Direitos Humanos1
Marcelo L. Pelizzoli2
Carla Jeane Helfemsteller Coelho3
Introdução
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Publicado em: Oliveira, Liziane; Dornelles, Carla Coelho. (Org.). Teorias Críticas e Direitos
Humanos. 1ed.Curitiba: CRV, 2017, v. , p. 75-90.
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PhD e Pós-doutor em Bioética. Prof. do PPGDH-UFPE. Coord. do Espaço de Diálogo e
Reparação www.ufpe.br/edr. E-mail: opelicano@gmail.com
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Filósofa. Doutora em Educação. Professora e Pesquisadora no PPGD-Mestrado em Direitos
Humanos/Universidade Tiradentes. Membro do Comitê de Ética desta mesma Instituição. E mail:
ccfilos2@yahoo.com.br
4 Cf. Sayão, S. & Pelizzoli, M.L. Fragmentos Filosóficos. Ed. da UFPE, 2011.
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1. Superando a Apatia
forma involuntária, as pessoas são afetadas pelo seu tempo, bem expresso no termo
filosófico Zeitgeist, o “espírito do tempo”: o mal-estar ou o bem-estar de um tempo
que nos chama para realizar seu momento.
5 Sobre isto veja o livro Violência e Psicanálise, de Jurandir Freire Costa; e O Mínimo Eu, de C.
Lasch. E Pós-modernidade, a lógica cultural do capitalismo tardio, de F. Jameson.
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Boaventura de Souza Santos (Fórum Social Mundial, POA, janeiro de 2002)
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humanos. Isto pode ser traduzido também como criar processos e espaços de
inclusão.
7 Sobre isto cf. Zehr (2008); Pranis (2011); Pelizzoli, 2010 e 2016.
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de inclusão e repulsão. O sistema familiar e dos grupos é regido por forças maiores
que os indivíduos, tais como os sistemas sociais em geral, em diferentes graus de
pertença e intensidade8.
Certamente, houve e há modelos de justiça que atuavam com base no balanço
do “olho por olho, dente por dente”, que também busca reequilíbrios sociais. Mas na
percepção sistêmica e dos Círculos Restaurativos como os que inspiraram
inicialmente a Justiça Restaurativa - a tradição indígena canadense, australiana e
norte-americana – criou-se ao longo do tempo uma forma altamente evoluída,
otimizada, de manutenção social ou justiça - restaurativa. Nesta, o indivíduo
responde ao todo ao qual pertence – e pertença é um pressuposto neste caso – no
nível das obrigações e responsabilidades inter-humanas em primeiro lugar, e não
em termos de referência à legalidade formal. Responde-se diante do clã dos mais
velhos, mas responde-se diante da família da vítima, bem com diante da
instabilidade de sua própria família e companheiros; responde-se de fato pelo que
foi feito e pelo que há de se fazer desde então. E por sua vez, reconhece-se a violação
como algo que fere pessoas e sistemas - não algo frio e impessoal, mas instaurado
no nível dos compromissos (laços) afetivos e de sentido social de vida das pessoas,
que pertencem a um grupo de convivência.
Tal como na natureza, os animais humanos estruturam-se intrinsecamente
com seus ambientes, fato bem compreendido quando se tem consciência do que é
um Ecossistema ou quando se tem a noção intergeracional familiar e o papel da
cultura humana. As crianças, em especial, são muito sensíveis ao que aconteceu num
ambiente. A boa nova é que há formas de lidar com tais impactos sistêmicos, de rede,
focadas no círculo familiar, tribal, terapêutico, dialogal, seja como for; pode-se ter
um acesso privilegiado ao que ocorre, com o clima ou energia que move as relações,
desde que se acesse a força de interligação, exclusões dolorosas e inclusões
renovadoras que tendem a reequilibrar os danos, por meio de encontro e diálogo
circular, a partir de um Centro ou Sistema9
Os Círculos de Diálogo, como ápice dos modelos de práticas restaurativas,
fundamentais para a área da justiça, das escolas e demais instituições, tem o
potencial de chegar ao centro de equilíbrio do dar e receber, das trocas sociais,
mostrando-se como um espaço transparente em que se dá a Abertura, o resgate da
Pertença, a Participação, e a Responsabilização, sinônimos todos de inclusão. O
círculo é também uma forma de dar nascimento social a pessoas que parecem não
ter existência propriamente (e assim direitos e deveres), ou àqueles que foram
afetados na identidade social de suas existências. O movente fundamental para tal
escopo se chama diálogo.
