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Parte 1 do Malleus Maleficarum (1487): o imaginário dos inquisidores sobre as

mulheres durante a caça às bruxas da modernidade europeia

ANA PAULA TEIXEIRA E SANTOS

A base dessa pesquisa se encontra na reflexão do imaginário constituído pelos inquisidores


Heinrich Kramer e James Sprenger em seu primeiro capítulo do manual Malleus Maleficarum
(1487) a respeito das mulheres. Essa construção é entendida como problemática por criar um
estereótipo negativo sobre o gênero feminino, classificando-o como intelectualmente fraco, imoral
e luxurioso. Tal estereótipo reflete uma tendência comum entre os europeus do início do período
moderno de marginalização das mulheres, marcada pela sua subordinação aos homens, falta de
participação política e ausência de poder jurídico. Ao mesmo tempo que essa imagem reverberava
uma concepção cultural, sua transcrição em um tratado eclesiástico fez com que diversos
inquisidores e magistrados passassem a julgar acusações de bruxaria a partir dos preceitos
definidos como oficiais pela Igreja. A medida que mais mulheres eram denunciadas com base em
tais características, mais conhecidos e aceitos se tornavam os pressupostos de que às mulheres
destoantes dos padrões de comportamento tradicionais caberia a criminalização e associação com
o diabo. Para que tal estudo seja possível, faz-se fundamental ainda compreender a interação da
cultura popular com a erudita, já que a definição de bruxaria dos teólogos e juristas se
caracterizava pela necessária associação da bruxa com o ente demoníaco, enquanto para os
membros das comunidades iletradas, a bruxa era mais conhecida como uma figura que
simplesmente realizava algum feitiço com objetivo de prejudicar outrem (pratica conhecida como
maleficium). Além disso, o contexto histórico da caça às bruxas também é analisado para que se
compreenda como ele viabiliza a escrita de textos tais como o manual de Kramer e Sprenger. A
pesquisa se propõe a analisar o manual inquisitorial a partir da perspectiva da História Cultural,
buscando demarcar qual era o lugar ocupado pelo gênero feminino na Europa no limiar da
Modernidade, como ela era interpretação e o papel a ela designado. Para tanto, intenta-se
esclarecer as condições conjunturais e o pano de fundo dos aspectos de longa duração presentes
na Europa de então, estabelece-se quais foram os fatores teóricos constitutivos da base do
pensamento europeu de outrora, e as questões jurídicas e como elas se alteraram ao final da


Graduanda em Lic enciatura em História pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG).
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medievalidade, contribuindo assim com a criação de condições propícias para o despontar das
perseguições.

Palavras-chave: Malleus Maleficarum, Caça às bruxas, Mulheres.

INTRODUÇÃO AO TEMA:

Esse trabalho se propõe a compreender de que modo pode-se observar as formulações dos
inquisidores sobre o que era caracterizado como bruxaria durante a época moderna na Europa.
James e Sprenger criam ao longo de sua obra Malleus Maleficarum (1487) uma explicação que
procura enquadrar as mulheres na classificação de bruxas e por isso a primeira parte "Dos métodos
pelos quais se infligem os malefícios e de que modo podem ser curados" que se foca bastante na
ação das mulheres se torna primordial para esse estudo.

A tentativa feita com essa pesquisa é de se aprofundar nos sentidos e razões que levam
tais inquisidores a assimilarem a figura da mulher com as ideais de luxúria, depravação e fraqueza
e desse modo considerarem que as mulheres seriam mais facilmente corruptíveis pelos demônios.
Para eles, assim que os demônios conseguissem convencê-las a realizar ações maléficas (em nível
terreno e espiritual) em seus nomes, elas estabeleceriam um pacto que incluiria, em especial, a
realização do ato sexual entre a mulher e o demônio (mais uma vez remetendo ao suposto caráter
voluptuoso da natureza feminina) através do qual a mulher concordaria em se tornar uma bruxa.

Esses aspectos ressaltados ao longo da primeira parte estabelecem um determinado


imaginário sobre as mulheres, e traduzem um fenômeno que ocorre em mão dupla: ao mesmo
tempo que os inquisidores retrataram crenças já presentes na sociedade Europeia de então, haja
vista que são produto de seu meio; eles também fortalecem e instauram outros elementos que
corroborarão com as convicções das pessoas de sua época.

