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Resenhas

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É assim que as questões raciais Conheci Jerry Dávila em julho de


DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: têm produzido numerosos estudos, 2004 quando proferiu uma conferência
política social e racial no Brasil mobilizado muitos pesquisadores em no IX Encontro “Perspectivas do Ensi-
1917-1945. São Paulo: Editora da diversas áreas do conhecimento, sendo no de Biologia” na Faculdade de Edu-
UNESP, 2006. 400p. possível afirmar que se trate de uma cação da Universidade de São Paulo
das temáticas mais investigadas (USP). Fui atraída para sua conferência
multidisciplinarmente. Particularmen- porque seu título anunciava a conjuga-
O estabelecimento do conceito de te, têm sido objeto de estudo de histo- ção da história da educação brasileira e
raças humanas e a elaboração de riadores e, em especial, brasilianistas eugenia, uma parte da história da bio-
tipologias raciais deixaram marcas no americanos, como o professor Jerry logia que muitos desejavam que não ti-
cenário sociopolítico brasileiro que Dávila, da University of North Caroli- vesse sido escrita. Entrei naquele audi-
vêm, ao longo de tantas décadas, desa- na, em Charlotte, nos Estados Unidos. tório lotado e comecei a ouvi-lo trazer
fiando múltiplas análises e tentativas Desde 1993 Jerry Dávila vem acompa- de volta a eugenia, mas em vez de re-
de reparação. Ao lado das publicações nhando a história do Brasil, tendo rea- petir o relato das implicações eugêni-
mais recentes que oferecem farta argu- lizado sua tese de doutoramento sob a cas já conhecidas, Dávila apresentava,
mentação para convencer que raças hu- orientação de Thomas Skidmore. Suas de forma extremamente provocadora,
manas não existem do ponto de vista pesquisas tratam do papel desenvolvi- como o pensamento eugênico esteve
genético ou biológico continuam os de- do pelo pensamento racial nas áreas de enraizado na história da educação e no
bates que tentam caracterizar “o racis- políticas públicas e sociais, bem como pensamento educacional de nosso país,
mo à brasileira” para responder à pro- sobre a construção da memória históri- em um período importante para muitos
vocação de que “os brasileiros não são ca, tendo como foco as questões ra- projetos públicos de transformação da
racistas”. Isso parece sugerir que ainda ciais. Jerry Dávila esteve durante o sociedade brasileira.
guardamos uma fantasia de que é pos- ano de 2005 no Brasil como professor Na verdade, naquela conferência,
sível encontrar uma identidade brasilei- visitante na Cátedra Fulbright de Estu- o autor estava compartindo dados e
ra resultante dos processos miscegena- dos Americanos da Pontifícia Univer- análises que se encontram no livro que
tórios e determinar um padrão de sidade Católica do Rio de Janeiro lançara, pela Duke University Press, no
branqueamento e negritude. (PUC-Rio). ano anterior – Diploma of whiteness:

