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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode

confundir precedentes com as técnicas do CPC para


solução da litigância de massa?

PRECEDENTES E CASOS REPETITIVOS: POR QUE NÃO SE PODE


CONFUNDIR PRECEDENTES COM AS TÉCNICAS DO CPC PARA SOLUÇÃO
DA LITIGÂNCIA DE MASSA?
Precedents and repetitive cases: why one cannot mistake precedents with the techniques
created by the Code of Civil Procedure to solve mass litigation?
Revista de Processo Comparado | vol. 10/2019 | p. 17 - 53 | Jul - Dez / 2019
DTR\2019\42361

Sérgio Cruz Arenhart


Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-doutor em Direito
pela Università degli Studi di Firenze. Professor Associado dos Programas de Graduação
e Pós-graduação da UFPR. Ex-juiz Federal. Procurador Regional da República.
scarenhart@gmail.com

Paula Pessoa Pereira


Doutora e Mestra em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Visiting researcher no
Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law. Especialista em
Processo Civil pela Fundação da Universidade Federal da Bahia. Professora colaboradora
na Universidade de Brasília. Assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal.
pessoapp@hotmail.com

Área do Direito: Constitucional; Civil; Processual


Resumo: O artigo busca demonstrar que os instrumentos previstos no CPC, como um
sistema brasileiro de precedentes, não têm nenhuma relação com a função ou com a
feição próprias do sistema de precedentes anglo-americano.

Palavras-chave: Precedentes – Litigância de massa – Segurança jurídica – Igualdade –


Coisa julgada – Código de processo civil
Abstract: The article aims to demonstrate that the instruments provided by the code of
civil procedure, as being a Brazilian system of precedents, does not have any relation
with the function or the feature typical of the Anglo-American system of precedents.

Keywords: Precedents – Mass litigation – Legal certainty – Equality – Res judicata –


Code of civil procedure
Sumário:

1.Justificação e decisão: exigências de racionalidade e legitimidade na atividade


jurisdicional - 2.Precedentes judiciais: conceito, aplicação e limites - 3.As técnicas de
solução de casos repetitivos do Código - 4.Um balanço final

1.Justificação e decisão: exigências de racionalidade e legitimidade na atividade


jurisdicional

Aos juízes na prática jurisdicional compete tutelar o adequado e efetivo cumprimento


dos valores que justificam o Estado de Direito, uma vez que, no espaço das decisões
judiciais, a disputa argumentativa e interpretativa do direito se desenvolve com o fim de
se chegar a um acordo ou imposição de qual intepretação deve ser atribuída às normas
jurídicas em deliberação, de modo a garantir, com esse ato decisório, a solução mais
adequada ao caso concreto e à ordem normativa.

Os juízes, portanto, apresentam-se na ordem normativa institucional como


solucionadores imparciais de disputas entre cidadãos e entre estes e o poder público. O
que os cidadãos e o Estado esperam minimamente dos juízes (e do Poder Judiciário
enquanto instituição) é que estes resolvam os problemas jurídicos de acordo com o
direito, e não conforme suas convicções pessoais sejam elas de ordem moral, religiosa,
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política ou social.
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

Em outras palavras, os órgãos jurisdicionais vistos como instituições racionais e


imparciais justificam sua atuação por meio de decisões que se fundamentam em
elementos probatórios e argumentos jurídicos relevantes para a adequada resolução dos
casos. A fase postulatória e de colheita das informações e argumentos deve ser
conforme ao que foi amplamente discutido no processo, nos termos das argumentações
trazidas pelas partes e pelo próprio órgão jurisdicional, no exercício da sua atuação de
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ofício. Essa forma de proceder demonstra racionalidade e legitimidade aos olhos dos
jurisdicionados e dos demais atores institucionais, porque afasta as interferências
externas, qualificadas como políticas, opiniões pessoais ou argumentos essencialmente
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consequencialistas.

A decisão pela interpretação mais adequada é uma atividade complexa e exige muito do
raciocínio jurídico desenvolvido pelos juízes, porquanto, de forma geral, os argumentos
defendidos pelas partes representam interpretações jurídicas razoáveis, expostas de
forma persuasiva e coerente, contexto que faz com que a decisão se dê entre
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interpretações igualmente válidas para um mesmo problema jurídico.

A exigência que recai sobre os juízes, portanto, está na necessidade de uma justificação
racional que exponha sua pretensão de resolução da disputa privada ou pública por meio
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de uma razão de decidir universalizável, apta a ser replicada nos casos sucessivos
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semelhantes.

As decisões judiciais, nessa perspectiva institucional, assumem genuína função de


servirem como elementos de prescrição normativa na ordem jurídica, em resposta à
dinâmica que o ordenamento exige, na medida em que o Legislativo não consegue dar
conta da demanda por regulação dos fatos sociais de forma adequada e satisfatória, na
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velocidade em que a sociedade se desenvolve.

Nesse cenário, a atividade jurisdicional tem duas funções principais a desenvolver e


cumprir: a primeira se refere ao dever de resolução das disputas jurídicas, uma vez que
sociedades complexas precisam de instituição que seja capaz de resolver
conclusivamente os litígios decorrentes da reivindicação dos direitos e de sua aplicação.
Essa função é atribuída, dentro da organização dos Poderes de Estado, aos tribunais,
enquanto instituições independentes dos demais atores políticos e sociais e vinculadas
ao sistema positivo de direito e às argumentações jurídicas em disputa no processo
judicial. A segunda função diz respeito ao objetivo de enriquecimento do estoque das
normas jurídicas, por meio da atividade de intepretação e aplicação do direito no
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processo judicial. Mais especificamente, aos tribunais de vértice do sistema,
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categorizados como Cortes Supremas, compete institucionalmente a definição das
normas jurídicas, resultado do processo de interpretação e aplicação do direito, bem
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como a unidade e estabilidade da ordem normativa, por meio dos precedentes
judiciais, como método de tutela dos valores da segurança jurídica, igualdade e
liberdade.

A prática de seguir precedentes, assim, apresenta-se como princípio central no processo


de tomada de decisão judicial, que tem por objetivo a tutela dos valores da
racionalidade, da imparcialidade e da igualdade formal, no momento da reconstrução do
direito pelos juízes. E esse é um dado importante porque o discurso jurídico,
notadamente a decisão judicial, deve ser capaz de satisfazer as condições de
aceitabilidade racional e objetividade, embora nem sempre satisfaça a aceitabilidade
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subjetiva da parte vencida.

Nesse contexto normativo, fica claro perceber que a atividade decisória assume o papel
de favorecer a legitimidade do sistema democrático como um todo, ao devolver à
sociedade normas jurídicas vinculantes e estáveis. Se o Estado de Direito tem como
fundamento a continuidade da ordem jurídica, a estabilidade e o tratamento igualitário a
todos os cidadãos, a instituição encarregada de fazer cumprir sua força normativa (como
as Supremas Cortes) deve proteger tais valores no desempenho de sua função.