Para se investigar as motivações desses inquisidores então, buscaremos ao longo da


pesquisa examinar as condições da conjunturas e as demarcações estruturais que marcaram o
período Moderno no continente Europeu, e que permitiram o surgimento de uma obra dotada de
tal conteúdo e sua grande difusão e aceitação, bem como a importância do debate sobre cultura
popular e erudita. Essas circunstâncias demonstram como fora possível que a confiança na
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existência de um perigo representado pelas bruxas fosse tão veemente a ponto de que a tortura fosse
instituída como instrumento válido no julgamento das mulheres acusadas de feitiçaria e mesmo a
execução dessas fosse tão largamente aprovada.

O entendimento de que as mulheres teriam maior inclinação para aderir a prática da


bruxaria e todos os defeitos a elas imputados, indicam ainda uma visão de ideal de mulher, uma
mulher que negasse todas suas tendências inatas e naturalmente negativas e seguisse todos os
preceitos da doutrina cristã sobre castidade, pureza e submissão. É em oposição a esses atributos
valorosos que se cria o imaginário generalizador sobre as mulheres que é responsável pela
criminalização contumaz contra essas.

REVISÃO DA BIBLIOGRAFIA:

Para se pensar a construção do imaginário sobre as mulheres na obra Malleus


Maleficarum, circunstanciada no período Moderno, faz-se necessário investigar como os estudos
de gênero pensam o lugar da mulher e quais foram as ideias apresentadas sobre elas com o passar
do tempo. Para tanto, o artigo “Uma categoria útil para a análise histórica” de Scott, adverte para
o uso do termo “gênero” no sentido dado recentemente pelas feministas americanas: modo a que
se refere a concepção histórico-social da relação entre homens e mulheres e desses com seu meio,
de maneira dialética e integrada. Diferente de se tratar da história das mulheres, a história de gênero
traz a tona o caráter social das normas que definem esses gêneros, fugindo assim da noção de
determinação biológica: as categorizações de gênero são culturalmente construídas. O termo traduz
a estruturação na sociedade do contato homem-mulher e assim se distingue da denominação
“história das mulheres”, compreendendo que não é possível pensar a mulher de maneira segregada.
Tal denominação busca também fugir da noção de que a história das mulheres seria distinta do
estudo sobre a economia ou a política de uma determinada sociedade, mostrando que não são
categorias deslocadas uma da outra.

De acordo com a autora, “o lugar das mulheres na vida social-humana não é diretamente
o produto do que ela faz, mas do sentido que as suas atividades adquirem através da interação social
concreta” (SCOTT, 2016), o que portanto demonstra que a autora assume uma perspectiva que se
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baseia na avaliação da sociedade através de sua organização coletiva e da maneira como as relações
de poder se estabelecem e se desenvolvem dentro dela. Entretanto, ela assinala que o uso desse
termo não tem o caráter de se desvencilhar da natureza política ao qual a expressão “história das
mulheres” é muitas vezes associada, nem encontrar uma designação mais neutra e supostamente
mais “científica”. Ela defende que seu posicionamento intenta sim pensar as relações de dominação
e os papéis socialmente impostos na interação humana, indo além dos limites que a nomeação
“história das mulheres” poderia apresentar.

Tosi, em “Mulher e ciência: a revolução científica, a caça às bruxas e a ciência moderna”


traz diversas referências historiográficas sobre a perseguição às mulheres entendidas como bruxas.
O que a autora busca mostrar em seus escritos e que se faz fundamental para a pesquisa em torno
do imaginário sobre as mulheres no Malleus Maleficarum, é porque com o início do período
moderno a sociedade europeia se torna tão absorvida com as questões concernentes a bruxas e
demônios. Isso é relevante para pensar o imaginário porque desvela os sentidos da construção e
preocupação com a bruxaria. Em seu texto, ela nos lembra que à medida que a Idade Moderna se
estabelece, se constituem com ela os Estados Modernos e simultaneamente profundas
transformações econômicas ocorrem, haja vista que é o momento de edificação efetiva do
capitalismo, concomitante ao momento de perseguição as bruxas se dão também as Reformas
Protestante e Católica e posteriormente a Revolução científica. Devido a quantidade mudanças que
vinham ocorrendo, toda a sociedade acabava passando por alterações em sua organização e seu
modo de vida e esse é um dos fatores importante para se analisar a perseguição as mulheres: para
se reestruturar a sociedade, as camadas mais altas e a comunidade urbana visava realizar uma
aculturação do campo, enquadrando-o nos novos moldes de funcionamento social.