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race and social policy in Brazil, 1917- e as práticas nas escolas cariocas refle- lógica que refletia o pensamento médi-
1945. Quando li esse livro, compreendi tiam uma edição brasileira da “eugenia co e sociológico das elites brancas. O
com mais propriedade a riqueza do es- lamarckiana”. Diferente de uma “euge- autor encontra evidências de que, du-
tudo histórico realizado por Dávila e a nia darwinista” que imediatamente se- rante a Velha República e a Era Vargas,
contribuição que trazia para a área de gregava brancos e não-brancos, a ver- as políticas educacionais reformistas
educação e, sem dúvida, também para são brasileira tinha objetivos que se estabeleceram primariamente na
o ensino de biologia. Foi, assim, com ambiciosos e de longo prazo, quais os cidade do Rio de Janeiro, embora te-
muita satisfação, que recebi o anúncio de “transformar uma população geral- nham ampliado o acesso à educação
da tradução do recém-lançado Diploma mente não-branca e pobre em pessoas aos segmentos marginalizados social-
de brancura: política Social e racial embranquecidas na sua cultura, higie- mente, estabeleceram formas diferencia-
no Brasil 1917-1945, edição publicada ne, comportamento, e até, eventual- das de tratamento às crianças desses
pela Editora UNESP e traduzida por mente, na cor da sua pele” (p. 13). segmentos. Os educadores e intelectuais
Cláudia Sant’Ana Martins. Essa publi- Durante o período de 1917 a 1945, interpretaram o pensamento eugênico
cação torna possível que, no Brasil, os pressupostos da “eugenia do seu tempo e com essas idéias marca-
mais educadores, historiadores e outros lamarckiana” foram incorporados nas ram as instituições e as práticas no pro-
estudiosos possam partilhar do valioso políticas educacionais e nos projetos le- cesso de expansão do ensino público.
material analítico que Jerry Dávila nos vados adiante pelos educadores refor- Na verdade, o autor afirma que as
apresenta. Na verdade, o livro é de mistas tanto para as escolas do Rio de políticas foram uma faca de dois gumes:
grande auxílio para entendermos os in- Janeiro quanto para a formação dos pro- “Por um lado, criaram novos recursos e
tricados e entrelaçados caminhos que fessores. Para Dávila, os educadores novas oportunidades direcionadas a pes-
unem, em nosso país, as questões ra- soas historicamente excluídas. Por ou-
ciais e o processo de criação e expan- Tinham fé irrestrita na capaci- tro, participantes na educação pública
são do ensino público. O período histó- foram tratados de maneira desigual – os
dade do estado de funcionar de ma-
rico no qual Jerry Dávila concentrou alunos pobres e de cor foram marcados
neira técnica e científica para trans-
sua pesquisa é bastante significativo como doentes, maladaptados e proble-
para a história da educação brasileira e formar a nação. Os condutores da máticos” (p. 13). De acordo com
tem como cenário o Rio de Janeiro, en- expansão e reforma educacional Dávila, a escola que os pioneiros da
tão capital da República. acreditavam que a maior parte dos educação projetaram conjugava a
A obra convida-nos a refletir so- brasileiros, pobres e/ou pessoas de meritocracia, o cientificismo e a moder-
bre essas questões desde a feliz escolha cor, eram sub-cidadãos presos na de-
nidade, e dessa escola sairiam os cida-
de seu título, uma metáfora que já dãos que construiriam o ideal de nação
generação – condição que herdavam
anuncia o argumento central do livro. que almejavam. Para que as crianças
de seus antepassados e transmitiam
Ao examinar políticas públicas brasi- não brancas e de cor assumissem esse
leiras que expandiram e reformaram o a seus filhos, enfraquecendo a nação. papel idealizado era preciso que se sub-
sistema educacional, particularmente Os mesmos educadores tinham tam- metessem aos métodos e às práticas que
no Rio de Janeiro, na primeira metade bém fé na sua capacidade de mobili- demarcavam o padrão europeizado e
do século XX, Dávila discute que elas zar ciência e política para redimir branco. A associação da psicologia com
foram elaboradas e executadas tendo a medicina higienista, expressa nos tes-
essa população, transformando-a em
como pressuposto a existência de des- tes de inteligência e as avaliações de cu-
cidadãos-modelo (p. 12-13).
vantagens raciais brutais entre os brasi- nho higienistas, marcaram e excluíram
leiros não-brancos e pobres que os as crianças consideradas “problemas”
inferiorizavam e atrasavam o país. As- Em seu estudo, Dávila baseia-se ou inaptas à aprendizagem.
sim, eram essas políticas que iriam cor- em numerosas fontes documentais pri- É importante destacar que Dávila
rigir tais diferenças, educando esses márias, depoimentos, fotografias, arti- tanto em seu livro original quanto na
segmentos da população e curando gos de jornais e examina minuciosa- tradução brasileira parece estar, o tem-
suas doenças para, por fim, outorgar- mente diversos arquivos brasileiros e po todo “falando em português”, isto é,
lhes um diploma de brancura. internacionais. Com apurado cuidado sua compreensão e análise demonstram
Essa era uma nova forma de con- metodológico, Dávila faz uma articula- uma profunda identidade com as ques-
ceber a noção de branqueamento adota- ção dessas fontes, evidenciando que tões raciais brasileiras. Ele não opta
do no final do século XIX; as políticas tais políticas eram dirigidas por uma por estabelecer comparações entre as