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Melhor explicando: no espaço da jurisdição contemporânea, a Suprema Corte tem amplo


espaço de conformação normativa na sua atividade interpretativa e de aplicação do
direito, haja vista a concorrência de respostas jurisdicionais igualmente válidas e
legítimas para um único problema jurídico. Todavia, esse espaço de conformação
interpretativo não implica afirmar que a atividade jurisdicional é essencialmente
discricionária; ao contrário, é bem limitada.

E os limites impostos ao processo de aplicação do direito são verificados tanto no ponto


de partida da atividade jurisdicional – porque toda função judicial de resolução de
disputas parte do texto legislativo em geral – como no seu desenvolvimento, em
decorrência da observância obrigatória dos precedentes judiciais por ela criados, como
técnica interpretativa necessária para assegurar coerência, igualdade e imparcialidade no
desenvolvimento jurisdicional do direito.

Essa nova concepção da ordem normativa redimensiona a relação entre o Poder


Judiciário e o Poder Legislativo, de modo a alocá-los como instituições concorrentes no
processo de reconstrução e desenvolvimento do direito, compartilhando autoridade, por
meio da criação de normas jurídicas contidas nos precedentes.

Nesse ponto, importa observar que a atividade do Poder Judiciário, por funcionar como
autêntico moderador de conflitos intersubjetivos e desacordos morais e jurídicos
razoáveis acerca da resolução das disputas judicias e dos problemas de interpretação do
direito, requer grau de aceitabilidade de suas decisões por parte da sociedade. Essa
aceitabilidade decorre mais de uma reputação externa da própria instituição e do
patrimônio imaterial construído pela Corte ao longo do tempo, que do conteúdo material
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de suas resoluções jurisdicionais.

A reputação externa instrumentaliza a legitimidade institucional e decisória do Tribunal,


em decorrência da sua atividade de intepretação e aplicação do direito de forma
imparcial, fora de interferências externas e deliberativas. Ou seja, a sociedade
recepciona e aceita a autoridade das decisões, independente do resultado de mérito, por
acreditar que a decisão decorre de um procedimento justo, daí a responsabilidade dos
órgãos jurisdicionais, em especial, as Cortes Supremas, em garantir a tutela dos seus
procedimentos e decisões como instrumento de proteção da liberdade, igualdade e
segurança jurídica de todos os cidadãos.
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Em resumo: os precedentes judiciais reforçam a força institucional do Poder Judiciário.
O significado da legitimidade institucional e decisória seguem duas características bem
conhecidas do Poder Judiciário. Em primeiro lugar, ao contrário dos oficiais eleitos ou dos
burocratas, espera-se que os juízes forneçam uma justificação jurídica neutra para suas
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decisões. Um elemento importante dessa expectativa é o respeito pelas decisões
anteriores do tribunal, ou seja, pelos seus próprios precedentes, elemento que afasta as
interferências externas nos julgamentos.

2.Precedentes judiciais: conceito, aplicação e limites

Muito da necessidade de se conferir eficácia obrigatória aos precedentes em nosso


sistema ocorreu em razão do reconhecimento, por parte da doutrina e a prática
jurisdicional brasileira, de que a jurisdição não mais se basta na concepção declaratória
de aplicação do direito ao caso concreto, indo além desse espaço para uma função
proeminente de interpretação e atribuição de sentido ao texto legal.

À vista dessa nova abordagem da função jurisdicional, o Código de Processo Civil de


2015 estabeleceu disciplina jurídica específica sobre o dever de os tribunais observarem
a coerência e a integridade na formação dos seus precedentes. Isso vem expresso no
art. 926 (Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra
e coerente), bem como na disciplina prevista para a aplicação e consideração dos
precedentes (art. 489, §1º, incisos V e VI, art. 927, §§3º e 4º).

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Da interpretação desses dispositivos legais é possível conferir leitura e desenho


institucional para um sistema adequado de precedentes judiciais. Nada obstante, é
preciso assinalar que a adoção e a justificativa dos precedentes prescindiriam de
qualquer fonte positivada no plano legislativo, na medida em que sua legitimidade
decorre da compreensão do papel das decisões judiciais, sua fundamentação e função
das Cortes Supremas, como defendido no tópico anterior.

Para a adequada configuração do desenho institucional e normativo dos precedentes


judiciais, a partir dos arts. 926 e 489, §1º, incisos V e VI, do CPC (LGL\2015\1656),
faz-se necessária a conceituação do que seja o precedente.

De acordo com a literatura jurídica dedicada ao estudo do tema, notadamente aquela


originária dos países de tradição do common law, mais ambientados com a prática de
seguir precedentes judiciais, o principal problema que circunscreve essa matéria está
justamente na identificação desse elemento na decisão judicial. Ou seja, embora, para
fins gerais, seja possível dizer que precedente é qualquer decisão que “precede” ou que
antecede outra, para os fins aqui examinados é fundamental questionar qual parte da
decisão vincula os demais juízes. Qual elemento da decisão possui autoridade e
prescrição normativa suficiente para impor sua observância para os demais órgãos
jurisdicionais na organização do Poder Judiciário?

A despeito das divergências teóricas sobre o alcance e conceito do precedente judicial,


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por não ser objeto desse texto discutir a validade dos argumentos que as justificam, é
lugar comum na doutrina contemporânea que o precedente identifica-se com a razão
que justifica, de forma racional, determinada resposta jurisdicional. Quer isso dizer que o
precedente não se equivale ao conceito de decisão judicial nem ao de fundamentação,
que é um dos elementos decisórios. Na sua essência, o precedente, na abordagem da
sua vinculatividade, corresponde à razão necessária e suficiente pela qual um resultado
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jurídico é adotado na solução do problema.

Razão necessária e suficiente que deve ter o potencial de generalidade ou


“replicabilidade” para os casos semelhantes, ainda que a potencialidade da ocorrência de
outros casos seja pequena ou nula. Registre-se: a importância do critério da
universalização da razão de decidir é definida por ser ele elemento de garantia de sua
correção formal da decisão e de sua racionalidade, estando atrelado ao dever de
justificação das decisões judiciais. Desse modo, pouco importa a “replicabilidade” dos
casos para a configuração do precedente judicial.

Bem vistas as coisas, e como já desenvolvido no texto, o precedente é critério de


justificação da decisão necessário para a tutela dos valores da coerência normativa, da
imparcialidade e da racionalidade da jurisdição, que tem um alto grau de valoração na
atividade de interpretação e aplicação do direito. Não está o precedente preocupado com
questões de repetitividade dos casos ou números de litigiosidade, ainda que a sua
adoção possa, indiretamente, implicar consequências em uma administração mais
racional e eficiente da atividade jurisdicional.

