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PERFORMANCE URBANA COMO INFILTRAÇÃO DE AFETOS:

REFLEXÕES E DIÁLOGOS CORPOREIFICADOS DE HISTÓRIA.

O fetiche étnico-estético ambienta os processos de


aculturação no Brasil, especificamente na Bahia que comporta a
evidente presença africana na sua construção identitária dentre
e além da carnavalização erótica dos corpos. Fabrica-se uma
imagem da baianidade, inspirada nos romances regionalistas de
obras literárias como em Jorge Amado. Tais arquétipos são
utilizados para o desenvolvimento do mercado turístico com
todo suporte oferecido pelo estado mass media. Estes ideais-
reais das cargas identitárias sugeridas impõe de maneira
espetacular todo sorriso sensual passível de uma cultura que é
historiografada por apropriações, invasões ou simplesmente por
olhares estrangeiros desejosos do exótico, que constroem ainda
hoje perigosos acordos territoriais demarcados pelo
funcionamento do sistema capitalista com sua expansão
vertiginosa.

Sabe-se que a maioria dos territórios que deveriam ser dados


como patrimônio cultural ou ambiental são alvo não só de
empresas imobiliárias brasileiras, mas também por pessoas
físicas de diferentes lugares e países como ricos empresários
brasileiros e soteropolitanos, espanhóis, italianos, portugueses,
etc... Obviamente, o foco dessas especulações/apropriações está
diluído em todas as regiões da cidade, no entanto, o centro
histórico que comporta a pomposa arquitetura portuguesa é o
grande foco de tensão desses acordos, pois além da sua
característica histórico-cultural, cruzam-se nesse espaço
moradores de baixa renda, estudantes, estrangeiros, gestores
estatais, artistas, donos de pousadas e restaurante, tudo num só
ambiente, enfeitado e pretensiosamente formatado
cenograficamente, para o turismo.

Tal processo de aculturação se iniciou no período Carlista[1],


desde o final da década de 60, o qual teve sua política pública
pautada nas transformações de modos de conduta através da
modernização turística e da conformação de uma economia
voltada para a produção de bens simbólicos da cultura baiana.
De modo que ele criou a Secretaria de Cultura e Turismo do
Estado em 1995, momento culminante da institucionalização
política de modernização turística e cultural, típico de um projeto
político hegemônico.

Desta modernização nasceu um plano de revigoramento do


turismo e da cultura que foi responsável pela criação do
“Produto Bahia”[2] – poderosa fórmula que alia cultura e
turismo como diferencial de venda do estado em quanto destino
turístico - transformando o Parque Histórico do Pelourinho [3],
em um centro de entretenimento através de projetos
urbanísticos de revitalização aliados à lógica mundial de
valorização do comércio de bens imateriais. Neste sentido, o
mercado turístico em Salvador está fabricado para não adentrar
as margens e becos que estão fora do circuito das reformadas e
coloridas fachadas dos antigos casarões barrocos. São vielas que
ficam aguardando a degeneração dos corpos no tráfico de drogas
e o mofo das casas, as quais em muito breve também serão
vendidas para abrigar uma nova galeria ou restaurante, ou
simplesmente implodirá pelo abandono.

Nessa perspectiva, o Coletivo TeiaMUV. com a Intervenção


Urbana BARROC.inha metaforiza e problematiza de maneira
artística essas questões/tensões existentes no Centro Histórico
da cidade de Salvador. Interessadas pelas relações entre os
corpos que discorrem nesse espaço, nos afetos e subjetividades,
dentre toda argamassa da reprodução de imagens arquetípicas,
onde uma criança negra, descalça e sem camisa faz “malabares”
com cocos em troca de umas moedas, fomos seduzidas a
adentrar um dos muitos “cantos” do Pelourinho. Neste recorte
do recorte, mergulhamos na Rocinha - marginal no centro - uma
comunidade que tem seu acesso através de um “portal” que se
mistura a outras tantas entradas na mesma rua, porém esta não
é uma loja, apesar de sempre haver uma vendedora ambulante
na entrada – nossa querida Dona Nei. Adentrando o corredor
encontrava-se um bar, de nossa saudosa Dona Nilsete, onde,
mais a frente, avista-se num declive a Bahia de Todos os Santos,
casebres construídos pelos próprios moradores em meio a
resquícios de mata atlântica, entulhos de casas demolidas e
muitos ratos, constituindo uma micro-cultura de ocupação
familiar. (Descrição da Rocinha em 2008, no decorrer do
processo de criação do BARROC.inha encontramos novas
paisagens, pois a comunidade vivencia um projeto de
revitalização).