Para tanto, as mulheres, em sua maioria mais idosas e viúvas (o que significava que não
mais viviam sob a “tutela” de um homem, pai ou marido) e que formavam a maior parte da
população tiveram suas práticas e saberes vistos como suspeitos. Muitas delas praticavam uma
medicina popular aliada aos rituais mágicos o que fazia com que detivessem um conhecimento
sobre o parto, sobre ervas e plantas curativas, a prática de tais atividades até então era aceita, mas
seu conhecimento empírico é reprimido às custas do avanço da medicina oficial que era exercida
quase exclusivamente por homens. Pelo artigo também passamos a compreender que além da
necessidade de fortalecimento da hegemonia das elites citadinas ao desagregarem as áreas rurais,
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o saber feminino amedrontava os homens (DELUMEAU, 1978 apud TOSI, 1998). Para que o
processo político de penetração no mundo rural se realizasse foram então produzidas tanto pela
Igreja, como pela elite burocrática e pelos pensadores eruditos o esteriótipo da bruxa que é bem
aprofundado no "Martelo das Bruxas" (Malleus Maleficarum). Esses segmentos da população
buscam difundir ao máximo ideias que diziam que o mundo estava sendo tomado por demônios
por meio da atuação das bruxas e toda forma de magia ou cura natural passou a ser a entendida
como perigosa e maléfica. A imagem que era transmitida sobre as mulheres em manuais como o
Malleus era de que as mulheres não eram inteligentes como os homens, não seguiam as regras
morais devidamente e tinham forte tendência a uma sexualidade exagerada, isso tudo fazia com
que fossem mais facilmente atraídas pelos demônios e eram desses que vinham seus conhecimentos
ocultos. Estava completa a instituição da demonização da imagem da mulher.

Ainda sobre a Idade Moderna e a sua definição de mulher, Mainka em seu texto “A
bruxaria nos tempos modernos – sintoma de crise na transição para a modernidade” destaca que o
aspecto jurídico daquele tempo também favoreceu que despertassem cada vez mais práticas
relacionadas à bruxaria e que o as práticas jurídicas de então estavam muito ligadas a determinações
presentes em documentos como o Malleus Maleficarum. Ele diz que a Europa passava por uma
crise quase geral nos momentos de apogeu da caça às bruxas e que em decorrência a toda a situação
de transição da Idade Média para o período Moderno, entre outros aspectos, também os ditames do
Direito Penal de então foram questionados, já que suas técnicas já não eram suficientes dentro do
novo quadro político.

No contexto dessa imprecisão, Kramer e Sprenger designaram praticamente toda a


maneira como os acusados de bruxaria deveriam ser julgados, inclusive na justiça secular. Naquele
momento também surge o princípio da inquisição que dava maior força de decisão aos juízes,
sentenciava crimes particulares como de ordem oficial e tinha como base primordial a demanda da
confissão, algo que era mais rapidamente alcançado com a tortura, sendo que essa era devidamente
guiada e validada dentro dos novos parâmetros judiciais. Em torno da bruxaria as perguntas feitas
ao acusado eram meticulosas e fortemente alinhadas aos parâmetros de julgamento contidos no
Malleus Maleficaram. Pelo conteúdo do manual ter sido direta ou indiretamente conhecido por
todos, a percepção dos juízes bem como os relatos dos acusados se ajustavam as descrições sobre
os padrões de comportamento, esteriótipo e atividades expressas de maneira precisa no manual.
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Os oficiais de justiça encaminhavam seu julgamento buscando as respostas de acordo com


