mais do que antes? Ou é
apenas uma repetição?

Dr. Jung: Não é apenas uma repetição, embora tudo que já dissemos sobre a
serpente esteja aqui também, esteja resumido aqui outra vez... A serpente,
como vimos, é geralmente a encarnação do princípio Yin, frio, úmido, escuro e
assim por diante, mas agora nós a encontramos no meio de Yang. Assim,
aqui, a serpente simboliza alguma coisa que é Yin e também Yang. O que é
isto?

Resposta: em Psicologia Analítica é a função transcendente.

Dr. Jung: E na filosofia chinesa é TAO. Em TAO “sim” e “não” são o mesmo;
eles são expressos em um símbolo reconciliador. Aqui o símbolo reconciliador
aparece no inconsciente sob o aspecto negativo da serpente. Isto confirma
uma vez mais o estranho fato de que em Yang as coisas são contra-atuadas
por um princípio que, embora pareça negativo, é mesmo assim na realidade,
de suma importância, porque efetua a união dos opostos – isto é, TAO...

Agora, quando a serpente representa TAO, significa uma particular condição


de TAO. Nos primórdios dos tempos a idéia de TAO derivou de um legendário
princípio feminino, e também de uma espécie de dragão ou serpente, porém
muito mais tarde, aquela idéia original perdeu-se na elaboração filosófica do
conceito de TAO. LAO-TSÉ que viveu no sexto século a.C. falou da natureza
feminina do TAO: ele disse que era a mãe. Ele também chamou TAO de
espírito do vale; por natureza, dizia ele, o TAO é como a água, e seu centro
lembram os meandros serpeantes do rio que flui no fundo do vale. Como a
água, ele disse, TAO sempre buscou o lugar mais profundo e infalivelmente o
encontrou. Isto mostra que a imagem original ainda estava presente em sua
mente. Mas aquele particular conceito de TAO, que pertenceu a um tempo
muito remoto, desapareceu. Agora ele aparece de novo nesta visão. Qual
deve ser a condição de TAO quando ele é representado por uma serpente?

Resposta: inconsciente.
24

Dr. Jung: Sim. A serpente sempre representa uma condição inconsciente...


Nesta paciente, TAO ainda está numa forma inconsciente. Ele é percebido por
uma intuição de longo alcance, mas distante de sua psicologia consciente...
Estas visões são, realmente, antecipações... De coisas que poderiam vir, mas
de modo algum é certo que virão. Ter tal visão é como olhar através de um
telescópio o topo de uma montanha que ainda está tão longe que se teria que
caminhar sessenta quilômetros para chegar mesmo ao seu pé. Aqui ela
evidentemente não percebeu que a serpente tem algum significado especial...

 Visão: (cont.) Tentei encontrar alguém, mas tudo era silencioso e


deserto.

Para ela, este símbolo central tão importante nada mais é do que uma
serpente enrolada sobre um tapete de pele. Ela procura um ser humano e não
o encontrando, diz:

 Visão: (cont.) Aproximei-me da serpente e cutuquei-a. Ela


deslizou dali (ela tinha que fazê-lo!). Ergui o tapete de pele e vi
uma tabuleta gravada, escondida embaixo dele, sobre o chão.

Ela toma este símbolo muito objetivamente, não sabendo quanto é


significante tocar a serpente para longe e descobrir alguma coisa embaixo
dela. Mas isto é o que acontece, em geral, na vida. Se pudéssemos apenas
abrir nossos olhos e ler os sinais que encontramos no começo de nossas
vidas, se pudéssemos parar e contemplar nossos primeiros sonhos, então
poderíamos saber todo o curso do que está para vir. Mas longe disso: nós
chutamos estas coisas, nada entendemos. Mais tarde, se vemos certos sinais
e tentamos de novo, mais lentamente, mais cuidadosamente, entendê-los,
talvez possamos começar pelo fim de nossas vidas, a entender o começo.
Então podemos ver que, se tivéssemos sabido isto e aquilo, tudo teria sido
diferente...
25

Ela tem que seguir a Verdade Menor

No Livro Tibetano dos Mortos está relatado que, imediatamente após a morte,
o morto percebe a Luz Clara, o Corpo Divino de Verdade, o Dharma Kaya. Mas
a luz é tão ofuscante que o homem morto geralmente vira sua cabeça e
procura luzes menores, mas opacas e mais turvas, e estas são as ilusões.
Mas, se ele é capaz de reconhecê-las como ilusões, cada passo que ele dá em
direção a elas, oferece-lhe a possibilidade de voltar para a clara luz branca. De
outra forma, no fim da série de ilusões ele uma vez mais encontra as fantasias
de concepção e renascimento; então desaparece num útero e nascerá outra
vez. Como vêem, é a mesma idéia; se os mortos pudessem apenas apegar-se
à luz perfeita que encontraram no começo, eles se salvariam de todos os
sofrimentos envolvidos num novo nascimento. Da mesma forma poder-se-ia
dizer: se a paciente pudesse apenas entender o significado daquela serpente,
ela não necessitaria ler a tábua, nem precisaria buscar mais. Mas ela joga fora
essa possibilidade, porque é demais, muito difícil, e ela não sabe de forma
alguma o que está enfrentando. Assim, ela tem que seguir a verdade menor.

Isto acontece muitas vezes com pacientes no curso regular da análise. Para
começar eles têm sonhos muito importantes, e se eles pudessem saber, então
o que eles significam, poderiam saber tudo aquilo que estão trabalhando para
encontrar. Mas eles não podem, assim têm que seguir o caminho da ilusão e
tentar verdades menores, até mesmo talvez, erros palpáveis. Em cada estágio
o paciente tem uma chance de ver a ilusão, mas são não a vê, tem que
continuar e continuar mais para baixo no caminho do erro até que encontre
uma verdade menor que ele possa alcanças. Então poderá subir de novo. Mas
a lei sempre se confirma: que no começo está a maior possibilidade e no fim,
a menor.

Evidentemente, ela percebeu que a tabuleta gravada debaixo do tapete de


pele tinha alguma coisa a ver com a serpente, ou a serpente não estaria por
cima dela, o que é um sinal de conexão. Mas ela não o entendeu.

 Visão: (cont.) Sobre a tábua estavam gravados uma esfera, um


compasso e a cabeça de uma mulher com um halo de muitas
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flechas. Eu ergui a tabuleta (que aparentemente servia como


alçapão) e desci para o porão escuro do navio.

Esta tabuleta provavelmente representa uma tentativa de interpretar a


serpente... de substituir TAO por uma verdade menor... Mas ela vai adiante,
direto para baixo, para o porão do navio. Assim, ela segue o caminho que
descrevi: encontrando primeiro a grande verdade, depois a verdade menor e
então a escuridão. Se ela pudesse ter parado na tabuleta, esta poderia ter-lhe
dito o suficiente. O que significa ela?

Resposta: Estes símbolos têm a ver com a navegação, e TAO é o caminho


para navegar; é o caminho da vida.

Dr. Jung: É isto mesmo. TAO é o caminho certo, e conhecer o caminho certo
seria navegar! Em mares desconhecidos encontra-se o caminho certo
calculando a longitude e a latitude, e para isso precisa-se um compasso e uma
esfera. E para encontrar a posição exata de alguém, é necessário ainda algo
mais.

Sugestão: Inteligência.

Dr. Jung: Exatamente, a cabeça. Ela fez um desenho da cabeça, com as


flechas, o halo apontando para ela, não saindo dela. Isto significa atenção
para a cabeça, concentração em cima de intensa consciência. Lembram-se do
ideograma chinês para TAO que é escrito com o sinal para cabeça e o sinal
para andar, o que significa andar com a cabeça, ou ir pelo caminho
consciente... Os chineses são, antes de tudo, um povo da agricultura, assim
eles usam o simbolismo de andar, ou procurar o caminho na terra com os pés.
A paciente, entretanto, tinha ancestrais navegadores; a Europa é um
promontório quase cercado por água, e todos os povos ocidentais descendem
de piratas. Não é espantoso que se inconsciente, seguindo as antigas
tendências do sangue, se expresse em termos de navegação.

Assim, a tabuleta representa o conceito de TAO, como a serpente fez acima.


Isto confirma minha idéia sobre a serpente. Se não entendemos a serpente
com sinal de TAO, então chegamos à verdade menor, que é a explanação
humana de TAO, como está simbolizado no escrito na tabuleta... Mas a
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experiência imediata é superior. Provavelmente, quando se torna necessária


uma explanação secundária, como estes hieróglifos, apenas a superfície é
alcançada e não a coisa mesma... Aquele que conhece TAO por experiência
íntima não necessita uma interpretação... É bem possível que no curso do seu
desenvolvimento ela possa atingir o momento em que TAO já não será
antecipação ou imaginação, mas real. Então, podem estar certos, já não
haverá desenhos nem textos interpretativos... ela saberá isto mas nós não.
LAO TSÉ diz: “Aquele que sabe não fala, aquele que fala não sabe”.

Quando uma explanação secundária é necessária, é como se alguma coisa


vista através de um véu estivesse substituindo a primeira luz ofuscante...
Poder-se-ia dizer que isto torna TAO menos acessível do ponto de vista da
verdade última, mas mais acessível pelo fato de que contém mais erro.
Porque, para pessoas incapazes de ver as coisas como elas realmente são, a
verdade menor é mais acessível: ela é mais fácil de entender, e uma mistura
maior de erro é necessária para que elas sejam capazes de apreendê-la;
exemplos ou analogias que distorcem a verdade são necessários para torná-la
acessível.

Assim, pode-se ver que as muitas formas dogmáticas de religião são variações
diversificadas da verdade. Tomem os exemplos escolhidos por CRISTO para
explicar o Reino dos Céus: cada um é uma pequena parte da verdade, nunca
a verdade inteira, mas apenas um aspecto dela. Quando ele compara o Reino
do Céu a uma pérola preciosa, a palavra pérola associa-se nas mentes de seus
ouvintes a idéias que nada têm a ver com o Reino do Céu; assim, isso poderia
na realidade desvia-los. Colocar a jóia sobre o altar e adorá-la é idolatria, e
isto certamente é contrário a tudo que pretendia o ensinamento original.
Mesmo assim, há um cerne de verdade atrás de todas essas analogias: se o
Reino do Céu é chamado uma pérola preciosa, ou o tesouro enterrado no
campo, ou um grão de semente de mostarda, não importa: é ainda uma e a
mesma coisa. Se entendermos isso, podemos usar as analogias sem nos
confundirmos, mas a mente simples é apanhada por isso. Vejo isso sempre e
de novo, quando uso muitos exemplos para explicar uma verdade psicológica.
Uma pessoa é pega por um aspecto, outra por outro, e essas são
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naturalmente suas próprias suposições errôneas; de outro modo teriam visto


a coisa essencial que é verdadeira em qualquer caso.

Descer da luz original significa então entrar no erro; mas quanto mais alguém
está no erro, maior é a sua oportunidade de descobrir a verdade. É como se
alguém fosse agraciado com suporte ou uma escada. Vejam, quando CRISTO
fala da pérola preciosa, todos sabem o que é, e se não está absolutamente
cegado pela paixão do valor na forma de dinheiro, entende que é um símbolo.
Ainda assim, pensar que o Reino do Céu é a coisa de valor, ou que valor é a
verdade, é também um erro: valor não é a verdade, porque o Reino do Céu é
ao mesmo tempo sem importância; de outro ponto de vista é a semente de
mostarda, que é nada, e não tem valor algum. Isto parece uma absoluta
contradição, mas se alguém entende o conceito de CRISTO do Reino do Céu,
sabe que isto não é uma contradição.

No caso desta mulher, vemos que a primeira luz foi rejeitada, porque ela não
conseguiu apreende-la; a segunda, a tabuleta que explicava TAO, é rejeitada
também; e assim ela tem que ir mais para baixo, para o porão absolutamente
escuro do navio... Isto significa o acontecimento atual. Se não podemos
compreender o que nos é dito, se não podemos percebê-lo, então acontecerá
e acontecerá às cegas. Como vêem, esta escuridão é a culminante negra
escuridão do acontecimento. O acontecimento pode abrir os nossos olhos – há
pessoas que aprendem com a experiência, mas em geral não; elas dizem:
“Que engraçado!”, mas não tiram nenhuma conclusão. Podemos supor, então,
que ir ainda mais para baixo levará esta mulher a alguma experiência
pertencente à esfera da ação.

Homens primitivos acorrentados

 Visão: (cont.) Lá (na escuridão do porão) eu vi muitos homens


primitivos acorrentados. Entre eles estava sentado um velho com
barba, lendo um grande livro. Aos seus pés estava deitado um
gato.

O que é isto agora?


29

Resposta: Este é o feiticeiro.

Dr. Jung: E o que significa que ela depara com estas figuras primitivas
acorrentadas?

Resposta: Eles são instintos reprimidos.

Dr. Jung: Sim, ela depara com suas próprias tendências primitivas
acorrentadas. E o velho é primitivo também: porque certamente a idéia de um
feiticeiro é muito primitiva. Agora, como está ele conectado ao TAO?

Resposta: O feiticeiro é uma pessoa que transmite a verdade.

Dr. Jung: Então agora ela chegou a uma figura capaz de lhe falar sobre TAO.
(LAO-TSÉ significa “Velho Homem”, não como um nome individual, mas como
um título: assim ela chegou do TAO TEH CHING a LAO-TSÉ). Sob condições
primitivas, se ela não compreendeu algo, ela naturalmente iria até o pajé, o
sábio da tribo, e ele lhe explicaria. Este é um desenvolvimento perfeitamente
lógico, mas certamente é um erro. Que erro está envolvido aqui?

Resposta: Ela está voltando ao Animus, em vez de fazê-lo ela mesma.

Dr. Jung: Sim, mas além deste, há o erro ainda maior de pensar que algo
pode nos ser dito sobre o TAO; é preciso experenciá-lo para entender. Mesmo
assim, ouvir falar é a única possibilidade: se ela alguma vez tem que chegar a
algum lugar perto de TAO, será através de LAO-TSÉ. Mas porque deveria ela
ser lembrada aqui de seus instintos acorrentados?

Resposta: Porque se seus instintos não estivessem acorrentados ela não


estaria tendo esta experiência.

Dr. Jung: Penso que o Sr. está certo. Ela possivelmente não poderia
experimentar TAO se os instintos primordiais estivessem soltos à sua volta;
eles a distrairiam. Eles colocariam TAO fora de questão, porque TAO é o
oposto absoluto. LAO-TSÉ diz: “Ele é tão quieto, tão quieto”. Antes que essa
quietude possa ser experimentada, os instintos têm que ser acorrentados, e
na imagética da visão isto significa que a primitiva mente-Animus tem que ser
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acorrentada. De outra forma ela não entenderia nem siquer ouviria o que o
velho dia... Assim, ela saberia melhor! Agora, que livro está lendo o velho?

Resposta: Seria o TAO TEH CHING de LAO-TSÉ.

Dr. Jung: Sim, o livro das cinco mil palavras, que contém a essência da antiga
sabedoria chinesa. Ele simboliza sabedoria formulada, sabedoria cunhada, a
sabedoria que pode ser transmitida... Um livro é um grande símbolo tanto no
Ocidente como no Oriente: o sábio sempre escreve um livro contendo todos
os segredos da vida. Os escritos de HERMES TRISMETISTOS, por exemplo,
constituíram um livro de sabedoria perdida que tinha que ser redescoberto;
que continha grandes segredos também, uma tentativa de formulação da
verdade última...

Pergunta: Não entendo porque devem os homens ser acorrentados se o porão


escuro é um símbolo de TAO.

Dr. Jung: O porão não é um símbolo de TAO, ele apenas aponta o TAO.
Começando lá, no fundo, ela aprenderia primeiro, que os instintos têm que ser
acorrentados para que, aquietados o suficiente, possa ser ouvido aquilo que o
velho está lendo no livro da sabedoria. Ouvindo isto, ela ganharia certo
conhecimento e, seguindo-o se elevaria até o convés superior, onde
encontraria a tabuleta e então leria aqueles símbolos nela que indicavam
navegação com a cabeça. E o trajeto que ela tomaria seria o da serpente,
seria o caminho certo, TAO. Descendo o porão, ela volta à verdade do
começo, mas o porão é também um erro, porque quanto mais ela se afasta de
TAO, mais ela está em erro. Mesmo assim, se ela não tivesse sido capaz de
ouvir as palavras do sábio (se os instintos primitivos não tivessem sido
acorrentados), ela teria que recuar ainda mais e cair em mais erros, em uma
situação totalmente diferente de TAO. Agora, entretanto, se ela seguir a
sabedoria dele, no caminho certo, ela poderia chegar a TAO.
31

O Conceito de TAO

É muito difícil explicar o conceito de TAO para uma pessoa que não tem
alguma idéia dele. Um professor inglês que eu conheço teve a seguinte
experiência quando pediu a um filósofo chinês que lhe explicasse TAO. O
chinês começou com todas as espécies de abstrações: ele disse que TAO era o
todo das coisas, o caminho certo em concordância com as leis do Céu, e assim
por diante... Mas para a mente do ocidental suas explicações nada
significavam, eram demais “... ar”. Mesmo assim o professor insistiu até que
por fim o chinês perdeu sua paciência angelical e levou o professor à janela.
“O que está vendo lá?” ele perguntou. “Eu vejo casas, bondes, pássaros
voando”. “E o que mais?”. “O rio”. “E que mais?”. “Sopra um vento forte”.
“Bem”, disse o chinês já bastante desesperado: “aquilo é TAO”.

Assim, ele conduziu o professor mais e mais para o erro; porque, para a
mente ocidental o vento sopra porque há uma depressão barométrica, os
bondes passam porque a Administração mandou construí-los corretamente, e
as árvores estão lá porque a Prefeitura mandou planta-las para embelezar a
cidade. Não há nenhuma lei eterna governando essas coisas, elas são apenas
banalidades da existência comum. Mas o chinês as vê como uma: para ele
elas pertencem uma à outra e expressam o continuum da vida. Custou dois
mil anos de educação filosófica para que ele visse as coisas dessa maneira;
mas a mente ocidental está absolutamente excluída deste modo de ver. O
ocidental fica mais e mais objetivo sobre as coisas quando elas são trazidas
para baixo até a realidade... e naturalmente, os objetos são os nossos piores
“desencaminhadores”... O professor simplesmente pensou que o chinês era
muito idiota e não deveria ser tão concreto para explicar TAO. Ter explicado o
seu processo por uma teoria cognitiva teria sido permitido, mas falar de
bondes nada tinha ver com conceito.

Comentário: Mas, se aquele chinês tivesse estado realmente em TAO, teria


compreendido a atitude do professor.

Dr. Jung: Sim. Ele poderia ter pensado: “Aqui está um tolo fazendo perguntas
que um sábio não responde”.
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Há uma estória gravada numa Estela à beira do caminho na Coréia: Um


imperador dirigiu-se a um sábio que vivia só, para perguntar-lhe sobre os dez
mil espíritos que recentemente visitaram o sábio. O sábio respondeu: “Eu
nada tenho a ver com estes visitantes inoportunos”. Muito desapontado, o
imperador decidiu então pedir conselhos sobre a administração do seu
império. O sábio retrucou: “A sabedoria nada tem a ver com impérios”. O
imperador tentou então aprender alguma coisa em prol do bem da
humanidade, alguma coisa que o ajudasse a fazer bem para os seres
humanos, mas o sábio disse: “Eu nada tenho a ver com seres humanos”. Este
é o fim da estória. E este é o ensinamento de TAO.

 Visão: (cont.) Eu perguntei ao velho: “Por que não libertas


aqueles escravos de suas cadeias?” E ele respondeu: “Eu estou
lendo o livro iluminado que mostra o caminho”. Eu perguntei:
“Por que lês um tal livro antigo embolorado?” Ele respondeu:
“Este é o livro da iluminação”.

Como vêem, a sua pergunta sobre os homens acorrentados estava também


na cabeça dela. O modo como ela o coloca ingenuamente para o velho mostra
que ela não entendeu o simbolismo destas figuras acorrentadas e do velho.
Porque naturalmente, se aqueles instintos estivessem livres, tudo estaria em
tumulto e ela não teria absolutamente qualquer chance de encontrar TAO. O
velho responde dizendo que está lendo o livro iluminado que mostra o
caminho. Da mesma forma como o imperador encontrou o sábio
desinteressado por tudo, assim o velho aqui não está interessado nos
prisioneiros. O que indica isto?

Resposta: Que ele não era humano.

Dr. Jung: De certo modo ele não é humano. Mesmo assim ela está lá para
aprender alguma coisa com o velho. O que seria?

Resposta: Alguma coisa como crueldade.

Dr. Jung: Exatamente. Ela deveria aprender dele que ela não pode atingir TAO
sem ter seus “primitivos” acorrentados. Como vêem, ele está absolutamente
indiferente à situação toda, ele até ignora a pergunta, mostrando que esta é a
33

atitude que ela deveria aprender. Ela deveria aprender a não se interessar
nem mesmo por um fato lamentável como aqueles pobres homens em
correntes. Naturalmente cada ser humano tenta fazer alguma coisa por eles, e
a idéia geral é que eles deveriam ser libertados... Mas é melhor resolver os
próprios problemas e não se preocupar com os deles. Entramos numa
condição de participação mística quando espalhamos nossos problemas sobre
outras pessoas: quando nos interessamos pelo que eles deveriam fazer para
resolver seus problemas, o problema já não é mais nosso. Num estado de
participação mística como este, nós infestamos todo mundo com a nossa
própria inferioridade, nossos próprios defeitos, e isto não faz bem a ninguém.
Podemos fazer muito pouco bem para os outros. A idéia de que fazemos bem
às pessoas, dando, por exemplo, é uma delusão. Nós os estragamos com isso
e só estamos dando prazer a nós mesmos. Pensamos que somos
maravilhosamente generosos e nunca pensamos nas pobres vítimas da nossa
generosidade. Somos bondosos com os outros sem nunca perguntar se é isso
que eles merecem. Algumas pessoas merecem que não sejamos bondosos.
Quando nos damos a elas estamos nos favorecendo auto-eroticamente,
estamos nos aquecendo com o pensamento da nossa maravilhosa bondade,
mas as estamos prejudicando, conduzindo-as mais ainda ao erro. Assim,
precisamos uma certa dose de crueldade. Se estivessem livres, aqueles
homens acorrentados poderiam matar outras pessoas e nós também... A
verdadeira bondade pergunta: “A quem estou fazendo esta doação?”... De
outra forma trata-se de amor e bondade indiscriminados, o que é apenas
vício.

Aqui nossa paciente deveria aprender a ter uma atitude reservada. Poder-se-
ia dizer que isto é desumano, e perguntar por que deve ela sê-lo. Mas porque
está o velho reservado? Ele está reservado com um propósito. Seu objetivo
não é tratar bem outras pessoas, mas desenvolver-se e completar a si
mesmo, e aperfeiçoar-se. Os Senhores nem sabem como as pessoas ficam
agradecidas se nós nos afastamos; muitas pessoas agradecerão a Deus por
não as estarmos importunando. E que esperança para o futuro!
Podemos voltar amáveis e completos, enquanto antes éramos uma
sanguessuga, uma peste medonha. Quando alguém se afasta pode nos
alegrar, ele poderá curar-se. Ou talvez ele esteja morrendo, desaparecendo,
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mas é melhor que ele desapareça do que continue importunando as pessoas.


Assim o velho não responde a sua tola pergunta. Ele simplesmente diz que
está lendo o “livro iluminado que mostra o caminho”. Agora, o que é
iluminação?

Resposta: Uma espécie de verdade que não vem através do intelecto, mas do
inconsciente e da natureza.

Dr. Jung: Sim. Ela também significa imagens, ilustrações; este livro contém
desenhos que demonstram as coisas simplesmente aos olhos e aos sentidos.
Tais desenhos emergem muito naturalmente do inconsciente, da natureza
tanto de dentro como de fora. Eles não são pensamentos dirigidos nem
abstrações construídas por uma mente com propósitos, eles são revelações da
natureza. Os desenhos e visões desta mulher são também repletos com
revelações da natureza e não com pensamentos conscientes propositais. A
referência aqui, podem observar, é para o livro de visões que ela escreve e
ilustra com sua própria experiência. Qual é o outro sentido da palavra
“iluminação”?

Resposta: Lançar luz sobre as coisas.

Dr. Jung: O livro contém luz espiritual, esclarecimento, assim é realmente um


livro de sabedoria... (Num sentido de que desde que ela está escrevendo o
livro de visões ela mesma, e este é um paralelo para isto) o velho dentro dela
poderia indicar que ele está escrevendo o livro que a leva para a iluminação
de TAO.

Alguma coisa mandraqueira

Pergunta: O que significa o gato?

Dr. Jung: Oh, sim, quase me esqueci do gato. Usualmente o que são gatos?

Resposta: Em tais estórias estão geralmente conectados com bruxas.


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Resposta: Aqui eu penso que o gato significa uma espécie de instinto; mas
uma forma domesticada; os homens primitivos têm que ser acorrentados,
mas o gato não.

Dr. Jung: Isto é certo. Vejam o gato é instinto feminino e não está
acorrentado, está livre, indicando que o instinto feminino está absolutamente
em paz com o velho. Mas aqueles homens tinham que ser acorrentados,
porque eles são poderes masculinos selvagens que poderiam sobrepujar o
feminino, se postos em liberdade. Eles representam o poder mental do
Animus, enquanto o gato é instinto feminino que está de acordo com a
sabedora... Mas o gato aqui é também uma alusão a alguma coisa
mandraqueira no mundo consciente da paciente. Porque se ela não
percebesse o velho – e isto quase acontece de novo – se ela passasse por ele
sem entender, qual seria a situação? Disto podemos ver o que está o gato
pressagiando. Se uma mulher apenas de apossa do velho, se assimila
inconscientemente aquela figura de sabedoria, de modo que ele é meramente
uma espécie de “subentendido” dentro dela, qual será o efeito?

Resposta: Ela se torna possuída por uma espécie de serpente.

Dr. Jung: Sim, pela mente natural, pela sabedoria da serpente. Então ela
desceria ao mundo animal, ela seria uma bruxa. Poder-se-ia dizer que uma
bruxa é semelhante a uma mulher intelectual. Evidentemente, ela não é
intelectual na realidade, é a sabedoria da natureza falando através dela, e não
a dela mesma. Fala através dela do modo da serpente, o mais dúbio e
insinuante, e ajuda em coisas que não deveriam ser ajudadas. Toca em
pontos vulneráveis das pessoas, diz inteligentemente coisas que não deveriam
ser ditas. Mas se de algum modo ela toca pontos vulneráveis, nunca deveria
fazer isto sem preâmbulo; ela deveria ser muito cuidadosa para introduzir
este assunto todo... de forma que a pessoa para quem ela fala perceba que
ela está consciente do que faz... Se ela simplesmente deixa escapar as coisas
sem saber o que está fazendo, significa que ela está numa condição de
feiticeira, e isto tem um efeito que cega e confunde, é como fazer magia
negra. Porque o arquétipo do velho é muito poderoso, como é poderosa a
sabedoria. Conhecimento significa poder e se esse conhecimento permanece
inconsciente, ele opera como a natureza, e a natureza é cruel, absolutamente
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sem consideração com o ser humano. Exatamente como a água simplesmente


busca o caminho mais curto, nunca se preocupando se seu curso é oportuno,
assim a sabedoria da serpente também toma seu rumo, nunca questionando a
adequação daquilo que faz.

Assim, se a paciente tivesse rejeitado nesta visão, a alusão de como alcançar


o TAO, ela em seguida teria se encontrado na posição de uma bruxa ou
confrontado com ela, o que teria sido uma dificuldade até mais amena. Neste
caso, teria ficado absolutamente no ar, porque uma bruxa cria ilusões que
conduzem a pessoas e a caminhos errados. Lá parece não haver má intenção,
mas é como se suas palavras se alterassem no ar, ou como se fossem ouvidas
coisas diferentes das que haviam sido ditas. Qualquer pessoa neste estado
mandraqueiro é como os dois elfos que tentaram aprender as palavras do “Pai
Nosso”. Embora quisessem muito repetir as palavras que o sacerdote lhes
ensinava, de algum modo sempre acabavam dizendo: “Pai Nosso que não
estais no céu”. Eles tinham as melhores intenções, queriam dizer as palavras
certas, mas sempre que tentavam, as palavras se confundiam no ar e assim
eles nunca puderam adquirir almas mortais...

Agora continuaremos com a nova série de visões. Tendo adquirido uma certa
idéia do TAO nesta série, não podemos imaginar bem como será a próxima
seqüência. Vejamos.

A casa do feitiço

 Visão: Vi uma faca no chão. Apanhei-a e desci por um longo


caminho na encosta de uma montanha. Cheguei a uma cidade no
pé da montanha. Caminhei até chegar a uma casa em cuja porta
havia o sinal da cruz. [feito com sangue].

O que dizem desta faca?

Pergunta: Poderia significar que ela deve sacrificar alguma coisa?

Comentário: Eu penso em “cortar o nó”.


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Dr. Jung: Com que função mental alguém corta o nó?

Resposta: O intelecto.

Dr. Jung: Sim, a mente discrimina e corta e é, por isso, simbolizada por um
instrumento cortante, uma faca ou uma espada. A faca está no chão e, depois
de pegá-la ela desce por um longo caminho na montanha. Este é, outra vez,
um movimento descendente, assim o chão, a terra, está enfatizada. A questão
é se um sacrifício deve ser esperado ou se a faca – sua mente discriminadora
– será usada para cortar ou dissecar alguma coisa...

Pergunta: Esse descer a montanha não é análogo ao que aconteceu antes na


visão em que ela desceu a montanha depois de ter visto a cratera?

Dr. Jung: Sim, a situação é análoga. Ela atingiu certa compreensão de TAO
certa introvisão – a compreensão é sugerida pela altura, já que ela estava no
topo da montanha – e agora há de novo um movimento da luz em cima para
as coisas que estão embaixo. Ao pé da montanha há uma cidade e ela a
atravessa até chegar a uma casa em cuja porta o sinal da cruz está feito com
sangue. Isto é bastante singular.

Comentário: Por isso eu pensei que a faca poderia indicar sacrifício.

Dr. Jung: Sim... ela indica sacrifício; assim, esta é a casa de sacrifício, bem
como também uma casa cristã, muito provavelmente, uma casa cristã. O que
lembra os Senhores a cruz escrita em sangue na porta?

Resposta: A Páscoa dos hebreus no Antigo Testamento.

Dr. Jung: As ombreiras da porta pintadas com sangue eram então um feitiço
apotropáico contra a peste; aquele sinal pretendia indicar que a casa devia ser
poupada. Da mesma forma, a cruz na porta sempre foi uma magia contra o
mal.

O perigo que ela correu quando desceu a montanha pela primeira vez foi o
perigo de contaminação pela mentalidade coletiva. E aqui há a alusão a uma
epidemia. Sonhar com uma epidemia é bastante comum, e geralmente
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simboliza contágio pela mente coletiva. Assim, ela está descendo de novo a
uma atmosfera coletiva, e a primeira coisa que encontra é a cruz, que tem
aqui o valor de um encantamento apotropáico [solvente] contra a infecção
coletiva. Agora ela diz:

 Visão: (cont.) Eu toquei a porta com a minha faca e ela abriu-se.


Dentro era uma sala escura. No canto ardia o fogo. Eu vi no fogo
os corpos carbonizados de muitas pequenas serpentes.

Que espécie de atmosfera encontramos aqui?

Resposta: Esta é a casa da bruxa, o que mostra que sua introvisão foi apenas
parcial, apesar de tudo.

Dr. Jung: Exatamente. Ela tomou conhecimento de alguma coisa, mas não da
coisa em si: assim, a atmosfera agora é mandraqueira. A faca parece ser
mágica, porque quando ela toca a porta com ela a porta se abre. É como a
raiz mágica de mandrágora que abre todas as portas; se tocamos a fechadura
com mandrágora, a porta se abre. A posse de uma faca mágica a caracteriza
como bruxa; ela entra na casa por magia, e encontra uma sala escura.
Também o sinal pintado com sangue sobre a porta é estranho e os corpos
carbonizados das serpentes sugerem bruxaria; queimar os corpos de
pequenos animais como sapos ou serpentes sugere um cerimonial de
bruxaria. Aparentemente houve um sacrifício aqui, mas um sacrifício de
serpentes.

Pergunta: Isto tem alguma coisa a ver com a fênix que ressurge de suas
próprias cinzas?

Dr. Jung: Pensa-se imediatamente nisso. Acreditava-se em tempos primitivos


que as serpentes eram imortais... devido ao fato de que podiam descartar
suas peles antigas, adquirindo uma nova vida a cada ano... Assim, as almas
dos mortos se projetavam nelas e pensava-se que eram a encarnação dos
espíritos dos heróis mortos. Serpentes sempre têm alguma coisa a ver com
espíritos; portanto, queimá-las significaria o quê?

Resposta: A renovação dos espíritos dentro delas?


39

Dr. Jung: Sim. O espírito do falecido liberta-se, desse modo, da forma da


serpente e então poderá elevar-se. A lenda da fênix é um antiqüíssimo ritual
mágico de renascimento. Queimar os corpos de seres humanos tem o mesmo
sentido: eles nascem na fumaça que se eleva na pirra. Na fumaça a alma
eleva-se ao céu como corpo sutil, e é então oferecida ao Deus. Oferendas
queimadas são os corpos sutis de animais ou frutas que foram sacrificados;
como fumaça ou olor, eles se elevam à atmosfera superior onde se supõe que
habitam os Deuses.

Esta idéia é muito uma parte de nós mesmos e a encontramos mesmo hoje
em dia entre os espiritualistas. Há uma teoria interessante num livro de SIR
OLIVER LODGE intitulado “Meu Filho RAYMOND”. O rapaz foi morto na guerra;
aparecendo posteriormente como espírito, respondeu a todos os tipos de
perguntas sobre a vida após a morte. De suas respostas concluíram que
aquilo que chamamos matéria, no mundo do além consiste de moléculas
exaladas da substância na superfície da terra. Certo calor causa um
movimento das moléculas, que são então exaladas para a atmosfera como
odores; pode-se cheirar um tijolo, por exemplo, como se pode cheirar um
cigarro. Estas moléculas estão sendo levadas para cima, para a atmosfera
mais rarefeita, onde são coletadas por espíritos, cujas asas, construídas de
odor de tijolos, têm a mesma forma que tiveram na terra,

Do mesmo modo como os mortos eram queimados para que suas almas
pudessem elevar-se ao céu, todas as suas vasilhas e pertences eram, ou
queimados junto com ele ou quebrados e abandonados. Isto porque também
têm almas que vão para o céu quando são quebrados e servem outra vez seus
donos mortos. Esta idéia deu origem a terríveis sacrifícios humanos feitos
muitas vezes quando reis pré-históricos morriam... (Em Ur, no Egito, e entre
os hunos, por exemplo).

A mesma idéia parece surgir aqui, porque este é um procedimento mágico.


Evidentemente foi feita uma tentativa, queimando os corpos daquelas
serpentes e libertar os espíritos nelas.
40

A casa inteira desmorona

 Visão: (cont.) Peguei um pouco das cinzas das serpentes e


esfreguei na minha palma esquerda. Coloquei a faca no fogo até
que vermelho-incandescente. Então toquei o teto da casa com a
faca e a casa inteira ruiu. Vi-me sozinha no deserto, à noite, com
o fogo ardendo ao meu lado.

O sentido disto é muito obscuro. Obviamente, as cinzas das serpentes são


uma substância mágica, que combina a magia do fogo e a magia da serpente,
e esta substância tem que ter um efeito mágico, porque ele a esfrega na
palma de sua mão esquerda. Para explicar isto, temos que pensar de um
modo muito primitivo. Temos que entender que, para a mente primitiva, a
qualidade mágica é como uma substância real, inerente numa coisa. Assim, o
fogo tem uma qualidade mágica inerente. Este tipo de pensar durou bastante
tempo; o flogisto ígneo no início da química, era a mesma idéia... (Ainda no
século XVIII por esse “fluido” tentaram explicar a combustão, antes da
oxidação). Extrair o efeito mágico de alguma coisa, sua virtude ou poder, era
portanto como extrair uma substância. Na serpente esta substância tem uma
qualidade como de fantasma, de espírito, o fogo é espírito também, porque a
característica especial do fogo é transformar as coisas de um modo
miraculoso. Por exemplo, da água ele faz um gás, ou transforma pedras e
minerais. As coisas não eram aquecidas apenas para torná-las quentes, eram
expostas ao fogo para lhes dar a qualidade mágica do fogo... O espírito que
saia das coisas quando eram aquecidas era considerado como uma peculiar
mistura da própria substância pesada e da substância pesada e da substância
volátil, sutil do fogo... Assim, ao queimar um corpo, adquiria-se não apenas o
mana desta substância específica, mas adicionava-se a ele o mana do fogo.
Isto explica porque o fogo era um importante ingrediente da bruxaria...

Aqui a vida da serpente está misturada com a vida do fogo (e qualquer alma
ígnea que possa ser o resultado, evaporou-se no ar). Mas a bruxa interessa-se
pelos resíduos queimados. As cinzas desempenham um grande papel na
atuação mágica, porque a qualidade mágica ainda está nelas... Esfregando as
41

cinzas na sua mão esquerda, ela está tentando trazer o mana específico de
renascimento ou lidando aqui com a mescla de duas formas de mana, as
quais, juntas, produzem o espírito volátil. Certamente ela não sabe o que está
fazendo, isto apenas ocorre com ela... O lado esquerdo representa o
inconsciente, porque o direito é mais associado com a consciência, assim o
que ela faz é esfregar este espírito no inconsciente. (Por isso o caminho
mágico no tantrismo chama-se caminho da mão esquerda). Depois ela usa o
fogo para tornar a faca vermelho incandescente...

Como sabem, todo instrumento cortante aponta para a mente dessecante,


mas aqui é um instrumento que realiza mágica. É certo que a mente pode ser
usada inteiramente para fins racionais, e nesse caso não tem qualquer efeito
mágico. Mas existe uma outra espécie de mente, a mente natural, que realiza
mágica. A mente natural tem mana. Ela emerge de fontes naturais, e não de
opiniões dos livros; ela brota da terra como uma nascente, trazendo consigo a
peculiar sabedoria da natureza, que muitas vezes adapta-se às situações de
modo tão exato que realmente tem um efeito mágico. Esquentando a faca,
nossa paciente está aquecendo aquela mente; ela está acrescentando a ela o
espírito do fogo. Isto soa muito abstruso, mas o que significa em termos
psicológicos?

Resposta: Que ela está colocando mais libido nela.

Dr. Jung: Sim, porque o calor dá energia. Ela está provendo com libido a
mente natural que brota do seu inconsciente, a fim de trazê-la mais para a
vida. Na prática, isto significaria prestar menos atenção às opiniões artificiais,
ao costumeiro intelecto racional, e mais atenção às revelações naturais de
dentro. Embora ela tivesse certa noção da natureza do TAO, ela não a
entendeu. Mas agora, seguindo a mente natural, ela é capaz de perceber
melhor do que se trata, porque a mente natural vem de TAO. Em seguida ela
disse que tocou o teto da casa com a faca e a casa inteira desmoronou, e ela
se viu sozinha no deserto à noite, com o fogo ardendo ao seu lado. Como
veem, a coisa que perdura é o fogo; ela está de novo associada ao fogo, fonte
de libido e de calor. Ela parece estar em contato, com o poder ardente da
natureza. E não está mais numa casa, esta livre dela; então agora temos que
42

ver o que significa na realidade a casa. Como explicariam ou descreveriam


uma casa caracterizada por um símbolo cristão fora e a bruxaria dentro?

Resposta: Como um abrigo temporário.

Comentário: É uma atitude coletiva.

Dr. Jung: Sim, como a cidade representa a coletividade, também a casa,


como uma parte dela, é coletiva. Isto não está enfatizado aqui, mas a idéia de
uma casa é ter um teto sobre a nossa cabeça e quatro paredes que nos
protegem contra todos os tipos de inconveniências e invasões.

Comentário: Significa toda a atmosfera cultural.

Dr. Jung: A casa representa o modo tradicional de adaptação à atualidade. O


símbolo de um navio que nos leva em segurança através do oceano é usado
da mesma maneira. Uma casa é um abrigo, assim como uma fé religiosa, ou
uma convicção filosófica, ou uma forma tradicional é um abrigo. Quando
perdemos nossas crenças ou nossas convicções é como se tivéssemos sido
expulsos de nossas casas; sem a fé de nossos ancestrais, sentimo-nos como
um nômade. A presente série de visões mostra que até agora ela tinha tido
aquela casa como um último refúgio. Como explicar a colocação, nesta visão,
de que a casa da crença ou da convicção cristã, na qual até agora ela
encontra abrigo, possa conter dentro bruxaria?

Resposta: Não era uma síntese real.

Dr. Jung: Sim era apenas uma associação. Agora as duas coisas separaram-
se, e são então, pares-opostos; de um lado está a religião coletiva,
plenamente conhecida e altamente valorizada, e de outra lado está a bruxaria,
que é tida como muito má, e também uma insensatez tão abstrusa e indigna
de remédios tão abstrusa e indigna de crédito que sua existência parece
demais estúpida. Mesmo assim, a visão afirma que ela tem sido praticada
nesta casa.
43

Sugestão: Quando o símbolo cristão carrega em si uma verdadeira vida, ele


tem efeito mágico, mas quando já não é vivente, sua mágica sua mágica
transforma-se em bruxaria.

Magia e Símbolo

Dr. Jung: Sim. Enquanto um símbolo tem vida, de modo que realmente
oferece soluções – de modo que funciona – toda a magia está contida nele e
não há bruxaria. O conflito entre a fé cristã e a bruxaria pode ser visto nos
Atos dos Apóstolos no que está dito sobre Simão Mago. De acordo com a
lenda ele era um gnóstico e foi chamado Simão, o Feiticeiro, mas o relato
sobre ele nos Atos é unilateral, uma distorção: na medida em que foi uma
pessoa histórica, tratava-se presumivelmente de um sábio, mas lá ele aparece
como um mero feiticeiro, querendo apenas assombrar pessoas tolas. Há
referências a Simão Mago em outros textos cristãos antigos, não incluídos na
Bíblia, que falam dele como oposto aos Apóstolos; estes faziam milagres em
nome do Espírito Santo, enquanto ele os realizava por magia negra. E no
Velho Testamento, na estória dos milagres dos bastões transformados em
serpentes e depois outra vez em bastões, há a mesma oposição (Moisés
perante o Faraó).

A verdade antiga é que uma verdadeira religião, expressada por um


verdadeiro símbolo atua magicamente; ela tem mana, é convincente, é a
expressão do poder da vida. Mas se o símbolo já não outorga vida, o mana
escoa dele, e parece existir por si mesmo, e a religião muito cedo degenera
em formas inferiores de prática como a feitiçaria. Pode-se ver isto acontecer
de novo e de ovo.

Um dos exemplos mais gritantes dessa degeneração é a história do Taoísmo


na China. O Taoísmo original de LAO-TSÉ é uma filosofia maravilhosa e
também o Taoísmo de CHUANG-TSÉ, duzentos anos mais tarde. Mas no
decurso dos séculos degenerou-se na mais absurda feitiçaria, assim que
cinquenta ou cem anos atrás os taoístas transformaram-se na mais baixa
espécie de embusteiros e impostores. Entre eles e atrás deles, entretanto,
44

havia com certeza, alguns verdadeiros taoístas, e nos últimos anos tem
havido um movimento religioso na China que muito curiosamente corre
paralelo ao que está em andamento na Europa; isto é, a decadência da Igreja
oficial – na China seria a decadência do Confucionismo – e a volta ao Taoísmo
numa forma renovada e muito mais positiva. No curso da história,
repetidamente vê-se a contaminação do símbolo mais alto pelas baixas
práticas de magia: é como se o símbolo, na sua altura, atraísse a si toda a
baixa magia, e mais tarde – quando fica fraco e desgastado e não mais é
portador das forças da vida – ele afunda e se fragmenta e aparece nessas
formas inferiores. No Cristianismo esse período crítico foi atingido quando
ocorreu o grande cisma na época da Reforma; então feitiçaria, bruxaria,
magia negra sob todas as formas brotaram.

Processos contra a bruxaria não apareceram até o quinto e sexto século, que
foram períodos críticos na transição da Igreja Universal; desde então,
entretanto, tais desenvolvimentos têm sido cada vez mais evidentes. O
espiritismo – que equivale, hoje em dia, a uma religião – é uma destas formas
inferiores de magia, e a clarividência é outra; mesmo assim, essas coisas são
agora mais ou menos reconhecidas.

A Astrologia e a interpretação de sonhos eram absolutamente proibidas pela


Igreja. Eu poderia mostrar-lhes um livro escrito por um jesuíta no século XVIII
em que há uma longa dissertação sobre a admissibilidade da interpretação
dos sonhos. Ele declara isto inteiramente supérfluo, porque todos os sonhos
comuns não são bons e sonhos extraordinários podem muito bem vir do
demônio e assim, já que apenas os sonhos muito bons não contradizem as
Escrituras, porque prestar atenção aos sonhos em geral? Mas então ele se
torna muito cuidadoso, porque Deus revelou-se com frequência e sob formas
muito pouco ortodoxas. Ele não ousa dizer que Deus seria incapaz de inspirar
um verdadeiro sonho, mas diz que tais sonhos deveriam ser submetidos à
autoridade da Igreja e não interpretados por homens comuns. No todo, ele
conclui que a interpretação do sonho é uma coisa execrável, para não
mencionar a astrologia, a quiromancia e todas essas artes intuitivas.

Hoje em dia investigamos livremente tais coisas e discutimos a possibilidade


da verdade em sonhos e visões, mas do ponto de vista histórico... isto é um
45

sintoma do fato de que o mana, ou o poder mágico da vida, abandonou o


símbolo... E quando o símbolo enfraquece o problema inteiro submerge na
magia... nas mãos dos doutores, trapaceiros, adivinhos, interpretadores de
sonhos, astrólogos e espíritas – a lista inteira de milagreiros. Certamente,
hoje em dia disfarçamos isto com outras tintas, uma tinta científica. A magia
sempre foi a fonte da ciência; a ciência desenvolveu-se da magia, não da
religião. A religião é demais completa, mas a magia é muito incompleta e tem
a qualidade luciferína de instigar esperanças exageradas de poder na mente
humana e de estimulá-la a uma espécie de megalomania. Temos a esperança
de ser capazes de explicar os grandes mistérios do mundo por meio do
intelecto. E há alguma coisa fatal nisso; temos que tentar cometer o pecado
prometéico contra a completude da religião, mas pagamos o preço.

A faca mágica aqui é a mente luciferína que comete o pecado prometéico,


confia apenas em si mesma e despreza o abrigo de qualquer convicção
tradicional. Esta mulher simplesmente destrói aquela casa e então não tem
abrigo em parte alguma; é deixada no deserto, na escuridão. Mas ela tem
uma fonte de energia dentro de si, o fogo. Vejam, antes que ela possa
conhecer a natureza de TAO, ela deve destruir todas as idéias atrás das quais
ela tem estado escondida antes, porque apenas a pessoa que se entregou
inteiramente à corrente da vida pode experenciar TAO; enquanto ela mantém
convicções tradicionais, está alijada da natureza. Inegavelmente, enquanto o
símbolo tradicional funciona para ela, ela pode controlar nele paz para sua
alma; quase todo mundo tenta fazer tal conexão com o passado, na
esperança de que isto funcionará. Mas enquanto alguém está tentando fazer
tal conexão histórica, não pode experimentar TAO. Estamos agora no fim
desta série de visões, e a que se segue começa imediatamente com o símbolo
das águas da vida.

A Vida Fluindo como um Rio

 Visão: Eu vi uma grande corrente de água saindo de uma rocha e


correndo para baixo, ao lado de uma colina.
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A fonte fluindo da rocha e seguindo sua energia potencial colina abaixo


simboliza a vida movendo-se como um rio, buscando o lugar mais fundo, e
esta é a definição de TAO por LAO-TSÉ.

 Visão: (cont.) Coloquei-me na margem e vi muitas almas


apanhadas na torrente espumante e rodopiando pela força da
água.

Comentário: Esta visão é semelhante a uma anterior! Lá ela via no olho de um


velho uma grande corrente na qual muitas pessoas eram arrastadas.

Dr. Jung: Sim, ela volta à mesma visão, mas desta vez ela vê através de seus
próprios olhos... Poder-se-ia pensar que essas almas estivessem na corrente
da vida, que elas estão no lugar certo lá. Mas ela diz que elas são
“apanhadas”, o que soa como uma crítica, como se elas não devessem ser
apanhadas, nem arrastadas na água. A que alude isto?

Resposta: Que ela ainda não é capaz de manter-se a si mesma na água.

Dr. Jung: Naturalmente, o que ela vê lá é ela mesma, ela vê que está sendo
arrastada na corrente. Pode-se estar na corrente da vida de várias formas:
pode-se nadar ou ir de bote, ou afogar-se. Estes modos representam
condições muito diferentes. A alma humana aparece para ela como uma
vítima na corrente; isto significa, em uma condição inconsciente, apanhada
inconscientemente na correnteza dos eventos. Obviamente ela agora está
chegando a um certo problema. Qual é?

Resposta: Uma aceitação consciente de estar na corrente.

Dr. Jung: Exatamente. É uma questão de estar lá conscientemente e não


como a vítima inconsciente dos eventos. É isto que liga esta visão com a
anterior. TAO é o caminho consciente; escrito com o signo da cabeça, ele é o
caminho como é visto na cabeça; então ela está agora prestes a perceber
alguma coisa do que TAO significa.
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 Visão: (cont.) Coloquei-me sob a corrente de água que saía da


rocha e tive medo que também pudesse perecer. Mas mantive-
me firme e levantei meu rosto para a água, o que era muito
refrescante.

Aqui ela está se firmando, ela resiste ao ímpeto da água e atém-se a si


mesma. A idéia é que a água vem de cima, sempre caindo de cima para
baixo; assim arrasta-a com ela enquanto ela for inconsciente. Mas agora ela
encara a água que vem para baixo. Olhando diretamente dentro dela, ela se
mantém; como resultado ela sente que a água, em vez de afogá-la, é muito
refrescante. O que há de tão refrescante em ser consciente do caminho?

Bem, se alguma vez já viajaram através do Mar Vermelho em um barco, com


vento à popa, então sabem o que ir com a corrente: é sufocante. Mas viajar
contra o vento é refrescante. E acontece o mesmo com a corrente dos
eventos. Estar consciente de como se movimenta a corrente da vida,
naturalmente coloca-nos em divergência com as coisas; de outra forma, não
estaríamos conscientes. Assim, temos que estar em discordância com as
coisas, colocar-nos contra elas... Nada há de mais mortal do que estar sempre
em harmonia com as coisas, isto mata... Algumas vezes, um conflito... mesmo
uma discussão realmente acalorada pode ser positivamente revivificante; é
como se um peso de chumbo fosse erguido, um terrível mal-estar removido.

Comentário: Não é também ser capaz de manter-se aparte e observar as


coisas sem ser completamente submerso ou destruído?

Dr. Jung: Exatamente isso; não se é uma vítima.

 Visão: (cont.) Eu emergi e ergui-me do outro lado da corrente.


Eu estava repleta de uma nova força e à minha volta cintilavam
chamas de luz branca.

Ela atravessou a corrente; evidentemente ela ficou sob a corrente por um


momento e então saiu. Atravessar o grande rio é um símbolo de
renascimento; é por isso que ela sente uma força renovada. Mas o que seriam
essas chamas de luz branca?
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Resposta: Seriam chamas de consciência, tendo mais a ver com sua mente do
que com suas emoções.

Dr. Jung: Sim, eram chamas de paixão antes e agora a luz é branca.

Pergunta: Isto indica que ela está se aproximando da experiência central? A


chama branca é o símbolo disto.

Dr. Jung: Há uma bela evidência para isto no Livro Tibetano dos Mortos, em
que a Clara Luz do Vazio, o Dharma Kaya, visto primeiro no Chikhai Bardo, é
chamado o “Corpo Divino da Verdade”. Então, este é um verdadeiro símbolo,
é a luz da visão, do entendimento; uma forma de símbolo na qual o fogo
mágico pode ser contido, não mais como o fogo ctônico da bruxaria, que é
puramente emocional, mas como a pura luz da verdade. Porque a verdade é
um caminho de compreensão, um caminho que contem o fogo. O que
geralmente se chama verdade dissolve-se nas chamas da paixão,
simplesmente não suporta o fogo nem contem a água. Mas o critério para a
verdade real é que ela agüenta a fúria de ambos, do fogo e da água. Em uma
das primeiras visões, podem lembrar-se, ela estava entre as chamas e a
água. Esse era o teste.

Comentário: Logo depois daquela outra visão dos corpos flutuando na


correnteza, ela também viu a luz branca; era, então, a cidade branca.

Dr. Jung: Aquela cidade branca foi o primeiro vislumbre da luz branca; no
tantrismo, a perfeita luz branca é também associada com a idéia de uma
morada, de uma cidade, o lugar sagrado. Assim, podemos esperar que ela
esteja certamente se aproximando de uma experiência central, aqui. Agora a
cena muda.

 Visão: (cont.) Entrei numa floresta escura. As árvores se


afastavam para me deixar passar e muitos animais selvagens
seguiam atrás de mim.

Isto simboliza estar no caminho certo, em sintonia com as coisas; as rochas


que tinham estado no seu caminho subitamente desapareceram, a escuridão
transforma-se em luz, as árvores se afastam para deixá-la passar; é uma
49

descrição simbólica da parte suave de TAO. E o fato de que muitos animais


selvagens a seguem, o que significaria?

Resposta: Que suas forças instintuais estavam atrás dela.

Dr. Jung: Sim, o fogo ctônico da paixão queima no animal, mas porque ela
está no caminho certo, mesmo o fogo da paixão ou o desejo entra no ritmo
adequado, e segue o caminho.

 Visão: (cont.) Quando saí da floresta vi a entrada de uma


caverna mitráica

A caverna mitraica é o lugar da iniciação. Não é estranho, que tendo


atravessado a corrente, isto é, depois de ter renascido e mesmo ter tido a
visão da luz branca, do “Perfeito Corpo da Verdade”, ela deva agora chegar a
uma caverna mitráica? Para começar, é estranha a sua caminhada dentro
daquela floresta, mas poderia ser que uma enantiodromia seguisse o seu
renascimento e que ela esteja sendo testada para ver se sua renovação se
mantém firme. Mas porque deveria ela, subitamente, chegar a uma caverna
mitráica?

Resposta: Eu penso que é porque os animais estavam com ela, animais


selvagens comportando-se como se fossem domesticados.

A Questão dos Animais

Dr. Jung: ...A questão dos animais é importante, tão importante que nos
primeiros ensinamentos – não da Igreja, mas provavelmente do próprio
CRISTO – os animais não eram omitidos. Para os membros novos do
seminário vou citar mais uma vez a passagem do famoso papiro
OXYRHYNCHUS, que já mencionei muitas vezes:

JESUS disse, vós perguntais quem são aqueles que nos levam ao reino
se o reino está no céu? Os pássaros do ar e todos os animais que estão
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embaixo da terra ou sobre a terra, e os peixes do mar, estes são os que


vos levarão para o reino.

Agora, a questão é: porque os animais desapareceram do ensinamento


cristão? Quando os animais já não estão incluídos no símbolo ou no credo
religioso, é o começo da dissociação entre religião e natureza. Então já não há
mais nela, o mana. Enquanto os animais estão lá, há vida no símbolo; de
outra forma o começo do fim está sendo indicado.

Pergunta: E o simbolismo do cordeiro?

Dr. Jung: O cordeiro é simbólico demais, dificilmente pode ser considerado


como um animal; no Novo Testamento ele é, na realidade, uma locução
figurativa. Mas quando CRISTO fala aqui de pássaros no ar, peixes no mar e
animais sobre a terra, ele se refere aos verdadeiros animais... Agora, o
séqüito de animais que acompanha esta mulher é a expressão de um
problema que se torna reconhecível quando chegam à entrada da caverna
mitráica.

Comentário: Quando ela chegou à cidade branca, ela encontrou lá o touro, e


ele lhe disse que ela deveria beber da taça, de novo e de novo. É como se ela
estivesse agora chegando àquela situação outra vez.

Dr. Jung: Mas o que significaria a caverna mitraica?

Resposta: Mitraismo significa o sacrifício do touro.

Dr. Jung: Sim. Podem ver que os animais que a seguem colocam o problema:
o que deve ser feito com os animais? E a sugestão que se segue é o sacrifício
do touro. Agora, por que mitraismo e não cristianismo? Por que não o
sacrifício do cordeiro?

Resposta: A casa cristã desmoronou.

Dr. Jung: Isto é verdade... Agora ela só pode regredir a uma solução anterior,
ou progredir para uma contemporânea. Este é muitas vezes o caso. Nos
sonhos de pessoas que nada conhecem de MITRAS, observa-se este dilema, e
51

ocorre alguma possibilidade de que o problema se resolva de modo mitraico,


não cristão. Agora, qual é a típica diferença entre as duas religiões?

Resposta: Em uma delas, o homem é sacrificado, na outra, o animal.

Dr. Jung: Sim. Na religião cristã, o sacrifício do cordeiro era meramente


metafórico; o que se pretendia era o sacrifício humano, ou o divino sacrifício,
o sacrifício do único Filho de Deus. É verdade que na religião mitraica o touro,
de certa forma, é o próprio MITRAS; mesmo assim é decididamente um touro
é sempre representado como um touro na arena com MITRAS como toureiro.
Na forma antiga MITRAS não atravessa o coração do animal com uma longa
espada, mas salta sobre o seu dorso e desfecha o golpe, com uma espada
curta ou punhal do pescoço para baixo. Nos monumentos mitráicos, o touro é
muitas vezes representado com uma espécie de cinturão que o toureiro usava
para pular sobre o dorso do animal antes de golpeá-lo. Então, isto indica que
o touro, o animal, é sacrificado, e não o ser humano.

Já apontei anteriormente que a vantagem que o cristianismo teve sobre o


mitraismo – mesmo que meramente simbólica e não reconhecida naquela
época – é a sua mais diferenciada e mais completa forma de sacrifício. Há a
idéia de disciplina no mitraismo, mas não de sacrifício completo. Assim, nos
nossos dias, quando o símbolo cristão tornou-se obsoleto para tantas pessoas,
quando a casa com a cruz fora e bruxaria dentro dissolveu-se completamente
para elas, elas, naturalmente, estão perguntando o que fazer com os seus
animais – isto é, com as suas naturezas – e chegam, muito naturalmente à
soluça mitraica. Isto é o que acontece com nossa paciente aqui, como
aconteceu antes: quando ela alcançou a cidade branca, não pode suportar a
luz e teve que voltar à idéia mitraica... De certo modo, isto é uma regressão;
obviamente ela não tem idéia de como este problema dos animais pode ser
resolvido e então volta à solução mitraica, a qual, lembrem-se, funcionou no
passado.
52

Ela Revê a Situação Mitraica

 Visão: (cont.) Eu entrei e vi os comungantes que acabavam de


matar o touro.

Isto significa resolver a inteira questão dos animais selvagens matando-os e


comendo-os, ou bebendo seu sangue ou banhando-se nele.

 Visão: (cont.) Eles rezavam em voz alta, enquanto mergulhavam


suas mãos no sangue: “Dá-nos o teu sangue, ó Touro, para que
também possamos viver.”

Isto é simplesmente parte de um ritual: sangue é sempre a substância


especial contendo a força da vida – como o sangue de JESUS é o mana doador
de vida, de acordo com as idéias cristãs. Existem muitos pontos em comum
nos rituais de ATTIS, MITRAS E CRISTO...

Pergunta: As touradas na Espanha estão em relação com isto?

Dr. Jung: Elas vêm diretamente da antiguidade e isto explica o fervor religioso
que encontramos nelas. A tourada de modo algum é meramente um esporte,
ela é quase como uma festa religiosa; tal tremendo entusiasmo aponta
alguma coisa religiosa. E isto é compreensível porque se trata de um
desempenho muito masculino, cujo ponto principal é demonstrar a completa
superioridade do homem sobre suas emoções. Poder-se-ia dizer que o
toureiro, sempre arriscando sua vida simboliza CRISTO; ele tem o valor de um
antigo símbolo religioso. Por esta razão MITRAS foi representado como um
toureiro.

Agora, nesta visão, a idéia é expressa na oração dos comungantes. “Dá-nos o


teu sangue, ó Touro” é extraordinariamente semelhante àquela dos cultos de
MITRAS e ATTIS. Lá eles matam os animais para beber seu sangue, isto é,
para integrá-los em uma forma não perigosa; eles os matam para que possam
viver.
53

 Visão: (cont.) Eu disse a eles: “As vossas faces estão cobertas


com sangue. Estais excessivamente pesados com o sangue do
touro.”

Comentário: Eles têm materialismo demais em suas vidas.

Dr. Jung: Sim, e ela critica aqui o aspecto horrível dos comungantes – suas
faces untadas com sangue. Imaginem um verdadeiro taurobolium, com
sangue verdadeiro jorrando sobre alguém! Era terrivelmente bárbaro. E uma
idéia horrível subjaz na comunhão cristã; tomada literalmente, é uma festa de
canibais. A doutrina da transubstanciação nos obriga a crer que realmente
participamos do sangue e da carne. Mas isto é pesado demais, demais ligado
à terra; é isto que nossa paciente está criticando.

 Visão: (cont.) Quando acabei de falar, todos os comungantes


levantaram-se e me seguiram.

Comentário: É como se ela os houvesse assimilado.

Dr. Jung: Sim, porque eles se levantam e a seguem. É um cortejo muito


interessante – primeiro os animais, e depois os comungantes, que são os
comedores dos animais.

 Visão: (cont.) Entramos e examinamos juntos os templos de


Roma e da Grécia e do Egito, mas eles estavam desertos.

Isto os faz lembrar do cortejo de animais que a seguiu em uma das primeiras
visões? Lá ela voltava ao passado, e quando desceu ao submundo, passou por
templos romanos, gregos e egípcios; depois emergiu novamente, através
dessas antigas religiões, vendo e experimentando seu valor como pré-
estágios. Agora, ela passou pelo culto de MITRAS e está lançando um olhar
para trás sobre todo o desenvolvimento. Anteriormente ela descobriu vida
naqueles templos, mas agora ela vê que eles estão desertos. Ela recebeu tudo
que se poderia ter deles e rejeitos isso.

 Visão: (cont.) Por fim eu os conduzi para a beira mar.


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Comentário: O inconsciente.

Dr. Jung: O mar é o símbolo das coisas que não podemos ver, da extensão
imensa das profundezas insondáveis, das possibilidades sem conta, e a isto
ela está chegando agora, ao inconsciente.

 Visão: (cont.) Eles me perguntaram: “Por que nos conduziste até


aqui? Não vemos nada”. Então todos eles foram embora,
deixando-me sozinha.

Por que ela está sozinha?

Comentário: Ela não pode levar a tribo inteira através da experiência que a
espera.

Dr. Jung: A questão, originalmente, era o que fazer com os animais, com a
natureza instintual. A proposição do culto de MITRAS foi matá-los, comê-los e
beber seu sangue, e assim assimilá-los, mas depois disso é necessário
assimilar aqueles que assimilaram os animais. Então ela continua até que
chega ao inconsciente, e lá o passado não pode entender o futuro, assim
simplesmente afasta-se dela; isto já não é um problema, porque agora tudo
está dentro dela. Aquelas formas externas, os matadores e suas vítimas
afastam-se e ela é deixada só à beira-mar. Qual seria a coisa sensível que ela
poderia fazer?

Respostas: Entrar no mar – nadar.

Tomar um navio e navegar.

Esperar por uma nova revelação.

Dr. Jung: Veremos o que ela diz.

A Mulher Nascida do Mar

 Visão: (cont.) Durante muito tempo contemplei as águas.


55

FIGURA PÁG. 174

Isto é o que ela devia fazer. Enquanto ela estiver em dúvida quanto a esta
possibilidade desconhecida, não deve apenas lançar-se nela, ela não deve sair
nadando, nem há muita chance, diante desta possibilidade desconhecida, de
haver lá um navio esperando para levá-la através do mar sem garantias. Em
geral, nada há, absolutamente, a não ser um paredão vazio e a coisa mais
sábia a se fazer em relação a um paredão vazio é sentar e fixá-lo
intensamente. Olhando para o mar, forçando a própria libido para dentro dele,
nós o engravidamos e então seguir-se-á um renascimento.

 Visão: (conclusão) Por fim as águas se abriram e delas ergueu-se


uma mulher, coroada com a luz. Na sua mão ela segurava
alguma coisa e a erguia para o céu.

Por ter sido para ela uma experiência muito impressionante, ela fez uma
pintura a respeito. Aqui está um nascimento do mar. Teriam uma
denominação para esta mulher?

Pergunta: Ela é AFRODITE?

Dr. Jung: APHRODITE ANADYOMENE seria uma bom rótulo clássico, ou há


algum mais literário?

Resposta: A Dama do Mar de IBSEN.

Dr. Jung: Ela é a dama casada com o mar e, evidentemente, AFRODITE, que
emergiu do mar, que nasceu da espuma, seria uma boa mãe para ela, ela
mostrou o caminho... Tudo depende de como entendemos AFRODITE:
AFRODITE URANIA representa o amor celeste e nada tem a ver com VENUS, a
mãe de todos os amantes. O amor tanto está em cima como embaixo.

Comentário: Eu penso que a pintura representou ela mesma.

Dr. Jung: Mas ela dificilmente pensaria de si mesma como possuindo a aura
de uma santa ou elevando-se das ondas de um modo tão celestial.
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Resposta: Ela estava perto de TAO, assim eu penso que ela agora está no
ponto em que pode desenvolver o corpo sutil. Este é seu corpo sutil, seu
SELF.

Dr. Jung: Oh, se o Senhor está pensando no SELF, isto é diferente. O Senhor
está correto: esta é a sua primeira experiência de SELF, de alguma coisa
emergindo nela, nascendo do seu inconsciente, que não é ela mesma, que ela
meramente contempla. Esta é a resposta para todos os seus problemas. Como
formulariam isso?

Resposta: Não é o EROS contra o LOGOS?

Dr. Jung: Oh, não! Está além dos opostos, como a imagem indica. As duas
ondas separadas sugerem um par oposto, direita e esquerda, e o símbolo
conciliador está no centro. EROS está aqui e LOGOS está lá, mas isto está
além; é o que se poderia designar psicologicamente como a Função
Transcendente. A figura que aparece é a idéia de SELF, o SELF objetivo, que
não é idêntico ao ego; é o não-ego psicológico...

Porque acham que ela teve esta visão do seu futuro SELF neste momento? Em
geral é necessária uma situação muito especial para que o SELF apareça: ele
só poderá aparecer se ela está constituída como uma totalidade; se ela não
está integrada, é completamente impossível. Então temos que constatar que
um processo de integração esteve ocorrendo. Ele foi simbolizado, primeiro,
pelo aparecimento dos animais, depois por aqueles resíduos fragmentados de
mentalidade antiga; assim, sua mentalidade parecia consistir de muitas
figuras dissociadas, parecia estar numa espécie de condição esquizofrênica.

Mas sua condição não era patológica: estas figuras eram como as vinte e
cinco figuras que, podem lembrar-se estão descritas em “O Segredo da Flor
de Ouro” e que aparecem no decorrer da prática da yoga chinesa. Lá, quando
certo estado de concentração e contemplação foi alcançado, os constituintes
da mente inconsciente começam a dissociar e separam-se numa série de
figuras. O número vinte e cinco é apenas simbólico; o que indica é
simplesmente uma multitude de figuras, e isto mostra a atual condição da
mente.
57

FIGURA PÁG. 175

Em outras palavras, a introversão da libido e sua concentração sobre o


inconsciente animaram todos os processos inconscientes e assim ocorreu uma
dissociação em muitas figuras. Como resultado da dissociação estas figuras
tornam-se visíveis e somente na medida em que são visíveis podem ser
assimiladas em sua personalidade consciente. Isto é o que estamos
observando agora; todas as figuras do passado agregam-se e desaparecem
como entidades separadas para dentro do seu SELF pessoal. Não poderíamos
dizer dentro da sua personalidade consciente, a despeito do fato de que uma
grande quota de libido entrou na sua consciência. O que acontece é que as
próprias figuras, na forma de imagens esvaziadas, retornam à condição
inconsciente original, deixando sua energia anterior na consciência, de modo
que a consciência aparece à superfície como uma forte unidade.

Isto está sendo mostrado na visão pelo fato de que ela estava sozinha e que o
inconsciente parecia estar vazio quanto a quaisquer imagens de seus
componentes anteriores; ficaram tão pálidas que se tornaram inefetivas. Ela
poderia ter suposto que nada era para ser visto lá. Mas então ela teve a
sensação de que depois de tudo alguma coisa podia ser vista; então
contemplou o oceano e dele surgiu aquela mulher branca com halo dourado,
que representava a idéia da sua própria totalidade. Agora pensam que estas
visões poderiam terminar aqui, que esta figura representa o sumo de tudo
que pode ser alcançado?

Resposta: Deveria ser.

Dr. Jung: É difícil imaginar o que poderia haver além disso. Nunca se deveria
esperar chegar exatamente ao SELF, porque o ego consciente ainda
permanece. Se esta mulher pensou que era idêntica ao SELF, simplesmente
estaria sofrendo de inflação e deveria ir imediatamente a um analista para ser
deflacionada. Mas tal visão de completude é tudo que se desejaria? O que
pensam?

Resposta: Ela poderia ter outra regressão.

Dr. Jung: Porque deveria ela regredir, se está a salvo?


58

Resposta: Ou ela poderia não perceber isto suficientemente.

Dr. Jung: Exatamente. Ela poderia ser obtusa, sem coração nem sentimento e
não perceber o que a figura significava; então, possivelmente, teria que pagar
por isso, que enfrentar as conseqüências.

Sugestão: Ela deveria ter que voltar a símbolos menos completos.

Dr. Jung: Sim, quando nós encontramos a idéia de TAO, ela era bem obtusa,
como viram; então ela desceu a verdades menores, mais errôneas, porém
mais acessíveis... Esta é uma visão esotérica, é a verdade, se ela pudesse
recebê-la. Mas pode ser que ela tenha que sair do interior do templo para as
cirunvizinhanças, por assim dizer onde a mesma coisa será repetida de novo e
de novo, em formas menores. Ela pode ter que se expor ainda inúmeras vezes
ao erro, a outras ilusões, mas cada vez a verdade se tornará mais acessível.
Daquilo que ela diz aqui é difícil ver qual será a próxima dificuldade.

Algo que necessita ser elevado

Mas há outro ponto a ser mencionado: a mulher na visão está segurando


alguma coisa nas mãos. O que estaria ela erguendo para o céu desta forma?

Respostas: Uma jóia.

Uma criança. Ou poderia ser um coração.

Dr. Jung: Seu gesto de adoração é muito clássico; podemos estar certos de
que seja o que for que ela esteja elevando, trata-se de uma oferenda preciosa
aos Deuses, ou o que quer que esteja acima. Isto é tudo que podemos
concluir, ainda assim somos forçados a supor que deve ser alguma coisa
destinada a alcançar além dela mesma. É antes, como se ela estivesse
justamente ajudando alguma coisa que tem estado submersa embaixo,
elevando-a aos céus. Então, talvez nossa interpretação desta figura como o
futuro SELF seja questionável. Talvez seria mais seguro dizer que a preciosa
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coisa simbólica que ela está elevando – a substância, criança, jóia – é o


verdadeiro SELF.

Sugestão: Poderia ser alguma coisa que ela tem que formar com suas mãos.

Dr. Jung: Esta é uma boa idéia. Embora seu gesto não sugira
necessariamente formar alguma coisa – vejam eu não formei esse cinzeiro,
mesmo assim posso eleva-lo – mas chamá-la um produto seria unir a idéia da
jóia e da criança, alguma coisa que ela produz quando a eleva à luz.

Sugestão: Poderia ser a coisa desconhecida que emergiria da sua vida: sua
função inferior, a parte inferior dela mesma que não é reconhecida nem
apreciada.

Dr. Jung: A idéia de que o último será o primeiro, de que o que estava oculto
virá à luz: uma enantiodromia muito adequada. Isto seria adequado e
explicaria o gesto de invocação desta figura. Aqui, a coisa mais ínfima está
sendo erguida para a luz como a mais preciosa. Mas o que é, permanece
obscuro.

Pergunta: Poderia ser o início do centro “diamante”?

Dr. Jung: Poderia ser o centro diamante, ou a Jóia no Lótus, e a Jóia no Lótus
é o BUDDHA criança... E agora devemos tentar de novo caracterizar a mulher
que está atuando aqui como intermediária.

Comentário: A figura da mulher tem algo semelhante a planta, em volta dela.

Dr. Jung: É verdade, e já encontramos uma figura assim antes. Lembram-se


da figura da mulher em pé, como uma árvore, com os braços estendidos para
o sol, como galhos? Lá, a poça de ouro era a substância preciosa abaixo dela,
e acima estava o disco do sol. Esta é, exatamente, a mesma idéia. Mas aqui, a
mulher que se ergue do mar não é mais a árvore. Ela tem uma forma
semelhante a planta, sustentando a flor do pensamento. Porque o
pensamento – e não me refiro ao “pensar” mas à forma mental – é produzido
pelo homem como uma flor. E esta é a idéia do centro diamante; é o Lótus ou
a Flor de Ouro. O que aconteceu antes era a transformação da nossa paciente
60

em uma árvore através da existência desconhecida e da atuação do centro


diamante dentro dela. Entendem? – este é o caso do arquétipo que,
totalmente desconhecido para ela, influenciou sua vida inconscientemente
numa tal extensão que ela representou o papel simbólico e teve as qualidades
simbólicas, pode-se dizer, do centro diamante...

É de grande interesse aqui a inter-relação entre este processo interno e o ser


humano. Quando ela apareceu como a árvore, aquilo era uma inflação: ela
não era uma árvore, mas tinha que representar o papel de árvore. Mais tarde,
quando estava andando no campo de trigo, havia um halo brilhante em volta
de sua cabeça; então, ela era o trigo, uma planta florescendo na luz de cima,
e este florescer não era no seu si-mesmo humano. Era um florescer
impessoal, além dela, poder-se-ia dizer que era o processo divido. Mas agora
esta figura que se eleva das águas é realmente ela mesma vivendo um papel
simbólico – em antecipação, é claro – porque, como mostra o sentido desta
visão, a ação essencial aqui é a elevação da jóia, da coisa que sempre vem de
baixo... Assim, esta mulher é ela mesma representando o mistério, o divino
processo que ocorre dentro de nós, paralelamente aos nossos comuns
processos psicológicos, mesmo que nada tenha em comum com a nossa
psicologia pessoal – embora influencie nossa psicologia pessoal
tremendamente... Esperar encontrar alguma coisa pessoal no processo divino
depictado (representado) numa tal série de visões seria absurdo. Seria como
procurar alguma coisa pessoal na lei da gravitação. Porque este, poder-se-ia
dizer, é um processo natural que peculiarmente desconsidera nossas
disposições e esperanças pessoais, nossos desejos e convicções.

Pergunta: Eu gostaria de saber se esta figura feminina não poderia ser


chamada aqui uma mediadora, talvez uma espécie de Puer Aeternus feminino.
O nascimento da figura teria indicado onde a paciente se coloca sob a torrente
de água e onde sente a corrente de vida dentro dela; seria uma espécie de
fecundação, e então depois, vem o nascimento da figura celestial...

Dr. Jung: Na realidade, esta é a estrutura do processo inteiro. O jorro de


energia para baixo, para as profundezas sempre significa uma fertilização,
porque é a água da vida. E a energia nunca pode ser completamente perdida;
nas profundezas ela sempre produz um efetivo equivalente de si mesma, de
61

uma forma ou de outra, um nascimento, um novo produto de alguma espécie.


A mulher que emerge, poderia ser chamada uma intermediária, ou uma figura
mediadora; é certamente uma transfiguração dela mesma, uma espécie de
ponte entre ela mesma e o hipotético centro que ela sustenta em suas mãos.
A figura também pode ser explicada como uma emanação do centro que a
transfigura como um ser humano comum e a exalta à posição de uma
sacerdotisa...

O Não-Ego

Pergunta: O Senhor usou o termo não-ego em conexão com o SELF


emergindo do ser, a primeira idéia da paciente sobre a sua totalidade. Quando
o Senhor fala sobre ele desta maneira, eu não entendo se o não-ego é um
oposto ou alguma coisa além dos opostos e feito de ambos.

Dr. Jung: A resposta depende inteiramente do ponto de vista do qual


encaramos o problema. Enquanto somos idênticos com a consciência e
pensamos que é a totalidade, então ela é a totalidade. Mas certo dia,
descobrimos, subitamente, talvez com a ajuda de uma neurose, que alguma
coisa está trabalhando contra nós, que alguma coisa nos atrapalha. Isto pode
tomar uma forma muito concreta; podemos querer escrever uma carta muito
amigável, por exemplo, mas ela sai rude. Tais coisas acontecem, os Senhores
sabem!... Coisas que de modo algum pertencem ao nosso ego, no sentido em
que o entendemos! Depois de um tempo, porém, sob a influência da análise,
veremos que o nosso ego não é apenas o que sabemos dele, mas alguma
coisa mais, além disso. Torna-se bastante evidente que aquilo que
considerávamos anteriormente uma estranha influência sinistra,
provavelmente devida a alguém mais... era simplesmente uma emoção nossa,
reprimida, que havia em nós um ressentimento que nos forçou a escrever
uma carta pouco cordial, bem contra nossas intenções.

O não-ego então, aparece como uma parte do nosso ego que não podíamos
admitir antes... Então, aqui, um aparente não-ego junta-se ao ego, já é mais
um oposto. Mas aquele não-ego nunca foi o não-ego real, era apenas um fator
62

artificialmente separado do ego. Estou certo de que, como crianças, teríamos


sabido que sentíamos daquela forma e que estávamos sendo, provavelmente,
uma criança malvada, mas depois, sob a influência da nossa educação e das
nossas muito caras ilusões, criamos uma idéia maravilhosa do nosso próprio
caráter...

Mas se podemos aceitar esta sombra que é apenas um aparente não-ego,


encontramos mais do verdadeiro não-ego no nosso posterior
desenvolvimento. Naturalmente, depois de uma análise freudiana ou
adleriana, podemos supor que adquirimos um pleno conhecimento de nós
mesmos, mais o que ocorre em seguida é que deparamos com um arquétipo.
Então percebemos que isto não é absolutamente nós mesmos e perguntamos:
“Mas onde fui arranjar isto?”... Como vêem, precisamos uma hipótese para
explicar como ocorre que parecemos saber certas coisas ou que elas nos
acontecem, ou que temos fantasias que não podem ser explicadas pela nossa
psicologia pessoal... O sonho de uma criança pequena, por exemplo, pode
conter alguma coisa que a criança não sabe, e só reconhecerá muito mais
tarde; ele pode prever sua inteira vida futura. Agora, este material vem do
inconsciente coletivo, e o mais definitivamente não do inconsciente pessoal.
Ele nada tem a ver com o ego...

O Oriente precisou da idéia da reencarnação para explicar porque temos em


nós mesmos conteúdos que certamente não são aquisições pessoais. Há muito
boas razões para a idéia de que vivemos vidas anteriores; esta hipótese de
forma alguma é absurda. Milhões de pessoas, não apenas no Oriente, mas no
mundo inteiro, acreditam na migração das almas. Constantemente ouvimos as
pessoas dizerem: “Eu devo ter sido assim ou assim numa encarnação
anterior”, ou “Eu devo ter feito isto ou aquilo para ter tal karma agora”. Elas
não falariam assim se não sentissem em si mesmas a presença de alguma
coisa pela qual elas não podem assumir a responsabilidade...

Então levanta-se a questão se esse fator não deveria ser assimilado em uma
nova e mais extensa consciência do ego. Se temos alguma experiência
telepática por exemplo, ou sonhos proféticos, isto parece indicar que o nosso
ego estaria muitíssimo estendido no tempo e talvez também no espaço, até
que chegamos a uma compreensão do ego que é absolutamente inconcebível:
63

ele se estende tão longe que finalmente somos todas as coisas, somos o
próprio Criador, somos tempo e espaço. Mas esta é uma terrível inflação: é
uma condição neurótica. Tornamo-nos inteiramente irreais, já não somos
seres humanos...