Noutros termos, o precedente judicial, identificado com o elemento da ratio decidendi,


procura reduzir o campo de equivocidade e indeterminação dos textos legais, quando da
sua incidência em casos concretos, a partir das circunstâncias de fato e de direito que o
circunscrevem. Essa redução da complexidade dos problemas jurídicos, no entanto, não
implica a sua eliminação, por conta das operações que envolvem a aplicação e
identificação daquela ratio.

O problema da identificação do precedente na prática jurisdicional exige do juiz ônus de


grande importância, que é o de formular uma justificação específica e expressamente
afirmada. A necessidade de objetividade e clareza na construção da proposição
normativa universalizável, ou seja, da ratio decidendi, faz-se imprescindível para uma
coerência e real previsibilidade do que seja o direito definido pelos tribunais.

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Eis por que os tribunais não devem promover formulação de razões


justificadoras contraditórias ou confusas: a tutela da previsibilidade, da igualdade e da
imparcialidade não passará de uma categoria de referência ilusória,52 porquanto a regra
judicial incorrerá no mesmo caráter indeterminado das normas formuladas pelo sistema
legislado. Assim, compete aos juízes e tribunais superiores transformar o julgamento em
uma razão acessível ao público, aos potenciais litigantes que têm o dever de saber como
se orientar em seus atos na sociedade.

O julgamento, nesse contexto institucional, deve expor suas razões, de modo a deixar
suficientemente explícitos e claros os fatos abordados, as questões jurídicas debatidas, a
forma e a razão pela qual foram resolvidas de determinado modo. Sem isso, a missão
institucional de definição jurisdicional dos direitos restará frustrada.

O argumento por precedente, por outro lado, não implica a adoção de um regime
judiciário autoritário e engessado. O juiz sucessivo pode afastar o precedente
identificado como adequado para o caso. Todavia, para tanto, deve oferecer boas razões,
as quais devem demonstrar que o caso atual não trata do mesmo problema ou que
possui fatos relevantes que o distinguem ou exigem um tratamento jurídico diverso, ou,
ainda, que a decisão precedente está equivocada. Trata-se, aqui, da aplicação das
técnicas do distinguishing (distinção) e do overruling (revogação), previstas no inciso VI
do §1º do art. 489 do CPC (LGL\2015\1656), que tem como principal função permitir a
oxigenação do sistema e desenvolvimento do direito judicial.

Interessante perceber que, nos casos em que o precedente não “serve”, seja por haver
circunstâncias ou fatos particulares que os distinguem, seja por qualquer outro motivo
de argumento jurídico, a decisão precedente atua como um argumento por analogia.
Isso porque o juiz vai demonstrar que, embora o caso seja distinto, aquela razão de
decidir pode ser adotada com alguns ajustes, operação que favorece a expansão e
contração dos precedentes. Esse fato reforça o argumento anteriormente explicitado no
sentido de que a ratio decidendi deve ser formulada em atenção e respeito aos limites
variantes dos fatos e argumentos jurídicos discutidos, de modo que qualquer outra
variante na premissa fática ou normativa debatida implica uma reanálise do caso. E aqui
reside um dos pontos de abertura e maleabilidade no uso dos precedentes.

Ou seja, conquanto o precedente seja uma regra de limitação do raciocínio jurídico, em


razão do seu caráter normativo e da autoridade das decisões anteriores (em regra,
oriundas de Cortes Superiores), isso não implica afirmar que o juiz de hierarquia inferior
esteja sempre sem oportunidade de desenvolver o direito. Esse desenvolvimento deve
ser feito por meio de argumentos persuasivos, a partir da identificação do precedente,
de modo a possibilitar ao juiz afirmar que o caso em análise possui características fáticas
e jurídicas distintas relevantes a justificar que o contexto argumentativo não está
abarcado pelo precedente.

E aqui reside a operação interpretativa exigida pelos incisos V e VI do § 1º do art. 489


do CPC (LGL\2015\1656), os quais prescrevem que a decisão será nula, por falta de
fundamentação, quando se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem
identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento
se ajusta àqueles fundamentos; quando deixar de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte sem demonstrar a distinção no caso
em julgamento ou a superação do entendimento.

O objetivo da regra do inciso V, que estabelece a necessidade de identificação do


precedente, dos seus fundamentos determinantes, quer impor ao juiz o ônus
argumentativo de verificação dos casos concretos colocados em comparação. Isto
é, a correlação entre os casos semelhantes pelo juiz deve ser feita não por uma
automática indicação de entendimento de súmula ou precedente acerca do caso, mas
sim a partir da real verificação de compatibilidade entre as circunstâncias fáticas
envolvidas entre ambos os casos, a fim de que a consequência jurídica firmada no
precedente seja aplicada.
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Nessa linha de pensar, dois raciocínios devem ser feitos no argumento por precedente. O
primeiro se refere à explicitação do caso concreto atual, com a demonstração do
problema fático posto e os argumentos jurídicos postos para debate pelas partes e juiz.
O segundo raciocínio refere-se à identificação de precedente no sistema que já tenha
resolvido o problema posto no caso atual e a sua incidência para a resolução, a partir da
explicitação dos fundamentos determinantes que resolveram o precedente.

Registre-se que essas duas etapas de raciocínio no argumento por precedente não
implicam grande esforço argumentativo, de modo a comprometer um dos efeitos
desejáveis dos precedentes que é a eficiência no processo decisório. Isso porque essas
duas etapas apenas se comprometem com a explicação das circunstâncias fáticas e
jurídicas dos casos a fim de que possa haver a identificação entre ambos, por meio de
suas semelhanças. Todavia, a terceira etapa do raciocínio decisório concernente ao juízo
de ponderação entre os argumentos, às escolhas valorativas e a toda a justificação da
razão pela qual o caso deve ser resolvido, é retirada e, portanto, economizada no
esforço argumentativo, uma vez que esses aspectos já foram resolvidos
pelo precedente.

O problema, bem vistas as coisas, apresenta-se nas hipóteses de correlação do caso


atual com enunciado de súmula ou jurisprudência (daí a dificuldade de se perceber e
categorizar a súmula e a jurisprudência como autênticas técnicas de precedentes).
Nesses casos, não se trata de um precedente, mas sim de um conjunto de decisões, fato
que impõe um grande ônus argumentativo à parte que alega e ao juiz que tem o dever
de obedecer. Isso porque no enunciado de súmula caberá ao juiz fazer o reporte
histórico das decisões subjacentes ao entendimento expressado na súmula, a fim de
identificar as circunstâncias fáticas que serão objeto de cotejo entre os casos, no intuito
de localizar a ratio decidendi dessas decisões e, assim, de verificar a semelhança
necessária entre elas que justifique a imposição da resolução proposta no enunciado da
súmula. A súmula, que não é precedente, constitui mero enunciado geral sobre
proposições jurídicas não relacionadas às hipóteses fáticas específicas, que muito mais
se assemelha à lei e, por isso, não conta com circunstâncias fáticas que autorizem
examinar o raciocínio que foi empregado para determinada conclusão.