a ideia de bruxaria do manual. A fragilidade de estruturas sociais no período, combinada com a
difusão do pensamento do Malleus sobre a bruxaria, acabou criando uma histeria coletiva que
desencadeia hostilidades entre vizinhos e mesmo mútuas denúncias. Mainka chega mesmo a expor
que alguns historiadores entendem que o fenômeno da caça às bruxas foi “o preço a ser pago”
(MAINKA, 2002) para que a modernidade se instaurasse. E conclui sua explanação dizendo que o
manual de Sprenger e Kramer bem como a própria execução sistemática de mulheres são notórias
representações da mistura de elementos racionais (a proposição de uma doutrina religiosa com
pretensões científicas sobre a bruxaria e uso racionalizado da tortura) e irracionais (a fé na
existência de demônios incumbiam mulheres a causar malefícios) típicos da mudança para a
modernidade. Seu estudo atesta a importância das visões sobre a mulher abarcadas no Malleus
Maleficarum na construção do mundo moderno através da fundamentação do projeto de
disciplinamento social (aspirando entre outras dimensões que a população rural recorresse somente
a medicina formal) por isso colabora com a reflexão sobre o imaginário na obra em questão.

Ainda seguindo a proposição de Mainka, da condição judicial relacionada à Inquisição,


Rodrigues em seu “A legitimação da tortura na caça às bruxas na Europa” apresenta como
juridicamente a tortura era usada e aceita como meio válido de se identificar as pessoas culpadas
de bruxaria. Ele diz que tanto o Santo Ofício como o próprio Estado se privilegiavam com essa
prática, já que era em nome desses é que os atos de crueldade eram executados. A Igreja não pôde
ou não aceitou incorporar a seus rituais certos componentes do imaginário popular da época, assim
acabaram atribuindo a algumas condutas a categorização de demoníacas. A uso da magia ou de
hábitos transmitidos pela oralidade, mais comum entre as camadas mais baixas da sociedade,
permaneceu e em parte ele é explicada pela maneira como as pessoas da época procuravam
justificar os acontecimentos por intermédio do sobrenatural (o que também fortalece a confiança
na existência de bruxas). Rodrigues determina que a tortura era viável quando se entendia o enorme
estima que existia pela ideia de Deus, como era obrigatório ser cristão e se colocar de acordo com
as regras da cristandade; com isso em vista ofender essa divindade era considerada uma violência
quase imperdoável, lesavam não apenas uma majestade terrena, mas a própria deidade suprema.

Tentar expurgar o pecado das pessoas pela punição física e/ou psicológica ou mesmo levá-
las a morte pretendia proteger a SICAR. Há ainda a circunstância de que a partir do Quarto Concílio
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de Latrão, de 1214, a confissão passou a ser tida como prova mor da contravenção de quem cometeu
crimes de bruxaria. O que acontecia muito frequentemente é que as pessoas acabavam confessando
algo que não fizeram simplesmente para se livrarem do martírio da tortura. E ainda, em muitas
ocasiões os inquisidores faziam com que as mulheres se despissem à procura de provas físicas, ou
seja, de alguma marca em seu corpo que pudesse ser interpretada como relacionada ao diabo, para
isso constantemente seus cabelos e pelos eram completamente retirados; mais ainda: a tortura
muitas vezes se mantinha até que a pessoa não mais a suportasse e oferecesse uma falsa confissão.

A tortura caracterizada acima não ficava restrita ao âmbito físico, mas a tortura
psicológica, de mantê-las aprisionadas, em condições precárias também vigorava. As denúncias e
confissões, por sua vez, tendiam a ser sempre enquadradas dentro dos parâmetros usados em
manuais inquisitoriais como o Malleus Maleficarum, o que indica que as pessoas normalmente se
influenciavam para construir o discurso da acusação, bem como do depoimento das vítimas de
tortura estava inscrito e fortemente influenciado pelas ideais disseminadas nos manuais. É
importante pensar a tortura de maneira particularizada: o que é socialmente aceito varia ao longo
do tempo, ela fazia sentido naquele contexto histórico, naquele momento ela funcionava menos
como instrumento de provar uma acusação do que algo que visava estabelecer os padrões de
normatividade de conduta e pensamento. A tortura é então a maneira através da qual os inquisidores
direcionavam as acusadas a confessarem práticas que já fazia parte do imaginário que absorveram
do manual de Kramer e Sprenger.