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políticas raciais americanas e as brasi- las da população. As palavras de fessores de cor do Rio?” Jerry Dávila
leiras, um caminho bastante comum Miguel Couto – “Se o Brasil é um utiliza imagens fotográficas, do acervo
entre estudiosos dessa temática. Bus- grande hospital, então pode ser curado” Augusto Malta e de outras fontes, para
cando compreender a problemática – marcam bem a distinção de uma registrar a diminuição ostensiva da pre-
brasileira a partir de um olhar bem perspectiva lamarckiana adotada no sença de professores de cor das escolas
criterioso, Jerry Dávila também não cai Brasil, em contraste com a segregacio- cariocas anteriores a 1930, contrastan-
na armadilha de repetir a denúncia de nista darwiniana ou mendeliana empre- do com o crescente número de moças
racismo ou dos abusos do projeto civi- gada em outros países. Associações de origem social mais favorecida,
lizatório impostos à sociedade brasilei- como a Sociedade Eugênica de São formandas do Instituto de Educação
ra. Ao explorar seu material documen- Paulo, bem como a Liga de Higiene dos anos de 1930-1940. Tomando
tal, Dávila reinterpreta uma realidade Mental, tiveram em seus quadros, mé- como base essas fontes iconográficas e
já conhecida e constrói sua análise dicos como Afrânio Peixoto, antropó- documentais Dávila prossegue discu-
compreendendo nuances do pensamen- logos como Roquete Pinto e o sociólo- tindo como o pensamento eugênico es-
to educacional brasileiro de forma bas- go e educador Fernando Azevedo, este teve na base das reformas educacionais
tante original e provocadora para futu- tendo atuado como secretário da Socie- de Fernando de Azevedo e Anísio
ros estudos: dade Eugênica. Para Dávila, os Teixeira. A perspectiva de formar uma
eugenistas brasileiros diferiram dos co- elite de professores, a importação de
Para os educadores brasileiros legas de outros países porque “retira- testes de inteligência e de condiciona-
e sua geração intelectual, raça não ram a eugenia dos laboratórios e a le- mento físico foram elementos prepon-
varam para as políticas públicas” com derantes que excluíram os professores
era um fato biológico. Era uma me-
o intuito de melhorar o estado físico e de cor e os alunos pobres.
táfora que se ampliava para descre-
médico da população e transformar O capítulo 4, “Educação Elemen-
ver o passado, o presente e o futuro seus valores culturais, isso porque: tar”, examina mais detidamente as re-
da nação brasileira. Em um extre- “[...] ela fornecia [...] um código sim- formas de Anísio Teixeira e a ênfase na
mo, a negritude significava o passa- plificado para explicar as idéias de in- experimentação que dominou suas pro-
do. A negritude era tratada em lin- ferioridade racial e definir estratégias a postas educacionais. O quinto capítulo,
guagem freudiana como primitiva,
fim de lidar com ela, ou aperfeiçoá-la. “A Escola Nova no Estado Novo”, ana-
[...] os eugenistas armaram seu grupo lisa o impacto do Estado Novo sobre os
pré-lógica e infantil. Mais ampla-
com uma solução científica para o que educadores e a repressão que se abateu
mente, as elites brancas equipara-
era basicamente um problema social” sobre os reformistas. Chama a atenção
vam negritude à falta de saúde, pre- (p. 55). O capítulo prossegue apresen- para a adesão da Igreja e dos militares
guiça e criminalidade. A mistura tando a influência do pensamento eu- para a continuidade técnica da reforma
racial simbolizava o processo his- gênico brasileiro, destacando a contri- após a saída de Anísio, ao mesmo tempo
tórico, visualizado como uma traje- buição das ciências médicas e em que discute os antagonismos com as
psicológicas para a elaboração das po- políticas dos educadores progressistas.
tória da negritude à brancura e do
líticas públicas educacionais. Assim, o capítulo explora como o Esta-
passado ao futuro. (p. 25)
O capítulo seguinte, “Educando o do Novo deu continuidade à proposta
Brasil”, discute as relações entre raça, progressista, introduzindo mudanças
O livro é dividido em seis capítu-
classe e a distribuição demográfica dos que aumentaram ainda mais as pressões
los que seguem a uma introdução que
habitantes do Rio de Janeiro no perío- para o enquadramento racializado dos
muito bem problematiza as questões
do de sua investigação, ressaltando o alunos e professores. O último capítulo,
que serão desenvolvidas mais detalha-
papel dos dados estatísticos disponí- “Comportamento branco: as escolas se-
damente no restante do livro. No capí-
veis na construção de uma visão cundárias do Rio”, é dedicado especial-
tulo “Construindo o homem brasileiro”
racializada da população carioca. O ca- mente a examinar o padrão cultural eu-
o autor aborda as particularidades da
pítulo 3 talvez seja o que mais expresse ropeizado no Colégio Pedro II em
“eugenia brasileira”, explorando a ado-
o processo de exclusão provocado pela contraste com as escolas vocacionais
ção da modalidade lamarckiana france-
racialização das políticas educacionais cariocas. A experiência da Escola
sa pelos eugenistas brasileiros, já que
voltadas tanto para a escola quanto Amaro Cavalcanti, idealizada por Aní-
era essa modalidade a que acenava
também para a formação docente. Para sio Teixeira e Venâncio Filho, baseando-
com a possibilidade de curar as maze-
analisar “O que aconteceu com os pro- se nos modelos norte-americanos, é