Normalmente, espera-se que os órgãos jurisdicionais de hierarquia inferior obedeçam às


decisões passadas dos tribunais superiores, com fundamento na relação de hierarquia
vertical, sem maiores dificuldades para a compreensão desse desenho institucional. A
questão, todavia, ganha complexidade no âmbito da sua relação horizontal,
considerando que os tribunais, em um Estado de Direito, estão igualmente obrigados a
seguirem seu próprio passado. A prática de seguir precedentes para a resolução dos
casos jurídicos semelhantes se impõe não apenas para os órgãos jurisdicionais que estão
subordinados na estrutura hierárquica do Poder Judiciário, mas também ao próprio
tribunal. Todavia, essa direção horizontal do precedente acarreta, ainda na teoria e na
prática jurisdicional, dificuldades e reservas por parte dos tribunais em sua aceitação
como dever. Essas dificuldades, porém, não afastam a necessária vinculação do tribunal
ao seu próprio passado por razões de respeito ao direito judicial e dever de tutela da
continuidade e estabilidade dos precedentes enquanto elementos de prescrição
normativa no sistema jurídico. Assim se impõe que fundamentos determinantes de
decisões pretéritas sejam observados, ainda que essas decisões precedentes não mais
correspondam ao entendimento jurídico dos integrantes do tribunal no momento
presente.

E aqui uma observação é importante quanto à abordagem do que seja seguir


precedentes na justificação judicial. O raciocínio jurídico por meio do precedente judicial
se perfectibiliza nas situações em que o juiz segue o precedente ainda que não concorde
com a solução jurídica que ele expressa. O argumento por precedente na atividade
decisória não significa persuasão de que se trata da melhor resposta (ou mais
adequada), mas sim vinculação por motivos de autoridade e normatividade daquelas
decisões. A força do precedente não está na crença do tribunal sobre o acerto ou erro da
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decisão anterior proferida, mas sim na sua observância em decorrência dos valores
subjacentes que são tutelados, como o do tratamento igualitário perante o direito, da
imparcialidade e impessoalidade da atividade jurisdicional, da segurança jurídica e da
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coerência no desenvolvimento judicial do direito.

Como afirma Frederick Schauer, o dever jurídico dos juízes de seguirem os precedentes
horizontais (a ideia do stare decisis) decorre de uma obrigação moral de seguir o próprio
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direito. Com mais razão esse argumento é válido quando se reconhece que a função
jurisdicional exercida pelos tribunais compartilha autoridade com o legislativo no
processo de reconstrução e desenvolvimento do direito, com os limites pertinentes ao
campo de atuação do Poder Judiciário.

A experiência comparada oferece diversos casos nos quais esse respeito ao precedente
horizontal foi observado, ainda que tenha havido mudança na composição de dado
tribunal, a qual implicava probabilidade de alteração de interpretações jurídicas outrora
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definidas e estabilizadas.

Para melhor ilustrar o alcance e a importância da prática do stare decisis, pense-se na


decisão tomada pela Suprema Corte Norte-Americana no caso Planned Parenthood v.
Casey em 1992 (505 U.S. 833), que versou sobre a questão da validade constitucional
de legislação do Estado da Pensilvânia a respeito da prática do aborto.

Nesse caso específico, a Suprema Corte, por decisão majoritária, reafirmou a decisão
proferida no caso Roe v. Wade em 1973, empregando, como fundamento principal, a
garantia da estabilidade do precedente. Argumentou a Corte com a relação necessária e
direta entre o precedente e a funcionalidade do Estado de Direito, de modo que a
superação constante de decisões passadas da Suprema Corte é fator de instabilidade
jurídica e institucional do próprio Estado. O Estado de Direito, de acordo com o voto
majoritário, é o princípio subjacente à Constituição, motivo pelo qual devem as
instituições trabalhar para garantir a continuidade, longevidade e estabilidade das
normas jurídicas, em especial, a Suprema Corte por meio dos seus precedentes judiciais.

Fica claro das discussões havidas nesse julgado, evidenciadas nos votos apresentados
(opinião majoritária e dissidências), que a exigência do Estado de Direito consiste no
respeito às decisões passadas, como instrumento de garantia da previsibilidade,
continuidade e conhecimento do direito pelos cidadãos.

Essa aplicação do Estado de Direito e o respeito às decisões passadas da Corte, contudo,


não importam no engessamento do direito judicial, ou seja, não impedem a alteração do
entendimento judicial pela própria Suprema Corte. Essas garantias apenas exigem, para
a “revogação” de precedente sedimentado, o ônus argumentativo e justificações mais
fortes e coerentes, sob pena de fragilização do Estado de Direito e da normativa
constitucional, cuja tutela está sob a guarda da Suprema Corte.

Nesse sentido, o seguinte argumento do voto majoritário:

“Há [...] um ponto além do qual a revogação frequente sobrecarregaria a crença do país
na boa-fé da Suprema Corte [...] Se esse limite deve ser excedido, a perturbação de
decisões passada seria tomada como prova de que reexame justificável de princípio deu
lugar a impulsos para resultados particulares a curto prazo. A legitimidade do Tribunal
desvanecer-se-ia com a frequência de sua vacilação [...] Como o caráter de um
indivíduo, a legitimidade do Tribunal deve ser conquistada ao longo do tempo. Então, de
fato, o caráter de uma nação deve ser conforme o desejo das pessoas de viverem de
acordo com o estado de direito. Sua crença em si mesmo como um povo não é
facilmente separável de sua compreensão do Tribunal investido com a autoridade para
decidir seus casos constitucionais e falar diante de todos os outros por seus ideais
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constitucionais.”

A preocupação central e, por conseguinte, a razão de decidir da opinião majoritária,


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fundamentou-se na confiança justificada que o precedente tinha angariado na sociedade,


na necessidade de se conferir consistência e previsibilidade no processo de tomada de
decisão de uma Corte Suprema e na análise das dificuldades e consequências operadas
com a possível revogação do entendimento, ante as situações de desigualdade que a
nova decisão poderia implicar.

Assim, ainda que a reafirmação do precedente anterior custasse impopularidade do


Tribunal, haja vista a questão de mérito em debate, essa posição deveria ser mantida se
não fosse encontrada uma alteração significativa no raciocínio jurídico subjacente à
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decisão passada.