Podemos ainda extrair da valiosa análise feita por Laura de Mello e Souza em seu "O
diabo e a terra de Santa Cruz", um contundente diagnóstico de cunho cultural sobre a questão da
bruxaria. Em seu livro, ela caracteriza o continente Europeu, já no século XIV, como um local em
rápido desmantelamento de seus valores, costumes e mesmo de sua estrutura econômica. E é nesse
mesmo ambiente que a autora diz estar presente desde a Idade Média a prática de inferiorização
moral dos estratos menos abastados da população, associando-os a animais. A leitura de Souza é
de que esse momento de cisão no qual as pessoas pertencentes ao contexto erudito passam a
desprezar tudo que se remete a camada popular, marca o início da perseguição de diversos hábitos
populares ligados ao paganismo que até então eram tidos como comuns. Nessa Europa que aos
poucos vem deixando de adotar a mão-de-obra servil, substituindo-a por uma assalariada e que se
aproxima cada vez mais das vindouras reformas religiosas, ocorre cada vez mais uma subjugação
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dos símbolos populares, segregando a figura do diabo de sua intrínseca relação com a cultura
tradicional e passando a entendê-lo meramente sob sua faceta maligna, corrompendo a essência de
seu sentido. Entretanto, Souza se preocupa em ressaltar que sua avaliação não se pauta na ideia de
que a bruxaria só é estabelecida à medida que há a repressão da camada erudita sobre a popular,
mas sim de que o início da era Moderna trouxe consigo tamanhas transformações que rompem
tanto com as lógicas eruditas quanto com as populares. Desse modo, a negação das práticas magia
teria sido a reação encontrada pela elite frente ao rompimento que vinha ocorrendo com as parcelas
mais humildes da sociedade; a deturpação do que era a magia atinge o nível de seus próprios
praticantes passarem a reforçar o que diziam os eruditos. Isso comprova mais uma vez o porque os
inquisidores foram tão meticulosos em produzir um esteriótipo sobre as mulheres no Malleus
Maleficarum.

Em “A inquisição” de Novinski, a autora nos apresenta o início do aparecimento da


inquisição no século XIII a partir do sentimento de ameaça aos preceitos religiosos católicos, é
quando começa a ser descrito o conceito de heresia, segundo a qual o herege seria uma pessoa que
fez uma escolha de se virar contra a verdade e nesse estado permanecer, era a maneira de enquadrar
aqueles que questionavam de algum modo os dizeres da Igreja. Esse surgimento da Inquisição é
justamente uma das armas encontradas para fortificar o modelo de mulher presente no Malleus
Maleficarum e que era entendida enquanto bruxa. Acreditava-se que segregando e mais tarde
punindo essas pessoas, a Igreja impediria sua perda e poder e possíveis cissões em seu cerne.
Todavia, a historiografia desvela o fato de que apesar da intensa guerra contra os hereges,
pensamentos e atos assim classificados continuaram a se propagar ao longo dos anos. Já no
princípio da época moderna, no século XV desperta o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição que
se dá similarmente ao existente durante o período medieval, mas com procedimentos únicos e já
muito mais violentos que na era anterior. A Espanha e Portugal, de acordo com a leitura, foram os
pioneiros na modernidade a implantarem normas específicas para se lidar com os hereges,
essencialmente contra cristãos novos e pessoas originárias de outras religiões, ainda que nos países
em questão até aquele momento houvesse grande tolerância entre inclinações espirituais distintas.
A necessidade de monopolização do poder do Estado partindo de novos moldes se evidenciava
fortemente.
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Ginzburg em sua introdução ao livro "História Noturna" também fará observações a


respeito da discussão sobre a bruxaria. Ele se foca na investigação sobre os sabás, os encontros
noturnos das bruxas onde elas praticavam todos os tipos de atrocidades em nome de renunciarem
e se afastarem do cristianismo, ele relata que há uma homogeneidade nas narrações das mulheres
acusadas de bruxaria sobre como se davam tais reuniões. Ele salienta tais rituais na procura de
entender qual era a essência do pensamento daqueles que eram denunciados como bruxos e ainda
como se fez possível um extermínio tão massivo de pessoas nesse período, mas referencia que
diferente da maior parte da historiografia ele não busca pensar somente a perseguição, mas muito
fortemente a forma de agir de quem era acusado e porque tantos criam nos sabás. Ginzburg pensa
que nem tudo que era dito pelos acusados necessariamente era direcionado pelos juízes, ainda que
reconheça que a quantidade de casos de bruxaria tenha aumentado depois da publicação de tratados
demonológicos. Todavia, pra ele o fato de não haver pesquisas que levem a sério temas como os
sabás é emblemático, isso mostraria que não há um exercício de busca do valor das crenças nas
bruxas por parte daqueles a essa categoria enquadrados, os pontos não convencionais que
apareciam nas narrações dos acusados foram, na visão de Ginzburg, descartados e desmerecidos.
As crenças daquela sociedade, mais pontualmente de suas camadas mais baixas, poderiam ser
captados se a simbologia dos rituais mágicos fosse melhor compreendida e para o autor a noite nos
relatos traduziria o enaltecimento da luz, do mesmo modo como a manifestação de uma mulher
luxuriosa sugeriria a relevância que davam a pureza.

