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• Está lá porque os ingleses pensam num filme de ficção útil ao esforço de guerra,
com efeito especial nos Estados Unidos (no momento, fora do conflito). Os poderes
do mundo finalmente reconhecem a importância e a eficiência do cinema no plano
da comunicação social. […] Sua ascensão pessoal encarna a emergência de uma
arte, da qual ele se vê pai, e de um novo império dentro da ordem internacional,
nação-centro da qual ele é filho nativo e exemplar. (Pág. 10)
• Para o cinéfilo, o nome David Wark Griffith exibe a aura do mito, traz o encanto da
origem, a interrogação renovada sobre a “primeira vez”. Ocupar-se dele obedece,
portanto, ao impulso de resgatar a invenção e ver desfilar diante dos olhos a
história de uma linguagem. (Pág. 11)
• O artigo de Eisenstein sobre o metre soma argumentos nesta direção, dando maior
consistência a esta dialética que preenche de sentido os primeiros passos do
cinema sem olhar para tudo como puro progresso. […] Próximo de Pudovkin na
defesa de um estilo cinematográfico que sai de Griffith, Balazs quer ver tudo
avançar junto, a linguagem do cinema e as ideias revolucionárias. (Pág. 15)
• Tal como o mundo dos objetos, o cinema é também campo minado de fixações,
investimentos emocionais inesperados, interesses intelectuais particulares. […] o
dado relevante para nós é o estratagema de Griffith para caracterizar os vários
passos, para dramatizar esta iluminação da consciência. Pela primeira vez, faz uso
do chamado campo/contracampo: alternando a imagem do palco (ação) e a
imagem do alcoólatra na platéia (reação); repetida a alternância, seguimos as suas
mudanças de expressão à medida que a ação evolui no palco. Pela montagem, a
situação vivida em determinado espaço é descomposta. […] o fim da primeira
década é um momento de transição nos Estados Unidos, os homens de cinema,
realizadores e negociantes estão empenhados em aplacar as suspeitas de
burgueses e religiosos, num processo que coincide com a inscrição do cinema no
universo da arte. (Pág. 19-20)
• Aos poucos, define-se o estar por conta de si mesmo, mesmo que o preço do
trabalho duro em colheitas ou do uso da pá cheia de minério no alto de um vagão
de transporte. […] inclina-se mais para a inteligência mecânica, a engenhosidade
no encontro de soluções para imediato, algo que a condição de andarilho ajuda a
criar, pois o faz conviver e “se virar” numa sociedade em franca mudança: os
Estados Unidos da “era do progresso”, do domínio da natureza, das invenções e do
festival de novas patentes que enreda avanço tecnológico e sida cotidiana. […]
esta convicção, traduzida em termos de cinema, induz a apontar esta nova
experiência como responsável pelo desenvolvimento da montagem acelerada e
pela presença do “homem de ação”, competitivo, nos filmes – marcas
características do cinema que Griffith ajudou a construir. […] Quando localizado
nos Estados Unidos moderno, o drama do diretor de Intolerância volta-se mais para
o homem comum às voltas com opções morais, a honestidade e a safadeza; o
herói positivo típico à “era do progresso”, quando aparece, vem para condensar
aquela transição entre o rural e o urbano de que o próprio Griffith foi exemplo. […]
Ao mesmo tempo, este detalhe tem a ver com Griffith, que não excluía o
enriquecimento súbito à custa de um lance dessa ordem (o homem de letras
poderia vir depois). […] ele renuncia ao happy valley e circula pelo país aspirando
ao teatro mas, quando chega a Nova Iorque, as circunstâncias lhe oferecem o
cinema, este fruto de ciência e tecnologia que acolhe o seu engenho numa esfera
da invenção onde não cabe registrar patentes. […] em junho de 1908, veio o
convite para que ocupasse o cargo vago de diretor dos filmes da Biography, onde
mostrara-se homem emprenhado, conhecedor da carpintaria da encenação (um
ano antes, tinha queimado suas chances na Edison Company ao entregar a Edwin
Porter, como original, um plágio do libreto da Tosca, de Puccini – Porter o pegou
em flagrante). (Pág. 24-26)
• Trabalhando 16 horas por dia, Griffith valoriza a função e impõe-se como diretor
competente, hábil na obtenção do rendimento desejado, capaz de resolver
conflitos, conciliar questões humanas e técnicas. […] Griffith se fez inovador, no
cinema à deriva, sem que fosse esta sua perspectiva inicial. Uma vez envolvido na
corrente, foi consciente no gesto de criação, teve conflitos e soube argumentar,