Tomando em consideração as razões jurídicas definidas no caso anterior, consistentes no


debate sobre o papel dos precedentes na configuração do Estado de Direito e da
realização da Constituição pelo Tribunal responsável por sua tutela, Jeremy Waldron,
ampliando as discussões e os argumentos, defende a ideia de que o Estado de Direito
impacta diretamente a teoria e prática do stare decisis.

Para Waldron, essa relação exige dos juízes e tribunais que: a) suas decisões respeitem
o caráter da generalidade do direito, de modo a tratar os casos semelhantes de forma
igual, com a mesma resposta jurisdicional; b) o dever de fidelidade ao direito requer que
o juiz observe a voz do tribunal em detrimento de sua decisão individual; c) o princípio
da responsabilidade institucional pede o afastamento de distinções inconsistentes no
processo de aplicação do precedente judicial; d) a consistência e a previsibilidade do
direito inviabilizam mudanças frequentes e voluntárias do entendimento sobre o que seja
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o direito, tal como afirmado pelos tribunais.

Tudo isso sopesado demonstra a preocupação subjacente à teoria dos precedentes


judiciais, tal como exercida e pensada nos países que a desenvolveram. As
considerações feitas, ademais, demonstram o esforço hoje exigido por meio dos arts.
926 e 489, § 1º, incisos V e VI, do CPC (LGL\2015\1656), quando abordam o precedente
como elemento de racionalidade e condição de fundamentação da decisão.

Ao que parece, porém, a descrição antes realizada sobre a teoria dos precedentes, seus
fundamentos e objetivos, também demonstra o salto lógico realizado pelo Código de
Processo Civil ao enumerar – quase como se isso pudesse ser incorporado ao conceito de
“precedente” – um rol de decisões que são de observância compulsória (art. 927).

Como se verá a seguir, esse salto lógico – e, mais grave, o imenso risco que está por
detrás dessa opção – aparece na preocupação do legislador na disciplina dos
mencionados “precedentes do art. 927”, está na resolução do problema da litigiosidade
repetitiva no sistema judiciário, em como diminuir as demandas repetitivas, com o fim
de garantir maior celeridade no trâmite das ações. Esse tipo de preocupação, como
demonstrado, não é apto a justificar o precedente tampouco fornece material suficiente
para o desenho institucional adequado da prática de seguir precedentes, podendo, ao
contrário, deturpar totalmente a mecânica de aplicação daquele instituto. Daí a
necessidade de se distinguir a técnica do precedente, e suas operações metodológicas,
das técnicas de solução de casos repetitivos.

3.As técnicas de solução de casos repetitivos do Código

Como facilmente se vê, os instrumentos descritos no CPC (LGL\2015\1656) não têm


nenhuma relação com o sistema de precedentes. Particularmente, as figuras descritas no
art. 927 do código estão claramente orientadas para outra finalidade. Não objetivam dar
unidade ao desenvolvimento judicial do Direito, oferecendo coerência, imparcialidade e
igualdade na aplicação das normas jurídicas. Têm, sim, por finalidade, gerir a massa de
demandas judiciais, evitando a disparidade de decisões em relação a casos idênticos.

As técnicas ali descritas – especialmente as súmulas (vinculantes ou não), as técnicas de


solução de casos repetitivos (art. 928) e as decisões proferidas em incidentes de
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solução da litigância de massa?

assunção de competência – almejam, sobretudo, lidar com a litigância de massa,


conferindo tratamento uniforme a situações repetitivas. Por outras palavras, pode-se
dizer que a intenção desses instrumentos está orientada para dois escopos específicos:
a) reduzir a carga exagerada de demandas perante o Poder Judiciário, impondo a
solução idêntica de casos repetitivos; e b) oferecer, com isso, maior segurança jurídica.
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Bem vistos esses instrumentos, nota-se que a verdadeira intenção do legislador foi cindir
a competência para o julgamento dos casos repetitivos. Atribui-se a um determinado
órgão – tribunal de revisão ou tribunal superior – a competência para examinar a
questão de direito recorrente e ao juízo original a análise do restante da controvérsia.
Porque a questão de direito já estará resolvida, supõe-se que o tratamento dos casos
será idêntico, já que não haverá variação na interpretação do direito aplicável ao caso.
Supõe-se também que a previsibilidade gerada, em razão da decisão (com estabilidade
de coisa julgada) a respeito da questão de direito, possa frear a litigância de massa, já
que não haverá mais dúvida a respeito da orientação a ser tomada pelo Judiciário diante
daquela matéria.

Sem ainda ingressar na utilidade dessas técnicas, é importante frisar o quão distante
essa lógica está da teoria dos precedentes genuína. Todas essas técnicas, desenhadas
pelo código, trabalham com a premissa de que o Direito tem sentido unívoco, que
precisa apenas ser “revelado” pelos Tribunais. O Tribunal não contribui para a
construção do Direito; sua finalidade é apenas declarar ou desvelar o sentido já presente
na regra a ser interpretada. Por isso, dispensa-se a análise dos fatos, já que o Direito
pode ser encontrado apenas examinando “em abstrato” a(s) regra(s) e o(s) princípio(s)
a ser(em) aplicado(s). Diante disso, essas técnicas preocupam-se exatamente em
abstrair (e tornar irrelevantes) os fatos de cada caso, permitindo, de antemão, a criação
24
de uma tese, a ser obrigatoriamente aplicada por todos os outros órgãos jurisdicionais.
Não é necessário muito esforço para notar a distância disso com a lógica que preside o
25
sistema de precedentes anglo-americano.

Tome-se o exemplo do incidente de resolução de demandas repetitivas. Diante da


existência de repetição de processos que contenham a mesma controvérsia sobre
questão unicamente de direito, que possa importar risco à isonomia e à segurança
jurídica (art. 976), autoriza-se a provocação desse incidente, que deslocará ao tribunal
de revisão a decisão a respeito da questão repetitiva. Decidida a questão por esse
tribunal, a solução ali dada torna-se vinculante para todos os juízes subordinados à
competência do tribunal; e, diante de um recurso para tribunal superior, a decisão então
tomada sobre o mérito da questão se estende, com o mesmo grau de vinculatividade,
26
para todo o território nacional (arts. 985 e 987, CPC (LGL\2015\1656)).

Não parece haver dúvida de que a sistemática adotada aqui trabalha com a lógica da
coisa julgada sobre a solução da questão de direito e não com a racionalidade dos
27
precedentes. Retira-se do magistrado original a atribuição para examinar a questão de
direito, oferecendo a sua solução ao tribunal. Decidida a questão, a vinculatividade de
que trata a lei não decorre, propriamente, de algum efeito próprio aos precedentes;
advém, claramente, do efeito positivo da coisa julgada, atrelado à falta de competência
do juízo original para decidir (ou “redecidir”) a matéria. Essa incompetência, aliás, é
expressamente consignada no art. 986, do código, que diz que a revisão da tese só pode
ser feita “pelo mesmo tribunal”, o que demonstra que os outros órgãos mantêm sua
competência para o exame de outras questões, porém não para a reapreciação da
questão de direito decidida.

