Você está na página 1de 2

resenhas 1

Book reviews

MORTAIS. NÓS, A MEDICINA E O QUE REAL- ções e a dependência. As casas de repousos e os asilos
MENTE IMPORTA NO FINAL. Gawande A. Rio (comuns em países em desenvolvimento) se tornam
de Janeiro: Editora Objetiva; 2015. 259 p. ISBN destinos de muitos velhos e moribundos. As primei-
978-85-390-0674-8. ras, juntamente com as moradias assistidas, oferecem
diferentes opções de residência e cuidado que variam
doi: 10.1590/0102-311X00141416 de acordo com a vontade e a condição do cliente/pa-
ciente, possibilitando assistência integral ou parcial.
Todavia, não conseguem evitar sofrimentos causados
Envelhecimento e morte estão no cerne da discussão por perdas, reais ou simbólicas, que a própria mudança
de Mortais. Nós, a Medicina e o que Realmente Importa para elas promove.
no Final (Being Mortal. Medicine and what Matters in Em que pesem as dificuldades de sobrevivência na
the End, no original), obra de Atul Gawande, médico vida moderna, a família ainda é a principal cuidadora
e professor do Departamento de Saúde Pública e Ad- dos idosos. Mas para um número que cresce significati-
ministração da Harvard School of Public Health e do vamente, as instituições, as residências para idosos, são
Departamento de Cirurgia da Harvard Medical School inevitáveis. Essa é a discussão que permeia o capítulo
(Harvard University, Estados Unidos). Diante da consta- quarto, Assistência, que atenta para “uma existência
tação de que o avanço científico na área médica alterou institucional”, com regras, normas de controle e super-
significativa e profundamente a vida humana, possibi- visão. Uma existência “segura”, porém comumente des-
litando um aumento no tempo e na qualidade de vida, provida de sentidos. Mas, questiona o autor, será que
o autor se debruça sobre a experiência da mortalidade, realmente precisa ser assim?
refletindo sobre o processo de envelhecimento e ques- O quinto capítulo, Uma Vida Melhor, aborda a difi-
tionando o próprio papel da medicina com relação à culdade dos profissionais da área médica, preparados
finitude. Para tanto, divide o livro em oito capítulos bas- científica e tecnicamente para reparar a saúde e man-
tante emblemáticos, além da introdução e do epílogo: ter a vida, em compreender e respeitar as vontades e
o ser independente, caindo aos pedaços, dependência, necessidades dos pacientes. Apesar disso, são eles que
assistência, uma vida melhor, desapegar-se, conversas definem a forma como são vividos os últimos dias. Re-
difíceis, coragem. ver posicionamentos e pensar em espaços onde o tér-
O primeiro capítulo, O Ser Independente, destaca mino da vida pode ser experienciado com escolhas,
o medo dos idosos em perder a autonomia e passar a relações familiares e/ou sociais e relativo bem-estar, é
depender do outro, seja família ou instituição. Mas co- assaz importante de acordo com Gawande. Afinal, não
mo garantir a independência diante da prolongação se pode esquecer que o medo da doença e da velhice é
da vida? Afinal, afirma Gawande, as doenças sérias e também o medo da dependência e do isolamento, da
limitações são inerentes ao avanço da idade. O que fa- morte real e da simbólica. Para a maioria dos mortais,
zer quando elas se manifestarem? É essa questão que o a longevidade só tem sentido se acompanhada de um
autor procura responder ao longo da obra, utilizando mínimo de qualidade de vida, de possibilidades de es-
exemplos de familiares e pacientes que, mais cedo ou colhas e da manutenção da identidade.
mais tarde, não conseguem manter a independência. Quando o impulso dos profissionais da área médi-
O avanço médico-científico consegue hoje adiar ca de resolver e controlar a doença deve ser combati-
a morte, ao contrário do que ocorria em outras épo- do? Pergunta Gawande em Desapegar-se, o sexto capí-
cas, mas não pode evitá-la. Mas até a morte chegar, tulo. Doentes graves têm outras prioridades, além do
prossegue Gawande no segundo capítulo, os cuidados prolongamento da vida: evitar/controlar o sofrimento,
médicos são fundamentais para definir se o percurso estar consciente, relacionar-se com entes queridos,
final será brusco ou gradual, bem como se será ou não não ser um fardo, um “peso morto” para os outros,
possível manter as capacidades caras ao indivíduo por sentir-se bem, completo. Eles sabem que precisam lu-
mais tempo. Geralmente, as pessoas se adaptam ao de- tar para viver, mas como saber e aceitar que a luta se
clínio corporal e às mudanças que o envelhecimento tornou inócua? E é aqui que o autor situa os serviços de
impõe, até que um fato específico – uma queda, por cuidados paliativos como possibilidade de garantir um
exemplo – indica que as coisas se modificaram e pre- final de vida com maior qualidade e menos sofrimento,
cisam ser transformadas. Nesse sentido, Caindo aos Pe- de propiciar uma boa morte, uma ars moriendi moder-
daços reflete não só a decrepitude e o temor da morte, na. Os moribundos geralmente precisam de auxílio de
mas também os impactos dessa transformação no sen- profissionais dispostos a estabelecerem conversas difí-
tido construído ao longo da vida. ceis que ajudem a fazer escolhas e se preparar para os
No terceiro capítulo, Dependência, o medo dos momentos finais.
acontecimentos que precedem à morte é discutido Destarte, o capítulo sétimo, Conversas Difíceis,
com bastante sensibilidade: as perdas (de audição, aponta justamente para uma fase transitória em que
memória, estilo de vida, amigos e familiares), as limita- há crescente rejeição da “versão institucionalizada”,