Ele tenta indagar sobre as origens na cultura popular a respeito da bruxaria para além e
mesmo anteriormente ao lançamento das obras eclesiásticas em torno desse assunto, isso permitiria
a nossa pesquisa, entender alguns dos conceitos de bruxaria presentes na fonte desse trabalho como
precedentes a escrita dos inquisidores e ainda o que o manual não traz ou se empenha em mascarar.
Em uma das passagens da introdução, é mencionado o caso de mulheres que afirmavam ter
participado dos arrebatadores sabás juntamente com uma divindade feminina que recebia nomes
diversos de acordo com a localidade, que foge a caracterização dos inquisidores. Ele diz que o fato
de mulheres no início do século XV encontradas pelas autoridades acreditarem que realizavam atos
que eram atribuidos a hereges como e isso é que teria levado os inquisidores a postularem em
sequência sobre os sabás. Ginzburg acusa os estudos sobre bruxaria de serem parciais e não
enxergarem nas confissões de acusados os mitos que esses retinham, além de ignorarem os
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componentes que não eram encontrados na escrita dos inquisidores. Esses estudos estariam sempre
orientados pelas falas dos demonólogos, enquanto os incriminados teriam suas vozes deturpadas,
desconsiderando as "raízes folclóricas do sabá”. O estudo de Ginzburg é portanto rico em suas
avaliações, mas não contempla em toda sua extensão a ideia dessa pesquisa, sendo importante
pontualmente por buscar no passado o que levou Kramer e Sprenger a escrever sobre quem seriam
as bruxas.

Uma minuciosa revisão do “Martelo das Bruxas” foi feita por Viana ao longo do “As
bruxas no Malleus Maleficarum: caracteres, práticas e poderes demoníacos”, em que designa como
as “epidemias de bruxaria” eram justificadas na época pelo fato de sendo as bruxas as pecadoras
maiores e procurando sempre aumentar a em quantidade os pecados do mundo, essas não se
bastavam em praticá-los, mas faziam o possível para difundi-los entre outras mulheres ou com eles
afetar os homens. O que determinava que uma mulher provavelmente aderia à bruxaria eram os
seus hábitos sexuais entendidos como deploráveis e aquelas que possuíam grande ambição; a
perversão maior que essas podiam apresentar era a de se deitarem com outros homens quando
casadas, rejeitando a validade da instituição do matrimônio ou aquela que era concubina de homens
poderosos. As mulheres visavam trazer para o pecado outras pessoas para que assim elas também
se perdessem da salvação prometida pela Igreja pelo cansaço ou de tanto lhes causarem prejuízos.
A bruxaria não se encaixava somente na definição de heresia, mas também de apostasia, e ainda,
por suas ações não ferirem tão pouco os mandamentos da Igreja, mas também abalasse a vida
terrena das pessoas, acarretando-lhes muitas vezes males e ferimentos físicos, era incumbência de
tribunais eclesiásticos bem como do secular ou civil sentenciar as penas a que elas seriam
submetidas; algo que não seria permitido por Deus caso a ré fosse inocente, haja vista que qualquer
denúncia era suficiente para provocar investigação seguida de tortura a qualquer mulher.

OBJETIVOS:

Geral
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-Analisar de que maneira os inquisidores James Sprenger e Heinrich Kramer criam em sua primeira
parte da obra Malleus Maleficarum (1487) uma percepção sobre o universo feminino de modo a
atribuírem as mulheres a categorização de bruxas.

Específicos

-Analisar como foi possível o surgimento de escritos como o manual em questão circunstanciando-
o aos estudos de gênero e às discussões sobre cultura popular em conflito com a cultura letrada;

-Compreender como o imaginário sobre as mulheres retratado na parte dois livro Malleus
Maleficarum (1487) encontra respaldo na sociedade Europeia no período Moderno;

-Colaborar com a produção de conhecimento sobre o fenômeno da bruxaria e, de modo mais amplo,
com o seu contexto.