Não existe tal extensão, porque o ego está ali mesmo, uma coisa única,
limitada no tempo e no espaço e aparecendo só uma vez. Se nós
experimentamos alguma coisa que indica tal enorme extensão, então eu digo
que é como uma onda de rádio que começa em algum lugar e que nós não
percebemos, mas que não é nossa propriedade, ou uma parte de nós
mesmos. De certa forma, certamente ela pode tornar-se parte de nós
mesmos, como uma carta que eu recebo da Austrália pode tornar-se uma
parte minha, na medida em que eu a coloco no meu bolso e a uso como
melhor me agradar. Mas ainda assim não sou aquele que a escreveu. Assim, o
conceito que formamos do ego deve ter limitações definidas, e as limitações
são bastante óbvias; elas são espaço e tempo. Estas são as fronteiras da
extensão do ego, além das quais tudo é impessoal. Sempre foi assim e
sempre será. O que quer que esteja além é o inconsciente coletivo.

Chamando-o inconsciente coletivo, entretanto, não devemos pensar que


sabemos o que ele é. Certamente não sabemos; ele é a quantidade
desconhecida no mundo... Coletivamente nós não sabemos, nenhum de nós
sabe. Ele está lá, em todos nós, mas é apenas ignorância coletiva. Ainda
assim, alguma coisa vem dele, ou das profundezas do espaço ou do tempo;
confrontamo-nos com certos efeitos e os atribuímos ao inconsciente coletivo.
Mas nós nem mesmo sabemos exatamente o que eles são; podemos apenas
simbolizá-los. Sofremos um impacto da natureza desconhecida do
inconsciente e construímos uma espécie de imagética em volta dele, e este é
o símbolo. Mas o que era ele em si mesmo não sabemos, e nunca
saberemos...

Assim, o inconsciente coletivo é o verdadeiro não-ego, e ele faz sua primeira


aparição como um oposto, exatamente como fazem as qualidades da sombra.
É uma coisa estranha que subitamente está contra nós. E é o que há de mais
estranho, porque muito poucas pessoas realmente o encontram ou o
experimentam. Porque grande parte das pessoas está ainda lutando com suas
64

sombras; elas ainda não foram capazes de experimentar o fato de que suas
sombras são reais, elas têm o maior problema com isto. Mas só quando
houverem entendido isto, poderão encontrar o não-ego mais amplo. Esta é a
razão pela qual “Conhece-te a ti mesmo” é a pré-condição para experimentar
os mistérios. Se conhecemos a nós mesmos, podemos reconhecer alguma
coisa mais. De outro modo não temos medida. Se somos uma quantidade
desconhecida, como podemos reconhecer outra quantidade desconhecida?... O
verdadeiro encontro com o inconsciente coletivo só pode acontecer depois que
integramos a sombra, completando deste modo o ego. Então o ego
completado pode perceber-se a si mesmo como uma unidade frente ao não-
ego, e então ele pode sentir que o não-ego tem um caráter psíquico da
mesma forma que o ego completo tem um caráter psíquico. O não-ego é
sentido como um oposto só enquanto as suas intenções são opostas às
nossas...

A idéia de ego, por exemplo, seria dizer: “Há algo bom no topo daquela
montanha. Seguirei uma linha reta até lá”. Mas o caminho arquetípico não é
assim; é um caminho serpenteado que segue em zigue-zague e espirais até o
topo. Muitas vezes sentimo-nos frustrados por ele e levados a uma parada. As
pessoas ficam extremamente impacientes e mesmo desesperadas quando
nada acontece e elas chegam a lugar nenhum. Elas se sentem impedidas o
tempo todo; não entendem que isto é exatamente como deveria ser, que isto
é realmente sua única oportunidade de chegar ao topo. Porque é a única coisa
que têm que fazer é crescer para isto. O que eles estão tentando alcançar é
uma ilusão deles mesmos, não o fruto do crescimento e do desenvolvimento.
É por isso que o budismo afirma que nunca podemos atingir a redenção, o que
quer que façamos; temos que crescer para isto; mesmo o próprio BUDDHA
teve que passar por mais de quinhentas encarnações para atingir o NIRVANA.

Enquanto o não-ego parece ser oposto a nós, naturalmente o sentimos como


um oposto, mas depois entenderemos que o inconsciente coletivo é como um
vasto oceano, com o ego flutuando sobre ele como um pequeno barco. Então
quando vemos isto, surge a questão se estamos contidos no oceano. Vejam,
os navios estão contidos no Oceano de tal forma que fazem parte dele. E os
peixes são unidades vivas no oceano; eles não são absolutamente como ele,
65

mas estão contidos nele; seus corpos, suas funções, estão maravilhosamente
adaptados à natureza da água, água e peixe formam um continuum vivente.
Este ponto de vista é usado na biologia moderna para explicar os instintos,
porque os fatos mais notáveis foram descobertos sobre a adaptação de uma
forma viva a outra...

Quando aceitamos este ponto de vista temos quês supor que a vida é
realmente um continuum e destinado a ser como é, isto é, toda uma tessitura
na qual as coisas vivem com ou por meio uma da outra. Assim, as árvores não
podem existir sem os animais, ou animais sem plantas, e talvez animais não
possam ser sem o homem, o ou homem sem animais e plantas, e assim por
diante. E sendo a coisa inteira uma tessitura, não é para admirar que todas
as suas partes funcionem juntas, exatamente assim como as células nos
nossos corpos funcionam juntas porque são parte do mesmo continuum vivo.

O não-ego, deste ponto de vista, é quase uma conexão; ele é um meio que,
num modo peculiar, é também ele mesmo. Porque como o peixe pode dizer:
“Eu sou o mar”, assim o mar pode também dizer “Eu sou o peixe”. Pode
definir o indivíduo como sendo aquela Mônada, aquela unidade ou concreção,
que é aparentemente destacada da tessitura do inconsciente coletivo. E talvez
seja apenas o modo pelo qual ele é destacado, apenas o tamanho ou a forma
como é cortado, que indica o indivíduo particular, um tendo mais desta
substância e menos da outra, esta forma ou aquela forma. Mas todos são
sempre feitos da matéria do inconsciente coletivo; daí o extraordinário
relacionamento e semelhança entre o inconsciente coletivo e o SELF.

Assim, o SELF é parte do inconsciente coletivo, mas não é o inconsciente


coletivo; ele é a unidade que, aparentemente, resultou da união do ego com a
sombra. Nós designamos como SELF aquela totalidade em que tudo que é
consciente está unido com tudo que é inconsciente, com exceção daquelas
coisas que se estendem além das nossas limitações no tempo e no espaço. O
SELF é, na sua estrutura, como o inconsciente coletivo, e é também um não-
ego porque está além da nossa compreensão... Nós não o conhecemos, nunca
podemos conhecê-lo, porque ele é o círculo maior que inclui o círculo menor
da nossa consciência.
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Individuação

Pergunta: O Senhor poderia, por favor, dizer uma palavra sobre a


intensificação da consciência que o Senhor chama individuação?

Dr. Jung: Antes de tudo, individuação não é uma intensificação da


consciência. Ela é muito mais. Temos que ter consciência de alguma coisa,
antes que ela possa ser intensificada, e isto significa experiência, viva vivida.
Só podemos estar realmente conscientes daquilo que experimentamos, assim
individuação deve ser entendida como vida. Só a vida integra, só a vida e
aquilo que fazemos na vida, faz surgir o indivíduo. Não podemos individuar,
por exemplo, transcendendo-nos numa cela, só podemos individuar na nossa
vida concreta, nós aparecemos nas nossas ações, em nenhum lugar mais. A
verdadeira consciência tem que ser baseada ma vida experimentada, não
basta apenas falar sobre as coisas. Isto dá um tipo de compreensão
consciente, mas não é individuação. Individuação é realização através da vida.
Quando, por exemplo, uma célula se divide e se diferencia, e se desenvolve
numa certa espécie de planta ou animal, este é um processo de individuação.
Individuação significa que nós nos tornamos aquilo que somos, que
realizamos nosso destino, que consumamos todos os determinantes contidos
no germe... tornamo-nos o modelo original com que nascemos.

Pergunta: A individuação, no sentido em que estamos usando a palavra,


significa viver a vida conscientemente? Mesmo assim, uma planta individua
embora viva inconscientemente.

Dr. Jung: Viver conscientemente é a nossa forma de individuação. Uma planta


que é destinada a produzir uma flor não é individuada se não a produz, e o
homem que não desenvolve a consciência não é individuado, porque a
consciência é a sua flor, é a sua vida... Tudo que um homem faz, tudo aquilo
em que se empenha significa a sua individuação; é a realização, o
cumprimento de suas possibilidades; e uma de suas principais possibilidades é
o conseguimento da consciência. Isto é que realmente o faz um homem;
assim, para o homem, a vida deveria ser consciente.
67

TAO

Pergunta: Há a possibilidade de que o indivíduo possa efetuar uma união,


neste caso no nível consciente, com a totalidade da natureza da qual ele foi
temporariamente abstraído?

Dr. Jung: Individuação é a consumação da vida, assim sem individuado é


estar muito naturalmente unido com as leis do universo. E a consumação
ocorre no nível consciente, se é um assunto do indivíduo humano; esta
consciência está em acordo, naturalmente com a totalidade da natureza; é
isto que está expresso na idéia de TAO. Assim, na medida em que se pode
falar de completa individuação, eu diria que ela é uma experiência consciente
da totalidade da natureza. Mas tal coisa só seria possível se o indivíduo
consumasse seu ser completo cada momento de sua existência, vivesse o
inteiro modelo primordial, e todas as possibilidades com as quais nasceu.
Naturalmente, qualquer tentativa de uma vida provisória nos abstrairia
daquela consciência universal, porque no momento em que alguém olha para
frente, descuida-se do que está aqui... Somente quanto nos comportamos
exatamente como somos destinados a nos comportar, estamos... no nosso
lugar certo; então subitamente, compreendemos que tudo mais está no seu
lugar. Esta é a experiência que a antiga China chamava TAO, mas ele é um
conceito muito místico. Percebe-se como é rara, como é quase impossível tal
experiência, porque está ligada à completude da experiência em cada estágio
da vida.

Mesmo assim, a experiência do TAO pode ocorrer em qualquer tempo. Se


estamos psicologicamente na primeira parte da vida – isto não é
necessariamente uma questão de anos – e cumprimos os fins pessoais de
nossa existência, e o tempo é hábil, podemos ter tal experiência. Porque
compreendemos muito bem que um animal jovem, ainda no processo de
maturação é tanto uma consumação da totalidade da natureza como um que
está morrendo e que, se está morrendo de modo apropriado, também está
consumando a vida. Porque a idéia da vida inclui a morte. É um ciclo. Em
qualquer momento da vida existe a mesma possibilidade de experimentar
TAO. Os Senhores, provavelmente o experimentaram quando eram crianças e
acordaram no seu berço, pela manhã, e o sol brilhava no seu quarto; isto é,
68

os Senhores o experimentaram se seus pais não fizeram alguma coisa para


desviá-los. Mas é bem possível que eles tenham feito alguma coisa; então,
mesmo como crianças, os Senhores experimentaram apenas uma sensação
distorcida. Ou, como um jovem de quinze ou vinte anos, é possível
experimentá-lo, se cumprimos nossas próprias expectativas pessoais e
individuais, que são válidas nesta idade. E podemos experimentá-lo também
quando estamos desaparecendo, quando estamos morrendo, se o fazemos
adequadamente – isto é, como uma consumação em concordância com as leis
da natureza. Só isto é exigido, nada mais.

Muitas pessoas nunca sentiram tal realização natural em toda a sua vida,
porque são completamente distorcidas. Mas elas a experimentariam
instantaneamente se pudessem libertar-se de suas distorções. Neste
momento elas experimentariam TAO.
69
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE IX

Seminários entre 1 de junho de 1932 a 18 de


janeiro de 1933

SPRING 1968
2

O Cavalo Alado e a Estrela

 Visão: Eu montei em um cavalo alado branco que voou através


do céu. Passamos por nuvens negras e formos perseguidos por
muitos abutres negros, mas o cavalo alado era tão veloz que
os deixávamos para trás.

Aqui podemos logo fazer um diagnóstico. O que ocorreu?

Resposta: é uma inflação.

Resposta: Aquela figura de mulher da última visão estava elevando aos


céus a jóia, e agora ela está tentando chegar lá ela mesma.

Comentário: Tenho as minhas suspeitas sobre aquele cavalo alado. Aquele


Pégaso.

Dr. Jung: Sim. Eu concordo com o Senhor. – Pégaso está muito bem,
enquanto significa fogo, entusiasmo divino, intuição de palavras e
pensamentos divinos. Mas a situação torna-se questionável quando ela
monta nele. Isto não é uma coisa tão simples, uma vez que ela é feita de
matéria mortal. Entretanto, não quero ser cético. Temos que esperar para
ver como progride a fantasia. O que pensam do vôo deles?

Comentário: A negridão em volta deles mostra que ela não perdeu de vista
o perigo da sua posição.

Dr. Jung: Ou mostra que ela o perdeu de vista, se consideramos a visão


como compensatória. Em todo caso, significa um contraste com o cavalo
branco. Nuvens são muitas vezes comparadas com cavalos – cavalos
selvagens... Então, as nuvens seriam aqui cavalos pretos correspondentes
ou análogos a malévolas forças destrutivas. E os abutres pretos são aves de
mau agouro, eles se alimentam de carne em decomposição, eles são
associados com a morte.
3

Comentário: Um abutre preto era usado para representar o outro lado do


Espírito Santo.

Dr. Jung: Sim, era a sombra do Espírito Santo. Podemos dizer que as
nuvens pretas são a sombra do cavalo branco, simplesmente o aspecto
inconsciente dele. Toda essa negridão seria uma insinuação do fato de que
este cavalo branco, o que quer que ele signifique, projeta uma sombra
bastante negra. Mesmo assim, por enquanto, ela supera a sombra.

 Visão: (cont.) Chegamos a uma cidade branca nas nuvens. Na


praça da cidade o cavalo parou.

De novo estamos na cidade branca, e devem lembrar-se que quando ela


esteve lá pela primeira vez, ela não agüentou a luz, mas desta vez a luz
resplandecente não é mencionada, aparentemente ela pode suportá-la
agora.

Comentário: A cidade branca é Jerusalém.

Dr. Jung: Sim, ela é um símbolo de individuação, a Terra Prometida, ou, no


budismo, a Cidade do Mundo no Monte MERU. A praça da cidade é
semelhante ao centro quadrado na mandala tibetana, com quatro portões
significando as quatro funções. Assim, ela está chegando, com a ajuda do
cavalo, ao centro do SELF; à perfeita condição. Então o cavalo para, o
movimento chega definitivamente a um fim, e ela diz:

 Visão: (cont.) Lá eu vi uma estrela brilhante e conduzindo o


cavalo alado fui à direção da estrela.

A estrela presumivelmente, encontra-se bem no centro da praça, assim esta


é a idéia do centro diamante. Uma estrela brilhante é como um diamante e
com frequência se dá às pedras preciosas o formato sugestivo de uma
estrela. Ela continua:
4

 Visão: (cont.) E quando me aproximei vi que aquela estrela


estava na ponta de um bastão e a outra extremidade deste
trespassava o peito de uma mulher que jazia crucificada sobre
o chão.

Ela jaz sobre a cruz. Vou mostrar-lhes a pintura que a paciente fez disso.

FIGURA PÁGINA 183

Comentário: O que é estranho nisso é que a cruz jaz horizontalmente sobre


o chão.

Dr. Jung: Mas obviamente indica a tortura da crucifixão. E o cavalo branco


que aparece no fundo é um peculiar contraste a ela, por que a cruz é negra.
A cidade celeste é quadrilátera, ou pelo menos, seu fundamento está num
plano quadrangular. O centro dela é um quadrado e a cruz nesta pintura é
idêntica ao quadrado. A mulher sobre a cruz representa de novo ela
mesma; agora ela é a presa daqueles abutres, as nuvens se abriram e ela
está sendo crucificada e morta. O bastão que atravessa seu peito é como a
lança de LONGINUS que feriu o lado de JESUS; é certamente um símbolo da
morte. Para esta mulher no chão, a estrela, a jóia brilhante, traz a morte.

Comentário: Ao mesmo tempo, isto mostra claramente aquilo que o Senhor


falou antes: a diferença entre os dois SELF; um com o cavalo, que tem todo
o entusiasmo dos céus e é levado às alturas, e o ser pessoal, que está
pregado embaixo e sacrificado à terra e não pode, absolutamente erguer-
se.

Dr. Jung: Sim. O Senhor está certo quando interpreta a figura crucificada
no chão e incapaz de erguer-se como o ser pessoal e subjetivo. Ela é a
vítima sacrificial, a oferenda à estrela, a vítima daquele que se elevou com
Pégaso. Aqui vemos alguma coisa do conflito e da tragédia humana: de um
lado, a figura semi-divina elevando-se com Pégaso à cidade branca da
promessa; de outro, a figura sendo crucificada nesta cidade, sendo
inteiramente destruída. Agora, o que é a estrela ou jóia no fim do bastão?
5

Resposta: Parece como se a estrela houvesse estado nesta mulher e sido


libertada pela sua morte. É como se a estrela tivesse emergido dela.

Dr. Jung: O Senhor a compararia a uma planta, sendo a jóia a flor num
caule que cresce do seu coração? É possível fazer esta analogia, mas na
experiência dela não ocorreu deste modo; era antes como se a jóia ou
estrela houvesse descido sob a forma de bastão e atravessasse seu
coração. Aqui, de repente, ela vê todo o problema daquele SELF exaltado
sob uma luz inteiramente diferente, do outro lado. As nuvens desceram, a
negridão revelou-se, esta é a sombra da individuação; de um lado é a
liberação ou síntese de um ser superior, e do outro, esta sombra terrível, o
sacrifício do ser pessoal e terreno.

Comentário: Para atingir a estrela ela tem que matar seu si-mesmo pessoal.

Dr. Jung: De certo modo, sim. Ou poder-se-ia dizer que na medida em que
aquela estrela se manifesta, ela será necessariamente crucificada; em
outras palavras isto a força a tornar-se CRISTO... Como regra, a idéia
motivadora de uma nova religião, vem do simbolismo da religião que a
precedeu. Por exemplo, a idéia motivadora de uma nova religião para
suceder a era cristã seria que todos são CRISTO, que CRISTO é meramente
a projeção de um mistério inteiramente humano e que na medida em que
tomamos de volta para nós a projeção de CRISTO, cada um de nós é
CRISTO.

Não sou o único a ter tido esta idéia, outros pensaram nisso também:
JAMES JOYCE, por exemplo. Na cena do bordel, em ULYSSES, o profeta
prega em gíria americana, sua linguagem é ultrajante, blasfema, mas há
algo de extraordinário nela. “Apressem-se!” ele diz, “Unam-se aqui mesmo
para a Junção da Eternidade!” ou: “Agora estão íntimos com CRISTO e
SATÃ!”. Há seis pessoas lá, três meretrizes e três homens, e ele se dirige a
cada um pelo nome, KITTY CRISTO, FLORRY CRISTO e assim por diante. Ele
faz de todos eles um CRISTO.
6

No Egito, a alma imortal era projetada no Faraó, como OSIRIS. A idéia era
que só ele era imortal; todos os outros deviam morrer e desaparecer, se
não podiam subir na barca do Deus-Sol quando ele atravessava os céus. O
Cristianismo descendeu desta antiga idéia religiosa. Mas CRISTO disse que
todos tinham um OSIRIS, uma alma imortal; assim, aquilo que antes
pertencia só ao Deus tornou-se propriedade de todos. Depois da crucifixão,
entretanto, as pessoas comportaram-se como crianças irresponsáveis, elas
se livraram dos seus fardos e os despejaram sobre CRISTO. Mas agora
vemos que todos têm que se tornar adultos responsáveis, todos têm que
viver suas próprias vidas do seu próprio modo, sem imitar ninguém mais,
ou acreditando que é algum outro que não ele como é realmente. Então
agora seremos sacrificados. Agora cada um é um CRISTO e na medida em
que é um CRISTO, é sacrificado.

 Visão: (cont.) Eu retirei o bastão do peito da mulher.

Observem a extraordinária semelhança com o mistério cristão, com a lança


de LONGINUS que perfurou o lado de CRISTO. E ODIN, também, ficou
pendurado numa árvore durante nove noites, atravessado por uma lança.

 Visão: (cont.) A ferida curou-se imediatamente e a mulher


levantou-se. Eu disse: “Por que isto aconteceu contigo?” E a
mulher respondeu: “Durante um tempo longo demais eu
fecundei a terra.”

O que pensam desta passagem? Há uma analogia cristã, embora não deva
ser considerada muito literalmente.

Resposta: A ressurreição.

Dr. Jung: Sim. A lança foi retirada da ferida. CRISTO morreu, foi enterrado
e então veio a ressurreição. Temos que discutir esse simbolismo cristão,
porque ele está no nosso sangue; sempre o tomamos como certo e nunca
pensamos que poderia ser psicologicamente simbólico...
7

Suprema Alegria e Sofrimento Intenso

A idéia aqui é que a individuação significa intenso sofrimento, que a vida


mesma leva à crucifixão; em outras palavras, a um completo desabrochar.
Vejam: o desabrochar simbolizado pela cruz é o desabrochar da FLOR DE
OURO. Isto o expressa de uma forma muito bela, mas podemos expressá-lo
também na forma muito negativa de intenso sofrimento. De um lado é
quase uma alegria sobre humana, uma completa consumação; ainda assim,
de outro lado, no momento mesmo da consumação, há a mais profunda
dor, a dor do desespero. Essas coisas são difíceis de explicar, mas se
experimentaram alguma coisa deste tipo, nada mais preciso dizer. De outra
forma, poderia dizer volumes sobre isto e não entenderiam porque isto não
pode ser transmitido com palavras, é uma experiência decisiva.

Mas talvez eu possa explicá-la aproximadamente. Tentem lembrar-se de um


momento de completa alegria em suas vidas, depois separem-se dele,
movam-se ao redor dele, olhem-no de todos os lados e tentem ver se não
havia nele também uma intensa dor. Geralmente pretendemos: “Isso é
maravilhoso!” e com isto o evento passa a pertencer às coisas maravilhosas
que não têm espinho, aparentemente até se remove o espinho. Temos
gavetas para as coisas dolorosas, tentamos mantê-las à parte. Mas se
observamos adequadamente as coisas maravilhosas como acontecem na
vida real, na sua consumação efetiva, vemos e sentimos seu espinho.

Vou dar-lhes um exemplo: numa bela manhã, num acampamento perto de


um lago, um jovem de 20 anos acabava de preparar-se para velejar.
Subindo no barco, gritou para os amigos em terra: “Este é o momento mais
lindo de minha vida!” E caiu na água, morto. Tiraram seu corpo
imediatamente, mas ele já morrera. A morte foi devida ao timo. Pessoas
nas quais essa glândula permanece ativa além da puberdade morrem
jovens, sem razão aparentem, como se fulminadas por um raio. Aqui o
momento de suprema alegria na vida ocultava o ferrão da morte, mas havia
morte nele. Isto era bastante óbvio, todos puderam vê-lo. Se ele mesmo
soube isto, não posso dizer; talvez ele apenas conheceu a alegria, percebeu
a intensa beleza do momento, mas os outros viram que era a morte.
8

Um exemplo mais comum é o da pessoa que experimenta uma grande


sensação de vida e prostra-se na noite seguinte com uma febre. Este tipo
de sensação é o precursor da doença, muito conhecido dos médicos,
algumas vezes vem antes de uma doença muito grave. Tais casos são
óbvios, mas tornando-se mais sutis torna-se difícil percebê-los. Num
momento de suprema realização, fica-se tão fascinado pelo lado
maravilhoso da experiência, que se falha em perceber seu lado trágico;
naturalmente detesta-se ver isso. Às vezes, quando as pessoas não podem
defender-se de tal introvisão no aspecto sombrio de sua experiência, elas se
queixam de que não anormais, pensam que é uma neurose o que as faz
sentir a tragédia profunda de momentos como esse. Mas eu digo: “Não. Isto
é perfeitamente normal. Você observou a verdade.” Tão pouco sabemos
sobre a verdade da vida; tudo que sabemos sobre ela e sobre nossos
estados mentais é tão falsificado, que mesmo as pessoas que observam os
fatos pensam que devem estar enganados. Mas elas viram a verdade.

Exatamente antes disto – na visão da mulher que se elevava das águas –


nossa paciente emergia do inconsciente, do caos, das dores do trabalho de
parto para um momento supremo de intensa vida, segurando na mão o
grande tesouro. Este é o lado maravilhoso da experiência. Então,
instantaneamente, ela se encontra crucificada, não no céu, mas estendida
sobre a terra, e trespassada pela lança. Como uma estrela ela se eleva ao
céu, depois, trespassada pela mesma estrela, ela jaz, em tormentos, no
chão. O que é uma suprema experiência para uma parte da personalidade,
é uma terrível destruição para outra; a beleza espiritual mata a beleza da
vida terrena, e a beleza da terra mata o espírito. Esta é a verdade eterna. É
natural que nossa paciente não fosse capaz de unir estes opostos de uma
vez; tal paradoxo é difícil de entender, ele é demais dolorosamente
contraditório. A idéia de que o supremo bem é também o supremo mal fere-
nos tanto que não podemos concebê-la, mas é absolutamente verdadeira.

Não há muito tempo conversei com uma pessoa muito original que está
passando por experiências espirituais muito estranhas – não sob minha
influência, mas por ela mesma. Ela é, na realidade, um caso limítrofe, e ela
me disse: “Pensar sobre Deus é muito lindo, mas há algo de terrível nisto;
9

quando eu experimento a visão de Deus, de repente, tenho que me


perguntar, “Ele não pode?”, ou “Ele não fará”, isto é: Ele não pode fazer a
vida perfeita e o homem feliz? É possível que Ele seja ineficiente?” Como
vêem, ela teve experiências místicas notáveis, e ao mesmo tempo ela sente
a terrível ferroada do pensamento: “Pode ser que Deus seja também o
diabo?” Agora isto não seria realmente doloroso se sua consciência
estivesse suficientemente destacada para ver os dois extremos ao mesmo
tempo. Mas, para fazer isso, ela deveria ser capaz de suportar nela mesma
a dor do paradoxo, de ver nela mesma, ao mesmo tempo, os extremos.

A Natureza Demanda uma Morte

“Por que isto aconteceu contigo?” Pergunta a nossa paciente, quando


aquela mulher, que é também ela mesma, levanta-se do chão. E a resposta
é: “Durante um tempo longo demais eu fecundei a terra.” Fecundar uma
coisa o que significaria?

Resposta: Significa dar libido a terra.

Dr. Jung: Sim. Seria a libido biológica da manhã da vida. Podem ver que a
mulher que está crucificada viveu apenas a primeira parte da vida, e o
outro aspecto dela mesma é viver a segunda parte. A frutificação da terra
expressa aquele tipo biológico de vida meramente pessoal, e a outra pessoa
nela, como vimos muitas vezes no curso destas visões, simboliza a segunda
parte, o resultado último, a forma impessoal de vida. Assim, quando a
mulher crucificada reconhece o fato de que seu tempo acabou, ela está
superada, e isto é simbolizado pela cruz. Porque deveria ser assim?
Conhecem a simbologia da crucifixão de CRISTO? Quando ocorreu?

Resposta: No início da primavera.

Dr. Jung: Sim, perto do equinócio vernal. Aí ocorre o sacrifício do cordeiro.


Agora, o cordeiro na realidade é Áries, o pequeno carneiro... Quando o sol
mudou as eras do mês do Carneiro para o mês dos Peixes, o cordeiro foi
10

sacrificado... Este sacrifício da Primavera, no tempo do equinócio vernal é


simbólico: é o tempo da cruz vernal. O que é isto?

Resposta: O tempo quando a eclíptica cruza o equador.

Dr. Jung: Exatamente. O início da Primavera é exatamente quando a


eclíptica cruza o equador – esse conceito já era conhecido na antiga
Babilônia – e por isso a idéia da cruz tem estado sempre associada com
este evento astronômico... E no que consistia o sacrifício vernal na
antiguidade?

Resposta: Era o tempo do Passover (Páscoa).

Dr. Jung: Sim. Mas em particular era o sacrifício “dos primeiros”, das
primeiras frutas do campo, dos primeiros vegetais, dos primeiros cordeiros
e outros animais jovens. E CRISTO, o primogênito de Deus, é também
sacrificado no tempo do equinócio vernal. Este sacrifício de jovens era
chamado em Roma o versacrum, a primavera sagrada. O que simboliza
isto? Por que deveria a juventude ser sacrificada nesta época? Por que
devia, afinal, ser sacrificada?

Pergunta: Não está em conexão com a situação astrológica?

Dr. Jung: Aquilo era projetado. Esses sacrifícios ocorreram muito antes das
projeções astrológicas.

Pergunta: Trata-se de uma garantia do futuro, uma espécie de sacrifício


propiciatório?

Dr. Jung: Sim. Poderíamos dizer que as melhores coisas do momento eram
sacrificadas para propiciar os Deuses do futuro, para assegurar uma fértil
continuação do ano.
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Comentário: A visão diz que ela fecundou a terra durante um tempo muito
prolongado. O que quer que seja sacrificado agora não deve ser para a
terra, mas para os Deuses.

Dr. Jung: Sim. Isto tem o valor do sacrifício vernal. A coisa nova nasceu na
primavera. Aquela mulher emergindo das ondas simboliza o nascimento de
uma nova existência, de uma nova parte da vida, e ao mesmo tempo é a
morte daquilo que era anteriormente. E tal morte é um sacrifício, no sentido
de ter que ser uma morte voluntária. É por isso que, no simbolismo cristão,
a morte de CRISTO é voluntária, um auto-sacrifício. Assim, há muitas coisas
o simbolismo desta visão que a tornam análoga ao sacrifício cristão, e
também fazem dela uma ocorrência não natural como o sacrifício vernal da
antiguidade. Nessas associações está apresentada uma das coisas mais
naturais, mas antigas e pagãs, e ao mesmo tempo uma das mais cristãs.
Isto mostra que mesmo quando se tenta afastar-se de tais idéias, se é
conduzido de volta a elas, muito naturalmente, porque este é o caminho da
natureza. Aqui tenho que repetir as palavras de GOETHE que já citei em
outra ocasião: “A Natureza demanda uma morte”. É uma necessidade que
as coisas devam ocorrer deste modo. Assim, quando a paciente, consciente
e voluntariamente, cumpre esta lei, ela está em concordância com a lei
natural. Psicologicamente, isto significa que ela agora chegou ao momento
quando a primeira parte da vida definitivamente termina, e ela tem que, por
isso, sacrificá-la consciente e voluntariamente. Isto agora é passado e um
novo período começa. É através de tal introvisão e de tal decisão que ela
produz a ressurreição da mulher que foi crucificada.

Analogia com a Ressurreição Cristã

Porque o sacrifício não significa que a vida do corpo deva ser morta para
sempre e que nunca deva retornar; está destinado apenas a indicar uma
transformação. Esta idéia também ocorre – ou pelo menos a ela alude – no
dogma cristão da ressurreição do corpo, porque embora o corpo deva ser
mortificado no sacrifício, a ressurreição corporal inclui a idéia de que o
próprio corpo retornará. CRISTO foi enterrado, seu corpo era um cadáver,
mas ele ressurgiu dos mortos e nada deixou na tumba; seu corpo nunca
12

esteve morto, ele estava vivo e CRISTO voltou com seu corpo. Isto levou ao
dogma da completa ressurreição do homem, e se meditam sobre aquele
símbolo cristão, naturalmente chegam à conclusão de que ele antecipou um
futuro ponto de vista, uma futura ênfase na importância do corpo. Está
chegando um tempo em que se dirá: “Basta desta mortificação, isto omite e
menospreza o corpo”. Ele tem que ser sacrificado no equinócio vernal, mas
ele deve voltar, ele deve continuar a representar o seu papel. Assim, o
sacrifício da psicologia da primeira parte da vida não significa que depois
disso o corpo e sua psicologia ficam inteiramente excluídos. Antes,
continuamos com ele, temos um diferente conceito dele. Porque embora ele
não tenha mais o mesmo propósito, ele precisa viver e viverá. Se
continuamos a psicologia do sacrifício, não prestamos atenção ao corpo ou
tentamos esquecê-lo, então sofreremos sempre de uma dissociação. Mas
quando reconhecemos que o corpo agora está curado, então é realmente
como a ferida de AMFORTAS, estamos sintonizados com ele. Agora, alguma
coisa bastante esquisita ocorre.

 Visão: (cont.) Depois ela afastou-se pelas ruas desertas e eu


vaguei pela cidade, conduzindo o cavalo e segurando o bastão,
com a estrela dourada na ponta.

Vejam, ambas fazem a mesma coisa, mas a mulher que chegou à cidade
branca montada no cavalo branco, carrega a lança que feriu a outra. Nunca
sabemos o que foi feito da outra mulher, ela se afasta como uma sombra
vazia. Esperar-se-ia que as duas formas se tornassem uma, e que ela
viveria no seu corpo renovado, mas nada disso ocorre aqui; aparentemente
as duas se separam, e aquela com o cavalo branco, segurando a estrela, o
símbolo da individuação, e conduzindo o cavalo, toma seu próprio caminho.
Com isto, esta série de visões chega a um fim e ficamos na dúvida a
respeito do que teria ocorrido com sua sombra, com seu pobre corpo. O que
esperariam depois disso?

Resposta: Parece uma dissociação.


13

Dr. Jung: Aparentemente, tudo leva a uma união, mas o resultado é uma
dissociação. Agora, qual é a analogia histórica? O corpo de CRISTO ficou
inteiro e saudável, mas o que aconteceu então?

Resposta: As pessoas viram apenas o espírito da coisa.

Dr. Jung: Exatamente. Elas apenas pegaram o bastão com a estrela e


caminharam, deixando para trás o corpo. Não houve ressurreição do corpo.
A primeira tentativa disso começou na Renascença, quando apareceu, em
maravilhosa beleza outra vez, o antigo ideal. Mas isto durou apenas pouco
mais de um século e então chegou a um fim. Assim a história se repetiu; a
idéia da ressurreição do corpo era simbólica demais, demais avançada, as
pessoas ainda não eram capazes de aceitá-la. No Novo Testamento há
vestígios de um ponto de vista inteiramente diferente daquele do
cristianismo posterior; em certas passagens de SÃO PAULO há um
indubitável reconhecimento da ressurreição do corpo. Mas aquilo foi muito
adiantado. As pessoas não podiam suportá-lo. Ensinar o completo sacrifício
do corpo e de seus desejos e depois, que ele deveria ser aceito novamente,
era demais; o sim e o não estavam perto demais, ou um ou outro não seria
real. O corpo teve que ser sacrificado durante muitos anos, antes que isso
pudesse ser realmente entendido. Depois de quinze séculos pareceu
possível considerá-lo outra vez, mas isto provou ser cedo demais, assim
uma vez mais tornou-se impossível, desta vez pela Reforma. Há
historiadores muito inteligentes que dizem que se não fosse por LUTERO, os
Papas teriam conduzido o cristianismo de volta a um maravilhoso
renascimento da antiguidade... Mas com ou sem LUTERO, teria havido uma
contra-reação, era ainda cedo demais.

Assim quando a nossa paciente depara com a dificuldade de resolver esse


problema secular por seus particulares e modestos meios, não é para
admirar que ela emperra do mesmo modo, que ela deixa o corpo perder-se,
e vá embora segurando o bastão com a estrela.
14

A Tarefa Individual de CRISTO

Pergunta: Como se poderia dizer que CRISTO consumou plenamente sua


vida pessoal em ter casado?

Dr. Jung: Ele cumpriu seu destino individual; isto não é a mesma coisa que
a vida pessoal.

Pergunta: Mas a tarefa individual não inclui primeiramente a vida pessoal?

Dr. Jung: Não podemos fazer disso uma teoria. Há certas pessoas cuja
tarefa individual não é a comum vida pessoal; por exemplo, certas pessoas
são destinadas a ser monges... Esses casos existem e ocorrem no mundo
inteiro... Também é um fato que muitas pessoas casadas não têm vida
pessoal.

Comentário: Parece-me que CRISTO não observou a questão do corpo.

Dr. Jung: Mas ele foi crucificado, seu corpo teve um papel muito grande...
Mesmo assim tenho que confessar que fiz a mim mesmo essa pergunta:
como se teria desenvolvido historicamente o cristianismo se CRISTO tivesse
se casado, tivesse tido sete ou oito crianças para alimentar e uma família
para sustentar? As coisas poderiam ter tomado um aspecto diferente,
então. E outras pessoas fizeram a mesma pergunta também, embora talvez
não numa forma tão direta.

Isto implica certo criticismo, mesmo assim não podemos encarar a vida de
CRISTO de tal ângulo pessoal; só podemos afirmar que ele cumpriu sua
tarefa individual, e por isso sua vida – que foi sua tarefa individual –
tornou-se um símbolo tão importante... As necessidades psicológicas dos
seres humanos de dois mil anos atrás eram totalmente outras do que as de
hoje; uma vida espiritual unilateral era então uma necessidade absoluta;
enquanto aos nossos dias uma existência ascética já não carrega vida, está
morta.
15

BUDDHA começou sua carreira como um homem do mundo e mais tarde


converteu-se ao ascetismo bramanista; ele tornou-se um faquir, um santo,
e mortificou seu corpo durante anos, até experimentar a iluminação...
Depois disso, ensinou que os dois caminhos, o caminho do mundo e o
caminho do asceta, eram ambos um erro, mas que havia um caminho do
meio, o nobre Caminho Óctuplo do reto pensar, da ação reta, da reta
meditação, e assim por diante. Mas ele nunca disse o que eram o reto
pensar, a ação reta e a reta meditação. Como vêem, as respostas têm que
ser retas psicologicamente, elas tem que adequar-se. Mas a psicologia
hindu é inteiramente diferente da nossa, a verdade deles é uma verdade
diferente; assim, ele descobriu o caminho do meio, que não é este nem
aquele.

Para nós, entretanto, parece haver uma necessidade histórica para que
fossemos ensinados como fomos. Se nossos ancestrais não estivessem
prontos para aceitar tal ensinamento, ele nunca teria funcionado. Porque a
efetividade de um ensinamento está condicionada da mesma forma que o
poder da sugestão. Muitas pessoas pensam que qualquer um pode ser
hipnotizado, que só é necessário dizer “Você não tem dor de cabeça” ou
“Você já não sofre desta ou daquela dor”. Elas não levam em consideração
o fato de que para que a sugestão funcione já deve haver dentro da pessoa
uma prontidão inconsciente para isto. Mas se o sujeito não está pronto nem
inclinado a aceitar a sugestão, pode-se fazer o melhor para hipnotizá-lo,
sem sucesso. E as condições que tornam as pessoas prontas são muito
específicas.

O Poder da Sugestão

Por exemplo, lembro-me de um dos meus primeiros sucessos


psicoterápicos. Uma mulher de cerca de cinquenta e oito anos veio à minha
clínica de muletas, dizendo que sofria com uma terrível dor na perna há
dezessete anos. Contou-me uma longa história sobre isso, lamentando-se
muito. Finalmente eu disse: “Temos que fazer algo com isso. Vou hipnotizá-
la”. Imediatamente ela virou a cabeça para o lado e entrou num estado
sonambúlico. Achei isso estranho, mas deixei-a assim e ela falou e falou –
16

contando sonhos bizarros – através de uma experiência mais ou menos


completa do inconsciente coletivo. Naturalmente eu só entendi isso bem
depois; naquele momento simplesmente pensei que ela delirava. Mas
comecei a ficar assustado. Eu tinha à minha volta uns vinte alunos a quem
se supunha que eu estava demonstrando a hipnose, e eu pensei: “Agora
estou numa embrulhada”, e rezei a Deus para que fizesse um milagre para
esta mulher, porque eu perdera o pé completamente. Depois de meia hora
mais ou menos, percebi que devia tirá-la daquele estado, porque se tratava
realmente de um acesso. Tentei então acordá-la. Levou uns dez minutos,
mas finalmente consegui – tendo que mostrar-me confiante o tempo todo
para que meus alunos pensassem que eu estava no controle da situação.

Quando voltou a si, ela estava atordoada e confusa e, naturalmente, eu


disse: “Eu sou o doutor. Tudo está bem”. Neste momento ela exclamou:
“Mas eu estou curada!” E jogando fora as muletas, andou. Eu corei. Muito
ruborizado, disse a meus alunos: “Agora vocês viram o que pode fazer a
hipnose”. Mas, com os diabos, eu não sabia o que acontecera. Esta foi uma
das experiências que me afastaram deste campo, porque do mesmo modo
podia ter dado errado. Eu não podia entender isso, e presumi que vinte e
quatro horas depois ela teria uma recaída, mas aquela mulher estava
completamente curada. Ela foi embora, estava feliz e eu simplesmente
maravilhado com a graça do céu.

No semestre seguinte a mesma mulher voltou de novo, na minha primeira


aula. Desta vez ela tinha uma terrível dor nas costas, que começara pouco
tempo antes. Ocorreu-me que poderia estar em relação com o reinício do
meu curso – com o querer ver-me e receber um belo e espetacular
tratamento. Assim, perguntei-lhe quando começara a dor e o que
acontecera para provocá-la, mas ela não podia se lembrar. Concluí que
talvez não quisesse se lembrar, que poderia haver algo desagradável em
relação a isto, mas ela disse: “Não”. Finalmente “arranquei” dela que a dor
havia começado no mesmo dia e hora em que o jornal que anunciava a
reabertura da clínica cegara em sua casa. Então vi, pela primeira vez, o
mecanismo, mas ainda não entendia como eu a havia curado, e por isso
mantive-a ainda depois da minha aula para perguntar-lhe sobre a sua vida.
17

Veio à tona que ela tinha um filho idiota que estava na minha enfermaria,
na clínica. Eu não sabia disso, porque ela se casara novamente e tinha
outro nome. Mas este era seu único filho, e naturalmente, ela procurara
sempre um mais satisfatório, um filho que “prometesse” e fosse inteligente.
Eu era um jovem médico e então ela me tomou como um segundo filho e
disse a si mesma: “Eu farei um milagre para ele. Vale bem a pena para mim
fazer algo por ele”. E foi isso o que ela fez: criou uma grande “onda” de
reputação em torno de mim e isso me trouxe os primeiros pacientes: minha
prática psicoterápica começou com uma mãe que me colocou como
substituto para seu filho insatisfatório. No seu caso minha sugestão
funcionou perfeitamente, porque ela estava absolutamente madura, ela
estava pronta para explodir como uma bomba e ser curada de uma forma
espetacular.

Às vezes médicos tentam em vão curar pessoas que se curam mais tarde
em Lurdes ou outro lugar como esse. Geralmente são pessoas que não
acham que vale a pena ser curadas por um simples médico, mas sim pela
glória da igreja, para demonstrar a glória da graça de Deus ao mundo
inteiro. Essa foi a psicologia dos primeiros santos, como SÃO SIMEÃO
ESTILITA, que se equilibrou sobre um só pé em cima de um pilar durante
sete anos. Naturalmente ele se sentava e dormia a intervalos, mas toda a
sua ocupação consistia em ficar de pé sobre uma perna e milhares de
pessoas peregrinavam para vê-lo e maravilhar-se com o poder do espírito,
que o capacitava a fazer uma proeza dessas. Os faquires na Índia também
fazem coisas extraordinárias, e demonstrando o poder do espírito eles
adquirem tal mérito que bem merecem ser chamados santos. Porque é
tremendamente importante que a humanidade seja impressionada pelo
poder do espírito e acredite nele. De outro modo, as pessoas não podem
viver completamente suas vidas, elas degeneram em animais, em
vulgaridade e embotamento.

Assim, no tempo de CRISTO, o poder do espírito, que a sua vida sugeriu,


era exatamente a sugestão acertada. O fato de que hoje em dia levantamos
questões inadequadas em relação a isto, mostra simplesmente que, para
nós, sua vida já não é um símbolo indubitável, ela já não atua como atuou
18

naquele tempo, quando tal pergunta não poderia ter sido feita, porque não
teria sido possível viver uma vida como a dele se o espírito não tivesse sido
suficientemente forte naqueles dias para que alguém sacrificasse sua vida
pessoal a ele. O efeito da vida de CRISTO foi, como sabem, imediato; em
alguns séculos, cidades inteiras no Oriente ficaram despovoadas, porque
milhares de pessoas foram para o deserto, onde acabaram suas vidas como
eremitas. Isto mostra como estavam prontos para abandonar as formas
costumeiras de existência. Nós não sabemos do que o homem é capaz. Se
alguma coisa acontecesse agora, adequada a este momento como a vida de
CRISTO era adequada àquele, provavelmente veríamos fenômenos muito
semelhantes. Nunca estamos a salvo de tais extraordinários
acontecimentos. Se a palavra certa fosse pronunciada, ou se o símbolo ou
se o símbolo que expressa a maior necessidade do nosso tempo fosse
encontrado, as pessoas seriam tomadas por ele durante séculos, e nunca
fariam perguntas que destruiriam sua efetividade. Estas perguntas seriam
feitas dois mil anos mais tarde.

O Reaparecimento de Dioniso

Agora, antes que comecemos a fantasia seguinte, gostaria de saber o que


esperam os senhores que vá acontecer. Deve haver certa reação, assim
como houve historicamente; quando a ressurreição do corpo se tornou
alguma coisa como uma verdade vivente no tempo do Renascimento,
seguiu-se a reação espiritual do protestantismo que causou a Reforma na
Igreja Católica... Agora, o que podemos esperar neste caso?

Sugestão: Uma situação coletiva poderia vir outra vez, ou um animal, ou


alguma coisa dionisíaca poderia aparecer.

Dr. Jung: Isto é bem possível. Exatamente como depois do ideal católico de
mortificação do corpo na Idade Média, foram reavivados os sátiros e as
ninfas na Renascença. Agora veremos.
19

 Visão: (cont.) Eu vi um homem tocando flauta sentado sob


uma árvore. Seus olhos estavam virados para dentro de modo
que apenas o branco aparecia. Seu rosto era longo e emaciado,
a pele esticada. Ele parecia estar sofrendo.

Quem é este?

Resposta: PAN.

Dr. Jung: Mas PAN parece bastante doente. Tendo sido ofertado a um
monastério cristão, PAN está emaciado, sua pele esticada sobre os ossos...
Pobre velho PAN sofredor, batizado, domesticado e faminto, tocando sua
flauta sob uma árvore. Esta é a idéia do corpo negligenciado, naturalmente;
PAN sempre representa a vida do corpo e das coisas naturais. Algo tem que
acontecer para tirá-lo de sua miséria.

 Visão: (cont.) Enquanto ele tocava, um leopardo pulou da


árvore arrebatou a flauta com a boca e subiu aos galhos mais
altos. O homem caiu morto.

Assim, nada podia ser feito com ele. Ele estava no fim da sua “corda”, e
agora seu lugar foi tomado por um animal.

 Visão: (cont.) O leopardo tocou uma nota aguda na flauta


(Isto tem imediatamente um efeito mágico sobre a natureza
inteira). O Céu tornou-se escuro, com muitas aves que voaram
na direção da árvore. (Realmente um milagre dionisíaco-
órfico). E os pássaros gritaram: “Olhai, ele está vindo”. (A
saudação à Divindade). Eu vi um homem caminhando em
direção à árvore. Sua roupa era azul-escuro, seu rosto muito
belo. Ele disse “Ouvi minha própria voz que me falava”. O
leopardo jogou a flauta aos seus pés. O homem apanhou-a e
afastou-se.

O que pensam deste belo homem em roupagem azul?


20

Resposta: Penso que ele parece demais espiritual para a situação.

Dr. Jung: O leopardo era simplesmente a primeira forma do novo Animus, o


Animus em disfarce animal; aquele era um “leopardo-homem” o que
aparece no fato de tocar flauta. Assim, podia-se esperar que outro Animus
se seguisse, e aqui está ele. O homem em roupagem azul diz: “Ouvi minha
própria voz falando comigo”, aludindo à nota da flauta, e naquele momento
o leopardo joga a flauta e deixa a música para o recém-chegado que é,
obviamente, um Deus antigo. Por isso os pássaros cantavam: “Olhai, ele
está vindo”. O fato de que ele pega a flauta indica que tem algo da
qualidade de DIONISO, embora a roupa azul sugira alguma coisa mais
espiritual... Para onde teria ido?

Resposta: Encontrar aquela outra mulher?

Dr. Jung: Não tão depressa. Há um grande problema para ser resolvido
antes.

Resposta: Está indo para um templo.

Dr. Jung: Está certo. Mas para que espécie de templo?

Resposta: Um templo pagão.

Dr. Jung: Não. Cristão.

 Visão: (cont.) Ele chegou a uma grande catedral e entrou. Ela


estava vazia, salvo por uma figura com capuz preto diante do
altar. O homem aproximou-se da figura e viu...

O que pensam que ele viu? Esperar-se-ia que ele encontrasse a mulher,
mas não, absolutamente, ele viu “...um esqueleto...” Ele encontra apenas
morte na catedral... Ele está demonstrando a ela que o ponto de vista
cristão é vazio e morto.
21

 Visão: (cont.) Então, erguendo a flauta até os lábios ele emitiu


uma nota aguda e selvagem. As paredes da catedral racharam
e caíram em volta dele e nada restou a não ser o altar e o
esqueleto aos seus pés.

Isto é perfeitamente claro, é como os muros de Jericó caindo ao toque das


trombetas feitas de chifres de carneiros, de JOSHUA.

 Visão: (cont.) Ele tirou a cruz do altar e colocou-a sobre o


esqueleto. Ele chutou e derrubou o altar e foi embora.

O Animus está mostrando a ela de uma forma drástica que esse ponto de
vista inteiro tem que ser abolido. Mas por que deve ele demonstrar isso
com uma ação tão blasfema?

Resposta: Porque ela ainda tem a atitude cristã.

Dr. Jung: Exatamente. Por isso ela afastou-se de seu corpo... O que
aconteceu é a separação da alma KA da alma BA. Estes são antigos
conceitos egípcios: a alma KA é a alma substancial terrestre; a alma BA,
representada como um pássaro-homem ou um pássaro com cabeça
humana, é a alma espiritual. Elas são como a KUEI e o SHÊN na metafísica
chinesa, que se separam depois da morte, sendo a KUEI a alma física, o ser
fantasma que aparece antes e depois da morte, e o SHÊN, a alma espiritual
que se eleva para a luz, para os mundos espirituais, que desaparece no
princípio YANG, por assim dizer...

Aqui, a própria paciente está numa condição dissociada, a alma espiritual


separada da alma física, e esta separação levou ao reaparecimento de
DIONISO como um princípio. Primeiro ele apareceu como um animal
selvagem; depois veio a imagem do antigo Deus, não mais exatamente o
mesmo como DIONISO, mas semelhante a ele, e que mostrou a ela que a
igreja estava vazia. A que levará isto?

Resposta: Levaria à reunião das duas almas.


22

Dr. Jung: Sim. Não é natural que sua alma corpórea ande numa direção
diferente da alma espiritual. As duas deviam estar juntas. A separação só
deveria ocorrer depois da morte. Assim podemos esperar alguma coisa
como uma nova união. Este homem antigo deveria fazer alguma coisa com
isto. Quem é ele realmente?

Resposta: Um outro psicopompo que vai conduzi-la.

Dr. Jung: Sim. Ele é uma figura de Animus que aparece sob a forma de um
Deus, e esta é uma forma que ele pode assumir facilmente, por causa de
suas qualidades divinas... as qualidades que tornam as mulheres vítimas
sem recursos do seu poder, e destroem aquelas que se identificam com ele.
O mesmo é verdade a respeito da Anima... Estas figuras são divinas como
as antigas divindades foram divinas, tendo o caráter de existir além do bem
e do mal. Elas nunca podem ser encaradas de qualquer ponto de vista
moral.

Agora esta figura é o Animus positivo; ele aparece na sua vestimenta


divina, por assim dizer, atuando como um psicopompo e faz o que esta
mulher deveria fazer ela mesma. Mas devido à separação entre as duas
almas, ela está numa condição incapacitada; neste caso, aqui poderia ser
dito que o Animus está assumindo o papel do SELF, o fator que deveria
estar no centro e que deveria dirigir e coordenar todas as nossas ações. É
importante ver o que ele fará agora para juntar a alma do corpo e a alma
do espírito...

Comentário: Ele tem que formar um novo símbolo.

Depois da Destruição

 Visão: (cont.) Ele entrou numa caverna escura. Havia água no


fundo da caverna e muitos monstros estranhos flutuavam nela.
Quando ele olhou estes monstros, eles estenderam grandes
tentáculos e tentaram arrastá-lo. Eles puxaram sua cabeça
para baixo até que ela tocou na água.
23

Então, depois de demonstrar o vazio da igreja, ele cai numa grande


escuridão subterrânea. Isto é muito humanamente compreensível. Vejam,
quando o Animus faz uma coisa dessas a sombra cai sobre a consciência;
sentimo-nos vazios, escuros, desorientados, e usualmente sofremos uma
depressão. Aqui, tudo submergiu no inconsciente, e esta cavidade escura
está no corpo; é a cavidade abdominal do plexo solar. Menciono isso porque
alguma coisa aparecerá para consolidar o que estou dizendo.

Agora quando jogamos fora todas as nossas convicções, a nossa inteira


WELTANSCHAUUNG (modo de ver o mundo), isto realmente significa
destruir um mundo. Porque o mundo é exatamente como nós o vemos, não
conhecemos outro mundo senão aquele que vemos, e naturalmente isto e
restrito; não é um mundo perfeito ou completo, é apenas aquilo que
percebemos. O desmoronamento de uma WELTANSCHAUUNG sempre
produziu uma revolução geral, um tempo de catástrofe, uma completa
reviravolta, não apenas de condições políticas e sociais, mas também
econômicas. O tempo dos césares romanos nos primeiros séculos da nossa
era foi uma fase assim de transformação...

A destruição de uma verdade eterna e até então firmemente acreditada, de


forma alguma é um assunto simples. Podemos pensar que é
suficientemente simples jogarmos fora a crença supersticiosa de que há um
Deus de alguma forma responsável por este mundo; afastamos a idéia e
pensamos que nada aconteceu, que isto faz pouca ou nenhuma diferença.
Mas uma mudança psicológica ocorreu. Quando estamos convencidos de
que um ser todo-poderoso governa nossa vida, nossa condição é bem outra
do que quando o negamos, porque então já não rezamos para este ser, e
depois disso, na medida em que ele representa um fator que realmente
existe, ele entra em nós. Nós chamamos isto nossa superstição e
recusamos aceitá-lo, e depois disto tornamo-nos Deus nós mesmos, isto é,
agora funcionamos como se fossemos Deus. Assumimos que temos tais e
tais convicções, que produzimos tais e tais pontos de vista, em lugar de
entender que Deus nos deu certas idéias pelas quais deveríamos agradecer-
lhe. E isto nos leva à condição em que estamos hoje: nossas neuroses são
24

devidas a isto. Sofremos a inflação do homem branco; mas a inflação será


estourada...

Esta visão descreve o que acontece quando uma WELTANSCHAUUNG


existente é derrubada. Imediatamente o Animus desaparece na escuridão.
Até agora ele estava no mundo; porque o mundo espiritual da Idade Média
era bem ordenado, cada coisa estava no seu lugar como Deus havia
designado, como uma peça de sutil arquitetura... Mas tão logo este estado
chega a um fim, o Animus desce para o inconsciente.

Se ele é um Animus positivo, ele não cria uma neurose, como faria no caso
contrário. Neste caso, pode-se supor que ele trará à tona alguma
contribuição para um novo símbolo. Este seria um tremendo
empreendimento e, naturalmente, ficar-se-ia febrilmente curioso sobre o
que seria este símbolo. Mas as coisas não são tão simples. O Animus
sozinho é incapaz de fazer emergir o símbolo, ele só pode fazer emergir um
símbolo, presumivelmente o símbolo adequado a ela psicologicamente e
isso a conduzirá a novo desenvolvimento. Então, o seu desenvolvimento
juntar-se-á ao desenvolvimento de outros, e o produto último de todo o
desenvolvimento será o símbolo. Como veem, um grande símbolo é algo
inteiramente coletivo. O Animus nunca pode produzi-lo sozinho; ele pode
apenas fazer uma aproximação, uma tentativa de criar alguma coisa que se
assemelhe ao símbolo. Temos que ser muito modestos e cuidadosos a este
respeito. Mas de uma coisa podemos estar certos: quando o Animus
positivo desce ao inconsciente coletivo, algo positivo acontecerá.

O Novo Sol e a Criança

 Visão: (cont.) Ele viu um peixe dourado que gritou em voz


alta: “Olha a parede da caverna”. O homem olhou e viu, sobre
a parede da caverna, um disco dourado. Com grande esforço
ele libertou-se dos monstros e subiu da caverna.
25

Este é o fim da visão. Eu lhes disse que a cavidade para a qual ele desceu
era o abdome, e agora, na parede do abdome ele vê o disco do sol, que
seria o plexo solar... Assim esta cena se refere em primeiro lugar ao nervo
simpático [sistema vegetativo, simpático e parassimpático] e isto é muito
misterioso. Não vamos pretender entendê-lo por enquanto. Mas o que dizer
do peixe? Por que deveria o peixe chamar atenção dela para o plexo solar
nestas circunstâncias, exatamente quando ela desistiu da sua antiga
WELTANSCHAUUNG?

Pergunta: É a idéia do peixe trazendo à tona uma jóia que estava embaixo?

Dr. Jung: Exatamente como foi suposto que um peixe trouxe o anel dourado
de POLYCRATES [tirano que ao pedido do povo joga anel no mar e que volta
dentro de um peixe], ou a jóia, das profundezas do mar, assim pode-se
dizer que este peixe está trazendo o sol. Mas como podemos prová-lo?

Resposta: O peixe é o antigo símbolo da cristandade?

Dr. Jung: Exatamente. CRISTO, como ICHTHYS desceu ao submundo. Essa


é a antiga forma do Animus; ainda é dourado, ainda é luminoso, e está
chamando atenção para o sol na parede. O símbolo cristão, o peixe, está
apontando para o novo sol que se levanta. Isto é como a referência de SÃO
JOÃO BATISTA a CRISTO: “Ele tem que crescer, mas eu tenho que diminuir”
(SÃO JOÃO, 3:30). Outra conexão com o sol é fornecida pelo motivo do
profeta JONAS, segundo o qual o sol, supostamente, antes de erguer-se
está na barriga do peixe; então o peixe é dominado, sua barriga é aberta
quando ele chega às praias do Oriente e sai dele um novo sol, o herói.
Assim, esta visão é um mito do herói. O herói antigo desceu agora às
profundezas do mar, e do mar emerge uma nova divindade, idêntica ao
plexo solar.

O começo da consciência está no nervo simpático, esta é a sua origem. Se


alguém pudesse vê-lo, ele apareceria como alguma espécie de inseto ou
verme, uma criatura de sangue frio possuindo apenas um sistema nervoso
simpático da forma mais inferior que se pudesse imaginar. Primeiramente
26

ele seria extremamente imperceptível e com facilidade poderia ser


esmagado, como um pequeno verme, e por isso facilmente confundível com
algo mais, que também começa no plexo solar: uma neurose, por exemplo.
Dificilmente existe alguma neurose sem um distúrbio do nervo simpático,
em todos os casos de histeria há algo de errado com ele – indigestão,
dificuldades sexuais e assim por diante. Assim, podemos pensar em uma
neurose como um desagradável vermezinho, uma coisa que não deveria
existir. Geralmente, a coisa nova, também, aparece como algo que,
aparentemente, nunca deveria ter nascido – e disto é confirmado pela
sabedoria antiga, na profecia messiânica de ISAIAH, por exemplo, que
mencionou tantas vezes (IS, 52:14; 53:2s). A coisa nova não tem beleza, é
insignificante e desprezível, podendo assim ser facilmente tomada por uma
neurose. Mas uma neurose é também o começo de um novo caminho, ela
pode ser entendida como uma “revelação rateada”, estragada porque a
consciência era demais estúpida para compreendê-la, para perceber que o
caminho errado era, de fato, precisamente o caminho certo. Ainda assim,
este é o motivo em milhares de contos de fadas, como sabemos; em todas
as histórias sobre o Pequeno Polegar, a coisa, que parece ser a menor e a
pior, revela-se como a melhor.

Inspirado por esta visão do disco na parede, o Animus faz agora um enorme
esforço para livrar-se dos monstros, e sobe da caverna. O que temos aqui,
como disse, é o antigo mito sobre o monstro do mar do qual emerge o
herói, isto é, o novo sol. O herói é a manifestação humana do sol, eles são
idênticos; ele seria, supostamente, um filho do sol, o filho do céu e seu
semblante assemelha-se ao sol. Aqui este mito repete-se como uma nova
verdade, ele vive de novo. O sol se pôs, desapareceu na água e está
completamente morto, mas reaparecerá em uma nova forma. Porque em
uma caverna debaixo do mar, onde ninguém o presumiria, na completa
escuridão onde nenhum olho humano pode vê-lo, lá embaixo, o sol está se
erguendo. Assim, este momento na visão realmente significa o emergir do
novo ponto de vista, mesmo que ela não tenha percebido isto
conscientemente. A visão seguinte mostra o primeiro efeito do sol nascente.
27

 Visão: Eu vi dois anéis de ouro sobre o solo preto. Um anel era


menor e estava circundado pelo anel maior. Dentro do anel
menor havia um menininho, como no útero... Eu quis chegar
até a criança que estendia seu braço para mim, mas eu não
sabia como passar sobre o anel de fora.

Nasceu o herói-criança. Estes são os anéis dourados que irradiam do sol, e


no centro está o herói. Os anéis são halos em volta da criança divina. Aqui
começa a psicologia da mandala... Quando o sol se ergue, começa-se muito
naturalmente a produzir círculos... e agora é como se uma criança houvesse
nascido dentro dos círculos. A coisa que mais atrai uma mulher, uma
criancinha desamparada, vai puxá-la para o centro; ela tem que alcançar a
criança lá, porque é a coisa mais preciosa, o tesouro. É por isso que
começou a existir a psicologia da mandala. Temos aqui toda a sua história:
o nascimento do novo símbolo como o sol nascente – sendo a mandala o
disco do sol – e a visão da criança no centro, para a qual a mulher é
atraída. Esta é a evolução do sol que nasceu dentro, invisivelmente. Ele
parece causar um especial tipo de emanação que ó pode ser descrita
desenhando círculos. Como os halos de santidade, de divindade, eles
formam um círculo mágico. Eles têm um significado de proteção.

 Visão: (cont.) Sentei-me durante muito tempo pensando como


poderia alcançar a criança. Eu vi serpentes sobre os anéis,
levando alimento para ela.

Aqui está a pintura da criança em posição embrionária dentro do útero, com


três serpentes dirigindo-se para ela. O curioso é que há três e não quatro.

Desenho da página 195.

 Visão: (cont.) Desesperada, eu tentei quebrar o anel externo.


Mas ele continuava firme... Chorei e minhas lágrimas caíram
sobre ele, mas apesar de tudo não consegui quebrá-lo. [Em
seguida apareceu um velho sábio, cego, e ela perguntou o que
deveria fazer.] Ele disse: “Mulher, tens que perder um de teus
28

olhos”. Depois de ter falado, ele desapareceu. Então o vento


soprou para dentro do meu olho esquerdo uma semente e eu
sabia que tinha ficado cega.

Assim, nossa paciente está tentando chegar à criança. Quer tomá-la nos
seus braços, mas não pode atravessar aqueles círculos mágicos... O fato de
que está tão atraída pela criança indica que, neste momento do seu
desenvolvimento, a idéia de uma criança chegou a ela, como uma mandala
apotropáica ou protetora – como uma proteção contra as influências
sobrepujantes do inconsciente. O inconsciente esteve inteiro sobre ela,
como puderam ver. Ela foi jogada das alturas até as profundezas, do fogo
para a água, tudo que poderia acontecer com ela aconteceu, e isto a mostra
despedaçada por mil demônios. Assim, é natural que ela desenvolva uma
tendência para contrair-se, para buscar proteção e abrigo, o que tente
cercar-se com alguma coisa que a mantenha inteira. Os três anéis de ouro,
por exemplo, a manteriam inteira. Ou o que mais faria isso? Uma criança a
manteria inteira. E assim a idéia de ter outra criança ocorreu a ela, porque
ela era ainda jovem, e ter uma criança seria protetor. Quando uma mulher
está grávida ela forma um círculo mágico... e tudo fica um pouco abafado...
Uma parte importante da avidez e da acuidade consciente recolhe-se,
porque toda a libido é dada à criança em desenvolvimento. A criança,
então, poder-se-ia dizer é o centro da mandala, e a mãe simplesmente o
anel protetor em volta dela...

E o simbolismo de sacrificar um olho? Há paralelos para isto. Para garantir a


aquisição da sabedoria secreta, WOTAN sacrificou um olho a MINIR, que era
o manancial de toda a sabedoria. E HORUS sacrificou um olho a seu pai
OSIRIS. Sabem como OSIRIS perdeu seu olho?

Resposta: Ele olhou para baixo e viu SET.

Dr. Jung: Sim. Certo dia ele estava olhando os seus reinos embaixo, quando
sentiu de repente uma dor aguda no olho esquerdo e ficou cego. Seu filho
perguntou o que havia ele visto e ele respondeu: “Um porco preto”. Este
era SET, como sabem; ele viu o princípio escuro, o diabo, e esta visão o
29

cegou. Então HORUS lhe deu seu próprio olho e depois disso tinha um olho
apenas. Assim, aqui esta situação eterna está se repetindo. A semente que
penetra no seu olho esquerdo e o cega é como SET no olho esquerdo de
OSIRIS, mas aqui é uma semente e obviamente deve desenvolver-se em
algo, por que a semente é, com certeza, a concepção. E o que está
transmitindo para ela o conselho do velho, nesta visão?

Resposta: Teria isto a ver com a possibilidade da criança ser projetada na


realidade ou permanecer como um símbolo?

Dr. Jung: Exatamente. Deveria ser uma criança real ou imaginária?... Ela
está inclinada a pensar que deveria ser real, mas esta visão diz que a
concepção desta criança se inicia de uma semente no seu olho, e disto ela
nunca terá uma criança real. Ela será visionária ou espiritual.

 Visão: (cont.) Deitei-me na escuridão, enquanto grandes


pássaros colocaram-me à minha volta.

Pássaros são seres do ar, eles vivem no ar e podem voar: assim, eles são
sempre símbolos para pensamentos ou conteúdos psicológicos. Grandes
pássaros significariam grandes pensamentos pairando em volta dela.

A Mãe-Terra Significa Realidade

 Visão: (cont.) Por fim, uma mãe-terra chegou até mim. Ela
arrancou o meu olho dizendo: “Ponho este olho no meu regaço,
onde todas as coisas definham, morrem e renascem.”

O que significa que a mãe-terra pega o seu olho?... Mais tarde verão que
uma árvore cresce, presumivelmente do olho que a mãe-terra tirou dela. O
que significa aqui o aparecimento dela? Em certo pondo os senhores se
lembrarão que vimos a paciente deitada sem recursos, no regaço da mãe
(pág. 16 – parte III). O regaço é equivalente ao útero, ela estava no útero
da Grande Mãe.
30

Pergunta: Não era a figura do Animus no colo da Grande Mãe?

Dr. Jung: Sim, naturalmente. Aquele era o Animus, atuando como


psicopompo, fazendo primeiro o que ela mesma faria mais tarde. Porque
mais tarde ela entra na Grande Mãe; isto ocorreu quando ela foi
transformada em árvore (pág. 49 – parte III) e ela estava ainda idêntica
com a árvore quando foi à Grande Mãe para iniciação. Mas naquela fase,
naturalmente, ela estava inflada; agora, como veremos, a própria árvore
dela se destaca, o que significa que ela está voltando daquela inflação. Ela
começa a compreender que não é ela mesma que desenvolve, mas aquilo
desenvolve nela – e através dela, já que a árvore está crescendo do seu
olho... Agora, isto é a Grande Mãe, de novo... Quando ela aparece isto
significa que coisas estão para acontecer, vão tornar-se realidade; esta é
uma lei inexorável. Por isso na Grécia a Grande Mãe é HECATE, a deusa do
submundo... Ela é uma deusa lunar, deusa de tudo o que é escuro,
misterioso e temível; temível, porque quando ela aparece as coisas se
tornam reais. Assim quando a mãe-terra chega e pega o olho da paciente,
significa que o que vai acontecer a ela é para ser levado tão a sério como
uma gravidez real... Este símbolo da mãe-terra sempre tem consequências
tremendas. Quando alguma realidade que esta mulher não aceitou antes,
vem agora a ela; terá que ser aceita; alguma coisa acontecerá na realidade,
e será simbolizada por uma árvore, a qual significa desenvolvimento.

Em outras palavras, o desenvolvimento não ocorre quando alguém apenas


imagina, ou pensa, ou tem intuições sobre as coisas. Podemos ter
maravilhosas visões e fantasias, mas elas a nenhuma parte conduzem, se
não crescem e não se tornam reais, se a nossa vida real não é tomada por
elas. Esta parte do simbolismo mostra que ela só pode alcançar a criança se
aceitar voluntariamente aquele destino particular que ela significa, como
uma realidade tão inevitável como a realidade de uma verdadeira criança –
cujo nascimento poderia até mesmo custar-lhe sua própria vida. O que quer
que seja, este destino – este tipo de vida – tem que ser aceito; se é
desagradável ou não, será o caminho. Isto acontece agora... A mãe-terra,
que significa realidade absoluta, abre os anéis.
31

 Visão: (cont.) Levantei-me e vi que os anéis estavam


quebrados. (Ela agora pode entrar na mandala). Caminhei até
a criança e erguendo-o nos braços eu disse: “Agora cresce,
como cresce a árvore.”

A criança é a árvore e a árvore é a criança. O que é esta árvore?

Resposta: A árvore da Yoga.

Dr. Jung: Sim. A árvore da Yoga outra vez, o caminho impessoal... não o
caminho do seu ego. Ele toma posse dela, exatamente como uma criança
crescendo no seu ventre tomaria posse dela e lhe outorgaria um destino
inevitável... Porque uma mulher que tem um filho não é mais um agente
livre; é mera imaginação pensar que ela é; ela está amarrada à terra. E na
medida em que esta criança cresce, ela estará amarrada pelo seu próprio
crescimento particular. Não se pode evitar isso; só podemos ser gratos se
as coisas tomam um rumo certo, porque elas também podem andar mal.

Assim, ela entra na mandala e toma a criança nos braços, o que significa
que ela aceita este trajeto de vida. Então ela fala com a criança, dizendo:

 Visão: (cont.) “Eu dei meu olho para a terra e tu o receberás


quando te tornares uma árvore”.

Agora o que significa isto?

Resposta: Não é um novo ponto de vista? Ela terá agora uma visão de ego,
e também uma visão de não-ego.

Dr. Jung: sim. A criança representa a vida de não-ego, que é como a vida
de outra pessoa e tem seu próprio ponto de vista especial; aquele outro lho
enxerga dentro da vida impessoal... Quando ela toma a criança nos braços
e diz a ela: “Agora cresce, como cresce a árvore”, este é o desejo mágico.
Com ele, ela outorgou o poder de crescimento, ela delegou sua própria
libido ou mana à criança, e assim renunciou ao seu próprio crescimento em
32

favor dela. Em outras palavras, ela investiu sua libido na senda da mãe
esquerda, no caminho impessoal...

A Quarta Função

Figura página 197

Chegamos agora ao fim do primeiro volume de visões da paciente... Depois


disto, durante certo período, ela produziu mandalas sem textos. Aquela com
a criança no centro e as três serpentes foi a primeira. Seguiu-se uma outra,
um pouco mais tarde, onde ela está o centro entre chamas e quatro
serpentes saem de sua cabeça... Nesta pintura, a roda atrás dela tem oito
raios, duas vezes quatro, e há quatro serpentes, sugerindo que agora ela
compreende, ou está aprendendo por meio do fogo, que há quatro
serpentes, não três. Em outras palavras, ela incorporou a coisa que está
fora dela, a contraparte masculina de si mesma, a qual significa a função
inferior, porque esta sempre está na posse do Animus. Quando ela houver
integrado a quarta função, ou tentado integrá-la, haverá quatro serpentes...

Enquanto nos consideramos como seres de um único sexo, somos capazes


de nos manter unilaterais, podemos projetar tudo no nosso vis a vis.
Tratando-se de uma mulher, ela projeta tudo que ela considera ligado ao
homem, em um homem, julgando-o inteiramente masculino, e
identificando-se inteiramente com o feminino... Ela não tem absolutamente
qualquer introvisão do fato de não ser exclusivamente mulher. E um
homem projeta sua Anima em uma mulher, nunca duvidando de que esta é
a mulher real. Mas quando a condição biológica é superada pelo destino,
pela necessidade, então os quatro aparecem. Uma mulher que não pode
escapar na gravidez e no ter filhos, depara com o fogo do inferno, toda a
sua criatividade começa a devorar dentro dela. E um homem pode
encontrar um obstáculo na sua carreira, e ser incapaz de criar e construir.
Então sua criatividade começa a devorá-lo como um fogo e então ele
descobre que ele não é um homem apenas, mas bastante curioso, também
uma mulher. Do mesmo modo, ela descobre que ela não é apenas mulher,
33

mas também um homem. Há alguma pergunta sobre este simbolismo em


particular?

Pergunta: A razão pela qual o “três” é de tão grande importância no


cristianismo, é que todas as influências femininas foram afastadas?

Dr. Jung: Eu diria que a influência feminina foi afastada porque os homens
eram apenas homens, e todo o feminino estava na mulher. E, como sabem,
o quarto é sempre o demônio...

O quarto, quando não é entendido como pertencente a nós mesmos, é a


coisa que projetamos. A mulher projeta o que parece não pertencer a ela,
sua essência masculina, sobre um homem e vice-versa... Então a outra
pessoa torna-se o representante da função inferior. Nós sempre
esquecemos isto porque, por muitas razões, somos naturalmente inclinados
a supervalorizar o objeto humano. Quando estamos enamorados de
alguém, ou forçados pelas circunstâncias a lidar com certas pessoas,
tentamos ser otimistas a respeito disso, e os fazemos melhores do que são,
para facilitar as coisas... Mas exageramos nisso, supervalorizamos e
estabelecemos nossos objetos, durante todo o tempo reprimindo o fato de
que eles, invariavelmente, nos presenteiam com nossas qualidades
negativas, que são receptáculos para nossas projeções. O que pensamos do
objeto de nossas projeções não é agradável, e não queremos saber disso.
Mesmo assim, aquilo que reprimimos naturalmente vem à tona. Podemos
pensar de certa pessoa que ela é terrivelmente agradável, enquanto não
vivemos com ela na mesma casa. Mas se vivemos junto com ela durante
certo tempo, fazemos descobertas extraordinárias; descobrimos nossa
função inferior e, já que recusamos reconhecer que ela é projetada,
pensamos que é a outra pessoa. E nós também representamos a função
inferior para ela. Porque a função inferior é sempre projetada. Assim, na
humanidade, ser uma trindade significa, tanto quanto eu posso vislumbrar,
a condição na qual homens nada mais são do que homens e mulheres nada
mais são do que mulheres, na qual eles projetaram tudo mais, toda a sua
inferioridade, toda a escuridão, no outro objeto...
34

Agora quando começamos a desenvolver nossa introvisão, nossa


compreensão psicológica, não é possível evitar ver que aquilo que
experimentamos com outras pessoas é realmente nós mesmos. Por
exemplo, depois que passamos por uma série de experiências
desagradáveis, todas mais ou menos semelhantes, embora ocorridas com
pessoas muito diferentes, finalmente chegamos à conclusão de que isto
pode ser, de algum modo, nosso próprio erro; que podemos ter estado a
fazer o mesmo tipo de coisa repetidamente, sem percebê-lo, e isto nos
leva, lentamente, à idéia de que podemos ter estado projetando alguma
coisa sobre as outras pessoas. Tal percepção é uma espécie de grelhar
lento, começamos a transpirar como um bife sobre a chapa, transpiramos
pensamentos. Então alvora dentro de nós que não somos três, mas quatro;
no caso de um homem, que um quarto dele é feminino e vice-versa,
tratando-se de uma mulher, e que nós devemos ter as mesmas qualidades
que estávamos vendo no objeto. Assim ocorre o reconhecimento do quatro.
E no céu isto significaria uma grande mudança também, significaria trazer
SATÃ para a Trindade...

Voltemos às visões... É curioso que o segundo volume de visões da


paciente, ao qual chegamos agora intitula-se Os Doze Círculos. Disto
podemos concluir que ela está realmente dentro, que ela entrou na senda
da mão esquerda e está se desenvolvendo do lado interior. Quero deixar
claro este ponto, antes de continuar... Ela está presa no círculo mágico e
daqui para frente, tudo que acontece, acontece lá... Porque se alguém está
na mandala, está preso. Do mesmo modo como o círculo mágico mantém
afastados fantasmas e demônios, assim também o próprio mago está
aprisionado dentro dele; ele está protegido por ele, mas também
aprisionado. Para a nossa paciente, as situações que emergem agora são
inevitáveis e inescapáveis, não importando o que sejam. E o efeito é o
mesmo na sua vida pessoal. Lá, estar no círculo mágico significa que ela
tem que aceitar certa situação. Não faz absolutamente diferença qual é esta
situação, porque tudo na vida real pode tornar-se um fato inevitável.
Vejam, podemos aceitar uma situação de um modo mais ou menos
provisório, prometendo a nós mesmos que podemos sair dela quando as
coisas esquentarem demais; ou podemos aceita-la para sempre, e então
35

sentimos que... estamos dentro para isso, o que faz uma diferença
enorme...

Nada seria acrescentado à compreensão dos Senhores se soubessem o


destino particular que a nossa paciente teve que aceitar na sua vida pessoa,
seria mesmo inadequado saberem; porque se eu lhes dissesse o que ela
teve que aceitar, diriam: “Ah! Isto é o que se tem que aceitar!” e estariam
cometendo um grande engano, porque cada pessoa tem alguma coisa
específica para aceitar. No entanto, já que estamos sempre em dúvida – e
gostamos de estar em dúvida, porque gostamos de viver a “vida provisória”
– estamos sempre buscando ansiosamente um exemplo... Mas isto é um
erro, é o que há de mais enganador. Podem estar certos de que ela teve
que aceitar exatamente tanto quanto cada um tem que aceitar, apenas não
a mesma coisa, talvez algo bem diferente. Vamos dizer simplesmente que a
coisa que ela teve que aceitar é o que quer que seja de que queremos
escapar.

A Visão do Precipício

 Visão: De novo eu me aproximei do precipício e olhei para


baixo, para o vale das fábricas.

O precipício é onde termina o mundo, onde começa o inconsciente. Assim,


isto significa: “De novo me aproximo do inconsciente”. Quando ela chegou
ao círculo interno na última visão, estava bem definido. Podemos presumir
que ela pensou: “As coisas, aparentemente, chegaram a um fim”. Mas
então ela descobriu que não tinha chegado ao fim. Assim, ela diz “De novo
me aproximei do precipício”... E agora ela olha para baixo, para um vale de
fábricas. O que significaria isto?

Comentário: Está parecendo manipûra, o centro ígneo na Kundalini-Tantra.

Comentário: Parece ser um lugar de produção.

Dr. Jung: Sim, lá há caldeiras, fumaça, chaminés. Lembra o vulcão.


36

Comentário: Mas agora é feito pelo homem.

Dr. Jung: Exatamente. Ele agora é feito pelo homem, é um vulcão artificial.
E o que significaria isto?

Resposta: Há algum controle sobre ele.

Dr. Jung: Sim. É um vulcão domado, em que os poderes elementais do fogo


e da água fervente, os processos de criação são pegos e moldados pela mão
do homem... Como os pegou ela?

Resposta: Entrando do círculo e entregando seu olho, aceitando a vida


impessoal.

