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Luis Estenssoro1
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Administrador Público (FGV) e Mestre em Integração da América Latina (USP) e Doutor em Sociologia (USP).
profissionalização do serviço público: implantação de um sistema de ingresso competitivo,
institucionalização do princípio meritocrático de promoção, criação de uma identidade de
interesses dos funcionários, e maior centralização e racionalização da administração,
inclusive com a criação do Departamento de Administração do Serviço Público (DASP),
em 1938. Nesta passagem da economia primário-exportadora para a economia urbano-
industrial, o Estado de Bem-Estar Social Brasileiro dá os seus primeiros sinais de vida, por
meio de decisões autárquicas e com o objetivo de fornecer as condições para o
desenvolvimento da indústria. Sua regulamentação se traduz em leis referentes às condições
de trabalho e à venda de força de trabalho. O Estado de Bem-Estar Social adquire desde o
início caráter populista, autoritário e corporativista e permanece voltado apenas para os
trabalhadores urbanos e com carteira assinada. As políticas sociais, por sua vez, têm um
profundo padrão conservador. Pode-se afirmar que, durante este primeiro governo Vargas,
não havia tratamento planificado para os setores sociais.
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características populistas, inclusive com exploração política e uma maneira paternalista e
personificada de manipulação social em ambiente de democracia limitada.
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do desenvolvimento social. No plano político, ocorre uma reorganização institucional em
bases democráticas, possível graças à mobilização social popular. A ciência política invade
o campo da administração pública, pois se reconhecem os obstáculos políticos à eficiência e
eficácia das políticas públicas. Com a Constituição de 1988, consolida-se formalmente a
cidadania, com a incorporação dos direitos sociais e da participação da sociedade na gestão
pública. Estabelece-se também o conceito de seguridade social, que engloba saúde,
previdência social e assistência social. Ocorre concomitantemente um movimento de
descentralização fiscal e administrativa determinado pela Constituição. Paralelamente, há
uma desconcentração do poder, com uma crescente importância dos prefeitos e
governadores eleitos diretamente. O Sistema Brasileiro de Proteção Social sofre um
desmantelamento e uma retração em nível federal, ao lado de um processo de
descentralização, regionalização e municipalização. O desenvolvimento urbano, por
exemplo, foi regionalizado e extingui-se o Banco Nacional da Habitação (BNH) e qualquer
política federal nesse campo. No entanto, a única reforma bem sucedida foi a do Sistema
Único de Saúde (SUS). Paralelamente, ocorre uma unificação do sistema de Previdência
Social e um processo de universalização da cobertura, que passa a incluir também
trabalhadores rurais. A partir da gestão Collor, acontece um movimento neoliberal de
redução do tamanho do Estado, inclusive com privatizações, desregulamentação e cortes
orçamentários. Há um desmonte do orçamento e da burocracia do campo social, com um
processo de descentralização caótica, desaparelhamento e fragmentação institucional.
Paralelamente, ocorre uma ampliação do assistencialismo, do clientelismo e do
fisiologismo. No governo Itamar Franco há uma retomada das políticas sociais e uma
redução do clientelismo e do assistencialismo. A Lei Orgânica da Assistência Social
(LOAS), de 1993, é marcada pela visão da assistência social como direito social, com
conquistas como a universalização do acesso e a gratuidade dos serviços. Porém, ao lado de
um fortalecimento das instâncias locais de poder, há um enfraquecimento da administração
central, processo este que culmina na Reforma Administrativa do governo Cardoso. Esta
reforma se trata de um recuo do Estado, que cede espaço para as organizações da sociedade
civil por meio de “contratos de gestão”. Em termos de políticas públicas, ocorre um reforço
da focalização e da seletividade (sem perda do universalismo), aliado uma redução do
estatismo, mediante parcerias com as organizações sociais e o setor privado. Apesar dessa
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ênfase na terceirização dos serviços e na participação das “Organizações da Sociedade
Civil de Interesse Público” (OSCIPs) na estrutura do Estado, preservou-se o caráter público
e gratuito dos serviços. No fim do período, inauguram-se as políticas sociais de
transferência de renda, graças à aprovação do Fundo de Combate à Pobreza, em 2000.