Quando falamos em Direitos Humanos, falamos automaticamente em Cultura
de Paz, o que significa que é preciso entender a violência de forma profunda e
sistêmica. Ou seja, a violência reverbera como uma onda na água, e diz respeito a
muitas pessoas que sentirão o seu efeito. Por outro lado, e do mesmo modo, o amor
também reverbera, mas cria relações positivas e desdobramentos promotores da
vida. Ora, toda ação que se faz, seja ela boa ou ruim, reverbera. Neste sentido, é
preciso que cada pessoa pergunte a si mesma, que tipo de futuro quer, que tipo de
reverberação espera ver construída.
Muitas pessoas ainda hoje consideram que fazer justiça é vingar-se, punir o
outro e condená-lo a pagar pelo mal que fez, pensando que assim “corrigirá” o mal
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que está no outro. Esta é uma ideia geradora de mais violência. O outro passa a fazer
parte do “reino” do mal. O sentido original de Justiça não é este, nem tampouco
somente o sentido de “ir à Justiça” para “processar alguém”, e depender apenas de
meios institucionais – muitas vezes burocráticos, frios e que não dignificam nem a
vítima nem o ofensor. É por isto que a Justiça Restaurativa e as formas de mediação
participativa, sejam dentro ou fora do judiciário, são fundamentais10. Pautadas no
diálogo, nas associações de bairro e comunidades, nos espaços e centros de
conciliação e mediação, fazendo círculos restaurativos, inspirando-se em
comunidades antigas que resolviam seus problemas no próprio grupo, seja com a
mediação dos mais velhos ou experientes, buscam reparar a violação cometida,
perceber o erro, envolver os familiares e conhecidos dos intrigantes, e criar novas
possibilidades de convivência. Fundamentalmente é preciso perceber o fracasso da
Lei do Talião: “olho por olho, dente por dente”. Deste modo, podemos ficar
desdentados e caolhos.
Se olharmos a violência dentro da visão sistêmica, ou de rede, vemos que a
sociedade é uma teia de interdependência; o que acontece a uns reverbera em
outros. Neste sentido, esta sociedade também produz seus excluídos e projeta para
fora o seu próprio mal oculto, acusando o diferente, o excluído, o “bandido”, a
“prostituta”, ou o “louco” ou o “rebelde”, de serem eles a raiz dos males, como no
Nazismo ou no Fascismo, ou no Racismo e na Xenofobia que persegue as pessoas.
Isto se chama “projetar a Sombra”; a Sombra é a nossa própria agressividade e
energias instintuais de várias ordens jogadas para baixo do tapete, ou ainda a raiva
e medo, que quando não são aceitas e trabalhadas acabam atacando o outro, criando
o que se chama de Bode Expiatório – alguém ou um grupo que irá ser o culpado pelos
males e que deverá “pagar”, ser sacrificado para apaziguar as dores e o mal-estar
coletivo11. Deste modo, a acusação do Outro, deveria ser acompanhada de
autorreflexão. Ora, a capacidade de ver bem algo no outro, reflete o que há dentro de
quem “vê”. Na maioria dos casos, de forma ofuscada, diferenciada, mas os
“espelhamentos” se fazem presentes quando algo no/do Outro chama atenção de
alguém. Trata-se de mudar o olhar em direção a uma cultura de paz coletiva, em que
se incluem os Direitos Humanos.
11 Sobre este importante tema veja a obra Ao Encontro da Sombra (ZWEIG, S. & ABRAMS J.);
bem como Pelizzoli (2016).