Figura página 199

Dr. Jung: Entregando sua vida à criança, parando sua própria vida
pessoal... não mais dizendo: eu tenho tal e tal emoção, eu odeio, eu amo e
eu estou com raiva. Quando fazemos isto somos rasgados em pedacinhos,
somos nós mesmos uma ardente caldeira explosiva... Então a Kundalini-
Yoga dia que estamos em MANIPÛRA, um centro inteiramente egoísta...
Mas se podemos pegar todo este fogo e usa-lo, então ele estará
acorrentado; este é o ato sacrificial. Também, quando entramos no círculo,
uma forma divina nos envolve, já não somos mais o animal raivoso e
selvagem que éramos. Assim, ela chegou a um ponto de vista superior... O
começo de uma consciência objetiva. Agora ela enxerga quando está
emocionalmente afetada. Percebendo-se num estado de ânimo muito
desagradável, ela pode, muito politicamente, avisar os outros, dizendo:
“Não cheguem perto, eu estou cuspindo fogo”. Este é o ponto de vista de
um ser superior. Como está isto simbolizado na Kundalini-Tantra?

Resposta: Pelo PURUSHA.

Dr. Jung: Sim. Os três chakras superiores, ou círculos, através dos quais a
serpente Kundalini sobe, se caracterizam pelo fato de que se pode ver o
37

PURUSHA, enquanto nos três inferiores (nos três primeiros) não se é mais
do que um ego controlado pelos poderes elementares... Podemos supor que
agora ela esteja mais ou menos no chacra ANÃHATA (o quarto), já que este
é o primeiro centro de consciência objetiva.

 Visão: (cont.) Eu vi no céu a figura de um ser circundado por


uma grande luz.

Figura página 200

O que seria essa grande luz acima e a figura?

Resposta: É a consciência.

Resposta: A figura é PURUSHA.

Dr. Jung: A luz é a consciência destacada, e isto é o PURUSHA. Agora


podem ver porque eu coloco tanta ênfase no conhecimento do sistema
Kundalini de chacras; ele dá uma possibilidade real de pôr as coisas em
ordem.

Pergunta: A criança não era também uma espécie de PURUSHA?

Dr. Jung: Com toda a certeza. Mas na forma da criança, os poderes


elementares o ocultam. O PURUSHA é o primeiro broto verde oculto no
centro do MULADHARA, é o início, e ocorre primeiro na forma de uma
semente ou um ovo. Depois no chacra da água, no SVADHISTHANA, ele
cresce. E no chacra do fogo – isto é, em MANIPURA – ele se desenvolve; do
fogo ou, poder-se-ia dizer da fumaça do chacra MANIPURA, desenvolve-se o
PURUSHA. Esta é certamente, uma idéia muito alquímica, todo o
simbolismo alquímico está contido nela.

 Visão: (cont.) Nos seus braços erguidos ele segurava um arco


flamejante.
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Comentário: Isto sugere APOLO, atirando flechas de fogo que atingem seu
alvo. Ele tem a meta, é uma consciência dirigida.

Dr. Jung: Sim. E a cabeça da figura é circundada por luz, assim poderia ser
um símbolo do Sol, como Apolo com suas flechas que alcançam longe... Mas
nós temos que pensar também na psicologia e na mitologia hindus. Isto se
parece muito com um daqueles Deuses indianos que carregam todas as
espécies de emblemas, armas e implementos. Poderia ser SHIVA, por
exemplo, eu tenho em casa uma figura andrógina de SHIVA, dançando e
carregando o arco de KAMA-KAMA, o Deus do amor, está também equipado
com um arco (como EROS, o AMOR)... Mas se colocamos uma particular
ênfase no arco como sendo uma arma, para que serviria?

Resposta: É o modo de ele superar a escuridão.

Dr. Jung: Sim. Ele atira raios de luz dentro da escuridão.

Comentário: Tem-se uma sensação de que todos esses Deuses e Deusas


hindus estão armados uns contra os outros, mesmo quando aparecem nos
chacras.

Dr. Jung: Esta também é uma idéia. Vamos supor que seja assim, então
contra que estaria armada esta figura do PURUSHA?

Resposta: Contra o feminino.

Dr. Jung: Oh! Proteger-se contra a influência do feminino, significando ela


mesma? Bem, veremos o que acontece. Há um outro aspecto disso.

 Visão: (cont.) Estrelas caíam de sua cabeça.

Ele está espalhando estrelas. Isto mostra que é realmente uma figura
cósmica e PURUSHA naturalmente tem um aspecto cósmico. A típica
formulação hindu de PURUSHA é: “Menor do que o pequeno, ele habita o
coração humano, com o tamanho de um polegar. Ainda assim, maior do
39

que o grande ele cobre toda a terra, com a altura de dois palmos”. Como
uma inundação ele cobre tudo.

Em Cima Humano e Embaixo Serpente

 Visão: (cont.) A parte inferior de seu corpo era uma serpente


que atingia, embaixo a terra em ebulição.

Este é um ser monstruoso; em cima ele é humano e embaixo é uma


serpente que alcança as mais extremas profundezas. Se expressarmos isto
em termos de filosofia hindu, o que seria?

Resposta: A árvore da Yoga.

Dr. Jung: Exatamente. A criança cresceu em uma árvore peculiar, humana


em cima e serpente embaixo.

Comentário: É a kundalini.

Dr. Jung: Sim, é também a Kundalini. Abaixo do diafragma esta figura é


toda serpente, são os intestinos com seus movimentos peristálticos, o
verme que alcança até a profundeza. Mas a mesma coisa que é verme
embaixo é divina em cima... Como sabem, Kundalini se transforma no
caminho para cima até AJÑA; na parte inferior escura onde PURUSHA não
aparece, a serpente é preta; ali se está absolutamente engolfado na
natureza, na emoção e nada além de emoção é percebido porque não é
percebível.

Já falei a alguns dos senhores sobre as tribos primitivas que visitei na


África, que reconheciam a espécie de sensação que provoca emoção no
abdome. Muitas vezes observei que se eles não estavam excitados ou
impressionados com alguma coisa, não pareciam existir conscientemente.
Eles ficariam de cócoras durante horas, sem qualquer objetivo, e
aparentemente sem um pensamento. Uma outra estória deste tipo é
contada, creio, sobre um esquimó; quando lhe perguntaram se ele estava
40

pensando quando atuava deste modo, ele ficou zangado, porque, para ele
pensar significava aborrecer-se. A suposição parece ser que um homem que
pensa deve, em conseqüência, ficar aborrecido, triste ou zangado, ou talvez
mesmo muito mau... Para a mente primitiva um homem que pensa é
esquisito, ele pode ser um feiticeiro cheio de veneno e ódio. Esta é uma
atitude da condição MANIPÛRA; quando temos este ponto de vista estamos
dentro do monstro. Mas quando passamos através do diafragma estamos
fora do monstro; então podemos ver que a coisa que nos continha era
realmente um ser divino, embora do lado nos parecesse uma grande
serpente. Esta é a razão pela qual este ser é representado como um
monstro. Os senhores conhecem um símbolo paralelo a este, homem ou sol
em cima e serpente embaixo?

Resposta: Sim. Ele aparece no simbolismo gnóstico.

Dr. Jung: É o símbolo gnóstico do ABRAXAS. ABRAXAS significa trezentos e


sessenta e cinco, é um nome completamente artificial, é a soma do valor
numérico das letras que dá trezentos e sessenta e cinco. Eles o usaram
como nome para a sua suprema deidade, ele é o ano, é um Deus do tempo.
A mesma coisa está expressa como la durée créatrice na filosofia de HENRI
BERGSOON, porque tempo e poder criativo são absolutamente idênticos.
Mas este pensamento não se originou em Mr. BERGSON. Ele chama sua
filosofia de intuitiva, mas sua intuição era uma espécie de criptomnésia de
PLOTINUS, o antigo neo-platonista, que dizia que onde há tempo, há
criação – que criação e tempo são o mesmo.

A escola filosófica de que ABRAXAS é a criação foi chamada GNOSE. Era um


movimento amplamente difundido que começou antes da nossa era e
continuou nos primeiros séculos do cristianismo, antes de ser quase extinto
pelos esforços desesperados da Igreja; foi o mais sério competidor do
cristianismo. Até certo ponto fundiu-se com o cristianismo; por exemplo, na
figura de SÃO PAULO que, para começar, era um gnóstico. Podemos
encontrar sinais do gnosticismo nos seus escritos; na idéia de thronoi kai
archai, os principados e potestades, por exemplo. Thronoi significa tronos,
ou como aqui significa idéias dominantes ou princípios dominantes, e archai
41

significa princípios em grego. Os archai eram entendidos como seres


semelhantes aos aiontes, e aiontes é o plural de AION que significa um
princípio eternamente vivente. Aqueles que conhecem algo do culto de
MITHRAS lembrarão que perto do altar de uma gruta mitráica geralmente
se encontrava uma estátua do leontocephalus; ele é chamado AION... os
aiontes são archai, poderíamos dizer; eles... eram também conhecidos
como archontes, significando os dominantes.

Agora, estes são princípios metafísicos de um tipo mais ou menos


personificados, e são bastante semelhantes àquilo que chamaríamos
arquétipos ou que os hindus chamariam samshkãras. A idéia de ABRAXAS é
a soma total de todos aqueles poderes samshkãras do mundo arquetípico. E
porque este mundo arquetípico do inconsciente coletivo é extremamente
paradoxal, apresentando sempre tanto o sim quanto o não, esta figura de
ABRAXAS é o começo e o fim, é vida e morte. Por isso é representado por
uma configuração monstruosa. ABRAXAS é um monstro porque ele é a vida
de vegetação durante o ano inteiro, a primavera e o outono, o verão e o
inverno, o sim e o não da natureza. Assim, ele é realmente idêntico ao
DEMIURGO, que é o CRIADOR do mundo. Como tal ele é também,
certamente, idêntico a PURUSHA, ou a SHIVA (que no fim é PURUSHA) e
SHIVA é o Criador.

Deuses Intelectuais e Abstratos

Assim, a figura que a paciente descreve aqui aparece como uma intuição do
princípio divino, uma serpente preta em baixo e luz em cima, humano e
divino, a primeira experiência do ser divino depois que se chegou além do
diafragma. Nos tempos homéricos, a mentalidade inteira era frênica ou
emocional, e os Deuses eram extremamente belos, eles possuíam
qualidades muito positivas. Mas pouco antes do começo da nossa era
aqueles antigos Deuses começaram a decair, tornaram-se fracos e ridículos,
e então uma idéia como esta de ABRAXAS, pode emergir, e era uma criação
filosófica artificial... A escola filosófica de Alexandria foi, provavelmente, o
berço da idéia de ABRAXAS, e antes de ABRAXAS, a primeira tentativa que
conhecemos párea formular esta espécie de Deus era SERAPIS. Esta é uma
42

história complicada, mas vale a pena estudar como foi produzido SERAPIS;
é um produto inteiramente artificial da mente filosófica e religiosa...

Vejam, os antigos Deuses simplesmente costumavam revelar-se a si


mesmos, como visões eles se introduzem na sociedade humana como belas
e bem-acabadas figuras, eles não eram inventados, eles simplesmente
apareciam. Mas esses Deuses posteriores, o grego SERAPIS de Alexandria
bem como ABRAXAS, mostram claramente que foram feitos por homens. O
próprio nome ABRAXAS, mostra isso; é quase inimaginável para nós como
poderia trezentos e sessenta e cinco ser um Deus, mas não é
incompreensível para uma mente apaixonadamente filosófica que toma suas
idéias como manifestações da divindade. Enquanto idéias antes dessa eram
meramente os pensamentos de homens, elas agora adquirem uma
qualidade divina... Tão logo se iniciou a filosofia grega, os belos Deuses
Olímpicos, que anteriormente incorporavam as idéias dos homens sobre a
vida feliz, começaram a empalidecer e esvaeceram como as estrelas quando
o sol se ergue. E as formas subseqüentes que os Deuses assumiram foram
invenções humanas.

Nessa linha de desenvolvimento chega o THEOS ANTHROPOS, que é


também uma idéia filosófica. Poder-se-ia pensar que ele não é
absolutamente grego, mas ele foi produzido por gregos no Egito... O Deus
cristão pertence também a esta linha, mas não é exatamente uma idéia
intelectual ou filosófica, ele é a idéia do amor, que é sentimento. O Deus
cristão é simplesmente uma contraparte dos Deuses filosóficos; quando
CRISTO chamou Deus “Amor”, ele atribuiu a qualidade de divindade a uma
condição de sentir, enquanto os gnósticos e outros cultos paralelos como os
estóicos e os neo-platônicos adoraram conceitos filosóficos. PLOTINUS e os
neo-platônicos tinham a idéia de que Deus era fogo, ou luz, ou criação, ou
tempo e nada disto tinha alguma coisa a ver com sentimento, era tudo
filosófico, intelectual. Mas o cristianismo enfatiza o sentimento, e o princípio
do sentir venceu; as interpretações intelectuais da divindade foram banidas
da existência. Por exemplo, os pontos de vista de SÃO PAULO foram, sob
alguns aspectos, mais intelectuais do que aqueles da Igreja de PEDRO,
mesmo assim, a Igreja de Pedro mais ou menos destruiu a linha gnóstica no
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cristianismo, embora haja ainda evidências dela no Evangelho de SÃO JOÃO


e em SÃO PAULO. Esta idéia de ABRAXAS descreve exatamente a condição
psicológica que prevalecia no começo de nossa era, a transição mental
frênica para a condição ANÃHATA, o atravessar da linha divisória do
diafragma.

Pergunta: O mitraismo não mostra até melhor a realidade dessa passagem?


Matando o touro?

Dr. Jung: Ele mostra a dinâmica; e o sacrifício cristão do cordeiro também


mostra isso. Até certo ponto, o aspecto duplo da deidade está também
evidente no mitraismo; muitas vezes se tem a idéia de que MITRAS é o
touro e também o matador – na realidade ele foi mesmo... E MITRAS foi um
Deus do tempo também...

Comentário: Isto me sugere os dois pássaros na árvore nos UPANISHADS,


que o Senhor mencionou algumas vezes, um dos quais come o fruto da
árvore enquanto o outro, sem comer, observa.

Os Dois Aspectos da Alma

Dr. Jung: Esta é a mesma coisa, mas dentro da esfera pessoal. Vejam, o
homem é assim, enquanto come a doce fruta da terra, ele também observa
o comer, ele é mais ou menos consciente. Mas ele pode estar inteiramente
idêntico com um lado: então ele é meramente o comer a fruta, ou a fruta
sendo comida, ele está abaixo do diafragma, na condição que é
caracterizada por absoluta fascinação pelos objetos. Quando alguém bebe
vinho num estado desses, ele é o beber do vinho, ou o próprio vinho, e uma
vez que o vinho é um Deus isto explica porque os Deuses têm forma
humana. Isto acontece quando alguém está absolutamente retirado de si
mesmo, então ele não existe, ele é meramente o processo abaixo do
diafragma, esta é a mentalidade frênica. Acima do diafragma, pode-se dizer
que isto não passa de vinho, isto não é Deus; sente-se a própria função, e
então não é divino. Neste caso a deidade desapareceu, mas ela reaparece
no milagre da consciência; então o Deus torna-se uma idéia filosófica. A
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qualidade ‘mana’ que anteriormente estava nos objetos do nosso desejo,


emigrou para dentro das idéias que nos ajudaram, ou nos forçaram,
desidentificando-nos das nossas emoções – a dizer: “Eu tenho este ou
aquele estado de ânimo”.

Comentário: Em HOMERO existem ambos: phrenes e psyche; quando o


herói morre o phrenes sai dele pela boca ou mais acima, mas aquilo que vai
para as regiões inferiores é a psyche. Eu nunca pude entender isto muito
bem.

Dr. Jung: O mesmo aparece na filosofia chinesa, onde temos o SHÊN, o


Animus ou mente, que corresponde ao grego phren, e a KUEI. O SHÊN é a
alma celeste, a alma masculina que ascende para a luz e os Deuses; mas a
KUEI é feminina, vai para a escuridão e torna-se ctônica. Quando um
homem morre, a KUEI é o fantasma dele mesmo, a assombração, que é
deixada sobre a terra. Enquanto o SHÊN supostamente está no seu caminho
para o céu. Como vêem, os chineses pensam que o ser humano consiste de
duas partes, e para eles o inferior espírito abdominal é a KUEI, ou a Anima.
Na Grécia, a parte inferior é a PSYCHE, uma palavra cujo caráter de
fantasma aparece na sua relação etimológica com a palavra PSYCHEIS, que
significa frio e úmido... Idéias como estas, sobre fantasmas sendo frios e
úmidos, vem do fato de que os seres humanos têm tido as mesmas
experiências espirituais desde tempos imemoriais... Numa sessão espírita
pode-se sentir algo como um sopro frio, uma lufada de vento frio, antes que
a materialização ocorra... e isto não é mera imaginação. Quando era
estudante, investiguei com certa regularidade estes assuntos e senti
exatamente essa lufada de ar frio. Um estranho cheiro de ozona também é
peculiar a estes fenômenos; eles vêm do fato, cientificamente estabelecido,
de que em tais casos o ar se torna tremendamente ionizado. Isto é
quantitativamente mensurável.

As duas almas separáveis dos gregos e da filosofia chinesa são como as


duas partes que se vê a figura de ABRAXAS; esta figura exprime a mesma
coisa, isto é, que consistimos de ambos os fatores, corpóreos e mentais; o
fator mental elevou-se do diafragma, e o outro existe abaixo dele; como se
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um estivesse se elevando até o céu e o outro descendo para a terra, até se


dissolver. De acordo com as idéias grega e oriental, a alma inferior não é
mortal; a alma KUEI pode pairar sobre um túmulo durante alguns séculos,
mas lentamente perde sua forma e desaparece, como a alma SHÊN
desaparece na luz do céu.

 Visão: (cont.) Quando eu vi esta figura, a pequena chama do


meu peito precipitou-se e procurou fundir-se com ela.

O que aconteceu que a pequena chama do seu peito saiu precipitadamente


dela e tenta fundir-se com esta figura?

Resposta: Seria a unio mystica? O seu SELF unindo-se com o SELF


universal?

Dr. Jung: Bem, ela faz uma tentativa. Ou para descrever isto mais
adequadamente, seu self-ego mostra um vívido desejo – uma chama é
sempre um vívido desejo – de fundir-se com o PURUSHA. Isto levaria a
que?

Resposta: ao Nirvana, onde ATMAN E PARAMATMAN se unem.

Dr. Jung: Sim, e isto seria completa inconsciência, mas aqui, na prática,
não levaria a isto, porque esta figura não é ainda AISHVARA, o supremo
PARAMATMAN, mas uma manifestação de ordem inferior. Assim,
psicologicamente, o que aconteceria?

Resposta: Uma inflação.

Dr. Jung: Sim. Ela se identificaria com esta figura divina... e se tornaria um
monstro, divino em cima e besta em baixo. Bem, na realidade, ela é muito
o que ela sempre foi, mas um pouquinho pior... As coisas se tornam muito
pior quando estamos conscientes da verdadeira condição delas; se estamos
inconscientes disto, então preto é branco e branco é preto (não sabemos
muito bem) e cinco é um número par (se não olhamos bem de perto) e
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tudo estará em ordem. Assim passa pela vida o homem primitivo. Ele pode
existir com esta atitude. Se estamos conscientes, simplesmente não
podemos mais viver deste modo... porque nada é inteiramente branco, há
pelo menos um pingo de preto em tudo... Mas as pessoas insistem que não
pode ser preto, que branco é branco, e que é pecado dizer que ele é preto,
é blasfêmia. Então há toda uma briga em torno... e assim, naturalmente,
entramos numa terrível confusão... Assim, se ela conseguisse fundir-se com
a figura da visão, ela se tornaria ABRAXAS, e seria um prodígio, mulher em
cima, serpente em baixo, realmente um monstro. E então a luz não seria
realmente luz, nem a serpente propriamente uma serpente. A confusão
seria terrível. Todos que atingem este estado entram numa condição de
certo modo semelhante à loucura, porque nela os opostos estão demais
próximos um do outro. Eles perdem sua orientação, seu senso de valores, e
não sabem o que acontece com eles, se estão de cabeça para baixo ou não.
E vejam bem, se alguém se identifica com uma forma como ABRAXAS,
mesmo sem uma visão assim clara, pode senti-lo apenas pelos seus efeitos,
os efeitos em si mesmo e os que causa nas outras pessoas.

 Visão: (cont.) A figura desapareceu e a chama caiu na terra e


estendeu-se ao longo das ruas – um fino fio de fogo.

Podem ver que ela deva ter se fundido de certo modo com ele, a visão de
PURUSHA extinguiu-se, e a chama cai na terra e corre ao longo das ruas. O
que seria isto?

Comentário: Deflação.

Dr. Jung: Bem, a libido está saindo; não é exatamente uma deflação, mas
se gostaria de evitar isso – porque significa que alguma coisa está
escapando do círculo mágico. Vejam, a mandala deveria manter as coisas
juntas, de modo que nada pudesse escapar, mas aqui quando a visão se
esvai, o fogo vai para a coletividade para as ruas. Quando as chamas saem
desse modo e tocam objetos externos, já não estamos em nós mesmos;
fundimo-nos com a coletividade e voltamos à nossa condição anterior,
descemos outra vez à MANIPÛRA.
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A Corrente de Formigas

 Visão: (cont.) Então eu vi embaixo de mim pequenas criaturas


como formigas, apagando o fino fio de fogo. Uma vez mais me
afastei do precipício. Sentei-me sozinha e esperei.

Ela regrediu, ela fez uma tentativa de chegar a ANÃHATA e falhou. Mas o
que diriam das formigas que tentam apagar o fogo? De onde vêm aquelas
inúmeras pequenas criaturas?

Resposta: As formigas são em si mesmas um elemento ígneo, segundo a


lenda; o ácido fórmico é quente e queima.

Dr. Jung: Bem, seria um antídoto, similia similibus. Mas aqui elas têm um
sentido especial, esses milhões de pequenas criaturas.

Pergunta: Seria uma espécie de cabiri?

Dr. Jung: Algo semelhante. A figura na visão era muito grande, um Deus
universal, e essas formigas são extremamente pequenas, mas muitas;
assim há uma grande contra muitos pequenos. O fato de que o diabo é
considerado o senhor de todas essas pequenas criaturas – de moscas e
ratos e vermes de todas as espécies – indica que quando o Deus não é um,
então ele está em toda a parte. Ainda mais, a formiga é um inseto, tem um
sistema nervoso autônomo (simpático), e se alguém volta para MANIPÛRA,
cai de novo sob a lei desse sistema nervoso; ele toma conta da situação.
Ele extinguirá o fogo, mas ele pode fazer isso lançando-o em
SVÂDHISTHÂNA, isto é, em água. (SVÂDHISTHÂNA é o chacra aquoso
abaixo do MANIPÛRA). Agora, é curioso que a pior formiga na África é uma
vermelha e pequena cuja picada queima como fogo e que os nativos
chamam de madji yamoto, que significa água de fogo. Quando estas
formigas correm sobre a gente é como se água escorresse, mas queima
como fogo. É a mesma imagética como na visão da paciente. Lá poderia
significar que para escapar das chamas de MANIPÛRA, às quais ela ficou
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exposta pela sua regressão, ela agora cai mais para baixo na escala de
Kundalini até SVÂDHISTHÂNA, o chacra aquoso abaixo.

Comentário: Acredito que há alguma analogia entre esta visão de formigas


e as alucinações do delirium tremens.

Dr. Jung: Há uma estreita analogia. Mas é muito incomum que visões do
tipo destas com que estamos lidando aqui tenham o mesmo caráter das
alucinações alcoólicas, como estas... Este é o tipo neurótico de visão, que é
sintética e usualmente carece das peculiaridades da desintegração que
aparecem no alcoolismo e têm a ver com certa lesão das células do cérebro.
Porque no alcoolismo não há dúvida que as células do cérebro são
realmente lesadas, e eu penso que tais visões são sempre um tanto
desagradáveis e sinistras.

No nosso caso eu não pensaria em qualquer desintegração das células


nervosas. Que está beirando isto, entretanto, confirma-se amplamente pela
minha experiência de que a regressão torna-se mais perigosa quanto mais
estágios avançados de desenvolvimento psicológico estão sendo atingidos.
É o mesmo que construir uma casa; se alguém cai do andaime quando tem
apenas um metro de altura, isto não é perigoso, mas se a casa já está
edificada e o andaime chegou a ter dez metros, a pessoa pode morrer.
Quanto mais alta é a construção, tanto mais perigosa será a queda, se
caímos. Da mesma forma na psicologia, se alguém conseguiu alto, se
chegou a certa introvisão e conhecimento, então um erro relativamente
pequeno custa mais do que teria custado um grande erro no começo; ele
pode ter conseqüências espantosas, simplesmente devido ao lugar que já
foi atingido, mas se alguém não sabe nada, mesmo um grande erro pode
passar sem conseqüências percebíveis. Nossa paciente chegou a certa
individuação de modo que qualquer coisa que ela faça agora que quebre o
círculo que criou, é mais perigoso do que teria sido essa mesma coisa se
acontecesse no começo do seu desenvolvimento. O fogo ir rompendo do
círculo para a coletividade não teria significado alguma coisa em particular;
algumas das regressões que mencionamos anteriormente eram muito
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piores, mas não estavam acompanhadas por símbolos que parecessem


perigosos.

Agora parece haver perigo, e é um fato que nas fases superiores do


desenvolvimento podem surgir peculiares perturbações do cérebro, como se
sua estrutura estivesse mudando ou certas células nele fossem destruídas...
Mas eu não digo que isto realmente aconteceu, está apenas simbolizado... é
meramente a antecipação de uma possível desintegração. O fogo aqui é
uma emoção que irrompe subitamente, e ela diz que a chama caiu na terra.
Uma chama, geralmente, queima para cima, mas esta regressa à terra, ela
cai e torna-se um fio de fogo ao longo das ruas, o que significa que ela
corre para a coletividade. Porque é absolutamente anormal uma chama
correr sobre a superfície da terra, porque se torna o MADJY YAMOTO, a
água do fogo, uma corrente de formigas que corre sobre uma pessoa e
queima como álcool metilado.

Outro fato, que também conheço por experiência, é que a libido regressiva
assemelha-se a uma droga, ela atua como um veneno, uma toxina. Pessoas
cuja libido está regressiva sentem-se terrivelmente sonolentas, elas mal
podem abrir os olhos e, em geral, não se sentem bem; todo o
funcionamento do corpo está perturbado... Sabe-se muito pouco sobre
essas coisas, mas sabemos que, positivamente, nos estados regressivos a
viscosidade do sangue está mensuravelmente diminuída e, naturalmente,
uma alteração no sangue afeta todo o corpo. Assim, todos os tipos de
enfermidade latentes podem de repente manifestar-se; uma infecção
larvada, por exemplo, pode eclodir sob tais condições, porque a resistência
do corpo está reduzida. Isto também pode responder pela freqüência de
angina sob certas condições psicológicas. Recentemente conversei com um
professor alemão que também observou isso; ele disse que a angina é
quase uma doença psicológica...

Branco Versus Vermelho

A visão seguinte intitula-se “A Grande Roda”. O que concluem disto?


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Resposta: O círculo está se formando outra vez.

Dr. Jung: Sim. Já que o resultado da última visão era negativo, podemos
esperar que nossa paciente tentará de novo, mas, naturalmente, sob
condições um tanto alteradas... A roda é, com certeza, uma das formas da
mandala e não podemos esquecer que agora estamos dentro da mandala, o
que quer que ela signifique. Ela diz:

 Visão: Sentei-me no chão, olhando o vale.

Por esta frase ficamos sabendo que ela está no mesmo lugar, no vale das
fábricas, onde ela falhou antes.

 Visão: (cont.) Duas faces apareceram, uma de cada lado meu.


Uma era totalmente branca, a outra era vermelha e sangrenta.
Com seus dentes elas dentavam despedaçar minhas roupas.

Comentário: São os opostos outra vez.

Comentário: A face branca é a parte espiritual e a vermelha a ctônica.

Dr. Jung: Sim a face vermelha e sangrenta seria o lado material, físico e o
branco é o lado consciente ou espiritual. O que acontece que ela é atacada
por pares-opostos? Qual é a origem disto na visão anterior?

Resposta: Sua identificação com a figura de ABRAXAS.

Dr. Jung: Exatamente. Aquela figura, que era um Deus solar em cima e
uma serpente negra embaixo, de certa forma era um símbolo de
reconciliação. Lá os opostos estavam juntos, mesmo que em uma forma
monstruosa. Naquela figura divina ela conseguiu exteriorizá-os, ela os
colocou juntos em uma única coisa vivente, o que foi definitivamente, um
grande conseguimento. Assim fazendo, ela declarou que o par de opostos
era um assunto divino que não dizia respeito ao homem, que o homem
deveria existir fora de uma tal figura e deveria mesmo pensar sobre ela
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como estando em oposição a ele. Mas aqui os opostos se separaram outra


vez, assumindo configurações mais ou menos humanas, eles são faces; isto
é regrediram, deixaram a forma divina (em que estavam unidos) e agora a
estão mordendo. Ela está sendo atacada por este par de opostos. Assim, de
certa forma, eles já não se colocam em oposição a ela; antes, ela tornou-se
uma vítima entre eles...

Vejam, ela quebrou a mandala. A idéia da mandala é proteger, é o círculo


do mago; se ela estivesse dentro, ela seria protegida e os opostos estariam
fora. No Oriente as mandalas aparecem metade encamadas na terra e
metade no céu, geralmente com o horizonte no centro. Ou aparecem o céu
e o inferno, os Deuses benevolentes e os grandes instrutores em cima e as
ctônicas regiões infernais embaixo, indicando desta maneira que o homem
existe metade no mundo demoníaco e metade no mundo celeste, mas está
protegido do influxo de ambos pelo círculo mágico. Porque temos que nos
proteger contra as coisas de cima tanto quanto contra as de baixo...
Podemos ser dissolvidos tanto pelo bem como pelo mal. As figuras de cima
são grandes demais. Se nos identificamos com elas temos uma inflação, e
podemos ser dissolvidos da mesma forma como por demônios... Falando
em termos práticos, há uma grande diferença, naturalmente, mas em
ambos os casos somos dissolvidos. A melhor coisa é não ser nem bom nem
mau demais, a pior coisa é ter uma inflação e ser dissolvido, perder o senso
de proporção.

Agora, o que significa quando ela diz: “Com seus dentes tentavam
despedaçar minhas roupas”?

Resposta: Não significa que os opostos estão atacando a persona?

Dr. Jung: Essas roupas podem ser entendidas como persona, mas o Senhor
pensa realmente que esse par de opostos está tentando arrancar a persona
dela?

Resposta: Estão tentando dividi-la.


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Dr. Jung: Naturalmente. Eles estão tentando comer através das roupas,
como ratos ou formigas. Há uma analogia aqui com as formigas que
também estão devorando, elas comem através de toda espécie de roupas
ou cascas...

 Visão: (cont.) Eu me levantei, dizendo – quando elas


arrancaram meus véus – “Eu tenho muitas roupas”.

As roupas, aqui, estão protegendo, ela tenta colocar camadas e camadas


entre ela mesma e o dilacerador par de opostos. Esta é uma tentativa de
criar um círculo mágico outra vez, de se proteger contra as influências dos
mundos de cima e de baixo, ela tem que ficar no centro para evitar ser
rasgada. E ela tenta desencorajar as faces dizendo, “Eu tenho muitas
roupas”, querendo dizer que levaria muito tempo para chegar até ela...

Vestimentas

Podem ver que este não é exatamente um problema da persona, porque a


questão aqui não é mais sua futura relação com o mundo, é um problema
interno, isto é, qual será sua relação consigo mesma. Porque podemos ter
uma espécie de persona em relação a nós mesmos de certo modo, e isto
pode ser expresso como usar roupas, véus ilusórios, atrás dos quais
tentamos nos esconder dos nossos próprios olhos. Tais véus existem entre
ela e seus próprios olhos ou consciência; eles são uma má vontade para
encarar a verdade sobre si mesma, e além deles ela estaria completamente
nua. Quando as pessoas pintam qualquer figura no centro de uma mandala,
geralmente ela está nua, porque lá somos exatamente aquilo que somos...
Mas esta paciente ainda tem vestimentas ou ilusões sobre si mesma, é
como se ela tivesse estado representando um papel perante si mesma.

Isto é o que todos nós fazemos, e naturalmente, não podemos individuar


enquanto estamos representando um papel perante nós mesmos. As
convicções que temos a nosso próprio respeito são a forma mais sutil de
persona, e os mais sutis obstáculos que existem no caminho da
individuação. Nós podemos admitir praticamente tudo, ainda assim
53

conservamos uma idéia de que somos isto e aquilo – e isto sempre aparece
como uma espécie de argumento final no lado do crédito – e mesmo assim
isto funciona contra a verdadeira individuação. Arrancar fora os véus, como
aqui, é realmente um procedimento dos mais dolorosos, mas cada passo a
frente no desenvolvimento psicológico significa arrancar um novo véu;
somos como cebolas com muitas peles, e temos que nos descascar de novo
e de novo para chegar ao cerne real. (A subida ao longo dos chacras na
Kundalini-Yoga, por exemplo, é um arrancar de véus). Comumente, quando
parecemos ter atingido o cerne, deparamos com outro véu de ilusão, que
também deve ser arrancado, a cada vez que isto acontece passamos por
uma experiência muito pesada ou que parece dilacerar o coração antes que
possamos nos considerar seguramente a salvo no nosso novo estado. A
razão pela qual sua visão anterior (do vale das fábricas) falhou era a
existência desses véus ilusórios. Assim, ela precisa, de alguma forma, sair
deles para atingir o cerne. Mesmo assim, as vestimentas são uma proteção
útil. Agora ela diz:

 Visão: (cont.) Eu estava vestida de preto entremeado com


veios verdes. Quando as duas faces viram isso, esvaeceram.

Então ela descobre que sua pele agora é preta com veios verdes. Mas não
há qualquer certeza de que isto seja realmente sua pele; mais
provavelmente é ainda uma vestimenta... Mas, por enquanto, é a última; é
a vestimenta que ela, aparentemente, tem que usar agora até que chegue o
tempo em que também esta terá que ser arrancada ou trocada por outra.

Pergunta: O Senhor poderia chamar estas vestimentas, atitudes?

Dr. Jung: Isto mesmo. Vestimentas são atitudes.

Pergunta: Mas isto não poderia também ser entendido como regressão?
Porque ela recusou encarar o par de opostos?

Dr. Jung: Isto ainda veremos. Se o progresso subseqüente da visão for


impedido ou se ela deparar com um novo desastre, então poderemos estar
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certos de que esta atitude não era autêntica. Neste caso, algo mais ocorrerá
para reparar a dificuldade. Até aqui, entretanto, só sabemos que o par de
opostos esvaece. Assim, podemos supor que esta vestimenta é certa. Mas
eu não posso dizer-lhes porque é certa, embora provavelmente exista uma
muito boa razão. Este preto entremeado de verde, sugere algo aos
Senhores?

Resposta: Há negridão, mas alguma esperança.

Resposta: É a pele de uma serpente.

Resposta: É a cor da terra preta com vegetação verde.

Resposta: Há uma espécie de mármore preto com veios verdes.

Dr. Jung: De acordo com a minha idéia, a melhor interpretação deste preto
e verde seria que ela tem uma atitude ctônica, que ela é apenas terra – no
começo da primavera, digamos – porque ela agora está bem no início da
psicologia da mandala. E o que está no começo é expresso em terminologia
hindu?

Resposta: A semente da Árvore da Yoga.

Dr. Jung: E isto estaria em MÛLÂDHÂRA, que é a escuridão onde as coisas


começam. Lá o broto verde ou botão é SHIVA. Assim, esta vestimenta é,
provavelmente, altamente simbólica. A idéia de que possa representar
mármore também vale, já que sugere a dureza e a frieza necessárias para
resistir à investida dos opostos: na realidade só podemos agüentar isso não
sendo voláteis de forma alguma; é preciso ser sólido, como pedra, para
suportar o movimento que começa quando somos vítimas deles.

 Visão: (cont.) Mais uma vez tentei descer ao vale.

Vejam, com a atitude que ela tem agora, ela pode tentar de novo
prosseguir do ponto que abandonou antes.
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 Visão: (cont.) Desci por um estreito desfiladeiro com altas


rochas pretas de ambos os lados.

O caminho para baixo sempre significa ir para o inconsciente, ou em direção


a coisas desconhecidas, porque o inconsciente contém não apenas o
passado, mas também as coisas ocultas do futuro. Assim, o seu futuro, ou
qualquer que seja o propósito do seu desenvolvimento, é desconhecido, e
mover-se em direção a ele, é descer para a escuridão. As rochas nos dois
lados são agora os opostos. Elas são as faces do novo, mas numa forma
diferente, já não tão ativas, são petrificadas; elas simplesmente marcam o
caminho que ela tem que seguir, e ela caminha entre elas. E o que seria o
caminho entre os opostos?

Resposta: TAO.

Dr. Jung: O caminho do TAO e isto justifica nossa idéia de que sua
vestimenta, por enquanto é acertada. Provavelmente.

 Visão: (cont.) Eu vi uma mulher crescida para dentro da terra.

Isto confirma o que acabamos de dizer: ela tem aqui a atitude ctônica. O
que simboliza esta mulher crescida terra adentro?

Resposta: A árvore.

Dr. Jung: Exatamente. Ela descobre esta mulher, meio enterrada no solo o
que evidentemente nos lembra MÛLÂDHÂRA e a mandala lamaísta, meio
encamada na terra; ela está crescendo terra adentro como uma árvore, o
que também confirma o que dissemos sobre o broto verde.

 Visão: (cont.) Seu cabelo estava numa poça de água meio


estagnada e lentamente ondulava para frente e para trás.

Agora, isto é difícil. Temos bem uma série de motivos aqui. Primeiro o que é
o cabelo?
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Resposta: Pensamentos.

Dr. Jung: Sim, muito frequentemente representa pensamentos, em virtude


do fato de que na psicologia primitiva o cabelo é mana, a irradiação ou
emanação de mana da cabeça. Portanto cortar o cabelo priva o homem de
sua força. SANSÃO perdeu sua força quando seu cabelo foi cortado por
DALILA. O analista muitas vezes é representado nos sonhos como um
barbeiro, porque ele lava a cabeça das pessoas. Há uma expressão
proverbial entre nós, quando admoestamos alguém, nós dizemos: “Lavei a
cabeça dele”. (“Passei-lhe um sabão”, “Dei-lhe uma lavada”...) Então,
pentear o cabelo significa endireitar pensamentos, limpar ou pôr em ordem
o cabelo é um símbolo de pôr em ordem a cabeça. Na psicologia primitiva,
também, o cabelo é mágico; obter o cabelo de uma pessoa é ter o seu
mana... Agora, a coisa que se segue é a poça estagnada.

Comentário: Seus pensamentos estão, aparentemente, num lugar


estagnado, onde não se movem, onde não há vida, alguma coisa está
errada.

Dr. Jung: Sim. A poça estagnada indica simplesmente parada. E seus


pensamentos movem-se à toa, para lá e para cá naquela estagnação,
indicando que não estão ocupados com alguma coisa em particular, que
estão a esmo, sem direção e sem propósito... Então devemos supor que
seus pensamentos não são a coisa principal, que sua verdadeira atividade
está em outro ponto...

Comentário: Ela está esperando...

Dr. Jung: Sim, apenas esperando, como quando se anda na rua para lá e
para cá, para passar o tempo; aparentemente, seus pensamentos, no
momento, são absolutamente sem propósito. E não se esqueçam que ela e
um tipo intelectual; ela usou intensamente seu pensar, anteriormente e tem
um Animus considerável, assim é um conseguimento e tanto para ela deixar
seus pensamentos em paz. Num caso destes, como eu disse, a ação real
está em algum outro ponto... Há um conteúdo importante no inconsciente
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que não pode ser alcançado. Tentamos em vão, nossos pensamentos


movem-se para cá e para lá na superfície, mas nada acontece porque não
podemos atingir aquela coisa dentro, e a atividade verdadeira está lá. É
como aquele famoso problema do asno de BURIDAN que estava entre dois
sacos de feno e morreu de fome, não sabendo onde começar. Muitas vezes
uso este exemplo com meus pacientes e os Senhores podem imaginar
porque. Por que, qual era a razão pela qual o asno agiu tão
estranhamente?... Porque ele não queria nem um nem outro, havia alguma
coisa mais importante para ele. O que era?

Resposta: Morrer.

Dr. Jung: Exatamente. Assim ele morreu, cometeu suicídio.

Comentário: Em geral a paciente fala na primeira pessoa, mas aqui ela diz
que “viu uma mulher”. Por que isto? Não é ela mesma, é alguma coisa
estranha a ela?

Dr. Jung: Naturalmente tem que ser uma projeção dela mesma, mas
estranha a ela. Isto muitas vezes acontece quando alguém olha o próprio
rosto no espelho: parece entranho quando alguém se vê sob novas
condições. Assim ela está se vendo a si mesma sob novas condições,
enraizada na terra; o que chega para ela agora é um novo aspecto dela
mesma que, aparentemente, ela não previra. Agora os Senhores não terão
dificuldade em compreender o que acontece em seguida.

O Nascimento de uma Criança Monstruosa

 Visão: (cont.) Ela estava em trabalho de parto e eu permaneci


lá enquanto ela dava à luz. De uma placenta branca emergiu
uma criatura com a forma de uma criança.
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Vejam, esta é a atividade: seus pensamentos estavam ociosos porque este


é um assunto de natureza inteiramente diferente, trata-se do nascimento
de uma criança... Agora, qual é a diferença entre estas duas atividades?

Resposta: Talvez a atividade do cabelo, ou dos pensamentos, venha da


mente-ego, enquanto esta atividade da outra mulher vem do SELF.

Dr. Jung: O Senhor está absolutamente no caminho certo... É possível


imaginar que tudo isto é mental, o produto do pensar, e que pensar é
alguma coisa que fazemos como queremos, do mesmo modo como
penteamos nosso cabelo do jeito que nos agrada. A mente parece ser a
região onde fazemos o que queremos, onde inventamos o que desejamos,
qualquer tipo de fantasia que vem à cabeça, as pessoas não investem muito
nela, elas brincam com ela. De acordo com esta suposição, todo esse
negócio de visão é mental, trabalho da mente, e assim pertence à esfera
das transações arbitrárias. Muitas pessoas ainda não descobriram que o
pensamento pode ser também algo como uma criança, que a produção de
idéias pode ser um verdadeiro nascimento de uma criança...

Na realidade, há pensamentos simbólicos que têm o valor de fatos – um tão


grande valor, por exemplo, como o nascimento de uma criança – e somente
esses pensamentos são verdadeiramente convincentes, eles são como a
passagem de lufadas de ar. Mas um pensamento sólido – simbólico é duro
como uma pedra, ele é eterno. Há certos pensamentos que duram para
sempre, eles começaram a existir na alvorada da humanidade e ainda
permanecem fortes; certas convicções têm milhos de anos e ainda são
válidas. Mas esses nunca foram produzidos pelo cérebro – eles vêm antes
do estômago – ou de qualquer outro lugar que não é o cérebro – são inatos,
são fatos sólidos. Essa diferença aparece claramente na análise. Enquanto
uma análise se move no plano mental nada acontece, podemos discutir o
que quisermos, não faz qualquer diferença, mas quando nos chocamos
contra alguma coisa embaixo da superfície, então emerge um pensamento
na forma de uma experiência, e se coloca diante de nós como um objeto.
Vejam, a palavra ‘objeto’ vem do latim OB-JECTUM, que significa algo
59

arremessado contra nós, oposto a nós. Quando experimentamos alguma


coisa deste modo sabemos imediatamente que este é um fato...

Agora ela diz, sobre o nascimento dessa criatura, que ela emerge de uma
placenta branca. Isto é bastante incomum. Aqui temos algo. No nascimento,
a criança emerge do útero e a placenta também vem do útero, mas a
criança nunca sai da placenta. No entanto, há uma primitiva superstição
sobre isso, que cada pessoa tem um ‘duplo’, que o duplo é seu irmão
fantasma que era a vida da placenta. Assim, a saída da placenta é também
um nascimento, mas um nascimento fantasmático. Por esta razão, em
muitas tribos primitivas a placenta é enterrada com grande cerimônia, não
apenas posta fora, como fazemos, mas sepultada decentemente, porque é o
cadáver do irmão-sombra... Assim, podem ver, esta é a criança-fantasma, o
‘duplo’ fantasma das páreas.

Os Senhores podem ter observado também que a nossa paciente disse que
a mulher deu à luz “uma criatura com a forma de uma criança”; isto soa
como peculiar e não nos leva a esperar um lindo nenêzinho. Agora ela
continua:

 Visão: (cont.) Ela tinha quatro olhos protuberantes na sua


cabeça. Suas mãos eram clavas e seus pés garras.

É uma criança monstruosa e nem poderia ser outra coisa, porque a placenta
não é um corpo humano normal, é um corpo simbólico que desaparece
logo, porque a criança-placenta não é destinada a levar uma vida normal,
ela vive apenas em uma espécie de corpo-alento. Este corpo-alento é o
espírito que acompanha um homem, seu segredo, sua sombra. A expressão
em grego para isto é SYNOPADOS e significa “aquele que segue”, o DAIMON
que acompanha um homem durante toda a sua vida.

Agora a placenta é uma coisa redonda, com o cordão umbilical enraizado


nela. Deste círculo matriz cresce a criança; assim, constitui bem o espírito
da placenta. A cor branca na placenta aqui, sugere uma qualidade não
material, mental. Deve indicar que este é um filho da luz, deve ser um
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espírito que tem a ver com a consciência, que contém luz e não apenas
alguma coisa escura... Então, o que é esta figura?

Resposta: ABRAXAS.

Dr. Jung: Sim, a figura de ABRAXAS outra vez, mas agora em uma forma
diferente. Qual é o aspecto notável no caso da criança?

Resposta: Os quatro olhos. Eles sugerem o simbolismo da mandala.

Dr. Jung: Sim, os quatro olhos sugerem o simbolismo da mandala, de novo;


esta deve ser a criança no centro, que olha em todas as direções – para
ambos os lados, para frente e para trás. Olhas para todos os lados
significaria uma consciência ‘arredondada’ (all-round) uma consciência
completa. Vejam, o campo da consciência coincide com o campo da visão,
assim, o reino do inconsciente é imaginado como estando atrás de nós. Mas
com quatro olhos, dois poderiam ver tudo em frente e os outros dois, o que
quer que esteja atrás...

Pergunta: Aquelas duas figuras de ABRAXAS não são comparáveis ao BIJA-


DÊVA na Kundalini-Yoga?

Dr. Jung: Muito. O BIJA-DÊVA está sempre dentro da letra que caracteriza
cada chacra, é uma deidade invisível, sem nome, com quatro braços em vez
de quatro olhos. SHIVA geralmente tem também quatro braços; é a mesma
idéia, um estender-se até os quatro cantos do mundo. Assim, poder-se-ia
dizer que esta criança e um produto verdadeiramente oriental de uma
mentalidade inteiramente ocidental; poderia da mesma forma ser uma
divindade hindu. Na época em que a paciente teve esta visão nem ela nem
eu sabíamos qualquer coisas sobre esses Deuses hindus ou sobre Yoga
Tântrica. Mesmo assim este é bem claramente o BRAHMA de quatro faces
que emerge do lótus que cresce do umbigo de VISHNU. Vejam, a idéia do
lótus crescendo do Deus adormecido é exatamente a mesma idéia, a flor de
lótus é o espírito da placenta. Agora, o que diriam sobre as mãos que são
clavas e os pés que são garras?
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Comentário: ABRAXAS tinha um arco.

Dr. Jung: É isso. ABRAXAS era armado, e esses Deuses hindus sempre
carregam certos emblemas ou implementos, geralmente armas. Aqui
encontramos a mesma idéia; os pés são garras, as armas naturais de um
animal, enquanto os braços são clavas, que são armar feitas pelo homem.
Infelizmente ela não diz quantos braços existem lá, mas sabemos que
estamos lidando com quatro olhos, em todo caso, e com aquelas armas.
Agora, que espécie de caráter supõem que tenha este ser?

Resposta: Agressivo.

Dr. Jung: Sim, belicoso, violento, de forma alguma agradável. E o que se


faz com isso?

Resposta: Ela tem uma criança que pode ser perigosa para ela.

Dr. Jung: Sim. Ela pode crescer como algo muito perigoso. Vejam, este
pensamento coloca-se em oposição à sua anterior atitude consciente. Lá, os
pensamentos eram brincadeiras, invenções próprias, talvez arbitrárias
satisfações de desejos. Mas este nascimento mostra a ela que os
pensamentos podem ser uma coisa muito agressiva e perigosa, exatamente
como foi sugerido antes, na visão de ABRAXAS. Se olharmos para trás, na
história, e nos perguntamos por que uma figura como ABRAXAS é sempre
representada com um látego, ou uma espada e um escudo, percebemos
que o Deus é realmente belicoso; suas armas são um sinal de seu poder,
um sinal de que ele pode usar o látego sobre os homens. Não temos algo
similar na Bíblia?

Resposta: JESUS usou um chicote no templo.

Dr. Jung: Sim. Ele teve lá uma atitude agressiva. E ele disse: “Não vim para
trazer a paz, mas uma espada”, assim ele era belicoso também. Pensem
ainda na figueira estéril; ele a amaldiçoou e disse que deveria ser lançada
ao fogo. E quanto a MITHRAS, era um Deus dos guerreiros, era um hábil
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toureiro, realmente um ‘toureador’, um típico herói da arena... Então, é


característico destes Deuses espirituais e altamente simbólicos e mesmo
daqueles feitos pelos homens, Deuses conscientemente construídos, que
apareçam com todos os implementos da violência – quase como demônios.

Agora, estamos ainda ocupados com esta peculiar situação... O novo


desenvolvimento inicia-se de um modo prático com um nascimento, mas
aquilo que nasceu é um monstro. E a paciente não parece pensar que isto
tenha alguma coisa a ver com ela. Ela simplesmente descobre o caminho
entre as rochas e chega à poça, olhando enquanto a mulher crescida para
dentro da terra dava luz à uma criança, e depois, no fim da visão – como
vão ver – continua a descer pela trilha estreita, parecendo nem um pouco
envolvida... Tudo poderia estar pintado numa parede, não há sangue na
coisa, ela apenas observa os acontecimentos.

Outro ponto é que, embora este pareça ser um nascimento mais ou menos
normal, sob condições comuns a placenta seria vermelha, conteria sangue.
E por que esta é branca?

Resposta: Eu pensaria que se refere ao espírito contra o instinto. Vermelho


corresponderia ao instinto e à realidade, e o branco ao espírito.

Dr. Jung: Como as duas faces no começo desta visão, uma branca e outra
vermelha, como sangue. Lembram-se, dissemos que eram opostos.

Comentário: E o branco era a cor da consciência.

Dr. Jung: Sim. Esta é a consciência versos o sangue. Sangue é geralmente


quente, colorido, é o líquido da vida corpórea, mas ele não sugere luz; a
brancura é decididamente diferente, é abstrata, fria, brilhante e tem a
qualidade da luz. Assim, quando ela se encontra entre o vermelho e o
branco, ela está entre a verdade do sangue, do corpo, e a brancura do
espírito: porque a nossa idéia de espírito derivou da consciência humana, e
a natureza da psique nada tem a ver com sangue. Pensamento não tem a
ver com sangue. Pensamento não tem extensão, ele não preenche espaço e
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não tem peso: é incomparável com qualquer coisa, e incompreensível de


qualquer modo. Que uma coisa que não preenche espaço tenha consciência
de si mesma, tenha introvisão, é milagrosa e muitas metáforas foram
usadas para expressar esta maravilha; nós falamos de luz da consciência,
por exemplo, como se as pessoas fossem iluminadas por dentro como casas
na escuridão.

Assim, deve haver conflito entre o mundo das coisas brancas e o mundo
das coisas vermelhas. A placenta branca é o mesmo que a face branca, é
uma superfície redonda, um disco, uma mandala, e a criança que nasceu
dela é uma criança muito peculiar, com quatro olhos olhando nas quatro
direções do espaço. É um espírito, um BIJA-DEVA. Obviamente esta criança
é da psique e não do sangue e, naturalmente tal criatura não pode nascer
por um modo natural de uma placenta consistindo de sangue e carne; esta
placenta consiste de substância anímica, de peculiar substância espiritual
branca. Podem sugerir um paralelo?

Resposta: A Hóstia.

Dr. Jung: É isto. A Hóstia é um disco branco, e tem um significado cósmico;


o fato de estar estampada com a cruz significa que este é o pão solar, que
consiste de luz, de sol. Pela mesma razão, o pão no culto mitráico, o
PHARMAKON ATHANASIAS, que é o remédio da imortalidade, é estampado
com a cruz. Isto indica que é o sol, uma roda solar, uma mandala. Na
comunhão cristã, quando se come o corpo branco que produz a vida
espiritual dentro, se está comendo o sol. Praticamente a mesma idéia
ocorre no maniqueísmo; lá, entretanto, não é um corpo branco, mas o
corpo amarelo do melão que é entendido como a analogia mais próxima ao
sol. O melão foi tido como o mais sagrado porque contém muitas partículas
de luz. Comendo-o, aumentamos o nosso próprio corpo solar – é como se
tivéssemos comido a hóstia – e depois disto temos dentro o branco corpo
solar, a placenta branca da qual cresce a criança da imortalidade...

Porque esta criança é uma criança-espírito, uma criança psicológica, sua


consciência está orientada em quatro direções.
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A criança espírito tem também atributos perigosos, suas mãos são clavas e
seus pés são garras. Não se sabe se estas armas destinam-se a ser usadas
ofensiva ou defensivamente; não se sabe se esta criança, se crescer, não se
tornará uma terrível criatura, uma espécie de GOLEM, talvez... Têm alguma
idéia de porque ela parece tão perigosa?

Resposta: Eu penso que o ego superior é sempre perigoso para o ego


inferior.

Dr. Jung: Sim. Todo desenvolvimento superior da consciência é


tremendamente perigoso. Geralmente somos inclinados a pensar que é
ideal e desejável desenvolver-se na direção de uma condição superior, mas
esquecemos que é perigoso, porque o desenvolvimento costuma significar
sacrifício, ele custa sangue. As grandes mudanças da consciência na história
humana sempre estiveram conectadas com sacrifício. A revolução cristã, no
começo da nossa era, foi um fenômeno extremamente destrutivo... E no
século VII depois de CRISTO o irromper do ISLÃ foi um evento para fazer
gelar o sangue nas veias. Pensem na Reforma, também. Há casos em que o
desenvolvimento psicológico de um indivíduo leva à sua destruição, ele não
consegue suportar a tensão. Portanto, quando uma criança como esta
nasce, ela é uma aquisição perigosa, especialmente no começo. Não se
sabe absolutamente no que dará. Por isto todos os cultos de mistério, ou
ensinamentos de Yoga, advertem seus adeptos para serem cautelosos;
essas coisas têm que ser cercadas por extraordinárias precauções, a pessoa
tem que se proteger. É perigoso seguir as regras e corresponder a todas as
espécies de condições para evitar cair num perigo terrível.

Naturalmente, as pessoas racionais não acreditam que algum


desenvolvimento psicológico possa ser perigoso. Elas negam isso, mas têm
um medo infernal de uma idéia nova. Por exemplo, certa vez encontrei-me
com um homem bastante famoso, um grande cientista, a quem expliquei
certos pontos sobre a psicologia primitiva, mostrando como as mesmas
coisas ocorrem também no nosso nível de consciência. Ele concordou
plenamente e mostrou-se muito interessado. Mas depois, um aluno que
tínhamos em comum me contou que ele considerara minhas idéias
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interessantes, mas perigosas. Naturalmente ele teria negado que houvesse


qualquer perigo no desenvolvimento psicológico, mas quando novas idéias
chegaram até ele, elas lhe pareceram perigosas. Assim, podemos ler
NIETZSCHE ou estudar a sabedoria oriental desde que não levemos muito a
sério, mas se fazemos isso seriamente, então é perigoso, então nos os
sentimos. Aqui, como percebem, este episódio inteiro se passa fora da
paciente, ela não tem qualquer relação com o nascimento desta criança-
espírito.

Uma Loba de Ferro

 Visão: (cont.) Os seios da mulher estavam secos e assim a


criatura (isto é, a criança) arrastou-se até uma loba de ferro
que estava perto, e a loba a amamentou.

Essa criança-espírito não pôde ser alimentada pela mãe, e a loba de ferro a
amamenta. É como a lenda bem conhecida de RÔMULO e REMO... Em vez
da mãe humana, há uma mãe animal, mas reparem bem, não uma mãe
viva, a loba é de ferro. Agora, como é possível que uma estátua de ferro
possa alimentar?

Resposta: Soa como se tivesse algo a ver com a era da máquina.

Dr. Jung: Bem, o Senhor não está muito longe da verdade, esta é uma idéia
bastante atrevida... Esta estátua seria absolutamente incapaz de alimentar
uma criança verdadeira, mas não sabemos o que pode acontecer com uma
criança-espírito.

Sugestão: A criança-espírito poderia ser alimentada por idéias históricas,


por antigas lendas.

Dr. Jung: Exatamente. Poderia ser alimentada por uma estátua como esta.
Não haveria dificuldade quanto a isso. O ferro é um metal muito comum,
muito pesado e útil, é uma espécie de essência da terra, e a criança-espírito
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poderia ser alimentada por ele. Mas o que tem isso a ver com a era da
máquina?

Sugestão: A loba poderia ser um monstro personificado da era da máquina.


Podemos pensar sobre a máquina como um monstro devorador...

Sugestão: Em algumas lendas os homens são alimentados com material


bem estéril. O alimento vem justamente de onde não se poderia esperar
alimento. Talvez esta seja uma situação assim.

Dr. Jung: Sim, esta é a parte mitológica, mas o que significaria esta
imagem psicologicamente?

Sugestão: O ferro é o mental de Marte, e Marte é muito agressivo. Poder-


se-ia esperar que sendo alimentada com ferro a criança também se tornaria
agressiva.

Dr. Jung: Vamos guardar esta idéia.

Comentário: Nós realmente damos ferro às pessoas quando estão


anêmicas.

Dr. Jung: É verdade, isto é bom... e se a criança é alimentada por uma mãe
de ferro, ela receberá alimento de ferro... o que lhe dará um estranho
poder. O ferro é muito material; é por isso que estamos pensando em
materialismo e era da máquina. Mas esta é uma criança espírito e o ferro
comporta-se aqui como se fosse matéria orgânica, como leite; poder-se-ia
dizer que a criança bebe do ferro vivente, da alma do ferro. Uma idéia
muito peculiar. Como explicariam isto?

Resposta: Seria na linha da nova física, do irromper do poder ctônico.

Dr. Jung: Sim. O poder desta criança sobre as coisas materiais será igual ao
poder do ferro; seu espírito será tão forte quanto o ferro, porque ela
recebeu alimento de ferro...
67

Sugestão: Este alimento poderia ser a dádiva do espírito romano que é na


verdade a lei?

Dr. Jung: Aqui existe certamente uma analogia com Roma, que cresceu
para ser um tremendo poder mundial. Esta criança-espírito carrega a
mesma promessa que as crianças alimentadas pela loba romana, ela parece
ser um RÔMULO ou um REMO. Assim, levando tudo em consideração,
temos que concluir que esta só pode ser uma criança-herói. Essas crianças
geralmente não têm mães naturais para alimentá-las, e são nutridas de
algum modo miraculoso. Há muitas histórias assim, como sabem... Esta
criança já tem as garras de um animal selvagem e armas em lugar das
mãos e agora, pelo leite da loba, ela adquirirá as qualidades lutadoras de
um lobo... Parece ser extremamente perigoso. Então, aqui nasceu um
herói, mas um herói nascido de caráter muito diferente de qualquer outro a
que estamos acostumados. O último herói nascido para nós foi CRISTO, um
ser muito bondoso. Havia animais presentes ao seu nascimento também,
mas eram mansos, um boi e um asno. Aqui, entretanto, o inconsciente da
paciente sugere o nascimento de um perigoso espírito beligerante,
alimentado por uma loba com leite de ferro. A idéia é bastante
perturbadora. E o que faz a nossa paciente a respeito disso?

O Significado de um Monstro

 Visão: (cont.) Eu chorei com comiseração e continuei andando


pela passagem estreita.

Como percebem, ela não realiza nada disto que acontece. Agora, porque ela
não entendeu o que estava acontecendo?

Resposta: Era demais para que ela pudesse incorporar.

Dr. Jung: Ela não podia entender mais do que nós entendemos. Quando
lemos pela primeira vez uma estória como esta, ficamos apenas chocados
com a insensatez dela, mas mais tarde, quando a sentimos mais, se nos
aproximamos dela como se fosse um texto sagrado escrito em hieróglifos,
68

podemos atingir seu significado. E lembrem-se, nós apenas a traduzimos,


estamos ainda longe de perceber seu sentido. Afinal, o que poderia
significar? Todos sabemos que fantasias como esta têm uma qualidade
peculiar. Esta coisa particular provavelmente surgiu nela porque existia em
qualquer ponto na sua vizinhança. E a razão pela qual tivemos tanta
dificuldade para decifrá-la pode ser o fato de que temos algo similar em nós
mesmos, que temos peculiares pressentimentos inconscientes, os quais, se
fossem traduzidos, apresentariam resultados muito similares. Vejam, o
mundo tem um aspecto muito estranho no nosso tempo. Acabamos de sair
da guerra mais sangrenta da história e não estamos felizes, não sabemos
qual seria a feição de um novo espírito. Mas sabemos que quando os
espíritos mudam, temos que lidar com problemas muito desagradáveis...

Comentário: Parece-me que o nascimento do UNGEHEUER, o monstro,


poderia ser a expressão simbólica de uma profunda experiência religiosa, a
experiência do lado terrível da divindade. E poderia ser uma experiência tão
sobrepujante que uma pessoa jovem seria dominada por ela. Uma profunda
dissociação resultaria da incapacidade de assimilá-la. Um monstro poderia
significar alguma coisa imensuravelmente grande. Isto é o que nós
entendemos em alemão quando falamos DAS UNGEHEUER (prodígio
assombroso)... ou no latim MONSTRUM, não masculino ou feminino, mas
neutro.

Dr. Jung: As coisas expressadas de uma forma monstruosa são


excessivamente perigosas; quando entram numa cabeça despreparada,
esta cabeça sofrerá, não o monstro. O perigo é que monstros como este
podem causar danos ao cérebro humano. Assim, devemos ser gratos que a
nossa paciente foi capaz de passar por ele sem percebê-lo. Mas nós não
podemos passar por ele, temos que encará-lo e tentar entendê-lo... Já
ouviram falar de alguma experiência paralela do DEUS ABSCONDITUS?
Alguma coisa que podemos relacionar com um horror destes?

Resposta: Penso que as pessoas, em geral, são muito reservadas em


relação com estas experiências, ou então, escrevem coisas grandiosas sobre
elas.
69

Resposta: Mulheres que deram à luz heróis, frequentemente sonharam


antes que davam à luz monstros.

Dr. Jung: Sim, ou que tiveram relações com monstros. A mãe de


AUGUSTUS, por exemplo, sonhou que teve relações com uma grande
serpente e depois deu à luz AUGUSTUS.

Pergunta: Alguma coisa deste tipo não aconteceu com a mãe de BUDDHA?

Dr. Jung: Ela foi fecundada por um elefante branco que entrou no seu lado
direito.

Comentário: Mas a criança que nasceu depois disso não era um monstro,
mas um herói.

Dr. Jung: É isto. Poder-se-ia dizer que o verdadeiro herói vem dessa
espécie de inflamar monstruoso.

Comentário: Assim, o monstro é apenas um aspecto. Poderíamos compará-


lo ao DEUS ABSCONDITUS, como sendo o sentido oculto de um tempo, de
um momento na história humana.

Dr. Jung: Isto mesmo. O monstro simboliza ou personifica o sentido oculto


de uma situação ou de uma época na história ou num ser humano. Por isso
todo herói é também um monstro, como mostram seus atributos inumanos.
Muitas vezes mencionei que nas sagas nórdicas o herói tem olhos de
serpente. Imaginem aquele encarar horrível, fascinante e frio num ser
humano, seria monstruoso, indicaria que seu pai era uma serpente e que
ele teria uma alma de serpente. E as almas dos heróis gregos eram
serpentes, ou supunha-se que eles se transformavam em serpentes depois
da morte. CECROPS, o fundador da Acrópole, e ERECHTHEUS, outro herói
que foi sepultado no Erechtheum, foram adorados sob a forma de serpente.
A idéia era que o morto, estando sepultado, vivia sob o solo como serpente.
As pessoas faziam túneis dentro de suas sepulturas para alimentá-los,
espargiam libações sobre suas cabeças que se espalhavam através do
70

FIGURA PÁGINA 214


Guerreiro protegido por serpente alada (Yucatan)

corpo, que teria a forma de serpente. Vejam, há uma espécie de troca, a


serpente se torna homem e o homem se torna serpente. É como se a
potencialidade para tal permuta fosse um atributo do Deus, sendo seu
aspecto revelado, amoroso e espiritual, mas transformando-se depois em
outro aspecto, monstruoso e horrível. Assim, a julgar pelo que sabemos,
este monstro na visão parece exemplificar sentido oculto de um herói, de
um salvador ou de um Deus. Mas este é o aspecto oculto; não sabemos o
que virá disto tudo.

Comentário: Penso que isto é como a passagem em ISAIAS (Is. 53:24)


onde está profetizada a vinda do MESSIAS como um homem demais feio e
horrível de ser olhado (“... ele não tem beleza nem formosura, e vimo-lo, e
não tinha parecença do que era: e por isso nós o estranhamos, ... feito um
objeto de desprezo e o último dos homens, um varão de dores e
experimentado nos trabalhos, e seu rosto se achava como encoberto e
parecia desprezível. Por onde nenhum caso fizemos dele...).

Dr. Jung: Sim, e ele também fará coisas terríveis, ele vadeará em sangue;
este é um exemplo do aspecto negativo de um novo conceito de divindade,
como eu o descrevi. Então, tudo que podemos dizer sobre esta monstruosa
figura é que ela representa o sentido oculto de um Deus ainda no estado de
desenvolvimento, um novo Deus-infante no seu aspecto negativo. Porque
uma nova idéia da divindade sempre vem à existência quando o antigo
conceito durou demais. Na medida em que o conceito antigo começa a se
fragmentar, o inconsciente prepara a nova idéia. Ao longo da história, como
sabem, tem havido sempre períodos em que o conceito corrente da
divindade é aceito como válido e unanimemente acreditado, mas então a
esses períodos seguem-se outros durante os quais aquela imagem decai;
nesses tempos criações como esta são encontradas no inconsciente. Mas,
ainda se esta paciente tivesse vivido na Idade Média ela poderia ter sido
capaz de conceber uma futura deidade, exatamente como fez ANGELUS
SILESIUS, por exemplo, quando antecipou o conceito da relatividade de
71

Deus. Este é um conceito extremamente moderno e naquele tempo era


totalmente anacrônico. Assim é impossível saber exatamente em que
extensão um conceito pode ser um anacronismo. Mas provavelmente a
visão desta paciente não é tão anacrônica, porque muitas vezes
encontramos material psicológico semelhante em outras pessoas,
atualmente e, além disso, já estamos falando conscientemente dessas
coisas. Na verdade, poderíamos dizer que sua visão é sintomática da
condição presente da humanidade como um todo, não apenas de um
indivíduo particular. O que ela faz, talvez, é simplesmente perceber as
sombras que a acompanham no inconsciente sem ter qualquer relação
pessoal com elas. É isto que torna seu relato particularmente interessante e
objetivo.

A Roda

Esta visão, lembrem-se, é uma nova tentativa de formar a mandala; a


primeira tentativa (que ela fez na visão de ABRAXAS) falhou. O Deus
flamejante lá era também um monstro; sendo humano em cima e serpente
em baixo; ele realmente representava a mesma idéia e este simples fato é
que parecia impedi-la de formar a mandala. Por isso, no seu progresso
posterior, ela chega agora – inevitavelmente, parece – a uma grande roda
que bloqueia o caminho. Ela diz:

 Visão: (cont.) Cheguei a uma grande roda que bloqueava meu


caminho. Na borda externa da roda estavam as cabeças e
mãos estendidas de homens e mulheres que rodavam
velozmente com a roda.

FIGURA PÁGINA 215

O que significa isso?

Resposta: Muitas vezes a roda da fortuna é representada deste modo.


72

Dr. Jung: Exatamente. Em antigas representações ela aparece com pessoas


agarrando-se desesperadamente a ela. Elas são levantadas e chegam ao
topo, onde seus desejos são plenamente satisfeitos e depois caem do outro
lado e de novo estão embaixo. Agora, a roda da fortuna, naturalmente, é a
roda da vida; ela é também o trajeto solar: a elevação, a culminação ao
meio-dia, a descida ao pôr-do-sol, e o ponto mais baixo à meia noite. Onde
podemos encontrar uma analogia para isto no estudo comparativo das
religiões?

Pergunta: Na Roda Tibetana com o monstro do lado de fora e as pessoas


girando dentro dela?

Dr. Jung: Bem, pode-se encontrar a roda praticamente em todos os lugares


onde há monumentos e pinturas budistas. É um símbolo central do budismo
e tem dois significados. Primeiro representa a roda da Lei. Lembrem-se que
o BUDDHA, o Perfeito, pôs em movimento a roda da Lei em Benares; isto é
ele explicou seu conceito sobre a Lei como estando em movimento como
uma roda e de tudo, em conformidade com isto, tomando um curso em
conformidade com a Lei. Em segundo lugar, o mesmo conceito ou
representação, aparece como a roda da morte e do renascimento que é a
roda da reencarnação ou da ilusão (sendo a reencarnação apenas um
estágio posterior da ilusão). Todo aquele que é capaz de sair dessa roda
girante não necessitará renascer, será aniquilado; como aquele que realizou
sua vida e é perfeito, não retornará, mas extinguirá a si mesmo totalmente
em NIRVANA, no não-ser positivo. Podem ver, esta roda é praticamente a
mesma que o símbolo da visão. Também no Budismo há mandalas
semelhantes a rodas e muitas vezes são depictadas como roas embora
venham, na realidade, de outra fonte; isto é, não vêm do símbolo budista
da roda, mas do culto de SHIVA, que é mais antigo e bem diferente. Mesmo
assim, como mandalas elas são representações da vida e de seres vivos. A
idéia da mandala girando à semelhança da roda, como sendo uma espécie
de vórtice, também aparece na China, de acordo com “O Segredo da Flor de
Ouro”, assim essa roda da vida na visão é a própria Vida, é a roda da
fortuna, e é a roda da Lei, é a inevitável roda à qual todos se agarram e
73

pela qual somos todos postos a girar. Poder-se-ia supor que não havia
possibilidade de ultrapassá-la, mas ela diz:

 Visão: (cont.) Por fim eu vi que de um lado eu poderia me


espremer e passar, mas sabia que para fazer isso teria que
estar vestida com uma armadura de ferro para que as mãos
que giravam rapidamente não me ferissem ou destruíssem a
pequena chama que saía do meu peito.

Esta passagem é muito enigmática. O que acham da tentativa de,


espremendo-se, passar por um lado da roda?

Resposta: Eu penso que ela não deveria evitar o movimento da roda, não
deveria passar espremendo-se.

Dr. Jung: Alguém mais concorda?

Resposta: Ela deveria entrar no meio da roda.

Comentário: Eu discordo. Ela não deveria entrar, mas passar através dela
porque, da forma, como o Senhor a descreveu, ela considera esta roda
como representante do peso do passado tradicional, contra o qual ela tem
que defender a chama no seu peito. Isto é, penso eu, uma repetição da
cena em que ela encontrou o gigante, que também representava tradição,
ela tem que preservar de novo seus valores individuais.

Figura página 216

Comentário: Também para mim, o invólucro de ferro que ela deve ter,
parece ser uma alusão à importância de proteger seus valores individuais.
Ferro é a matéria de que era feita a loba, a loba que amamentou o
monstro; se ela tiver ferro dentro de si estará protegida contra a qualidade
perturbadora da roda, e depois, então, se puder obter a roupa de ferro,
poderá proteger a chama.
74

Dr. Jung: O Senhor pensa então que ela necessita a roupa de ferro como
proteção, que de outra forma a roda seria destrutiva?

Resposta: Naturalmente esta roda é algo que não se pode evitar


inteiramente, mas ela tem que esquivar-se dela de certa maneira.

Dr. Jung: No entanto, dizíamos justamente que esta roda representava o


curso dos eventos submetidos à Lei. Dever-se-ia evitar isto? Ou pode-se?

Comentário: Ela tem que entrar, mas não tanto que se torne ela mesma
idêntica com a Lei... Então ela estaria sendo levada com ela.

Comentário: Se ela tem no peito o fogo prometéico ela tem que seguir a lei
prometéica e tem que cometer o crime prometeico, que é ser um indivíduo.

Dr. Jung: Isto agora é um ponto de vista.

Comentário: Se ela é levada pela roda, isto significa, naturalmente, que ela
está em SAMSKÃRA, mas se ela se espreme e passa ao lado dela, ela estará
vivendo “a vida provisória”.

Dr. Jung: O Senhor pensa que há situações em que se tem o direito de


viver “a vida provisória”?

Resposta: Pode haver, mas se ela o faz não se desenvolverá.

Dr. Jung: E acha que esta seria uma situação na qual a “vida provisória” é a
indicada?

Resposta: Não, não acho que seja.

Comentário: Para mim o estranho é que a roda se move em ângulo reto em


relação ao caminho.
75

Dr. Jung: Exatamente. De outro modo ela não obstruiria o caminho... este é
um impasse, ela está perante o problema da roda e não pode evitá-lo... Não
haveria dificuldade em entrar nela. Teria apenas que agarra-la e suas
próprias mãos a puxariam para dentro. Mas nesse caso ela seria pega por
sua tremenda rotação. Mas se ela não entra, ou vai regredir ou sofrerá uma
parada. Então lhe ocorre a idéia de espremer-se e passar sem entrar.
Agora, depende muito de como os Senhores entendem essa roda. Se, como
foi sugerido, este é o tradicional antigo curso dos eventos submetidos à Lei,
como será então? Os Senhores entrariam nela?

Resposta: Eu penso que se deveria entrar, mas não permanecer lá.

Dr. Jung: Mas se entramos, muitas vezes já não temos mais escolha: ela
pode segurar-nos. Quando estamos sendo rodados daquela forma, é
extremamente difícil pular fora... Ficamos atordoados e por fim perdemos a
consciência. Vejam, temos a idéia que devemos nos lançar na vida e vivê-
la, esquecendo que há perigos muito definidos em jogo; um dos perigos é
que muito certamente perdemos a consciência. Há milhões de pessoas na
roda, e se nos lançamos dentro deste “maelstrom” (sorvedouro;
redemoinho na costa da Noruega, perto das ilhas Lofoten), podemos da
mesma forma perder-nos a nós mesmos e tornar-nos inconscientes dentro
desse tropel. Este assunto não é tão simples.

Comentário: Assim, eu penso que a chama é a coisa mais importante na


presente situação.

Dr. Jung: Eu não diria necessariamente isto, mas é um fator muito


importante. Assim, temos que discutir isso agora. O que é a chama no seu
peito? Lembram-se?

Resposta: É a chama de EROS.

Dr. Jung: É verdade, mas de onde se originou?


76

Resposta: É a consciência. Na Kundalini-Yoga a consciência ergue-se da


região do MANIPÛRA ígneo para ANÃHATA e a chama está lá.

Dr. Jung: Sim. Ela se aproxima agora da psicologia dos centros superiores.
Como sabemos, ela já esteve nos centros da terra, da água e do fogo. Mas
a psicologia da mandala começa quando se consegue formar o círculo
mágico contra os fogos da paixão; então se está em ANÃHATA. Quando
somos capazes de dizer: “Eu estou num estado de paixão”, criamos o
círculo mágico que nos salva dos efeitos destrutivos da identificação com a
nossa emoção. Porque ser apenas emocional, sem perceber em que espécie
de condição estamos, nos destrói como seres humanos, simplesmente
funcionamos como um animal. E ao longo do tempo isto nos torna
neuróticos, a não ser que vivamos numa civilização muito baixa em que
ninguém é mais do que emocional. Neste caso, naturalmente, nós não
iríamos ao encontro de nenhuma demanda danosa, dos outros, de ser
diferentes. Mas numa civilização onde nos é apontado – e mesmo
moralmente “de rigor” – que já não devemos ser idênticos às nossas
emoções, somos forçados a formar esta espécie de anel mágico para nos
elevarmos a um ponto de vista superior à nossa imediata condição
emocional; então ficamos diferentes de certo modo, acima dela...

Agora a paciente está ocupada com esta psicologia da ANÃHATA. Podemos


supor que anteriormente ela não tinha limites e era jogada para cima e para
baixo como vítima da cada situação emocional, mas aqui está tentando sair
da psicologia de MANIPÛRA e lidar com sua situação perigosa, formando um
círculo mágico. Sob tais condições, se ela se juntasse à grande roda girante,
seria muito a mesma coisa que deixar-se envolver de novo por aquele
movimento, presa de todas as suas emoções, e isto provavelmente seria
destrutivo para ela.

Portanto, apesar de todos os nossos ideais eu agora, diria, “Tenha cuidado”.


Parece covarde e de forma alguma heróico, mas se não somos um herói,
talvez, devemos nos comportar como um mortal comum e manter uma
distância segura daquela roda girante; de outro modo arranjaríamos
problemas. Assim, me soa melhor se ela tenta um jeito de passar aos
77

trancos e barrancos, isto soa normal. Ainda mais, ela percebe que para lidar
com o perigo à frente, ela necessita uma armadura para protegê-la e salvar
da destruição a pequena chama no seu peito... Porque a coisa quente e
emocional dentro dela, que era um vulcão incandescente em MANIPÛRA,
tornou-se agora uma chama – isto é, o calor veio de MANIPÛRA, mas em
ANÃHATA tornou-se uma chama – e já que é uma pequena chama,
necessita proteção, mas outras coisas também necessitam ser protegidas
contra ela. Ela deveria ser colocada dentro de uma lanterna, digamos
assim, tanto para que ao cause uma conflagração como para não ser ela
mesma extinta. Porque isso não deveria acontecer: como a chama da sua
vida, não deveria extinguir-se. Um dos meios mais efetivos para que ela a
proteja seria colocá-la dentro de uma armadura de ferro, que seria o
equivalente de uma lanterna. Assim, ela é bastante sábia não se
emaranhando nos giros da vida, ela não está pronta para isso, ela não está
suficientemente protegida. A frase seguinte confirma isso.

 Visão: (cont.) Eu procurei a armadura, mas não pude


encontrá-la em lugar algum – então sentei-me para esperar.

Como veem, ela está numa parada, ela não pode prosseguir.

A Chegada do Metal para a Armadura

 Visão: (cont.) O chão abriu-se aos meus pés. Olhei para baixo
e vi uma folha quadrangular de metal sustentada por quatro
Deuses, um de cada lado; OSIRIS, uma Deusa grega, um Deu
mexicano e um Deus hindu. Fogo vermelho e verde saía deles.

Esta é uma visão muito típica. Conhecem alguma analogia para ela?

Comentário: Em um de seus livros há uma visão de uma paciente na qual


há quatro Deuses e quatro chamas.
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Dr. Jung: É a mesma. E a grande visão profética de EZEQUIEL é uma


analogia muito próxima. Esta visão chegou ao início da sua ocupação.
Talvez os Senhores se lembrem dela, mas eu vou lê-la.

Aqui Dr. JUNG leu a visão de EZEQUIEL sobre os quatro querubins e as


quatro rodas.

(Ezequiel, 1:1 1-26):


1 Aconteceu no trigésimo ano, no quinto dia do quarto mês, que,
estando eu no meio dos exilados, junto ao rio Quebar se abriram
os céus, e eu tive visões de Deus.

2 No quinto dia do referido mês, no quinto ano de cativeiro do rei


Joaquim,

3 Veio expressamente a palavra do SENHOR a Ezequiel, filho de


Buzi, o sacerdote, na terra dos caldeus, junto ao rio Quebar, e ale
esteve sobre ele a mão do SENHOR.

4 Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, e uma


grande nuvem, com fogo a revolver-se, e resplendor ao redor
dela, e no meio disto uma cousa como metal brilhante que saía do
meio do fogo.