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Durante toda a história republicana o Estado assumiu papéis de regulação,
intervenção, planejamento, empreendimento e assistência social. Entretanto, percebe-se, na
sucessão dos períodos assinalados, um redirecionamento do foco centrado no aparelho
estatal para uma perspectiva ampliada da noção de público, inclusive com a incorporação
de novos atores. A preocupação com a estruturação do Estado, predominante até a década
de 70, irá se ampliar para abranger também a estruturação das políticas públicas. O modelo
burocrático tradicional foi levado ao limite com o apogeu da tecnoburocracia, onde o
Estado era o sujeito do planejamento centralizado do desenvolvimento, mas cede lugar ao
modelo pós-burocrático que incorpora a idéia de espaço público ampliado, cuja condição
pluralística demanda a construção de consensos sob uma nova forma. O modelo pós-
burocrático tem duas vertentes: o modelo de administração gerencial e o modelo de
participação cidadã. O primeiro entende o paradigma público com estatal, privilegiando
um corpo funcional profissionalizado e capacitado num “núcleo central” do Estado, que
teria suas atividades “não-exclusivas” privatizadas ou tornadas “públicas não-estatais”, com
a participação de “organizações sociais” por meio de “contratos de gestão”. Enquanto que o
segundo entende o paradigma público como interesse coletivo, onde as questões sociais são
objeto de políticas públicas sob controle social. Neste sentido, a tecnoestrutura burocrática
dos governos militares cede lugar ao modelo gerencial burocrático do governo Cardoso e,
posteriormente, ao modelo participativo cidadão do ideário e da prática do Partido dos
Trabalhadores (PT) (para uma visão crítica de cada modelo ver Ianni, 1991; Draibe, 2003; e
Yazbek, 2004, respectivamente).
Esta dicotomia política entre forças políticas mais à esquerda ou mais à direita
também tem seus reflexos nas políticas públicas, particularmente nas políticas de combate à
pobreza. O debate em torno da crise do Estado de Bem-Estar Social é relatado por Draibe e
Henrique (2003), que mostram que as correntes conservadoras e liberais entendem a
pobreza como algo residual e passível de um combate emergencial, pois constitui um
entrave à modernização. A ação do Estado, para estas correntes, deveria ater-se a
programas assistenciais de auxílio à pobreza, de modo a complementar a filantropia
privada e comunitária. Os processos de descentralização, privatização e focalização nos
mais pobres, propostos para os programas sociais, seriam uma resposta da sociedade, com
suas organizações, e do setor privado para o problema da pobreza. A crise fiscal do Estado
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o impediria de assumir essas funções de redistribuição. As políticas sociais, assim
entendidas, seriam um fator de estabilidade social e de estabilidade política para o processo
de reformas estruturais, rumo a uma maior liberalização da economia. Para as correntes
mais progressistas, entretanto, a pobreza é estrutural e a dissociação entre renda, trabalho e
seguridade social impõe uma necessidade de resposta baseada na solidariedade social, na
justiça distributiva e nos direitos sociais. Esta resposta passa, necessariamente, pelos
serviços públicos gratuitos e universais e por programas emergenciais massivos de
transferência de renda na forma de uma renda social mínima, ao lado de uma política
econômica condizente com o combate à desigualdade social. Enfim, um radical programa
de erradicação da pobreza e diminuição da desigualdade, inclusive com uma mudança do
modelo econômico dependente, concentrador e excludente hoje dominante.
Não obstante esta luta política em torno do Estado, o Governo Federal, ao lançar
a Política Nacional de Assistência Social (PNAS, MDS, 2004), nos alerta que temos hoje,
no Estado brasileiro, um padrão concreto de proteção social de caráter descentralizado, com
parâmetros claros para alocação de recursos (baseados no critério per capita), e com fundos
públicos definidos para o seu financiamento. Existe também uma definição do caráter das
relações público-privadas de maneira geral e, especificamente para investimentos, criou-se
a lei das Parcerias Público-Privadas (PPPs). Há uma multiplicação dos mecanismos
participativos e um reforço no poder de regulação do Estado. Temos múltiplos programas
de transferência de renda nas três esferas de governo, além do Benefício de Prestação
Continuada (BPC) e de programas estruturantes como, por exemplo, o Sentinela, contra o
abuso sexual de menores, e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Pode-
se dizer que acontece uma superação do clientelismo, do assistencialismo e da filantropia
com a universalização e gratuidade dos serviços e a ampliação de programas que
promovem a cidadania, a emancipação e os direitos sociais. Além disso, temos um Estado
com uma alta capilaridade institucional descentralizada em conselhos e secretarias de
Estados e de municípios nas áreas de saúde, assistência social e educação, que revela uma
capacidade de construção e assimilação progressiva de procedimentos técnicos e
operacionais homogêneos e simétricos para o financiamento, para a prestação de serviços, e
para a gestão das políticas públicas.