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a li-


cença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e
reprodução em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho
original seja corretamente citado. Cad. Saúde Pública 2016; 32(12):e00141416 | www.ensp.fiocruz.br/csp
2 resenhas book reviews

sem que haja ainda uma nova concepção de envelhe- Por fim, a morte precisa deixar de ser pouco co-
cimento e morte. Não obstante, Gawande alerta para mentada e nomeada, pois é inerente à vida. O “proces-
a dificuldade desse processo, posto que exige o ques- so de morrer”, tão comum em outros períodos da histó-
tionamento de um sistema perito hegemônico, com ria, no sentido de as pessoas se preparem para a morte,
alta competência técnica, e o desenvolvimento de compartilharem suas lembranças e sentimentos, des-
uma nova leitura do morrer, que objetiva preservar o pedirem-se dos entes queridos e fazerem as pazes com
sentido da vida, bem como as prioridades individuais. Deus ¹, deve ser retomado, sugere ou autor. Por mais
Mediante conversas difíceis com os profissionais da terrível que a morte seja, o final da vida pode ser menos
área de saúde, o moribundo pode ganhar em tempo e traumático e sofrido para o moribundo e sua família, se
bem-estar. houver tempo e oportunidade de se preparar para ela.
É preciso Coragem para reconhecer o que traz es- Mas isso depende de escolhas e conversas difíceis, bem
perança e o que causa medo e para decidir o que é mais como da aceitação de que somos mortais!
importante. No último capítulo, a coragem é central,
pois permite reconhecer que não há controle do final
da vida, mas também não há impotência total. Existe Marisete Teresinha Hoffmann-Horochovski 1
espaço para ação, para moldar histórias e manter o 1 Universidade Federal do Paraná, Matinhos, Brasil.
sentido da vida. Embora o tempo seja curto, limita- marisetehh@gmail.com
do, existe vida, relações, possibilidades. É isso que os
profissionais de saúde que atendem idosos e doentes
precisam perceber e reconhecer: segurança e um tem- 1. Ariès P. Sobre a história da morte no ocidente.
po de vida maior não são as únicas prioridades. Ade- Lisboa: Teorema; 1989.
mais, precisam reconhecer que nem sempre podem
propiciar a cura, mas podem trazer alívio e, algumas
vezes, conforto.

Cad. Saúde Pública 2016; 32(12):e00141416 | www.ensp.fiocruz.br/csp

Você também pode gostar