5 Do meio dessa nuvem saia a semelhança de quatro seres


viventes, cuja aparência era esta: tinham a semelhança de
homem.

6 Cada um tinha quatro rostos, como também quatro asas.

7 As suas pernas eram direitas, a planta de cujos pés era como a de


um bezerro, e luzia como o brilho de bronze polido.

8 Debaixo das asas tinham mãos de homens, aos quatro lados.


Assim todos quatro tinham seus rostos e suas asas.
79

9 Estas se uniam uma à outra; não se viravam quando iam; cada


qual andava para a sua frente.

10 A forma de seus rostos era como o de homens, à direita os quatro


tinham rosto de leão; à esquerda rosto de boi; e também rosto de
águia todos os quatro.

11 Assim eram os seus rostos. Suas asas se abriam em cima; cada


ser tinha duas asas, unidas cada uma à do outro; cujas duas
cobriam os corpos deles.

12 Cada qual andava para a sua frente; para onde o espírito havia de
ir, iam; não se viravam quando iam.

13 O aspecto dos seres viventes era como carvão em brasa, à


semelhança de tochas; o fogo corria resplendente por entre os
seres, e dele saiam relâmpagos;

14 os seres viventes ziguezagueavam à semelhança de relâmpagos;

A visão das quatro rodas

15 Vi os seres viventes; e eis que havia uma roda na terra, ao lado


de cada um deles.

16 O aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como o


berilo; tinham as quatro a mesma aparência, cujo aspecto e
estrutura eram como se estivera uma roda dentro da outra.

17 Andando, elas podiam ir em quatro direções; e não se viravam


quando iam.
80

18 As suas cambotas eram altas e metiam medo, e, nas quatro


rodas, as mesmas eram cheias de olhos ao redor.

19 Andando os seres viventes, andavam as rodas ao lado deles;


elevando-se eles, também elas se elevavam.

20 Para onde o espírito queria ir, iam, pois o espírito os impelia; e as


rodas se elevavam juntamente com eles, porque nelas havia o
espírito dos seres viventes.

21 Andando eles, andavam elas e, parando eles, paravam elas e,


elevando-se eles da terra, elevavam-se também as rodas
juntamente com eles; porque o espírito dos seres viventes estava
nas rodas.

22 Sobre as cabeças dos seres viventes havia algo semelhante ao


firmamento, como cristal brilhante que metia medo, estendido por
sobre as suas cabeças.

23 Por debaixo do firmamento estavam estendidas as suas asas, a de


um em direção à de outro; cada um tinha outras duas asas com
que cobria o corpo de um e de outro lado.

24 Andando eles, ouvi o tatalar de suas asas, como o rugido de


muitas águas, como a voz do Onipotente; ouvi o estrondo
tumultuoso, como o tropel de um exército. Parando eles,
abaixavam as asas.

25 Veio uma voz de cima do firmamento, que estava sobre as suas


cabeças. Parando eles, abaixavam as asas.

26 Por cima do firmamento que estava sobre as suas cabeças, havia


algo semelhante a um trono, como uma safira; sobre esta espécie
de trono estava sentada uma figura semelhante a um homem.
81

27 Vi-a como metal brilhante, como fogo ao redor dela, desde os


seus lombos e daí para cima; e desde os seus lombos e daí para
baixo, vi-a como fogo e um resplendor ao redor dela.

A visão de EZEQUIEL é, claramente, um exemplo autóctone da mesma idéia


arquetípica que aparece na visão da nossa paciente. E de modo algum é
excepcional. Bem recentemente, por exemplo, depois de uma conferência
sobre os profetas do Antigo Testamento feita por um teólogo alemão no
Clube de Psicologia de Zurique, discutimos a visão de um índio americano,
um pajé, e que era feita absolutamente do mesmo material. Este vidente
índio não podia ter lido EZEQUIEL; quando ele teve a visão os brancos não
haviam chegado ainda à sua terra, ele era um menino de apenas nove
anos, ela emergiu inteiramente dele mesmo. Além disso, não precisamos
supor qualquer influência direta para explicar uma visão como esta; ela
exemplifica um dos antigos modelos arquetípicos que se repetem sempre e
de novo e que continuarão a se repetir para sempre, porque correspondem
a alguma coisa fundamental na psique. E não apenas a quadruplicidade é
arquetípica nesta visão, mas também as figuras híbridas que vemos nela. O
Serafim – e as figuras de EZEQUIEL são realmente serafins, embora a Bíblia
inglesa os chame de Querubim – é de fato uma imagem babilônica, ela
assemelha-se aos demônios ou Deuses alados da Babilônia. E as mesmas
quatro figuras aparecem nas representações egípcias e cristãs. Na
iconografia cristã, eles são os quatro evangelistas, e esses quatro
evangelistas são também os quatro filhos de HORUS (egípcio), um dos
quais tem cabeça humana, enquanto os outros três têm cabeças de
animais.

Assim, em todo este material estamos lidando com uma visão


extremamente arcaica; poder-se-ia dizer, com uma visão eterna, que se
repete em todos os tempos e em todos os lugares, independentemente de
qualquer tradição; na verdade, tentar estabelecer uma tradição conectando
as diferentes manifestações deste modelo seria realmente exagerado.
Quando uma configuração é tão antiga e difundida como esta, e quando os
detalhes correspondem tão estreitamente – os quatro Deuses, a roda, etc –
temos que entendê-la como alguma coisa absolutamente básica. Assim,
82

quando usamos palavras grandiosas e falamos da deidade em conexão com


ela, uma tal idéia, certamente não é exagerada; o próprio EZEQUIEL sentiu
que sua visão era a imagem de JAWEH e a descrição que se segue, do
homem no trono é, com certeza uma tentativa de descrever o esplendor da
manifestação de JAWEH. Então estávamos certos anteriormente, quando
falávamos de um DEUS ABSCONDITUS. Em EZEQUIEL está enfatizado o
esplendor da deidade, enquanto na visão da nossa paciente temos apenas a
descrição tristemente negativa da mesma coisa, sem esplendor. Aí o
esplendor não está desperdiçado no monstro ou na roda, mas é atribuído à
folha de ferro, a peça de metal quadrangular sustentada pelos quatro
Deuses, e esta parte da visão deve ser muito importante, porque este metal
servirá a ela como armadura.

 Visão: (cont.) Eu peguei a folha de metal. A terra fechou-se, e


onde ela tinha estado aberta apareceu uma poça de sangue.
Enrolei o metal sobre mim e mantendo-o entre mim e a roda,
passei a salvo para o outro lado. Enquanto eu passava, as
mãos na roda batiam no metal e faziam um som oco.

Os Quatro Deuses

Comecemos agora com as quatro divindades que elevam o metal de que


será feita a armadura da nossa pacientes. O que dizem eles?

Resposta: Eles representam as diferentes mitologias que a influenciaram.

Dr. Jung: Sim. Egito, Grécia, México e Índia (ou talvez o seu quarto Deus
seja um índio americano). Estas são quatro grandes civilizações antigas... E
o que diriam ser a diferença entre as mitologias egípcia, mexicana e indiana
de um lado e a grega do outro?

Resposta: A mitologia grega é mais consciente do que as outras, mais


racional.
83

Dr. Jung: Sim. A Grécia foi a primeira civilização racionalista e filosófica,


assim é bem diferente das outras. Seus Deuses eram extremamente
humanos, enquanto os outros eram decididamente inumanos... A Deusa
grega é a única feminina entre as quatro deidades que carregam o metal,
assim de certa maneira ela representa a paciente, mas numa forma
altamente exaltada... O que significa o fato de que todos os outros são
masculinos?

Resposta: A armadura é algo muito masculino; estar defendida por uma


armadura poderia significar que ela tem que ter o auxílio do Animus.

Dr. Jung: Então esses Deuses podem ser muito úteis; eles são três
Animus... Muitas vezes encontramos uma situação como esta nos sonhos:
uma mulher num aposento com três homens ou um homem com três
mulheres. Vou fazer um desenho disto para os Senhores, no topo está a
figura feminina, que com as três masculinas (com sinais + em cima) fazem
quatro. Neste caso formam um quadrado, segurando os quatro cantos da
folha quadrada de metal. Agora, tudo isto é feminino, como sabemos, então
eu o encerro num círculo. O ponto de cima representa sua atitude
consciente, porque conscientemente ela é toda feminina; assim, os
masculinos naturalmente representam seu inconsciente. Deste modo
obtemos um sistema de quatro funções onde a linha divisória está um
pouquinho acima do centro. No todo há uma função consciente – poderia
ser intuição, ou sensação, ou cogitação, ou sentimento – e as outras três
são inconscientes. Elas estão no inconsciente junto com o Animus, o que
significa que são masculinas... E não se surpreendem com a qualidade
destes três Deuses? ...O que diria um missionário?

FIGURA DA PÁGINA 220

Resposta: Ele diria que são pagãos.

Dr. Jung: Sim. Ele ficaria chocado pensando numa respeitável dama cristã
com três Deuses pagãos no seu inconsciente.
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Comentário: Talvez ela seja demais cristã, conscientemente.

Dr. Jung: A despeito de tudo, sua atitude consciente é obviamente cristã;


por isso a compensação no seu inconsciente é exclusivamente pagã. E o
que mais poderíamos dizer sobre a psicologia desses Deuses inconscientes?

Resposta: Um deles é um Deus que morre e ressurge.

Dr. Jung: Sim. OSIRIS é com certeza um Deus assim. Agora, como
denominaria a função que ele representa? E onde o colocaria no diagrama?

Resposta: Embaixo.

Dr. Jung: Sim. Ele tem que estar embaixo. O ego está em cima, e OSIRIS
está oposto a ele, embaixo. Poderíamos até falar da função OSIRIS, como
sendo sempre a menos desenvolvida. Isto é como a profecia de ISAIAH
sobre a chegada do MESSIAS; ele será o mais feio e o mais desprezível dos
homens e virá de um lugar absolutamente inesperado. “O que de bom
poderia vir de Nazaré?” E porque é que a coisa que uma pessoa mais
reprimiu e da qual teve mais medo na sua psique pode ser a função que a
salva? Há uma razão clara.

Resposta: Porque ela tem o poder de crescer.

Dr. Jung: E porque tem ela este potencial?

Resposta: Porque ela retém a maior quota de libido. A libido na função


inferior não está desgastada.

Dr. Jung: Certo. É um simples problema de economia. Quando a função do


ego está inteiramente gasta, as convicções e idéias de uma pessoa
consumidas, dessecadas, então sua psicologia soçobra; aí emerge o outro
lado, absolutamente não dessecado, mas cheio de vida primitiva que se
afastou da função do ego. Porque a coisa que nunca foi vista ou aceita, que
nunca viveu, é fresca e verde como a primavera. Percebam, esta é a coisa
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mais terrível; de outro modo a vida seria relativamente simples. Quando


essa “outra coisa” emerge, isto significa uma reversão completa da
personalidade. O caráter novo produzido por ela significa uma renovação da
vida; isto é o que a torna tão particularmente perigosa e atrativa. A figura
de OSIRIS aqui, não é, portanto, de modo algum acidental; é
extremamente significante e realmente demonstra a regra. Também no
texto, a paciente cita OSIRIS, em primeiro lugar. Ela diz: “OSIRIS, uma
Deusa grega”, como se esses dois fossem as figuras principais, e depois
vêm os Deuses mexicano e hindu... No entanto, a totalidade do seu SELF
está aqui representada; é o inconsciente mais o consciente que produz a
armadura. Esta armadura, a folha de metal de quatro cantos, é o símbolo
da individuação, da totalidade... E o fato de que é metal sugere a dureza de
uma superfície lisa, inatacável.

O Simbolismo da Individuação

Precisamos falar também do fogo que emerge das figuras dos Deuses.
Lembrem-se que a visão de EZEQUIEL, que li para os Senhores está cheia
de fogo. Mas as fantasias dos índios americanos são mais próximas desta
paciente; os Deuses que aparecem no folclore deles estão, geralmente,
associados com o fogo ou com o relâmpago; ela poderia do mesmo modo
ter dito que relâmpagos saíam deles. Agora, qual é o significado simbólico
do fogo ou do relâmpago saindo dos Deuses? Esta é uma feição muito
comum em tais visões.

Resposta: Simboliza uma consciência especial.

Resposta: É um símbolo de energia, de tensão.

Dr. Jung: Sim. Indica intensidade. Se pretendesse “consciência”, seria luz.


Mas fogo e relâmpago são, predominantemente, fenômenos de energia; em
outras palavras, há libido naquelas figuras, elas são muito significativas. O
que está acontecendo aqui simboliza individuação, é o que a tornaria
inatacável. Individuação seria a proteção adequada contra a roda com as
mãos agarradiças. Os índios americanos têm cerimônias especiais onde se
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aplica a mesma idéia; (FIGURA DA PÁGINA 221) eles usam o simbolismo


da individuação como uma proteção contra os perigos de doenças;
desenhos de mandalas em areia, etc...

A diferença entre estas coisas e o simbolismo de nossa paciente é que,


durante séculos e séculos elas têm sido convencionalizadas e repetidas da
mesma maneira. Também no Oriente as mandalas são extremamente
tradicionais e devem ser feitas de um determinado modo e não de outro.
Mas as mandalas que encontramos nas fantasias inconscientes são
individuais; elas seguem a mesma lei geral, mas mostram uma grande dose
de variação individual. Mas ainda assim são a mesma coisa. Nas cerimônias
paralelas dos índios americanos podemos ver que o simbolismo da
individuação é o meio antigo de curar doenças ou afastar perigos especiais:
estes cerimoniais são usados em qualquer situação na vida onde um risco
está envolvido – como antes de ir para a guerra ou mesmo antes de ir caçar
– mas especialmente onde se exige cura ou exorcismo.

Agora, o que podemos dizer das cores vermelha e verde das chamas que
saem dos Deuses na fantasia da nossa paciente?

Resposta: O verde indica fogo espiritual e o vermelho foto ctônico, não?

Resposta: Verde significa primavera.

Dr. Jung: Sim. Verde sugere nova vegetação e o vermelho pode ser
associado com o fogo ou com o sangue, é uma cor de paixão e calor. Se
quisermos ser poéticos podemos chamar esses fogos de fogos do amor, da
vida e da esperança. Onde há libido há sempre esperança. Não importa a
que inferno ela conduz, é sempre vida e as pessoas frequentemente
pensam que é melhor um inferno ardente do que nada. Assim ela aceita a
folha de metal e a usa como armadura contra as temíveis mãos que tentam
puxá-la para a roda.
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“Então a terra fechou-se” – tendo a terra entregue seu segredo – “e onde


ela estivera aberta, lá apareceu uma poça de sangue”. Agora, o que é isto?
Algo emerge da mãe terra e então há uma poça de sangue.

Resposta: Um nascimento.

Dr. Jung: Exatamente. Este é o nascimento do indivíduo, ou o nascimento


do SELF, a totalidade do indivíduo, e naturalmente uma poça de sangue
permanece. Isto, naturalmente, é simbólico, completa o simbolismo do
nascimento. Quando resta uma poça de sangue, o que significa isto?

Resposta: Não poderia indicar sacrifício?

Dr. Jung: Este sangue é sacrificial, a terra pariu algo curador, auxiliar,
redentor e uma poça de sangue permanece. Quando algo ocorre na
realidade que deixa atrás de si sangue presume-se que um desastre
aconteceu; alguém sangrou, a substância vital foi perdida. E uma poça de
sangue na terra significaria que a terra foi ferida e está sangrando.

Comentário: Isto simboliza toda a libido que ela despendeu para produzir
sua individuação.

Dr. Jung: O sangue nos nossos corpos representa, naturalmente, a vida da


terra. Vir à superfície significa que se perdeu sangue, que ele foi sacrificado
para garantir a produção de alguma coisa mais valiosa, isto é, a armadura
protetora da completa individuação. O sangue aqui significa lesão, se dar à
luz não fosse uma função natural da terra. Porque isto é como que o nascer
de uma criança; uma criança é verdadeiramente a vida da mãe, e seu
nascimento leva embora esta vida; o sangue que segue o nascimento é um
sacrifício em prol da criança, e de certo modo representa a ferida, a
destruição por que passa a mãe. De modo semelhante, o nascimento do
SELF ocorre às expensas da terra – isto é, do corpo vivente – e envolve um
gasto considerável de vida biológica. Certamente, do ponto de vista
biológico, é quase um desperdício. Porque aquilo que o corpo vivo valoriza é
o sangue, e quando isto é cedido, ele sente uma perda; para o corpo, esta
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armadura e estes quatro Deuses nada significam, são apenas acessórios


inadequados. Mas o SELF nasce do corpo; a individuação não pode ocorrer
sem o corpo e quando ela realmente ocorre, o corpo deve pagar os gastos,
requer-se um dispêndio de vida. Esta é a razão pela qual pessoas que
passam pelo processo de individuação não saem dele mais jovens; via de
regra elas envelhecem muito, e algumas adquirem cabelos grisalhos desta
experiência.

Agora, tendo colocado a armadura e passado sã e salva pela roda, ela diz
“Ao passar as mãos da roda batiam no metal produzindo um som oco”. Isto
parece aludir a alguma coisa.

Comentário: Parece aludir ao fato de que a armadura é oca, como se não


tivesse dentro um corpo verdadeiro.

Dr. Jung: Existe esta suspeita. Se um sonho terminasse com esta


observação pensaríamos que o som oco era bem suspeito. Nós aguçaríamos
os ouvidos.

Pergunta: Não teria sido possível prever que alguma coisa estava errada
pelas figuras descritas na mandala? Não há muito pouca consciência quando
apenas uma figura é feminina e todo o resto é inconsciente?

Dr. Jung: O Senhor tem toda a razão e há algo mais errado que esqueci de
mencionar.

Comentário: A coisa toda me pareceu errada.

Dr. Jung: Não está tudo errado, não precisamos exagerar, mas para uma
mulher moderna e atualizada, esta única figura consciente não é bastante,
deveríamos ter ao menos dois hermafroditas – ou outra mulher e dois
homens, o que seria melhor. Mas então a situação já não seria cristã.
Vejam, estes três Deuses mantêm a substância da Trindade no
inconsciente; a Trindade aqui consistindo de três Deuses pagãos...
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Sob tais condições – com um feminino e três masculinos – é muito


questionável se o simbolismo da totalidade pode ser realizado, ela pode
permanecer, de novo, uma intuição. Quando aquela armadura passa a roda,
pode não haver ninguém dentro; talvez apenas um fantasma está
passando. Mas é verdade que se alguém estiver individuado poderá passar;
com a individuação como armadura estará protegido. Mas se alguém entra
ou não naquela armadura, é outra questão.

A série seguinte de visões intitula-se “O Ovo de Granito”.

O Ovo de Granito

 Visão: Eu passei pela roda e cheguei a um grande ovo.


Serpentes guardavam a sua base. Aproximei-me do ovo e parei
diante dele.

[Este ovo, explicou Dr. Jung, não é exatamente um símbolo de


individuação, mas representa uma condição latente, que pode desenvolver-
se ou não. Não sabemos o que está dentro dele. Sua dureza, entretanto,
tem certa conexão com as nossas dúvidas a respeito do som oco da
armadura, quando ela passou pela roda. De outro lado, se for um
verdadeiro ovo vivente, como o ovo do mundo dos caldeus, o mundo inteiro
pode sair dele. Mas de acordo com o antigo simbolismo, deveria haver um
ovo e uma serpente. Na Yoga tântrica, também, uma serpente, a Kundalini,
está envolvendo o linga e o MÛLÂDHÂRA. Mas aqui há uma porção de
serpentes e isto indica uma desintegração.] (Nota do Editor).

Figura da página 223

E o que poderia ter causado uma tal desintegração – de acordo com a lógica
do inconsciente, que não é a lógica no nosso sentido superficial?

Resposta: Falta de vida no ovo.


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Dr. Jung: Exatamente. Se fosse um ovo verdadeiro, provavelmente haveria


uma serpente viva. Mas este não é, necessariamente, um ovo vivente. Se
não é, a vida deixada de lado teria entrado nas serpentes, quando se põe
demasiada libido num conteúdo psicológico, ele imediatamente desintegra...
Uma serpente é perfeitamente suficiente, e quando se multiplica sem razão
aparente, indica que foi tão exageradamente imbuída com vida e energia
que produziu muitas réplicas exatas de si mesma. Este excesso de vida
poderia vir de uma falta de vida no ovo. Mas isto é apenas um simbolismo e
o que significa psicologicamente é uma outra questão. Temos que indagar
porque o símbolo da serpente está tão repleto de energia nesta paciente,
enquanto o ovo está aparentemente sem vida...

Comentário: Há certo tempo atrás, em conexão com as formigas e o fogo


que corria pelo chão, o Senhor disse que a energia dela estava regredindo e
indo para as partes inferiores de sua personalidade. Estas numerosas
serpentes poderiam mostrar que a atividade ainda está embaixo?

Dr. Jung: Sim, tivemos aquele simbolismo, havia esta pluralidade. Eu disse
que ela indicava atividade demais no mundo da serpente, e o mundo da
serpente é, muito claramente, o mundo dos intestinos, que significa a vida
inconsciente. Assim, todas essas serpentes nos dizem que há vida
inconsciente demais. Esta é a razão pela qual o símbolo da serpente está
indevidamente multiplicado e acentuado aqui; é também o que faz o próprio
ovo parecer tão sem vida, embora seja a parte que realmente deveria
desenvolver-se.

Comentário: Houve algo semelhante quando ela voou para a cidade eterna
no Pégaso. Naquela visão uma mulher jazia crucificada no chão e, quando
foi libertada, disse: “Durante um tempo longo demais eu fecundei a terra”.

Dr. Jung: Este foi outro pronunciamento do mesmo tipo. Há muita ênfase
nas regiões inferiores.

Comentário: Mas aquilo era necessário porque tinha havido muito pouco
antes, tudo estava em cima. Assim, isto seria um processo natural.
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Dr. Jung: Isto é verdade, mas.... se há muita libido em cima e ela se


precipita para baixo com muito ímpeto, então o porão se enche e haverá
demais embaixo.

 Visão: (cont.) Uma grande multidão comprimiu-se junto a


mim, ameaçando-me. Eu gritei “Isto é um ovo”. Eles
responderam: “É apenas um granito”.

O que significa esta multidão?

Resposta: O inconsciente coletivo.

Dr. Jung: Mas aqui o inconsciente coletivo não aparece em qualquer de suas
formas naturais como mar, ou florestas, ou a terra, por exemplo; está
projetado em outras pessoas. Quando isto acontece, reações que seriam
comumente conectadas com fenômenos naturais são conectadas com seres
humanos, que então parecem funcionar como se fossem rochas que rolam,
ou relâmpagos, ou espíritos elementais possivelmente malignos.
Obviamente isto aconteceu aqui, ela projetou o inconsciente coletivo sobre
a opinião pública, sobre outras pessoas, e eles a estão ameaçando... Eles
dizem que o ovo não passa de granito, nada mais é que matéria: tem a
forma de um ovo, mas não é um ovo. Contra esta opinião pública
depreciativa, entretanto ela se agarra, quase desesperadamente, à
convicção de que o ovo é real.

Protegendo a chama

 Visão: (cont.) Eles zombaram de mim e chegaram mais perto.


Eu tive medo que eles me esmagassem contra o ovo e
apagassem a chama no meu peito.

Este simbolismo mostra claramente que ela encara a coletividade, a


humanidade como um todo, como uma forma de poder elementar, como
uma onda que lança alguém contra as rochas, ou uma pedra que rola e nos
esmaga. A multidão vem em cima dela como águas impetuosas e ameaça
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esmagá-la contra o ovo e apagar a chama em seu peito. O que se pode


dizer sobre esta chama? Já falamos dela antes.

Resposta: É o início da consciência, da individuação.

Dr. Jung: Sim. É a pequena chama vermelha que se vê no fundo do


triângulo no centro do chacra ANÃHATA; E ANÃHATA é o primeiro centro
acima do diafragma, onde alvora a consciência, são apenas reações
conscientes, mas a consciência no seu pleno direito... Acima do diafragma,
não importa quanto se é um animal, sabe-se o que se faz, e na medida em
que se sabe isto, se é liberado. A primeira noção, a primeira chamazinha de
consciência está lá, e é extremamente preciosa. Esta mulher, como sabem,
a está sempre protegendo dos ventos do mundo que ameaçam apaga-la,
lutando para manter a consciência desperta contra os ataques terríveis dos
poderes de MANIPÛRA...

Esta ameaça tem um propósito definido. Porque ela andou duvidando;


houve o som oco da armadura, por exemplo. E, mesmo para ela, não é tão
certo que o ovo seja vivo; ela diz: “Este é um ovo”, significando “Eu espero
que seja um ovo”. Mas o tempo todo a opinião coletiva dentro dela está
dizendo que é apenas matéria morta, que ela não deve preocupar-se com
isto, porque não há esperança, que é apenas um ‘nada mais do que...’ Se
ela acredita nisto, o inconsciente se fechará sobre ela e a conduzirá de volta
a MANIPÛRA, onde a vida não-humana animal e biológica eternamente
existe... Assim, é essencial para ela que esta chama vital de consciência
não seja apagada; foi para fazê-la perceber isto que se ameaçou a chama.
Agora ela teve a oportunidade de aprender como é importante que este ovo
não seja feito de granito, que ele seja oco talvez, e que a vida esteja dentro
dele.

 Visão: (cont.) Eu peguei um dos fios que pendiam do ovo e,


usando-o como chicote, fustiguei a multidão.

Este é um ovo muito peculiar, um oco comum não tem esses fios. Mas há
ovos que têm. Os Senhores conhecem?
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Resposta: Ovos de peixe.

Dr. Jung: Sim. Ovos de peixes. Ovos de tubarão, por exemplo. Eles têm
pequenos fios ou caudas, que se chamam chicotes. Os fios neste ovo são
algo semelhante. Nossa paciente teve uma excelente educação em zoologia,
assim ela conhece os ovos de peixe. Mas porque este ovo teria fios?

Resposta: Porque ele vem do inconsciente, do mar.

Dr. Jung: Sim. Este ovo era um conteúdo do mar, ele foi levado à praia do
mar do inconsciente coletivo.

 Visão: (cont.) Eles recuaram. Voltei-me para o ovo dizendo:


“Eu os mantenho afastados. Abre-te para mim”. O ovo se
dividiu em quatro partes. A gema amarela espalhou-se no chão
e estendeu-se para cima, cobrindo meu corpo todo.

Assim, ela é uma testemunha para a sua própria fé, ela defende o ovo, ou
ela mesma, contra a crença da multidão... A opinião coletiva sempre tenta
convencer do fato de que se é um ser humano comum. E disto o homem
está sempre tentando escapar, porque ser apenas um átomo, um grão de
areia no Saara, não faz qualquer sentido; não tem qualquer significado ser
apenas uma parte de uma acumulação, não se pode viver. A humanidade
tendeu sempre a desenvolver um modo de ver que a protegesse contra este
perigo tremendo, a estandardização e estultificação da individualidade...

Nesta visão ela se apega à sua convicção mais profunda e o efeito disto é
que o ovo instantaneamente mostra vida, atividade espontânea, divide-se
em quatro partes. Agora, isto o que significa?

Resposta: Significa que o processo de maturação iniciou-se.

Dr. Jung: Sim. O desenvolvimento começa desta maneira, ele é


particularmente visível nos ovos de animais inferiores. Naturalmente, ocorre
o mesmo com os animais, mas em geral o ouriço do mar é usado para
94

demonstrar isso na zoologia; lá pode se ver o ovo se dividir de uma forma


muito regular. Isto, com certeza, a paciente conhece bem. Assim, o ovo
mostra sinais de vida, ele começa a desenvolver-se, e isto se deve a
mudanças na sua atitude. Primeiramente, ela está mais ou menos
convencida pela opinião coletiva da multidão, depois sente que se aceitar tal
modo de ver, a chama de ANÃHATA se apagará; assim, ela se apega à
chama. Por isso o ovo começa a viver; quando ela diz: “Abre-te para mim”,
o ovo se abre e ela é envolvida pela sua gema. É realmente como se ela
fosse recebida pelo ovo, como se ela se tornasse o germe vivo dentro dele.
Se este ovo fosse chocado, ela renasceria dele.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE X

Seminários entre 25 de janeiro e 21 de junho


de 1933.

SPRING 1969
2

O Ídolo Andrógino

 Visão: O estreito caminho alargou-se. Eu vi um grande ídolo. Ele


tinha a cabeça de mulher e as mãos de um homem, estendidas para
cima. A parte inferior era uma informe massa de ouro.

Ela acaba de passar por um desfiladeiro estreito, o tipo de lugar onde se


tem a sensação de estar encerrado sem qualquer visão, e agora ela chega a
uma parte mais larga do caminho. Isto expressa uma sensação de alívio, as
coisas estão indo melhor, o horizonte é mais amplo. E o ídolo? À luz do que
temos estado falando?

Resposta: Ele combina masculino e feminino. É um ídolo andrógino.

Dr. Jung: Sim. Os elementos masculino e feminino antes estavam


separados... Esta é, com certeza, uma tentativa para formar um ser com
ambas as qualidades, masculina e feminina, e já que não é um ser humano
real, mas um ídolo, não se pode chamá-lo só assim, uma perversão da
natureza, apenas um hermafrodita anatômico. Um ídolo é um símbolo, e
este ídolo é um símbolo divino; seu hermafroditismo divino é simbólico
porque todas as nossas idéias sobre deidades são simbólicas. Este
hermafrodita significa um ser superior, além do masculino e do feminino;
quase se poderia dizer que ele não é nem masculino nem feminino, porque
tendo uma cabeça de mulher e as mãos de um homem ele inclui ambos...
Mãos significam ação. Em alemão, por exemplo, a palavra “agir” é handeln,
isto é, fazer uma coisa com as mãos. [A palavra “mão” vem do latim
manus, e por isso em português há verbos correspondentes: manusear,
manobrar, manufaturar, manipular]. Assim, um ídolo com as mãos de um
homem significaria agir, ou ser executivo, como um homem. E a cabeça de
uma mulher significaria que aqui a mente de uma mulher está combinada
com a atividade de um homem, ou alguma coisa assim.

E a parte inferior do ídolo consiste de uma massa informe de ouro; o que


diriam disso?
3

Resposta: Eu pensaria que significa valor não configurado.

Dr. Jung: E o que é valor, psicologicamente?

Resposta: Libido.

Dr. Jung: Sim. Dinheiro é simplesmente energia cunhada... A massa


informe de ouro significa apenas uma massa de libido informe, uma
acumulação ou condensação de energia psicológica. Para ser bem prático,
se ela devesse vender aquela figura, ela faria um bom dinheiro com ela; um
monte de ouro como este é uma grande acumulação de riqueza, e por isso
é importante.

Comentário: Parece-me que este simbolismo mostra progresso. Certa vez


ela teve uma visão onde o ouro aparecia como uma poça afundada na terra
(Parte III, página 17; Parte VI, páginas 38 e 39) e agora está acima da
terra.

Dr. Jung: Sim. O ouro apareceu antes como um disco, ou como a superfície
de uma poça sobre a terra ou abaixo dela, mas aqui parece ter sido
amontoado e ter tomado a forma de um ídolo. Isto é progresso, e quando
um símbolo progride, sabemos que deve ter alguma função, deve servir
algum propósito na psicologia desta mulher.

Pergunta: Estará ele atuando no sentido de fazer uma nova religião para
ela?

Dr. Jung: Todo ídolo tem a ver com religião, e se acontece que criamos um
novo ídolo, isto é, pelo menos, um passo no sentido de formar uma nova
religião. Mas esta não é uma tentativa consciente, apenas ocorre que ela
está vendo uma série de imagens. Assim, embora seja uma tentativa de
formar um novo ídolo, isto é tudo que podemos dizer sobre ele.

Mesmo assim, ele significa alguma coisa na mente dela... Tem que ser
especialmente enfatizado o caráter hermafrodita deste símbolo; há uma
4

idéia muito especial contida nisto... que explica porque tias figuras foram
criadas no passado...

[Deuses hermafroditas já em tempos remotos apareceram no Oriente


Próximo e também em Argos e Chipre. Na Idade Média o alquimista usava
estas figuras para representar a união dos opostos e frequentemente os
representava com duas cabeças, uma masculina e outra feminina. O
hermafrodita também aparece nas cartas do Tarô, e lá ele é chamado
DIABO.

A palavra vem dos nomes gregos HERMES e APHRODITE. HERMES, embora


fosse simplesmente um pilar fálico, nas suas primeiras estátuas, ficou
conhecido mais tarde como o mensageiro dos Deuses Olímpicos, e pode ser
considerado idêntico ao THOTH egípcio, que era o escriba dos Deuses.
APHRODITE, como a VENUS romana, era a Deusa do amor. Assim, a
palavra “hermafrodita”, além de suas conotações fálicas, significa uma
combinação dos elementos masculino e feminino]. (Nota do Editor).

Já que os símbolos usualmente representam condições psicológicas, a


condição especial da vida psicológica representada por um símbolo que
inclui características masculinas e femininas, seria um pondo de vista além
do sexual e do biológico. Agora, o que é que está além do ponto de vista
biológico?

Resposta: Sublimação?

Dr. Jung: Nunca! Isto é justamente o que ele não é. O símbolo hermafrodita
é hermafrodita precisamente porque a resposta não é sublimação.

Pergunta: O artístico?

Dr. Jung: Ele nada tem a ver com arte. Arte é apenas um particular meio de
decorar o nosso ninho, onde pomos nossos ovos. Bem, a visão biológica da
vida é que comemos, bebemos, propagamos nossa espécie, dormimos e
morremos; ela mira a natureza, a vida biológica. Mas acima e em oposição
5

à natureza, ou além da natureza, está o cultural – nossa civilização,


naturalmente. E a civilização é um feito especial do homem, nenhum animal
jamais sonhou com ela...

Comentário: Mas algumas das grandes culturas emergiram em povos que


viviam na mais primitiva condição.

Dr. Jung: Isto é porque a cultura começa na alvorada da consciência


humana.

Comentário: Mas as atitudes deles eram quase sempre biológicas.

Dr. Jung: Naturalmente. Mas, na medida em que eles tiveram cultura, sua
atitude biológica foi coibida, até mesmo aniquilada. Nas tribos primitivas
podem ser encontradas as coisas que são mais não-naturais, e todas elas
são culturais, porque a cultura afirma-se por coisas que são contra a
natureza; os maiores realistas que se possam imaginar são pessoas
primitivas, mas eles fazem as mais espantosas afirmações sobre a
natureza. Para tomar algo dentro da experiência deles, por exemplo: eles
sabem muito bem se uma horda de animais selvagens compõe-se de dois
ou de vinte, mesmo assim eles dizem que o pássaro-totem que eles
mataram em vinte diferentes aldeias, é um e o mesmo pássaro. Na
realidade eles sabem que vinte pássaros foram mortos, tantas quantas
eram as aldeias, mas eles afirmam que era um... E certos nativos
brasileiros declaram que são papagaios vermelhos. Eles não têm penas e
não voam, mas isto é apenas acidental, e é por mero acaso que os
papagaios vermelhos não têm feições humanas; eles nos afirmam que um
ser humano e um papagaio vermelho são uma e a mesma coisa. Agora, isto
vai contra o modo costumeiro de pensar destes primitivos... A própria vida
deles depende da mais apurada diferenciação e cuidadosa observação dos
fatos naturais. Sendo caçadores, eles têm que saber as condições especiais
da vida animal; eles podem nos dizer, por exemplo, se um rasto é de duas
horas, ou de dez minutos apenas, e nem imaginamos como eles sabem
isso. Ainda assim, eles fazem espantosas afirmações diretamente contra a
natureza, e na medida em que são capazes de fazer tais pronunciamentos
6

eles têm cultura, porque a cultura começa com o símbolo e cada um desses
espantosos pronunciamentos é simbólico. Não pode ser verdade que eles
são papagaios vermelhos; tem que ser uma afirmação simbólica, mesmo
assim a expressão de um fato – o fato de que de algum modo maravilhoso,
eles são aqueles papagaios que podem voar. O que supõem que eles
querem dizer quando afirmam isto? Conhecem algo semelhante?

Sugestão: O Espírito Santo.

Dr. Jung: Sim. A pomba do Espírito Santo é uma afirmação como esta, mas
há alguma coisa mais na nossa religião, mais próxima do âmago deste
simbolismo.

Sugestão: O batismo, que nos torna filhos de Deus?

Dr. Jung: Sim. Nesse momento a alma entra em nós, a alma-pássaro.


Porque se diz que a alma tem asas de pássaro e voa aos céus, ou algumas
vezes que é uma borboleta. A palavra psique significa também borboleta,
assim a alma é apresentada em antigos monumentos com asas de
borboleta. E todos os anjos têm asas de pássaros, eles são todos como
pássaros. Por isso, quando os índios brasileiros dizem que são papagaios
vermelhos, estão simplesmente afirmando que suas almas têm asas, que
eles têm um ser alado dentro deles... E tal asserção contra os fatos é o
começo da cultura, um ponto de vista acima do biológico. Quando um
homem cria um símbolo, ele cria algo contra e além da natureza, mas
mesmo assim isto se enquadra na natureza de um modo especial. E quanto
mais estreitamente se encaixa na natureza, mais tempo durará, mais
natural será, e melhor dará expressão aos seus instintos. Esta é a razão
porque há tanto estardalhaço na história do mundo sobre a criação de
símbolos... É extremamente importante para a humanidade que se encontre
uma fórmula correta e verdadeira para os instintos. Com uma fórmula
adequada podemos viver decentemente e a maioria dos instintos pode ser
expressa, mas com uma fórmula inadequada que não nos permite tal
expressão, ficamos doentes (isto é, neuróticos) e ocorrerá uma sublevação
mundial...
7

Agora, não está ainda nem um pouco claro o que significa este símbolo
andrógino. Alguns dos Senhores pensam entender o seu propósito
funcional, ou porque ele aparece neste momento em particular?

Resposta: Não é o oposto da visão que ela teve antes? Uma visão de um
homem com falos no lugar das mãos e uma mão como falo. [Esta visão não
consta desta edição].

Dr. Jung: Sim. Aquela era uma afirmação muito unilateral do sexo, e a
conseqüência natural da afirmação unilateral do sexo é que
instantaneamente somos reduzidos ao nosso papel sexual, a nada mais dos
que mulher ou nada mais do que homem; o significado da vida inteira fica
exaurido nesta forma particular. Do ponto de vista do cientista natural isto é
bom senso e perfeitamente satisfatório; é apenas vida, é assim... Se
olhamos para a natureza, tão longe quanto podemos – e é sempre uma
questão, naturalmente, de quão longe podemos olhar dentro da natureza –
é verdade que quando uma fêmea é apenas uma fêmea e um macho
apenas um macho, isto os apazigua, e pode ser considerado o sentido total
de suas existências. Mas com o homem isto se torna muito duvidoso, ele
construiu pirâmides e templos e Deuses que existem apenas naquilo que é
chamada “mera” imaginação. Tal comportamento é sem precedente, e nós
não nos maravilhamos o suficiente diante dele, nós apenas o temos como
certo. Ainda é assim, é como se a manada de zebras começasse a executar
ritos sagrados, ou macacos começassem a escrever livros. O homem criou
um segundo mundo para ele através da sua cultura. E uma vez que isso é
sem precedente na natureza como nós a conhecemos, só podemos supor
que, desde o alvorecer da espécie, o homem foi dotado com o instinto de
criar coisas que não podem ser encontradas na natureza. Mudando a
superfície do mundo ele projeta coisas na natureza, parecendo assim
possuir o instinto para criar algo que na sua essência não é natureza.

Esta fantasia é um exemplo. Aqui a paciente está fazendo uma afirmação


contra a natureza, criando alguma coisa contra toda a evidência, um ser
além do preconceito mono-sexual. Agora, quando um símbolo deste tipo
ocorre em sonhos, seu sentido funcional é que existe uma necessidade
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inconsciente de expressar a condição representada; isto é, se


representamos a condição é como se a antecipássemos, e é como se fosse
possível tê-la. Sabemos que no passado os homens sempre se esforçaram
para dominar e transformar a natureza usando todos os tipos de cerimônias
mágicas e religiosas, ou simplesmente conceitos, convicções filosóficas que
continuamente colocam sobre o mundo uma nova face e o fazem diferente,
não apenas conceitualmente, mas de fato... Assim, este símbolo tem um
valor funcional, ele expressa a possibilidade de uma condição na qual o
preconceito natural é não-existente. Ou é superado. Nesta condição ela
seria capaz de entender, de funcionar mentalmente – e de atuar de acordo
– como se ela fosse um ser não-sexual, isto é, como se ela fosse tanto
homem como mulher. Esta é, obviamente, uma condição cultural.

“Eu Acredito Porque É Absurdo”

Agora, porque supõem que o inconsciente dela sente a necessidade de criar


este símbolo em particular? Qual deve ser a sua condição? ...Quase parece
uma contradição, quando o inconsciente primeiro reduz uma pessoa a um
ponto de vista sexual e depois insiste na condição que supera isto. Porque
deveria, em geral, ser enfatizado o ponto de vista sexual? Isto é devido
inteiramente aos preconceitos da nossa peculiar civilização cristã. Nós
reprimimos ou erradicamos o instintual e o declaramos não-existente, ou
ainda aprendemos a passar por ele silenciosamente e a deixá-lo para trás –
como se os instintos pudessem ser deixados para trás. Pelo modo como
fomos todos educados, é bem possível para nós fazer tal coisa; então,
naturalmente, nos emaranhamos num estado neurótico, tendo criado uma
dissociação entre nossos corpos e nós mesmos. É por isso que o
inconsciente tem que insistir tanto no corpo. Historicamente é como se
Freud, com sua insistência sobre o sexo, estivesse dizendo: “Agora olhe
para trás e veja o que deixou lá; aquilo existe, é mera ilusão pensar que
deixou isto para trás; não está perdido, você simplesmente está
inconsciente dele, mas ele o influencia e causa sua neurose”. Isto é insistir
sobre o fato de que há instintos, de que o homem é um macaco.
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Mas só quando realizamos que somos macacos, o inconsciente insistirá, e


ele realmente insiste, na realidade do instinto cultural. Chamá-lo assim é
um modo de dizer, certamente, poderíamos da mesma forma falar da
qualidade espiritual do homem, ou qualquer outro modo pelo qual quiserem
chamar aquela coisa dentro dele que não concorda com a natureza, que até
mesmo afirma o óbvio contrário do fato natural...

Comentário: CREDO QUIA ABSURDUM EST.

Dr. Jung: Exatamente. Este é o famoso pronunciamento de TERTULIANO:


“Creio porque é absurdo” (ou contraditório, paradoxal). Na realidade a
sentença era mais comprida, não posso citá-la literalmente, mas queria
dizer o seguinte: “Eu creio que o Filho de Deus morreu, justamente porque
é absurdo, e acredito na sua ressurreição porque é incrível”. O paradoxo de
TERTULIANO formula exatamente a peculiar tendência da mente humana
para afirmar precisamente aquilo que não é garantido pelos dados óbvios
dos sentidos; é a afirmação da realidade do símbolo como um fato psíquico.
De nenhuma outra forma é a realidade da psique e dos conteúdos psíquicos
melhor demonstrada do que por esta afirmação do absurdo e do incrível.
Esta é a evidência do poder da psique por direito próprio. O homem
simplesmente não pode evitar fazer estas afirmações, elas se fazem dentro
dele e por meio dele, ele é sobrepujado por elas; porque usualmente elas
aparecem como revelações, elas chegam dessa maneira. Como podem ver
nas visões da paciente, esses fatos psicológicos são simplesmente revelados
a ela, aparecem ante seus olhos; ela não os inventa, eles apenas
acontecem. É exatamente o mecanismo que pode ser encontrado – num
nível mais alto, naturalmente – nos profetas. Se compararmos a grande
visão inicial de EZEQUIEL com estas, veremos uma perfeita analogia, com a
diferença de que a visão, ou revelação, chega ao profeta de um modo
inesperado, enquanto estas visões são esperadas, e por isso, depreciadas
desde o começo... Se uma coisa se encontra mais ou menos ao nosso
alcance não podemos apreciá-la; o que está ao nosso alcance como um
resultado técnico não tem valor... Mas quando não estamos preparados,
visões como estas podem chegar com tanta força que mudam a nossa vida
toda. Leiam “Variedades de Experiências Religiosas” de WILLIAM JAMES. Lá
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encontrarão exemplos de tais visões. A mais famosa é a visão de PAULO,


que causou sua repentina conversão; ele teve apenas uma visão e ela foi
suficiente. Mas aqui temos um número delas e elas têm pouco efeito,
simplesmente porque eram esperadas.

Se tivermos uma atitude religiosa, que significa uma atitude de grande


totalidade, de modo que recebemos a folha seguinte que cai da árvore
como uma mensagem de Deus, então a nossa visão atua... Mas se nossa
atitude é estética, começa a dificuldade, porque a estética é uma atitude
parcial; ela nos defende do valor imediato do momento, permitindo-nos ver
apenas a superfície.

A Inadequação da Atitude Estética

Vou dar-lhes um exemplo extremo de atitude estética, e ele não é um


exagero; essas coisas acontecem na realidade. Numa rua coberta com neve
um carro derrapa, atinge uma criança e esmaga seu crânio contra a guia.
Passamos por ali e vemos o sangue na neve; as pessoas se aglomeram e as
ouvimos dizer: “Um acidente terrível!” “Uma criança foi morta!”
Naturalmente estamos impressionados, mas se temos o dom da atitude
estética, diremos, “Que quadro interessante! Este notável contraste entre o
sangue vermelho e a neve branca, não é lindo?” Vemos a beleza do horror,
o que significa que estamos protegidos daquela coisa toda, omitimos o
evento inteiro.

Estas visões atingem muito bem a superfície, mas a essência não é


experimentada. Por isso a quantidade supera a qualidade. Sob certas
circunstâncias podemos assumir uma atitude estética para nos
protegermos, mas nesse caso o inconsciente é obrigado a multiplicar os
símbolos para poder chegar até nós. Podemos pensar que somos
particularmente férteis; parece fertilidade, mas é pobreza. Estas visões são
como comunicações telegráficas do inconsciente, bastante descoradas.
Mesmo assim, se nos detemos nelas e as animamos, podemos reconhecer
sua relação com coisas importantes. Poderíamos dizer de quase todas as
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séries, que se tivessem sido conduzidas com uma atitude religiosa, a


paciente teria percebido tudo em uma experiência completa...

Mas vejam, ela não acha terrível que este ídolo, que obviamente representa
uma idéia ou experiência da deidade, seja feio, disforme e hermafrodita.
Quando não ficamos impressionados com um fato tão horrível, é porque não
o percebemos; vemos a forma, mas ela nada transmite; não dizemos: “Este
é o meu Deus”. Ainda assim, é o princípio supremo, quer acreditemos que
ele é ou não. Já que nossas vidas não são feitas por nós mesmos, é o maior
erro supormos que as fazemos; elas são feitas para nós. Assim, se eu visse
tal visão, ficaria horrorizado. Ela mexeria comigo violentamente, atingiria
minhas entranhas, porque minha atitude seria bem diferente. Porque
somente através dos nossos esforços, só assim, essas coisas nos dizem
algo. Somos inclinados a passar adiante sem realizar o que estamos vendo.
Isto acontece por causa da atitude estética que não permite que nossas
experiências se aprofundem e se tornem uma parte de nós; de outro modo
teríamos percebido muita coisa já bem antes. Pensem nas visões passadas
desta paciente sobre PAN ou sobre o touro. Não há muito tempo ouvi um
sonho em que uma mulher viu a transfiguração de um touro em um touro
branco solar – e isto era muito bonito. Mas, em termos estritos, o que
transmite tal sonho?

Resposta: Que o Deus dela é um animal.

Dr. Jung: E o que significaria isso? ...Como o animal a influenciaria?

Comentário: Não é humano.

Dr. Jung: Exatamente. Ela está sob o controle de um princípio inumano ou


subumano. E isto produz um efeito curioso; isto é, qualquer que seja a sua
atividade, ela a levará a cabo como se um animal o fizesse... Cega como
um touro, não é particularmente inteligente, como sabem uma força cega.
Assim, quando ela vai atrás de alguma coisa com certa intensidade, ela faz
isso como se fosse um touro. Assim influencia Deus o ser humano. Deus é a
força suprema na psicologia de uma pessoa, o supremo e último fator
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decisivo, e se Deus é um animal – como pode ser, já que Deus pode ser
tudo – então a pessoa é forçada a agir ao modo de um animal, a ser auto-
erótica, cega, imprudente, imprevidente, instintiva. Sem dúvida tudo isto
tem alguns pontos positivos: podemos ir longe com o instinto, ou quando
temos o impulso do animal atrás de nós, mas isto não é humano. A meta
última do homem, quero dizer a consciência que, até onde podemos ver, é
nossa meta última não é auxiliada por isso. Mesmo assim, podemos nos
emaranhar em tal confusão catastrófica que percebemos que estamos
forçados a isto por alguma coisa animal; então olhamos em volta e termos
que mudar...

O caráter Destas Visões

Pergunta: Se uma longa série de visões é baseada na atitude estética, o


significado destas visões não fica limitado ao estético?

Dr. Jung: Eu já me perguntei isto... e é a mesma coisa com os sonhos.


Visões superficiais são um tanto tediosas, exatamente como na análise
prática, os sonhos comuns “de toda noite” muitas vezes tornam-se
enfadonhos, porque são de natureza muito superficial. A maioria dos nossos
pequenos sonhos são muito desprezíveis em qualidade, na realidade, mais
ou menos fúteis. Mas algumas vezes são tudo o que temos, se não
podemos encontrar nosso caminho através deles, nunca chegamos aos
grandes sonhos. Além disso, os pequenos sonhos podem, de fato, ser mais
facilmente compreendidos que os grandes sonhos, que são extremamente
difíceis... Se o material que discutimos fosse todo concentrado – numa série
de cinco visões, digamos – dificilmente poderíamos pensar em alguma coisa
dele; seria demais profundo, demais complicado, demais remoto. A
vantagem do caráter superficial destas visões é que o mesmo pensamento
está desenvolvido em dúzias de imagens, o que nos permite ver todos os
lados do mesmo fenômeno. Porque cada vez, relativamente, o mesmo
pensamento é apresentado sob um novo aspecto e nós descobrimos um
novo simbolismo, mas não teríamos chance de fazer isso se uma série
dessas visões, digamos vinte, estivesse concentrada em uma. Assim, eu
prefiro este material, justamente para fins de demonstração...
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Quando falo de uma visão superficial, isso nada tem a ver com o objeto da
visão, mas refere-se ao modo como alguém percebeu a coisa. A atitude
estética nunca permite que se penetre muito abaixo da superfície do que se
está vendo, e assim aquilo nunca se tornará uma experiência própria...
Porque não alcança a pessoa como ser humano. É por isso que tantas
pessoas usam a atitude estética, exatamente para tornar a vida suportável.
NIETZSCHE disse certa vez que o mundo nada mais é do que um problema
estético. Ele disse isso porque sem esta atitude ele teria sofrido tanto do
mundo que seu problema se tornaria insuportável. Assim ele cobriu o
abismo e aparentemente se contentou com a superfície polida das coisas.
Agora, esta paciente vê de novo e de novo a coisa grande... Ela nunca se
cansa de caracterizá-la. E mesmo assim, se eu tivesse lido para os
Senhores alguma dessas visões, seguidamente sem nenhum comentário, e
depois lhes perguntasse o que haviam ouvido, estou certo que teriam
ouvido palavras, visto imagens, mas que quase nenhum sentido teria sito
transmitido. Perceberam, por exemplo, a imagem arquetípica do
hermafrodita quando li sobre ela? “Ela tinha a cabeça de uma mulher... as
mãos de um homem, erguidas. A parte inferior era uma disforme massa de
ouro”. Isto é demais sucinto. Mostra que ela não o percebe, nem siquer
pára e admira-se. E eu lhes falei sobre o sonho do touro branco. Lá temos a
mesma coisa; a sonhadora ficou perfeitamente satisfeita com o fato de um
divino touro branco. Ela nunca parou para perguntar a si mesma: o que
significa se a imagem de Deus é um touro? Se eu sonhasse com um ser
divino mantido sobre uma plataforma e sendo adorado como o Sol – fosse
ele um leão, um caranguejo ou uma ameba – eu certamente me
perguntaria: porque vejo uma coisa dessas? Mas o artista se sente ferido se
eu lhe pergunto o que significa sua pintura... E somos todos indulgentes
com os artistas. Sabendo que eles querem nos impressionar com cores,
luzes, etc, os acompanhamos alegremente, porque não queremos ver o
fundo, é desagradável. Queremos ser baratos, deslizar na superfície. Mas
assim absolutamente nada acontecerá.

Assim, quando lemos estas visões, simplesmente deslizados, nada


aconteceu e não conseguimos manter na mente o simbolismo. Tão logo eu
acabo de ler, tudo se vai. Se leio na manhã do seminário, durante o tempo
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em que estou aqui, já desapareceu. Vejam, isto se associa ao inconsciente,


que o puxa para baixo e não queremos olhar lá; então fazemos sempre as
coisas tão baratas quanto possível. Para esta finalidade a atitude estética é
das mais úteis...

Comentário: Eu penso que estas visões devem ter algum efeito sobre a
paciente, porque mesmo sendo muitas, as coisas mudam e desenvolvem-se

Dr. Jung: Certamente. Supor que eu não penso assim seria um grande erro.
Ela está impressionada, agora mais do que no começo. Ela chegou ao
simbolismo da mandala, ela está presa àquilo que poderíamos chamar a
psicologia da mandala; isto é, ela confrontou-se com o inconsciente...
Certamente, isto tem seu efeito, o que não se pode negar. Mas isto não
acaba com a superficialidade geral das visões, o que, eu suponho, é óbvio
para todo mundo...

Comentário: Eu penso que esta repetição superficial tem certa importância.


Em tempos antigos, só poucas pessoas compreendiam o sentido dos ritos,
mas o povo não. A parte estética os torna impressivos.

Dr. Jung: Bem eu não sei como o Senhor se sente em relação a elas: de
acordo com as minhas idéias estas visões não são o que se poderia chamar
belo; o sentido atrás delas é belo, ou pode ser expresso de um modo belo,
mas as próprias visões como se propõem, eu não chamaria artísticas; as
imagens nelas são como telegramas de um “marchand” para outro, elas
comunicam mas não carregam a disposição... Uma visão, que não pudesse
ser chamada superficial seria aquela em que a experiência toda está
expressa, uma descrição que nos prende tanto que não podemos deslizar
sobre ela, tanto que não podemos deixar de ver que há sentido nela. Mas é
claro, ela já não será necessariamente estética... A arte tem a tendência
para apresentar as coisas de um modo estético, sem enfatizar o sentido,
enquanto o pensar enfatiza mais o sentido do que o valor estético. Mas
cada um contém ambos de algum modo... Grandes símbolos, como os
símbolos da Igreja e do Budismo, são sempre belos... Isto corresponde ao
fato de que o homem não deveria ser apenas artista ou apenas cientista,
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mas deveria ter ambos os lados. Assim, o pensador deveria apresentar seus
pensamentos sob uma forma agradável, e o artista deveria consentir que
aquilo que ele pinta tem certo sentido, e não ficar terrivelmente ofendido
quando se pergunta sobre isso.

O Hermafrodita como um Estágio do Desenvolvimento Psíquico

Um moderno exemplo do simbolismo hermafrodita aparece no “GOLEM” de


MEYRINK, onde ele representa um papel tipicamente alquímico. Eu
mencionaria também que a massa sem forma, de ouro, na visão de nossa
paciente, que é a base da parte inferior da figura hermafrodita, não está lá
para nada, porque o hermafrodita é a parte da arte de fazer ouro; ele
simboliza um estágio determinado na tentativa alquímica de produzir a
substância valiosa. Em termos psicológicos, a substância preciosa seria
aquilo que chamamos símbolo reconciliador, aquilo que sempre se expressa
como a pérola, a jóia, a criança, ou algo dessa espécie. O hermafrodita
representa um estágio no caminho para a substância preciosa; é o estágio
onde os pares-opostos, primeiro representados como animais, são unidos
numa forma humana, o que significa que os opostos dentro da nossa
própria natureza uniram-se em uma forma humana dentro de nós, assim
que masculino e feminino estão juntos. Este é um importante símbolo
também na tradição cristã. Não é canônico, mas o encontramos num
fragmento do Evangelho segundo os egípcios, a que se referiu CLEMENTE
de Roma. Lá está registrada uma conversa entre Cristo e uma mulher que
lhe perguntou quando ocorreriam as coisas que ela estava esperando. E ele
respondeu: “Quando houveres esmagado a vestimenta da vergonha, e
quando os dois se tornam um e o macho com a fêmea é nem macho nem
fêmea”. Como vêem é o mesmo simbolismo, indicando uma condição acima
ou além da mera condição de sexo. Quando isso foi alcançado, o Reino do
Céu, a condição perfeita, inteiramente “rotunda”, o estado de ouro, será
produzido, e esta é a mais preciosa forma de existência. Em cima, tem a
aparência de um hermafrodita, e em baixo, é ouro. E o ouro vem depois do
hermafrodita, é como se a coisa toda crescesse da terra, o hermafrodita
emergindo primeiro, como no mito de AGDISTIS, seguindo depois o ouro.
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Assim, podemos dizer que o hermafrodita é, usualmente, o símbolo que


precede a individuação; ele precede a criação do “centro valioso”, ou do
diamante precioso. É por isso que ele indica ainda um estado insatisfatório,
como é mostrado nas figuras dos livros alquimistas; o ser com duas
cabeças nele representado, é demais monstruoso e indica a não liberação
absoluta dos pares-opostos. O símbolo reconciliador deveria ser algo
inteiramente novo e destacado; nele os opostos seriam superados; de outro
modo, não é um símbolo reconciliador. O hermafrodita mostra o homem
ainda em cisão, ele apenas está no caminho para a completude, para o
“arredondamento”. Assim, no GOLEM de MEYRINK, o portão para a casa
mágica, ou para o país da vida futura, consiste numa representação de
OSIRIS, na forma de um hermafrodita, e metade do portão é macho e a
outra fêmea; tem-se que passar através desse portão, o estágio do
hermafroditismo, para alcançar a perfeita condição. O mesmo pensamento
está atrás daquelas poucas palavras na visão.

Agora, qual é o sentido psicológico deste símbolo hermafrodita?... Devemos


tentar trazer estas coisas para o nível da experiência do momento, o mais
possível.

Comentário: Deve ser um estágio bastante desagradável, uma sensação de


ser “nem peixe nem pássaro”.

Dr. Jung: O problema é que ela é ambos, peixe e pássaro; ela está sob a
influência dos dois. Que condição é esta?

Resposta: A luta dos opostos entrou nela sem que ela esteja acima dela.

Dr. Jung: Exatamente. Nós geralmente experimentamos os pares-opostos


fora de nós mesmos. Sustentamos certa posição, somos perfeitamente
certos, e o outro é todo errado, e nós lutamos contra ele. Aí, depois de
certo tempo percebemos, talvez através dos sonhos ou de certos
pensamentos sábios instilados pelo analista, que é bem possível que o
nosso oponente seja um símbolo de nós mesmos, vamos dizer, a nossa
própria sombra, e que a razão pela qual o combatemos tão particularmente
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é que somos muito como ele... E depois percebemos que nós mesmos
somos o nosso pior inimigo, que contemos exatamente aquilo que estamos
combatendo lá fora, que somos ao mesmo tempo tanto uma coisa como a
outra, então finalmente temos que reconhecer, se somos homens, que a
última coisa que combatemos é uma mulher, e que a última coisa que uma
mulher combate é um homem. O reconhecimento supremo é que um
homem é também uma mulher, e uma mulher é também um homem.
Então, o que podemos fazer? Agora já não é possível chutar o outro, só
podemos chutar a nós mesmos e isso não é interessante. Estamos
simplesmente pendurados. Por isso, o que simbolizaria a condição seguinte,
depois da condição hermafrodita?...

Resposta: A cruz.

Dr. Jung: Sim. E no simbolismo da crucificação percebemos alguma coisa


mais.

Resposta: Os dois criminosos ao lado de CRISTO.

Dr. Jung: Eles são muito nós mesmos.

Resposta: É isso que eu quero dizer.

Dr. Jung: Não, segue-se um novo estágio, e qual é?

Resposta: O inferno e a ressurreição do simbolismo cristão?

Dr. Jung: Inferno e ressurreição pertencem a ele... Porque agora o símbolo


da crucificação já não é a divisão em um par-oposto, digamos direita e
esquerda, como está indicado pelos dois ladrões; é também em cima e
embaixo. Isto significa quatro, e isto é uma cruz; e quando o símbolo dos
quatro começa, o simbolismo da mandala é descoberto. O quatro já está
simbolizado pelos quatro rios que correm de EDEN. Ou pelos quatro portões
– ou um múltiplo de quatro – da Jerusalém Celeste, uma cidade construída
em quatro planos como a cidade de BRAHMA sobre o Monte Meru. Assim,
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esta seria a situação real, e o hermafrodita é um estágio que conduz a esta


condição suspensa.

O Problema é Coletivo

Vejamos agora o que acontece com o ídolo.

 Visão: (cont.) Ao redor dele pessoas em círculo e ajoelhadas,


balançavam-se de um lado para o outro.

O ídolo não está só, mas rodeado por um círculo de adoradores. Onde está
acontecendo tudo isso?

Resposta: Parece ser no inconsciente coletivo, por causa da multidão.

Dr. Jung: Sim, mas se nós soubéssemos apenas sobre o ídolo? Ele pode ser
uma condensação de certas coisas pessoais... O ouro muitas vezes aparece
nas suas visões, assim podemos supor um certo interesse nisto – e o ouro
é, afinal de contas, a essência do dinheiro. Então o que poderia sugerir, em
relação a ela pessoalmente, a cabeça de uma mulher e as mãos de um
homem?

Resposta: Possessão do Animus, ela atua como um homem.

Dr. Jung: Esta imagem certamente está lá. Estas coisas podem ser vistas de
um ângulo pessoal, particularmente quando as imagens são tão sem forma,
embriônicas, uma mera conglomeração de complexos pessoais. Mas se nos
aprofundamos mais, vemos que esses complexos são a expressão de uma
idéia coletiva. Como podemos vê-la?

Resposta: Pelas analogias na história.

Dr. Jung: Sim. Existem analogias que mostram definitivamente que a idéia
que ela está produzindo aqui de um modo mais ou menos embriônico, não é
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absolutamente uma prerrogativa dela, é uma idéia geral. Algumas vezes


essas criações podem ser encaradas do ponto de vista pessoal e, esticando
um pouco a imaginação, encontramos uma interpretação bastante
convincente. Eu diria que quanto menos uma coisa é formada, tanto mais é
pessoal. E então poder-se-ia dizer que estes complexos começam a se
interpenetrar e formam uma aglomeração que, ao longo do tempo tornar-
se-á a imagem, ou representação de uma idéia geral. Então pode-se chegar
naturalmente à conclusão que os complexos pessoais, que consideramos
genuinamente nossos são projeções especiais de idéias coletivas
subjacentes. Por exemplo, muitas pessoas estão cônscias de que têm certos
complexos, e têm também como certo que eles são aquilo que parecem.
Digamos que elas têm um complexo de dinheiro, ou um complexo de
orgulho pessoal. Elas pensam que é tudo o que há e não conseguem ver
que há certos fatos coletivos subjacentes, fatos que são a causa real do
complexo... Pessoas que têm pouco dinheiro podem explicar seu complexo
de dinheiro pela vontade de possuí-lo... Mas poderíamos também dizer que
não é aquilo que se pode fazer com o dinheiro, é a fascinação do ouro que
cria o complexo de dinheiro. Ambas as explicações são verdadeiras...

A diferença entre um problema pessoal e um coletivo é que um problema


pessoal deriva inteiramente de nós mesmos, das nossas próprias
insuficiências pessoais. Mas um problema coletivo chega a nós devido ao
fato de que vivemos em coletividade... Agora, essas pessoas no círculo
adorando o ídolo... são partes da sua coletiva adoração inconsciente lá. E o
que dizer do modo peculiar como elas balançam de um lado para o outro?...

Comentário: Elas entram num estado de participação mística e não mais se


sentem sozinhas.

Dr. Jung: Sim... Quando as pessoas entram juntas num tal estado de
exaltação, sentem o grande poder que flui através da humanidade, elas se
tornam idênticas a Deus. Mas qual é o efeito fisiológico disto?

Resposta: Vertigem.
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Dr. Jung: E se temos uma vertigem, ficamos inconscientes, é uma espécie


de intoxicação. A mesma coisa acontece na dança. As danças dervixes, por
exemplo, produzem um tipo de ekstasis (êxtase)... E quando um tipo de
desempenho como este está ocorrendo no inconsciente coletivo,
sucumbimos ao seu feitiço, nossa mente já não é clara, ou tão determinada
e segura como antes. Por isso temos que procurar um efeito como esse na
consciência de nossa paciente. Sob tais circunstâncias a consciência torna-
se artificialmente mais primitiva do que deveria ser...

Agora, tal simbolismo coletivo deve ser considerado sempre como coletivo.
Se supusermos que aquilo que a paciente viu é algo que afeta deste modo o
inconsciente coletivo, então não é válido apenas para ela, é válido também
para nós, e para todo o nosso tempo. Assim podemos concluir, ainda sob o
pressuposto de que este simbolismo tem validade geral, que a nossa atual
consciência do mundo está agora peculiarmente turva – sob uma estranha
fascinação. E se é assim, então a nossa consciência está mais primitiva do
que deveria. E quando a consciência é primitiva, que espécie de sintomas
mentais desenvolvemos?

Resposta: Emocional.

Dr. Jung: As emoções vêm à tona como resultado daquilo que JANET
chamou de abaissement du niveau mental (rebaixamento do nível mental).
Presumimos que nossa civilização atingiu um estágio (ANAHATA, na
Kundalini-Yoga) no qual podemos começar a controlar nossas emoções, e
não simplesmente ser suas vítimas cegas... Abaixo disto haveria um estágio
na civilização, caracterizado por irrupções particularmente impetuosas de
emoção (MANIPURA, na Kundalini-Yoga). E tivemos a evidência de tal
estágio na Grande Guerra de 1914, uma explosão de emoção de proporções
mundiais que ocorreu repentinamente, um vulcão que irrompeu sob nossos
pés... Se tivéssemos algum controle, teríamos desenvolvido pensamento e
sentimento em vez de emoção... assim as pessoas são gentis umas com as
outras, elas consideram os sentimentos do outro... e isso, naturalmente,
produz uma comunidade. Mas quando elas caem fora desse estado, que
condição se segue?
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Resposta: Discórdia geral, ódio.

Dr. Jung: Podem também apaixonar-se violentamente uma pela outra, mas
isso não significa paz. Descer mais para baixo significa guerra, desordem,
dissociação, uma completa desintegração... pequenas unidades mais ou
menos opostas umas às outras... Por esta razão uma consciência turva está
sempre inclinada a formar alguma coisa como uma seita, um pequeno
grupo, dentro do qual há completa identidade. Logo que alguém tem um
pensamento que difere dos pensamentos e sentimentos dos outros, há um
transtorno, uma explosão. Grandes organizações não são possíveis porque
uma diferença de opinião entre muitas pessoas faz com que as emoções
irrompam, o que significa imediatamente uma guerra... Só podem existir
pequenas comunidades com completa participação mística dentro e
completa hostilidade e emocionalidades fora...

Nesta situação, com aquela atividade cúltica em andamento no


inconsciente, é compreensível que a consciência da nossa paciente tendesse
para um estado turvo, que estivesse extática, emocional e caótica. É por
isso que temos que tentar tornar estas coisas conscientes, trazê-los à luz do
dia, para aquietar o caos da superfície. Certamente, numa tal condição
pensamos que todas as emoções são justificadas, perfeitamente naturais,
mas de um outro ponto de vista, podemos ver que elas emergem apenas
em virtude daquela atividade cúltica interior. Assim, se tivessem que formar
uma conclusão sobre a mentalidade da nossa época, o que considerariam
errado com o mundo no seu presente estado caótico?

Resposta: Que ele está formando uma religião inconsciente.

Dr. Jung: Sim, isso está (possivelmente) se delineando; há um culto sendo


praticado nas profundezas, do qual não estamos conscientes. E pensamos
que podemos combater esse caos com desarmamento, ou qualquer coisa
deste tipo – Deus sabe com que – mas não funciona, nada pode funcionar,
porque a perturbação está em baixo...
22

Dizer alguma coisa sobre esse desconhecido culto interior é excessivamente


difícil. No caso de qualquer culto conhecido há monumentos, textos, pode-
se dizer que é isto ou aquilo. Mas cada culto que existe é parte deste culto
interno, que está oculto nas vísceras da natureza, e dizer qualquer coisa
definitiva sobre ele é quase impossível. Eu só posso dar-lhes uma idéia
sobre ele. Por exemplo, os símbolos da Kundalini-Yoga, se pudermos lê-los,
nos fornecem uma analogia bastante aproximada do que ocorre neste sub-
mundo... a coisa toda é uma espécie de seqüência de estágios. Outra
analogia pode ser encontrada nos símbolos da filosofia alquímica, onde é
feita uma tentativa para formular esses eventos de submundo. E uma
terceira tentativa, como sabem, é a Psicologia Analítica. Nós também nos
interessamos por simbolismo, e um exemplo disto são estas visões; elas
são uma demonstração das coisas que se passam embaixo. E também o são
outros casos em que se tenta trazer à tona material inconsciente, através
de pinturas, escrita ou mesmo através da dança. Na medida em que algo é
realmente produzido, ele no mínimo se refere àquele processo subjacente
que, em si mesmo, não é visto nem compreendido. Tudo que conseguimos
são certas reflexões, símbolos, imagens, que mostram uma certa
regularidade e são comparáveis aos símbolos das religiões manifestas ou
aos símbolos na arte e na poesia...

Qualquer coisa que se possa dizer sobre esse processo é sempre apenas
uma parte dele, ele tem tantos aspectos, é uma coisa tão desconcertante.
Eu estou tentando aproximar-me dele através de material empírico, e desse
modo pode-se obter uma compreensão das religiões ou dos sistemas
filosóficos já existentes, que são análogos. Com o correr do tempo, talvez,
sejamos capazes de postular certos fatos fundamentais pela comparação de
uma quantidade de material muito maior do que temos hoje. Mas este
material não será acumulado nem em séculos, porque se trata do segredo
criativo da mente e eu duvido que nós possamos projetá-lo completamente.
Teremos certas convicções sobre ele que poderão durar dois anos – ou dois
mil – mas eventualmente serão sempre superados, porque o espírito
criativo não pode ser capturado em nenhuma fórmula...
23

O Aspecto Negativo da Mãe

 Visão: (cont.) Eu agarrei um dos adoradores pelo pescoço... “Porque


adoras esta coisa?” Seus olhos vidrados olharam-me de soslaio. Ele
respondeu: “Eu te mostrarei”. Passamos por uma pequena porta na
base do ídolo. Dentro estava a estátua de uma mulher primitiva,
sentada com as pernas cruzadas. A mulher tinha muitos seios e
parecia repugnantemente arcaica. Eu disse: “Isso é horrível”.

Passando por aquela porta ela descobre a figura de uma deidade


absolutamente arcaica. Porque esta não é uma mulher primitiva, mesmo
uma mulher primitiva não teria tantos seios; tem que ser uma deidade,
porque há alguma coisa monstruosa nela...

Agora, como entendem a presença nesta mulher moderna, de uma tal


Deusa tão repugnante e inaceitável, obviamente feita de terra?

Resposta: É a natureza física.

Dr. Jung: Mas eu não chamaria a natureza física com nomes tão feios.

Comentário: Eu pensaria que isto é uma representação do próprio


inconsciente coletivo como o aspecto negativo da mãe.

Dr. Jung: Isto é verdade, é uma imagem materna. Mas o que significa em
conexão com o ídolo? Esta visão sugere que a idéia do ídolo não é mais que
a cobertura para esta Deusa primitiva.

Resposta: O Senhor já falou do antigo ídolo como sendo as duas coisas, o


inconsciente pessoal e o coletivo, e este é um degrau mais abaixo. Não há
absolutamente nada pessoal nesta mãe, enquanto no ídolo havia alguma
coisa pessoal.

Dr. Jung: Exatamente. O ídolo tem conexões precisas com o inconsciente


pessoal, assim poder-se-ia dizer que a verdadeira figura inconsciente, a
24

figura da deidade, é percebida, lá apenas através do véu do inconsciente


pessoal. Isto é algo que sempre se vê na experiência prática. Se há uma
ampla camada de inconsciente pessoal, invariavelmente encontraremos
uma visão perturbada dos conteúdos do inconsciente coletivo, porque as
figuras arcaicas do inconsciente coletivo têm que ser vistas através daquele
véu ou camada de complexos pessoais, é por isso que percebemos primeiro
certa perturbação nos complexos pessoais, quando esperamos um ataque
do inconsciente coletivo. Isto é verdade em qualquer caso de psicose ou
neurose. Na superfície há o que parece ser uma desordem inteiramente
pessoal, na sexualidade do paciente, ou nos relacionamentos ou nos seus
pensamentos. Uma idéia perfeitamente absurda irrompe numa mente bem
organizada, e a análise reduz isso a um determinado complexo pessoal,
Digamos, o paciente convence-se de que não é filho de seus pais. Ele sabe
que esta idéia é absurda, mas está simplesmente tomado por ela. O
analista dirá que no fundo há um complexo materno ou paterno, e esta sua
conclusão é representada pelo ídolo. Mas o ídolo pode também tornar-se
um conglomerado inteiro de tais complexos; descobre-se então que de
forma alguma se trata de um conglomerado meramente sem sentido, pode-
se perceber que sua forma particular aponta para uma idéia além dela
mesma, para alguma coisa ainda mais profunda. O ídolo é uma massa de
complexos pessoais, mais abaixo deles, dentro deles, está a Deusa arcaica,
o verdadeiro arquétipo...

Essa mãe arquetípica é como ÁRTEMIS de ÉFESO, sempre representada


com uma multiplicidade de seios, denotando a abundância do seu leite, a
fertilidade da natureza e essas coisas. Naturalmente, se aplicamos esta
idéia ao inconsciente, referimo-nos a ele sob o aspecto materno (porque ele
pode ter também um aspecto paterno). Aqui, o inconsciente é como uma
mãe com muitos seios, nutrindo inúmeros filhos com um suprimento
inexaurível de alimento. Todas estas visões fluem do seio do inconsciente –
elas são leite.

...E essa Deusa arquetípica, que estava oculta sobre o outro simbolismo, é
agora mais essencial que o ídolo; em outras palavras, ela era a causa de
que o ídolo tivesse uma cabeça de mulher e mãos de homem, e fosse uma
25

massa de ouro embaixo. É difícil ver como tais complexos pessoais


poderiam resultar da presença, ou da constelação, dessa Deusa arcaica. Ela
é chamada ‘repugnantemente arcaica’, o que é nem um pouco convidativo;
nós usaríamos a palavra ‘repugnante’ para alguma coisa ruim e quase suja.
Esta asquerosidade deve ser a razão para o complexo do ouro e para a
cisão entre a mente de mulher e a ação de homens.

Um dos primeiros sintomas quando alguns conteúdos estão sendo


constelados no inconsciente é uma peculiar cisão. Um homem pode ter
estado engajado sinceramente em alguma atividade, (FIGURA DA
PÁGINA 235: DIANA DE ÉFESO), muito concentrado nela, não duvidando
que era a coisa correta a ser feita; então subitamente, tudo se faz em
pedaços, ele tem dúvidas e não pode entender o que o está paralisando. A
razão é que um arquétipo foi animado... Pessoas não unidas consigo
mesmas animaram alguma coisa no inconsciente que causa uma cisão. A
consciência é, então, como uma camada de gelo sobre um lago; quando
chega a primavera aumenta o volume de água ou ela começa a mover-se, e
naturalmente o gelo será quebrado. (Pode se ver o paralelo disto
especialmente na esquizofrenia, onde toda a superfície pode ser feita em
fragmentos meramente pela pressão de coisas que vêm de dentro, pela
força dos poderes arquetípicos). Obviamente, é um poder arquetípico o que
temos aqui, esta figura feia de uma Deusa arcaica está forçando seu
caminho para a consciência, e embora não saibamos se conseguirá isto, em
todo o caso está causando complexos, e estes por sua vez estão causando
um conflito peculiar na superfície, digamos, um conflito entre o masculino e
o feminino...

Os Senhores podem ver figuras de Deusas mães arcaicas, como esta, nos
museus... Encontramo-las em tribos primitivas, onde são sempre
marcadamente obscenas ou grotescas... Tais figuras têm algo
extremamente remoto e estranho em torno delas, sugerindo que são quase
inacessíveis à experiência pessoal... exceto sob certas condições.
Entretanto, nem cultos nem templos com tais ídolos neles existiriam se os
homens não tivessem uma intuição da realidade dos fatos psíquicos (de
uma natureza paradoxal e incompreensível) que eles expressam... Quando
26

tentamos reduzir estas figuras a fatores psicológicos atuais, temos que


voltar a experiências que possuem as mesmas qualidades de
distanciamento, de incompreensibilidade, e talvez mesmo de obscenidade.
Agora, conhecem alguns fatos psicológicos como esses? Estão conscientes
de terem tido tais experiências? Nunca entenderão esta visão se não
encontrarem, na sua própria psicologia, alguma coisa paralela ou conectada
com ela...

Em termos biológicos, poder-se-ia dizer que esta imagem contém os


últimos remanescentes de uma psicologia meramente animal: a ÁRTEMIS
DE ÉFESO, por exemplo, está coberta com figuras de animais e abelhas que
eram seus atributos, na Grécia, os seguidores de ÁRTEMIS eram animais –
eram chamados arktoi, ursos – e os seguidores de CIRCE foram
transformados em porcos. Esta figura é um remanescente de tal culto, o
que mostra que ela encobre um instinto materno animal, e o instinto
materno animal está próximo da destrutividade. Pode-se observar isto nos
porcos. Se não protegemos os filhotes logo após o nascimento, eles são
comidos pela mãe; se os defendemos por um tempo seu instinto destrutivo,
ela os aceitará, mas não imediatamente. Encontra-se a mesma coisa em
casos criminais, entre seres humanos; imediatamente após o parto, a mãe
pode matar seu filho, mas isso se torna impossível um pouquinho mais
tarde.

Como sabem, as mães são extremamente doces, mas são também ferozes
e cruéis como animais. Estou certo de que as jovens panteras devem ter
terríveis imagens maternas, porque as mães, no início, são
impressionantemente ternas – elas são mães maravilhosas – mas, de
repente, quando as ‘crianças’ crescem, elas rosnam para elas, afastam-nas
da comida com mordidas e brigam com elas da maneira mais vil; neste
momento, a prole adquire uma visão inteiramente diferente da mãe. Este é
o choque que gera a imagem terrível. Com seres humanos isto funciona do
mesmo modo...
27

O Fato de que Temos uma Sombra

Quando a mãe terrível é projetada sobre a mãe real e completamente


identificada com ela, como no caso de um homem com um complexo
materno negativo, é uma injustiça para com a mãe, porque ela é apenas
uma criatura comum, não uma bruxa arquetípica. Mesmo assim, há uma
verdade nisto: esta projeção materna absurda, esquisita e demoníaca,
cobre o aspecto da psicologia de uma mulher que se torna operante na
peculiar destrutividade da mãe. E como tal, está mais na mãe do que no
homem que a projeta, porque no caso do homem certamente não está tão
perto. Numa mulher está muito mais perto, e ainda assim, extremamente
remota, por que a psicologia consciente (particularmente das mães) não
permite vê-las. Esta imagem é secreta. Assim como um homem não se
permite ver suas insuficiências, porque ele ficaria paralisado por tamanha
introvisão, assim também seria quase perigoso para uma mãe ver estas
coisas muito claramente; tal visão inibiria seu esforço maternal. Ou, se a
mulher não é mãe, ela ainda precisa crer na construtividade da sua atitude,
sua atitude em relação a homens, vamos dizer, se ela entende demais
aquela atitude destrutiva, há o perigo de que fique paralisada. Assim a
necessária atitude e a psicologia de uma mulher não permitem uma
realização muito clara desta imagem de fundo. Comumente, é uma das
partes mais difíceis da análise tornar consciente essa figura, porque ficar
consciente de sua realidade é traumatizante.