Alguém dirá que a permissão, contida no art. 986, no sentido de que a decisão sobre a
tese jurídica possa ser revista é sinal de que não há coisa julgada aqui. Ao prever algo
semelhante à lógica da “superação” (overrulling), própria do regime dos precedentes,
alguém poderia imaginar que o tema tratado efetivamente se afasta da lógica da coisa
julgada. A objeção, porém, não procede e sua análise reafirma que a técnica em questão
nada tem a ver com a teoria dos precedentes judiciais.
Página 9
Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

Na verdade, ao contrário do que supõe uma leitura açodada daquele preceito, a revisão
da decisão tomada no incidente discutido não pode ocorrer apenas porque o tribunal
mudou de opinião a respeito da questão. Como adverte explicitamente o art. 927, § 4º,
do CPC (LGL\2015\1656), essa revisão necessariamente deve estar alinhada à
necessidade de preservação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da
confiança e da isonomia. Se for assim, cabe a pergunta: pode o tribunal revisar a tese
firmada apenas com base de outra reflexão sobre o tema? Pode haver revisão da tese
sem que tenha ocorrido a modificação das circunstâncias – jurídicas – existentes ao
tempo da decisão? Pode subsidiar outra decisão (diferente) sobre o tema a apresentação
28
de argumento diverso, não oferecido anteriormente?

Parece evidente que não. Haveria aí nítida violação ao princípio da isonomia! O


instrumento incorreria em clara contradição, na medida em que uma ferramenta criada
para oferecer isonomia admitiria, sem maiores cautelas, exatamente a violação desse
princípio, ao impor decisões diferentes a situações idênticas, apenas porque proferidas
em momentos diversos. É indubitável que o tribunal não tem autorização para alterar a
conclusão oferecida no incidente de julgamento de casos repetitivos, a menos que tenha
29
ocorrido substancial modificação do estado de direito da questão. Sem essa
modificação, o tribunal estaria impondo a outros magistrados a decisão de forma diversa
da mesma questão jurídica, em flagrante violação à isonomia, à proteção da confiança
30
justificada e à segurança jurídica. Mais do que isso, estaria estimulando a litigância de
massa, já que, em tese, sempre pode haver a mudança na opinião dos magistrados do
tribunal a respeito da correta interpretação da questão. Por tudo isso, evidencia-se que o
compromisso desse instituto não é com o sistema de precedentes, mas com a
estabilidade própria da coisa julgada. O instituto não está preocupado – nem pode estar
– com a evolução do Direito; precisa, sim, gerar previsibilidade, isonomia e, com isso,
31
reduzir a quantidade de demandas perante o Judiciário , seu principal propósito. E, com
esses objetivos, distancia-se da racionalidade própria da teoria dos precedentes.

Como afirmado no tópico 1 deste artigo, a técnica do precedente não tem como objeto
de preocupação a redução de processos idênticos na estrutura da administração da
justiça civil, de modo a emprestar eficiência no gerenciamento dos litígios repetitivos.
Claro que esse efeito pode e deve ser alcançado com o uso da técnica do precedente,
mas como consequência desse sistema e não como causa que o fundamenta. A
justificação do precedente, como tantas vezes já dito, está em oferecer racionalidade à
atividade decisória e, por conseguinte, legitimidade ao Poder Judiciário no desempenho
da jurisdição, que, nesse cenário, assume natureza criativa e responsiva. Ou seja, não é
importante o caráter repetitivo da demanda; basta um único caso para o uso do
precedente, ainda que sua chance de universalização seja mínima. Isso porque o que se
espera dessa técnica é a garantia de correção formal por meio da justificação racional da
32
decisão, que possibilita um desenvolvimento coerente e igualitário do Direito.

Também quando se examina esse instrumento em discussão sob o ângulo da distinção (


distinguishing), é fácil notar que não há aqui nenhuma relação com a lógica dos
precedentes. Como se viu, a força dos precedentes está atrelada à existência de
33
elementos que revelem que duas situações são semelhantes o suficiente, a ponto de
importar o mesmo raciocínio na interpretação e na aplicação do Direito para ambas.

Ou seja, porque os fatos relevantes de cada uma das causas a ser comparada são
fundamentalmente os mesmos, as razões de decidir também devem ser idênticas, o que
levará à mesma conclusão na aplicação do Direito. Se, porém, houver fatos relevantes
que sejam substancialmente diferentes, então as razões da decisão anterior tornam-se
inaplicáveis, autorizando o magistrado do novo caso a decidir de outra maneira. Será
que essa mesma lógica se aplica no caso do incidente de resolução de demandas
repetitivas? Pode um magistrado de 1º grau, alegando a diferença das circunstâncias
fáticas entre o caso julgado pelo tribunal e aquele sujeito à sua apreciação, recusar
aplicação à tese firmada no incidente de resolução de demandas repetitivas?

Novamente, parece evidente que a resposta suposta pelo sistema é negativa.


Página 10
Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

O incidente de resolução de demandas repetitivas opera – como já visto, e como, de


resto, é típico de todos os instrumentos semelhantes previstos no código – verdadeira
34
abstração dos fatos da causa. A responsabilidade do tribunal não é a de examinar a
correta interpretação do Direito para o caso concreto; é, sim, a de estabelecer em
abstrato a exata interpretação de certa questão de direito. A corroborar essa conclusão,
tem-se o contido no art. 984, § 2º, do CPC (LGL\2015\1656), que afirma que “o
conteúdo do acórdão abrangerá a análise de todos os fundamentos suscitados
concernentes à tese jurídica discutida, sejam favoráveis ou contrários”.

Ou seja, há, no comando, a pretensão de que o judiciário se pronuncie em abstrato


sobre a questão de direito, independentemente de eventuais variações nos fatos das
controvérsias presentes e futuras. A viabilidade dos recursos extraordinários a respeito
da decisão do incidente, de modo autônomo em relação à futura aplicação da tese ao
caso concreto, contemplada no art. 987 do CPC (LGL\2015\1656), também aponta para
a mesma conclusão. Se, independentemente dos fatos da causa, é cabível a interposição
de recurso especial ou de recurso extraordinário diretamente da decisão do incidente, é
35
porque os fatos devem ser irrelevantes para a aplicação da técnica em questão.