mas tal consciência se engendrou na lida diária, no processo. (Pág. 27)
• Mais importante, falo do paralelismo criado por Griffith em After Many Years, filme
de outubro de 1908, momento de inovação inspirado na mesma tríade – separação
/ linga espera / retorno – onde Griffith faz a ligação que chocou os produtores: a
imagem da mulher só, em casa, pensando no marido náufrago desaparecido; a
imagem dele, isolado na ilha, pensando na família. […] afinal, porque tanto
escândalo diante de algo inspirado no mestre narrador, perito em fisionomias? […]
no campo da obra, a idealização da vida doméstica, o depoimento emocionado que
desenha a sala de estar onde o cineastra vê expressos os valores essenciais de
sua cultura; no contracampo, a realidade de quem nunca chegou a construir o “lar
americano” que exaltou em filmes e textos, a vida passada na maior parte em
hotéis, a distância no convívio, o jogo de enigmas, a administração de imagens que
vira encargo e isola- Griffith à deriva. (Pág. 28-29)
• O não de Griffith a Zukor se deu pouco antes de ele vir a público reivindicar a
condição de quase único inventor da sintaxe narrativa do cinema. Sua aposta
estava no específico (montagem, enquadramento) e não na celebridade das figuras
colocadas diante da câmera. (Pág. 32)
• Ninguém tinha o mapa da mina que permitisse vislumbrar o destino próprio de cada
procedimento dentro da ordem que se instalou depois. Nós, uma vez a ordem
instalada, podemos olhar o passado e discernir avanços e recuos, a pesquisa mais
recente não cansa de mostrar o quanto é comum uma “conquista” de liguagem
estar presente num filme sem que seja claras para os responsáveis as implicações
dessa presença. (Pág. 36)
• Cada imagem é entendida como produto de um olhar que visa um objeto (uma
porção daquele mundo) e o testemunha como presença em determinado momento
e lugar. […] E o processo se adensa à medida que a fonte do olhar também se
apresente como corpo integrante do mundo em desfile na tela. (Pág. 44)
• Mestre do “filme de ação”, Griffith não é menos hábil ao dar conta de momentos de
experiência que independem da corrida contra o relógio e se expressam melhor na
sucessão de rostos, olhares e pequenos gestos. (Pág. 52)
• O discurso de Griffith – que nem chegou a usar atores negros para os principais
papéis, exibindo as figuras grotescas de brancos pintados. […] No eixo da questão
racial, há uma maré segregacionista que se opõe às lutas de organizações e
lideranças negras em favor daqueles direitos negados mesmo após a abolição. A
revitalização da Ku Klux Klan é um sinal visível do clima no sul – e o filme de
Griffith só põe lenha na fogueira. (Pág. 60)
• Para sustentar seu apelo aos bons sentimentos, em cada estória, Griffith tece a
trama de modo a realçar como motor dos acontecimentos, a má vontade, a inveja,
a hipocrisia, a ambição de personagens capazes da pior traição ou vilões dispostos
a induzir os poderosos a agir com violência. (Pág. 62)
• Nas relações de trabalho, na ficção que projetou na tela, na vida particular, Griffith
se emprenhou em sustentar um imaginário de feição patriarcal, onde o feminino de
celulóide e o feminino real compõem-se de figuras frágeis dentro da roupas mas
firmes no espírito, a virtude da mulher se fazendo dessa mescla de força de
vontade e inocência desprotegida. (Pág.71)
• ao longo dos anos vinte, Griffith foi inábil na escolha dos assessores (inclusive nas
relações com UA) e viu crescer a defasagem entre sua auto-imagem de infalível e
a realidade, os erros de cálculo e os fracassos comerciais lhe fechando as portas.
(Pág. 80)
Epílogo
• Por ocasião da morte de Griffith, Jay Leyda faz a crônica do funeral embaraço. Sua
ironia seca descreve o ritual que selou a indiferença geral para com o velho
solitário. […] Griffith não soubera adaptar-se aos novos tempos, Hollywood ficara
mais sofisticada e o moralismo obsoleto insistira em fazer um cinema tipo sermão,
inaceitável na “era do jazz”. […] Se, conforme a observação de Andrew Sarris,
Griffith nunca chegou a uma “concepção adulta” da sociedade, Hollywood, mesmo
depois dele, não deixou de permanecer impermeável a essa “concepção adulta”,
no estilo e nos temas, quase sempre distante das interrogações mais agudas dos
artistas deste século, continuando o antiintelectualismo e a adolescência,
mantendo, até o fim dos anos cinquenta, um velho código de ética, tutela ginasiana
sobre a produção cinematográfica. (Pág.90-91)