Pergunta: Ela não pertence mais à psicologia oriental? Eles estão bastante
acostumados a ela em KALI.

Dr. Jung: Mas dentro deles mesmos são tão desacostumados dela como
nós. Eles a projetam em KALI, assim não têm nada a ver com ela; eles
pagam muito a ela e isto arranja tudo. Esta é a grande vantagem de tais
cultos. Nós não temos essa vantagem. Se descobrirmos uma figura
arquetípica como esta em nós mesmos, ela não está em nenhum outro
lugar. Estamos sempre identificados com tais coisas; elas são muito parte
de nós e temos que fazer acrobacias para nos destacarmos delas...
28

E porque deveria emergir agora este aspecto absolutamente negativo da


mãe divina? Por que nada de bonito?

Resposta: Porque conosco as mulheres são idealizadas, particularmente


pela Igreja Católica Romana.

Dr. Jung: Então a Senhora explicaria isto como uma espécie de madona
negativa, uma coisa inteiramente pagã e quase diabólica do ponto de vista
cristão?

Resposta: Sim; nós temos estado pensando bem demais das mulheres.

Dr. Jung: Sim, bem demais. E eu estou contente por ouvi-la dizer isto,
sendo uma mulher, já que esta é também a minha idéia. Assim o
inconsciente, aqui, produziu algo para que pensássemos... De certo modo,
esta figura é compensadora: na superfície da consciência, a opinião geral
das mulheres parece ser a de que são superiores, mas ao contrário disto o
inconsciente diz: “Veja isto. O que acha? Isto é o que está causando...
aquela dissociação entre a cabeça e as mãos. Esta é a razão do complexo
de ouro, que também, naturalmente, significa poder e influencia mundanos
e tudo isso”. Debaixo de todos esses complexos conflitantes está esta figura
asquerosa. E, em essência, parece ser o que uma mulher bastante moderna
necessita acrescentar à sua própria substância para ficar em equilíbrio; na
superfície sua condição está inteiramente fora de equilíbrio, ela necessita
este equilíbrio e esta figura a supriria. Agora, quando uma mulher vê tal
figura, o que pensam que seria o efeito sobre sua consciência? Em geral,
qual é o efeito quando temos uma muito boa idéia de nós mesmos e depois
descobrimos alguma coisa não tão boa? Eu penso no efeito real, não no
efeito que pensamos que deva ocorrer.

Resposta: Ficamos mais cuidadosos com o que fazemos.

Dr. Jung: Isso é o que todos nós queremos, mas não é realmente o que
fazemos em seguida.
29

Resposta: Queremos fugir.

Dr. Jung: Naturalmente. Fugimos e dizemos: “Nunca vi uma coisa assim,


ouse vi, foi em alguém mais; na minha vizinhado ao lado, ela é assim. Ela é
que me faz ver isso, aquela mulher exerce um efeito ruim sobre mim, ela
sempre rebaixa minha libido”. Vejam, somos absolutamente contra a
assimilação de uma figura tão repugnante, é demais incompatível. Mesmo
assim, aquela figura materna é a verdade desta mulher. E a verdade
também, da civilização inteira.

Agora vamos ver o que faz ela.

 Visão: (cont.) Eu disse ao meu guia: “Isto é horrível. Arrasta-a para


fora, para a luz do dia”. Meu guia respondeu: “Não, ela está coberta
pelo grande ídolo que viste. Ela não pode ser mostrada”.

O que fazem os senhores com essa pequena conversa?

Comentário: Ela parece querer aceitá-la.

Dr. Jung: Sim. Ela diz: arrasta-a para fora e que todo mundo a veja. Mas o
guia diz “Não, ela está coberta pelo grande ídolo... e não pode ser
mostrada”. O que significaria isto?

Resposta: Animus.

Dr. Jung: Aquele homem com olho vidrado é um Animus, certamente, um


ser perfeitamente se alma de um círculo de adoradores, todos Animus. O
Animus adora conflitos. Ele detesta a idéia de que o ídolo seja quebrado ou
declarado não essencial, porque ele floresce somente quando há muitos
conflitos, onde alguém pode ter muitas opiniões sem nunca se assentar nas
fundamentais. Naturalmente ele favorece o ídolo. O ídolo é um dispositivo
feito pelo homem. Os Senhores sabem, a psicologia do conflito é toda feita
pelo homem, nós adoramos os nossos conflitos porque eles nos protegem
numa grande extensão, da realização da verdade. Quando dizemos “tenho
30

terríveis conflitos”, então estamos ocupados e tudo com que temos que nos
ocupar é com este ou aquele conflito: e com tais maravilhosos conflitos
somos muito interessantes para o nosso analista; mas não olhemos além
disso, não olhemos atrás disso. Podem ver, a reação dela aqui é muito
decente, ela quer levar aquilo para fora. Naturalmente, isto é um pouco
exagerado, não podemos aparecer com tais manchas negras; alguma coisa
tem que ser feita com elas, naturalmente, não apenas arrasta-las para fora.
Mas já que ela está tomando uma atitude extrema, o Animus coloca-se do
outro lado: “Não, ela está coberta pelo ídolo, conserve o ídolo, é menos
perigoso, menos repugnante e pelo menos parece-se com alguma coisa.
Esta mãe-terra não deve ser mostrada.” Chega então o momento crítico em
que a paciente deve decidir se persiste ou não na sua resolução original de
que estas coisas devem ser trazidas à consciência.

 Visão: (cont.) Eu disse: “Ela é repugnante. Faze o que quiseres. Eu


sigo adiante”.

Este é o mesmo truque de novo: seria melhor deixá-la para trás, não
despertá-la. Assim, ela continua:

 Visão: (cont.) Saí por outra porta e continuei a descida pelo caminho
estreito e íngreme. Cheguei a um grande precipício. Olhei sobre ele e
vi, no vale, homens em coches atirando-se louca e freneticamente
sobre outro precipício, homens e cavalos caindo no vazio.

Há uma batalha de Animus em fúria lá embaixo, o que significa que além


daquela mãe arcaica ocorre uma agitação turbulenta de um horda de
Animus, e todos eles caem no vazio. Esta é a despropositada luta do
Animus que resulta naturalmente quando alguém passa por cima do fato
fundamental que se revela no problema da sombra – isto é, o fato de que
se tem uma sombra. Se não queremos ver isso, passamos adiante, e depois
disso caímos entre os “Animi” e continuamos a ter opiniões, em vez de
aceitar nossa sombra.
31

“As Vísceras dos Ancestrais”

[A mãe terra reaparece na visão seguinte como uma rocha com a forma de
uma velha bruxa que ameaça fazer parar a paciente e extinguir a chama em
seu peito. Esta chama é importante e é correto mencioná-la separadamente
porque a posse de uma chama como essa não pode ser tida como certa.
Sua presença “indica que o indivíduo pode destacar-se a si mesmo do
inconsciente e da identificação com as coisas”. Como o PURUSHA na
Kundalini-Yoga, que não se torna visível como uma chama enquanto
ANÃHATA não é alcançada, esta chama pode ser considerada a primeira
manifestação do Self independente. Assim, aqui, uma vez mais, “a mãe
terra, a terra mesma, está ameaçando a tomar posse da sua civilizada
consciência cultural” – para dominar sua personalidade consciente com uma
inconsciência ctônica.

Entretanto, a paciente desafia a bruxa e entra na rocha. Lá, ela se encontra


numa caverna com um altar sobre o qual está estendido um índio morto.
Ela o reanima. Dr. Jung o interpreta como simbolizando os modos primitivos
que têm que ser sacrificados quando é atingido certo nível de consciência
onde pode ser formulada uma visão mais completa da vida. Mas aqui a
paciente o ressuscita, e isto é certo, porque se “colocamos alguma coisa no
lugar da fé primitiva que não permite o viver e não outorga a forma
adequada às energias do inconsciente, então teremos simplesmente
cometido um assassinato, o assassinato de algo que deveria viver”. Este é o
caso com a paciente, cuja vida, supõe-se, tem sido limitada por um modelo
cristão excessivamente estrito. Convocando, de uma forma um tanto
inflada, a ajuda do índio para a força da chama no seu peito, ela diz, “Dá-
me o teu sangue e a tua força, e crê em mim”. “Evidentemente”, comenta o
Dr. JUNG, ela está esperando fazer “uma espécie de repasto místico” desta
figura primitiva, para “incorporá-lo”, e este será um repasto “anticristão”;
porque aqui “não está sendo assimilada a coisa à frente, maior, mais
diferenciada, mais elevada, mas a inferior, menos diferenciada e mais
antiga”.
32

O índio, agora, executa todas as sugestões dela para escapar da caverna.


Primeiro ele põe abaixo dois pilares que sustentam o teto, os quais a
paciente compara aos intestinos da mãe-terra. Deles saem lanças, água
fervente e corpos “sem forma” de homens e mulheres que poderiam ser
considerados como representantes de vidas ancestrais indiferenciadas.
Aqui, comenta Dr. JUNG, está uma clara repetição do tema do herói que, de
dentro, mata o monstro, “uma situação muito arquetípica”. Isto não os
liberta e a paciente ordena que o índio destrua o altar no qual ele estivera
estendido, o lugar onde o primitivo fora sacrificado – e este é, realmente, o
ponto vulnerável. De fato, é como se o índio primitivo houvesse sito trazido
de novo à vida com o propósito expresso “de destruir a condição histórica
altamente diferenciada, a qual nós conhecemos como a era cristã”.

A destruição deste altar é muito importante, porque denota nada menos do


que “a transição de um estágio de consciência para outro”. Nossa “recente
mentalidade cristã” está coligada a um ponto de vista a respeito do mundo
que é ao mesmo tempo racional demais e demais diferenciada para permitir
a imagem primitiva do mundo representada pelo índio. Assim quando a
visão primitiva chega, agora, traz consigo uma concepção inteiramente
diferente e muito mais mágica das conexões existentes entre as coisas. Por
exemplo, ela lança uma dúvida profunda sobre a “verdade absoluta” do
conceito de causalidade, que por tanto tampo sustentávamos. Tanto
alvoroço causado na Física pela teoria da relatividade de EINSTEIN como o
caráter sincronísticos dos eventos inconscientes recentemente revelados
pela psicologia profunda, são evidências dessa mudança. A princípio, o
resultado parece ser apenas caos, mas depois “é como se tivéssemos
descoberto um novo mundo”. Embaixo do altar aparece um pequeno
pinheiro deitado em sangue. Esta árvore sugere ao mesmo tempo o broto
verde que representa SHIVA no chacra mais inferior da Kundalini-Yoga e o
sempre vivo simbolismo da nossa árvore de Natal com seu extenso passado
pagão. Quando o índio o ergue o sangue se transforma em água clara e a
árvore cresce e cresce até que seus ramos alcançam o teto da caverna e o
levantam, e isto possibilita à paciente, com o índio, emergir “em uma linda
ribanceira gramada e iluminada pela luz do sol”. O paralelismo desta visão
com o mito da criação dos índios HOPI é gritante e também com a tradição
33

islâmica da escapada de MAOMÉ para o céu. O rompimento do teto da


caverna em ambas as histórias é equivalente ao extermínio, de dentro, do
monstro e significa como agora o emergir da paciente à plena luz do sol, a
transição para um novo estado de consciência. Antes de deixá-la, o índio
chama sua atenção para habitações da gente dela há longo tempo
abandonadas que se espalham lá embaixo, num extenso vale ao longo de
um rio. Assim, parece que ela agora chegou a um ponto de vista de onde
pode contemplar, num nível um pouco mais alto, a corrente da vida, isto é,
aquilo em que, antes, ela estava contida.

Um ponto fraco nesta visão, entretanto, é o papel que o Animus


desempenha o tempo todo; uma vez mais, “a paciente não está superando
o monstro ela mesma, mas deixa que ele seja superado para ela”. Isto tem
um valor porque constitui uma espécie de rito de entrada, ou preparação
mágica para atuar, mas não é suficiente. “Na medida em que é um
conseguimento do Animus, é uma instituição ou antecipação, uma mera
possibilidade, e de forma alguma podemos ter certeza de que ela própria
será capaz de firmar-se nele ou de usá-lo”. Ainda mais, o amplo vale, cheio
de “casas alegres” e de “gado gordo”, é idílico demais, demais arcaico para
ser real. Ao mesmo tempo, é fatalmente uma reminiscência daquele “país
maravilhoso chamado Purília, em que a primavera sempre chega às colinas,
onde o gado passeia eternamente ao longo do horizonte e onde se ouve
continuamente um badalar de sinos... O Animus mostrou a ela o que fazer,
mas ela considera como se tivesse sido feito... o resultado é que ele a
coloca gentilmente lá embaixo de novo, no vale dos ancestrais”.] NOTA DO
EDITOR.

A Imagem Mexicana e o Corpo

A visão seguinte tem um título muito significante: “A Imagem Mexicana”. O


que concluem de um título como este?

Resposta: a imagem mexicana é muito feia e bastante estranha,


exatamente o contrário de uma paisagem encantadora, é o outro lado da
imagem.
34

Dr. Jung: Sim, A especial característica da imagem mexicana é a


extraordinária crueldade. Segundo relatos, os antigos mexicanos eram
extremamente amigáveis e encantadores; eles podiam permitir-se sê-lo
porque seus cultos eram são sanguinários que lá eles podiam descarregar
suas tensões; toda a sua crueldade aparecia nos seus ritos sangrentos.
Sendo pessoas gentis, seus Deuses respiravam uma crueldade inumana. Da
mesma forma, nós, que de forma alguma somos amáveis, temos Deuses
suaves e gentis.

FIGURA DA PÁGINA 239

 Visão: Sentei-me e observei todo o vale. De repente, vi no céu uma


grande imagem mexicana.

Por que ela está vendo esta imagem mexicana no céu, e não embaixo, no
vale?

Resposta: Está bem distante, então pode ser algo espiritual.

Dr. Jung: É isto. Em sonhos e visões, como esta, as coisas têm os seus
valores antigos. Para nós, o ar é apenas atmosfera que se estende por
muitas milhas e depois termina conde começa o espaço cósmico. Antes,
porém, o ar não era o que é para nós, ele era também um fator psíquico;
ele era o vivente, movimentado e invisível mundo dos espíritos, que são
seres do alento. Assim, quando alguém vê coisas no céu é porque aquela é
a moradia dos espíritos e o próprio ar é uma espécie de espírito...

Enquanto os conteúdos de uma imagem como esta permanecem


despercebidos, eles estão na terra, que é o equivalente do corpo. Por isso
certas fantasias mitológicas são a base de sintomas aparentemente
fisiológicos, como afecções neuróticas dos músculos, do coração ou da
respiração; todas elas são sintomas parciais de espantosas idéias
mitológicas. Por exemplo, uma imagem mexicana no corpo poderia causar
espasmos de certos músculos, imitando a dureza ou a crueldade de uma
imagem como esta. Uma figura mitológica cega poderia causar afecções da
35

vista, porque qualquer coisa não percebida psicologicamente é realizada


numa espécie de mimetismo. Nós simplesmente nos tornamos
“representantes” de tais imagens, elas atuam através de toda a nossa
psicologia, quer através do nosso funcionar fisiológico, quer pelo nosso
caráter moral; podemos encontrar estas vívidas imagens inconscientes em
qualquer lugar. Mas no momento em que nos tornamos conscientes delas, a
neurose desaparece, porque então elas estão sendo assimiladas à
consciência e já não podem atuar no escuro. Assim, a imagem mexicana
deixa o corpo. Vê-la no céu significa que ela já não é um fator fisiológico,
mas é percebido agora como um conteúdo espiritual ou mental, como uma
imagem psicológica.

 Visão: (cont.) O rio transformou-se em sangue, as casas


desapareceram, e grandes montanhas pretas se ergueram onde
antes havia o vale, alteando-se à minha volta.

Pergunta: É o espírito da imagem mexicana que lança uma sombra?

Dr. Jung: Sim, o espírito mexicano lança uma sombra sinistra, e a paisagem
assume um caráter ominoso (numinoso?); seu encanto esvaece
subitamente com o aparecimento de um espírito ou Deus mexicano, e as
habitações humanas também desaparecem. Agora, esta é uma mudança de
disposição que muitas vezes ocorre. No início, sentimos alívio quando
compreendemos que uma fantasia estivera influenciando o corpo. Em
virtude das nossas idéias pré-concebidas de que coisas psíquicas são não
existentes, ou irreais, ou que podem ser tratadas por opiniões arbitrárias,
não percebemos que elas são, em si mesmas, entidades. Isto nos
possibilita, de certo modo, acreditar que uma coisa se resolve quando nos
tornamos conscientes dela. Esta idéia pré-concebida atravessa de ponta a
ponto a psicologia freudiana; se uma fantasia de incesto torna-se
consciente, eles pensam que ela está liquidada. Mas logo depois a mesma
imagem aparece no céu e então nos confrontamos com ela como um
problema consciente que deve ser trabalhado; simplesmente tornar-se
consciente do problema do incesto não o resolve. Supor que é assim, é
como esperar curar-se de uma doença física quando o médico a diagnostica.
36

Ou é como se alguém descobrisse que uma epidemia de febre tifóide na


cidade estivesse sendo causada por canos rachados que assim
contaminassem a água e todos dissessem então: “Que bom que sabemos
agora de onde vem essa epidemia”, e nada fizessem com a canalização.
Acabamos de ver aquela terrível mãe-terra, e sabemos que a paciente
deveria libertar sua consciência daquela escuridão. Isto é possível, já vi
consciências assim libertadas. Mas o que será feito então da mãe negra
original? O que acontecerá com aquela horrível figura, já que ela não cessa
de existir? Apenas, em vez de ser um obstáculo inconsciente, torna-se um
problema consciente e visível. É por isso que ela aparece o céu e estraga a
bela paisagem – toda a bela disposição da paciente.

 Visão: (cont.) Vi à minha frente um caminho estreito descendo entre


rochas pretas. Comecei a descida.

Quando somos dominados por este estado, não adianta tentar reprimi-lo...
A longo prazo isto não funcionará... Temos que entrar nele. E o importante
é que isto não deve ser feito de modo involuntário, mas com decisão, e
conscientes de que estamos entrando no vale negro, que esta é a descida.

 Visão: (cont.) Eu vi que os degraus pelos quais eu tinha que descer


eram feitos pelas costas de velhos acorrentados à rocha.

Estes velhos são seus ancestrais, mas não se mencionam mulheres, assim
são uma série inteira de Animi. São as crenças e convicções ancestrais que
agora servem como degraus de pedra para descer ao vale, de onde uma
vez eles subiram. Uma vez eles fizeram parte de um pilar (um daqueles
destruídos pelo índio) e agora ela desce pelo pilar, degrau por degrau, nas
costas dos ancestrais. Eles são como cariátides na arquitetura, uma figura
humana sobre a qual se assenta uma arquitrave, suportando uma à outra
ou suportando algum tipo de peso. Ela está descendo a escada inteira das
idéias e opiniões tradicionais; assim, sua descida aqui é abreviada, pode ser
comparada à mais detalhada descida que ela fez anteriormente, nas visões
em que ela retornou através do nosso tempo e através da Idade Média até
37

a Antiguidade, até a primitividade, e dali diretamente ao animal. E depois


ela subiu de novo.

 Visão: (cont.) Eu falei com um velho, perguntando-lhe porque estava


acorrentado. Ele respondeu: “O teu mundo nos recusou. Por isso
estamos acorrentados. Mas pela nossa sabedoria, tu descerás”. Eu
desci por aqueles estranhos degraus.

Bastante enigmático, não é?... Cada Animus é realmente uma tentativa


diferente de consciência. Não importa quão pequena seja a tentativa, estas
velhas opiniões, velhas convicções, são degraus de pedra no
desenvolvimento da consciência. (E estão todos contidos, por assim dizer,
na estrutura do nosso corpo, do nosso sistema nervoso; nossas células
cerebrais contêm os traços de desenvolvimentos anteriores). Todos esses
degraus foram uma vez convicções ou filosofias, um modo de entender a
natureza, um modo de consciência, e se tentamos descer ao inconsciente,
naturalmente temos que descer pelo caminho através do qual originalmente
subimos... Os velhos dizem: “Teu mundo nos recusou”, o que significa que
o nosso atual mundo da consciência não está cônscio de todos esses pré-
estágios e recusa reconhecer sua validade.

O homem comete este erro sempre e de novo: primeiro chegamos a certa


introvisão que é válida por um determinado tempo e depois a
abandonamos; criamos um novo ponto de vista e o antigo já não significa
absolutamente nada, ou é esquecido ou considerado um erro estúpido e
incrível; não vemos que ele ainda carrega alguma justificativa. Encontramos
isso na ciência, frequentemente. Quando eu era estudante pensávamos que
velhos tolos acreditavam que a luz eram corpúsculos, mas nós sabíamos
que era ondulação. E as mais recentes opiniões voltaram à teoria
corpuscular. Este é um exemplo de como se esquece o homem velho, os
degraus por meio dos quais atingimos a superfície. Mas quando estamos
inseguros e não podemos enfrentar nossas dificuldades, deveríamos
lembrar que a humanidade fez mil tentativas para responder certos
problemas, e que, talvez, esquecida, entre elas esteja a resposta para o
nosso. Vejam, os cientistas não voltaram à teoria corpuscular porque as
38

coisas estavam satisfatoriamente explicadas pela ondulação; mas foi porque


esta última não era satisfatória que eles tiveram que voltar à idéia anterior.

Com a psicologia é a mesma coisa... É certo que a mente está bastante


convencida de que todo o passado é um contra-senso, superstição
primitiva, antiquadas idéias religiosas. Mas as pessoas não sabem o que
estão dizendo quando chamam antiquadas algumas dessas idéias; o dogma
da igreja, por exemplo, contém uma teoria bem completa do inconsciente, e
isto é uma coisa que nós não compreendemos. Mas a compreenderemos em
tempo, quando percebermos que não possuímos um único ponto de vista
que nos permita uma explanação satisfatória da nossa vida; porque
necessitamos tal explanação; e porque nunca houve alguma época antes de
nós que não a necessitasse também. Então, seremos forçados a olhar para
trás, constatando que não temos o direito de recusar a mente do passado,
como se ela fosse mera insensatez e apenas idiotas tivessem vivido antes
de nós. Por isso dizem os velhos: “Teu mundo nos recusou. Por isso
estamos acorrentados”. Eles estão reprimidos, aprisionados e acorrentados
na nossa consciência. “Mas pela nossa sabedoria tu descerás”. Isto significa
que podemos voltar às fontes do inconsciente, mas somente pelos degraus
da sabedoria que eles construíram; se eles não os tivessem construído,
estaríamos eternamente separados do inconsciente.

O Ancião Cego

 Visão: (cont.) No fundo jazia um homem negro com a face para o


céu. Ele era cego. Na sua testa havia uma cruz de sangue. Sua
vestimenta era amarela, bordada com dragões chineses. Aos seus
pés havia um leão talhado em pedra. Eu parei. Ele disse: “Em mim
juntam-se as eras”.

O que é esta figura? Sua cegueira e o fato de dizer: “Em mim juntam-se as
eras”, poderia significar que ele é imensamente velho.

Sugestão: Ele poderia representar o próprio inconsciente dela.


39

Dr. Jung: Bem, ele representaria a soma total do inconsciente coletivo,


porque nele todas as eras se juntaram, a soma de todas as vidas passadas.
Assim, como poderíamos formulá-lo?

Sugestão: Como o psicopompo, o POIMEN?

Dr. Jung: Este seria o aspecto positivo, mas aqui se trata do aspecto
negativo. Porque supomos que um líder tenha visão e este homem é cego,
ele não poderia ser um líder.

Pergunta: Ele é o grande ancestral?

Dr. Jung: Ele é o homem de dois milhões de anos dentro de nós... E ele é
um fato. Podemos vê-lo em cada detalhe da nossa estrutura anatômica...
Estudem suas mãos, seu nariz, suas orelhas; em cada um poderão
encontrar o resultado de uma longa diferenciação, e traços de dois milhões
de anos, se consideramos essa a idade do homem, está também na nossa
psique. Os resíduos de toda aquela existência estão ainda aqui na nossa
realidade, contidos na escuridão do nosso inconsciente coletivo, e o nosso
inconsciente mesmo constitui apenas uma fina camada no topo das
profundezas oceânicas da história. Lá embaixo, naquelas profundezas,
descobrirão deste homem, que é praticamente imortal, contendo e somando
em si a vida das eras. E porque deveria ele ser cego:

Resposta: Ele tem visão interna.

Dr. Jung: Ele pode ter visão interna, mas externamente ele é cego. O que
significaria isso?

Resposta: Ele é não-adaptado.

Dr. Jung: Sim, absolutamente não-adaptado. Ele não pode ver o nosso
mundo. Isto significa, simplesmente, que nós somos os olhos deste homem
que vive para sempre, porque nossa consciência É essencialmente um
olho... Um órgão que percebe o presente numa fração de segundo. Um
40

campo de visão significa um campo de consciência... Mas a consciência em


nós é momentânea e dura, vamos dizer, entre sessenta e oitenta anos, o
que certamente, não é tempo algum. Ainda mais, nós vivemos de momento
para momento, sempre esquecemos o passado e não vemos o futuro,
enquanto este homem de milhões de anos é tanto o passado como aquilo
que ainda virá. Esta é a razão da sua cegueira, enquanto nós temos olhos.
Talvez ele tenha uma consciência interna, e pode ser que nós estejamos
dentro dele; isto é possível. Os filósofos disseram que existe uma
consciência interna, mas não podemos provar isso. O inconsciente coletivo
pode ser consciente de suas imagens, mas nós não sabemos.

...A negritude deste homem parece vir do fato de que ele é um habitante
das profundezas, do oceano escuro ou da escuridão da terra. Ele pode ser
preto pela terra ou pela escuridão em que vive, porque a cegueira é
também escuridão...

Sobre sua testa há uma cruz de sangue. Quem seria marcado assim?

Resposta: Um criminoso.

Dr. Jung: Então, de forma alguma, este é um sinal de vida cristã ou de


benevolência espiritual; parece mais a marca de um sofrimento intenso,
uma cruz de sangue. Ela foi talhada ou queimada na sua pele, e é uma
ferida que sangra. Ele está realmente sofrendo.

Comentário: Ele é um homem marcado.

Dr. Jung: Sim. Ele é marcado para o sacrifício, ele passou pelo sacrifício ou
está sendo sacrificado... A cruz simplesmente expressa o fato de que este
“homem antigo” tem que ser sacrificado em prol da consciência... Este é o
seu eterno sofrimento... Vejam, o inconsciente coletivo deveria ter uma
forma pela qual viver na consciência, sem ser marcado como um criminoso,
como moralmente inaceitável. Mas no nosso tempo nós marcamos esta
figura como um criminoso, e assim ele é excluído. Nós somos singularmente
inconscientes dessas coisas...
41

Em adição à sua cegueira e à cruz de sangue com a qual ele é marcado,


esse ser antigo, que é a soma do inconsciente coletivo, tem dois outros
atributos: ele usa a preciosa vestimenta amarela de um sábio chinês, o que
representa sabedoria, e aos seus pés há um leão talhado em pedra, a
incorporação do poder. Ele é como uma daquelas figuras de cavaleiros ou
reis mortos com o animal real aos seus pés. A idéia é que ele está sobre o
animal, que ele é o poder sobre o poder, o governante.

 Visão: (cont.) Eu perguntei a ele: “Por que estás cego?” Ele disse:
“Grandes forças, que fizeram de mim aquilo que sou, também me
tornaram cego, assim eu estou acorrentado aqui como um degrau”.

Podem explicar esta resposta?

Comentário: Ele é cego porque é o inconsciente coletivo, que não promove


a consciência.

Dr. Jung: ...Se o inconsciente pudesse ver, não haveria inconsciente... Esta
parece ser uma afirmação de fato, mas não explica bem porque as grandes
forças que fizeram dele o que ele é, ao mesmo tempo o cegaram... Ele não
teria dito que ficou cego se não assumisse que uma vez podia ver.

Comentário: Os animais vêem e agem através dos seus instintos, todo o


tempo, mas o homem perdeu este poder.

Dr. Jung: O Senhor está no caminho certo. No começo o inconsciente vê e


depois perde sua vista. Sob circunstâncias primitivas o inconsciente ainda
pode ver, mesmo no homem; ele funciona como um olho, ou como
consciência. Assim, podemos encontrar em tribos primitivas, que não foram
tocadas pela civilização, que os sonhos têm uma espécie de função social.
Encontramos traços disso na antiguidade; nos últimos anos da República
Romana, por exemplo, ainda acontecia. A filha de um senador romano
dirigiu-se ao Senado e contou a eles que MINERVA lhe aparecera em sonho,
queixando-se de que seu templo estava desmoronando e que o Senado
42

deveria votar algum dinheiro para repará-lo. O Senado realmente tomou a


decisão de reparar o templo de MINERVA...

Outro bom exemplo, um dos melhores que já encontrei, está num livro do
explorador RASMUSSEN, sobre as tribos esquimós que estão mais ao norte
da Groenlândia. Ele fala sobre um pajé que conduziu sua tribo no inverno,
através do Oceano Ártico congelado, às praias do continente norte-
americano. Ele descortinou, numa visão, uma terra rica em focas e outros
animais, e quis conduzir sua tribo até lá, para que tivessem a oportunidade
de uma vida melhor. Seguindo sua visão, ele a conduziu através do gelo
flutuante. Na metade do caminho parte da tribo disse que tudo aquilo era
uma insensatez e voltou, mas todos morreram. Aqueles que continuaram,
chegaram ao continente americano e encontraram as focas. Este é um
exemplo da atuação da visão do inconsciente...

Sob condições primitivas as pessoas recorrem constantemente à previsão


do inconsciente; para eles é natural, sempre, perguntar se os astros são
favoráveis, se é conveniente viajar hoje ou não, e assim por diante. Mas a
maioria de nós já há muito tempo não necessita fazer uso diariamente da
visão inconsciente... Para nós o inconsciente é cego, porque temos toda a
luz que precisamos na consciência. Naturalmente somos sempre ávidos de
mais e mais, mas só podemos ter a luz que necessitamos, nem um
pouquinho a mais. Mesmo assim, quando nos encontramos num aperto,
descobrimos que o inconsciente é apenas relativamente cego, que a
consciência expandida não o substituiu inteiramente: sob certas condições,
quando a consciência se torna pouco clara, o inconsciente ainda tem visão...

Quanto às “grandes forças” que edificaram a formidável estrutura do


inconsciente coletivo, digamos que são a original energia da vida, o que
quer que ela seja. Estas são as forças que os gnósticos chamavam ARCHAI
(princípios) e que SÃO PAULO chamou ARCHAI e THRONOI, poderes
principados. No Oriente elas são as KLESHAS e, finalmente, no correr do
tempo elas produziram o que nós chamamos consciência. Essas forças
fizeram o velho, e pela criação da consciência também o tornaram cego. No
começo ele podia ver, mas por uma luz peculiar, já que aquela espécie de
43

“ver” não é uma ação consciente, mas um evento; ela não é sentida como
uma atividade própria, ela apenas acontece a alguém. Assim, tendo se
tornado cego, o velho está agora acorrentado, porque ele está coberto pela
consciência.

 Visão: (cont.) Eu disse: “Quem és?” Ele respondeu: “Eu sou o grande
filósofo do Oriente. Eu sou um cruzado. Eu sou CRISTO. Eu sou
AHASUERUS” (Judeu errante).

Esta é a mais paradoxal e inesperada resposta, que necessita algum


comentário, estou certo. A filosofia oriental baseia-se no conhecimento do
velho, de LAO-TSÉ. (LAO significa velho, e TSE é um título de honra como
Sir). Porque no Oriente a filosofia não é de modo algum assunto intelectual;
não é uma tentativa de produzir um sistema lógico composto de muitos
conceitos. A filosofia oriental é uma espécie de YOGA. Ela é viva e é uma
arte, a arte de fazer algo de si mesmo. E o que querem eles fazer a si
mesmos?

Resposta: Eles tentam desenvolver o corpo-diamante.

Dr. Jung: Sim. Este é o símbolo, mas o que é ele?

Sugestão: Eles querem ser Deuses.

Dr. Jung: E o que seriam os Deuses?

Resposta: Nada.

Dr. Jung: Exatamente. O Oriente nos fala do grande vazio, do nada


positivo, do ser não-ser. Isso é o que eles buscam e tentam fazer de si
mesmos. Lembrem-se da famosa passagem de LAO-TSÉ:

Os homens do mundo são claros, tão claros,


Só eu estou como que turvado,
44

Significando que ele não tem conceitos claros porque ele se encontra muito
mais à frente no caminho da compreensão. Vejam, o pensar, de acordo com
o significado oriental da palavra, nunca é claro. O que nós consideramos ser
clareza intelectual é bem inferior àquela categoria da mente. Os conceitos
orientais nem poderiam ser expressos em qualquer língua européia. TAO é
vazio, é silêncio e vácuo total; é imortalidade, porque é ser para sempre.
Não tendo atributo de tempo, é atemporal, e não tendo qualquer qualidade,
é livre dos pares-opostos, é o vazio absoluto, e isto é o que eles tentam ser.
Esta sabedoria baseia-se em uma espécie de instinto, baseia-se na natureza
do homem primordial... Podem ver isto? Que instinto sugeriria tal idéia?
Que instinto conduziria um homem suavemente até ele entender que aquilo
que ele é depois é o vazio?

Pergunta: Poderia ser o desejo da morte?

Dr. Jung: Bem, o Senhor poderia dizer morte, mas como chega a morte,
como a alcançamos? E como morremos decentemente?

Resposta: Vivendo.

Dr. Jung: Sim. É a vida mesma que nos conduz para dentro das coisas e
para fora delas. Quando ficamos mais velhos, naturalmente nos atemos
menos a certas coisas, ficamos cansados delas, elas já não nos interessam,
e tentamos nos afastar delas, livrar-nos delas... Assim, muitas coisas se
tornam ilusões ocas... Já não são novidade para nós. Porque fazer o
esforço? Mas sem ilusões ainda podemos fazer o que é absolutamente
necessário. Assim, vivendo, cumprindo nossa tarefa, crescemos acima dela.
Então chega o dia em que a superamos, então estamos nos aproximando do
vazio, e este é o que parece ser o mais desejável e o mais significativo.
Assim, acabamos onde começáramos. Esta é a filosofia do Oriente.

Agora chegamos ao segundo atributo do velho; ele diz que é Cruzado... As


Cruzadas foram a primeira tentativa do Ocidente de alcançar o Oriente. A
idéia começou por volta do século onze. Mas porque se iniciou nesta época?
Alguma coisa importante aconteceu naquele tempo.
45

Comentário: Esperava-se a chegada do fim do mundo.

Dr. Jung: Exatamente. O ano l.000 marca definitivamente o fim do


cristianismo primitivo, que esperava a imediata parousia (a ‘ousia’ – a força
– vai imbuir o mundo) do Senhor, seu imediato reaparecimento; isto
significaria o fim do mundo, e então começaria o Juízo Final. O cristianismo
inicial estava inteiramente baseado nesta idéia, no ponto de vista
transcendental de que esse mundo não importa. TERTULIANO podia até
aconselhar seus catecúmenos a buscar a arena. Cidades inteiras se
despovoaram, milhares de pessoas foram para o deserto, onde se tornaram
anacoretas e homens santos. Muitos deram todos os seus bens para os
monastérios. Houve seitas, como a dos marcionistas, que até tentaram
abolir a propagação da espécie. Era uma ampla forma de suicídio
pretendendo atingir o mundo vindouro, o vir a ser... Então, no ano 1.000,
nada pareceu acontecer. Mas alguma coisa havia acontecido, o dia do
julgamento aconteceu, porque este foi um ponto crítico. O que assinala o
ano 1.000?

Resposta: Metade da nossa era astrológica.

Dr. Jung: Sim, a metade da constelação de Peixes; foi quando acabou o


tempo do primeiro peixe, do vertical (Figura da página 244). A Igreja
havia alcançado sua maior importância; no ano 900 ela era tudo e o
Império Romano era nada; mas imediatamente depois o poder secular do
Império começou a crescer e a Igreja, perdendo seu ponto de vista
transcendente, começou a lidar com realidades. Então o extraordinário
poder que ela havia erguido desmoronou, achatou-se, e o movimento
tornou-se horizontal. Isto está maravilhosamente retratado no simbolismo
que os homens projetaram nos céus desde tempos imemoriais... E entre
1790 e 1805, quando o ponto vernal já avançara bem no corpo do segundo
peixe, duas outras coisas curiosas aconteceram: a Revolução Francesa
destronou o Cristianismo (depois que DIDEROT e VOLTAIRE a
ridicularizaram durante cinquenta a sessenta anos) e um francês, ANQUETIL
DU PERRON, viajou para o Oriente, tornou-se monge budista e voltou
trazendo a primeira tradução dos UPANISHAD (talvez uma versão árabe que
46

ele traduziu para o latim). E esta foi a versão que SCHOPENHAUER


conheceu. Então, foi neste tempo em que o Cristianismo – com exceção do
ano 1.000 – estava sofrendo os golpes mais severos, que um novo cruzado
forçou seu caminho para o Oriente e trouxe de volta consigo o Oriente e,
desde então, ele tem continuado a se infiltrar no Ocidente.

Agora, este velho da visão, o Grande Filósofo do Oriente, é também um


cruzado que está mediando entre Ocidente e Oriente. Os cruzados estão
sempre buscando alguma coisa, e na catástrofe espiritual do ano 1.000,
alguma coisa se perdeu, todo o transcendentalismo da Igreja Cristã
simplesmente perdeu-se; depois disso as pessoas começaram a vagar, a
buscar... Então, o velho – quando já não é expresso por uma consciência
adequada, uma consciência que se adapte à sua verdadeira natureza –
começa a procurar... Hoje em dia podemos ver as pessoas que buscam de
novo, mas não sabem o que...

Agora o velho diz: “Eu sou CRISTO”. Como podemos entender isso?

Resposta: Ele foi sacrificado para que a consciência pudesse nascer.

Dr. Jung: Sim. CRISTO sacrifica-se para que o homem se salve, para que
seja redimido. Redimido do que? Nós o chamamos pecado, mas é
meramente a participação mística, a inconsciente unidade entrelaçada com
a matéria, com a carne. Esta é a condição da qual deveríamos ser redimidos
por um crescimento na consciência: por esta razão isto está simbolizado
com a chegada da luz na escuridão. O velho é sacrificado de novo e de novo
para que a luz aumente, já que a luz naturalmente aumenta pelo sacrifício
da inconsciência. Assim ele é também CRISTO, o ser sacrificado para que os
homens possam ter luz.

Agora, o que significa quando o velho diz: “Eu sou AHASUERUS”?

Resposta: Eterno vaguear e buscar.


47

Dr. Jung: Sim. AHASUERUS é o Judeu Errante. A lenda sobre ele não é
judaica, mas medieval cristã e remonta mais ou menos ao século XIV. De
acordo com ela, AHASUERUS não oferece a CRISTO nenhuma ajuda, mas
foi um dos que o recusaram. Em outras palavras, ele recusou ser
sacrificado, ele não acreditou em CRISTO ou no seu sacrifício. Agora, como
podem explicar que o velho diz que é também AHASUERUS, o que significa
que ele não acredita em CRISTO?

Resposta: É característica do inconsciente que os opostos existam lá


simultaneamente.

Dr. Jung: É característica do inconsciente que nenhum símbolo possa


abrangê-lo ou expressá-lo em qualquer extensão de tempo. Nem mesmo
CRISTO pode simbolizar a especial imensidão do inconsciente. Mesmo o
modo como ele é formulado, como um Deus que morre e ressuscita em
outra forma mostra que isto é como é. Tal Deus não desaparecerá
absolutamente, mas mudará. Nenhum símbolo jamais expressa
completamente o inconsciente coletivo, que deve sempre vaguear,
procurando novas formas e assim criando o mundo, uma sempre-duradoura
vida de uma mudança sempre-duradoura.

Outra conexão interessante é que se diz que o Judeu Errante usa sempre
algo como uma bandagem sobre a testa, para cobrir a marca da cruz que
ele carrega lá. O velho, lembram-se, tem uma cruz, a marca do sacrifício
sobre a testa, e o Judeu Errante tem o mesmo sinal... Ele é o sacrificado, e
mesmo assim ele é também aquele que nunca é sacrificado.

Poderíamos Usar Palavras Maiores

É desconcertante registrar o tremendo acúmulo de qualidades associadas à


figura supina deste velho, o mundo inteiro parece estar contido nele.
Traduzindo para a nossa linguagem muito humilde e científica. As pessoas
pensam que é particularmente impertinente da minha parte formular essas
coisas desse modo, mas para mim parece tratar-se meramente de modéstia
chamar coisas tão grandes por nomes tão pequenos; isto mostra quão
48

pouco somos capazes de expressá-las adequadamente, e porque devemos,


portanto, usar uma linguagem modesta. Mas poderíamos usar palavras
maiores para o inconsciente coletivo. Qual é o ser que possui estas
qualidades?

Comentário: Deus.

Dr. Jung: Sim. Para o inconsciente coletivo poderíamos usar a palavra


Deus. No dogma está dito que Deus tornou-se homem, Deus tornou-se
CRISTO; os dois são homogêneos, o mesmo ser com o Pai. Mas eu diria que
usar esta palavra seria impertinência, porque então se está assumindo que
as caracterizações humanas que usamos aqui são válidas para o Deus
mesmo. Mas qualquer coisa que se diga sobre Ele, é apenas a palavra de
um ser humano, ela mudará, ela nunca é exaustiva; temos que dizer
alguma coisa sobre Ele, mas isto pode ter pouca validade. É por isso que
prefiro não usar grandes palavras, estou bem satisfeito com a humilde
linguagem científica porque ela tem a grande vantagem de trazer toda
aquela experiência para a nossa vizinhança imediata.

Todos os Senhores sabem o que é o inconsciente coletivo, todos tiveram


certos sonhos que carregam a marca do inconsciente coletivo: em vez de
sonhar com tio Fulano ou tia Sicrana, sonham com um leão, e então o
analista lhes dirá que este é um motivo mitológico, e entenderão que se
trata do inconsciente coletivo. Assim, encontram-se com o inconsciente
coletivo, ali mesmo. Este Deus já não está a milhas de distância de nós,
num espaço abstrato de uma esfera extra mundana. Esta divindade não é
um conceito nos manuais de teologia ou na Bíblia; é uma coisa imediata,
acontece nos nossos sonhos durante a noite, nos causa dores de estômago,
diarréia, prisão de ventre, um desfile inteiro de neuroses... Se tentarmos
formulá-lo, pensar o que é, afinal de contas, o inconsciente coletivo,
acabamos concluindo que ele é aquilo com que se ocupavam os profetas;
ele soa exatamente como algumas coisas no Velho Testamento. Lá Deus,
envia pragas sobre as pessoas, queima seus ossos durante a noite,
machuca os rins, causa toda a sorte de distúrbios. Então, chegamos
naturalmente ao dilema: isto é realmente Deus? Deus é uma neurose?...
49

Agora, admito que este é um dilema chocante, mas quando pensamos


consistente e logicamente, chegamos à conclusão de que Deus é um
problema dos mais chocantes. E esta é a verdade, Deus chocou as pessoas
até fazê-las perder o juízo. Pensem no que ele fez com o pobre velho
HOSEA, que era um homem respeitável e teve que se casar com uma
prostituta. Provavelmente ele sofria de um estranho tio de complexo
materno.

Assim, nos aproximamos aqui de grandes problemas, e nossa paciente tem


um pressentimento de que há alguma coisa bastante estranha em relação
com este velho, que está acorrentado como os outros velhos cujas costas
serviram a ela na sua descida. Ela diz:

 Visão: (cont.) “Eu não posso continuar a pisar em ti”. Ele respondeu:
“Vai adiante, sua tola. Não haverá caminho algum à frente para ti
enquanto não houveres pisado sobre mim e passado além”. Então eu
subi sobre ele com o meu pé direito.

Comentário: Isto indica que ela tem que fazer uso consciente do ponto de
vista do inconsciente.

Dr. Jung: Sim. Qualquer analista diria que é preciso pisar sobre o próprio
inconsciente, ele é um degrau, um ponto de partida. Nós necessitamos o
inconsciente coletivo para curar uma neurose, digamos, ou fazemos uso
dele para nos tornarmos um pouco mais conscientes e assim podermos nos
controlar melhor. Mas por que ela hesita?

Resposta: Ela pisou nas costas dos outros, mas agora ela tem que pisar
sobre o estômago dele. Eu penso que qualquer um hesitaria.

Dr. Jung: Sim. Anteriormente ela não sabia o que fazia, ela apenas desceu
sobre aquela série de costas, sobre todas aquelas opiniões históricas. Agora
ela tem que encarar a coisa toda, e então tem dúvidas; ela tem que
enfrentar aquilo que o inconsciente realmente é... Se o qualificamos como
um conceito científico, então ele é pequeno, profano, quase sem
50

importância, e podemos ser capazes de fazer qualquer coisa que o mudará;


mas se o chamarmos Deus, então ele é imenso, muito maior que o homem,
e naturalmente hesitaríamos em fazer uso dele. Agora, esses são dois
aspectos de uma só coisa, que é ao mesmo tempo a coisa maior e a coisa
mais pequena, a mais absoluta e a mais relativa. Podem entender isso?
Conhecem que cubra esse fato particular?

Resposta: BRAHMAN.

Dr. Jung: Sim. “Mais pequeno que o pequeno, ainda assim maior que o
grande”. Esta é a formula para BRAHMAN. Assim, é a súbita realização
nesta visão que a faz hesitar. Ela percebe que pode realmente pisar sobre
esta coisa, a qual é tão grande, e todo-abrangente e poderosa, que ela
poderia usá-la como se fosse pequena e sem importância. Vejam, isso
contradiz completamente nossas idéias e convicções religiosas. Como
cristãos ortodoxos, nunca poderíamos admitir que Deus fosse a coisa mais
pequena, o meio sem importância para um fim. O Oriente pode fazer isso
sem ferir-se. Mas nossa idéia é unilateral: aquilo que chamamos Deus é
todo-abrangente, absolutamente universal, imensamente maior que o
homem; não podemos usá-lo ao contrário, estamos sempre debaixo do seu
poder. Aqui, entretanto, o inconsciente fez emergir esta noção paradoxal do
maior e do menor.

Agora, significa em geral alguma coisa psicologicamente, quando algo que é


descrito por um paradoxo; significa que aquilo que é designado é
completamente irreconhecível. A coisa que chamamos inconsciente coletivo
é absolutamente irreconhecível, portanto podemos também chamá-la Deus;
porque tem todas as qualidades da coisa “mais grande” e todas as
qualidades da “mais pequena”, é absolutamente impossível compreender o
que ela é... Por isso, fazemos um pronunciamento paradoxal.

Indo Além da História

Agora, pergunto aos Senhores, o que significa ir além dele? E por que tem
ela medo de pisar sobre ele?
51

Resposta: Pode ser que ela tema não ter o direito de fazer isso. Pisar sobre
alguém significa que se conquistou esse alguém, e tenho a sensação que
ela não está segura de tê-lo conquistado realmente.

Dr. Jung: Esta é, com certeza, uma dúvida legítima: se se conquistou o


homem primordial ou não. É necessária uma grande coragem para pisar
sobre ele e ir além. O que significaria isto praticamente?

Resposta: Ir além de Deus.

Dr. Jung: Além de um Deus particular, eu diria; não podemos chamar


“Deus”, simplesmente, esta figura deitada de costas. Ele diz de si mesmo,
lembrem-se, que é o filósofo do Oriente, um Cruzado, CRISTO e
AHASUERUS. Só os atributos de uma dessas quatro figuras justificariam que
o chamássemos “Deus” – conquanto que creiam no dogma da Trindade...
Ele é, antes, todo o passado da humanidade, o homem primordial da
Cabala, por exemplo, e de semelhantes sistemas de idéias. O velho é uma
das personificações do inconsciente, uma figura divina personificando a
soma total da experiência e dos conseguimentos humanos, ao longo da
história. Vejam, o passado é um poder vivo pela mera força da inércia, e a
inércia é o traço mais poderoso do homem, e não o seu espírito de
empreendimento. De tempos em tempos alguém tem um ímpeto de
empreendimento e faz alguma coisa, mas em geral é a enorme força da
inércia que leva o mundo adiante. Assim, o homem primordial personifica a
inércia, antes de tudo, mas dentro da inércia emerge, ocasionalmente, uma
espécie de anelo que gera disposição para empreendimentos. Isto causa
distúrbios maiores ou menores, dos quais resulta certo movimento, que
gostaríamos de chamar desenvolvimento ou evolução. Mas parece muito
questionável se o mundo tira disso algum proveito; tudo que podemos dizer
é que ele muda... A inércia é tão imensa, e o espírito dentro dela tão
irracional e vacilante, que é excessivamente difícil formar um juízo
definitivo.

Assim, embora não possamos chamar exatamente “Deus” este homem


primordial, podemos chamá-lo ‘um Deus’ no sentido antigo da palavra.
52

ADAM CADMON é outro nome para ele. Ele é uma figura divina no mesmo
sentido que o PURUSHA, PRAJAPATI e o demiurgo gnóstico. Todas essas são
formas diferentes do homem primordial, que é uma personificação
essencialmente humana do inconsciente coletivo. Então, os quatro modos
pelos quais o velho caracteriza-se a si mesmo representam qualidades
especificamente humanas. O grande filósofo é o poder de reflexão, ou a
grandeza do pensamento humano; o cruzado é o homem na sua busca;
CRISTO é aquele que morre por suas convicções, e volta para tentar de
novo; AHASUERUS é o eterno peregrino, sempre procurando atrás alguma
coisa que perdeu, com a esperança de descobri-la no futuro. São todos
aspectos da vida e da experiência humana. Este é o homem em nós que
nunca encontrou expressão ou realização suficiente que o fizesse perfeito e
lhe concedesse o descanso. Este é o esforço sem fim da humanidade. Ele é
tão grande e poderoso, e divino no sentido antigo da palavra, que é natural
ter horror de pisar sobre ele, pois parece tão venerável, tão grande. Ir além
dele significaria consumar os antigos anseios da humanidade, liquidar
questões que o homem tem colocado desde tempos imemoriais... Assim, o
homem primordial apresenta à paciente uma tarefa que é demais para ela
e, naturalmente, ela hesita... Mesmo assim, na visão, agora, ela decide
pisar sobre ele.

Dragão, Cruz e Leão

 Visão: (cont.) Então eu pisei sobre ele... Um grande calor atravessou


meu corpo, e quando ergui meu pé eu vi, estampado na sola, um
dragão chinês enrolado sobre uma cruz, e acima da cruz a cabeça de
um leão.

Todo esse simbolismo estava na visão anterior. O dragão chinês,


naturalmente, refere-se à filosofia oriental e a cruz a CRISTO. Lá, o leão
estava sob os pés do velho... A energia animal emanando de baixo para
cima... Mas aqui, no momento em que ela pisa sobre o homem primordial,
o calor do leão ascende através dos seus pés, permeia seu corpo e torna-se
o sol acima da cabeça, coroando a cruz. E por isto ela é marcada.
53

Logo depois de irmos além da história ou da tradição, somos imediatamente


permeados por esta fogosa energia animal... Entramos numa condição
primordial onde nada foi ainda configurado, ou domesticado. Então, com um
choque, experimentamos a total ilimitada cegueira do impulso para viver,
que é idêntico ao sol... Esta marca que a paciente carrega é bem a marca é
bem a marca de um criminoso, de um inovador, que cometeu o crime de
ser a-histórico... A cabeça do leão em cima e o dragão (ou serpente)
embaixo representam uma condição muito especial; ou seja, a condição do
início, na qual as formas das coisas estão ainda no inconsciente, ainda não
feitas ou conscientemente realizadas. Aqui temos outra vez o DEUS
LEONTOCEPHALUS, um Deus com uma mente animal, não humana,
correspondente não às nossas expectativas espirituais, mas aos nossos
piores medos. Porque se alguém for permeado por esta onda de calor
libertado, sentirá uma enorme cegueira, uma falta de direção, e uma
ausência caótica de forma e definição; a condição de sua mente
apresentaria um quadro comparável apenas à condição mental do mundo
atual. Porque nós perdemos a direção, estamos incertos em relação a tudo,
e apenas um impulso cego existe. Assim, poder-se-ia dizer que este símbolo
se aplica não apenas a um caso particular, mas também ao nosso tempo. E,
observem, este era também o símbolo dos três séculos em Roma, quando
começou a grande desorientação; deuses leontocéfalos caracterizaram todo
aquele período.

Pergunta: Quando somos lançados em tal condição animal, como volta à


vida o espiritual?

Dr. Jung: Ah! Esta é a grande questão. Neste exemplo particular não
podemos dizer... Mas a humanidade já muitas vezes caiu num estado
desorientado, e o espírito – de algum lugar – reapareceu. Na igreja inicial,
por exemplo, por exemplo, havia um espírito divino que estava em
condições de acabar com toda a confusão daqueles dias. Mas que espírito é
este, em si, não sabemos e não podemos saber, porque é metafísico;
sabemos apenas o que ele significa psicologicamente. Na condição
semelhante ao leão há grande necessidade de algum tido de atitude...
Ficamos absolutamente perdidos na confusão, se não temos uma atitude,
54

certa maneira de encarar as coisas caóticas que acontecem. Para essa


atitude a palavra espírito pode ser usada: começamos a agir e escolhemos
certos critérios dentro de certo espírito, digamos, este espírito é uma
atitude que pode ser formulada como um princípio, ou uma fórmula
filosófica. Essas formulações sempre foram feitas, elas simbolizam o espírito
ou a atitude... O símbolo, na igreja cristã inicial, por exemplo, era o Credo;
através dele as condições caóticas da época puderam ser dominadas, a
desorientação animalesca do mundo, a grande debandada. Se alguém
acredita naquele símbolo, isto indica que está aplicando aquele tipo de
espírito.

Tal símbolo não é apenas um fato intelectual, é também um fato emocional.


Por isso a espiritualidade tem a ver com a respiração. Em todo estado de
emoção a respiração é perturbada; quando nos agitamos ficamos altamente
ventilados, a respiração nos atravessa, ficamos cheios com o vento de
Pentecostes... e ofegamos com grande excitação. Assim, o aspecto
emocional do espírito pode ser descrito como o dinamismo emocional
devido a uma particular atitude mental. Nossa crença ou convicção de
forma alguma é fria, ela é ardente, ela se move e nos move; somos
tomados por ela e embriagados com ela, como os discípulos à descida do
Espírito Santo. Isto é espírito, entendido na sua fenomenologia
psicológica...

Agora, a chama do leão está sempre buscando uma forma para entrar.
Provavelmente esta é a explicação do simbolismo do culto mitráico, que era
também um cultivo da natureza, o leão lá, é geralmente representado em
conexão com uma ânfora. Da ânfora sai uma chama, e de um dos lados
está representado um leão, enquanto do outro lado sobe uma serpente;
ambos estão tentando entrar na ânfora. O que significa isto no culto é
completamente obscuro; mas uma ânfora é um receptáculo de forma
definida, e uma condição caótica é como um líquido sem forma; o líquido
contido na ânfora poderia, portanto, simbolizar o desejo do homem de uma
orientação definida, poderia significar a atitude específica com a qual o
homem reage contra o caos. Agora, o espírito não vem do caos, o leão
sozinho não o faz; antes, deve ser considerado como um princípio que se
55

coloca contra o dinamismo do homem; o dinamismo do homem está


sempre estimulando uma reação espiritual. E sem a condição do leão nunca
teríamos experiência do espírito; já que é impossível experimentá-lo
quando as coisas estão rolando pela inércia. O espírito só pode ser definido
como uma reação imediata ao fogo da condição animal; sem esta tremenda
conflagração, as pessoas não podem saber o que ela é. Porque o fenômeno
do espírito só é gerado nos momentos de quase completa destruição.

A Cova de Ônix

 Visão: (cont.) O estreito caminho abriu-se num circulo. Eu vi uma


cova redonda de ônix que descia para dentro da terra como um cone.

Comentário: Parece algum tipo de mandala.

Dr. Jung: Certamente é uma mandala... Nós estamos atados às coisas pelo
desejo, e quando elas começam a tornarem-se caóticas, somos arrastados
para o caos... Contra o desejo que nos fragmenta, a melhor proteção para
cada um de nós é traçar um círculo mágico em volta de si mesmo, de modo
que nada possa escapar e nada possa entrar. Manter-se dentro de um
círculo é a primeira aproximação a uma atitude... Esta situação é
semelhante àquela do leão buscando a ânfora. A cova de ônix seria a
ânfora, e ônix é uma substância preciosa de que se fazem vasos; então,
obviamente, ela está procurando um receptáculo particularmente precioso,
no qual alguma coisa possa ser contida, ou do qual alguma coisa possa
emergir. Ela mesma, até, poderia entrar nele – nós não sabemos.

 Visão: (cont.) No fundo eu vi uma velha mulher índia segurando nos


braços a imagem mexicana que parecia estar viva.

Lembram-se da imagem mexicana no céu?... Ela representou um papel


antes, como um desconhecido Deus índio americano... Assim, o que ela vê
no fundo da cova é o símbolo de uma qualidade especial de espírito... E a
anciã com a imagem mexicana tem o valor de uma figura ancestral. Ela
seria a essência do caráter norte-americano, uma coisa mais adaptada à
56

natureza especial do solo americano. E o ídolo que ela sustenta parece estar
vivo. Assim, esta velha índia, esse ser extremamente telúrico, segura o
germe de uma vida espiritual, peculiar àquele solo... Há uma parte de uma
antiga religião ainda viva... O quadro inteiro é um símbolo para a paciente,
de uma certa atitude que agora é necessária.

 Visão: (cont.) Repetidas vezes a velha segurou o ídolo no fogo e o


retirou ileso

Como explica isso?

Pergunta: Tem alguma coisa a ver com bruxaria?

Dr. Jung: Sim, tem... Lembrem-se que tivemos este simbolismo antes.

Pergunta: É para fortalecê-lo? Para purificá-lo? Para lhe dar energia?

Dr. Jung: Bem, é para introduzir nele a natureza ou a qualidade mágica do


fogo. Por isso a imagem está sendo lentamente imbuída com fogo; é para
torná-la forte. Um homem primitivo fortalece seu fetiche aspergindo-o com
sangue ou tenta supri-lo de energia dançando em volta dele. Um fetiche
também pode ser carregado como um acumulador; ele fica fraco se é usado
demais, e então seus possuidores ouvem falar de um fetiche
particularmente forte em algum lugar – necessariamente um lugar bem
distante, já que as coisas distantes são sempre melhores – e viajam até lá e
deixam seu fetiche fraco sob a custódia do forte durante semanas,
colocando-os lado a lado, e quando voltam para pegá-lo, ele está forte de
novo.

O culto de CHURINGA, na Austrália, é a mesma coisa. O CHURINGA é um


disco achatado, de madeira ou de pedra, uma pedra-alma, como é
chamado. Ele fica escondido numa árvore oca, ou na fresta de uma rocha,
talvez, e lá permanece durante muito tempo, e então, se o dono do
CHURINGA não se sente bem, se sua libido o abandonou, ou se ele tem
uma atitude má, ele vai até aquele lugar na selva onde escondeu seu
57

CHURINGA, coloca-o sobre o joelho e o esfrega. Com esta fricção sua saúde
abalada e sua libido debilitada são transferidas para a pedra, e o poder do
“bom remédio” que foi infundida nela, lá fora, na natureza, se transfere
para o seu corpo; assim, ele troca libido com CHURINGA e depois vai para
casa e tudo está em ordem... Assim, a velha índia está tornando forte o
fetiche, incutindo-lhe a natureza do fogo...

Entretanto, o ponto especial, aqui, é que a imagem ou ídolo, que


comumente supõe-se ser uma coisa sem vida, está viva. E isto é um grande
progresso, porque o princípio mental, o LOGOS, ou mesmo o espírito,
aparece “morto”, geralmente, em comparação com a vida. A vida da mulher
biológica comum, por exemplo, é pouco perturbada pelo LOGOS ou pelo
ESPÍRITO; o que é importante para ela certamente não é o espírito, mas
alguma coisa inteiramente telúrica. Assim, quando esta mulher descobre
que o espírito está vivo, é um progresso e essa percepção tem que ser
suportada. Por isso, a velha índia está fortalecendo a imagem e imbuindo-a
com fogo vivente para lhe dar radiação, a qualidade do sol, energia. Isto é,
evidentemente, de extrema importância. A condição toda, agora, é caótica e
para fazer frente a isto ela necessita concentração, forma, o que é quase
idêntico a LOGOS...

Comentário: Ela não o está colocando o fogo para fazê-lo durar para
sempre?

Dr. Jung: Sim. Uma coisa que agüenta o teste do fogo é mais forte do que o
fogo, que é a pior forma de destruição. Este é o processo pelo qual
HERCULES tornou-se imortal; ele ergueu sua própria pira fúnebre, e tornou-
se imortal nas suas chamas. O mesmo motivo ocorre em SHE, de R.
HAGGARD, em que AYESHA consegue uma vida extremamente longa no
pilar de fogo... A idéia de que o ídolo poderia chegar a uma vida imortal... é
também sugerida aqui; esta é uma forma de produzir o elixir da
imortalidade, a TINCTURA MAGNA, que transforma tudo em ouro. Assim
sendo, sendo trabalhado numa cova de ônix – semelhante a uma mandala –
que lembra um forno alquímico, este ídolo, por estar ganhando a qualidade
58

do fogo, pode estar conseguindo a imortalidade, uma condição de radiância


imperecível.

Fogo de Emoções

Mas como poderia ser demonstrada tal coisa? Como poderiam determinar
que um processo psicológico desse tipo estivesse em andamento num
paciente, pelos conteúdos conscientes ou pelos símbolos oníricos? É
extremamente difícil... Apenas sob certas condições, eu faria tal
diagnóstico. Fogo, como sabem, simboliza emoção – chamas rutilantes são
emoções – assim, eu diria que qualquer coisa feita com fogo tem uma
conotação emocional. E, naturalmente, as emoções têm toda a sorte de
sentidos e causas. Nessa conexão, entretanto, uma coisa é particularmente
indicativa: uma paciente numa condição dessas, precipita-se nas emoções,
necessitando-as repetidamente, porque embora ela possa temê-las, mesmo
assim as necessita. Vejam, muitas pessoas preferem evitas emoções, mas
outras as estão buscando, mesmo que não pretendam isso de modo
consciente. Elas agarram-se à mínima provocação para ter uma emoção, e
algumas vezes até admitem isso. Então, sabemos que elas precisam do
fogo, do mesmo modo como um forno é necessário, para um determinado
propósito... Se a paciente diz: “Eu sei que parece tolice, mas eu sinto que
essas emoções servem um propósito, sei que elas têm que ser”, então
sabemos que este processo está andando, que uma tentativa está sendo
feita para produzir alguma coisa no fogo.

Agora, o fogo produz duas coisas: destruição – tudo que pode queimar será
queimado e então, se alguma coisa sobrou que pode suportar o fogo, será
precipitado, e em todo aquele refugo uma gota de ouro derretida vai
aparecer... As emoções são necessárias para a precipitação final da
substância preciosa; e não somente emoções passageiras, mas paixão. As
pessoas temem a paixão; então a paixão as domina. Elas pensam que a
paixão é um erro, mas precisam dela, e na realidade a buscam. Quanto
mais sabem, tanto menos negarão a paixão, antes a aceitarão, porque
sabem que ela é o fogo purificador necessário para a produção do ouro
puro. Há uma bela expressão deste simbolismo na Divina Comédia de
59

DANTE. No último círculo do Purgatório, quando eles se aproximam da


esfera celeste, VIRGÍLIO, conduz DANTE à chama da purificação; ele
mesmo recua, porque, sendo pagão, não pode passar através dela; mas
DANTE, sendo um cristão batizado, está em condições de entrar no fogo do
puro amor, onde tudo que é terreno é queimado dentro dele, e então esse
ascende ao Paraíso...

Naturalmente, o ouro não é mencionado nesta visão. Eu simplesmente faço


uso deste símile para explicar o simbolismo aqui, como uma espécie de
procedimento alquímico, mas nada está sendo dito sobre o seu possível
resultado. O único leve sinal que temos é que a imagem permanece ilesa.
Mas quase nada podemos concluir disso; o simbolismo inteiro destas visões
é tão telegráfico... que temos que preencher muitas lacunas... antes que
elas se tornem significantes.

Comentário: A emocionalidade pareceria ser a antítese do estar contido


dentro do círculo mágico.

Dr. Jung: Não é a antítese, porque ocorre dentro do círculo, e assim o ouro
pode ser produzido. Mas se somos tomados por emoções fora do círculo,
podemos ser destruídos, devorados pelas chamas; nós necessitamos o
círculo.

Comentário: Este cone de ônix não sugere alguma coisa protetora, ele é tão
duro e frio.

Dr. Jung: A característica do círculo mágico é que não se pode atravessá-


lo... e também ele é feito para manter fora os fantasmas... Nada pode sair
dele e nada pode entrar.

Pergunta: Quando um paciente busca emoções, podemos estar sempre


seguros de que algum ouro será produzido?

Dr. Jung: O Senhor não deve concluir da minha observação que uma série
de emoções necessariamente significa ouro; ela pode indicar apenas a
60

queima do entulho, talvez por uma vida inteira, e nada sairá dela se não
ocorre dentro do círculo mágico... Há certamente um sem número de
emoções que nunca produz um grânulo de ouro.

Este sonho tem o propósito de ensiná-la que uma espécie de procedimento


mágico está ocorrendo... Tais sonhos informativos são freqüentes, e se
sabemos que não estamos perdendo a razão, mas que passamos por uma
iniciação, estamos dentro do círculo mágico. Nesse caso, a experiência tem
valor. No momento em que uma pessoa insana tem suficiente consciência
para aprender o que está fazendo, o que significam coisas como essa, ela
está salva, ela obtém o ouro puro... Eu tratei casos assim de pessoas que
haviam estado internadas e ameaçadas de destruição total, e eu as salvei
apenas fazendo-as conscientes do caminho que haviam percorrido e ainda
estavam percorrendo. De certo modo, eu fiz ao redor delas um círculo
mágico de consciência que as manteve firmes, e elas começaram a encarar
as coisas experimentadas como objetos. Isso se expressava no fato de que
podiam fazer desenhos de algumas de suas alucinações e de seus estados
de ânimo... Elas já eram mais idênticas a eles... Vejam, o perigo das
emoções é que elas nos fazem em pedaços... mas se conseguimos nos
segurar durante a tempestade, se sabemos o que está acontecendo –
mesmo se apenas sabemos que não estamos em uma boa disposição – já
vencemos, porque alcançamos um ponto de vista frente à destruição sem
sentido.

[Agora, acima da bruxa com a imagem mexicana, e o búfalo que também é


visto lá, aparece um cercado de serpentes que são a expressão do temor da
paciente por ter recorrido à magia e da sua consciência pesada por não ter
reprimido suas emoções.] Nota do EDITOR.

Nesse processo de precipitação do ouro uma duradoura consciência pesada


é inevitável. Se podemos lidar com ela, podemos lidar conosco mesmo; se
não, evitamos a nós mesmos e o ouro nunca é produzido.

 Visão: (cont.) Eu ouvi um som distante de estrondo e vi uma grande


manada de búfalos à medida que se aproximava, a cova de ônix
61

fechou-se e os búfalos correram sobre o solo onde desaparecera a


cova. Eu senti medo e sentei-me para descansar.

O que está acontecendo aqui?

Resposta: Eu penso que a prova de que ela necessita estar naquela cova é
o fato de que os instintos vêm correndo como uma manada de búfalos.

Dr. Jung: Exatamente. É muito bom que ela esteja lá, senão teria sido
pisoteada até a morte; assim, a qualidade protetora da cova torna-se bem
clara. E o que significa a investida da manada de búfalos? Um búfalo estava
lá, antes, provando que a situação estava em ordem quanto aos instintos.
Mas agora os instintos estão correndo sobre ela. Por que? Bem, o fato é que
o instinto nunca vem só, ele á sempre “legião”; sempre que vivemos de
acordo com o instinto caímos no coletivo, não podemos evitar isso, porque
o instinto é coletivo. Se vivermos com nosso instinto está tudo bem, mas
somos coletivos...

Comentário: Então não deveríamos nos identificar com o instinto.

Dr. Jung: Não deveríamos. Porque se o fizermos, no fim ele nos pegará. O
fato é que, quando vivemos uma série de emoções que “caem bem” para
nós, vamos deslizando com elas e achamos isso até fácil. Ter tais emoções
pode ser desagradável, mas não podemos nos reter, caímos nelas de novo
e de novo, torna-se habitual, e atua como uma droga. Por exemplo,
ensinamos as pessoas com grande dificuldade, no decorrer da análise, que
elas deveriam dizer o que pensam, e então elas já não podem parar. E
falando apenas a verdade, elas hostilizam todo mundo... tagarelando
ingenuamente por aí, elas dizem as coisas mais afrontosas, e o diabo as
ajuda nisso. Mas elas se orgulham de ter aprendido a ser honestas e
sinceras; pensam que isto é analítico, mas é simplesmente um tagarelar da
pior espécie. Esse é um exemplo de como o instinto enreda as pessoas. A
emoção as arrasta sem que elas percebam isso e o instinto vulgar
finalmente toma posse delas, ainda sob a impressão de que estão fazendo
seus melhores esforços, na sarjeta onde tais coisas acabam...
62

De certo modo, é porque essa mulher está tomando uma posição contra o
instinto, que os búfalos arremessam-se sobre ela. Poder-se-ia dizer que é
um pecado contra o instinto o assumir uma posição que é consciente e
cultural, e que por isso está sendo atacada; sua tentativa de individuação
precipitou uma investida do instinto. Aquele rito mágico provocou o búfalo,
e onde há um búfalo, há uma horda deles... Mas se conseguimos nos
esconder numa cova mágica, então estamos protegidos, e a investida do
coletivo apenas passará ao lado.

A visão seguinte chama-se “A Praça do Mercado”. O que esperariam que


fosse isso?

Resposta: É o símbolo da coletividade extrema.

Dr. Jung: Exatamente. A praça do mercado é o símbolo da multidão por


excelência.

Germes da Nova Vida

 Visão: (cont.) A manada de búfalos passou com estrondo, deixando


uma grande nuvem de poeira (Ainda a mesma manada). Na poeira
haviam muitas cobras pequenas com rabo de peixe. Carregavam
germes na boca. Levantou-se uma grande neblina. Não conseguia
encontrar o caminho para ir além.

A investida dos instintos deixa uma nuvem de poeira, que é como uma
névoa densa... Quando atravessamos a investida de uma emoção ruim
ficamos entorpecidos ou apenas meio conscientes... Esta névoa, nuvem de
poeira, representa aquela sensação entorpecida, e aí ela descobre pequenas
cobras com rabo de peixe. Lembrem-se que na visão anterior havia um
cercado de serpentes acima da bruxa, que representava seus medos.
Agora, aparentemente, essas cobras estão no ar. Mas não são cobras
comuns, porque têm rabo de peixe... o que significaria que pertencem à
água. Assim, elas são indistintas, medos meio-conscientes... Nas suas
63

bocas elas carregam germes, e pelo texto posterior, é óbvio que são
germes de plantas. Então, junto com o fato de que elas significam medo, há
também a possibilidade de que emerja nova vida desses conteúdos
inconscientes. Os germes nas suas bocas são como o ramo de oliveira que a
pomba de NOÉ trouxe consigo ao voltar para a arca. Depois do grande
dilúvio vem o animal trazendo o símbolo da esperança, expectativa de terra
onde há plantas.

 Visão: (cont.) Eu andei ao redor do círculo de rocha, buscando um


modo de escapar. Não havia nenhum.

Aparentemente não há saída do local onde ela se encontra. Isto se refere


claramente à cova de ônix, e um pouco mais tarde torna-se óbvio que esta
é o centro de um círculo de rochas. Assim vemos que ela está realmente
confinada numa mandala, quase como se fosse uma prisioneira...

 Visão: (cont.) Por fim, cheguei a um portão de ferro que estava


fechado. Ele não se abriria. A neblina desfez-se e eu vi que as rochas
tinham se tornado verdes. No centro do círculo, onde estava a cova
de ônix, cresceu uma palmeira.

O verde denotaria vida, esperança de novo... e ela descobriu um portão de


ferro, uma saída, se conseguir encontrar a chave. Assim, aqueles germes
não eram destrutivos; eram germes da vida que mais tarde tornariam
verdes aquelas rochas... A árvore seria, sob todos os aspectos, o oposto da
cova de ônix, porque o ônix é morto e inanimado; ainda mais, a cova era
oca e a árvore é protuberante, ergue-se e preenche o espaço, é viva.
Assim, ocorreu uma enantiodromia; em lugar da cova “morta”, quase um
túmulo, há vida. É como se o que quer que estivesse antes na cova, estava
ali para criar raízes e crescer. Como explicam essa mudança peculiar? O
que aconteceu?

Resposta: Houve uma união entre matéria e espírito, poder-se-ia quase


dizer entre uma pessoa viva e a matéria morta da cova, que se assemelha a
64

uma tumba. E dessa união está emergindo uma nova vida, como uma
criança.

Dr. Jung: Exatamente. Aquela cova de ônix é a cratera do nascimento de


que já falei muitas vezes. Ela executou lá uma cerimônia mágica –
mantendo a imagem no fogo – e através dele, ela mesma, ou alguma coisa
nela, se transformou. Aquilo já não é mais uma cova, ou um túmulo; vive,
mas não com a vida do animal de sangue quente, não com vida humana; é
vida vegetal... É, poder-se-ia dizer, um compromisso irracional entre a coisa
absolutamente viva o animal, e a coisa absolutamente morta, o ônix; entre
eles está a planta, o espírito (pp59) que resulta dessa estranha união. E a
manada de búfalos, que passa com estrondo sobre a cova, tem que ser
também uma parte do mistério de transformação.

Sugestão: A manada era um afluxo de poder e ela não se identificou com


ele.

Dr. Jung: Tem mesmo algo com isso... Mas na realidade, é, antes, um teste
sobre a segurança da cova... Se pudermos conduzir uma manada de búfalos
sobre uma ponte, por exemplo, sabemos que ela é segura e agüenta... Que
as emoções, como representa a manada, podem investir sobre o lugar
seguro sem destruí-lo, é um conseguimento que o torna real. Assim, a
passagem dos búfalos tem uma espécie de efeito mágico... Por ter resistido
à investida dos instintos, o lugar de segurança ganhou prestígio, poder de
cura, mana. É o mesmo com uma espada que matou; depois disso, é um
matador, e diferente, portanto, de qualquer outra espada; porque matou
um homem, é uma espada forte, uma espada-mana e pode-se confiar nela
para matar de novo.

Assim, suportando a investida dos búfalos, a cova tornou-se mágica, e


recebeu mana, um prestígio especial; como resultado, aquilo que parecia
ser um túmulo ou uma prisão, transformou-se em árvore, a disposição, já
não é depressiva, já não afunda, tornando-se lentamente preta. É um
emergir e um desenrolar... Um movimento como o abrir-se da cauda do
pavão. Quando as visões desta paciente começaram a se desenrolar, bem
65

no começo, havia um pavão (Parte I, página 15). O abrir-se em leque da


cauda do pavão expressa justamente este movimento esperançoso, esta
extensão e expansão, como quando os pulmões se enchem com ar e o
coração pulsa livremente, quando sentimos que podemos nos estender e
abraçar o espaço. A outra disposição é o colapso, o dragão, o frio, a
escuridão e um afundar-se na cova. Quando alguém se sente envergonhado
diz: “Eu poderia ter afundado no chão”.

A Árvore com a Imagem na Sua Raiz

Agora, a palmeira ocupa o centro da parede de rocha e assim, lembra-nos


imediatamente a árvore crescendo no centro da mandala. Aquilo sempre
simboliza um desenvolvimento que ocorre em estágios e se movimenta para
cima, em uma espécie de espiral. É a árvore da YOGA cujo primeiro
rebento, de acordo com a Kundalini-Yoga é a folha verde, ou broto, que
simboliza SHIVA na condição dormente. Um crescimento deste tipo,
semelhante à planta, representa uma experiência psicológica inteiramente
diferente daquela à qual estamos habituados porque comumente pensamos
sobre a nossa psicologia em termos de animais de sangue quente, não de
plantas. Mesmo assim, é um fato estranho que o desenvolvimento espiritual
seja simbolizado pela vida vegetal. É a vida impessoal do homem, a vida
além da sua psicologia pessoal. E esta forma de vida tem que seguir outras
leis, ou ela tem suas próprias leis muito particulares, bem diferentes
daquelas que brotam da mentalidade da vida pessoal, de sangue quente.

Pergunta: Eu me pergunto por que a árvore é uma palmeira. Seria para


enfatizar a idéia de paz, em contraste com o “estouro”?

Dr. Jung: Poderia ter esse sentido. Mas isso não é tão importante como o
fato de que as folhas da palmeira têm um movimento como que de fonte,
como o rabo do pavão. A palmeira é muitas vezes escolhida para simbolizar
a expansão da vida.
66

 Visão: (cont.) Aproximei-me dela e encontrei ao pé da árvore uma


pequena imagem. Peguei-a e a joguei contra o portão, que se abriu.

Então, o que encontrou ela?

Resposta: A imagem mexicana.

Dr. Jung: Provavelmente é alguma imagem primitiva como esta, outra vez,
mas teríamos que saber o que ela significa, e se temos alguns paralelos
para ela.

Sugestão: Existem raízes que abrem portas.

Dr. Jung: Sim. A raiz que abre portas é a mandrágora. É bastante irregular,
mas muitas vezes tem uma forma bifurcada, como um homenzinho mal
desenhado. Em museus podem ser vistos antigos espécimes que foram
usados para finalidades mágicas... E há uma lenda especial sobre ela. Diz-
se que quando um homem é enforcado, seu sêmen cai sob o cadafalso e
impregna a terra, e lá cresce uma mandrágora, que é meio vegetal e meio
humana. Quando alguém tenta arrancar aquela raiz, ela solta um tal uivo
infernal que a pessoa morre de pavor; então, ninguém se atreve a tentar
isso. Mas eles amarram o rabo de um cachorro preto à raiz e depois de
tapar os próprios ouvidos – lhe oferecem comida. O cachorro da um pulo
para a frente, a mandrágora solta-se com um uivo terrível, e o cachorro
morre. Mas como eles nada ouviram, podem assim obter a raiz. É também
chamada “a raiz que descerra”, isto é, que abre todas as portas e
fechaduras. Crescendo debaixo do cadafalso, é o fruto do intercurso mágico
do homem agonizante com a terra, com a matéria inanimada.

Agora, essa imagem na visão encontra-se também sob uma árvore, e há


aqui uma estranha analogia. O que eu lhes disse sobre a mandrágora – que
ela abre portas fechadas – é apenas o aspecto negativo de alguma coisa
muito positiva; porque a raiz da árvore é onde se encontram a criança-
herói, a criança-redentor, o grande tesouro ou, ao menos, a serpente ou o
dragão que guarda o tesouro. Na lenda de GAUTAMA há uma figura sagrada
67

que abaixa seus galhos sobre MAYA quando ela dá à luz o futuro BUDA. A
mesma imagem aparece no “Prometeu” de SPITTELER, o jovem pastor
esconde sua jóia embaixo de uma nogueira e os galhos da árvore curvam-
se para guardá-la. Estes são paralelos para a imagem ao pé da árvore.
Então, o que representa?

Pergunta: Seria o estar livre das emoções?

Dr. Jung: Nesse tipo de círculo estamos distantes das emoções, não dentro
delas. A nossa liberdade foi ganha quando nos encarceramos numa cova.
Agora, esta pequena figura mágica representa, obviamente, o caminho para
uma liberdade que não é tão condicionada.

Sugestão: A jóia e a criança são símbolos do SELF.

Dr. Jung: Sim. São símbolos do SELF. Simbolizam aquilo que na Índia se
chama PURUSHA. Agora, em que extensão isto significa liberdade?

Resposta: Representa um certo destacamento da coletividade.