Ora, se o incidente de resolução de demandas repetitivas abstrai os fatos para a


formação da decisão, então não pode haver dúvida de que eventuais variações dos fatos
36
são irrelevantes para a aplicação da tese firmada. Em outras palavras, se a decisão do
incidente não levará em consideração os fatos concretos, fica evidente que os
magistrados não podem deixar de aplicá-la invocando a existência de fato relevante
distinto daquele “apreciado” no julgamento anterior. Caso pudessem fazê-lo, o instituto
teria seu grau de vinculatividade reduzido a zero, na medida em que sempre haverá
fatos peculiares a cada caso, que poderiam, em tese, justificar a não observância da tese
firmada em abstrato anteriormente.

Considerando que a tese foi estabelecida sem consideração de qualquer tipo de fato, é
claro que esses fatos acabaram sendo desconsiderados para a formação da decisão, de
sorte que a invocação de fatos particulares se torna inútil para a mecânica criada pelo
código, ao menos segundo a lógica ali empregada.

Há quem afirme que a técnica trabalha com a lógica de fatos-tipo, ou seja, com uma
moldura fática previamente determinada e que apresente grau de abstração suficiente a
ponto de atingir todas as situações repetitivas. Por isso, segundo essa linha de
37
interpretação, desde que satisfeita a subsunção das circunstâncias concretas a esse
fato-tipo, seria obrigatória a incidência da tese firmada no incidente ou em outras
técnicas de solução de casos repetitivos semelhantes.

Ao que parece, porém, a abstração dos fatos concretos, para a concepção de um


“fato-tipo” acaba por cair na mesma indeterminação que é própria de qualquer texto
(inclusive do texto legal). Isto é, porque a aferição da “identidade” entre os fatos
concretos e o fato-tipo exige interpretação e ponderação do caso concreto, pode muito
bem o magistrado afastar-se ou se aproximar do “fato-tipo”, sem maiores critérios, e
38
consequentemente fazer incidir ou não a tese firmada quase que de modo aleatório.
Logo, descabe a aplicação da técnica da distinção, o que novamente depõe contra a
imaginada identidade entre aquilo que aqui se examina e o regime de precedentes.

As peculiaridades anteriormente indicadas, por outro lado, não se resumem à situação


do incidente de resolução de demandas repetitivas. Na realidade, todas as técnicas de
solução de casos repetitivos, concebidas pelo código, atuam segundo a mesma lógica.

Tome-se, por exemplo, a situação dos recursos especial e extraordinário repetitivos.


Também aqui, o que se opera é uma cisão na competência para julgamento das causas:
o tribunal superior assumirá a competência para apreciar a questão de direito repetitiva,
ficando com os outros órgãos judiciais a atribuição para a análise dos demais aspectos
da controvérsia. É nesse sentido a expressa previsão dos arts. 1.040, III e 1.041, §§ 1º
e 2º do CPC (LGL\2015\1656), que nitidamente estabelecem a imposição da decisão
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

fixada pelo tribunal superior nos processos em trâmite, prosseguindo, no entanto, o feito
para a aferição das demais questões postas em cada uma das causas.

Mais uma vez, o que se vê aí é essa repartição de competência funcional, a ensejar


momentos diversos para a solução de questões distintas. A questão de direito repetitiva
será analisada pelo tribunal superior – eventualmente, enquanto a demanda ainda se
encontra em 1º grau de jurisdição – e, quando solvida e restar não recorrida ou
irrecorrível, transitará em julgado. A partir desse momento, é a eficácia positiva da coisa
julgada que imporá sua observância em todos os casos pendentes e futuros, não
guardando a situação nenhuma semelhança com a ideia dos precedentes.

Haverá aqui espaço para a aplicação das técnicas de superação ou de distinção? A


resposta é igualmente negativa. Tratando-se de coisa julgada, sobre questão de direito
que incida em múltiplos conflitos, como já dito, seria até mesmo contraditório supor a
possibilidade de superação da tese já firmada, salvo diante da superveniência de
modificação do estado de direito em que se insere a controvérsia. Sem que sobrevenha
nova legislação ou nova circunstância que dite a necessidade de novo regime jurídico
para certo instituto, a modificação da interpretação definida nesses julgamentos importa
patente ofensa à isonomia, à segurança jurídica e à proteção da confiança, não sendo
tolerada.

Alguém dirá que, embora não admitida a superação, a técnica da distinção é


expressamente admitida pelo art. 1.037, §§ 9º a 13, do CPC (LGL\2015\1656). A
objeção, todavia, é claramente equivocada. É que a “distinção” prevista nesses
dispositivos não tem nada a ver com a técnica do distinguishing da teoria dos
precedentes. Enquanto o distinguishing se refere à mudança substancial dos fatos e dos
argumentos jurídicos que cercam certa interpretação do Direito, a distinção do preceito
indicado está ligada à equivocada ordem de sobrestamento de processo, que na
realidade trata de questão de direito diversa. É o que se lê do art. 1.037, § 9º, do
código, quando afirma que o pressuposto para essa distinção é a diversidade “entre a
questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou
extraordinário afetado”. Aqui se trata de corrigir erro na suspensão do processo singular,
enquanto lá se discute sobre as circunstâncias fáticas e argumentos jurídicos que
determinaram certa aplicação do Direito e a ausência de similitude em outro caso futuro.

Seria possível prosseguir na análise das técnicas criadas pelo código para a solução de
demandas repetitivas, demonstrando como elas se afastam da lógica e da finalidade da
teoria dos precedentes. Parece, porém, desnecessário seguir nesse caminho, pois está
suficientemente demonstrado que aquilo que a lei processual concebeu não está
alinhada com o que o regime anglo-americano concebeu sob o nome de “precedentes”, e
que foi reafirmado com as teorias da interpretação e da argumentação jurídica
39
desenvolvidas a partir de meados do século XX.

4.Um balanço final

Em conclusão a estas breves palavras, impõe-se notar o risco presente em supor que os
institutos concebidos pelo Código de Processo Civil estão relacionados ao modelo de
precedentes, tal como tradicionalmente conhecido pelos sistemas que os empregam,
notadamente os países anglo-americanos. Essa assimilação pode levar alguém a
acreditar que os instrumentos previstos pelo código dispensam maiores cautelas,
recebendo legitimidade da longa tradição existente em outros países.

Nada pode ser mais equivocado.

Haverá quem suponha que a falta de identidade é irrelevante, já que seria totalmente
possível criar um sistema de precedentes “à moda brasileira”. Sem dúvida, não se nega
essa possibilidade. Porém, deve ficar claro que esse sistema criado não tem nada a ver
com a clássica finalidade da teoria dos precedentes, concebida há muito tempo em
países como a Inglaterra e os Estados Unidos. O sistema de precedentes
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

anglo-americano se preocupa em manter coerência na aplicação do Direito aos casos


concretos, preocupando-se em valer-se de raciocínios idênticos na interpretação e na
aplicação do Direito diante de fatos de casos distintos que podem ser substancialmente
assemelhados. Já os instrumentos criados no Brasil estão mais para ferramentas de
criação de teses jurídicas que se tornarão obrigatórias para parte ou para todos os juízes
brasileiros.