PROBLEMA E HIPÓTESE(S):
Ao sondarmos sobre o desenvolvimento da caça às bruxas na Europa Moderna, nos
deparamos com uma obra que postulava sobre quem seriam as bruxas e como elas se associavam
aos demônios, além de indicar as formas mais apropriadas de julgá-las, o manual dos inquisidores
James Sprenger e Heinrich Kramer, Malleus Maleficarum (1487). Com o intuito de pesquisar o
imaginário construído por esses inquisidores na primeira parte do livro, onde eles se focam na
questão da figura feminina, é proposta a problemática que visa investigar o padrão ideal de mulher
estabelecido pelos inquisidores nessa parte do livro. Através do estudo feito até o presente
momento foi possível notar que esses inquisidores buscaram estabelecer uma categorização sempre
bastante negativa sobre as mulheres, tendo em vista as determinações sociais da época,
configurando assim em uma ação fortemente intencional. Verificamos ainda, por meio da leitura
do texto dos autores, que essa figura da mulher era apresentada como demonizada em contraste
com a alusão a Virgem Maria e a sua pureza, uma representação de uma mulher santa, desprovida
de defeitos da carne e cujas atitudes estariam sempre em consonância com os preceitos cristãos. A
partir dessa análise compreendemos que a crença de que a mulher que só é digna de respeito quando
casta se torna prejudicial as mulheres à medida que é usada não somente para reprimi-las
simbolicamente, mas se torna uma justificativa para agredi-las e levá-las a morte.
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Segundo os autores, as mulheres trariam em sua essência um caráter marcado pela


fraqueza de princípios, além de uma forte tendência a se entregarem as paixões e consequente
negligência com os cuidados do espírito. São retratadas como o sexo frágil e para confirmar tal
percepção são transcritos trechos da Bíblia. O texto da parte 1 do Malleus Maleficarum (1487) se
configuraria então como uma ferramenta de inferiorização das mulheres, mas que também
determinaria a conduta que deveriam seguir e quais práticas estariam proibidas de realizar para que
não fossem acusadas pelo aparelho inquisitorial. O manual é usado como um dos principais
instrumentos de fundamentação da perseguição de mulheres que cometiam atos compreendidos
como pecaminosos e tipicamente pertencentes ao universo feminino.

Para tanto, são postuladas duas possíveis hipóteses que podem colaborar para que haja um
maior entendimento do objeto e problema acima explicitados. Considera-se que é necessário
descobrir se de fato os inquisidores criam um modelo de mulher com a meta de criminalizarem
práticas contrárias ao disciplinamento social imposto a elas, em especial às mulheres das camadas
sociais mais baixas.

Em segundo lugar, é colocada a hipótese de que o imaginário criado sobre as mulheres na


primeira parte do Malleus Maleficarum (1487) tem a intenção de estabelecer um novo padrão social
diante das mudanças trazidas pela chegada da modernidade. Sob essa análise, os novos parâmetros
jurídicos e a caça às bruxas seriam indícios do desmoronamento da antiga organização da
sociedade.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS:

A análise da fonte sob a ótica da História Cultural pressupõe que o manual fornece
elementos de imprescindível relevância no que diz respeito aos valores, ideais e credos do mundo
europeu do início da modernidade, tendo nessa corrente historiográfica um aporte substancial para
a análise do objeto selecionado. Para tanto, Chartier em seu "História Cultural: entre práticas e
representações" aponta a necessidade de analisarmos o enfoque histórico cultural entendendo-o no
contexto temporal em que se desenvolveu. Assim, ele nos apresenta que o campo da História nas
décadas de 60 e 70 do século XX se encontrava em uma posição dominante frente as ciências
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sociais mais recentemente incluídas nos estudos acadêmicos no panorama institucional francês.
Estas, entretanto, passam a questionar a ênfase dada às questões econômicas na História, pondo em
xeque os próprios objetos e metodologias adotados pela disciplina. Diante de tais críticas sobre
seus procedimentos e concepções hegemônicas, a História se reorganiza. Toma por base
tratamentos e problemas que estavam no escopo de outras disciplinas, mas ao mesmo tempo
reafirma algumas das referências que a tornaram exitosa. Despontada sua dimensão cultural, a
História vai buscando novos elementos de afirmação de sua legitimidade.