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Apesar disso, as necessidades e urgências sociais são maiores ainda do que as
soluções e capacidades existentes. Como nos demonstram Barros, Henriques e Mendonça
(2000), o Brasil não é um país pobre, mas um país extremamente injusto e desigual, com
muitos pobres. Entretanto, a sociedade brasileira não enfrenta problemas de escassez
absoluta nem relativa de recursos para erradicar seu atual nível de pobreza. A desigualdade
na distribuição de renda é o principal determinante da pobreza no Brasil e surpreende pela
sua intensidade e estabilidade. Para combatê-la, políticas de crescimento econômico devem
ser estimuladas, embora não deva ser a única via existente para reduzir a pobreza. É um
imperativo moral e um imperativo de eficácia combater a desigualdade, fonte da pobreza,
por meio de políticas sociais que gerem maior eqüidade na distribuição de renda e
propriedade. Estas políticas apresentam significativa capacidade de erradicar a pobreza no
Brasil, e a escassez de seu uso tem determinado a atual estrutura de distribuição desigual de
ativos. A ineficácia no combate à pobreza está associado à preferência que o poder público
tem dado à estratégia de crescimento econômico para reduzir a pobreza, em vez de
recorrer-se à estratégia da redistribuição de renda e propriedade, muito mais significativa
em termos de redução da desigualdade e, portanto, da pobreza.
Mas as dificuldades não param aí. Assistiu-se nos últimas décadas à constituição
de uma nova articulação de classes sociais responsável pelo avanço ainda maior das classes
proprietárias de ativos financeiros na dominação política no país. Pochmann (2004) afirma
que o projeto de desenvolvimento nacional deu lugar a um ciclo crescente de
financeirização da riqueza, cujo principal sustentáculo encontra-se no Estado, tanto em
termos de financiamento quanto em termos de legitimação política. O ciclo de
financeirização da riqueza depende da lógica de contínua transferência da renda gerada
pelo setor produtivo, especialmente do trabalho, para o setor financeiro, bem como da
compressão do gasto social. Há mecanismos e engrenagens estruturados para perpetuar e
aumentar essas transferências. Neste sentido, o acréscimo da participação do Estado às
custas da massa salarial das classes trabalhadoras, ocorrido na década de 90, atende, não a
um aumento do gasto social, mas ao pagamento do serviço da dívida pública. Por sua vez,
a dívida pública crescente, devido aos altos juros, favorece as classes proprietárias de
ativos na forma de títulos.
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Neste contexto, um sistema amplo e adequado de proteção social no Brasil,
condizente com nossa pobreza estrutural, encontra dificuldades imensas para se viabilizar,
pois demanda a contínua e perseverante construção e aperfeiçoamento de um Estado
Social: aumento dos fundos de investimento social; aumento da capacidade reguladora das
agências públicas; bem como estruturação e incremento das capacidades de gestão,
formulação e implementação de políticas públicas dos Ministérios. Sente-se a necessidade
de redesenhar os aparelhos burocráticos públicos e integrar as diversas áreas para
maximizar os resultados e melhorar a qualidade dos serviços públicos, com aumento da
transparência e controle social. Neste sentido, Kliksberg (1998) sustenta que planejamento
e gestão devem se aproximar ao máximo para maximizar a interação com a realidade e
permitir: 1) um aumento do acesso aos serviços públicos e programas sociais; 2) um
incremento da eqüidade no tratamento, com respeito das especificidades; 3) a garantia da
sustentabilidade dos projetos, planos, programas e ações; e 4) a potencialização da
eficiência das estruturas, da eficácia dos programas e da efetividade destes no combate à
pobreza e à desigualdade.