Dr. Jung: A questão não é estar destacado da coletividade ou das emoções,


mas estar na coletividade, nas emoções e, mesmo assim, ter liberdade.

Comentário: O SELF é indestrutível, e é por isso que ele dá a liberdade.

Dr. Jung: Sim, isto dá liberdade... Mas queremos saber como o SELF torna
psicologicamente possível viver nas emoções.

Resposta: Porque o SELF é liberdade e a liberdade é SELF.

Dr. Jung: Intrinsecamente, a razão para a idéia de que o SELF é liberdade é


que ele chega a viver quando há destacamento emocional; sua liberdade
mostra-se na sua imperturbabilidade pelas emoções. Psicologicamente, o
SELF é uma espécie de condição impessoal que nos capacita não apenas
para estarmos destacados das emoções, mas também para sermos
68

emotivos e mesmo assim permanecer não afetados dentro da agitação.


Experimentar o SELF significa que estamos sempre conscientes da nossa
própria identidade. Então sabemos que nunca podemos ser outra coisa
senão nós mesmos, que nunca podemos nos perder a nós mesmos e nunca
estar alienados de nós mesmos. É assim porque sabemos que o SELF é
indestrutível, que ele é sempre um e o mesmo, e não pode ser dissolvido
nem trocado por qualquer coisa. O SELF nos possibilita permanecer o
mesmo através de todas as condições da nossa vida.

Mas simplesmente saber da idéia do SELF não significa que tudo isso se
tornará verdadeiro, que as coisas realmente acontecerão desse modo. É
apenas a idéia, apenas aquilo que se diz sobre o SELF. Porque conhecer o
SELF leva um longo tempo, uma longa educação. Na Índia é necessário
todo o treinamento de um iogue para realizar a identidade do SELF que
nunca permite a alguém trocar-se por qualquer outra coisa.
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE XI

Seminários entre 4 de outubro e 6 de


dezembro 1933.

SPRING 1969
2

Níveis de Consciência

No desenvolvimento da nossa série de visões chegamos a um momento em


que eventos externos começaram a ter uma enorme influência sobre nossa
paciente. Até então ela estava na Europa, mas agora ela volta para a
América do Norte, e a aproximação da sua pátria significou uma grande
perturbação mental. A causa disto é que ela passou por um
desenvolvimento mental muito peculiar, na sua análise, e tornou-se
consciente de todos os tipos de coisas estranhas que não pudera assimilar
nas fases anteriores de sua vida, ou nas suas convicções e idéias anteriores.
Assim, quando voltou à sua pátria, as velhas idéias começaram a emergir
de novo e, naturalmente, colidiram com aquelas que ela adquiriu na Europa.
É verdade que seu inconsciente sempre teve tais conteúdos, mas ela era
bem-aventuradamente inconsciente deles; enquanto ela não sabia, não
houve colisão. Porque os conteúdos do inconsciente geralmente se
expressam de alguma forma – de um modo ou de outro – e então o
indivíduo pode estar em paz consigo mesmo.

Certas pessoas contêm um demônio no inconsciente, por exemplo, uma


parte má de suas personalidades. Então, nas vizinhanças há uma pessoa
que é o demônio, e pessoas inconscientemente são extremamente gratas a
ela por assumir o papel do demônio... Enquanto eu estiver numa condição
dessas, em que um irmão ou um tio ou uma tia, ou qualquer outro,
representa o demônio para mim, então posso viver em paz, e meu
inconsciente está suficientemente expressado. Porque para o inconsciente
não importa muito por quem ele está sendo expresso, desde que seja
expresso, desde que viva; é quase indiferente para o inconsciente se eu
estou zangado comigo mesmo ou com outrem...

O inconsciente é o eterno jogo da natureza que constrói e desmonta. A


natureza mata, a cada outono, tudo que criou durante o ano, e na
primavera tudo é criado de novo. Mas há um fator peculiarmente
3

perturbador mesmo no inconsciente natural, e este é o germe do individual,


o germe do SELF, como uma centelha de luz que causa o vir-a-ser da
consciência. E quando o homem começa a ser consciente, ele almeja a
união com a centelha de luz, e está sempre fazendo alguma coisa que não
condiz inteiramente com a natureza. Cada vez mais ele perturba a
natureza, a natureza em geral, e também a sua própria. Ele começa a
colocar a natureza numa camisa de força. Vejam as linhas retas adentrando
a natureza, por exemplo: vias férreas, estradas e árvores derrubadas,
campos arados, determinadas plantas cultivadas em determinados lugares.
A natureza nunca produziria tal vista. Mas o que se vê na superfície da
terra, vê-se na alma do homem consciente – todos os sinais da civilização,
coisas feitas contra a natureza. É muito natural que o inconsciente não
goste desta intrusão da consciência e tenha uma tremenda resistência
contra ela.

...Em cada nível de consciência repete-se o antigo mistério da luz e da


investida das trevas, porque um novo nível é um aumento da luz, e este
pequeno aumento de luz pode ser atacado pela escuridão relativa da
condição anterior. Para me expressar em termos dos chacras, quando se
deixa o estado de MANIPÛRA, que é uma condição inferior, e se chega a
uma condição superior, acima do diafragma, ANÃHATA, então MANIPÛRA
torna-se o pior perigo para ANÃHATA; porque então MANIPÛRA, a despeito
do fato de que é um sol incandescente é a escuridão em relação com a
estranha nova luz de ANÃHATA. Em MANIPÛRA, temos uma psicologia
inteiramente emocional, sem idéia de qualquer objetividade, não dispomos
de nossas emoções, somos a emoção. Em ANÃHATA podemos dizer que
estamos aborrecidos, mas em MANIPÛRA somos o aborrecimento, nada
mais que o aborrecimento, de modo que nem mesmo podemos admitir isso.
Se alguém diz para uma pessoa nesta condição, “Você está aborrecido”, ele
replicará “Não, eu não estou!” Mas em ANÃHATA ele diz “Por Deus, você
tem razão” e esta é a condição superior, esta é a diferença entre MANIPÛRA
e ANÃHATA.

Agora, esta condição pode facilmente ser eliminada por uma onda de
emoção; e por isso aquele que conseguiu o estado de ANÃHATA receia tudo
4

que possa aumentar suas emoções; evita as pessoas que possam aborrecê-
lo e situações que criem emoções que ele não possa controlar, para
preservar o estado ANÃHATA. Então, de novo, se alguém sobe de ANÃHATA
para o centro seguinte, VISUDDHA, o reconhecimento de que sou um
princípio ativo é o pior inimigo da luz superior que diz que EU, o ego, não é
a coisa, EU não sou o observador ou o controlador de minhas emoções.
Então vem a idéia de que EU não sou, o que é um aumento de luz sobre
aquele que diz EU sinto isso e aquilo ou EU fazendo isto e aquilo. É uma
negação do nível superior. Eu apenas menciono estas coisas agora, para
mostrar-lhes que cada estágio de desenvolvimento é contra-atuado pelo
estado precedente, e o estágio precedente age de novo, exatamente, como
se ele fosse a escuridão original. O bom torna-se o inimigo do melhor...

Agora, essas diferentes condições são uma série, na realidade como a série
de visões de nossa paciente, apenas suas visões são quase caóticas, e não
um contínuo elevar da condição. É como ocorre na realidade, uma elevação
e uma queda, um construir e um destruir; e quando as ondas alcançam
mais alto, a destruição torna-se correspondentemente pior...

 Visão: Grandes edifícios ergueram-se acima de mim,


inclinaram-se sobre mim, elevaram-se, oscilaram e
desmoronaram com estrondo fragoroso. Cada vez que os
edifícios desmoronavam, uma grande ave vermelha voava para
o céu, com um grito estridente. As aves eram dilaceradas e
delas gotejavam sangue.

Aves pertencem ao reino do ar. O que é isto psicologicamente?

Resposta: A região de ANÃHATA.

Dr. Jung: Sim, então seriam coisas que pertencem à região ANÃHATA, que
é a região do ar, porque é a região do coração e dos pulmões. Aqui temos o
sangue e o ar. Tudo que pertence à área acima do diafragma é expresso
por uma ave: podem ser pensamentos ou sentimentos, conteúdos da
personalidade que pertenceriam a um nível mais algo. Agora, naturalmente,
5

se alguém desce a MANIPÛRA todas as coisas acima são lesadas e


destruídas, ou pelo menos seriamente feridas pela animação não natural de
objetos, coisas mortas, durante a descida ao centro inferior. Sempre que
descemos ao nível inferior, a vida dos objetos concretos ou mortos será
intensificada. Em MANIPÛRA, naturalmente, a humanidade em geral, será
animada, bem como as coisas, tudo é imbuído de uma peculiar vida. Isso
pode ser observado quando se analisa alguém que tem bastante auto-
controle, é bem educado e muito consciente de uma postura precisa; na
análise essas pessoas logo caem em MANIPÛRA, porque tinham estado alto
demais em ANÃHATA e, então, instantaneamente, têm uma tremenda
intensificação da vida nos seus ambientes, porque desceram para a
condição abaixo. Naturalmente, descendo ainda mais a vida intensifica-se
ainda mais, até que por fim, numa condição mediúnica, fica-se inconsciente,
numa espécie de transe, e as coisas fora, até, realmente começam a
mover-se, o que é, evidentemente, um estágio patológico desse fenômeno
psicológico.

Comentário: Acho peculiar que aquelas aves não caem, elas parecem subir.

Dr. Jung: Porque pertencem ao reino do ar, elas simplesmente são seres do
ar de ANÃHATA, que estão feridos por esta descida a MANIPÛRA.

Agora, ela continua:

 Visão: (cont.) As gotas de sangue caíram sobre mim e onde


me tocavam eu fiquei ferida e sangrando.

Isto mostra a conexão das aves com ela mesma. Ela é uma dessas aves, ou
é o centro para elas. Essas aves são seus pensamentos, seus sentimentos,
suas idéias, todos os conteúdos mentais que pertencem a uma condição
superior de consciência e, assim, naturalmente, ela mesma está ferida e
lesada pela descida a MANIPÛRA, embora não esteja dilacerada como as
aves, porque ela não pertence exclusivamente a ANÃHATA, ela está
também em MANIPÛRA. As pessoas podem viver em MANIPÛRA, sem se
ferirem quando elas realmente pertencem a esse nível, mas tudo nelas que
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estiver em ANÃHATA será lesado em MANIPÛRA. Vejam, nós sempre


contemos a condição mental inferior. Aqueles conteúdos mentais estão
vivendo em nós, um certo sentido, mas estão todos sob o controle do
centro superior vigente. Podemos estar em geral em ANÃHATA e esse
centro, então, domina todos os centros abaixo, mas eles continuam a viver.
Assim, quando ANÃHATA é lesado ou abolido, nós não sofremos
completamente, só na medida em que estamos em ANÃHATA; na medida
em que estamos em MANIPÛRA, não sofremos absolutamente nada. É
sempre engraçado quando as pessoas dizem: Se tal ou tal coisa
acontecesse comigo eu morreria, não suportaria mais a vida. Mas elas não
morrem, mas continuam vivendo. É espantoso o que as pessoas podem
agüentar – elas simplesmente mudam sua psicologia. Muitas vezes
podemos observar essa mudança peculiar quando as pessoas passam por
uma mudança nas condições sociais; elas podem viver sob condições as
quais nunca poderiam ter suportado se tivessem se desenvolvido de acordo
com sua própria imaginação ou antecipação. Elas anteriormente pensavam
que abaixo de uma certa quantia ninguém pode viver, mas vivem com
menos do que aquilo, agora... Assim, quando chegamos a uma condição em
que ANÃHATA é impossível, podemos da mesma forma viver em MANIPÛRA,
mas a parte ANÃHATA será lesada. Agora, ela diz:

 Visão: (cont.) Eu recuei com horror e encostei-me contra uma


parede de rocha.

Temos aqui o mesmo fenômeno de antes.

Comentário: Ela está tentando conseguir de novo a coisa protetora.

Dr. Jung: Exatamente. Vejam, deixar a mandala é desenvolver-se. A


palmeira cresceu e ela encontrou o ídolo mágico com o qual pôde abrir a
porta, e ela saiu para o mundo. Mas o mundo de comporta de um modo
inteiramente louco e ela, naturalmente, está horrorizada e tenta de novo
encontrar abrigo na mandala. Mas aqui é uma rocha, já não é verde e já
não há uma palmeira, é morto. Ela diz:
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 Visão: (cont.) Olhei para cima e vi uma grande rocha azul


torreando céu adentro. Lançava correntes de água que corriam
de cada lado meu. Fui curada das minhas feridas.

O que é isso?

Resposta: Ela desceu um estágio mais abaixo, na região da água,


SVÃDHISTHÃNA, quando regrediu ao desejo de proteção, mais uma vez.

Dr. Jung: Sim, entrar na mandala, é naturalmente, uma descida à cavidade


protetora, a qual é sempre a idéia mais básica de uma mandala; o lugar de
abrigo espiritual é um santuário subterrâneo, assim como a igreja
subterrânea, a cripta, tem sido sempre o lugar de iniciação desde tempos
imemoriais. A cave tem essa qualidade protetora, mas ela está voltando no
curso do tempo, estamos regredindo à caverna da qual viemos, e assim
regredimos no tipo da nossa própria psicologia. Primeiro caímos em
MANIPÛRA e, depois, de MANIPÛRA em SVADHISTHÃNA. E SVADHISTHÃNA
tem a quota de psicologia que expressa o homem da caverna, que existia
antes da civilização e tinha uma consciência restrita, apenas uma espécie
de percepção que nem poderia proferir um julgamento. Por isso, como eu
disse, eles não deixaram registros, nem se preocuparam em inventar uma
escrita ou qualquer outro sinal, como nós em cordas, como usaram os
antigos peruanos ou os antigos chineses – eles expressavam seus mais
profundos pensamentos filosóficos em seqüências de nós nas cordas. O
símbolo do Mapa de Rios, que por assim dizer é o sistema do mundo da
antiga filosofia clássica chinesa, foi representado por cordas enodadas. Elas
foram dispostas no básico quadrado em volta de uma mandala no centro,
compostas de quatro nós ao redor do ponto central.

Esta necessidade de registrar alguma coisa é um sinal de consciência


superior e não é característica do homem muito primitivo, assim, nós o
encontramos necessariamente num nível inferior, em MANIPÛRA ou mesmo
em SVÃDHISTHÃNA que é, por assim dizer, uma condição teriotípica. A
psicologia de SVÃDHISTHÃNA é a psicologia dos meros impulsos e por isso
expressa-se, por exemplo, pela percepção da pressão da urina na bexiga,
8

ou por outras necessidades fisiológicas do corpo; toda a vida interior


consistia na percepção de impulsos e incentivos instintuais. Agora, esta é
uma condição muito baixa, mas naturalmente é possível colocar-se nesta
psicologia quando se busca proteção na mandala; invariavelmente se cai
para trás, ao longo das épocas.

Então, naquele estado rebaixado de consciência, ela vê a tremendamente


alta rocha azul elevando-se para o céu como uma torre. Azul significaria o
ar ou a água, mas como estamos torreando céu adentro, é uma torre
espiritual, é uma torre erguida pela humanidade, mas que é também um
crescimento natural; é todo o caminho para baixo, para o lugar de onde ela
veio, e dessa rocha especial descem as águas curadoras. Agora, onde
encontra ela aquele simbolismo de águas curadoras? – ou pelo menos
águas mágicas, ou águas fertilizantes? Por favor, usem sua imaginação
cristã.

Sugestão: CRISTO disse que ele era a água da vida.

Dr. Jung: Sim. Talvez se lembrem daquele belo Negro espiritual: “Encontrei
um lar naquela rocha” (I found a home in that rock) referindo-se a CRISTO.
CRISTO é a caverna, o lar na rocha, em que se encontra abrigo. Essa rocha
azul, expressa através do simbolismo cristão, é o próprio CRISTO. Seria
uma bela analogia, qualquer Padre da Igreja teria se enamorado desta
interpretação sem hesitar. Naturalmente, a interpretação psicológica, que
seria também a do cristão, é um pouco mais difícil de entender.

Sugestão: Não seria este um outro símbolo para o SELF? O Senhor falou
dele como a palmeira, e quando esta estava no centro, era uma rocha
morta. Aqui é também rocha morta, mas ela ainda tem propriedades
curadoras... E mais, está no centro, e o azul é uma cor espiritual.

Dr. Jung: Sim, o que quer que esteja no centro refere-se ao SELF, e esta
cor azul indica o ar, ele é encontrado quando alguém alcançou o ar. E
alcançamos o ar no centro ANÃHATA, onde o texto tântrico diz que se vê
ISHVARA, o Senhor... Agora lembrem-se que a água sempre tem a ver com
9

a psicologia de SVÃDHISTHÃNA. Neste caso é uma água curadora muito


especial.

Sempre que aparece a água é, geralmente, a água da vida, significando um


meio através do qual alguém renasce. Simboliza uma espécie de cerimônia
de batismo, ou iniciação, um banho curador que outorga ressurreição ou
renascimento. Assim, ela está passando por um rápido renascimento nesta
água. Agora, a água saindo da rocha seria uma emanação do SELF. Assim,
a rocha da qual MOISÉS fez brotar água sempre foi interpretada no
cristianismo inicial como referência a CRISTO, sendo Ele o curador. Do
mesmo modo como CRISTO era a serpente que foi elevada naquela haste
por MOISÉS contra a praga das cobras, assim também Ele é a fonte da
água curadora...

Mas sem dúvida existe aquela relação com SVÃDHISTHÃNA, sempre que
aparece o simbolismo da água. A fonte batismal é sempre SVÃDHISTHÃNA;
é a volta ao ventre da consciência, já que a consciência emergiu naquela
condição... A volta a uma tal condição tem valor curador porque traz as
coisas de volta às suas origens, onde nada foi ainda perturbado e ainda
tudo está certo. É como se alguém recebesse lá uma espécie de orientação
de como as coisas realmente deveriam ser. Assim, quando estamos num
dilema ou em dúvida sobre alguma coisa, nós ‘dormimos sobre ela’, e
quando acordamos na manhã seguinte, com muita freqüência temos mais
clareza, temos uma sensação definida sobre aquilo... Voltar à mandala é
algo como um sono ou um transe em que a consciência é abolida em
grande extensão e as coisas podem encontrar de novo seus trajetos
naturais. E a água é curadora simplesmente porque é a condição rebaixada
da consciência em que tudo está imperturbado e pode, portanto, retornar
ao ritmo certo.

A Descida à Cidade

Assim, as feridas da nossa paciente estão curadas, e ela caminha


novamente para a beira das rochas e diz:
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 Visão: (cont.) Eu sabia que tinha que descer à cidade.

Anteriormente ela recuou perante sua tarefa simplesmente porque estava


muito assustada, mas ela sabe que deveria executá-la e lidar com
quaisquer perigos que possam haver na cidade. Assim, seu recuo levou-a à
condição em que podia encontrar um renascimento, era uma espécie de
“ritual de entrada” que a tornou mais forte. Os primitivos, antes de uma
guerra ou caça, executam determinados rituais para que sejam capazes de
lutar ou caçar; sem aquele ritual eles não seriam suficientemente fortes, e
haveria perigo. Isto simplesmente indica que eles não podem decidir fazer
aquilo no impulso do momento, porque sua vontade está ainda dispersa, e
somente através da cerimônia todas as suas inclinações e conteúdos
mentais são coletados e concentrados sobre um objeto. Depois de tudo,
eles têm o ritual de saída, que lhes possibilitará livrar-se daquela
possessão. Porque antes eles ficaram possuídos pela caça ou pela guerra e
têm que se “despossessar”, eles devem participar de certa dança que lhes
facilita reajustarem-se novamente à vida comum. Agora ela continua.

 Visão: (cont.) Estreitos degraus conduziam para baixo. Com


medo e apreensiva, eu desci por eles. Descendo, já não podia
mais ver os pássaros vermelhos e dilacerados.

Como percebem, ela superou o estado em que se sentia lesada, ela


atravessou aquele estágio, e por isso os pássaros desapareceram. Ela está
agora fortificada na sua atual condição, está suficientemente forte devido à
participação no rito de renascimento. Ela diz:

 Visão: (cont.) Entrei na praça do mercado (que é,


evidentemente o centro da cidade). Ele estava abarrotado, com
uma multidão de homens e mulheres movimentando-se e
gritando e cortando-se a si mesmos com facas.

Parece ser uma cidade cheia de loucura. O que significa isso?

Resposta: Seria um pânico ou uma espécie de êxtase de dervixes.


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Dr. Jung: Sim, como um êxtase dervixe, como uma espécie de loucura
orgiástica onde o tema é ferir a si mesmos e uns aos outros. De onde vem
isso?

Resposta: Agora a coletividade está ferida.

Dr. Jung: Exatamente. A coisa louca que aconteceu antes foi a


movimentação dos arranha-céus que se comportavam como animais, de
modo que os pássaros que tinham a ver com ela foram feridos. Agora os
sinistros objetos animados já não se movem; parece que perderam sua vida
mágica. Agora são seres humanos que estão extenuados, carregados com
eletricidade e por isso comportando-se como loucos... Ela agora já não está
mais ferida, sob a forma de aves, isto é, ela não participa mias nas suas
emoções de ser ferida, atormentada e assim por diante. Ela conseguiu
certos resultados – aquele banho mágico realmente funcionou – e por isso
pode ver as coisas mais claramente, ela controla melhor suas emoções, ela
não lhes permite movê-la até o ponto de ver arranha-céus inclinando-se e
desmoronando ao seu redor. É ainda muito feio, eu admito, mas de modo
algum tão feio como antes.

Ela continua:

 Visão: (cont.) Acima deles, numa plataforma elevada, sentava-


se uma mulher vestida de branco com uma criança sobre os
joelhos. Fui até ela e disse: “Porque estás aqui?” Ela
respondeu: “Eles querem isso”. Eu disse: “Como podes
suportar esta cena? Não faz com que te sintas mal? Não tens
sentimentos?” Ela disse: “Não”. Eu a deixei desgostosa.

Isto é bem desconcertante, não? A mãe de Deus está extremamente


filosófica aqui, e bem indiferente quanto a toda aquela louca confusão.

Sugestão: Na imagem o sentido poderia ser, se ele que é mais pequeno que
o pequeno está protegido pela sua mãe, então aquilo não importa.
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Dr. Jung: Oh, o Senhor toma a coisa toda simbolicamente, aquela mãe de
Deus sendo realmente uma proteção. MARIA protegeu o SENHOR como se
fosse uma criancinha. Ela é o símbolo daquele que contém o centro de
ANÃHATA. MARIA é realmente o símbolo da individuação. Ela é a mãe do
PURUSHA, assim é o símbolo da individuação para a mulher, como CRISTO
é o símbolo da individuação para os homens.

Observação: Pensei que teria mais a ver com a atitude norte-americana,


que ela não era exatamente a mãe de Deus, mas a mulher num pedestal.

Dr. Jung: Está certo. Poderíamos dizer também que este era um aspecto da
sociedade feminina. Embaixo ou atrás da cena, elas se enfurecem contra si
mesmas e umas contra as outras e em cima é a maravilhosa maternidade
sagrada sobre um pedestal para ser adorada, o que elas querem ser ou o
que elas querem fazer acreditar. Pode ser dito assim também, mas é mais
aproveitável ver o significado verdadeiramente simbólico, não a alegoria, e
o significado simbólico, neste caso, seria antes aquilo que dissemos, que
MARIA representa aquele que contém ou é a mãe do PURUSHA e que está
acima da confusão, não perturbada. Ela está completamente livre da
participação mística com a turba enlouquecida. E a paciente mesma não
entende porque esta mulher não participa, pensando que ela deveria sentir-
se mal com aquela cena. “Não tens sentimentos?” Isto é o que as pessoas
com freqüência perguntam umas às outras. “Não tens compaixão?” “Não,
não tenho!” “Mas não vês como se ferem uns aos outros?” “Sim, eles são
uns malditos idiotas!” Porque deveria alguém desperdiçar sentimentos com
tal loucura? Por isso aquela virgem mãe é um símbolo bastante positivo e
penso que este aspecto é mais importante do que a atitude de maternidade
sagrada, que é uma espécie de dito espirituoso medieval.

Assim, ela não entende o sentimento tremendo que se expressa neste


lacônico “Não”. Ela se aborrece e a deixa, obviamente fascinada por aquela
maravilhosa cena.
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Ferindo os Sentimentos

 Visão: (cont.) Eu vi que os homens se cortavam no peito com


facas. Eles também cortavam e espetavam os seios das
mulheres. As mulheres golpeavam os homens nas costas. Eu
segurei uma das mulheres que lutavam e a puxei de lado. Eu
disse: “O que é tudo isso? É horrível. Não posso suportar. Por
que fazes isso?” Ela disse: “Nós espetamos os homens nas
costas porque eles precisam nos conhecer”. Eu disse: “Como
podes suportar tantos ferimentos e ainda viver?” Ela disse: “Eu
te mostrarei.” Ela tirou facas da garganta, lanças e uma cobra
preta venenosa.

Quem é aquela mulher que ela segurava?

Resposta: Ela mesma.

Dr. Jung: Naturalmente, sua participação mística na massa humana, porque


ela acha que está fazendo isso inconscientemente. Mas ela adquiriu
suficiente autocontrole pelo banho de renascimento, pelo menos para
segurar sua “partner” louca pelo pescoço e leva-la de lado e conversar com
ela. Ela realmente se pergunta: “O que é tudo isso?”... A mulher explica,
“Golpeamos os homens pelas cosas porque eles têm que nos conhecer”.

Sugestão: Golpear pelas costas certamente se refere à traição feminina.

Dr. Jung: “Porque eles têm que nos conhecer!” – Esta é agora a mais
ultrajante projeção jamais inventada! Elas têm que conhecer-se a si
mesmas! Mas porque elas não se conhecem a si mesmas, elas dizem que os
homens devem conhecê-las, porque os homens devem fazer todas as coisas
que as mulheres não fazem!

 Visão: (cont.) Afastei-me desgostosa, e voltei para a multidão.


Segurei um homem e lhe perguntei: “Dize-me o que é tudo
isso. Estás coberto de feridas. Tu te feres no peito e as
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mulheres feriram-te nas constas”. Ele disse: “Temos que ser


fortes. Há muito o que buscar. O sangue nos dará força.”. Eu
disse: “Oh, tolo. Não sabes nada? Cura as tuas feridas no fogo
e torna-te forte”. Ele disse: “Coloquei minha cabeça no fogo e
vejo que não tem feridas. Destruir o corpo é força”.

Tentaremos chegar ao sentido do ponto de vista do homem. Golpear as


costas é, certamente, o ataque do inconsciente, atacando do lado mais
fraco... E este é o modo como o Animus de uma mulher pode atacar um
homem. Mas os homens estão se ferindo a si mesmos no peito, o que indica
que eles estão se ferindo na região do coração; eles ferem seus próprios
sentimentos pelos mesmos meios com os quais as mulheres os ferem nas
costas. Vejam, ferir os próprios sentimentos é fazer mal a eles. Agora,
como pode alguém fazer mal aos próprios sentimentos?

Resposta: Sendo demais racional.

Dr. Jung: Naturalmente. Ele mata seu próprio sentimento para ser capaz de
argumentar. Primeiramente, ele suprime seu sentimento e depois vem com
um argumento que irrita particularmente as mulheres. Elas entendem
melhor quando ele chega primeiro com seu sentimento... É difícil entender
porque ele mata seus sentimentos, mas este é o caminho geral do mundo,
as coisas acontecem assim. O ponto de vista do homem é que ele faz isto
para ser forte. Naturalmente é necessário que um homem seja forte no
mundo, de outra forma ele nada pode fazer. Mas de que maneira ferir seus
sentimentos acrescenta algo à sua força?

Sugestão: Ele faz um tremendo esforço para colocar toda a sua libido na
cabeça.

Dr. Jung: O Senhor quer dizer que, matando o sentimento, o Senhor


transforma a libido que estava no sentimento, por aquele famoso processo
de sublimação, em pensamento? Mas esse tipo de pensamento é desordem.
Quando retiramos a libido da sua forma natural de aplicação, ela
instantaneamente forma um sentimento de insatisfação, um sentimento de
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forme ou sede, porque não encontrou sua própria satisfação no seu modo
de aplicação... O pensamento nunca pode satisfazer o sentimento, nem o
sentimento pode satisfazer o pensamento. Com a mulher é o contrário. Ela
toma o pensamento e o força em sentimento. “Não se deve sentir assim em
relação ao marido, deve-se ter bons sentimentos. Eu amo meu marido”.
Mas é um amor vazio insatisfatório, auto-centrado, não há nada nele; está
eternamente esfomeado e sedento, porque aquele apetite só pode ser
satisfeito por um pensamento correto. Por isso as mulheres recuperam-se
intensamente, muitas vezes, quando lhes é permitido pensar todas as
coisas desagradáveis que negaram a si mesmas anteriormente. Assim,
matar o sentimento é procurar como satisfazer aquela libido que não
encontrou sua aplicação adequada ou sua resposta adequada...

Agora, o homem na visão dia: “O sangue nos dará força”. Isto


simplesmente confirma o que dissemos antes. O sangue significa sangue
sacrificial. Ele naturalmente sangra quando fere seu peito, e ele supõe que
isto seja uma espécie de sacrifício que lhe dá força mágica, o que é verdade
até um certo ponto. Certamente é verdade quando alguém dá vazão às
emoções acreditando que elas são sentimentos. O homem comum entende
sentimentos como emoções, fraqueza, complacência e, soltando-as,
certamente ele é fraco, ele é dominado por qualquer coisa. E enquanto um
homem está nesse estado, em MANIPÛRA, este sacrifício é absolutamente
necessário para chegar a ANÃHATA...

Mas a nossa paciente, evidentemente, pretende superar a região de


ANÃHATA, e assim tenta ensinar esse homem a não ser tão tolo
continuando o sacrifício, que uma vez foi necessário como degrau de
MANIPÛRA para ANÃHATA, mas agora não tem sentido. Para deixar
ANÃHATA não deve mais ferir o sentimentos, deve-se atentar para eles.
Vejam, enquanto um animal for mais forte do que nós e puder destruir-nos,
é certo que teremos que lutar e vencê-lo ou matá-lo. Mas se formos mais
fortes, podemos domesticá-lo, e domesticar animais é certamente um
esquema muito melhor do que simplesmente exterminá-los... É sempre o
mesmo antigo assunto de que fala BUDA no seu famoso sermão sobre os
dois caminhos: o caminho do mundo, satisfação dos desejos sem inibição, e
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o caminho do asceta que nega tudo. Ambos são errados; há o caminho do


meio, a “nobre Senda Óctupla”. Viver sem inibições é errado, negar tudo é
igualmente errado; a coisa certa é a que é certa dentro da lei. Assim ele diz
que a Senda Óctupla consiste nas nobres óctuplas virtudes ou atividades, a
devoção certa, o pensar certo, a contemplação certa, a ação certa e assim
por diante.

Agora, este homem, aparentemente, entende o que a nossa paciente quer


dizer e responde: “Eu coloquei minha cabeça no fogo”. Mas observem, não
o corpo. O que significa isso?

Resposta: Ele considerou isto intelectualmente.

Dr. Jung: Sim. Vejam, o fogo é, naturalmente, aquela chama que queima e
purifica tudo; assim, excogitar um certo problema é como se alguém o
estivesse permeando com a chama da inteligência ou com o pensamento
lógico. E isso é o que temos feito; temos pensado fundo em muitas coisas
que nunca fizemos, nem sonharíamos fazer. Há um sem fim de sistemas
que dizem exatamente o que deveria ser, mas ninguém o faz, ninguém
chega lá; mesmo o homem que o prega, não o aplica...

 Visão: (cont.) “Por que feres as mulheres?” Ele me respondeu:


“Para retirar delas o veneno”. Eu disse: “Mas o veneno delas
tem que ser retirado das suas costas”. Ele disse, indignado:
“Oh, não as constas são puras e sagradas para as mulheres”.

Se sonhamos com algo que acontece nas nossas costas, é o inconsciente. E


o demônio que está sempre conosco é a sombra que nos segue, que está
sempre onde os nossos olhos não estão. O inconsciente começa na linha
limítrofe da visão, e para trás disso há a invisibilidade, onde se supõe que
esteja o demônio. Assim, o veneno vem naturalmente daquela região e não
da região do argumento. Mas o homem protesta e diz: “Oh, não, as suas
costas são puras e sagradas”. A que se refere isto?

Resposta: À idealização da mulher.


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Dr. Jung: Exatamente. Isto é típico, não apenas a respeito de mulheres


individuais, mas de nações inteiras, começando com a maternidade
sagrada, a pureza e castidade das mulheres, e tudo isso. É um típico erro
de pensamento saudável. É um otimismo, mas um dos mais destrutivos
tipos de otimismo... Agora aqui chegamos a uma forma de culminação na
visão, que tem agora um aspecto negativo e todos os seus fundamentos em
tradicionais superstições estão sendo expostos, e dever-se-ia deixa-la assim
– com aquele aspecto de um mundo cheio de problemas e diferenças.
Porque pensar sobre todas essas diferenças e mal entendidos entre homens
e mulheres abre um capítulo quase interminável que leva diretamente aos
maiores problemas do nosso tempo. Aparentemente, prevalece agora na
visão a sensação de que algo deveria acontecer, alguma coisa nova deveria
entrar, um ponto de vista inteiramente diferente.

O Touro na Praça do Mercado

 Visão: (cont.) Ele parou de falar e eu vi que trouxeram para a


praça do mercado um grande touro. Seus pés estavam
amarrados e sobre ele havia uma rede forte.

Ninguém esperaria um touro justamente nesse momento. Mas aí está ele...

Observação: Ela deve ter voltado atrás, a uma forma de atitude antiga.

Dr. Jung: Exatamente. O elemento compensador nesse caso é alguma coisa


do reino animal, forte, e mesmo veemente; por isso, seus pés estão
amarrados e há sobre ele uma rede forte. Ainda mais, este é, obviamente,
um touro sacrificial, que significa ao mesmo tempo um Deus. É um Deus
antigo, ou equivalente, um antigo ponto de vista. É uma regressão, poder-
se-ia dizer, ao antigo ponto de vista, e na sentença que se segue ela diz:

 Visão: Eles lhe deram leite para beber e jogaram flores brancas
sobre ele.
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Observação: As cores brancas, e as flores e o leite são símbolos da


inocência.

Dr. Jung: Sim, mas e o touro? Porque deveria ele ser alimentado ou
adorado pela inocência?

Sugestão: O touro representa desejo, o Criador que representa aquilo que


quer.

Dr. Jung: Bem, representa impulsos sem inibição, a veemência do touro.

Pergunta: Não seria o touro um símbolo erótico?

Dr. Jung: Não é um símbolo particularmente erótico, é mais um símbolo da


força sexual bruta.

Observação: O homem feriu seus sentimentos por isso emerge um estado


inferior.

Dr. Jung: Bem, o touro representaria um sentimento inferior, em outras


palavras, uma condição emocional. Por exemplo, aquela manada de búfalos
que tivemos antes é o touro na sua condição selvagem de terrível emoção.
Quando somos apanhados numa onda de dificuldades, quando estamos
ameaçados, ou quando reprimimos alguma coisa, sonhamos que touros nos
perseguem. Somos tremendamente temerosos de tais emoções impulsivas
de MANIPÛRA, porque naturalmente elas ameaçam nossos conseguimentos
em ANÃHATA. Assim, sonhar com touros significa simplesmente uma força
impulsiva que nos assola, pode ser qualquer tipo de paixão, pode ser
sexualidade, mas não necessariamente sexualidade...

Observação: Neste caso o touro, em certo sentido é domesticado, porque


seus pés estão amarrados e há uma rede sobre ele. E as pessoas jogam
flores sobre ele.
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Dr. Jung: Sim, este aspecto é perfeitamente verdadeiro, e seria satisfatório


na medida em que o touro é meramente um animal, selvagem, impulsos
não controlados e assim por diante. O touro amarrado e debaixo de uma
forte rede significa para nós auto-controle – nós temos esses impulsos, mas
eles estão controlados. Mas ele significa mais, e isto se confirma pelo que
vem depois: um estranho sol aparece depois, em conexão com o touro. O
touro, então, é simplesmente a antecipação do sol que vem depois, assim,
obviamente, o touro é também mitológico. De outro modo, ele não seria um
símbolo satisfatório. Estar sob uma rede, com os pés atados... seria a mais
desagradável condição para o soberbo touro, e além do mais seria um mau
símbolo com pés amarrados, um antigo Deus cujos braços ou pernas estão
amarrados não seria apropriado. Assim, vejam, deve haver algum outro
aspecto que funcione como um símbolo reconciliador.

Observação: Há um touro no culto mitraico e seu sacrifício pode fazer


elevar-se o sol.

Dr. Jung: Sim, há a conexão entre o Deus e o touro, e entre o sol e o touro,
ou o sol – ou HELIOS – e MITRA. Mas há outro aspecto importante. O fato é
que, olhando as coisas de um ponto de vista otimista, nós simplesmente
seguimos uma tendência natural, uma espécie de bom sentimento geral,
tudo está bem, não há nada perigoso e mau, e nós somos todos pessoas
muito “direitinhas”. É uma atitude instintiva de bem-estar geral, uma
espécie de ilusão. E o aspecto negativo é também um assunto desses,
emocional-temperamental sem inibições. Do mesmo modo como abraçamos
todo mundo e todo mundo é nosso irmão ou irmã, assim também podemos
ser inimigo de todo mundo, ou todo mundo é nosso inimigo, e podemos
odiar o mundo e sempre assumir as coisas erradas. Em outras palavras,
podemos ser levados por estados de ânimo e por emoções.

Aqui é sugerido: agora como seria se pudéssemos ficar livres de nossas


emoções – no sentido de impulsos e estados de ânimo – assumindo que
elas não são aquilo que nós fazemos, mas que temos que fazer por um
poder superior, que é simbolizado pelo touro? O touro faz isso, ele nos força
a olhar para o mundo daquele despreocupado modo otimista. Ou ele é
20

aquela força que nos faz resmungar e ficar irritados com tudo, que faz odiar
as pessoas. Porque o touro é uma veemente besta selvagem que simboliza
uma falta de controle, exatamente aquilo que somos quando simplesmente
seguimos nossas emoções. Assim, se podemos ir atrás de nossas emoções,
chegamos ao assim chamado princípio divino metafísico transcendente, que
pode ser simbolizado como um Deus na forma de um animal.

Sempre que somos ameaçados de ser dominados por tais emoções ou


estados de ânimo, o Deus se apoderou de nós. Isto seria num sentido
antigo, vejam, onde Deus não é bom nem mau, e onde naturalmente eles
não diriam: assim me apaixonei. Nenhum homem antigo diria isso. Ele foi
atingido por um projétil de EROS, a flecha de EROS o alcançou, um Deus
fizera claramente que sua emoção não era ação sua, mas que um poder
mais forte, um Deus, fizera aquilo. Esta idéia está introduzida aqui de novo
e vamos ver como entra em ação...

O Sol Negro

 Visão: (Cont.) O céu tornou-se escuro. Eu vi um sol negro com


fogo saindo ao redor dele e um braço vermelho estendido de
cada lado. Eu senti que já não podia mais suportar isso e
procurei escapar.

Isto tem que ser um pensamento quase intolerável que emerge. O que
significa o sol negro?

Resposta: Parece ser um eclipse.

Dr. Jung: Exatamente – com uma coroa em volta. Quando a lua passa em
frente ao sol e o obscurece, a coroa é o halo ígneo da atmosfera do sol. O
que significaria aqui o eclipse do sol?

Resposta: O equivalente ao touro amarrado.


21

Dr. Jung: Bem, em certo sentido seria o equivalente, o touro está


incapacitado, o sol foi privado do seu poder. E os Senhores sabem o que
fazem os primitivos quando há eclipse do sol?

Resposta: Eles fazem barulho para espantar os demônios.

Dr. Jung: Sim, e na China eles soltam fogos de artifício e atiram com armas
para afastar os maus espíritos. Mas de outro modo, como reagem? Em que
peculiar condição psicológica entram eles?

Resposta: Pânico.

Dr. Jung: Sim, um pânico absolutamente sem remédio e então as coisas


mais espantosas acontecem. Os primitivos têm tabus sexuais muito
estritos, mas nessa ocasião eles estão muito perturbados e ocorre uma
absoluta promiscuidade; eles saem da sua forma, desintegram-se
instantaneamente, porque a coisa impensável aconteceu. É como se a
garantia de vida, sua consciência tivesse sido extinta, e eles mergulhassem
na mais profunda inconsciência. Então aqui, o obscurecimento do sol
significa que a consciência da nossa paciente está de certo modo eclipsada.
E aqueles braços estendidos, o que são?

Sugestão: As forças que tentam arrastá-la para a inconsciência.

Dr. Jung: Porque os braços são atributos do sol?

Resposta: Podem ser os seus próprios braços. Ela está sendo consumida em
chamas.

Dr. Jung: Pensa que ela está sendo arrastada para o inconsciente e que
então os seus braços estendidos apareceriam? Bem isto é perfeitamente
verídico. Mas aqui eles certamente aparecem como atributos do sol que
está obscurecido, transformado no seu próprio oposto: em vez de emanar
calor, o está absorvendo... A escuridão não doa, mas suga e traga, assim
ela está ameaçada de ser envolvida por aqueles braços de morte. Agora,
22

porque depois desse simbolismo do touro uma coisa dessas a estaria


ameaçando? O que significaria, na realidade, ser tragada pela escuridão?
Pelo sol negro?...

Resposta: Insanidade.

Dr. Jung: É evidente. Vejam, o inconsciente é inteiramente caótico, caótico


e cósmico, ele é os opostos; mas o caráter caótico é tão impressivo que
qualquer pessoa possuída pelo inconsciente – quem não tem uma certa
quota de luz – é caótica; isto é, maravilhosamente obediente à lei, mas
poderíamos chama-la de lunática, porque ela faria coisas bem simbólicas.
Certamente não seria normal de modo algum, porque estaria numa
condição delirante inconsciente, irresponsável. Assim, este é um momento
crítico para nossa paciente, ela está ameaçada por um momento de
insanidade, e é por isso que ela tenta escapar. Agora, o que,
particularmente, a conduziria para a loucura?

Observação: Ela não foi capaz de entender o touro; por isso o Animus a
agarrou e possuiu de novo.

Dr. Jung: Sim, esta é uma colocação acertada, mas não explica
inteiramente. Lembram-se que o touro foi trazido par a praça do mercado
como uma espécie de resposta a toda aquela insensatez sofrida que estava
acontecendo. O inconsciente diz, mas o que há com o touro, o poder e o
centro da vida, a consciência – porque deveriam as pessoas estar nessa
inconsciência tão infernal e comportarem-se como loucas?... Então o brilho
do sol é amarrado e uma rede é estendida sobre ele. Mesmo assim, alguma
coisa ocorreu, de outro modo ela não estaria tomada por este pânico
inconsciente; não haveria a ameaça de insanidade se esta visão do touro
não significasse tanta coisa. Mas podem ver em que extensão a insanidade
poderia aparecer aqui? Eu admito que esta não é uma boa fantasia, é como
um mau sonho, um sonho mal feito.

Sugestão: Se levamos em conta sua situação atual, voltando para a


América, ela me parece como essas pessoas que estão à frente no futuro, e
23

agora ela está sendo jogada de volta às pessoas que estão para trás. Essa
perda dos anos à frente, poder-se-ia dizer, é o que acontece a ela agora.
Ela está ameaçada de cair de novo no passado, na situação em que se
encontrava antes de ser analisada, o que para ela era alguma coisa como
uma situação louca – isto é, ela estava neurótica, provavelmente, e por isso
veio para a análise.

Dr. Jung: Sim, e depois de uma situação neurótica há uma possibilidade


maior de se tornar psicótico. Regredir depois da análise é muito pior do que
ter uma neurose comum, isto é, leva, em comparação. Quanto mais
sabemos, mais perigoso é, não podemos mais brincar com fogo...

Os Homens no Porão Escuro

 Visão: (cont.) Entrei numa casa e desci para um porão escuro.

Este é um simbolismo muito típico. Como o interpretariam?

Sugestão: Eu diria que ela voluntariamente entrou no inconsciente para


conseguir um renascimento.

Dr. Jung: O Senhor toma o porão como o inconsciente. Isto é muito certo,
só que há o pequeno problema de termos dito justamente que o sol negro
era o inconsciente.

Resposta: É uma mandala protetora.

Dr. Jung: Exatamente. Nesta condição não seria suficiente dizer que ela
entra no inconsciente. Vejam, o inconsciente aqui é o obscurecimento
daquele sol negro, é um fato cósmico, é o inconsciente coletivo no seu
vasto aspecto universal, e isto ameaça... sugá-la e despersonalizá-la
completamente. Agora, contra isso, ela desce como se estivesse indo para o
inconsciente. Dizer que é o inconsciente é bem correto, mas é um
inconsciente muito especial. Agora dizem que é de novo a mandala. Isto é
24

verdade. A mandala é feita pelo homem, é o sulco sagrado construído ao


redor de alguém, e isto seria uma casa. As casas primitivas, as primeiras
casas construídas pelo homem, realmente têm o simbolismo da mandala...

Quando nossa paciente entra neste lugar, significa que ela retorna a si
mesma, àquela pequena unidade vivente que ela representa; ela é aquela
casa feita por mão humana, ela chega lá, aonde ela é desligada e protegida
contra os horrores circundantes...

 Visão: (cont.) Sentados em volta de um fogo, vi um círculo de


homens velhos.

Isto confirma aquilo de que falávamos antes, é realmente uma mandala e


aqui estão as pessoas sentadas em círculo e contemplando o fogo.

 Visão: (cont.) Eles me disseram: “Viste os pássaros?” Eu disse:


“Sim, eles me feriram, mas fui curada. Não há fogo curador na
cidade? Tudo parece sangue e destruição.”

Quem são estes velhos lá embaixo?

Resposta: Um comitê de Animus.

Dr. Jung: Sim, uma corte de justiça ou qualquer coisa desse tipo, sentada
nas profundezas. Vejam, isto mostra outra vez que ela entra no
inconsciente, entra na mandala, porque não se supõe que tudo na mandala
seja consciente... Agora, estes velhos são, cada um deles um Animus, uma
típica coleção. E o Animus – podemos falar dele no singular – a pergunta a
ela: “Tu viste as aves?” Porque se pergunta uma coisa dessas?

Pergunta: As aves – sendo pensamentos – poderiam vir deles?

Dr. Jung: Bem, há uma peculiar conexão inconsciente entre o Animus e


aquelas aves. Aves são pensamentos, seres do ar, e o Animus é o que
produz pensamentos, ou consiste neles. Ocasionalmente ele é alado, uma
25

espécie de pássaro. Assim, aprendemos aqui que estes pensamentos-


pássaros são produtos diretos do Animus, ou, em todo caso, o Animus tem
a ver com eles. Então ela diz: “Sim, elas me feriram, mas eu fui curada”. A
que se refere isto?

Sugestão: Se se refere às aves na visão dos arranha-céus, não foram as


aves que foram feridas?

Dr. Jung: Sim, mas as aves a feriram também, seu sangue caiu sobre ela e
a feriu. Que pensamentos-Animus podem ferir é um fato bem conhecido, e
uma mulher que tem pensamentos-Animus está sempre se ferindo. Porque
o Animus está sempre longe do alvo. De uma maneira peculiar, ele está
sempre contra a vida. Ele não é a expressão da vida; ele é com freqüência,
alguma coisa diretamente contra o sentimento, os Senhores sabem disto
muito bem. Por isso, aquelas aves devem ser, realmente, pensamentos-
Animus que a feriram. Mas ela pôde se proteger; ela foi curada pelo fogo.

Observação: Eu pensei que ela tinha sido curada pela água da rocha azul.

Dr. Jung: Ah, sim! Mas também pelo fogo, ela se identifica agora com o
ídolo que foi curado pelo fogo; isto se refere àquele fogo que faz ficar forte,
que produz o ouro puro; por isso ela diz: “Não há fogo curador na cidade?”
Também aqueles Animi estão sentados ao redor do fogo.

O Fogo Curador

Agora o que significaria o fogo ter um efeito curador? Aqui poderíamos


recorrer à filosofia tântrica. Vejam, o Animus e as aves são seres do ar: o ar
pertence a ANÃHATA, o centro acima do diafragma, e abaixo do diafragma
está MANIPÛRA, o centro do fogo, o centro emocional. Agora, em ANÃHATA
temos uma peculiar divisão de pensamento e sentimento. Vejam: o
pensamento seria praticamente idêntico ao ar, ao pneuma, o alento da vida,
aos pulmões, em outras palavras, enquanto o sentimento significaria o
coração. Assim, já que os órgãos são divididos, embora juntos, há a
26

possibilidade de um conflito. Também porque a consciência está lá, e onde


quer que haja consciência objetiva, discernimento, há divisão. Por isso,
descobrimos em ANÃHATA, pela primeira vez, a possibilidade de conflito,
que podemos ter m conflito dentro de nós.

Quando estamos em MANIPÛRA não temos conflito, porque somos o conflito


mesmo, apenas fluímos com a água ou o fogo; podemos explodir em dez
mil pedaços, a dinda somos um conosco mesmos, porque não há centro de
onde julgar, não há nada entre os pares-opostos. Porque somos tudo,
somos também os pares-opostos, somos isto e aquilo quando somos
emocionais. Não sou eu que realizo, mas a emoção. Há pessoas que estão
sempre buscando emoções porque sem elas não se sentem a si mesmas
como vivas; elas têm quase a mania de criar emoções, de despertar
emoções se não há alguma, para ter a sensação de viver. Tais pessoas
precisam sempre ter uma sensação ou causar uma sensação, ter uma
emoção ou causar uma emoção, de outra forma elas não existem. Certas
mulheres são assim, elas precisam sempre dizer coisas desagradáveis para
atiçar as emoções de alguém; então elas vivem, e se não conseguem isso
ficam desapontadas, não conseguiram seu propósito.

O fogo aqui, então, tem o sentido do centro MANIPÛRA, e isto tem um


efeito curador porque lá as coisas que estavam separadas e eram
contraditórias são fundidas, é um fogo que funde: há aí também a idéia do
forno alquímico em que as substâncias são misturadas e derretidas. Assim,
podemos descer até a água abismal para ser curados, sendo a água
batismal o “uterus resurrectionis” em que nos tornamos de novo inteiros;
podemos entrar no fogo. Por isso JOÃO BATISTA disse de CRISTO: “Ele vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo”. As duas formas de batismo
referem-se aos dois centros inferiores; no fogo podemos ser feitos inteiros,
e a água é ainda melhor porque está mais profundamente embaixo. Não
poderíamos ir mais adiante sem entrar na terra, e então estaríamos
praticamente mortos. A morte tem sido entendida como a cura completa;
quando SÓCRATES morreu, por exemplo, ele disse que deveriam sacrificar
um galo para ESCULÁPIO, o deus dos médicos, por te-lo curado. Mas a
morte figurativa na água, e a morte ou o ferir-se no fogo também
27

significam regeneração, porque voltar a algum estado onde não há


consciência, é regeneração.

 Visão: (cont.) E os velhos responderam: “Em muitas cavernas


sob a terra há fogos como estes.”

Em outras palavras, há tais centros de emoções incandescentes, mas eles


não são expostos; lá pode haver cura, mas eles são secretos. Os velhos
continuam:

 Visão: (cont.) “Há muito sangue, mas ele é necessário. Os


fogos são alimentados por coágulos de sangue trazidos da
praça do mercado”.

Isto é claro. Naturalmente, o fogo emocional é alimentado pelo sangue dos


ferimentos que as pessoas recebem de suas emoções, e que há muitos
desses fogos é também verdade. Nós nos esquecemos que em algum ponto
existe um tal lugar, um fogo que poderia curas, se apenas fosse
conhecido...

 Visão: (cont.) Eu disse aos velhos: “Vós sois velhos e não


fazeis mais nada além de esperar. Pareceis não ter vida. Vou
sair e voltar de novo para a praça do mercado”. Saí. A praça do
mercado estava deserta. Tudo estava no escuro. Eu fiquei
sozinha.

A Procissão dos Mortos

Supõe-se que a praça do mercado seja um lugar cheio de vida, milhares de


pessoas indo e vindo, mas aqui ela é sombria e vazia. O que significa isso?

Resposta: Sua libido recolheu-se.


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Dr. Jung: Exatamente. E então nada acontece. Tudo é escuro e sem vida.
Observa-se isso especialmente em casos de melancolia, bem como nas
depressões comuns; o mundo todo parece ser sem vida, as pessoas
parecem estar mortas. Na melancolia isto vai quase tão longe como uma
ilusão. Certa vez um homem me disse que todo o mundo parecia irreal,
como uma reprodução fotográfica, não era nem mesmo plástico, apenas
achatado e sem cor nem movimento, como se tudo estivesse congelado e
endurecido. Assim, quando esta mulher sai para o aberto, descobre que sua
libido está retirada do mundo, ele sente que está só. Mas ela relata:

 Visão: Os grandes edifícios ainda se chocavam e de novo eu vi


as aves vermelhas laceradas gritando par o céu. Soprou um
vento forte.

Já falamos sobre estas aves, mas o que denotaria o soprar de um vento


forte?

Resposta: Espírito.

Dr. Jung: Sim, o vento é um símbolo do espírito ou PNEUMA. Mas o que


significa o soprar de um forte espírito?

Comentário: É a libido que faltava. Não há movimento ou vida no aspecto


STHULA (vida concreta), mas no aspecto SUKSMA (vida recolhida) ainda há
vida.

Dr. Jung: Isto é perfeitamente certo. Sua libido se retirou do aspecto


STHULA da existência – Mrs. SMITH e Mr. JONES e a vida concreta como ela
é no seu aspecto comum – tudo está vazio. A única coisa que ainda tem
vida é outro aspecto.

 Visão: (cont.) Eu vi, serpenteando através das ruas, uma


procissão fúnebre.
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Vejam, o movimento nas ruas foi chamado primeiro “vento” e agora o


inconsciente tenta formular isso melhor. Porque o vento é invisível e
bastante indistinto, assim tem-se a sensação de que aquele espírito ou
fenômeno dinâmico deveria ser captado na forma de uma visão. E aqui, em
vez do vento ela vê o movimento numa forma visível, como uma procissão
fúnebre serpenteando pelas ruas.

 Visão: (cont.) Todos os homens estavam de preto com capuzes


pretos. Carregavam um ataúde que era seguido por homens
com tochas. Ergui os braços para fazê-los parar. Eles pararam.
Eu disse: “Eu queria ver o corpo”. Ergui a mortalha preta.
Debaixo dela não havia nada. Eu gritei perguntando: “Onde
está o morto?”. Então os homens bradaram em voz estridente
e horrível: “Vê, nós somos o morto”.

Eles estão, obviamente, celebrando seu próprio funeral, eles são os


cadáveres carregando um ataúde vazio; eles estão todos mortos e vão
sepultar-se a si mesmos como sendo seus próprios cadáveres...

 Visão: (cont.) Eles retiraram seus capuzes e eu vi suas faces


tristes e espectrais à luz bruxuleante das tochas. Eles
disseram: “O solo debaixo dos nossos pés é quente. Debaixo
de nós deve haver vida, mas nós estamos mortos”.

Isto demonstra muito claramente o caráter da situação. As coisas que estão


visíveis na superfície estão mortas, sua libido retirou-se delas, e
naturalmente esta libido tem que ser encontrada em algum outro lugar,
porque não pode desaparecer, assim deve estar por baixo, porque,
instintivamente, sempre pensamos do inconsciente como estando em baixo,
na terra, por exemplo, ou no mar. E os mortos dizem que o chão sob seus
pés é quente, o que significa que há fogo embaixo, uma tremenda
acumulação de energia ou tensão. Então, de um modo não muito polido, ela
os exorta a cavar.
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 Visão: (cont.) Eu disse: “Cavai, tolos.” Eles começaram a


cavar. De repente as pedras da pavimentação racharam e
explodiram e um grande fogo irrompeu da terra, com fúria
vulcânica, e lançou para cima bestas selvagens e estranhas
formas meio humanas. Os homens gritaram e correram. Os
animais selvagens rondavam pelas ruas silenciosas.

Como interpretariam isso?

Sugestão: Tudo que foi reprimido pela era cristã eclode outra vez de baixo.

Dr. Jung: Digamos, a última era cristã na forma da fase vitoriana, cujo Deus
era a respeitabilidade... Nosso ideal de respeitabilidade indica que de modo
algum somos respeitáveis. Os gregos e romanos diziam dos persas que eles
eram os cães mais sujos que jamais existiram e por isso tinham o mais alto
ideal de pureza, a mais pura religião. E os cristãos têm o mais cruel e
sanguinário registro jamais conhecido e por isso têm um ideal de amor.
Vejam o que fizeram no Oriente, sob o nome de “cruzadas”. Nas últimas
cruzadas nem mesmo foram a Jerusalém, mas a Bizâncio, pelos tesouros
imperiais de lá. Atravessaram os Bálcãs e a Ásia Menor e queimaram e
saquearam por toda a parte. O que fizemos para o mundo em geral é sem
precedentes, e tudo em nome de JESUS.

Bem, embaixo da superfície respeitável há fogo, e lá existem bestas


selvagens e estranhas formas semi-humanas... Vejam, o progresso trouxe à
existência tais monstruosidades, por que avançou apenas num lado,
enquanto o outro foi deixado no escuro, subdesenvolvido. Assim, o
intelecto, por exemplo, podia produzir monstruosidades, as mais
monstruosas convicções ou invenções; e ao sentimento foi permitido
desenvolver monstruosidades porque na antiguidade não foi
contrabalançado pela mente; tudo saiu fora das proporções e isso criou os
seres mais infernais...

Acontece que a natureza só pode ser completamente inconsciente; com a


consciência começa o desvio do curso da natureza. Por isso temos tanta
31

dificuldade com nossa natureza; nós sempre desviamos, e assim temos


sempre que tentar encontrara o caminho de volta. Nossa consciência tenta
sempre persuadir-nos de que podemos ir bem longe. Nossa civilização
inteira tem sido uma tentativa gigantesca de forçar a natureza aos nossos
esquemas racionais. A era da máquina foi uma tentativa de substituição,
como se pudéssemos escapar da inconsciência da natureza. O racionalismo
consciente foi longe demais e teve que voltar: era uma monstruosidade que
causou um caos extraordinário. Como vêem, esse fragmento de visão
mostra que não apenas o instinto animal foi perdido e suprimido, mas
também uma introvisão do verdadeiro caráter de nossas tentativas
conscientes para dominar a natureza; isso realmente produz
perversidades...

Podemos ver essas coisas no aspecto STHULA das atuais condições na


Alemanha, podem ser vistas grandes serpentes, e eclosão do dinamismo
inconsciente, e os animais errantes – tudo isso acontece na realidade. Os
instintos mais selvagens têm sido soltos nas ruas, e agora a Alemanha está
tentando lidar com esta irrupção do inconsciente coletivo. E a América não
está longe disso; o que os “farmers” estão fazendo lá atualmente não está
tão longe do que acontece na Alemanha; talvez a América será outra nação
que terá que lidar com uma irrupção dessas.

 Visão: (cont.) O fogo rugindo consumiu o ataúde.

O ataúde é o símbolo, poderia ser dito que expressa o sentido, ou que


caracteriza a procissão fúnebre. E essa idéia é consumida pelo fogo. Já não
se questiona sobre as coisas que passarão, elas estão consumidas. O que
importa agora é o fogo, ou as bestas que rondam.

O Caminho Individual

 Visão: (cont.) Eu me afastei, pensando se a cidade inteira seria


consumida. Todas as ruas convergiam para um estreito
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caminho, e eu me encontrei de novo descendo pela senda


preta com altas rochas pretas de ambos os lados.

Que caminho é este? Já o vimos muitas vezes.

Comentário: Isto soa como a senda serpentina do inconsciente, o caminho


espiral.

Dr. Jung: Mas o inconsciente tem muitos caminhos; esta é uma senda
muito específica.

Pergunta: O caminho do TAO?

Dr. Jung: Não necessariamente. Não, esta é a sua senda própria, em que
ela está cercada por altas rochas de ambos os lados; não há escapatória,
este é o seu caminho inevitável. Agora, o que significa todas estas ruas em
Nova Iorque convergindo para um caminho?

Sugestão: Isto significa que Nova Iorque inteira não lhe diz respeito
realmente, mas apenas o caminho individual é importante para ela.

Dr. Jung: E isto não é um egocentrismo mórbido?

Resposta: Ela contém todos aqueles caminhos.

Dr. Jung: Isto seria uma inflação infernal, eu diria.

Sugestão: Ou ela pode estar contida neles, todos aqueles vários caminhos
convergem em um... Se todas as ruas convergem para um caminho, é o
próprio caminho dela e este está dentro da situação coletiva.

Dr. Jung: Sim... Só podemos chegar a entender um movimento coletivo


quando chegamos a entender o nosso próprio caminho individual dentro
daquele movimento. A despeito do fato de que nosso corpo e nossa
consciência pessoal estão se movendo, deveríamos ser capazes de parar
33

mentalmente e perguntar a nós mesmos o que sentimos e pensamos sobre


a quilo – o que significa, e o que está este fulano aqui fazendo e dizendo.
Descobrimos então o aspecto SUKSMA disto e então podemos dizer que
este é o nosso caminho individual...

Nossa paciente, então, confronta-se com a senda individual, aquele


inescapável caminho que conduz mais para baixo. Ela diz:

 Visão: (cont.) Eu me sentei triste e chorando.

Isto não parece muito esperançoso, ela obviamente não gosta desta senda.
É verdade que é a coisa mais fácil no mundo ser carregado pela
coletividade, ser movido pelo vento, porque assim não se tem que fazer um
esforço, pode-se ser levado com a massa. De certo modo isto é até bem
bonito, embora excessivamente perigoso, porque um movimento desses
sempre leva a um lugar de estagnação; todas as águas correm para baixo,
para um lugar de estagnação, e assim acontece com todos aqueles
movimentos cegos, eles nunca conduzem para cima, mas sempre para
baixo.

Nossa paciente confronta-se aqui, obviamente, com uma difícil tarefa. Ela
tem que ver o fenômeno inteiro que a cerca, o movimento coletivo, como
sua experiência individual, na qual ela está presa. Já não é mais a
experiência das massas; é a sua própria experiência. Ela tem que começar
a pensar para onde isto leva; ela tem que sentar-se e refletir sobre isso.
Agora ela continua:

 Visão: (cont.) Eu tirei a estrela do meu peito e a coloquei no


chão e me ajoelhei diante dela.

Aqui ficamos sabendo que a estrela estava no seu peito. E a quê era
idêntica lá?

Resposta: À chama de ANÃHATA.


34

Dr. Jung: Sim, e a chama na Yoga Tântrica e a visão de ISHVARA, é o


germe do princípio supremo do próprio SHIVA, o Deus, mas na sua forma
mais individual; a centelha individual de luz seria a estrela. Sabem, há
outros sinônimos em outros sistemas religiosos. Nos hinos védicos, por
exemplo, este centro não é chamado SHIVA, mas HIRANYACARBHA, que
significa o germe dourado. Ele é também chamado a criança dourada, ou o
ovo dourado. Naturalmente, comparado com o sol, ele é uma estrela. A
estrela matutina é muitas vezes idêntica a essa estrela. Agora, ela tira a
estrela do seu peito e a coloca no chão. O que significa isso? Como alguém
pode tirar do peito o SELF e ajoelhar-se diante dele como se fosse um
ídolo?

Sugestão: É para vê-lo, como se ele se tornasse uma espécie de objeto dela
mesma.

Dr. Jung: Sim, ela objetiva aquela idéia ou intuição do SELF em uma forma
visível e faz dele um ídolo, uma coisa que para nós é quase pagã, porque
atuamos sob a impressão de que não deveríamos fazer imagens das coisas
sagradas, da idéia de DEUS, por exemplo, porque isso seria uma idolatria.
No entanto, aparentemente, seu inconsciente está bem a favor disso...

 Visão: (cont.) Eu vi aros dentados pretos e vermelhos ao redor


dela, movendo-se para dentro dela e tentando cortá-la em
pedaços.

...Assim, os poderes de tal movimento são todos contra a iluminação, e por


isso as pessoas nesta situação dificilmente têm tempo de ouvir ou refletir
porque são demais presas por isso... O primeiro efeito, então, é que todas
aquelas focas destrutivas fluem para a imagem e a ameaçam com
destruição, como se ela dissesse a si mesma: Oh! Bem, em toda essa
confusão, o que significa isso, afinal de contas? É insensatez, e não
funciona. Encontramos todas essas reações belamente descritas em livros
religiosos. Mas agora vemos que este influxo de forças destrutivas tem um
efeito positivo.
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 Visão: (cont.) Então eu vi crescer de um círculo uma nova


pálida estrela azul que controlou os dentes vermelhos e pretos.
O círculo cresceu mais forte e mais distinto.

Os aros dentados são agora dentes. E aqui temos de novo a construção da


mandala, que com certeza, era particularmente necessária aqui. Aquelas
pontas que ameaçavam a estrela são agora, muito claramente goelas
demoníacas, contra as quais ela, ou sua estrela, está protegida pelo círculo
mágico que cresce mais forte e mais distinto...

 Visão: (cont.) Gritando de alívio coloquei de novo a estrela no


meu peito, sabendo que ela tinha crescido em segurança e
poder. Comecei a descer a senda.

Podem ver que um mágico rito de entrada aconteceu aqui. Sua tarefa era
descer o caminho preto para a incerteza e a aventura. Naturalmente ela
tinha medo e hesitava. Então, para juntar todas as suas forças ela executou
um “rito de entrada”. Ela realiza aquele culto do distanciamento, produzindo
o distanciamento de si mesma para ficar livre da investida de todos os
perigos do caminho. Porque naquela senda descendente, ela está entrando
na escuridão do inconsciente onde, praticamente, ela não é mais ela
mesma, onde ela mesma é transformada em uma espécie de demônio e
onde os demônios a atacarão...

O Homem Macaco e o Anão

Agora, depois de ter acabado este “rito de entrada”, ela está aparentemente
preparada para encontrar os riscos da escuridão. Mas, nem bem está ela
naquele caminho para baixo outra vez eis que:

 Visão: (cont.) De repente, um cavalo preto surgiu com


estrondo. Sobre ele montava um homem nu e peludo. Da
cintura para baixo ele tinha a pele preta de um animal.
36

Quem poderia ser aquele tipo? Ele não é bem humano.

Sugestão: Parece PAN.

Dr. Jung: Sim, já tivemos essa figura, ela fez um desenho onde adorava
PAN (página 42 do original; página 58 do digitado, parte II) – uma espécie
de fauno com pernas hirsutas de animal. Aqui assemelha-se mais a um
símio, porque ela não fala de cascos...

Comentário: Seu poder animal, sua libido, não aparecerá em manifestações


humanas, mas no mundo animal, porque toda a energia humana foi
recolhida na estrela.

Dr. Jung: Bem, eu nem diria o mundo animal. Seria humano também,
alguma coisa maligna... Agora, o homem não falaria dessas coisas se elas
não existissem e não se mostrassem de uma forma psicológica... Se alguém
é uma pessoa ardilosa, uma espécie de malandro natural, então ele é
possuído por um capeta, ele tem toda aquela qualidade maligna que
consiste me fazer uma coisa justamente de modo avesso. É possível
descobrir na análise também, pessoas aparentemente muito adequadas,
mas não suficientemente certas. Elas distorcem as coisas só um pouquinho,
mas de um modo particularmente desalmado.

 Visão: (cont.) Ele me ergueu gritando: “Por que andar? Eu te


mostro o caminho”. Eu me livrei dele e segurando as rédeas do
cavalo dei-lhe um repelão violento. Cavalo e cavaleiro foram
para o chão. O homem livrou-se do cavalo. Aproximando-se de
mim, transformou-se num pequeno anão preto.

Ela “despossessa” seu cavalo, assim tem ela mesma uma chance de
controlar de novo o cavalo, sua própria libido. Então, imediatamente, o
demônio muda sua forma, ele é agora um pequeno anão preto. O que
significa isso?
37

Resposta: É muito menos perigoso e muito mais útil; geralmente um anão


está fazendo um tipo de serviço inferior, mas útil.

Dr. Jung: Sim, eles são indiferentes, poderíamos dizer. Eles trabalham tanto
a favor como contra o homem. Eles também são capetas, mas de natureza
menos demoníaca; nós não usaríamos a palavra demônio para um anão.
Um anão é um poder subordinado, simbolizando também um fato
subordinado na psicologia humana, enquanto um demônio é considerado
quase superior ao homem. Um demônio enche alguém de pânico, enquanto
com um anão isso não acontece. Um anão é apenas um complexo
autônomo no inconsciente de alguém, digamos, que pode ser controlado.
Agora, já que ela mostrou certo brio na situação, porque ela interferiu e não
apenas aceitou o fato de um demônio montado na sua libido, ela o reduz ao
tamanho de um anão.

Assim, essa transformação da forma poderosa do Animus em uma forma


subordinada, traz consigo uma certa esperança, isto é, que tal poder não a
controlará necessariamente, nem trabalhará contra os seus interesses. É
muito mais manejável, poderia até trabalhar a seu favor. Mas, então ele diz
a ela:

 Visão: (cont.) “Tu me derrubaste do meu cavalo, mas eu te


atormentarei, embora transformado num anão. Eu vou rasgar
tuas roupas”.

Aqui torna-se óbvio que o não está muito ressentido. Ele não gosta de ser
despotencializado e de um modo bastante débil tenta sua vingança. O que
significa isto? É uma espécie de metáfora.

Resposta: Ele está rasgando sua Persona.

Dr. Jung: Sim, suas roupas são sua Persona, a atitude pela qual ela tenta
adaptar-se às suas condições de coletividade, e ele vai perturbá-la nisso.
38

Como vai mostrar-se isso? Podem dar-me alguns exemplos em que um


anão desarruma as vestes de uma dama?

Sugestão: Ela quer estar numa situação de responsabilidade, mas o anão


levará isso para um caminho bem diferente.

Dr. Jung: Sim, se ela quer mostrar dignidade, então alguma coisa acontece
que perturba completamente esta atitude. Mas eu gostaria de ouvir um
caso específico, não generalidades.

Resposta: Lapsos de língua.

Dr. Jung: Naturalmente. Por exemplo, se queremos expressar nossa


simpatia quando alguém morreu, e dizemos: “Eu me congratulo” – coisas
assim. O demônio põe as palavras erradas na nossa boca, e nós criamos
situações terrivelmente perturbadoras. Temos intenções amistosas, mas se
um tal demônio está por aí, ele certamente insinuará a coisa errada. Em
amizades e relacionamentos amorosos ele desempenha um papel enorme.
Poderão lembrar-se de muitos exemplos da própria experiência, fazendo a
coisa errada, dizendo a coisa errada, tendo os sentimentos errados. Isto
tudo é sintomatologia do capeta...

Bem, nossa paciente agora só conseguiu reduzir o demônio a um malévolo


anão que ameaça destruir ou pelo menos perturbar sua Persona. A
presença de tal anão mostra-se também num desarranjo muito embaraçoso
das nossas roupas, de modo que parecemos ridículos. Então ela de novo o
coloca a força, no seu lugar. Ela diz:

 Visão: (cont.) “Levanta-te e assume tua forma adequada. Tens


a estatura de um homem. Teu cavalo está no chão. Tu agora
vais caminhar e me mostrarás o caminho para baixo, para tua
terra. Eu estive muito tempo afastada.”

Vejam o anão é quase invisível, uma presença espectral que não está sob
seu controle. Mas se o Animus assumisse uma forma humana, a estatura de
39

um homem, isto seria alguma coisa visível e humana, com a qual ela
poderia estabelecer certa comunicação ou relacionamento. “Teu cavalo está
caído”, significa que ele já não tem mais sua libido, mas ele tem a sua
própria, e sua própria dignidade e pode caminhar como ela caminha. Ele
tem que estar em termos de igualdade com ela, e mostrar-lhe o caminho
para baixo, para a sua terra.

É bem claro que ser um homem comum significa ser uma mente comum, a
própria mente dela, que ela pode controlar e que está coordenada com ela.
Se sua mente tivesse um poder indomado isto seria devido ao fato de que
sua libido se deslocara para o Animus, ela teria feito de sua mente um
Animus. Sua mente é uma função em si mesma, mas quando há muita
libido ela se torna um Animus, fica inflada, torna-se autônoma e assim a
tem no seu poder. Mas ela agora está num nível igual com sua própria
mente, que pode funcionar, ela está claramente tentando usar sua própria
mente como seu guia. E qual é a “terra” desta mente normal?

Resposta: A realidade.

Dr. Jung: A realidade como ela é, a realidade da qual ela esteve longo
tempo afastada. Isto nada tem a ver com o inconsciente. Se houvesse um
Animus sua “terra” seria o inconsciente coletivo, porque o Animus é
normalmente uma função, poder-se-ia dizer a fímbria semi-consciente de
sua mente, através da qual ela percebe o inconsciente coletivo.

Pergunta: Então essa figura não é mais um Animus?

Dr. Jung: Ela é agora a sua própria mente. É também possível que esta
parte de sua mente esteja projetada em um homem real.

Sugestão: torna-se então aquilo que o Senhor chama a função


transcendente.

Dr. Jung: Sim, o Animus carregaria a função transcendente. Seria uma


espécie de psicopompo, porque o Animus e a mente de uma mulher são
40

aquelas funções nas quais os dados do inconsciente e do consciente podem


ser unidos. Por isso o elemento LOGOS seria o carregador da função
transcendente em uma mulher, como o EROS teria esta função num
homem. O EROS dele, o seu pessoal estado de ser relacionado, junto com a
Anima, carregam o símbolo que une os dados do inconsciente e do
consciente, e assim torna possível a função transcendente.

A situação, então, é esta: ela se decidiu a tentar resolver o problema da


América. Ela quer entrar no jogo e ser razoável quanto a isso e manter-se
distante de toda sorte de possessões. Ela tem as melhores intenções de não
ser dominada pelo Animus.

O Emergir da Serpente

 Visão: A criatura tornou-se um homem. Ele não tinha mais os


pelos pretos de um animal. Depois que eu falei, vi aparecer
sobre o peito e os braços dele uma ferida sangrenta entalhada
na forma de uma cruz. Lágrimas correram pelas suas faces. Ele
inclinou a cabeça e caminhou à minha frente para me conduzir
para baixo, no caminho preto e rochoso.

O que significa esta ferida na forma de uma cruz?

Resposta: Significa que ela empenhou-se na completude do crescimento


psíquico. A cruz, com seus quatro braços indicaria as quatro funções, e
agora ela convocou o Animus humano, sua própria mente, para o trabalho
de fazer de si mesmo um ser humano completo. E ele, naturalmente, chora
porque este é um empenho extremamente difícil e a dor está registrada
nesta mente que é sua parte menos consciente.

Dr. Jung: Isto é bem certo. Esta passagem confirma aquilo que estivemos
dizendo, a mente e o Animus juntos carregam o símbolo. O símbolo é a cruz
e está marcada no seu peito – a sua mente está marcada pelo símbolo. Esta
é uma condição dolorosa, aparentemente, porque carregar o símbolo é uma
41

espécie de TRANSITUS. Lembrem-se, o conceito de TRANSITUS é uma


parte do ritual do mistério; é o carregar do símbolo ou o carregar de Deus...

 Visão: (cont.) De repente eu senti e vi que estávamos


caminhando sobre as costas de uma grande serpente. Eu disse
ao homem: “Estamos andando sobre as costas de uma grande
serpente”. Ele respondeu: “Sim, nós pisamos sobre ela”.

...Porque sua consciência cresceu, ela agora descobre que está caminhando
sobre o corpo de uma serpente viva... A serpente é um símbolo tão
sobrepujante que sempre que surge é extraordinariamente significante. Mas
para poder dizer alguma coisa clara e compreensível neste contexto, temos
que nos ater estreitamente à visão atual.

O fato de que eles descobrem que o caminho é uma serpente significa que
aquilo que eles julgavam ser morto e nada mais importante é, na realidade,
uma coisa viva e eles estão caminhando sobre suas costas. Lembram-se
talvez de uma visão anterior em que ela caminhava sobre as costas de
gente viva, os mortos do submundo. Isto é de certo modo semelhante. O
que se pensava ser morto e meramente um meio para os nossos fins é, em
si mesmo, uma meta. Vejam, eles não deviam ter-se colocado contra uma
serpente tão monstruosa, ela poderia tê-los comido, e verão nas partes
subseqüentes da visão que ela é, na realidade, tremendamente viva. Assim,
devemos considerar esta parte da visão como uma informação de que o
caminho inevitável é uma coisa viva em si mesma, autonomamente viva.
Temos uma boa evidência disso nas Sagradas Escrituras.

Observação: “Eu sou o caminho”.

Dr. Jung: Sim, CRISTO era certamente um ser vivo, e ele era a serpente
curadora, a serpente redentora, ao mesmo tempo. Há ainda uma analogia.

Resposta: TAO.
42

Dr. Jung: Sim, e TAO era simbolizado originalmente como um dragão, e a


palavra grega drakon significa uma serpente, uma cobra, não é tão
específica como a nossa palavra dragão, a qual é agora, entre nós, um
conceito mitológico. O sentido grego aparece no famoso verso: “O touro é o
pai da serpente e a serpente é o pai do touro”. Eles são um círculo
completo: o touro representa a primavera, o sol, o emergente princípio
YANG, e a serpente neste caso representa o inverno, a escuridão, a
umidade, o princípio YIN.

Assim, o caminho é uma coisa poderosa; tão logo começamos a mover-nos


sobre ele, é como se fosse realmente vivo. No caminho inevitável, já não é
mais como se fossemos conduzidos por um Animus ou um guia, ou se nos
conduzíssemos a nós mesmos, é como se o caminho mesmo tomasse o
comando...

Encontramos na China o conceito do TAO, que é certamente um conceito


adequado para a harmonia das coisas, o caminho inevitável dos eventos no
céu e na terra. Poderíamos dizer que ele seria o original curso harmonioso
obediente à lei dos eventos: e se o homem vive nele como uma planta ou
como um animal cego, ele está em concordância com os acontecimentos
obedientes à lei. Mas esta não é a condição ideal, não é o que o chinês
chamaria TAO – bem, ele poderia chamá-lo TAO, de certo modo; mas
porque um filósofo só estaria apto a alcançar TAO como o efeito último de
todos os seus esforços filosóficos, se isto fosse tão fácil que qualquer
lagarto ou rato ou cachorro ou qualquer homem primitivo poderia tê-lo?
Vejam esta é justamente a diferença entre a vida na natureza, em
participação mística, onde estamos completamente inconscientes, e a vida
na natureza onde estamos conscientes. Um estado é o estado de pecado, e
o outro é um estado redimido, de acordo com um dito de JESUS, que
infeliz\mente não está contido na Bíblia. É um dito gnóstico de alta
autoridade: “Se sabes o que estás fazendo, és abençoado; se não sabes, és
maldito”. Ele disse isso ao homem que encontrou trabalhando no campo no
dia do Sabat e cometendo com isso, evidentemente, uma terrível
transgressão, porque para o judeu piedoso isso seria um horror, uma
ofensa contra o tabu sagrado do Sabat.
43

Agora, isso é o que o TAO significa para o filósofo chinês. É o


conseguimento mais alto de um homem para ser consciente de si mesmo,
da natureza, e a consciência suprema é viver de modo que não se ofendam
as ordenações do céu, assim que de novo se está em harmonia.
Chegar da condição inconsciente à consciência é o inteiro tremendo
conseguimento; como no dito de JESUS, e esta mudança nos permite ver
que toda avaliação moral ou ética das coisas é um mero interlúdio, um
passo no desenvolvimento da consciência...

 Visão: (cont.) Segurei o homem pelo braço e puxei-o para o


lado, de modo que ficamos com as costas pressionadas contra
as altas rochas, e os pés numa borda estreita de rocha.

...Agora, puxando o Animus de cima da serpente, ela realmente interrompe


aquele caminho vivo, e eles chegam a uma parada, contra as rochas do
caminho. A rocha, naturalmente, é muito matéria: é o limite definido do
caminho; é a delimitação do espaço no qual se está confinado. Assim,
podemos concluir que ela não está querendo continuar o caminho que
levaria para o infinito; ela agora está fazendo uma parada num certo lugar
no mundo material...