Com isso, Chartier define que a História, tomada em sua abordagem cultural, buscaria
entender como as realidades sociais, em diferentes momentos, são gestadas e interpretadas.
Compreendendo a organização social como um construto artificial e não como dada de modo
natural e a priori, a História Cultural permitiria a leitura das categorias sociais que dão sentido a
certo contexto por meio da percepção de que estas "embora aspirem à universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam.
Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
os utiliza." (CHARTIER, 1990, p. 17).

Backzo em seu "Imaginação social" pontua que o imaginário imposto pelas figuras de
poder em seu controle social seria restrito e só teria êxito e eficácia quando possuisse a capacidade
de fazer para certos grupos sociais, isso que o autor denomina de "identidade da imaginação" À tal
observação, pode-se aludir de maneira válida precisamente ao modo em que viviam certas pessoas,
subvertendo o ideário da Igreja, ainda que essa fosse uma grande produtora do imaginário da época.
É no que o autor denomina de "fazer-se a si mesmo" de modo contrário ao que pregava a Igreja
que muitas pessoas acabam sendo incriminadas como bruxas no início do período Moderno por
não aceitaram ou não se submeteram ao imaginário instituído pela Igreja devidamente, exatamente
porque esse não fazia sentido dentro do mundo simbólico delas.

O texto “Histórias Assombrosas: o medo, a colônia, os cristãos-novos e o Tribunal do


Santo Ofício no século XVI”, escrito por Oliveira, revela a pertinência do estudo de fontes
inquisitoriais, delineando propostas de tratamento desse tipo de documento. Segundo o autor, estes
contém um discurso simbólico que pode ser visto como um indicador da ideologia seguida pelos
inquisidores. Esse trabalho nos apresenta necessidade de que ao se pensar a autoria desse tipo de
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fonte, mais importante do que buscar entender o que motivou os indivíduos de maneira particular
a redigi-las é refletir sobre quem essas fontes representam, em nome de quem elas falam, ou seja,
como a Igreja se utiliza de sua autoridade enquanto única representante legítima da palavra divina
para disseminar seus discursos por meio de tais documentos.

CONSIDERAÇÕES:

A fonte dessa pesquisa se insere em um recorte temporal de passagem do período


Medieval para a Era Moderna e em sua análise podemos notar características típicas desse
momento de transição. Ao mesmo tempo em que se elevam os textos de teólogos que visavam uma
fundamentação rigorosa de sua escrita juntamente com todo um racional aparelhamento da
máquina judicial e organização legislativa, constatam-se características na escrita dos inquisidores
que remetem a parâmetros tidos como irracionais de valoração. Aqui os ideiais morais de pureza
sexual e comportamental absoluta nas mulheres são elevados como o único modo de expiação dos
pecados inerentes a natureza feminina. Estabelece-se um padrão ideal de mulher a ser seguido com
ênfase tal que todas as que não se enquadrassem nesse modelo de retidão seriam alvos de suspeitas
de serem bruxas.

Assim sendo, o documento aqui examinado atuou no sentido de balizar um imaginário de


inferiorização das mulheres, através da afirmação do perigo da bruxaria, atividade entendida como
essencialmente feminina e interpretada como uma conspiração demoníaca. O caráter dado a
bruxaria de um movimento coletivo de adoração ao diabo é que justificava, na interpretação
religiosa, a perseguição sistemática de mulheres, já que essas seriam as responsáveis por todos os
males experimentados na Europa Moderna e as representantes de Satã e, portanto, as inimigas da
cristandade. A ideia de a bruxaria era praticada por grupos numerosos de mulheres permitia que os
juízes inquirissem as acusadas em busca de cúmplices, gerando uma quantidade interminável de
novas acusações. Implicava ainda na noção de que essas mulheres sempre buscariam mais aliadas,
estariam constantemente procurando corromper outras pessoas para que se entregassem ao
demônio, desse modo, a Igreja e (em especial a partir do século XV) os tribunais seculares não
poderiam permitir a disseminação de tamanha ameça, era preciso que intervissem de modo
contundente e agressivo.
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