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No entanto, como afirma Abranches (1987), não se prestam serviços sociais
nem se erradica a pobreza sem redistribuir custos sociais, o que implica em opções
políticas sobre o padrão de desenvolvimento e a ação social do Estado. A política
econômica e a política social do Estado são complementares e refletem a direção política
das relações econômicas. Ambas são circunscritas pelo padrão de acumulação do modelo
econômico vigente. Porém, é a ordem política que define as opções de ação e de
intervenção do Estado no combate à miséria social e na promoção da justiça social,
entendida como busca de eqüidade sob a forma da garantia e promoção dos direitos sociais
e da cidadania. A política econômica e a política social estão no centro do confronto entre
interesses de grupos e classes sociais. A ação governamental reflete, portanto, escolhas em
um quadro de conflito social e político. Como sabemos, escolhas políticas sempre
envolvem julgamento de valor, e a política social, enquanto ação pública, corresponde a um
sistema de transferência unilateral de recursos e valores monetários que não obedece à
lógica do mercado. Trata-se, então, de um compromisso político assumido em termos de
políticas sociais universais e permanentes (auxílio em caso de velhice, invalidez,
desemprego, doença ou acidente), políticas de combate à pobreza (compensação de
carências e incorporação dos despossuídos) e políticas de redistribuição ou desconcentração
de renda (combate à desigualdade na distribuição de renda), todas com o objetivo de
combater a pobreza nas suas formas de desproteção, destituição, e marginalização, além da
sua forma mais extrema que é a privação absoluta.
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bem como o acesso aos bens e serviços fora dos circuitos normais de mercado, através de
políticas de cobertura social. Todos esses padrões de distribuição de bens e serviços, renda
e propriedade demarcam as fronteiras da privação absoluta e relativa, bem como a
injustiça, a regressividade e os privilégios no perfil de alocação de recursos e de
distribuição de renda.
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essenciais para a reprodução da força de trabalho: transporte, energia, saúde, educação,
habitação, etc. Sendo assim, as políticas públicas revelam uma tensão contraditória entre
os imperativos da reprodução do capital e as necessidades de reprodução da força de
trabalho, que, por sua vez, se fazem presentes pela maior ou menor participação política
democrática das massas no processo decisório. Neste sentido, pode-se perguntar até que
ponto o modelo de participação cidadã, que busca o controle social sobre a burocracia e o
controle político das massas sobre o Estado, tem dado os seus primeiros passos na esfera
federal, impondo-se aos vetos sociais das classes proprietárias de ativos.
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de fato, uma ancoragem institucional para novos valores e princípios democráticos, ou
mesmo socializantes, de intervenção do Estado Social na estrutura social desigual do país.
Historicamente, pode-se dizer que, no Brasil, as políticas sociais, entendidas como políticas
de reprodução da força de trabalho, foram relegadas para segundo plano em função das
necessidades de reprodução do capital. Desta forma, o desenvolvimento econômico do
subdesenvolvimento industrializado condicionou uma situação de pobreza e de
desigualdade social. A repressão política e o controle social foram elementos usados para
concretizar essa tendência. O que deve ser entendido, do nosso ponto de vista, é em que
medida ocorre uma inflexão, na fase atual, desta tendência histórica de favorecimento, por
parte do Estado, da acumulação privada do capital, em detrimento da melhoria do capital
humano e do capital social da força de trabalho brasileira. A criação do Ministério das
Cidades e do Ministério do Desenvolvimento Social, para ficar nos exemplos mais
evidentes, representa ou não uma ancoragem institucional para iniciar esta inflexão da
tendência histórica de descaso com as políticas sociais públicas?
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Bibliografia:
ABRANCHES, Sérgio H. “Política Social e Combate à Pobreza: A Teoria da Prática”. in:
ABRANCHES, Sérgio H., SANTOS, Wanderley G. e COIMBRA, Marcos
A. Política Social e Combate à Pobreza. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.
DRAIBE, Sônia. “As Políticas Sociais do Neoliberalismo”. Revista USP. pp. 86-101.
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IANNI, Octávio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1991.
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SOUZA, Celina. “Estado do Campo da Pesquisa em Políticas Públicas no Brasil”. RBCS,
vol 18, nº 51, fevereiro de 2003.
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