 Visão: (cont.) Eu disse: “Agora, deixaremos a serpente erguer-


se”. O homem estremeceu de medo. A grande serpente
arqueou suas costas, erigiu-se até o céu e depois abaixou sua
cabeça até junto de nós. Ela abriu uma boca enorme.

Vejam, quando ela para o movimento, começam a acontecer coisas


poderosas e temíveis, o pobre Animus treme de medo e a serpente abre
uma grande boca. Aí temos o mito inteiro do dragão; eles agora
encontraram o dragão e é uma situação para São Jorge ou alguém
semelhante. Como chamariam a serpente?

Comentário: Kundalini.
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Dr. Jung: Naturalmente, está sendo produzido aqui o fenômeno Kundalini.


Agora, poderiam perguntar como se pode fazer erguer a serpente Kundalini.
Eu posso indicar um meio muito simples: parem a sua análise. Então ergue-
se a serpente e causa um tremendo choque, o Animus treme de medo. Não
perceberão isso enquanto vêm aos Seminários ou se encontram comigo nas
sessões. Mas parem isso, e verão maravilhas. Parar esse movimento
significa naturalmente parar as visões ou fantasias. Pode-se expressar isso
também de um modo diferente: ela já não segue o caminho da libido e
esta, imediatamente, vai contra ela. Em circunstâncias comuns, as pessoas
sonhariam então com um touro louco que as persegue, ou um cachorro
bravo ladra para elas; ou, como eu vi muitas vezes, um trem em alta
velocidade choca-se contra outro ou despenca num rio, ou um avião cai.
Aparece sempre o símbolo de uma verdadeira catástrofe. Agora, o que
sugere o abrir a boca?

Resposta: O devorar.

Dr. Jung: Então, se é a serpente devoradora, temos de novo a interpretação


diferente ou um nome diferente. A Kundalini ergue-se, sibila e aterroriza,
mas não devora. Então, isto seria o inteiro mito do dragão, esta serpente
então toma o aspecto do dragão comum. Naturalmente é a Kundalini, mas
ela não se comporta como a Kundalini, é um novo aspecto; ela se tornaria
as entranhas do inconsciente, a goela da morte, por exemplo, ou o tempo
que devora tudo que vive.

Assim, isto pareceria expressar o pensamento: se paramos, a serpente nos


engolirá e isto significa morte. Por isso, parando um movimento tão vital,
tem-se a sensação de cometer suicídio; um desastre, uma autodestruição,
seria simbolizado pela serpente devoradora. Mas agora acontece uma coisa
muito estranha; a serpente abre a boca, não para engoli-los, mas para que
eles olhem dentro dela. E ela diz:

 Visão: (Cont.) Ela tinha pulmões de ouro. Sua língua era


bifurcada e de um lado, tinha a forma de um homem, de outro
a de uma mulher. Olhei bem para dentro, nas vísceras da
45

serpente e vi muitos homens e mulheres amontoados e


deitados muito quietos. Eles eram cinzentos, mas eu sabia que
não estavam mortos.

Aqui temos uma imagem muito típica da serpente do tempo que contém
uma tribo inteira. Aquelas formas cinzentas de seres vivos são
evidentemente, as almas umbrosas dos mortos; mas elas não estão mortas,
poder-se-ia dizer que estão adormecidas, sua vida é potencial. A coisa
peculiar é esse simbolismo, os pulmões de ouro e a língua bifurcada nas
figuras de um homem e uma mulher. O que diriam desses pulmões de
ouro?

Observação: O espírito é de grande valor, e os pulmões contêm o ar, o


espírito.

Dr. Jung: Naturalmente, onde quer que o ouro apareça, sempre significa
alguma coisa valiosa.

Comentário: É um lugar onde o que vem de fora é trocado e utilizado.

Comentário: Os pulmões contêm o coração.

Dr. Jung: E para qual estágio de qual simbolismo tudo isso aponta?

Resposta: Isto sugeriria ANÃHATA.

Dr. Jung: Sim, então vemos de novo o aspecto Kundalini da serpente, que é
indubitável. O fato de que ela se ergue prova ser este o verdadeiro caráter
desta serpente. Não se trata do dragão-baleia devorador; é antes a
serpente Kundalini abrindo sua boca para inspeção. Isto não está contido na
Yoga tântrica, é uma versão muito ocidental da Yoga Kundalini, como
podem ver. E o que significa a Kundalini abrir sua boca para inspeção?

Resposta: Significa reconhecer, compreender sua natureza.


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Dr. Jung: Exatamente. A Kundalini vive agora, mas numa condição


consciente; e a verdadeira consciência começa em ANÃHATA, na região do
ar e dos pulmões, a que pertence também o coração. É interessante que ela
não fala em ver o coração de ouro. Só são mencionados os altamente
valiosos pulmões, mas nada é dito do coração que pareceria mais
importante. Então, porque os pulmões somente, e não o coração?

Sugestão: Não é a parte de ANÃHATA que propicia a relação com os


conteúdos espirituais?

Dr. Jung: O Senhor quer dizer que isto é aquela parte de ANÃHATA que
contém ou simboliza a relação com o espírito? – que contém ar, a qualidade
espiritual? Sim, isto é verdade.

Observação: Ou poderia ser também que isto estava ainda bastante


indistinto, apenas na área limítrofe; ainda não chegou a ela.

Dr. Jung: Sim, poder-se-ia dizer isto, porque anatomicamente os pulmões


cercam e cobrem o coração... Assim, poderíamos dizer que os pulmões são
antes um aspecto externo, e eu penso que este é um ponto que deveria ser
levado em consideração – que o aspecto espiritual encobre o aspecto de
sentimento.

Agora, em ANÃHATA existem duas qualidades que são simbolizadas pelas


cores vermelha e cinza; o vermelho é ígneo e denota o calor do coração; o
círculo interno é, antes, como sangue, mas a cor das pétalas é como a cor
alaranjada de MANIPÛRA, e denota o intenso calor do fogo. Assim, o
coração é ainda quente do fogo de MANIPÛRA...

O fogo, então, está no centro de MANIPÛRA, e lança nuvens de fumaça, e a


fumaça está fora e é apenas fumaça, nada mais, nada significa e não tem
qualquer valor. Mas na transformação seguinte, em ANÃHATA, o que foi
primeiro um subproduto sem importância, a fumaça que é simplesmente
lançada no ar e esvaece, torna-se a coisa mais importante; ela torna-se
então um símbolo espiritual, e o calor que estava no centro está agora fora,
47

como se viesse da fumaça está nas pétalas, as quais sempre significam


emanação, desabrochar.

Vejam, os chacras se transformam de acordo com as leis da enantiodromia.


Em ANÃHATA os pulmões, o ar, a qualidade espiritual, está no centro, já
que a coisa importante está sempre no centro, e o fogo, o calor, seria sua
emanação. Mas reparem, esta filosofia é feita predominantemente por
homens, então é característica da psicologia masculina em que o espírito ou
o elemento LOGOS é sempre central e emana o calor ou o calor é associado
a ele e forma uma espécie de cobertura ou periferia para o espírito
central...

Devemos sempre entender os chacras não como bi-dimensionais, mas como


uma esfera que emana; assim, este chacra no espaço seria, realmente,
uma bola circundada por uma cor ígnea, como se emanasse calor, ou
brilharia como ouro ou minério incandescente; e nada se vê do cerne escuro
de dentro. Agora, a questão é unicamente se esta não é uma formulação
masculina de ANÃHATA, e isto teremos que ver ainda. Se for, seria então
ANÃHATA do modo como é entendido pelo Animus...

 Visão: (cont.) O homem ao meu lado tremeu e eu vi gotas de


sangue brotando do seu corpo inteiro como suor. Ele disse:
“Tenho que entrar na boca da serpente, não posso evitá-lo. Se
permanecer aqui contigo, ficarei preto”. Eu disse: “Pensei que
pudesses ser meu guia, mas vejo que és demais fraco”.

Podem ver que o Animus está profundamente agitado; ele até transpira
sangue. Mas o fato de que ele está tão atingido, mostra o que, ao mesmo
tempo?

Resposta: Que ela não foi afetada.

Dr. Jung: Ela nem um pouquinho foi tocada, ela nada percebe. Há uma
tempestade eletromagnética que afeta apenas os fios do telégrafo, e
ninguém mais percebe, seus sistema consciente de forma alguma foi
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tocado. Ela não percebe que teve uma visão de importância extraordinária e
de longo alcance. Ela deixa toda aquela emoção para o Animus e pensa que
ele está apenas tendo um acesso, que ele é demais fraco e histérico; ela
não percebe que quando seu Animus é afetado ela deveria saber disso.

No entanto, não devemos ser muito severos, devemos ser sempre


extremamente tolerantes com a cegueira humana, porque somos todos
cegos nesses assuntos. Qualquer um pode sonhar que o Animus ou a Anima
foi profundamente afetado e não ser de modo algum tocado por isso, pela
mesma razão: não compreendemos, não percebemos que alguma coisa de
grande importância aconteceu; é exatamente como um sonho que não
entendemos e que aparentemente não nos afeta, como se nada tivesse a
ver conosco. Não é muito raro alguém ter um sonho da maior importância
para a sua vida, ou analisá-lo cuidadosamente e tentar transmitir o seu
significado para ele, e na vez seguinte, quando eu me refiro àquele sonho, a
pessoa dizer: “De que sonho o Senhor está falando?”. O Sonho se foi
completamente, a pessoa não o entendeu nem um pouquinho, apenas sua
Anima foi tocada ou sacudida, mas sua consciência de forma alguma...

Que a nossa paciente não percebe do que se trata, está em relação com o
fato de que ela poderia não ter que entendê-lo. Se fosse para ela ter um
outro filho, quero dizer uma criança verdadeira, não seria bom entender
essas coisas, porque elas “levam embora”. É a volta, e se estamos indo
para a frente, não adianta começar a voltar, é muito melhor pensar que
tudo isso é tolice... Por exemplo, os textos tântricos, mesmo na Índia, são
considerados meras tolices, imorais, indecentes... Também o simbolismo
alquímico parece tolice, só se pode sacudir a cabeça; mostrem estes livros a
qualquer cidadão respeitável e ele dirá o mesmo.

Assim, não é bom falar demais em psicologia porque parece tolice, e quanto
mais avançamos, mais parece assim. E deve mesmo parecer assim às
pessoas jovens e inexperientes. Não é saudável nem proveitoso para elas
entender essas coisas; porque elas nos emaranham e nos tentam a fazer
um uso venenoso delas, enganando-nos e desviando-nos dos nossos
deveres, até mesmo da nossa própria vida. Por isso eu sou sempre contra
49

uma atitude missionária; é sempre errado. É bom que essas coisas existam,
mas é excessivamente ruim recomendá-las, porque aí elas irão mal em
pouquíssimo tempo...
“SEMINÁRIOS SOBRE VISÕES”

“The Visions Seminars”

Carl Gustav Jung

PARTE XII

Seminários entre 24 de janeiro e 28 de


fevereiro 1934.

SPRING 1969
2

Um Grupo de Sombras

Pergunta: O Senhor nos falou na última vez sobre o efeito do Animus ser
engolido pela serpente. Pode nos dizer qual seria o significado de um grupo
de sombras cometendo suicídio porque a vida já não tem sentido para elas?

Dr. Jung: Bem, o Animus engolido pela serpente é certamente uma forma
de Animus que retrocede ao inconsciente coletivo, engolido por ele. É tarefa
dele estar conectado com o inconsciente coletivo, por isso tão
frequentemente é ele representado lançando-se na água ou desaparecendo
numa floresta. E isto pode ser ou positivo ou negativo; ou ele foge ou tem
uma missão a cumprir. O mesmo vale para um número de formas de
Animus, que podem ser ou uma forma de regressão, uma fuga, ou um
empreendimento.

Pergunta: E se forem mulheres? Quero dizer, realmente sombras?

Dr. Jung: A sombra de uma mulher não seria representada por um grupo, a
menos que se trate de um problema grupal.

Pergunta: Se fossem talvez duas ou três?

Dr. Jung: Então poderiam representar funções; a sombra muitas vezes


representa funções. Neste caso seria, provavelmente, negativo; isto é,
através de uma espécie de regressão, uma parte da função torna-se
inconsciente, e temos que supor que isto é um tipo de perda, mesmo se
apenas momentânea. Naturalmente ela é devida a certas causas, mas não
ocorre para certo efeito, porque é uma ocorrência bem freqüente que uma
parte de nós mesmos torna-se inconsciente. Mas isso não tem qualquer
propósito particular, é um acidente que acontece quando alguém perde
parte de si mesmo. Para o primitivo é a perda da alma; quando eles se
queixam de ter perdido uma alma, é porque uma função, ou muitas – uma
parte da personalidade deles – se foi.

Pergunta: Isto também poderia ser ou positivo ou negativo, então?


3

Dr. Jung: Seria então principalmente negativo, é uma casualidade, porque


se a sombra toma a forma de um empreendimento, não deveria tornar-se
inteiramente inconsciente. Com o Animus seria diferente. Vejam, a sombra
não deveria ser um ser independente, ela deveria estar tão estreitamente
associada ao ego consciente que ninguém a perde de vista; se a sombra
pode mover-se por si mesma, ela está perdida de vista e isto significa uma
dissociação, então perdeu-se o auto-controle, por assim dizer. É como se
alguém, de repente, tivesse se tornado inteiramente inconsciente das suas
próprias qualidades negativas. Isto pode acontecer, mas não deveria
acontecer. Mas perder de vista o Animus ou a Anima pode acontecer, às
vezes, é quase normal que eles não estejam à vista, porque sempre estão
destinados a ser figuras independentes que vivem vidas autônomas no
inconsciente coletivo. Mas temos a possibilidade de estar conectados com
eles, como um feiticeiro primitivo está em contato com a serpente que lhe
sussurra aos ouvidos, que lhe fala durante a noite. Ele não vê a serpente o
tempo todo, mas sob certas condições, quando ele precisa dela, pode
conjurá-la e cochichar com ela; isto é, certamente, simbolismo da Anima.
Os índios norte-americanos geralmente supõem que podem falar com
espíritos à noite, na floresta; e supõe-se que nas iniciações as pessoas
ouvirão vozes, quando jejuam e ficam sozinhas durante muito tempo. Esta
expectativa geral indica que este é um fenômeno muito freqüente. De fato,
sob certas condições de grande tensão, as pessoas frequentemente ouvem
ou vêem coisas estranhas...

Uma Falta de Conexão

Como provavelmente já observaram, o caso está ficando mais e mais


complicado. Estamos nos aproximando de uma fase em que as coisas estão
se revertendo de um modo muito peculiar. A primeira parte destas visões
era uma clara descida ao inconsciente coletivo, absolutamente de acordo
com as regras. Embora naturalmente apareçam sempre certas
peculiaridades, todas as coisas que se poderia esperar que sejam
descobertas lá foram descobertas. E em~toa chegou o momento da volta
da paciente à sua própria pátria e isso perturbou consideravelmente a
situação. O decurso das coisas já não é mais de acordo com a lei, mas se
4

torna agora mais uma reação individual. Naturalmente seria um caso geral
se as pessoas reagissem geralmente da forma como ela o faz, mas
felizmente nem todas elas reagem do mesmo modo. Ela estava impelida a
tornar-se bastante insegura, porque as visões anteriores tinham sido meras
intuições que não se tornaram suficientemente associadas ao seu ego
consciente. Também ela era talvez muito jovem para ser capaz de manter
essas intuições; é preciso ter uma certa idade, uma certa maturidade de
personalidade, para poder compreendê-las. E muitas pessoas são incapazes
disso.

Ser capaz de sustentar as percepções é até uma geral qualidade primitiva,


embora, naturalmente, eles possam conservá-las na memória. Há
numerosos exemplos de primitivos que tiveram as mais espantosas
experiências e que estavam expressamente incapazes de sustentá-las;
podem lembrar-se delas, mas é como se não fossem capazes de entender o
que experimentaram, e assim não podem dar-lhes nenhum valor. Já vi
muitas pessoas que tiveram uma certa experiência que outros teriam
valorizado altamente e compreendido para sempre, e teriam sido
transformados por ela; mas aquelas pessoas simplesmente a viram e
deixaram passar sem siquer tocá-las. Ela ficou, com certeza, em suas
mentes, ela sabiam o que era, poderiam falar as palavras, mas de algum
modo não a registraram. Isto é, como eu digo, uma peculiaridade primitiva
geral.

A mesma coisa pode ser vista em situações políticas. Estamos agora em


uma situação dessas (1934!); vemos exatamente par onde leva o acúmulo
de armas e munições, mesmo assim não podemos impedi-lo. Sabemos o
que significa o fracasso de uma Conferência sobre o Desarmamento.
Sabemos também que as nações não querem uma guerra, que as pessoas
estão todas atemorizadas com isso, mesmo assim estamos nos dirigindo,
nos dirigindo para ela. Ninguém pode evitar isto, porque a humanidade, em
sua maioria não pode perceber. Por isso o primitivo tem aquela pecular
apatia, aquela espécie de fatalismo. Ele diz: Oh! Bem, a casa está
queimando, sim, é verdade, mas ele não ergueria um dedo para jogar um
balde de água sobre o fogo; a casa será consumida e nada será feito contra
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isto, porque ele tem uma participação mística com o fogo e também com a
casa. É muito doloroso ver a casa ser assim destruída, mas nada é feito
porque ele não pode se desvencilhar desta participação mística – nem com
o fogo, nem com a casa. É como se eles estivessem debilitados. Alguém
dirá: Mas, homem, você não pode perceber o que viu, o que ouviu? Como é
possível continuar assim? É muito fácil. Nada aconteceu, aquilo só passou
por eles, porque eles não são – eles são apenas o evento. No momento de
uma experiência religiosa, eles são uma experiência religiosa, e então há
uma garrafa de conhaque e eles são a garrafa de conhaque, e então há um
crime e eles são o crime, e assim por diante. Eles são apenas momentos, ou
eles são eventos, sempre em completa identidade com aquilo que
experimentaram. Mas não há continuação, não há centro para dizer: eu
percebo isto e as conseqüências, e eu percebo as inconsistências de tais e
tais coisas. Este é o início de uma certa realidade.

Os primitivos estão muito longe de uma tal realização, e nós estamos muito
longe dela também, de um certo modo. Esta é a peculiaridade deste caso, e
certamente explica porque, quando a nossa paciente entra em contato com
os fatos do mundo, eles são apenas os fatos do mundo, apenas outra
experiência, e ela é esta experiência, como era a experiência anterior.
Assim, não há conexão, não há continuação; é meramente uma transição
de uma condição para a outra...

Nós temos uma certa resistência contra tal inconsistência e dizemos que
não podemos entender como isto é possível. Mas aquilo é apenas uma
espécie de ilusão; no fundo entendemos muito bem, porque acontece
conosco constantemente. Somos, durante todo o tempo, inconsistentes de
certa forma, todo o tempo de certa maneira idênticos com nossas
experiências e sem aquela continuidade, a única coisa que poderia nos
ajudar a compreender profundamente. Eu não sei quantas experiências ou
choques ou desapontamentos são necessários até que sejamos capazes de
produzir uma certa quantia de continuidade.

Mas de um ponto de vista psicológico é extremamente interessante


observar tal transição; e temos aqui uma série de visões onde ocorre essa
6

peculiar mudança, onde esta mulher é engolida por uma espécie de


experiência da realidade e onde toda a experiência anterior começa a
desvanecer-se. Sob essas condições, naturalmente, pode-se esperar que
todos os tipos de coisas esquisitas acontecerão ao Animus, a função que
uma vez a conectou com o inconsciente coletivo. Certamente é quase
impossível prever o que fará o Animus sob tais condições ou o que
acontecerá a ele. Na última visão, lembram-se, tivemos um exemplo de tal
evento, e ele estava particularmente desnorteado e cheio com as mais
extraordinárias e sentimentais emoções, todas as emoções que ela não
percebia. Ela parece agora exercer um controle muito forte. Ela é realmente
o homem forte, e já não é mais sempre precedida ou antecipada pelo
Animus.

Pergunta: O fato de que ela continua tendo visões significa, em geral, que
há uma tentativa de juntar as duas coisas? Se não fosse assim, eu pensaria
que ela iria parar.

Dr. Jung: Sim, naturalmente, mas ao passar por uma transição, quando as
coisas estão mudando de modo natural, não se pára a condição anterior. A
condição anterior apenas se esgota e é suplantada pela experiência
seguinte, assim as duas coisas realmente se sobrepõem, até se equilibram
durante um certo tempo. Assim, sua experiência anterior retrocede
lentamente, mas ainda está lá.

Sabem, é um fato comum na história que as condições anteriores


continuam existindo, mas sem que haja uma insistência particular sobre
elas. Nossa religião cristã ainda está aqui, por exemplo; há milhões de
pessoas convictas dela. Mas, certamente há milhões que não o são, e
mesmo assim persistem como se acreditassem nela. Tornou-se uma espécie
de amigável hábito de existência e as coisas continuam a ser feitas como
costumavam ser feitas há séculos atrás. Mas, já não é a mesma coisa, há
uma recessão, já há um processo de involução e outra espécie de
experiência desenvolve-se lentamente dela. Mas, nós levamos muito tempo
para perceber onde estamos, é surpreendente... Assim, estou bem certo de
7

que esta mulher durante muito tempo não percebeu onde estava, ela
continuava no velho estilo.

Pergunta: Isto teria alguma coisa a ver, na análise, com o problema das
funções inferiores? Tornar-se consciente das funções inferiores não teria o
efeito de turvar a consciência?

Dr. Jung: Bem, há sempre uma continuação individual, há sempre a


esperança de que ao menos alguém perceba, mesmo que não ele mesmo.
Mas sabemos que as pessoas podem viver uma vida inteira e talvez muitas
vidas sem experimentar um mínimo disto – passando a vida, sendo
idênticas com uma serie de experiências, mas não há lá ninguém que
experimentou isso. Conheço muitos exemplos do tipo mais espantoso. O
caso mais simples de que posso lembrar-me é de uma mulher com mais de
40 anos, que tinha quatro filhos e levara a vida comum de uma mulher
comum, que me disse: Eu nada experimentei, eu nunca vivi, eu nunca
cresci. Eu apontei que ela tinha estado casada durante quinze anos e tinha
quatro filhos, isto era alguma coisa, mas ela disse: os filhos apenas
aconteceram para mim. Outra disse: sim, eu tenho três filhos, mas apenas
no terceiro eu percebi que isso era um nascimento, que este era meu filho.
Então, bastante peculiarmente, ela não queria mais filhos, como se ela só
tivesse tido filhos até perceber o que era aquilo, e então estivesse
satisfeita.

Agora, esses são naturalmente exemplos comuns de pessoas que vagaram


através da vida, cada dia era um dia e elas eram aquele dia, até que
chegaram a um ponto em que subitamente se lembraram que alguma coisa
uma vez havia acontecido; mas elas não sabiam quem experimentou aquilo,
que olho viu aquilo, e começaram a buscar alguém que houvesse
experimentado alguma coisa e não encontraram. Então há uma neurose, e
então elas chegam a mim e dizem: por acaso o Senhor viu alguém que
tenha me visto viver? Elas necessitam uma testemunha ocular para as
coisas que aconteceram.
8

Em seguida elas começam a contar o que elas fizeram, para recordar-se.


Qualquer paciente fará uma tentativa de contar os mais detalhados
pormenores, se eu tiver a paciência suficiente para escutá-los durante certo
tempo, porque todos eles têm a necessidade de lembrar que alguém viveu
alguma coisa – quem era? – o Senhor sabe? Coisas assim. Eles repetem
suas vidas para associá-las a eles mesmos. E notem, em cada estágio da
análise, em que as pessoas chegam a alguma percepção, este mesmo
processo acontece de novo, de novo eles repensam a vida inteira e a
associam com a nova introvisão; porque eles sentem que sua vida não está
associada com aquela nova compreensão e que ela precisa ser renovada à
luz desta.

Vejam, o fato de que este falar sobre a própria vida acontece tão
frequentemente, prova como muitas pessoas não percebem que viveram.
Se não fosse assim elas não precisariam contar esta história repetidamente.
E é também verdade que às vezes as pessoas nem mesmo levam em conta
o fato de que alguém as está ouvindo. Certa vez tive uma paciente que
falava como um relógio, numa correria sem fim, até que fiquei tão
entediado que adormeci e acordei com um susto, porque ela fez uma pausa
para acender o seu cigarro – como o moleiro que acorda quando não há
água e a roda para de girar. Eu disse: “A Senhora observou que aconteceu
algo?”. “Não, o que?”. “Eu adormeci e tive um pequeno sonho”. Ela disse:
“Ah! Foi isso? Aliás, eu queria lhe falar sobre o ano de 1900”. Nem tinha
importância se eu a estava ouvindo ou não. Esta era a sua falta de
percepção; seu passado a possuía completamente; ela era idêntica a sua
própria história e de novo não o percebia. Uma coisa só é percebida quando
estamos no momento presente, quando sabemos onde estamos e quem
somos agora. Enquanto somos idênticos com nossa própria história, não a
percebemos e temos que repeti-la.

“Preto, Branco, Vermelho”

Agora chegamos à visão seguinte que é uma continuação da anterior. Nossa


paciente diz:
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 Visão: (cont.) O homem levantou-se comigo. Ele tinha se


tornado preto.

Este tornar-se preto refere-se à última visão, onde o Animus diz: “Se eu
ficar aqui contigo, tornar-me-ei preto”. Lembram-se, o Animus apareceu
muitas vezes como preto, anteriormente, assim, quando ele reaparece sob
esta forma, significaria uma espécie de desenvolvimento regressivo. Ele se
tornaria preto se ficasse com ela fora da serpente, assim o Animus quer ser
engolido pelo inconsciente para evitar aparecer sob esta forma... Mas “o
homem levantou-se com ela”, ela está com o inconsciente primitivo, e ela o
mostra, imaginem. Ela é como o primitivo que não tem medo de mostrar
seu inconsciente porque não pode fazer de outro modo. Agora, sob que
condições poderíamos dizer que estaríamos mostrando nosso inconsciente?

Sugestão: Sendo supra-emocionais, demais emocionais para a ocasião.

Dr. Jung: Sim, sempre esperamos das pessoas um certo controle da


emoção. Há situações nas quais uma certa dose dela é natural e razoável e
se falta, sentimos o desejo de alguma coisa. Mas se a emoção não mostra
siquer traços de ser controlada, temos a sensação de algo muito primitivo,
talvez mesmo mórbido. Ser dominado, sem mais, pelas emoções, é um dos
sintomas de primitividade...

Poderíamos chamar também primitivas aquelas pessoas que são tão


possuídas por um desejo, digamos, ou por uma idéia ou uma fantasia, que
nem percebem onde estão e vão adiante, sem considerar as circunstâncias.
Sabem, não é? que existam muitas dessas pessoas, típicos “chatos” que
falam do ofício, insistem com o seu próprio ‘hobby’, e falam de coisas em
que ninguém está interessado. Qualquer falta de percepção ou consideração
das condições ou circunstâncias é primitiva. Agora, o que suporiam que
nossa paciente iria fazer na sua condição? Alguma coisa muito típica.

Resposta: Pregar.
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Dr. Jung: Naturalmente, bancar o missionário. Esta é a coisa mais habitual


a fazer, no mundo inteiro, em certo estágio da análise. Começa-se a pregar,
sente-se como um missionário, como se fosse preciso dizer a verdade a
todo mundo, como se a tarefa fosse curar as feridas do mundo. Também
nos fazemos terrivelmente importantes com nossas extraordinárias
dificuldades psicológicas, e tentamos emaranhar as pessoas em conversas
esticadas sobre complicações psicológicas. Isto é primitivismo, o Animus
preto que deixa escapar tudo que está na sua mente, que não pode conter-
se. É interessante que nos sonhos, por exemplo, esta atitude é muitas
vezes apontada por um símbolo muito infantil – um pouco chocante. É
muito freqüente sonhar que se urina numa sala de visitas, ou que algo
embaraçoso acontece com os excrementos. Dessa maneira o sonho aponta
a inadequação da atitude consciente. Não se pode comportar exatamente
como um animal que se solta à vontade; estas pessoas que se
descontrolam psicologicamente comportam-se como os cachorros mais mal
educados. Bem, o Animus tornou-se preto e diz:

 Visão: (cont.) “Eu decidi”. (Obviamente ele decidiu


acompanhá-la, o que não é vantajoso). Ele caminhou à
minha frente. Eu vi que suas costas eram brancas e sobre
elas eu vi a face de um homem olhando para um pássaro
branco no céu.

Isto agora é estranho. O Animus não é simples; ele é duplo. Sua fachada
frontal é preta, mas atrás ele tem um segundo rosto que é branco e olha
para o céu. O que significa isso? Este não é um simbolismo agradável. Ele
tem um caráter bastante agressivo.

Resposta: Os dois opostos? Eu quero dizer, outra vez não há nada que
sustente, ele está ou alto ou baixo demais.

Dr. Jung: Bem, não exatamente. Há uma conclusão mais simples e mais
direta.

Sugestão: Uma cisão.


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Dr. Jung: Obviamente. Há uma cisão no caráter, quando alguém mostra


para o mundo um rosto diferente daquele que mostra para o inconsciente.
Vejam, se pudéssemos analisar o próprio Animus, diríamos: Você acredita
que é preto; de modo algum, você simplesmente reprime o branco; vire-se
e você é branco.

Assim, esse escurecimento do Animus, é simplesmente ocultar ou o reprimir


do branco, o que obviamente não deveria ocorrer, é contra a natureza. Por
isso o resultado é monstruoso; é uma espécie de JANUS monstro. “Olhando
para um pássaro branco no céu” é um simbolismo comum. Implicaria as
coisas elevadas, a pomba, o Espírito Santo, o bom pensamento, o puro
branco pensamento, etc. E agora, um mau motivo que apareceu antes,
volta aqui.

 Visão: (cont.) Um pássaro vermelho e dilacerado rasgou


seu peito, mas ele não o viu.

Este é um daqueles pássaros que invadiram os arranha-céus, lembram-se,


e dissemos que eles eram pensamentos ou desejos, expectativas ou apenas
esperanças, feridas pela colisão com o seu mundo de Nova York. Eles
aparecem de novo e preocupam o coração do Animus branco, o que
significa claramente que a colisão com Nova York causa uma ferida nas suas
esperanças e expectativas... A percepção dessa ferida é reprimida no
Animus, porque ela não a percebeu. Se pudesse percebê-la, os pássaros
estariam sobre ela. Vejam como atua o simbolismo: ela oculta sua
percepção no Animus, onde o branco também é reprimido, coberto pelo
preto, e assim o Animus se torna monstruoso. Agora é interessante que ela
continua do seguinte modo:

 Visão: (cont.) (Isto foi o que vi sobre suas costas enquanto


ele andava, à minha frente).

Nunca houve antes uma passagem destas: ela repete o que viu entre
parênteses, como se seus olhos não acreditassem nisso; ela se torna
insegura, por isso o repete. E mais tarde ela faz de novo a mesma coisa,
12

como apara confirmar que realmente o viu. Ela mostra a incerteza de sua
percepção.

Vejam, a percepção do inconsciente torna-se incerta no momento em que


alguém começa a reprimir coisas, porque a repressão cria o véu do
inconsciente pessoal. Através da repressão causamos a existência de uma
camada entre o consciente e o inconsciente coletivo. Enquanto nossa
consciência é diretamente oposta ou confronta-se com o inconsciente
coletivo puro e simples, não há incerteza, estamos certos de que o vimos,
não é necessária uma confirmação, não duvidamos mais. Mas desde que o
inconsciente pessoal com repressões, motivos, preferências pessoais,
estados de ânimo, reservas etc, interfere, então ficamos incertos se o vimos
ou não, talvez nós o criemos. Há uma tendência para moldar as coisas,
alterar a visão de acordo com medos ou expectativas, ou de acordo com
idéias de como as coisas deveriam ser. Isto vem no momento em que
perdemos a percepção absoluta. Este é sempre o caso quando perdemos de
vista a nossa sombra. Quando começamos a reprimir ou a ter ilusões, então
a visão se torna incerta. Agora ela continua:

 Visão: (cont.) Ouvimos sons estranhos de gemidos e


suspiros. (Aqui está de novo a lembrança da visão anterior,
aqueles sons esquisitos no ar, quando ela chega a Nova
York). O homem disse: “Eu tenho medo”. Eu disse: “Eu
também devo ter medo?”. Ele disse: “Sim, também tu”.

Este pequeno diálogo mostra alguma coisa típica. Uma das emoções que ela
não percebe, e que está então reprimida no Animus, é o medo. Ele já sentia
medo no fim da última visão, e lá ela era espantosamente corajosa e
representava o papel da heroína. Mas aqui ele diz que sente medo, ele
percebe primeiro a emoção, e ela está em dúvida, exatamente essa
incerteza: “Eu também devo ter medo?” – e ele dizer que sim, significam
que ela também, na realidade, deveria sentir medo. Sua tendência era
reprimir o medo e deixa-lo para ele, mas o medo volta para ela.
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 Visão: (cont.) Uma parede preta bloqueou nosso caminho.


O homem caiu, com o rosto virado para o chão e chorou.

Aqui temos de novo o Animus emocional; ele é bem histriônico. Já que ela
projeta todas as suas emoções sobre ele, ele tem que ser teatral para
expressá-las.

 Visão: (cont.) “Eu não posso fazer isso. Tu és estranha e


terrível. Tu me pedes para ir contigo para lugares
assustadores. Tu me fizeste preto.”

Ele se queixa do fato de que ela o está levando para um mundo terrível, do
qual ele tem medo, e onde ele precisa aparecer como preto. Porque quando
arrancamos para fora nosso Animus para expô-lo numa sociedade civilizada,
bem, então ele cheira, ele é “preto”. Não se pode evitar isso. E é assim
quando a Anima vem à tona; ela é no mínimo primitiva, e assim,
naturalmente, cheira sempre como uma jaula. Então aqui, ele a culpa por
tê-lo feito preto, e agora entendemos por que.

 Visão: (cont.) Olhei para ele, embaixo. Eu vi mudar a


imagem viva nas suas costas brancas. O pássaro vermelho
dilacerado mordeu a garganta do homem até que sua
cabeça caiu. Uma nova cabeça cresceu. Desta vez a cabeça
olhou para baixo e viu o pássaro vermelho. O homem pegou
o pássaro e matou-o. (Esta foi a imagem que vi).

Aqui, de novo, a incerteza, por isso ela tem que confirmar que realmente
viu isso. Não é certo agora que as visões sejam exatas e confiáveis, que
não sejam adulteradas; temos que ser extremamente cautelosos já que o
véu da serpente desceu sobre elas. A atenção se fixa agora naquele homem
branco oculto no Animus preto, e este homem, como sabem, está
preocupado com a colisão com Nova York, ele recebeu o choque, e a idéia
aqui é que ele tem que pegar este pássaro e matá-lo. Em outras palavras,
ele deveria livrar-se do choque.
14

Obviamente, este choque que ela recebeu tem uma certa importância
ecológica... Fez com que o Animus se tornasse preto, que o branco ficasse
reprimido e oculto no preto. E se alguém removesse o choque, a dor, então
poderia revirar toda a situação. Esta é realmente uma tentativa do
inconsciente de restabelecer a condição anterior, como se fosse possível
dizer: Oh! Nada mudou, Nova York não me impressionou, vamos continuar
da forma como fizemos antes. Agora ela diz:

 Visão: (cont.) Quando vi aquilo, senti uma grande piedade.


Ajoelhei-me ao lado do homem que chorava deitado no
chão. Tomei-o nos meus braços e sentei-me junto ao muro
preto, com o homem deitado sobre meus joelhos. Inclinei-
me para ele e disse: “Espera. Eu vi o que está escrito nas
tuas costas. Serás curado. A nova coisa crescerá”. Sentei-
me muito quietamente.

Não sabemos exatamente do que ela tinha tanta pena, mas


presumivelmente, daquele homem que jazia impotente no chão, cheio de
emoção feminina. Poder-se-ia dizer que ele deveria ter pena dela, mas ela o
antecipou e teve pena dele, representando o papel forte, não percebendo
sua própria fraqueza, tentando ficar no todo da situação – poder-se-ia dizer
muito corajosamente, se não fosse uma ilusão. Nossa força não tem valor
algum. Mas se percebemos: eu tenho medo, eu sou muito sentimental, eu
duvido, eu não ouso, mesmo assim eu tenho esperança de, eu preciso me
integrar, então isso é força. Enquanto podemos projetar fraqueza em
outros, não está absolutamente provado que somos fortes. Ao contrário.
Mas é muito agradável, eu lhes garanto, se temos a chance de projetar a
fraqueza. Por isso tantas pessoas gostam e até mesmo cultivam, a fraqueza
dos seus “partners”.

Esposas de alcoólatras, por exemplo, muitas vezes cultivam o alcoolismo do


marido, para afirmar e assegurar a sua superioridade... Ela prefere que
todos chamem seu marido uma besta, porque assim ela está no todo da
situação. E se curamos um tal homem, por engano, e o mandamos de volta
para casa, sua esposa vai persuadi-lo a beber só um copinho de vinho –
15

“isso não vai lhe fazer mal” – e dentro de uma semana ela o manda de
volta. De outro modo, sua confiança em si mesma ficaria ameaçada. Ela
não seria capaz de suportar tanta virtude e entraria numa inferioridade,
porque ficaria óbvio que de forma alguma ela era uma santa.

Muitas pessoas gostam de morrer como santas. Assim, quando vemos


alguém que é maravilhoso, perguntemos pelo marido ou pela esposa,
porque o companheiro, provavelmente está em má situação. Vamos deixar
para admirar toda esta virtude quando o companheiro estiver curado. Então
olharemos de novo e se aquela santidade ainda suporta a boa condição do
“partner”, só então se trata de um santo verdadeiro.

Figura da Página 282

Então vemos que nossa paciente está terrivelmente forte e representa a


PIETA com seu pobre CRISTO negro, seu pobre preto MESSIAS. Aqueles
entre os Senhores que conhecem a primeira parte destas visões lembram-
se de um desenho em que ela estava estendida sobre os joelhos da Grande
Mãe. Desta vez ela mesma é a própria Grande Mãe, tendo seu Animus sobre
os joelhos. Esta é uma situação perigosa – prometendo que ele será curado,
e assim por diante. Ela diz:

 Visão: (cont.) Por um portão no muro preto saíram muitos


fantasmas. Eles moviam-se a nossa volta. Eu disse: “Não o
perturbem. Ele dorme”. Eles desapareceram. Vi diante de
mim um fogo que brotava da terra. O fogo tomou a forma
de uma estranha árvore. Acima dela eu vi minha estrela.
Coloquei então o homem sobre o solo e banhei seu rosto
com água. Virei-me e fui à direção do grande portão no
muro preto. Ele abriu-se para mim.

O Animus está agora, muito obviamente, em uma condição bastante


despotenciada. Ele jaz inconsciente sobre o solo e ela o está tratando como
uma criança muito doente. Ela também não tem medo dos fantasmas que
se movimentam em redor deles.
16

A Arvore com Formato de Fogo e a Estrela

Uma coisa interessante é que enquanto o Animus dorme, emerge fogo da


terra sob a forma de uma árvore. O que seria isto?

Resposta: Quando o Animus dorme, ele realmente não está mais ali, ele
realmente foi para o inconsciente, assim o inconsciente adquiriu vida outra
vez e a enganou.

Dr. Jung: Exatamente. Ela pensa que tem seu Animus consigo, no seu
bolso, e quando ele dorme ela pensa que ainda o tem, mas ele escapa e
anima o inconsciente, e então emerge o fogo. Mas o fogo toma a forma de
uma árvore. Qual é a impressão dos senhores sobre isso, em comparação
com a sensação geral que ficou da visão anterior?...

Resposta: Alívio.

Dr. Jung: Tenho que dizer que todos aqueles símbolos eram infernalmente
desinteressantes. Por isso, quando o fogo emerge, graças a Deus, alguma
coisa bem decente está acontecendo. Chamas que tomam a forma de uma
árvore parecem ser um símbolo genuíno, enquanto antes não havia certeza
de que eles não estivessem adulterados, eles eram demais incertos,
enfadonhos, havia algo enganoso neles. Mas isto é certamente simbolismo,
tudo perfeitamente bem.

Esta visão consiste de três elementos, isto é, as chamas crepitantes, a


configuração da árvore e da estrela. Vejam, as chamas ou são destrutivas
ou dão calor e luz, então trata-se claramente de uma manifestação
emocional que seria MANIPÛRA. A coisa seguinte é a árvore com galhos, e
esta expansão semelhante a árvore seria ANÃHATA; é um símbolo
vegetativo, contrário ao fogo. O fogo consome a madeira, mas aqui a
madeira está viva e cresce; por isso o desenvolvimento espiritual é
simbolizado pela árvore ou pela planta, pela árvore da yoga, ou pela árvore
invertida, cujas raízes estão no céu, e assim adiante. E o fruto desta árvore
não é nem a vida orgânica nem a espiritual, e também não é o fogo; é a luz
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da estrela, a luz distante que está absolutamente além da terra, a imutável


luz eterna que não dá calor. Está além da vida, uma remota, imutável e
inatingível existência, e por isso símbolo do estado de uma alma humana
depois da morte. Também simboliza a jóia difícil de obter, a substância
eterna no homem, o centro da mandala. É o aspecto cósmico da existência;
e é o símbolo da essência da individuação.

Assim, este é o inteiro caminho de Kundalini: o fogo embaixo, a arvore em


cima e no topo o resultado, o olho único, AJÑA.

Observação: Isto lembra a visão de MOISÉS, quando ele viu Deus no


arbusto flamejante.

Dr. Jung: Bem, sim, mas isso não é tão claramente uma sucessão. Mas já
viram este simbolismo muitas vezes – ele é muito geral – ou talvez os
Senhores mesmos já o desenharam: chamas e, então, emergindo das
chamas, uma árvore ramada que carrega a luz no seu topo.

Observação: É a árvore de Natal.

Dr. Jung: Naturalmente. E em geral, no topo há uma estrela que simboliza


o nascimento do grande indivíduo, do mediador, a estrela que estava sobre
o lugar onde ele nasceu, Belém. Aqui, então, num lampejo, ela vê todo o
fenômeno Kundalini. Agora, qual é o propósito disto?

Resposta: De novo trazer de volta a consciência.

Dr. Jung: Bem, o Animus adormece, escapa para o inconsciente, e faz


emergir aquela verdadeira visão que deveria devolver a ela a percepção que
ela uma vez teve, e que agora seria particularmente importante. Vejam, ela
agora se identifica com o SELF: ela é a Grande Mãe, a grande avó, e segura
o Animus no seu colo. Ela se comporta exatamente como a Deusa mãe que
pintara anteriormente.
18

Trata-se, obviamente, de uma inflação. Ela se sente como se fosse o grande


indivíduo, e quando sentimos isso somos um missionário; sabemos tudo de
tudo e temos que distribuir isso para o mundo. Então esta é a sua atitude
consciente. E agora o Animus faz emergir esta imagem, que é real,
eternamente verdadeira. Num relance ela pode ver que este é, em si
mesmo, um processo – não ela o é – e pode descer de sua inflação.
Veremos se isto acontece. Ela diz que depois deitou o homem sobre o chão,
que lavou o seu rosto com água, que se dirigiu para o grande portão no
muro preto. E atrás do muro, veremos na visão seguinte, ela entra numa
caverna onde vivem os fantasmas.

Ela está, seguramente, com um ânimo empreendedor, muito corajosa: de


forma alguma podemos ter certeza de que desistiu de sua inflação. Na
realidade, não poderíamos esperar que ela desistisse disso, mas
provavelmente veremos que sua inflação está competindo com um outro
poder, que será o conteúdo, então, da visão seguinte.

Pergunta: Eu estava pensando se o pássaro vermelho na primeira parte da


visão seria, de certo modo, seus sentimentos feridos. O Animus é
empurrado para o inconsciente, e poderia ser que, matando o pássaro, ela
emergisse como um fogo, uma espécie de emoção.

Dr. Jung: O pássaro são seus valores feridos, e o Animus desfavorável está,
naturalmente, avaliado como inadequado, de modo que a investida do
pássaro contra o Animus é perfeitamente certa. Mas seus valores estão
também na forma “pássaro” do Animus e isto não é como deveria ser; teria
que ser seu próprio julgamento e não delegado ao Animus. Por isso, quando
o Animus mata o pássaro, tanto é certo como errado. É certo na medida em
que essa forma deveria ser morta, ela não deveria ter sido projetada, e é
errado se seus valores individuais são destruídos.

Como sabem, muitas vezes sonhamos que uma certa figura, representando
o Animus ou a Sombra, morre, e pensamos que isto é completamente
errado; mas é certo que aquela figura morra, na medida em que é uma
projeção; ela deve acabar como projeção, mas não deve acabar como
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função. Naturalmente, deve-se sempre lembrar que é apenas uma


aparência quando ela é morta ou more. Ela voltará novamente, sob outra
forma; a forma muda, mas nada se perde. O sonho de uma criança que
adoece e morre, por exemplo, é extremamente freqüente na análise, mas
apenas indica que aquela tentativa particular falhou. Mas uma tentativa que
falha não significa que o empreendimento inteiro tenha que ser terminado,
porque aquilo voltará de novo em uma outra forma.

Atuação e as Funções

Pergunta: Todas as funções devem ser usadas para que se atue


efetivamente?

Dr. Jung: Bem, seria o mais ideal se fossem. Geralmente atuamos com a
superior, a função mais diferenciada. Um pensador certamente atuará
primeiro pelo pensar, e pode esquecer ou omitir-se de fazer isso com as
outras funções. Mas a natureza não se satisfaz com isso. Por isso,
geralmente, quando alguém atua apenas com a função mais diferenciada,
de certo modo é como se não fosse efetivada; ela voltará sob outra forma,
e a pessoa deparará, de novo e de novo com a mesma situação, o que
prova que não a realizava suficientemente, necessitando outra função com
o intelecto. Então, na medida em que a atuação é uma espécie de
verificação, associa-se sensação com pensar. Não é necessariamente
apenas o processo de raciocinar que atua, mas também o processo da
sensação: a realização tem que ser baseada sobre fatos, sobre a realidade
tangível.

A atuação de um intuitivo será baseada em possibilidades. Se ambas as


funções, intuição e pensamento, estão desenvolvidas, a atuação será
primeiro uma conclusão lógica: se A é igual a B e B igual a C, A tem que ser
igual a C – alguma conclusão assim: esta será a parte lógica. Depois, com a
intuição haverá também uma noção das possibilidades, assim que na
realidade ou na psicologia, uma tal conclusão transforma-se em fatos,
finalmente, porque mesmo o intuitivo está buscando fatos, isto é
20

possibilidades que no decorrer do tempo aparecerão. Ele não necessita ter o


fato mesmo; ele se satisfaz bem com a probabilidade. Naturalmente ela a
considera uma certeza; ele supõe que a coisa certamente virá. Por isso o
intuitivo pode viver de meras probabilidades, e foge logo que as
possibilidades ameaçam tornar-se um fato. Ele abandona seu campo logo
que sabe que a semente se tornará madura, e corre para cultivar um novo
campo.

O tipo “sensação” olha todo o procedimento, mas não está satisfeito com o
fato de que a semente produzirá trigo. Ele só se satisfaz quando o trigo está
no celeiro; o processo inteiro tem que ser acabado, e ele não sonha cultivar
outro campo enquanto o primeiro ainda está crescendo. E assim,
naturalmente, ele está sempre atrás das realidades, sempre muito
atrasado, porque o mundo se move um pouco mais depressa do que sua
atuação. Ele está sempre confrontando com os fatos, e tem que trazer os
fatos à existência, porque ele é fascinado demais por certos fatos que
ocorreram antes.

Agora, certas pessoas necessitam três funções, isto é, intelecto, sensação e


intuição. Elas não apenas precisam ver que a coisa ocorre na realidade, elas
precisam também ver a que ela conduz possivelmente, no futuro, ou qual
será o seu possível efeito sobre as condições circundantes. É como se estas
pessoas tivessem que estender o processo de elucidação muito mais
adiante para realizar a importância do fato. Um exemplo seria quando um
médico pensa que uma certa doença tem que ser, digamos, a peste
bubônica. Mas ele não fica satisfeito com o fato de que isto está de acordo
com todas as regras da peste bubônica. Ele fará um exame bacteriológico e
só quando vê a bactéria dirá que se trata indubitavelmente da peste
bubônica. Mas ele não se satisfaz nem com este fato, porque então ele se
perguntará: o que significa isto? Isto significa um terrível perigo de
contágio, todos nos arredores poderiam já estar contagiados. “Poderiam” –
eles ainda não estão, até onde ele sabe, mas há uma possibilidade de que
este seja o primeiro caso de uma enorme epidemia. Assim, ele antevê uma
epidemia. E ninguém poderia dizer que ele havia realizado o fato da peste
21

enquanto ele não realizou a possibilidade de uma epidemia que ainda não
existe, que poderia nunca existir, mas há esta possibilidade.

Agora, tudo isto pode ser uma afirmação desumana, em perfeito sangue-
frio: “Um caso único e verdadeiramente interessante; meu pai sofre de
peste e eu verifiquei isso; está inteiramente de acordo com as regras. E
outro fato notável é que você também pode pega-la, porque ontem apertou
a mão dele, e sua esposa e seus filhos também podem te-la, o que será
extremamente interessante – veremos pessoas morrerem aos milhares”.

Certamente todos concordarão que este é um perfeito demônio. Vejam, ele


fala sem sentimento, e será acusado de não realizar o que significa esta
coisa maldita. É bem certo que ele não a realiza, porque ele necessita o
sentimento para uma completa realização, ele tem que ter o valor humano
da coisa.

A maioria das pessoas tem uma realização muito restrita. Elas até
consideram uma espécie de prerrogativa o não realizar. Dois dias atrás ouvi
alguém dizer: “Eu nunca penso no efeito daquilo que faço ou digo”. Eu
disse: “Mas que diabo, é seu dever considerá-lo!” “Isto não é, de forma
alguma, meu costume”, ela disse, “eu sufocaria se tivesse que pensar no
que vou dizer ou fazer”. Bem ingenuamente. E saibam, esta pessoa não é
absolutamente pouco inteligente ou tola; ela está simplesmente presa num
ponto onde não há realização...

Pergunta: A atuação pode ser absoluta ou apenas relativa?

Dr. Jung: Bem, pertence à natureza das coisas que a realização nunca
possa ser absoluta, nada pode ser absoluto. Mesmo uma assim chamada
realização total, onde o tipo “pensar” inclui o “sentir” e o tipo “sensação”
inclui a “intuição” – mesmo aí há apenas uma realização relativa. Ter uma
realização completa exige uma consciência quase universal, que não temos.
Porque cada fato existente implica a universalidade dos fatos; todos os
fatos estão sempre incluídos no fato único, porque este fato está na
continuidade. Não se pode dizer que uma parte do rio é apenas esta parte e
22

não está em conexão com o rio inteiro. Esta parte está em conexão com o
todo e para realizá-la, temos que realizar o todo – não apenas o rio, mas
também a ribanceira, não apenas esta mas todo o território, e não apenas
este, mas o continente inteiro, a terra inteira, o universo inteiro. E para
realizar isto, é preciso ter uma consciência universal. Por isso todas as
realizações são necessariamente relativas.

Os Fantasmas

Agora chegamos à visão seguinte. Ela diz:

 Visão: Entrei numa grande caverna. Das rochas pingava


água. Estava escuro.

O que significa este simbolismo?

Resposta: Ela desce de novo ao inconsciente.

Observação: A última coisa que vimos foi uma parede preta de rocha.

Dr. Jung: Sim, mas aqui há uma particularidade; não há apenas rochas
pretas e não apenas uma caverna escura. Há água pingando das rochas. O
que significa isso?

Resposta: Havia primeiro o fogo e agora, mais profundamente vem o centro


da água.

Dr. Jung: Sim, a psicologia dos chacras mostra-nos que o inconsciente não
é um grande saco, ou um buraco cheio de água ou algo semelhante; ele
tem pavimentos ou camadas e ele tem qualidades. Uma parte do
inconsciente se expressa pelo simbolismo de MÛLÃDHÃRA, outra parte por
SVÃDHISTHÃNA, e outra por MANIPÛRA, e se houver gente na condição
abençoada ou mais infeliz de VISUDDHA, então mesmo ANÃHATA seria
parte do inconsciente. Por isso, lembrem-se, no mito cosmogônico dos
PUEBLOS, há diferentes estágios através dos quais eles emergem à
23

consciência. É como se houvesse uma série de cavernas, uma acima da


outra, constituindo o inconsciente, é uma estratificação. Na última visão nós
vimos fogo, o que sempre indica uma manifestação do ígneo centro
emocional, MANIPÛRA, e aqui estamos decididamente uma camada mais
abaixo, na região escura que se chama SVÃDISTHÃNA. E ela diz:

 Visão: De repente vi uma mulher em roupagem azul


caminhando à minha frente. Eu segurei sua roupa.

O que sugere isto?

Resposta: Ela busca a mãe protetora.

Dr. Jung: Sim, isto mostra seu próprio papel infantil. Ela é como uma
criança agarrando-se à mãe, ou como aquela famosa pintura da madona
que acolhe seres humanos como criancinhas no abrigo de sua veste
celestial, o manto protetor.

 Visão: Comecei a falar com ela. Ela pousou o dedo sobre os


lábios e disse. “Segue-me. Estás entrando num lugar
terrível”.

Aqui podemos ver o verdadeiro papel desta mãe.

Observação: Ela está numa espécie de papel de Animus.

Dr. Jung: Sim, aqui ela substitui o Animus. Ela aparece no lugar do
psicopompo e vai adiante, antecipa-a. Vimos que o Animus estava na mais
desfavorável condição na visão anterior – ele adormeceu. Assim, ele não
funciona e no lugar dele está essa mãe que, obviamente, a conduz a um
lugar terrível. Qual seria este lugar?

Sugestão: Não é a caverna dos fantasmas? – porque a visão se chama “Os


Fantasmas”.
24

Dr. Jung: Sim, trata-se provavelmente de algum lugar assombrado, um


submundo cheio de fantasmas presumivelmente perigosos. O que significa
isso psicologicamente? Onde fica o mundo dos maus espíritos?

Resposta: Ele está mais fundo ainda no inconsciente. MÛLÂDHÂRA.

Dr. Jung: Sim, abaixo de SVÂDHISTHANA seria MÛLÂDHÂRA, o nível mais


profundo. E qual é o perigo deste nível mais profundo?

Resposta: Ser apanhado e engolido pelo inconsciente.

Dr. Jung: Exatamente. O caráter de MÛLÂDHÂRA é a completa


inconsciência, completa identidade mística com o objeto, nenhuma
diferenciação. Vê-se agora a cão do dragão-baleia em SVÂDHISTHANA: lá o
perigo de ser tragado completamente ainda é muito tangível porque o
MAKARA está perto de MÛLÂDHÂRA (MAKARA = crocodilo). Emerge-se de
baixo, da completa inconsciência, para o centro seguinte, SVÂDHISTHANA;
e à entrada deste segundo chacra, tem-se que passar pela boca aberta do
MAKARA. Isto é, quando alguém se eleva de uma esfera para a outra,
naturalmente passa pela zona perigosa, onde pode regredir, onde até o
mais provável é que este monstro o apanhe.

Assim, esta figura maternal mostra a ela seu relacionamento com a região
inferior, porque presumivelmente conduz a paciente para baixo, para a
região onde a espera um grande perigo... talvez ela ainda tenha a forma
positiva, ainda assim é possível que de repente ela se transforme em um
terrível demônio do submundo, o MAKARA. Agora, porque MÛLÂDHÂRA é
chamado o lugar de fantasmas? Porque teria esta qualidade?... O que são
fantasmas?

Resposta: Os ancestrais. Não seria mais uma completa participação mística?

Dr. Jung: Sim, como sabem, os fantasmas são remanescentes de vidas


anteriores, aquilo que se chama espíritos ancestrais, e os espíritos
ancestrais, psicologicamente, são as unidades que constituem nossa psique.
25

Se cindirmos a psique em seus componentes originais, nós a cindimos em


unidades mendelianas, unidades herdadas, uma parte de nossa psique vem
do avô, outra da bisavó, e assim adiante: somos uma espécie de
conglomeração de vidas ancestrais. Isto certamente conduz à idéia da
reencarnação, de que já existimos em eras anteriores, à migração das
almas, etc. Todas essas idéias vêm da vívida recordação de vidas anteriores
quando se está em uma certa condição, isto é, quando uma vida ancestral é
regenerada em nós...

[Comentário: Esse modo de ver um tanto “genético” foi mais tarde


amplificado por Jung, que afirmou ter certeza da reencarnação nos “Sonhos,
Memórias e Reflexões”.]

É possível que alguém demonstre viver a vida ancestral bem no começo,


como faz a maioria das pessoas que se desenvolve de um modo razoável e
positivo; elas crescem de várias vidas ancestrais tornando-se indivíduos
“arredondados”... Mas há pessoas também que primeiro florescem como
crianças dotadas, por exemplo, e das quais se espera mais tarde uma
maravilhosa personalidade; mas não, elas “murcham”, uma vida ancestral
irrompe e elas se tornam uma espécie de múmias ressecadas. Este é um
desenvolvimento regressivo muito freqüente. Todas as neuroses têm a ver
com estas coisas: um desenvolvimento auspicioso foi frustrado e uma vida
ancestral entra no lugar da vida individual. Ou pode-se dizer que o
desenvolvimento individual é reprimido pela vida ancestral, Mais tarde na
vida, ou já no começo, pode ser observado que a pessoa está vivendo uma
espécie de vida coletiva, não está sendo ela mesma realmente; nesse caso
ele é muito provavelmente um espírito ancestral.

Há muitas idéias semelhantes a essa entre os primitivos. Eles tentam até


encarnar as almas dos ancestrais favoráveis nos seus filhos; eles dão o
nome de um tio ou bisavô poderoso a uma pequena criança para evocar
sobre ele a alma daquele ancestral, para reencarnar aquele ancestral. Ou
eles têm a convicção de que desde o começo as crianças nada mais são do
que reencarnação de seus ancestrais, e que logo que um homem morre ele
busca um novo corpo na mesma família. Por isso os primitivos não educam
26

seus filhos nem batem neles, porque temem irritar ou ofender a dignidade
do espírito ancestral na criança, e que pode ser, talvez, um grande e
importante homem...

Pergunta: Se um certo lado de um espírito ancestral não foi realmente


vivido, não poderia haver pessoas ou um indivíduo que tem que completar
aquela vida?

Dr. Jung: Ah! Sim, mas isso não é um espírito ancestral. Isto é apenas uma
vida que não foi vivida a despeito do fato de que é herdada, porque a culta
herdada da vida não vivida de um ancestral é apenas a vida não vivida, e
aquele que não vive sua natureza herdada está morto. Mas vivendo a
natureza herdada, estamos inteiramente vivos, porque vivemos pelos
antepassados, fazemos uma tentativa de pagar os débitos deixados pelas
gerações ancestrais. O espírito ancestral de que falamos aqui não é uma
vida não vivida; ela foi vivida e já está realmente esgotada.

Bem a visão não nos conduz a MÛLÂDHÂRA, o verdadeiro lugar dos


fantasmas... Vejam, MÛLÂDHÂRA é a terra redonda, nos seus múltiplos
aspectos, não apenas o solo de que emerge a vida, mas também o lugar
para a onde a vida retorna... Esses dois aspectos da terra estão mesclados
na linguagem religiosa cristã, onde a carne é também a tumba e a decaída;
e no budismo o mundo tem um duplo aspecto, de um lado o lugar de
nascimento, o berço, e de outro, o solo sepulcral, o lugar dos espectros e da
carne putrefata.

Nós necessitamos esses dois aspectos aqui, particularmente, porque a


paciente mesma está ocupada com a sua atual transição para o mundo. E o
mundo é MÛLÂDHÂRA, o mundo raiz, o lugar de morte e nascimento, de
construção e destruição, tudo ao mesmo tempo. E tendo estes dois
aspectos, a vida é tanto uma vida real como uma vida-fantasma ancestral –
existem ambas as possibilidades, esta figura maternal a está conduzindo a
MÛLÂDHÂRA no seu duplo aspecto. Conscientemente ela entra no mundo
como se existisse nela um imperativo dizendo: Você tem que viver a vida
humana, entrar no jogo, assim encare isso esportivamente, seja o que você
27

parece ser, seja uma Persona, tenha uma vida pessoal, encontre suas
conexões ou suas condições ou possibilidades sociais. E de outro lado há
nela uma voz que diz: Este é o lugar da decaída e da morte, e o que você
vê aqui não são seres humanos, mas fantasmas.

É verdade que há um aspecto peculiarmente fantasmagórico da realidade,


naturalmente apenas para aquelas pessoas que estão voltadas para dentro,
os lunáticos, por exemplo, (psicóticos). No primeiro estágio de muitos casos
de esquizofrenia há estranhas visões de que as pessoas na rua têm rostos
lívidos e parecem mortas, fantasmas, ou têm caveiras no lugar de cabeças
humanas vivas, ou tudo está em plena decomposição, o sol perdeu seu
brilho e o ar e a água estão infestados com veneno; tudo é negativo.

Assim, esta condição é ambígua. Tudo depende, poderíamos dizer, da nossa


disposição. Uma pequena mudança na disposição e o mundo inteiro é
negativo, uma chapa fotográfica sem cor e sem atrativo... Agora, aqui é
óbvio que tal possibilidade não pode ser digerida sem uma certa hesitação.

A Bruxa como Self

Quando aquela mulher diz a ela:”Segue-me e entrarás num lugar terrível”,


é evidente que nossa paciente começa a duvidar. Assim ela diz:

 Visão: (cont.) eu vi que ela era velha e mirrada. Eu disse:


“Por que eu deveria seguir-te? Podes ser uma bruxa. Quem
és?”. Ela disse: “Tu tens pouca fé”.

Esta passagem mostra claramente a dúvida: devo eu seguir esta figura de


aspecto tão envelhecido, toda mirrada? Talvez ela seja uma bruxa, talvez
este seja o caminho errado. Aqui, naturalmente, seria o momento de
perguntar quem poderia ser esta mulher, exatamente como fez a paciente.
Agora, o que esperariam que ela respondesse?...
28

Sugestão: Ela não poderia ser a velha mulher do passado e que está
também na própria paciente, a velha mulher que a paciente será? Ela pode
ser o passado e o futuro em nós.

Dr. Jung: Muito certo, mas o que então, seria isto em nós? O que é o
passado e o futuro em nós?

Resposta: O Self.

Dr. Jung: Exatamente. Esta figura é um conceito simbólico. É o Self que une
os pares-opostos, luz e escuridão, passado e futuro e assim por diante...
Agora, o fato mesmo de ela aparecer velha e mirrada e com o aspecto de
uma bruxa mostra que ela é muito mais uma coisa do passado, e que está
possivelmente funcionando de um modo mágico... O que faz a bruxa e
como o faz?

Observação: Ela atua particularmente pela participação mística.

Dr. Jung: Sim, o feitiço atua através da fascinação, o efeito mágico consiste
em fascinação e isto está sempre baseado na participação mística... Se
reprimimos tudo que é mais consciente, as coisas decentes, podemos nos
manter num nível mais baixo, e então influenciaremos outras pessoas
através do contágio mental... Pessoas inconscientes sempre criam
inconsciência. E através disso podemos influenciar outros; podemos levá-los
a uma condição inconsciente onde se comportarão exatamente de acordo
com nossas intenções. Esta é a essência real do feitiço.

Agora aqui estaria a dúvida: esta figura encontra-se num baixo nível
inconsciente e por isso é contagiosa pela inconsciência? A paciente suspeita
que ela possa estar abaixo dela mesma, inconsciente e criando
inconsciência, e assim poderia eventualmente induzir nela inconsciência, o
que certamente significaria destruição no submundo. Mas quando ela diz:
“quem és tu?” esta mulher diz:
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 Visão: (cont.) “Olha!”. Ela retirou o vestido. Eu vi uma bela


mulher. Ela era toda verde, triunfante, deslumbrante, e
erguia-se numa luz verde. Eu inclinei a cabeça.

O que acham desta apoteose?

Observação: Ela não é uma bruxa, pelo menos.

Dr.Jung: Sim, mas ela é uma bruxa – esta é a coisa interessante. Porque
esta inconsciência na bruxa, através da qual ela atua por participação
mística é, como explicamos num seminário anterior, a entidade-elfo, o
duende que cria fascinação e produz todos os tipos de façanhas mágicas.
Agora, o duende é um espírito da vegetação – os irlandeses acertadamente
falam do povo verde – um espírito da natureza, isto é, um espírito da
criação no aspecto positivo, um aspecto divino, como os antigos deuses
eram, evidentemente, demônios da vegetação, demônios da natureza além
do julgamento ou dos valores humanos, ou da moralidade humana.

Agora, é certo que esta mulher é paradoxal e isto prova que ela e o SELF.
Esta é uma forma regular em que o SELF aparece – isto é, como o
absolutamente inexplicável espírito da natureza, às vezes positivo, às vezes
negativo. Essa aparição deslumbrante do SELF projeta, naturalmente, uma
sombra muito profunda, assim que se perguntará: Não é o demônio? E
outro perguntará: Não é o divino? Depende de que lado nos aproximamos
dele. Sempre que nos aproximamos desses fatos, nunca sabemos
exatamente onde estamos colocados, se com a cabeça para baixo ou não;
duvidamos dos nossos próprios valores, da nossa própria verdade e
perdemos nosso poder de julgamento. Por isso é esta coisa um símbolo
vivente, é alguma coisa sempre mais ou menos suprimida ou reprimida, e
tem sido o objeto dos mistérios ao longo das épocas...

Comentário: É extraordinário que aqui o SELF seja uma criatura feminina.

Dr. Jung: Não, justamente não, porque nossa paciente é uma mulher.
30

Resposta: Sim, mas muitas vezes é uma figura hermafrodita.

Dr. Jung: Este é o estágio antes do masculino e feminino serem separados;


quando eles ainda estão cindidos, o Self poderia aparecer como uma figura
hermafrodita; este é um pré-estágio. Mas a forma divina numa mulher é
uma mulher, como num homem ela é um homem, sem qualquer ênfase no
caráter sexual, pois interesses humanos ou problemas humanos parecem
ser bem imateriais, eles não importam. É bem indiferente para o espírito da
natureza se somos homens ou mulheres; o que fazemos não importa. Mas,
naturalmente, em certo sentido importa muito, já que tudo é feito sob o
comando daquela figura que diz de um só fôlego: Vá para o mundo, não vá
para o mundo. Porque é uma coisa paradoxal, seu comando é paradoxal...
ela nos empurra para o conflito. É como se este ser quisesse o conflito e
não a solução, nem uma coisa nem a outra, um conflito “dos diabos”.

Vejam, isto é peculiarmente análogo ao mistério do pronunciamento de


JESUS: “Eu vim não para trazer paz, mas uma espada”. Ele não estava
harmonizando familiazinhas; ele criou uma desordem infernal na família,
isto foi o que CRISTO significou, porque ele foi o carregador do símbolo do
SELF; ele era idêntico ao ATMAN, essa era ao menos sua qualidade –
mistério, o que quer que tenha sido como ser humano. Estas são,
infelizmente, suas próprias palavras – quero dizer, se há alguma coisa como
as “próprias palavras” do Senhor, seriam estas muito certamente.

Não é para admirar se nossa paciente tem pouca fé, porque geralmente
nossa fé nessas figuras é pouca. Vejam, nós queremos uma coisa bem
simples e certinha, tudo prontinho, não algo como um conflito. Se alguma
coisa nos conduz a um conflito temos a certeza de que é completamente
errada. Mas, à medida que assumimos que aquelas palavras são
verdadeiras, então incluímos nosso querido amigo JESUS naquela projeção.

Bem, aquela apoteose parece ser extremamente convincente, pois nossa


paciente inclina a cabeça, ela nada tem a dizer contra isso. E então esta
mulher superior veste de novo a roupagem azul:
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 Visão: Ela vestiu a roupa azul e transformou-se de novo na


velha mulher. Ela disse: “Tu entrarás no meio dos
fantasmas. Cobre tua face com o véu cinza. Eles não devem
te ver”.

Pergunta: Eu entendi, pela sua explicação, que o SELF estava conduzindo a


paciente a Nova York, para a vida diária, mas ao mesmo tempo isto
produziu um conflito neurótico que a manteve fora da vida. Eu quero saber
qual a melhor atitude prática a tomar sob tais condições.

Dr. Jung: Mas isto é exatamente o que eu não sei. Se soubesse, seria muito
mais simples, não estaríamos analisando estas visões. Este é exatamente o
ponto; é tão complicado que não se pode saber, porque é uma questão
individual... Já que a criação emerge do incognoscível, do SELF. Apenas em
situações menores, em que a questão do assunto está mais ou menos
assentada, podemos escolher a atitude – decidir conduzir a coisa assim ou
assim. Mas os problemas reais, os conflitos profundos da vida, não poder
ser solucionados por qualquer modo prescrito. Se alguém pudesse ser
aconselhado, seria um conflito menor, que poderia ser resolvido num nível
inferior, e o indivíduo permaneceria inconsciente. Se o problema pudesse
ser resolvido por uma espécie de procedimento pré-fabricado, ele nunca
experimentaria o SELF.

Só aquele que se confronta com um conflito insolúvel conhece alguma coisa


do SELF, e como ele opera. Só numa situação onde necessitamos
absolutamente uma solução criativa experimentaremos a fonte dentro de
nós mesmos. Por isso, qualquer verdadeira análise nos conduzirá a uma
situação completamente impossível, onde não há resposta, onde há apenas
um caminho a ser criado e nós mesmos não podemos criá-lo, mas
dependemos do funcionamento das fontes criativas internas. Sabem que na
luta suprema do herói, a arma comum que ele sempre carrega – como a
clava de HÉRCULES – falha, ela quebra ou é perdida, e ele tem que atuar de
mãos vazias, ele depende inteiramente da sorte ou das possibilidades
criativas na situação.
32

Vejam, é sempre necessário que haja a intercessio divina. De outra forma


nunca terá sido experimentada, e é necessário o impossível para fazer
emergir uma tal manifestação. Enquanto podemos fazê-lo nós mesmos, não
precisamos recorrer a qualquer assistência divina. Esta é uma antiga
verdade...

Agora, a parte que se segue é uma antecipação do futuro.

Círculos

 Visão: (cont.) Eu fiz como fui aconselhada. Emergimos


dentro de um grande círculo nas rochas.

O que sugere isto?

Resposta: Uma mandala.

Dr. Jung: Sim. Trata-se obviamente de uma mandala, de novo. Vejam, toda
esta série de visões é chamada “Círculos” e esta série particular é o sexto
círculo. São realmente tentativas de mandalas. É como se ela estivesse
desenhando para cada disposição, digamos, para cada variação, uma
diferente mandala, expressando a particular condição psicológica. Como
sabem, as pessoas raramente desenham uma única mandala, geralmente
elas fazem um bom número delas; ou mudam o tema ou fazem alterações,
ou as complicam ou simplificam, ou combinam as cores de modos
diferentes. No lamaismo e no tantrismo há uma grande variedade de
mandalas, diferentes formas para diferentes propósitos, e naturalmente
elas têm diferentes significados e mostram diferentes condições
psicológicas. Assim aqui há uma nova tentativa de formar uma mandala.
Agora, qual é a idéia geral da mandala?

Sugestão: É uma proteção.


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Dr. Jung: Sim, e em nenhum tempo é mais necessária do que quando


estamos indo conjurar os fantasmas... Um círculo protetor tem que ser
feito, e ele é fortificado ou pelos muitos nomes secretos dos deuses ou
pelos seus poderes imanentes, para que o espíritos que estamos conjurando
não possam atravessá-lo e nos matar. Muito frequentemente há também
círculos especiais onde o fantasma deve aparecer; ele é fixado em um certo
lugar de onde não sairá. Neste caso não o chamaríamos um círculo
protetor. Seria um círculo mágico para segurar o fantasma em certo ponto,
mas certamente a idéia geral é de proteção. Conhecem talvez um exemplo
de uma tal KATABASIS (descida) ao mundo dos fantasmas?

Resposta: Na Odisséia de ULISSES.

Dr. Jung: Sim, quando ULISSES desce ao Hades (O Invisível) ele sacrifica
uma ovelha e oferece o sangue aos espíritos. As sombras vêm beber o
sangue, mas ele o guarda com sua espada e as repele. Ele permite que
algumas se aproximem, a sombra do vidente TIRÉSIAS, por exemplo,
porque ele quer pedir seu conselho. Muitas vezes usam com frequência a
espada, para desenhar o círculo mágico nas cerimônias, porque uma espada
também significa autodefesa contra os espíritos...

 Visão: (cont.) Eu vi espíritos e fantasmas rodopiando e


girando, emitindo grandes gemidos. Alguns eram como
harpias, com grandes garras que se estendiam para nos
agarrar. Outros eram belos e voluptuosos, emitindo sons
doces, enquanto outros com rostos atormentados e
desfigurados gritavam e atravessavam o ar. A mulher ao
meu lado disse: “Eu te mostrarei.” Ela caminhou para o
centro do círculo. Aí, os fantasmas a agarraram, apertaram
e dilaceraram. Eu gritei de medo.

Quando entramos no mundo dos fantasmas, as sombras tentam agarrar-


nos e fazer-nos em pedaços... Como expressariam isso em termos
psicológicos?
34

Resposta: Esquizofrenia.

Dr. Jung: Exatamente, seria uma espécie de desempenho esquizofrênico;


como se explodíssemos. Sabem que os titãs que desmembraram o velho
DIONISO eram forças titânicas, as forças do interior da terra, as forças
vulcânicas ou geológicas que erguem as montanhas; e assim são as forças
titânicas em todos nós... Encontra-se uma idéia semelhante na cosmologia
gnóstisca: o DEMIURGO criou primeiro todas as partes dos seres humanos:
mãos, pés, cabeça e assim por diante e, depois juntou-as – como um
quebra cabeça – e quando isto estava feito cobriu a coisa inteira com
esquecimento... Mas quando o véu do esquecimento se levanta subitamente
há uma explosão, e tudo aquilo que o CRIADOR juntou de modo meio solto
cai em pedaços; um pouquinho mais folgado e já nem viveria. Não foi uma
criação perfeita, ninguém me fará jamais acreditar nisso!

Bem, a típica descida ao mundo dos fantasmas consiste, como viram, no


desmembramento. Psicologicamente expressado, significaria que ocorre
uma dissociação patológica quando alguém entra no inconsciente. Porque
ocorre lá uma tal mudança? Porque não se pode permanecer inteiro?

Sugestão: Talvez arrisca-se cair numa identificação com diferentes


fantasmas.

Dr. Jung: Acha, então, que a mudança ocorre devido à identificação com os
conteúdos do mundo dos fantasmas? Isso é verdade, mas porque a
identificação com tais conteúdos?

Resposta: Porque em certo sentido eles estão em nós.

Dr. Jung: Ah! Sim, mas há muitas coisas em nós, e não nos identificamos
necessariamente com elas, podemos nos manter indiferentes. De outro
modo estaríamos continuamente loucos e temos que partir da suposição de
que somos mais ou menos sãos...

Sugestão: Porque é mais fácil viver vidas ancestrais, é preguiça.


35

Dr. Jung: Mas podemos dizer do mesmo modo que não é fácil, que é mais
fácil viver a própria vida. Se tivéssemos que viver a vida de um ancestral
acharíamos isso extremamente aborrecido.

Observação: Penso que é porque existe uma linha demais estreita


separando os dois.

Dr. Jung: Exatamente. De outra forma, não seria absolutamente possível.


Vejam, se entramos no inconsciente, tornamo-nos também inconscientes,
tornamo-nos um dos gatos cinzentos; no escuro todos os gatos são
cinzentos, e nós somos um deles, até para nós mesmos somos cinzentos, já
que não nos enxergamos. A velha coloca aquele véu cinza sobre a paciente
para que ela possa ser como eles, para que eles não a vejam. O véu é
também uma proteção; ela não deveria ser vista pelos conteúdos do
inconsciente. Quando entramos na escuridão, dentro de nós mesmos,
tornamo-nos escuros, de outro modo não poderíamos chegar lá.

Desmembramento

Entrar no inconsciente significa, então, simplesmente, que nos tornamos


inconscientes. Então, não percam de vista seus conteúdos inconscientes,
porque do contrário, haveria o perigo de serem dissolvidos na inconsciência.
Vejam, se perdemos nossa consciência já não mais existimos. Podemos
supor que osso corpo ainda está lá, mas não o percebemos mais, como
consciência estamos dissolvidos. Por isso aquela identidade ocorre e
poderíamos ser, da mesma forma, qualquer coisa. Isto equivale a um
desmembramento, a uma completa dissociação psicológica. Assim, quando
nossa paciente vê os fantasmas agarrando aquela mulher, ela grita com
medo.

 Visão: (cont.) Então, por qualquer estranha mágica ela se


torna inteira outra vez, e me conduz além do caminho
estreito. Eu disse: “Como foi que emergimos?” Ela
36

respondeu: “Porque eu estava contigo havia uma saída. Se


tivesses entrado sozinha estarias perdida”.

O que significa isso?

Resposta: Ela preserva sua relação com a realidade, com o guia – sendo
este o SELF, sua individualidade.

Pergunta: O que significa ORFEU ter sido desmembrado pelas Mênades no


fim de sua vida?

Dr. Jung: É o mesmo que o desmembramento de ZAGREU. ORFEU simboliza


a faculdade do homem de enfeitiçar, seus poderes inconscientes. Ele fez
uma música tão doce que todos os animais selvagens tornaram-se mansos
e reuniram-se em volta dele. Isto significa simplesmente que nós mesmos
somos capazes de fazer uma música assim doce e juntar à nossa volta
todos os nossos animais selvagens; podemos enfeitiçar todos os nossos
instintos e impulsos. E então é como se fossemos apenas açúcar, 99% pelo
menos. Mas isso é magia negra, e só podemos fazê-lo quando temos a
força de imaginação para enganar a nós mesmos com o pensamento de
sermos inteiramente bons, e isso é um grande recurso.

Tentamos durante dois mil anos ser inteiramente bons. Podemos imaginar
isso durante certo tempo até que acontece alguma coisa, a imaginação
rateia em algum ponto e eis que surgem todos os demônios. Esta é a razão
porque ORFEU foi desmembrado pelas Mênades, e ZAGREU pelos TITÃS.
Isto mostra certa atitude superior do homem que, ajudada por sua
imaginação por um momento o faz acreditar que pode andar sobre as
águas. E ele pode, o poder da imaginação é realmente, muito grande.

Provavelmente todos aqueles mitos gregos foram, originalmente,


ensinamentos dos mistérios, os quais por fim foram entregues, distribuídos
a estranhos. E então, os poetas tomaram posse deles porque eram material
muito imaginativo, eles fizeram canções sobre eles e assim chegaram até o
público. Todos os mitos de todos os povos e nações ensinam importantes
37

verdades psicológicas. Assim, os mitos de ZAGREU e ORFEU ensinam que,


durante um certo tempo, efeitos quase milagrosos podem ser produzidos
pela força da imaginação, pelo exercício do tipo adequado de arte, pela
beleza e medida e proporção da música, por exemplo, a arte de sentir. Mas
no fim, perderemos nossa alma como ORFEU perdeu EURÍDICE, que foi
incapaz de trazer do submundo. Fazendo as coisas certas do modo certo e
tendo a imaginação certa, ele perdeu sua alma. E a alma contém o mistério
da individuação, o mistério da criação da vida eterna.

Vejam, as MÊNADES rasgando a carne viva do cervo ou do cabrito são como


os TITÃS na vida de DIONISO ZAGREU; o mistério do desmembramento do
Deus se repete. É o desmembramento da única atitude consciente, a função
superior, que deve retornar à vida da terra ou ao caldeirão para ser
transferida. Por isso o mito de ZAGREU é seguido pelo mito do seu
renascimento. Quando ZEUS viu o que acontecera a ZAGREU enviou seus
relâmpagos e matou os TITÃS. Eles já haviam colocado o coração vivo de
ZAGREU para cozinhar, e ZEUS o retirou no último momento, comeu-o ele
mesmo e o fez renascer. Esta é uma versão. Uma outra é que ele costurou
o coração na sua própria coxa. Há uma palavra especial para isso
MERHORHAPHES, significando aquele que está costurado na coxa para ser
re-formado, re-modelado por ZEUS.