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compreendida por Dávila como uma O argumento de Jerry Dávila e a


tentativa frustrada de romper com pa- análise de seu livro provocam novas
drões que não apenas cerceavam a liber- leituras sobre este importante momento
dade dos alunos, como também acentua- da história educacional brasileira e nos
vam as diferenças de classe. desafiam a continuar buscando formas
Jerry Dávila encerra seu livro de enfrentamento para a profunda in-
examinando como a fascinação com a justiça que marca o acesso à educação
raça é um traço marcante no Brasil. No em nosso país. Se ao contrário dos edu-
epílogo, “O persistente fascínio brasi- cadores reformistas estamos mais cons-
leiro pela raça”, vai buscar diversas si- cientes das armadilhas ideológicas de
tuações contemporâneas para conferir nosso tempo, esta obra certamente con-
atualidade ao argumento central do seu tribui para isso e oferece-nos material
livro. Para ele, embora as teses para apurar nossa capacidade de exa-
eugenistas tenham perdido a credibili- minar como recriamos metáforas ra-
dade após o término da Segunda Guer- ciais ao lado do desejo de um futuro
ra ainda é possível perceber os pressu- melhor para as novas gerações.
postos que as alimentaram em
instituições e em muitas práticas, indi- Sandra Escovedo Selles
cando como a metáfora raça humana Faculdade de Educação
continua a ser recriada na sociedade da Universidade Federal Fluminense
brasileira.1 Vai encontrá-la em expres- Brown University, Center for Latin
sões corriqueiras que circulam no Bra- American Studies, Providence,
sil, como no vocabulário do futebol – Estados Unidos
“raça rubro-negra” – ou também em (Visiting scholar com bolsa do
comentários jornalísticos sobre a divul- Conselho Nacional de Desenvolvimento
gação de pesquisas genéticas que ten- Científico e Tecnológico – CNPq)
tam caracterizar o “homem brasileiro”. E-mail: escovedoselles@uol.com.br
Dávila compreende que essas são for-
mas recriadas de apresentar a “demo-
cracia racial brasileira” e o pensamento
eugênico dos anos de 1930. Para o au-
tor, a metáfora ainda persiste no debate
atual quando se afirma que agora são
as instituições, mais do que os indiví-
duos, que precisam ser reformadas para
solucionar as desigualdades racial e so-
cial. Por fim, Jerry Dávila considera
que a obsessiva fixação com a identi-
dade racial brasileira reflete as estraté-
gias compartilhadas pelas elites: o con-
forto de sermos racialmente
miscigenados e a outorgação do diplo-
ma de brancura. Para ele, um diploma
de “negritude” seria impensável tanto
nos anos trinta do século passado como
ainda nos dias atuais.

1
Ver entrevista de Jerry Dávila publi-
cada em <www.sbenbio.org.br/>.

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