12 O conceito de inteligência coletiva tem uma história longa, que poderia remontar à Platão
quando fala em pampsiquismo, uma mente comum na natureza/vida; mais tarde a Durkheim, que
toca em uma representação coletiva que se originam nas comunidades a partir de uma semiologia
comum a todos; mais tarde e especificamente na sociobiologia e na ciência política, chegando às
dimensões organizacionais. Na área informacional temos o livro Inteligência Coletiva, de Pierre
Levy (Loyola, 2007) O termo inteligência sistêmica é utilizado recentemente já na área empresarial
e organizacional; por outro lado, temos também a Constelação Familiar Sistêmica, vinda de B.
Hellinger.
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13 Sobre este importante tema veja a obra Ao Encontro da Sombra (ZWEIG, S. & ABRAMS J.);
bem como Pelizzoli (2016).
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sensibilidade e dor básicas. Quando se entra nessa energia sente-se algo do nível
pático; mas para isso é preciso que se tenha antes aberto o espaço; é necessário a
disposição com a presença que compõe o escutar. Precisa-se do cultivo da
capacidade de ouvir; precisa-se que se abra no pequeno mundo de cada um o espaço
para a alteridade, mesmo que este espaço possa representar uma ameaça à própria
identidade. Do mesmo modo, para receber algo do outro, é preciso também alguma
capacidade de acolhimento e do “abrir mão de”, conhecido como altruísmo.
Gadamer (2000), em seu significativo texto: ‘’Sobre a incapacidade para o
diálogo’’, observa que esta incapacidade é um bloqueio do sujeito, uma repressão,
uma questão existencial ligada às próprias concepções e relações; o filósofo refere-
se também a Freud quando pergunta “o que é a análise? ” Algo como uma
recuperação da capacidade para o diálogo, pois a pessoa não está conseguindo ouvir;
ela não consegue nem ouvir a si mesma, porque ter uma boa capacidade de diálogo
tem a ver com escutar a si mesmo. O modo com que cada um olha o outro tem a ver
com as próprias questões, crenças, expectativas. Assim, para que cada um olhe para
o outro é necessária a autopercepção sobre como ele olha e deseja o mundo.
Portanto, a capacidade para o diálogo exige uma autocompreensão do sujeito.
Qual é o outro pilar do diálogo, o seu motor para movimentar/funcionar? É a
pergunta. Em uma boa pergunta, o sujeito pode cair em si, dar-se conta. Para a
hermenêutica, as perguntas abrem, e as respostas fecham; perguntas mobilizadoras
vão ao coração e no ponto delicado do sujeito, da dificuldade. Podem quebrar
imagens (eidos – ideia) congeladas e preconcebidas. Um contexto criado pode muito
bem ser um pretexto (como exemplo: por que muitas vezes as pessoas brigam?
Porque precisam disso, como pontos fracos a serem superados, resposta à
frustração, etc.). A pergunta abre e dá movimento, não deixando estagnar-se na
dominação do objeto conhecido e na domesticação da alteridade infinita. Como uma
pessoa sabe se você está interessado ou não numa conversa? Pelas perguntas feitas
(ou não feitas); quando ela está interessada fica atenta e perguntante, inclusive para
confirmar se o que ela entendeu é correto. Deste modo, o interlocutor sente o
acompanhamento, porque o outro está tentando ver se é assim mesmo como ele
entendeu; assim, ocorre um fluxo. Evidentemente que as perguntas não podem ser
retóricas, ou seja, armadilhas lógicas, afirmações veladas, ou críticas veladas, pois
não são perguntas de fato, mas bloqueios ao diálogo e ao encontro. Quando se trata,
no encontro, de um vencer o outro, não haverá diálogo, mas sim disputa, retórica,
estratagemas “egoicos”, tergiversações. Do mesmo modo, quando se interpõe
julgamentos morais ou de valor, há um bloqueio do diálogo.
Eis a síntese da mecânica do Diálogo, escutar e perguntar; se não houver um
desses elementos não se pode usar a palavra diálogo. Não estaria correto,
tecnicamente. O Diálogo pressupõe essa troca (dia), com a escuta e o interesse e
abertura da pergunta (Pelizzoli, 2012 e 2016).
Considerações finais
Bibliografia