Com a convivência neste espaço e com as pessoas que vivem


ali, atuamos como estrangeiras locais, reconhecemos nossos
fluxos fronteiriços das diferentes realidades políticas que
coabitam uma mesma cidade. Deste modo propusemo-nos a
uma troca de conhecimentos e expectativas sobre a realidade, e
assim, configuramos as imagens para as ações artísticas.

Sendo todas nós artistas pesquisadoras em Dança


Contemporânea, a relação corpo-arquitetura era estimulada
tanto por nosso deslocamento no ambiente quanto pelas
situações ocorrentes nele, por exemplo, o processo de
higienização estatal que expulsava os moradores de rua,
travestis/prostitutas, muitas vezes por homicídio, como também
levados a conjuntos habitacionais isolados em zonas periféricas
da cidade. A partir de inquietações neste sentido surgiu a
primeira imagem de nosso processo de criação: Como caminhar
sobre entulhos equilibrando um coco na cabeça?

Por esse viés, nossa performance lança ações que relacionam


conflitos e tensões vivenciados no ambiente da Rocinha,
organizada em 4 momentos: 1 - “saci na bruxa” expressão
relacionada ao estado alterado do sistema nervoso com o uso do
crack, onde propomos movimentos de atritos corporais em meio
a gritos e rasteiras. 2 - “Cocos” uma sedução lenta e suspensa na
relação com os cocos na cabeça caminhando sobre os desníveis
do chão e situações cotidianas da vida nas favelas, com ações
repetidas por nós mimeticamente. 3 – “Barbante” enrolar e
desenrolar experimentando situações adaptativas da vida no
espaço, criando redes conectivas/teias. 4 – “Cau” desenhar no
chão com cau (material utilizado para construção arquitetônica)
possibilidades de abrigos imateriais, inscrevendo espacialidades
como sala, cozinha, banheiro, jardim etc...

Esses processos de desocupação se repetem na cidade


continuamente, e dessa maneira re-configuramos a intervenção
urbana construindo um diálogo atualizado com as políticas
públicas implementadas na relação urbanística da cidade. Como
no caso de nossa última intervenção no Pelourinho na qual
subjetivamos o que acontece atualmente no Bairro Santo
Antônio, adjacente ao Centro Antigo, o qual teve mais de 30
casarões vendidos para uma mesma pessoa, filha de um dono de
shopping, neste caso a proposta urbanística privada é tornar
aquele bairro um shopping a Céu aberto, a exemplo da Praia do
Forte, área divulgada pelo turismo como Polinésia brasileira,
contudo é mais um lugar imerso no consumo onde as placas não
indicam o nome de uma rua, mas sim as marcas VISA e
MASTERCARD.

Dessa maneira, fazemos de nossa arte um campo de atuação


que estetiza a critica que produzimos através de nossa vivência
nas cidades. Assim, o projeto BARROC.inha circulou pelo
Nordeste - Recife e São Luis - buscando articular as possíveis
convergências e divergências desses lugares com contextos
semelhantes de colonização. Com essas experiências somos
levadas a ativar nossos afetos e percepções para o engajamento
de nossa criação artística re-significando paradigmas e
afastando-nos de aspectos hegemônicos que estão instaurados
sutilmente em nossa sociedade consumista, que torna
espetacular nossas subjetividades. Produzindo arte somos
agenciadoras de possíveis olhares sobre o mundo e propositoras
de novos mundos.
NOTAS:

[1] Hegemonia política liderada por ACM - Antonio Carlos


Magalhães. Ele ocupou cargos públicos como Prefeito, Senador e
Governador durante 40 anos de 1967 a 2007.

[2] Produto Bahia – produto arquitetado pelo órgão oficial de


turismo do estado a BAHIATURSA para compor as prateleiras do
espesso e amorfo (super)mercado de bens simbólicos. A
BAHIATURSA é uma empresa criada em 1968, tem hoje por
finalidade “coordenar e executar a política de fomento e
desenvolvimento do turismo no estado da Bahia de acordo com
as diretrizes governamentais” (Bahiatursa, 1998, p. 19).

[3] Parque Histórico do Pelourinho – declarado pela UNESCO


como patrimônio cultural da humanidade em 1985.

Artigo escrito pelo Coletivo TeiaMUV. Somos Licenciadas em


Dança pela Universidade Federal da Bahia, desde de 2007
realizamos investigações acerca de Performances Urbanas. Neste
artigo expomos nossa experiência com a Intervenção Urbana
BARROC.inha. Fazemos parte do Coletivo: Isaura Tupiniquim,
Lucinete Araújo, Mab Cardoso, Maira Di Natale e Milianie Lage
Matos; neste trabalho contamos com a participação de Tiago
Lins - KamiKazi.

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