Assim, este antigo ensinamento mostra as limitações de tais proezas como


sendo perfeitamente certas – isto é, a imaginação. É uma tremenda
tentativa destinada ao fracasso e os primeiros sintomas disso, de acordo
com o mito de ORFEU, seria a perda da nossa alma, perdemos EURÍDICE no
submundo. Agora, o que significa a perda da alma?

Sugestão: Psicologicamente não significaria que o Animus ou a Anima foi


para o inconsciente?

Dr. Jung: Sim, obviamente. Eles se perdem lá embaixo; eles perdem a


conexão com o mundo externo; já não se pode contatá-los. Mas por que é
assim?
38

Resposta: Uma consciência assim é toda unilateral, toda do lado do bem,


assim a libido do inconsciente desce para o lado errado, para o submundo.

Dr. Jung: Sim, para a escuridão. Por isso a Anima ou o Animus são os
representantes do inconsciente. Quando tentamos ser apenas luz,
naturalmente reprimimos a sombra e naturalmente o Animus e a Anima vão
junto com o resto e desaparecem. Quanto mais imaginamos que somos
99% santidade, mais nos tornamos progressivamente incapazes de ver
onde, possivelmente, poderíamos estar errados, e isto particularmente
quando nos identificamos com a função superior. É engraçado o que as
pessoas sustentam sobre suas funções superiores; para elas é exatamente
Deus, alguma coisa expressamente infalível.

Certa vez, tive uma discussão com um filósofo que afirmou que o pensar,
naturalmente, nunca poderia errar. Ouvindo isto, eu dei um pulo,
evidentemente. Vejam, o homem era expressamente idêntico ao pensar.
Ele sustentava isso como sendo tão bom e acertado, que não apenas estava
convencido de que seu pensamento não tinha falhas, mas estava
influenciado ao ponto de pensar que ele mesmo estava numa condição
perfeita, e não ele apenas, mas sua esposa e seu casamento. Assim, como
MIDAS, tudo que ele tocava se transformava em ouro. Isto me enfureceu,
naturalmente, porque sempre temi que alguém pudesse causar em mim
mesmo sentimentos de inferioridade, e aquele sujeito estava quase
conseguindo...

Mas ocorreu que, enquanto o meu amigo me fazia pregações sobre a sua
mais perfeita condição, sua esposa viajava com um jovem estudante, com o
qual mantinha relações muito estreitas. Então, eu pensei: Oh, pobre
homem, cujo pensar nunca erra! Mas na próxima vez em que o vi, ele
pregava que também aquilo era exatamente o certo e simplesmente aquilo
que tinha que ocorrer. Ele pertencia àquele grupo de pessoas que têm tão
belas disposições, que o que quer que façam é sempre a coisa certa. Assim,
eu lhes digo: façam o mesmo e serão sempre felizes!
39

Pergunta: Por que EURÍDICE desaparece quando ORFEU olha para ela? Ele
tenta retirá-la do HADES e justamente naquele momento ela desaparece de
novo.

Dr. Jung: Oh, ela era tão tola para voltar com ele, mas suficientemente
inteligente para saber o que viria depois. Sempre era mais divertido lá
embaixo, no HADES, do que neste belo mundo em que ele tocava flauta o
dia inteiro, com ursos e leões sentados por ali. Isso não tinha graça para
EURÍDICE; era muito mais agradável no submundo, aparentemente. Ela era
como a Senhora LOT, que fez a mesma coisa. Era muito mais divertido não
acompanhar o venho, e então ela ficou para trás.

Assim, ORFEU era certamente a mais ideal criatura, mas sua alma estava
entediada até a morte. Esses segredos tribais são ensinamentos muito
humanos. É extremamente útil saber sobre ORFEU, que fez música tão bela
que sua alma se perdeu no submundo e ele foi desmembrado. Podem estar
certos que a mesma coisa lhes acontecerá se sempre fazem música. É como
o velho SÓCRATES, que tentou fazer a música mais racional possível o dia
inteiro e XANTIPA não gostou nem um pouco, ela lhe deu um inferno por
causa disso. Ele teria ficado muito contente se ela voltasse ao submundo.

Pergunta: A história da crucifixão de CRISTO é a mesma coisa –


desmembramento?

Dr. Jung: Bem, este é o completo sacrifício do divino à terra. O mito de


DIONISO tinha outros aspectos filosóficos, certamente, que já haviam sido
realizados na antiguidade; isto é, que através do desmembramento de
DIONISO, a centelha divina entrou em tudo, a alma divina entrou na terra.
Assim, é perfeitamente legítimo que a crucifixão fosse a culminação da
missão de CRISTO. Ele foi enviado por Deus para redimir o mundo e,
quando conseguiu isto sendo crucificado, foi extinto, desmembrado pelos
poderes do mundo e, nesse caso, cada poder do mundo conteria a centelha
de luz. Porque quando YIN conseguiu tragar YANG, então em todo YIN há
uma centelha de YANG e então há uma possibilidade de ressurreição; esta
foi a redenção cristã.
40

Este é apenas um aspecto do complicado dogma cristão, que certamente é


uma grande verdade psicológica. É também o mistério, ensinando que se a
luz é completamente extinta por forças aparentemente inimigas, existe em
toda parte uma centelha de luz que a condição de garantia de uma posterior
ressurreição. Assim, nunca deveríamos considerar uma coisa como perdida
para sempre. Se está aparentemente extinta, simplesmente transformou-se
numa espécie de condição adormecida, uma condição de incubação, o que
significa a inauguração de uma nova mudança. Estas idéias estavam na
filosofia chinesa clássica e são muito úteis na elucidação de tais
ensinamentos simbólicos.

O motivo do desmembramento no mito cristão está também belamente


sugerido na grande cena que pertence ao simbolismo da crucifixão, onde os
soldados rasgam em pedaços as vestes de CRISTO, lançam a sorte e os
distribuem entre si; (Observação: aqui falta um detalhe na citação, porque
em SÃO JOÃO, 29:23 reza: “Porém, os soldados depois de haverem
crucificado JESUS, tomaram suas vestes e / fizeram delas quatro partes,
para cada soldado a sua parte / e a túnica. Mas a túnica não tinha costura
porque era toda tecida do alto para baixo. 24: E disseram uns para os
outros: não a rasguemos, mas lancemos sorte sobre ela, a ver quem há de
levar. Para se cumprir a Escritura que diz: Repartirão minhas vestes e
lançarão sorte sobre a minha vestidura. – E os soldados de fato assim o
fizeram); a vestimenta seria a forma dele, a sua figura, então isto é
também uma espécie de comunhão. A própria comunhão é um
desmembramento porque lá CRISTO já é desmembrado em inúmeras
partes; por sua própria determinação ele está presente na Hóstia e no vinho
e desta forma é comido. É exatamente o que os titãs fizeram com ZAGREU.
ZAGREU é o mito da comunhão, é o devorar do totem-animal; nestes ritos
totêmicos antecipa-se o dogma cristão. Há outras perguntas a respeito do
desmembramento?

Pergunta: Qual é a relação com a esquizofrenia? É o mesmo processo?

Dr. Jung: Não é exatamente o mesmo, porque a esquizofrenia é, mais


certamente, um fato patológico. Mas podemos entender uma ocorrência
41

patológica como uma espécie de exagero do processo normal. Existe uma


dissociação normal que pode acontecer num estado de emoção, normal
porque não se “solidifica”, não dura muito; depois de certo tempo ela se
organiza de novo.

Na esquizofrenia o caso não é este, porque o vaso está quebrado e os


pedaços não podem ser juntados, assim ele ficará em pedaços. Mas no
começo é bem a mesma coisa e, também, via de regra, é devida a uma
condição mental demais estreita, como aquelas pessoas que tentam ser
muito certas e corretas e por isso fazem tudo de modo errado; meticulosas
até as últimas conseqüências, tornam-se no fim bem injustas, com toda a
sua escrupulosidade. Tais pessoas erigiram uma espécie de estrutura rígida
na qual se movem, e cada movimento ocorre de acordo com certas regras e
princípios terrivelmente bitolados. Então se acontece alguma emoção, ou
alguma coisa estranha, a eles, aquela estrutura muitíssimo ridícula e
complicada e canhestra não fornece qualquer facilitação ou método de
adaptação, de modo que a coisa toda explode em pedacinhos, aquelas
pessoas simplesmente ficam loucas...

Se pessoas com mentes normais ficam um tanto descontroladas, é uma


emoção sadia; mesmo se terrivelmente descontroladas, mesmo se o plano
todo fica descontrolado, elas podem juntar todos os pedaços espalhados.
Mas se não há ninguém lá para juntar o que se espalhou, isto é a
esquizofrenia. Se uma pessoa realmente explodiu e jaz espalhada sobre o
caminho, então é bem certo que não haverá rejunção. E isto é devido,
certamente, como eu disse, a uma peculiar estreiteza da mente e da
perspectiva, que não outorga possibilidades infinitas à deidade, uma mente
que pensa que Deus só pode ser bom e que, portanto, o mundo tem que
ser bom porque Deus o fez, e se há alguma coisa má, é apenas um erro.
Tais idéias tolas prevalecem.

O Papel Protetor do Self

Bem, agora aquela mulher conduz a nossa paciente para um caminho


estreito. O que simboliza isto?
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Resposta: O caminho individual.

Dr. Jung: Sim, e este é, geralmente, um caminho extremamente difícil; é


individual porque dois não podem trilhá-lo ao mesmo tempo. A paciente,
obviamente, não entendeu como poderiam escapar daquele perigo terrível,
e a mulher disse que havia um caminho para sair porque ela estava com a
paciente. “Se tivesses entrado sozinha, estarias perdida”. A paciente
certamente teria sido desmembrada, teria sucumbido a uma explosão,
poder-se-ia dizer, se o SELF não estivesse presente. Assim o SELF assume
um papel protetor. Agora, até onde seria o SELF, psicologicamente, uma
proteção contra o desmembramento? Chegamos agora ao oposto das forças
desmembradoras, às forças que enfatizam a duração do indivíduo.

Sugestão: O SELF é a união dos opostos e por isso traz tudo para o centro.

Dr. Jung: Sim, porque se há desmembramento ou uma explosão – o


movimento centrífugo – tem que haver também, naturalmente, um centro;
esta é uma conclusão mais ou menos filosófica ou lógica. Mas deveríamos
saber até que ponto o SELF, ou a unicidade de um indivíduo, pode ser
protegida.

Comentário: Ele é protegido no momento em que adquire certos poderes


protetores. É a mesma situação, talvez, como quando anteriormente ela
adorou a estrela. Somente pela adoração a estrela pôde ter aquelas forças.

Dr. Jung: Esta seria a origem mitológica, mas como formularíamos isto
psicologicamente?

Resposta: No momento em que se sente ou se vê que existe alguma coisa


como o SELF, ele adquire esta força.

Dr. Jung: O Senhor quer dizer que é necessário ser consciente da presença
do SELF? Para que o SELF seja operante ou útil, haveria a necessidade da
consciência como uma condição indispensável? Isto está perfeitamente
certo. De outro modo, o que aconteceria com o indivíduo?
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Resposta: O indivíduo se identificaria com qualquer força coletiva


inadequada que emergisse.

Dr. Jung: Sim, ele se identificaria imediatamente com a condição em que se


encontra. Se um indivíduo não está consciente do SELF, ele é consciente
apenas dos conteúdos atualmente presentes, digamos, uma emoção ou
uma disposição, e ele vai para o inferno com este estado de ânimo, ele fica
perdido enquanto aquilo durar. Depois surge um outro estado de ânimo, o
individuo anterior se foi e esta lá um novo indivíduo!

Observa-se isto nos primitivos, e em todos os homens civilizados que são


primitivos... É difícil saber qual possa ser o verdadeiro caráter de um
primitivo. De fato descobrimos, porque ele não o tem, ele tem apenas o
caráter do estado de ânimo; eles nasceram atores e não podem evitar a
representação... Agora, em tais casos o SELF não está lá. Não há
consciência do SELF, assim o indivíduo não tem absolutamente qualquer
proteção contra a própria transformação em qualquer outra coisa. Esta é a
explicação para aqueles mitos sobre pessoas que, magicamente, se
transformaram em árvores, plantas, ou nascentes, ou todas as espécies de
animais e seres humanos. Na medida em que alguém está possuído pela
disposição de uma certa planta ou animal, de um certo evento na natureza,
alguém é aquilo e perde a própria identidade. Assim, pode-se dizer que,
num nível primitivo as pessoas realmente podem ser transformadas em
alguma outra coisa.

Isto explica também certos casos de esquizofrenia. Na Malásia, por


exemplo, eles têm uma boa quantidade de demência precoce, e o sintoma
mais comum destas formas exóticas de esquizofrenia é chamado ecopraxia,
isto é, eles imitam cada movimento e cada som que é feito. Se erguermos o
braço eles fazem o mesmo e mantém o braço erguido enquanto nós o
mantivermos; e se mudamos para o outro braço, eles fazem o mesmo, e
repetem nossas palavras. Eles são idênticos ao estado de ânimo do
momento e podem se transformar em qualquer coisa que aconteça de
verem.
44

Em casos graves de melancolia as pessoas se transformam em animais;


elas ladram e executam todos os tipos de conduta semelhantes às dos
animais. Um famoso cavalheiro cujo nome não recordo, um físico ligado à
descoberta da eletricidade, na sua idade avançada convenceu-se de que se
tornara um grão de trigo e nunca ousava sair à rua com medo de que as
galinhas o comessem.

RICHELIEU desenvolveu também uma idéia peculiar: ele pensava ser um


cavalo e costumava galopar para cima e para baixo no seu comprido
corredor, relinchando como um potro. Ele se transformou naquele animal,
naturalmente, em prol de certa compensação. Eu não conheço a psicologia
de RICHELIEU, mas deve haver uma razão para a sua transformação num
potro. Também na feitiçaria as transformações tiveram um grande papel;
bruxas eram transformadas em gatos pretos, em lobisomens e coisas
assim.

Tudo isso é simplesmente uma afirmação psicológica sobre a condição em


que as pessoas não são conscientes do SELF ou ainda não estão associadas
a ele. A questão agora, certamente é: porque a consciência do SELF
protege contra o desmembramento causado pela investida de poderes
inconscientes? Como explicariam isto?

Resposta: Porque perdemos o nosso SELF se nos identificamos com coisas e


entramos nelas; se estamos conscientes do nosso SELF é alguma coisa bem
separada.

Dr. Jung: O Senhor diria que se estamos conscientes do nosso SELF,


possivelmente não podemos nos identificar com alguma coisa que não seja
o nosso SELF? Está seguro que um estado de ânimo ou uma situação ou
uma emoção não é o nosso SELF?

Resposta: Pode ser um ingrediente, mas não é o nosso SELF.

Dr. Jung: Suponha que de repente está num péssimo estado de ânimo. Isto
é o Senhor mesmo? Este estado de ânimo lhe pertence?
45

Resposta: Se entramos no estado de ânimo, então não estamos conscientes


do nosso SELF. Não estamos conscientes da separação entre o SELF e o
estado de ânimo.

Dr. Jung: Bem, no momento em que somos conscientes do nosso SELF...


Como separado daquela disposição, o SELF nos ajuda a nos protegermos
contra o desmembramento, pelo fato seguinte: confrontamo-nos com duas
coisas – o estado de ânimo ou a emoção, ou o que quer que seja de um
lado e o SELF de outro. Temos que estar conscientes de duas coisas,
daquilo que somos e daquilo que é o estado de ânimo. Vejam, podemos
dizer: este estado de ânimo é eu mesmo, pertence a mim, e então
perdemos de vista o SELF, nos identificamos com o estado de ânimo e
vamos embora, nos distanciamos, não somos protegidos. Ou podemos
dizer: sim, este estado de ânimo me pertence, é parte de mim mesmo, mas
eu sou também consciente do SELF, e então somos protegidos.

Assim, trata-se de uma sutil operação mental em que estamos conscientes


de duas coisas. Estamos sempre inclinados a ser conscientes de uma coisa
apenas, apenas daquilo que está atualmente lá. Agora, é certamente muito
importante ser capaz de perceber o que está lá, ser capaz de se colocar
seriamente em uma situação e senti-la com todo o seu ser. Mas nunca
devemos esquecer o nosso SELF, devemos tê-lo sempre em mente. E esta
parece ser uma condição superior. Porque é uma condição superior pensar
em duas coisas em vez de uma só?

Resposta: Significa estar destacado, por uma razão: não se pode estar em
ambas ao mesmo tempo.

Dr. Jung: Exatamente, estamos necessariamente destacados. Nossa


consciência está, então como que entre duas coisas, e assim nós
dissociamos uma certa quota de energia da situação, da disposição, ou da
emoção. Com esta energia alimentamos o SELF, criamos aquela posição do
SELF, e esta peculiar dissociação mostra-se com a mais efetiva proteção
contra o fenômeno primitivo de tornar-se completamente idêntico ao estado
de ânimo. Já lhes falei muitas vezes sobre o bosquímano que era tão
46

extremamente idêntico com sua emoção, que matou seu único filho.
Naturalmente depois ele era o inverso, tão louco de dor como tinha estado
fora de si antes, com raiva. Este é um excelente exemplo da condição
infernal de estar idêntico a uma emoção.

Assim foi um tremendo conseguimento na história da humanidade, que o


homem pudesse pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Isto leva a um
alargamento da consciência, naturalmente; é realmente o começo de uma
espécie de destacamento da consciência. O progresso da civilização consiste
principalmente neste alargamento e destacamento da consciência, não só
devemos ser conscientes de duas coisas, mas também de três ou de quatro,
de muitas coisas, e de quanto mais coisas somos capazes de ser
conscientes ao mesmo tempo, mais nossa consciência é destacada e
protegida.

Comentário: Se alguém se destacasse inteiramente seria NIRVANA, não


mais vida.

Dr. Jung: Exatamente, porque lá simplesmente chegamos a um fim.


Aquelas pessoas que se esforçam para chegar ao NIRVANA entram numa
espécie de quietismo no qual desvanecem, então nada resulta disso. A vida
de um santo budista é extremamente estéril, ele simplesmente esvance.
(Observação: De novo temos aqui uma certa simplificação!) Obviamente
esta não é a meta da vida. A meta da vida é que sejamos seu joguete, que
representemos o papel, mas quando não o representamos de modo
satisfatório, criamos uma boa dose de transtornos ou perturbações ou
sofrimentos ou mesmo catástrofes. Por isso temos que nos dividir e pensar
no SELF.

Há uma locução oriental: “Representa o papel do rei, do mendigo e do


criminoso, não esquecendo os deuses”. Os Deuses, naturalmente, são
apenas aparências do SELF. Na filosofia oriental ATMAN ou BRAHMAN é
justamente o SELF, o grande alento de todos os Deuses...
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Pergunta: Eu não entendo a idéia do SELF empurrando de novo alguém


para o conflito. Eu sempre pensei que devêssemos pensar no SELF como o
lugar onde o conflito se harmonizou, que a vida criou o conflito e o SELF o
harmonizou.

Dr. Jung: A vida não gera necessariamente o conflito, porque só precisamos


estar conscientes de um lado de uma coisa, e então não há conflito – então
apenas os outros estão errados. Certamente podemos ter uma batalha fora,
mas isso não precisa ser um conflito dentro de nós, um conflito psicológico.
Essa é uma aquisição bem moderna, os Senhores sabem. Anteriormente as
pessoas não tinham essas coisas. Elas eram peculiarmente objetivas, bem
idênticas a um lado. Mas o resultado é que os demônios, então, vivem do
outro lado da rua, e se podemos chegar até eles, queimá-los e matá-los,
chamamos isso bom. Mas eles dizem o mesmo de nós e vêm até nós.

Conflitos só existem desde que descobrimos que outros seres humanos não
são necessariamente diabos, que mesmo as coisas peculiares que eles
fazem não são necessariamente o que nós supomos que sejam. Quando as
pessoas percebem isso, quando conseguem tanta objetividade, então surge
o conflito, porque não podem negar que talvez haja alguma coisa errada
também nelas mesmas. Isto é, evidentemente, a consciência do SELF...

Por exemplo, uma pessoa pode estar meramente perturbada pelo fato de
que todo mundo está contra ela, ninguém a entende; e ela é tão
encantadora, e sempre quis fazer o melhor, e é uma benção para a família
inteira, para o marido e os filhos. Mas muito interessante, eles não gostam
dela, apesar de todos os seus méritos. Agora, um caso assim tem que ser
levado a um conflito, porque ela não tem nenhum; é apenas a família que
está errada, ela é toda certa. Talvez haja alguma coisa errada com seu
estômago e o médico diz que ela está nervosa, então ela vem para a
análise. Ela não tem absolutamente consciência do SELF. Ela só tem
consciência de um lado de sua vida, de uma certa imaginação, e então a
análise a conduz para o conflito. E depois de um certo tempo ela me
amaldiçoa. Ela diz que antes era tão feliz, em paz consigo mesma e, agora,
nada mais é do que um conflito e já não pode confiar mais em si mesma.
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Vejam, o processo de individuação nos conduz inexoravelmente para dentro


de um conflito. Por isso fiz o paralelo com CRISTO quando disse que trazia
uma espada. Ele trouxe a dissociação porque, neste sentido, ele é o
princípio de individuação. Pensar em duas coisas parece ser uma ofensa
contra os nossos fundamentais direitos de existência. Todos estão lutando
contra isso: Eu posso fazer aquilo que me agrada, eu não preciso pensar
qual o efeito de milhas palavras e ações sobre outras pessoas, eu sou o rei
na minha própria casa e posso gritar na minha janela tudo que quiser.

Pergunta: No esforço de entrar em contato com o SELF, haveria a


possibilidade de alcançá-lo só às vezes? – ou se uma vez o conectamos,
isso significa que nunca escorregaremos de novo para o estado
inconsciente? Ou é como tudo mais, há uma enantiodromia que é também
parte da realidade do SELF?

Dr. Jung: Sua pergunta tem a ver com tôo o drama da relação com o SELF
e isto em si mesmo é um capítulo. Muitos mitos e imagens dizem respeito à
relação com o SELF, por exemplo, a jóia perdida, ou a pedra preciosa que
caiu da coroa e desapareceu, ou a recuperação do tesouro. Estes são mitos
que têm a ver com o fato de que, quando aquela preciosa substância do
SELF é perdida, tem que ser procurada, e eventualmente será descoberta
de novo, depois de muitas aventuras.

Então existe a possibilidade de que, atingindo o SELF, nos identificamos


com ele, e imediatamente ocorre uma terrível catástrofe. Recuperamos o
tesouro perdido e pensamos, agora está tudo em ordem, e então
desencadeia-se uma tremenda tempestade e todos os tipos de coisas
horríveis acontecem. Isto em geral é verdade. Tão logo ocorre uma certa
consciência do SELF, há uma enantiodromia devida a uma certa
identificação com ele, um assemelhar-se à onipotência divina. Porque o
SELF, de acordo com a definição oriental, é o supremo princípio, a unidade
suprema do ser, o que seria ATMAN, PURUSHA, BRHMAN. Assim, se nos
identificarmos com o SELF ficamos inflados e a inflação, certamente, é
ameaçada pela queda.
49

Por isso, sempre que o SELF emerge, temos logo uma reação. É então,
como se nós mesmos tivéssemos que executar o desmembramento titânico,
como uma espécie de reação contra o SELF. Aquele que se identifica com o
SELF está realmente procurando encrenca. Vejam, ele nos dá uma peculiar
sensação de segurança, de certeza, é como um porto que encontramos,
sentimo-nos definitiva e belamente protegidos – e, então, no momento
seguinte bancamos o demônio contra nós mesmos, para destruir aquela
segurança. Ninguém quereria ficar em segurança para sempre, porque a
segurança é uma auto-decepção; querer permanecer na segurança do SELF
é uma espécie de abuso ou blasfêmia contra o movimento da vida; ninguém
deve permanecer em segurança, é imoral, retém o movimento da vida. Por
isso nós mesmos perturbamos de novo aquela ordem.

Devemos ter sempre em mente que a extrema identidade com um estado


de ânimo, a experiência absoluta de uma emoção ou de uma aventura de
um lado, e o SELF de outro, são simplesmente pólos da vida psíquica, e a
nossa vida, a nossa consciência, ocorre entre os dois. Ela não pode ser nem
um nem outro. Se ela for ou um ou outro, cessamos de existir: num dos
casos, explodimos em pedacinhos, no outro somos agregados com a
totalidade da criação em um ser superior, na sobre humana consciência ou
inconsciência da deidade. As duas condições são bem as mesmas.

Pergunta: Então o próprio fato de que a tentativa inconsciente de romper é


parte do ritual do SELF, faz com que seja parte do solidificar ou cristalizar?

Dr. Jung: Exatamente. O rompimento ou desmembramento é parte do ritual


dos cultos do mistério. É a comunhão ritual, o partir do pão, e a distribuição
do manto, e o dilacerar da carne viva nos mistérios dionisíacos. Um
fragmento, um verso apenas de EURÍPEDES foi descoberto, no qual ele fala
de uma espécie de confissão mística onde o “mystei” (iniciado) é citado
quando diz: “Depois que terminei as refeições de carne crua”. Vejam, isso
se refere, obviamente, a esse desmembramento ritual, onde o Deus era
comido na forma de um animal como ZAGREU foi morto, não na forma
humana, mas apenas quando assumiu a forma de um touro. Assim, o
desmembramento é parte do ritual, e certamente é necessário como um
50

ritual, para que o SELF se torne real. O SELF é alguma coisa tão intangível,
quase uma exigência mágica, que necessita um ritual para solidificá-lo. É
como se o SELF fosse um ponto tão sutil que dificilmente pudesse vir à
existência.

Andando sobre Faces

Agora continuemos com a próxima visão. A mesma cena continua. Aqui


devo lembrar-lhes de novo o fato de que é muito questionável o quê essa
paciente irá fazer – se continuará o caminho da individuação ou se
readaptará à perda da alma, isto é, por uma convencional readaptação em
consciência do SELF. Assim, temos que encarar o que se segue de um modo
bastante crítico, e nos perguntarmos se há progresso ou se é antes uma
regressão, uma volta a um nível mais primitivo de adaptação. Em outras
palavras, ela se prepara para adaptar-se com o SELF ou sem ele?

 Visão: (cont.) A mulher disse: “Agora desce comigo”. Ela


me conduziu muitos degraus abaixo e eu me sentia
amedrontada. Percebi que os degraus eram faces feitas de
pequenos pedaços de esmalte de diferentes cores. Eu disse
à mulher: “Eu caminho sobre faces”. Ela respondeu: “Sim,
isto tem que ser assim”.

O que acontece agora? Porque, afinal de contas, encontrou-se ela com o


SELF? Qual era a dificuldade anterior? Qual é a intenção da paciente? Bem,
a intenção geral, é certamente, o seu problema atual, como readaptar-se à
realidade de Nova York. Naturalmente, ela está amedrontada, já que está
no céu e que os outros estão indo para o inferno, e há justamente o perigo
de que faça alguma coisa das mais estúpidas e se perca inteiramente num
nível mais primitivo. Por isso o SELF aparece e diz: Seja você mesma,
menina, apenas você mesma. Mas ela é desajeitada e fantasista, e assim a
instrução continua, a mulher a conduz, a acompanha até o seu mundo,
sempre tentando dizer-lhe: Alegre-se e não banque a boba.
51

As pessoas auto-conscientes sempre tentam ser elas mesmas, porém


evitam isso muito cuidadosamente. Auto-consciência é uma espécie de
doença da consciência do SELF. O que se pode dizer de uma pessoa que é
auto-consciente? Você não pode ser melhor do que é, porque deveria você
ser auto-consciente? Você é apenas tolo. Eu também tenho que dizer a
mesma coisa a mim mesmo, naturalmente, e sei muito bem porque preciso
disto. Cada um de nós durante certo tempo, é doente com este assunto de
auto-consciência.

Agora aqui, a mulher toma a mão da paciente e diz: Vem, continuemos o


caminho estreito onde não se pode ser outra coisa do que si mesmo, vamos
entrar agora no mundo, vamos experimentá-lo. Observem, aquele lugar no
submundo no qual elas se movimentam é MULADHARA, a 42ª Avenida, ou
qualquer lugar semelhante. E lá, naturalmente, ela vê muitos rostos e as
pessoas fazem caretas para ela, porque ela tem chifres, ela é analisada. Ela
é consciente demais deste fato e pensa que deve andar sobre aquelas faces
de esmalte, que são perfeitamente artificiais; então isto significa lidar com o
mundo como se fossem faces pintadas, e isto é uma completa depreciação
do meio. É como se numa descrição de uma reunião social, disséssemos
que haviam rostos no ar que nos fixavam, indicando que nos sentimos
terrivelmente auto-conscientes, com todos os rostos virados para nós.
Então o reverso seria andar sobre os rostos, porque eles não eram
humanos, meramente pinturas. Isto significa que a coisa toda não é real...
E é isto que o SELF quer insinuar aqui com este simbolismo tão peculiar. Ela
diz que a paciente deve caminhar sobre aqueles rostos artificiais de
pessoas, pô-los sobre seus pés – entendendo que não são reais...

Uma condição de certo modo insuportável levou esta paciente a análise, e


imediatamente ela entrou num balanceio que a elevou até uma certa
culminação, e agora nós estamos do outro lado da montanha, onde o
caminho obviamente leva para baixo, para um outro tipo de realidade. E
quando estudamos o comportamento do simbolismo inconsciente deste
lado, e o comparamos com aquele do outro lado, vemos uma diferença
notável, isto é, que certos simbolismos que nesse lado da montanha
aparecem sob um aspecto positivo, do outro lado aparecem sob um aspecto
52

negativo. Isto naturalmente afeta não apenas a estrutura, a formação atual,


ou a beleza, mas afeta também a disposição interna da coisa toda.

Eu não sei se os Senhores sentiram o mesmo a respeito dessas visões, mas


devo confessar que para mim elas têm um caráter insatisfatório peculiar,
como um desperdício sem sentido. Elas são como aquela cidade construída
no inconsciente até que pareceu tornar-se extremamente significante, e
então a coisa toda se dissolveu como se não tivesse sido, como uma Fata
Morgana (miragem). Então pensamos: bem, foi-se como um sonho da
noite, já não é verdadeiro. Anteriormente parecia como se fosse a mais
importante verdade, a realidade absoluta, e agora a coisa toda se desfaz. E
então a consciência, sendo uma coisa muito banal, naturalmente, pensa:
evidentemente eu estava errada, a nova verdade é agora assim e assim –
não vendo a coisa como um todo. É como a psicologia de massa dos nossos
dias: um novo “ismo” aparece e as pessoas dizem que esta agora é a
verdade, e até se matam uns aos outros por ela. Se elas tivessem
pensamentos tão compridos como os cabelos de um sapo, como costumava
dizer um dos meus professores, teriam uma visão mais ampla, saberiam
que esta é uma fase do processo e que haverá outra faze; a onda não
apenas sobe, ela também desce, de outro modo não haveria movimento. A
vida consiste nesta natural enantiodromia.

Vejam, uma verdade só é uma verdade quando vive, uma verdade que não
vive é perfeitamente despropositada. Ela precisa mesmo tornar-se uma
inverdade, às vezes, deve ser capaz de tornar-se o seu próprio oposto.
Assim, não podemos realmente nos identificar com uma tal convicção ou
verdade; sabemos que ela se move sob os nossos pés e não importa, ou
não deveria importar, se seu aspecto é positivo ou negativo. Mas eu
admito: é extremamente difícil pensar paradoxalmente.

Agora, continuemos com as visões, que são em parte irritantes, ou pior, são
enfadonhas. Estes rostos sobre os quais ela caminha são extremamente
desinteressantes, o que de fato vemos é que são de esmalte, seres
humanos reduzidos a rostos fragmentários e pintados, completamente
irreais. Isto significa que o todo da humanidade tornou-se bem irreal para
53

ela, porque o impulso foi tão grande que nossa paciente foi elevada ao céu,
onde certamente a humanidade consiste apenas de uma superfície de
pequenos discos ovais. Se estivermos num balão ou numa torre alta, e
olhamos para baixo, para a multidão com os rostos virados para cima, eles
parecem como pequenos discos pintados, como se pudéssemos andar sobre
eles como um tapete. E não podemos evitar a identificação com este
aspecto da humanidade e ficamos entediados.

Agora, a mulher, o SELF, continuou e nossa paciente teve que segui-la. Já


não é mais o psicopompo; é agora realmente o SELF que conduz, o que
seria um fato extremamente positivo, por aquilo que sabemos do SELF. Mas
nesse caso, o SELF está se movimentando de modo misterioso, está agindo
como um Deus Absconditus, o Deus oculto no protestantismo, o Deus que
faz todas as coisas ilegítimas, que seria blasfêmia atribuir a Deus, todas as
coisas ruins que não se pode compreender e que por isso atribuímos ao
diabo...

Poderíamos dizer que a idéia do SELF seria um equivalente do conceito de


Deus como é na filosofia oriental. ATMAN é o equivalente de Deus e ATMAN
é o SELF. Assim, já que alguém tem que ser responsável por todo o mal no
mundo, o SELF, naturalmente compartilha a responsabilidade. Por isso o
SELF conduz não apenas a todas as coisas boas e respeitáveis, mas
também a todas as coisas infames que o homem é capaz de fazer.
Entendemos que o SELF como sendo o símbolo reconciliador, o mais
desejável fruto da função transcendente, mas quando é necessário, ele é
um encrenqueiro, o tolo para si mesmo, e isso também é bom.

Voltando ao Corpo

Agora, depois que a paciente atingiu certa culminação, o psicopompo


retirou-se e a própria paciente tomou a direção, e então ela encontrou o
SELF e este tomou a direção. Este é o caminho lógico, o caminho sintético,
o caminho que tinha que ser, poderíamos dizer, desde que o indivíduo
tenha a idade suficiente e a suficiente experiência para lhe ser permitido ir
naquele caminho, em todo caso. Mas se ela é demasiado jovem e
54

inexperiente, se não está destinada a ir naquele caminho, mesmo assim ela


pode ser impelida para lá, como qualquer imbecil pode sê-lo, se uma
psicose o empurra para lá. Qualquer um pode cair numa mina de ouro,
como qualquer um pode entrar na água fervendo.

Pode acontecer à pessoa que menos se espera, que caia dentro de uma
individuação, como se caísse do telhado – como PARSIFAL, que era um
perfeito asno e apenas despencou dentro do Santo Graal, sem saber que
diabo era tudo aquilo, era apenas um engano seu; aparentemente, tinha
sido predeterminado que ele deveria aparecer naquela augusta assembléia,
onde, de forma alguma, ele estava preparado para isso. Naturalmente, este
é um acontecimento tão comum, que alguém perturbe a assembléia do
Santo Graal, que merece o direito de ser um arquétipo, o tolo aparece ao
apenas nesta lenda em particular, mas é geralmente válido no mundo todo.

Assim, pode acontecer que alguém seja simplesmente impelido a este tipo
de caminho e atravesse todo o desempenho como se fosse apenas uma
excursão através do país num trem expresso, com alguém explicando: este
é PLATÃO, ali está SÓCRATES, aqui é o PARTENON. “O que foi que ele
disse?” – “PARTENON”. “Nunca ouvi falar, o que é isto?” – “É um templo
antigo, tem 2.600 anos”. E ele diz: “Portentosas coisas antigas” e lá vai ele
para uma nova vista... Depende de nós, o entendermos ou não, está
sempre lá.

Vejam, o procedimento inteiro neste caso não era bem como uma
avalanche, não era involuntário, seria errado dizer isso. Houve também
esforço, e numa certa extensão havia consciência em relação a isso, mesmo
assim é extremamente difícil descobrir quanta consciência e
responsabilidade havia nisto; é muito difícil acertar quanto à questão da
responsabilidade...

O SELF, como o Deus Absconditus, pode destruir seu próprio simbolismo


para um determinado propósito: quando o grande impulso levou um
indivíduo para dentro do mundo dos mistérios simbólicos, nada vem disto,
nada pode vir disto, a não ser que tenha sido associado à terra, a não ser
55

que tenha ocorrido quando o indivíduo estava no corpo. Sabem, se a nossa


alma é destacável, como na condição primitiva, somos simplesmente
hipnotizados em uma espécie de estado sonambúlico ou transe, e o que
quer que experimentemos nesta condição não é sentido porque não foi
experimentado no corpo – não estávamos lá quando aconteceu.

E assim, a individuação só pode ocorrer se primeiro retornamos ao corpo, a


nossa terra, só então ela se torna verdadeira. Eu não sei se fui claro, isto é
muito sutil. A razão pela qual a estrutura inteira do simbolismo está sendo
feita em pedaços é que o SELF quer sua própria destruição como uma forma
simbólica, para mandar embora o indivíduo de modo que este possa perder-
se na terra. Ela tem que voltar à terra, ao corpo, à sua própria unicidade e
separatividade; de outro modo ela é a corrente da vida, ela o rio inteiro, e
nada aconteceu porque ninguém o percebeu.

A individuação só pode ocorrer quando é percebida, quando alguém está lá


e a registra; de outro modo, é a eterna melodia do vento no deserto...

Uma coisa assim não teria acontecido se a primeira parte das visões tivesse
sido vista por alguém que estava no seu corpo, que estava aqui e agora.
Mas a nossa paciente não estava bem no corpo, ela estava em alguém lugar
fora, sua alma estava instalada no seu corpo, ela estava em algum lugar
fora, sua alma estava instalada no seu corpo de uma forma muito frouxa.
Então alguma coisa acontece e, zás! – ela voa numa espécie de entusiasmo,
a alguma coisa que acontece então talvez não tenha absolutamente
acontecido, ou apenas relativamente. Assim, para tornar a coisa toda
realmente verdadeira, ela tem que voltar ao corpo, depois deste vôo, e é
sempre o SELF que diz: “Segue-me, obedece desta vez, tens que voltar aos
teus sentidos”. Exatamente como o velho GURNEMANZ primeiramente faz
com que PARSIFAL conheça o mistério do Santo Graal e depois então o
chuta fora e o xinga, porque PARSIFAL não entendeu. Ele deveria ter
perguntado: Mas o que há com aquele homem AMFORTAS, e o que é tudo
isso, afinal de constas? Mas não, ele deixou passar sem levantar um dedo, e
por isso foi posto fora.
56

O que é GURNEMANZ para PARCIFAL, esta MULHER-SELF é para a paciente;


ela simplesmente assume a direção e a paciente a segue. E quando ela
chega àqueles rostos quebrados de esmalte, a mulher não a deixaria parar.
Ela diz:

 Visão: (cont.) Eu vi que as faces estavam quebradas e quis


parar para recompô-las, mas a mulher à minha frente,
continuou e eu não pude parar. Chegamos a um círculo nas
rochas. Tudo era escavado e árido. A mulher desapareceu.

Então aquela mulher a deixou só, o que significa que ela chega agora a um
lugar muito árido, onde não há nada, não há vida. Vejam, ela esteve
distante da sua vida. Aquele círculo de rochas, aquela mandala, é o corpo
individual, ela volta agora à sua realidade terrena, que ela tinha deixado
para trás, e por isso tudo é árido. Ela é deixada sozinha com o problema da
sua realidade.

Comentário: Seria ir longe demais dizer que com muita frequência não se
vive no corpo durante a análise, que é preciso voltar à própria realidade
para experimentá-lo de modo absoluto? A análise, em si mesma, nunca é
uma situação real; é uma antecipação. Como a iniciação é uma antecipação.
É preciso estar no seu próprio lugar, como ela está, quando volta à
América.

Dr. Jung: É sempre mais ou menos assim, mas mesmo na análise alguém
pode estar mais no corpo. Certas pessoas estão bem fora: à mais leve
provocação elas pulam fora de suas peles e, é perfeitamente impossível
impedi-las. Algumas vezes certas pessoas entram num caminho bem
perigoso: são inundadas pelo inconsciente e afogam-se nele. Felizmente
uma coisa assim nunca ocorreu comigo. Um paciente assim foi-me enviado
por um colega que me pediu que aceitasse o caso, mas era tarde demais.
Tratava-se de um homem que fora “destampado” pela análise, e para fora
jorrara o rio inteiro do inconsciente; não era possível fazê-lo parar. Tentei
erguer diques, mas a água vazava por cima de tudo e ele enlouqueceu. Não
se pode responsabilizar o médico por isto, é apenas uma infelicidade, como
57

por exemplo, em muitos mil casos de narcose com clorofórmio, um caso


reage com morte instantânea e isso não pode ser evitado. Isto pode
acontecer com o mais hábil cirurgião.

Espero ter sido claro quanto a essa parte confessadamente difícil da


psicologia, o papel paradoxal do SELF. O SELF está aqui conduzindo a
paciente de volta ao corpo, à realidade tangível. Como sabem, na psicologia
do inconsciente o corpo é sempre alguma coisa como terra, é duro, denso,
algo que não pode ser removido, é um obstáculo absoluto. É o aqui e agora,
porque quando alguém está realmente no aqui e agora, está no corpo. Mas
nós temos uma faculdade peculiar para pular fora do corpo...

Pergunta: Até que ponto ajudaria a paciente se ela voltasse para o corpo?
Ela seria capaz de entendê-lo ou teria que começar tudo de novo?

Dr. Jung: Qualquer coisa experimentada fora do corpo tem a qualidade de


ser sem corpo; então temos que experimentar a coisa toda outra vez, ela
tem que vir de um outro modo. Então tudo que aprendemos na análise nos
acontecerá praticamente na realidade, apenas é difícil dizer como a
experiência analítica encobre a experiência real. Tem que ser assim, no
entanto, porque somos o ponto de identidade, somos aquele que
experimenta a análise e somos aquele que experimenta a vida.

Qualquer coisa experimentada fora do corpo, num sonho, por exemplo, não
é experimentado, a menos que o “incorporemos”, porque o corpo significa o
aqui e agora. Se apenas temos um sonho e o deixamos passar por nós,
nada aconteceu, mesmo que tenha sido o sonho mais espantoso. Mas se
olhamos para ele com o propósito de tentarmos entendê-lo, e o
conseguimos, então o trouxemos para o aqui e agora, o que significa para o
corpo, porque o corpo é uma expressão visível do aqui e agora.

Por exemplo, se não trouxermos nosso corpo para a sala, ninguém seria
capaz de dizer que estivemos aqui; temos que estar aqui no corpo, de outro
modo os outros não o saberão. Embora mesmo parecendo estar no corpo,
não é de modo algum certo estarmos aqui, porque nossa mente poderia
58

estar vagando por aí sem que realizássemos isso, e então tudo o que
aconteceu aqui não é percebido, seria como um sonho...

O Problema Erótico

Pergunta: Antes de vir para a análise a paciente tinha um problema erótico,


e aqui ela teve que abordar o problema do Animus em conexão com aquilo.
Mas o problema erótico em si mesmo contém anão apenas o problema do
Animus, mas o problema do corpo também. Então eu tostaria de saber se
ela lidou com esse problema do corpo ou o deixou passar.

Dr. Jung: Bem, certamente seria muito interessante saber isso, mas eu
estou preso a uma certa discrição neste caso, assim temo que devamos nos
manter apenas no lado meramente simbólico, podemos tratar esse material
apenas de modo geral. É uma pena, mas podem julgar pelo caráter das
visões se elas vêm da mera repressão do problema erótico, ou de uma real
aceitação dele.

Mas, de qualquer forma, o problema erótico e este problema do corpo não


são um e o mesmo, porque o aspecto EROS é apenas um aspecto, não é o
único representante do aqui e agora. É possível assumir um problema
erótico e não estar nem aqui nem agora, podemos estar dez mil anos para
trás ou em algum lugar no futuro, o problema de EROS não é idêntico com
a realidade do aqui e agora. Pessoas que vivem uma quantidade de
experiências eróticas, de forma alguma são necessariamente reais. Neste
caso o problema erótico era um assunto paralelo. Naturalmente ele está
conectado com as visões; como sabem, elas começaram com um problema
assim, mas esta não era a causa, era apenas a sintomatologia. A
causalidade de uma tal condição está muito mais atrás que o problema
erótico.

Freud viu isso, e esta é a razão pela qual ele forçou o problema erótico a
voltar ao seio materno ou ao útero. Ele viu muito claramente que não é
possível partir arbitrariamente da fase da adolescência., mas que havia
caminhos, conexões, conduzindo de volta à infância, e assim foi forçado à
59

hipótese de que a sexualidade tem que ser alguma coisa que existe ab ovo.
Esse reconhecimento é devido meramente ao fato de que ela não podia
evitar ver que os problemas eróticos, aqueles grandes problemas da vida,
começam já nas névoas das idades pré-históricas. O erro, ao meu ver, é
que ela chama tudo isso sexual. Estou absolutamente convencido do fato de
que a lagarta come sua folha com gosto porque gosta dela, como eu como
um bom pernil com prazer, e isso não é sexualidade, a lagarta nem mesmo
tem genitais, é um ser perfeitamente assexuado, e como com visível prazer.
Assim, eu entendo muito bem que a criança tenha prazer junto ao seio da
mãe, ela gosta daquela matéria e tem grande satisfação em sugá-la, isto é
genuíno. Porque diabos deveria ser sexual quando ela tem espasmos? As
pessoas podem ter espasmos por outras coisas, o cobrador de impostos,
por exemplo, e poderíamos nos tornar muito impopulares se assumíssemos
uma transferência homossexual com o cobrador de impostos. Assim,
chamem as coisas muito naturalmente pelos seus nomes e não estendam
um tal conceito sobre uma área onde ele nunca foi válido.

É um fato que qualquer grande e fundamental conflito tem um aspecto ou


mais ou menos erótico, ele se expressa também nesta área da vida. Mas se
as pessoas não tivessem nenhuma sexualidade, se fossem uma espécie de
lagartas assexuadas, elas teriam também esses grandes problemas, só que
então não seria um problema entre dois “animi” ou alguma coisa assim,
seria um conflito como o do asno que morreu entre duas pilhas de feno, não
sabendo qual seria melhor comer – um tremendo problema. Da mesma
forma, aquela lagarta vacilaria para lá e para cá entre duas folhas, ou
pensaria que devia ter comido outra folha mais para cima ou mais para
baixo. Assim, o problema inteiro poderia ser expresso também assim: O
que faz ele? Ele come. Por isso, qualquer problemática se expressará no ato
de comer.

Desde que somos seres sexuais, naturalmente o problema se expressará


também na sexualidade, mas a sexualidade é uma forma, não é causal, e a
prova disto é que nas épocas remotas ela não existia, absolutamente, não
tinha se desenvolvido. Poderíamos dizer que tinha algo a ver com o comer,
naturalmente; porque a primeira coisa que fazemos é sugar. Assim, poderia
60

ser dito que a sexualidade era simplesmente um engano no comer, a


repressão dos instintos nutritivos, e o que realmente comer é uma fêmea.
Historicamente isto é uma verdade, e há canibais que fazem isso – eles
mostram sua sexualidade no fato de que comem seus amigos e parentes.

Agora, vamos supor que alguém com um problema erótico reprime a


existência dele, comporta-se como se ele não existisse. Isto é muito
freqüente, a histeria comum é um caso tipicamente freudiano. Em primeiro
lugar temos que dizer a essas pessoas para não fazer muito alarde disso,
porque há algum problema por trás de tudo aquilo. Vejam, cada vez que
um certo cavalheiro passa em frente à casa há um sintoma assim, e é
perfeitamente óbvio que se há uma transferência para aquele indivíduo e o
conflito é reprimido, a histeria aparece. Mas se estudamos as fantasias de
tais pessoas, descobrimos que elas estão a milhas de distância de todas as
possibilidades do complexo erótico; elas têm maravilhosas fantasias róseas
e brancas onde tudo é ideal, são como as novelas antigas, tudo está
doentiamente arrumado e nos faz mal ouvir. Elas logo sentem que comigo
isso não funciona e param.

Então, a possibilidade seguinte é que elas não reprimem o problema


erótico, mas o aceitam, fazem dele um problema real. Mas isso não significa
que elas estão no corpo; elas podem realizá-lo no ano 2.500 a.C. ou em
3.000 d.C., não aqui, mas nas alturas das montanhas do Himalaia, ou Deus
sabe aonde; elas podem realizá-lo numa fantasia. Há muitas pessoas – eu
poderia lhes falar de figuras históricas – que andam por aí como num
sonho; elas não vivem aqui e agora, elas vivem numa esfera histórica ou
mitológica. É espantoso como muitas pessoas estão um tanto distanciadas
de si mesmas; elas não têm os pés no chão.

Assim, o problema neste caso não tem a ver com o aspecto erótico, tem a
ver com aqui e agora – o que ela vai fazer aqui e agora quando confrontada
com a realidade absoluta. É uma ilusão perguntar a alguém o que vai fazer
em relação com um complexo específico, porque não podemos solucionar
um único complexo por ele mesmo, só podemos solucioná-lo com a ajuda
de alguma coisa mais – do mesmo modo como não é possível reverter um
61

determinado processo energético com menos energia do que o processo já


possui. Para evitar que uma pedra que cai atinja o solo, temos que aplicar
uma energia maior do que a energia da pedra que cai, para poder erguê-la
de novo ao seu nível anterior. E assim, não podemos dissolver um complexo
pelas suas próprias possibilidades; precisamos sempre um outro auxílio, um
outro ponto de vista, alguma coisa de fora que nos tira dele. Então a única
pergunta possível seria, não como você pode resolver este problema
particular, mas o que você deve fazer hoje, e como você pode fazê-lo, o
que é possível agora e aqui. Isto significa uma atitude que não escolhe, que
não antecipa, que não seleciona complexos, porque tudo isso é
racionalização.

Só podemos ter uma atitude geral, que é válida para qualquer situação na
vida. Se somos capazes de fazer aquilo que é para ser feito exatamente
agora e exatamente aqui, estamos preparados para qualquer situação.
Perguntando a nós mesmos como podemos resolver nosso problema
erótico, bem, poderemos possivelmente resolvê-lo, mas então não temos
uma atitude em relação às outras coisas; podemos ser assaltados por
algum outro problema, há muitas outras possibilidades. Por ter que
reconhecer que havia muitos problemas além do problema erótico, FREUD
teve que estender sua definição de sexualidade, fazê-la tão elástica que
cobriria qualquer possibilidade; assim, nos pontos mais dessemelhantes
somos chamados a descobrir um traço de sexo. Podemos descobrir um
traço de sexo como podemos descobrir um traço de qualquer outra coisa,
da nossa refeição do meio-dia, por exemplo...

É a atitude geral que soluciona o problema. De outro modo, tentamos


antecipar o resultado, representar o papel de Deus e escolher o caminho do
mundo, e naturalmente, isso nos conduz a toda a sorte de erros e enganos;
preparamo-nos para coisas que nunca acontecem, desperdiçamos uma
enorme quantidade de energia em possibilidades fúteis, e neste meio tempo
já omitimos o que deveríamos fazer agora. Os Senhores vêem isso na
análise prática, provavelmente já o experimentaram. Se escolhermos as
possibilidades milhas à frente, perdemos por completo a graça do momento
presente, comportamo-nos do modo mais tolo, porque estamos pensando
62

sabe Deus o que, o que poderia ser, o que foi, mas não o que é. Muitas
pessoas vivem suas vidas de um modo a não tocar a vida em parte alguma,
estão sempre numa espécie de sonho, como se a coisa toda não tivesse
acontecido, como se nunca tivesse sido verdadeiro. E, certamente, quanto
mais alguém viveu fora da vida, tanto mais tenta defender-se contra ela,
inventando todos os tipos de mecanismos de segurança, como os que
ADLER descreveu tão acertadamente. Como sabem, ele insistiu
particularmente neste lado, as ficções por meio das quais a pessoa se
coloca em segurança; e é sempre segurança contra a vida, contra o aqui e
agora, em vez de se submeter às coisas como elas são. Com a atitude do
aqui e agora tira-se o maior proveito de uma situação, dizemos o que temos
que dizer, e fazemos o que temos que fazer.

A dificuldade da nossa paciente, então, foi o impulso. Não se pode dizer que
era errado, simplesmente aconteceu, ela saltou um pouco longe demais,
além de um certo limite, agora tem que voltar porque a vida deveria tornar-
se real; e isto nada tem a ver com o problema sexual. O problema nestas
visões consiste, como digo, numa certa irrealidade. Não importa o que
experimentamos, em qualquer ponto podemos ser irreais...

A Pirâmide Vermelha

Bem, nossa paciente agora chega àquele círculo de rocha, onde o solo é
árido e escalvado, e lá ela diz:

 Visão: Eu dei voltas e mais voltas.

O que significa isto?

Resposta: Circuambulatio.

Dr. Jung: Sim, está se formando o círculo mágico; é também contemplação,


uma espécie de adoração do lugar, exatamente como as colinas sagradas,
as STUPAS – particularmente no budismo – estão sendo circum-ambuladas
por sacerdotes, sempre no sentido do relógio. Então ela diz:
63

 Visão: Por fim vi a terra movendo-se no centro do círculo.

...Assim, ela está impregnando a terra pela circum-ambulação, porque


deste modo o objeto de adoração é carregado com o poder do fetiche, com
mana. É como esfregar o fetiche que assim recebe uma espécie de carga
elétrica, e tudo que está sendo imbuído com aquele poder mágico começa a
mover-se. Se olharmos o tempo suficiente para uma coisa, ela se move.
Assim, se estamos tentando ter uma fantasia e temos apenas uma imagem,
nada mais que uma pantera negra, digamos, se a fixarmos, depois de um
pouco ela começa a mover-se, porque nós a carregamos com vida. É assim
que as crianças se divertem...

 Visão: (cont.) E a terra partiu-se e então, lentamente, ali


ergueu-se uma grande pirâmide vermelha.

A grande pirâmide vermelha saindo da terra é, certamente, a mais óbvia


demonstração desse tipo de simbolismo – a circum-ambulatio, a
contemplação ou impregnação, e o verdadeiro nascimento do conteúdo. Há
a sugestão de alguma coisa pontuda que se ergue de baixo, rompe a crosta
da terra e aparece na superfície.

 Visão: (cont.) Raios azuis e brancos saíram dela


estendendo-se no chão e transformaram-se em mármore.
Eu estava ali, admirada. Depois caminhei para a pirâmide.
Vi uma faca da qual pingava sangue.

Este negócio de sangue é sempre desagradável; com frequência parece


significar uma espécie de sentimentalismo, estar com pena de si mesma ou
de alguma coisa que a representa...

Pergunta: Há uma boa dose de confusão sobre o significado de sua


definição de estar no corpo como “aqui e agora”. O Senhor diria que era
uma realização consciente do momento presente, estando “tudo lá”, e
incluindo uma atitude responsável – como oposta à percepção atônita de
flutuar no rio da vida? Os primitivos e os animais que passam por
64

extraordinárias experiências, estão nos seus corpos, e certamente estão


percebendo o momento presente, no sentido comum das palavras, mas lhes
falta o enfoque responsável que daria qualquer sentido duradouro a estas
experiências.

Dr. Jung: Sim, há apenas esta pequena diferença entre vida consciente e
vida inconsciente! Penso que o Senhor mesmo respondeu à sua pergunta,
eu não poderia fazê-lo melhor. Animais e primitivos muito inferiores, na
medida em que não têm uma consciência de que valha a pena falar, então
certamente nesse ponto, eles estão aqui e agora e nada mais, mas não
existe realização. Naturalmente, na medida em que há consciência há uma
certa realização, consciência é realização, essencialmente. A consciência
não é apenas a conditio sine qua non da realização, é a realização em si
mesma, porque ela simplesmente espelha o aqui e agora. Assim, um
primitivo está inteiramente sob o encantamento do aqui e agora, mas na
medida em que já tem um certo poder imaginativo, na medida em que a
consciência não apenas espelha, mas também é criativa, ele cria uma
possibilidade de desvio. Por isso, mesmo o primitivo tem a notável
faculdade de pular fora do aqui e agora, de negá-lo...

Agora, na medida em que a consciência não é apenas um espelhar, e não


apenas criativa, na medida em que ela é completa realização, ela tem que
ter o elemento de uma certa responsabilidade, isto é, tem que haver um
ethos conectado com ela, uma certa atitude. (ETHOS: caráter, ou índole, ou
sistema distinto, de uma categoria, de um povo, de uma realização ou de
uma obra de arte, etc). É impossível realizar algo sem uma certa atitude à
qual se possa referir. Para realizar alguma coisa necessita-se a existência
de dois pontos, não apenas um olho todo-vidente, ou uma taça
absolutamente indiferente, digamos assim; onde jogar os conteúdos do
mundo. Esta taça, de um certo modo, tem que reagir aos conteúdos, tem
que ter seu próprio ponto de vista, sua própria atitude. Assim, devemos
conhecer as duas coisas, a própria coisa ou situação, e nós mesmos naquela
situação. Só podemos formular ou perceber a nossa realização, se
conhecemos o nosso próprio papel, se sabemos como reagimos a ele.
65

Agora, ter uma certa atitude é um problema ético, é o problema ético,


porque uma atitude se baseia sempre sobre um certo princípio; é o ponto
de vista que se mantém contra o fluxo das coisas. Vejam, um constante
movimento dos eventos sugere um contínuo, quase sinuoso, movimento da
nossa própria atitude. Se acompanharmos um longo rio de fatos ou
eventos, mudamos quando o rio muda e nunca temos um ponto de vista.
Mas ter um ponto de vista é ter uma atitude, e isto é ethos, isto é uma
questão moral; certamente não no sentido de uma moralidade tradicional, é
simplesmente questão de uma certa atitude ou de um certo princípio, sem o
qual não podemos avaliar uma situação em cada detalhe. Podemos ser
capazes de pensá-la em detalhe, até de farejar todas as possibilidades da
situação; e ainda assim não a avaliarmos, está incompleta, um item
essencial está faltando nela; é uma realização absolutamente amoral.

Poderia ser, por exemplo, um tipo de realização estética, sem nos


colocarmos dentro do quadro, e é absolutamente necessário que entremos
nela de um modo responsável. Sem avaliar uma situação, simplesmente
não estamos nela, poderíamos ser, quando muito, uma particularmente boa
máquina fotográfica.

Como vê, o Senhor realmente respondeu sua própria pergunta.


Naturalmente, sentados aqui e pensando em esquiar ou em cinemas ou
sobre o jantar em casa, não estão aqui e agora. E a pessoa que vem para a
análise com um pé e se sustenta no outro, obviamente não tem realização;
nem aquela que com uma das mãos diz: Aqui tem você tudo que eu possuo,
enquanto a outra esconde algo atrás das constas. Isto é “não estar numa
situação”, não é aqui e agora, é aqui e lá, ou agora e um outro tempo
qualquer.

Comentário: Com a pirâmide vermelha e os raios azuis e brancos, nós


temos as cores da bandeira americana, o que deve enfatizar a
nacionalidade americana da paciente – e mesmo assim ela foi virada para
baixo. Na bandeira o azul representa o céu e o vermelho provavelmente
sangue. Aqui, as cores vermelha e azul estão trocando seus lugares. As
airosas qualidades espirituais descem à terra e até se tornam mármore,
66

enquanto a terra está se partindo e elevando – mas isso pode também ser
negativo. Lembra-me a coluna na cidade preta, onde a pequena figura de
NETUNO lhe disse: “Por este pilar tu te perderás”.

Dr. Jung: Sim, este é um bom paralelo, tais coisas entram realmente no
quadro, nessas criações inconscientes e também nos sonhos; muitas vezes
observamos a mais surpreendente condensação de associação. Não é de
forma alguma forçado que ela tenha as cores da bandeira americana neste
símbolo. Aquele que realmente tiver o trabalho de entrar na estrutura deste
simbolismo em detalhe, chegará à conclusão de que ele estará
suficientemente explicado somente quando for capaz de estabelecer todas
as conexões, mesmo aquelas que para consciente forem as mais
improváveis...

Se forem incumbidos, por exemplo, de criar conscientemente um símbolo


dos fenômenos psicológicos que poderiam ocorrer quando voltassem à sua
vida cotidiana na América, então partiriam de uma idéia geral – o que é
uma coisa extremamente pobre – e tentariam ampliar esta idéia. Poderiam
dizer: Se volto para a minha condição anterior, há a possibilidade de uma
regressão, posso cair de novo sob o feitiço das coisas que costumavam ser.
Isto com certeza é perfeitamente verdadeiro, mas a sentença é apenas uma
abstração de toda análise, o que quer que tenham aprendido antes. É
apenas uma abstrata idéia empírica, sem carne nem ossos. Começam com
isso e ampliam a partir disso, fazem uma pintura de alguém caindo na boca
de uma serpente, digamos, ou um dragão que se aproxima e devora
qualquer objeto trêmulo. De novo, isto é extremamente pobre e vazio,
porque este é o mito do dragão que encontraram nos meus livros e
simplesmente o retrataram como um símbolo convencional, um hieróglifo;
isto é, aquilo que FREUD chamaria um símbolo, mas não é um símbolo, é
meramente um sinal, um emblema, uma espécie de alegoria.

Vejam, um símbolo é qualquer coisa indizivelmente rica, um símbolo


sempre emerge da plenitude do material psíquico presente, parte do qual
conhecemos e parte do qual não conhecemos. Não estou de modo algum
certo se a paciente sabia para que apontava aquela pirâmide, é mais
67

provável que não, mesmo assim o inconsciente está trazendo qualquer


quantia de material, alusões bem fora do alcance da consciência; a
consciência nunca seria capaz de descobrir tais analogias. Exatamente como
o sonho pode ir buscas as mais espantosas analogias dos mais distantes
confins do mundo.

Naturalmente, qualquer um que não conheça estes assuntos, dirá que a


associação com a bandeira americana é excessivamente forçada.
Certamente ela é forçada, o inconsciente é amplo e distante, e obtém suas
contribuições nós nem sabemos onde, nunca somos sagazes o bastante
para medir a extensão de suas maravilhas. Um símbolo é tão grande e tão
rico que nossa consciência nunca basta para preenchê-lo ou ser igual a ele
de forma alguma; nunca esgotamos seus significados. Há uma quantidade
de símbolos antigos para serem ruminados ao longo da eternidade, e nunca
podemos ter certeza que eles não voltarão, tão plenos de significado, tão
prenhes como sempre. Quem no mundo poderia pensar que uma nação
inteira de repente escolheria a suástica como seu emblema nacional? A
suástica voltou tão cheia de sentido como antes, ela nada perdeu, nós ainda
não acabamos aquele símbolo. Nós pensamos: Oh! Sim, a roda solar, um
redemoinho, o ser com as quatro pernas que corre sobre o sol, a mônada
platônica ou a mônada chinesa do Imperador GUILHERME. Mas tudo isso
não o exaure, ele está ainda cheio de potencialidade. E até o fim dos nossos
dias, nunca seremos capazes de esgotar o simbolismo da cruz, significados
aparecem com os quais, em tempos anteriores, nem sonhávamos. Se as
pessoas dos séculos II ou III pudessem ouvir nossas discussões sobre o
símbolo da cruz, seria de arrepiar os cabelos, para elas. A cruz significava
coisas muito similares para elas, mas encontramos ainda muitas mais de
que elas não tinham qualquer noção que fosse, e se nós pensamos que
exaurimos este simbolismo, é uma ilusão; as pessoas encontrarão
significados no futuro, que nos deixariam atônitos se os ouvíssemos. Assim,
estou inclinado a aceitar a possibilidade que o Senhor mencionou: é bem
provável que as cores americanas estejam incluídas.

Naturalmente, não é possível provar isto no sentido comum de inventar


algum método particular que demonstraria ser essa interpretação
68

absolutamente “à prova d’água” . Mas temos uma justificação para o


método através dos resultados. Se aplicarmos ao material, extraímos dele
alguma coisa que é tangível e faz sentido. Se essa interpretação fosse sem
sentido, o resultado seria um absurdo, hors concours. Mas bem ao
contrário, o resultado geral que atingimos é uma compreensão bastante
inteligente do modo como as coisas estão operando, e se aplicarmos o que
aprendemos a outros casos, a hipótese também calha, podemos entender e
explicar coisas que antes nos escaparam completamente.

E como a grafologia, por exemplo, ou o diagnóstico do caráter pelas linhas


da mão. Não podemos prová-lo, mas uma pessoa experiente nesses
assuntos pode nos dizer as coisas mais surpreendentes. É a mesma coisa
com a astrologia, é absolutamente impossível no presente inventar um
método que prove um único fato na astrologia, mas apliquem uma prova
um número suficiente de vezes e aprenderão muita coisa. Este é uma
espécie de conhecimento intuitivo que simplesmente não segue as regras
da ciência natural. É bem possível, entretanto, que, no futuro, inventemos
métodos complicados que nos possibilitarão estabelecer uma certeza.

Eu mencionei aqui, uma vez, a pesquisa de um francês que classificou as


datas de nascimento de homens mentalmente proeminentes. Na divisão do
zodíaco nos doze signos zodiacais, as doze constelações, os três signos
Libra, Aquário e Gêmeos, estão em tal posição que formam um triângulo
eqüilátero, chamado o trígono ar, porque estes signos em particular têm a
qualidade do ar. Este homem distribuiu os dias de nascimento de dez mil
mentes proeminentes no círculo zodiacal, fazendo um pequeno ponto onde
caía um nascimento e descobriu que havia uma grande acumulação em
volta desses três signos nos pontos do triângulo, mostrando
estatisticamente, pessoas mentalmente proeminentes figuram com
preferência no trígono de ar. Naturalmente pode haver um bom número em
outros signos, mas estudando mais esses casos, é bem possível que a lua,
por exemplo, ou o signo ascendente se encontre no signo de ar. Assim, isto
mostra uma certa justificação para essa teoria naturalmente com grandes
possibilidades de falha ou erro. Justamente o caso que estamos
examinando pode ser do sujeito que nasceu fora desse esquema, e então
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onde fica nossa justificação? É certo que poderíamos dizer que as exceções
provam a regra, mas nesses assuntos as pessoas são terrivelmente
impacientes.

Bem, isto nos leva diretamente à discussão da pirâmide. Porque seria uma
pirâmide?

Comentário: Eu tentei compará-la à coluna na cidade preta, numa visão


anterior; ela chegou a isso porque recusara entrar na poça feminina, na
cidade branca. A coluna era o símbolo fálico, e eu pensei que esta poderia
ser uma analogia.

Dr. Jung: Bem, há leis peculiares de espelhamento e de compensação aqui.


A poça é uma forma côncava, uma espécie de bacia ou taça, e o pilar é
ereto, é protuso como a pirâmide, é o oposto da poça. Então há um positivo
e um negativo, a pirâmide seria o masculino e a poça seria o feminino. O
simbolismo do Santo Graal é um símbolo feminino, por exemplo; é como
aquele atributo de MARIA na ladainha de Loreto: Vas insigne devotionis,
significando o excelso vaso de devoção; ela é como uma taça ou bacia, a
qual ela oferece ou na qual ela recebe.

Esta pirâmide que subitamente emerge da terra tem um aspecto masculino


YANG, então e por isso pode ser comparada ao pilar, como o obelisco é
também um tipo piramidal de estrutura, uma pirâmide muito alongada,
uma haste longa terminando em uma pequena pirâmide no topo. Assim,
eles têm muito o mesmo sentido.

Agora, as pirâmides certamente simbolizam alguma coisa. As pessoas se


admiraram muito porque os antigos egípcios empilharam aquelas pedras –
uma coisa tão dispendiosa; a pirâmide de CHEOPS tem 143 metros de
altura, certa de 529 pés, e o tamanho dos blocos é quase inacreditável. E
esta pirâmide tem que simbolizar alguma coisa, temos que entrar no seu
sentido. Vejam, nossa paciente está inteiramente por conta própria. Em que
estado mental estaria ela quando deixada consigo mesma? Quando o
Animus e o SELF ficaram para trás o que resta?
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Resposta: O Ego.

Dr. Jung: Sim, apenas o Ego, tão nu quanto um ego pode ser, e isto é
restrito e bastante assustador. Ela caminha para baixo, porque esteve no
ar; agora chega a descida à América e, aproximando-se da terra, emerge
em cores americanas esta pirâmide, de baixo. O que sugeriria isto? Porque
fizeram pirâmides?

Resposta: Eram monumentos dos reis mortos.

Dr. Jung: Sim, eram sepulcros, na realidade... Agora, psicologicamente,


quem eram os reis no Egito? Qual é a sua particularidade?

Resposta: Eles eram Deuses.

Dr. Jung: Sim, há inúmeros templos no Egito onde se pode ver a assim
chamada câmara de nascimento, com a divina criação representada nas
paredes, a geração divina do rei como um Deus. Provavelmente, ela foi
também magicamente imbuída. Porque o rei é o duas vezes nascido. Ele é
primeiro gerado por seu pai, e é dado à luz e cuidado por sua mãe terrena;
mas ao mesmo tempo ele é gerado pelo Deus, carregado e dado à luz pela
Deusa, a mãe-Deus, e nascido ele mesmo como um Deus. A vida de Deus
lhe é diretamente outorgada. Assim, o Faraó era realmente o Deus Homem,
o homem superior, e por isso representava o que, psicologicamente?

Resposta: A individuação.

Dr. Jung: Sim, ele era o símbolo da individuação, ele representava o


homem superior divino que era igual à OSIRIS; sua substância imortal era
chamada o Osíris do rei. Em tempos muito remotos supunha-se que apenas
o rei tinha um Osíris, mas nos séculos posteriores da história do Egito –
digamos, no último milênio – lentamente o príncipe e pessoas distintas da
nobreza também tiveram almas. Eles se tornaram homens superiores e
tiveram Osíris e, finalmente, no período dos PTOLEMEUS, cada Mr. Smith,
ou Mr. Jones, tinha seu Osíris respectivo; eles eram todos democráticos e
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simplesmente tão bons quanto o rei. Foi este o tempo em que os ritos de
mistério atingiram a superfície, e logo depois chegou o CRISTIANISMO
formulando aquele ensinamento. O verdadeiro precursor de CRISTO foi,
sem dúvida, o rei do Egito, o Faraó.

O símbolo da pirâmide, então, é um símbolo para o significado metafísico do


rei, isto é, o rei como o homem superior, o indivíduo, o SELF de uma nação.
Porque uma nação antiga era idêntica ao rei; o rei era a culminação e
representava a nação. Este tipo de psicologia ainda existe; podem ler nos
jornais que Adolf Hitler é a Alemanha e a Alemanha é Adolf Hitler. O Egito é
o Faraó, e o Faraó é o Egito. O rei é o homem superior e o representante do
todo da nação, e não há homem superior no plano individual.

Observação: Como LUIZ XIV.

Dr. Jung: Sim, ele era o SELF divino de toda a Franca. Vejam, este tipo de
psicologia é arquetípico, o que explica a extensão em que todo um povo
pode projetar a idéia do SELF individual sobre um ideal. Na Igreja Cristã o
SELF individual foi projetado em CRISTO. E isto continua da forma mais
tangível. A psicologia do Movimento Oxford, a idéia da direção e da entrega,
é bem a mesma coisa (Movimento Oxford, hoje Rearmamento Moral);
CRISTO oferece direção e informação. Ele recebeu isso em algum lugar, não
sabemos, mas chamamos isto o inconsciente, para não lhe dar um nome,
para não pré conceituá-lo. E, certamente, a voz do inconsciente é o SELF.
Se seguimos a voz do inconsciente – se vamos com o cuidado necessário –
no fim chegamos necessariamente àquilo para que somos destinados.

...Esta projeção do SELF pertencia à psicologia dos tempos antigos, onde o


chefe ou o rei representava o povo inteiro e tinha que sofrer e morrer pelo
povo. Havia um outro ritual antigo que teve certo papel na história de
CRISTO. Naturalmente, em grande parte é uma lenda, mas as lendas são
tão verdadeiras que se repetem mesmo na realidade; eventos reais são
como lendas. Lembram-se do prisioneiro BARRABÁS que foi solto no lugar
de CRISTO quando estava para ser crucificado, de acordo com um velho
costume na Babilônia de soltar um criminoso todo ano e deixá-lo livre na
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cidade; ele podia roubar e saquear o que quisesse, mas devia safar-se
antes do nascer do sol, afastar-se o mais possível, porque se fosse
apanhado dentro dos muros da cidade, seria executado. E isto era um
remanescente do antigo mito do rei-Deus, do tempo em que tinham um rei
para cada ano: se o ano fosse bom, ele era confirmado como rei-Deus, mas
se fosse mau, ele seria executado. Supunha-se que ele emanava a
qualidade mana da fertilidade, que aumentava a colheita, ajudava na
procriação do gado, e assim por diante.

A idéia do rei como o homem superior era também tomada muito


literalmente: ele era representado nos monumentos antigos como muitas
vezes maior e mais alto do que seus súditos. E como seu mausoléu tinha
que exprimir sua importância, eles escolheram uma pirâmide, que é uma
forma matemática perfeita. Mas até onde poderia uma pirâmide ser símbolo
particularmente significante do homem superior?...

Resposta: Os quatro lados são iguais e cada chega a um ponto. Eu


chamaria este o ponto criativo. Ou seria a Individuação.

Dr. Jung: Naturalmente, é uma mandala, um símbolo de individuação, as


quatro funções que chegam à unidade de realização, de consciência. Esta é
a montanha da qual fluem os quatro rios, ou o indivíduo na cruz, do qual
descem correntes de graça, como o cordeiro no Apocalipse, sobre a colina
no centro da cidade quadrada, os quatro rios ou as fontes da criação saindo
do todo. Esses são todos símbolos do homem superior ou perfeito.

E o mesmo simbolismo, pirâmides ou STUPAS, juntando-se no mesmo


ponto, encontramos nas mandalas tibetanas que ajudam na concentração
ou contemplação, em que a identidade do MYSTEI (místico iniciado) com
Deus é alcançada; ele se torna sua própria superioridade, o Deus dentro
dele. O templo budista em Borabudur, Java, tem a mesma forma. Da
grande base quadrada subimos mais e mais em espiral, passando pelas
cenas das vidas de BUDA talhado na pedra, tornando-nos mais e mais
conscientes de estarmos passando pelos mesmos estágios por que ele
passou, fazendo um caminho circular até atingirmos o topo, o qual consiste
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numa série de stupas; e no ponto mais alto há apenas uma stupa, essa
mesma forma piramidal. Lá se está em completa identidade com o SENHOR
BUDA. É como a idéia medieval cristã das estações da cruz no caminho até
a capela no topo da colina – contemplamos os sofrimentos de CRISTO e
ganhamos a compreensão do caminho da paixão, da via dolorosa.

Bem, a pirâmide na nossa visão, à luz destes exemplos, sugere um


monumento sepulcral. E quem está sepultado lá?

Resposta: O Animus.

Sugestão: Não será outra forma do Self que apenas desapareceu? Não será
o lado masculino sepultado dentro do monumento, que agora está
emergindo?

Dr. Jung: Sim, exatamente. Vejam, o SELF na realização interna é, para a


nossa paciente, uma mulher superior, a personalidade mana. Agora ela
desaparece e não sabemos para onde foi e, em vez dela, aquela pirâmide
que significa um rei sepultado irrompe da terra – o atributo externo do rei.
Dizem que a esfinge tem o rosto do rei que construiu a primeira grande
pirâmide, e aquela pirâmide é, ela mesma, o símbolo do rei. Isto foi,
provavelmente, comprovado mais tarde através do seu aspecto muito
diferente naquele tempo. Hoje é como uma imensa escadaria porque sua
superfície está quebrada, mas o topo da pirâmide ainda está preservado e
quase intacto, no museu do Cairo, e é liso e muito polido. Quando o sol do
Egito brilhava sobre aquela enorme superfície, deve ter refletido a intensa
luz, deve ter sido como um farol, espalhando seus raios sobre metade do
Egito, uma vista realmente maravilhosa. Assim a pirâmide era o Deus vivo
ainda invisível, era o filho visível do sol RA, e o sol renascido como Deus
sobre a terra, e ainda brilhando sobre seus dois reinos.

A pirâmide que se ergue aqui é certamente o equivalente do SELF


desaparecido, é agora o SELF na sua forma terrena, a revelação interna do
SELF sendo sepultado, e o que antes era feminino agora é masculino.
Houve uma peculiar transformação, porque ela passou do reino dos
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fantasmas, do reino do inconsciente, para o reino do vivente, onde de certo


modo ela é seu próprio reflexo no espelho, mas um reflexo compensador,
seu próprio oposto. Ela se torna alguma coisa como a pirâmide, como se o
corpo do SELF – se o SELF tem um corpo – não fosse humano, mas a
pirâmide inteira. Exatamente como o corpo de CRISTO é a sua Igreja, e
esta é um monumento sepulcral; CRISTO está literalmente sepultado na
Igreja.

Chegamos agora à questão prática: o que poderia ser o equivalente


psicológico de uma tal peculiar transformação no inconsciente? Sabem que
nossa paciente não em sequer um vislumbre de idéia sobre tudo isso; por
esta razão o processo é tão absolutamente puro, sem a mescla de qualquer
tipo de compreensão. Mesmo assim, representa alguma coisa que está
acontecendo nela, e isto certamente exerce alguma influência. Qual seria a
provável influência de um evento como este?

Sugestão: Uma espécie de estabilização do seu sentir?

Dr. Jung: Eu não estou tão certo. Temos que ser bem simples. Se eu coloco
uma certa forma perante um primitivo, então ele instintivamente conhece
ou não conhece. Ela sentirá uma influência maior do que pode
compreender, ou aquela que está de acordo com a natureza óbvia da coisa.
Se eu coloco perante ele um líquido – naturalmente entendendo que este é
um procedimento mágico, uma cerimônia de cura – isto poderia significar
para ele alguma coisa assim; tem a natureza da água, sacia a sede, move-
se como água, produz água. Assim se ele sofre de hidropisia, colocar água
perante ele produziria um efeito mágico sobre ele, livraria seu corpo da
água. Ou, se a região sofre de seca, eu pegaria uma tigela de leite e a
derramaria sobre o solo, sugerindo a ele a chuva. Ou imitaria o sopro do
vento e o som dos pingos de chuva, e ele aduziria o efeito correspondente –
a chuva iria cair.

Na Índia, de acordo com o testemunho do RIGVEDA, os sacerdotes


cantavam o cântico dos sapos no tempo da seca, como um encantamento
para a chuva; quando os sapos cantam significa que houve chuva, então
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quando os sacerdotes cantam a chuva cairá. Este é o modo como funciona a


mente primitiva. Assim, se coloco perante ele uma pirâmide irrompendo da
terra, ele diria: Ah! Isto é alguma coisa que corre para cima, isto é
atividade, é uma poderosa subida, e lhe sugerirá dureza e força, porque ele
não pode evitar perceber as qualidades da coisa que eu coloco obviamente
para este propósito. Se eu lhe desse as asas de uma água como feitiço,
seria para fazê-lo veloz como a água, ou capaz de voar a grande altura
como a água, porque ele é um rei ou um grande chefe. Ou eu lhe dou os
dentes ou a juba de um leão para que ele possa ter a força de um leão; eu
lhe outorgo o poder dando-lhe a coisa que contém esse poder. Por isso os
índios costumam comer o coração do inimigo ou seu cérebro, para integrar
ou a coragem do inimigo que está no coração, ou sua astúcia que está na
cabeça.

Esta pirâmide, então, sugere protusão. Ela aparece de um modo protuso,


empurrando-se para cima, como se a paciente tivesse sido sepultada.
Tendo perdido o SELF ela não tem absolutamente nada; ela é mera concha,
uma crosta, apenas uma consciência do Ego, extremamente pobre e sem
recursos. Assim, ela precisa fazer de si mesma alguma coisa, para aparecer.

Vejam, se não temos nada mais que uma consciência de Ego, a próxima
coisa que faremos será comprar um par de sapatos novos e um novo terno
e um chapéu vistoso para parecer um cavalheiro, de modo que quem nos
olhar dirá: Não é um homem lindo? Compramos uma persona o mais
depressa que podemos, porque não somos nada mais. Então isto simboliza
forçar seu caminho para cima, fora do solo, para o mundo consciente. Ela
esteve andando para baixo o tempo todo, mas esta é a miragem; vejam, ir
para baixo pode ser subir, e subir é apenas um ir para baixo diferente...

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