Aquilo que o Brasil criou é uma técnica processual de gestão de casos repetitivos,
permitindo que seu julgamento (ou melhor, parte dele) ocorra de uma só vez para todos
os processos (presentes e futuros). Se o sistema de precedentes genuíno está mais
ligado à teoria geral do Direito, porque envolve técnica que oferece coerência decisória e
segurança jurídica na interpretação do Direito, as ferramentas desenhadas no sistema
nacional são típicas questões processuais, porque estão preocupadas com a otimização
40
do serviço judiciário na solução de demandas de massa.

Supondo essa premissa, é fundamental notar que as técnicas empregadas no direito


brasileiro não podem receber sua legitimidade de uma imaginada ligação com o modelo
anglo-americano de precedentes. Tampouco podem ser vistas como inofensivos
instrumentos de interpretação do Direito, hábeis a fornecer-lhe coerência e unidade. Se
as ferramentas desenhadas no ordenamento nacional não comungam daquela
racionalidade explorada há anos nos países anglo-americanos (e, mais recente, nos
41
países de civil law preocupados com a racionalidade da atividade decisória), então
precisam demonstrar sua viabilidade e sua legitimidade, particularmente quando
examinadas à luz das garantias próprias do devido processo legal.

E, nessa trilha, parece fácil enxergar que esses instrumentos, de um lado, dificilmente
cumprem com os objetivos a eles atribuídos e expressados na Exposição de Motivos do
Código de Processo Civil.

Sem dúvida, têm potencial para gerar uniformização no trato das questões de direito,
até mesmo pela vinculatividade decorrente da coisa julgada que ostentam. Porém, essa
uniformização raramente levará à redução da carga de demandas repetitivas presente
no cenário judiciário brasileiro. Isso porque todas as técnicas criadas pelo código –
súmulas (vinculantes ou não), recursos repetitivos, incidente de resolução de demandas
42
repetitivas e incidente de assunção de competência – são incapazes de gerar efeitos
externos ao processo. Por outras palavras, os efeitos da decisão tomada só ocorrem
dentro de um processo já ajuizado. Assim, resolvida a questão (em favor ou contra o
litigante habitual), somente diante de outros processos, já ajuizados ou a serem
ajuizados, é que o “efeito vinculante” será sentido, o que implicará a necessidade de
ajuizamento de incontáveis outras demandas, para que as consequências do julgamento
“de massa” efetivamente repercutam para todos os envolvidos.

Alguém dirá que há um efeito dissuasório na decisão da questão de direito repetitiva,


que inibirá a multiplicação da litigância. Obviamente, essa crença parte da ingênua
ilusão de que as condutas dos litigantes (sobretudo os habituais) só são orientadas pela
previsibilidade da solução da controvérsia. Como se sabe, muitos outros fatores entram
em consideração quando litigantes habituais decidem enfrentar ou não uma controvérsia
de massa. Desde questões como eventuais ganhos decorrentes da protelação no
adimplemento de uma obrigação, passando por elementos como o baixo índice de
vítimas da violação de massa que acabam se socorrendo do Judiciário, e indo até
debates como elementos psicológicos que interferem na escolha de litigar ou não, muitos
são os elementos que entram nesse cálculo. Por isso, sem dúvida, não se pode imaginar
que, apenas em razão da previsibilidade quanto ao resultado, a litigância de massa será
freada.

Os exemplos cotidianos, aliás, são eloquentes. O julgamento de recursos extraordinários


e especiais repetitivos – com força vinculante – foi introduzido no Brasil,
respectivamente, em 2006 e 2008, por força das Leis 11.418 e 11.672. Não obstante
isso, tais ferramentas foram incapazes de frear o volume de casos julgados por aqueles
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

tribunais. No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, em 2008, foram distribuídos


271.521 novos casos, e julgados 354.042 processos. Já em 2009, com um ano de
implementação da sistemática nova de julgamento de recursos repetitivos, foram
distribuídos 292.103 casos, tendo sido julgados 328.718 processos. É verdade que, em
2010, foram distribuídos menos processos (228.981), mas a quantidade de julgamentos
não sofreu importante incremento, tendo sido de 330.283 feitos. Embora com pequenas
alterações, esse quadro se manteve ao longo do tempo, culminando com um total de
470.722 e 490.473, respectivamente em 2016 e 2017.

Frise-se que, segundo as estatísticas do Superior Tribunal de Justiça disponíveis, de


2012 a 2017, aquele tribunal teve como maiores demandantes o Instituto Nacional do
Seguro Social, a Fazenda Nacional, a União e o Banco do Brasil, todos,
reconhecidamente, litigantes habituais. Não por outra razão, os principais temas
43
examinados foram contratos bancários e a dívida ativa do Poder Público.

Curiosamente, os dados do Superior Tribunal de Justiça revelam que o número de


processos afetados para julgamento sob a técnica de recurso repetitivo vem decrescendo
ao longo do tempo. Em 2017, por exemplo, foram afetados para julgamento sob a
técnica dos recursos repetitivos apenas 27 questões (tendo sido julgados 22 casos).
Considerando o universo total de temas examinados sob esse regime (750 questões, até
44
o final de 2017), nota-se que o quantitativo é bem menor do que a média anual.
Embora seja difícil determinar a razão dessa redução, parece que o dado é sinal do
insucesso da técnica, ao menos como instrumento gerador de redução do volume de
demandas, seja perante o Poder Judiciário como um todo, seja perante o Superior
Tribunal de Justiça.

Embora não haja dados suficientes para fundamentar essa conclusão, ao que parece, os
instrumentos de solução de casos repetitivos contemplados pelo código só mostram
certa dose de eficiência em favor do litigante habitual. Quando a tese firmada – em
qualquer desses instrumentos – favorece o litigante habitual, há efetiva tendência de
redução da quantidade de litígios. É o que ocorreu, por exemplo, diante do julgamento
do tema 350, de repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal, que concluiu que,
como regra geral, “a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento
do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação
e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise”. Parece não
haver dúvida de que essa solução foi e vem sendo reiteradamente aplicada pelos
tribunais brasileiros, sem maiores questionamentos. Advogados e beneficiários
previdenciários, por outro lado, vêm seguindo essa orientação e raramente se vê hoje
demandas previdenciárias que não venham instruídas com a prova do prévio
requerimento administrativo.

No entanto, embora também não haja dados suficientes para essa conclusão, a
impressão que se tem é de que a situação é diferente quando a tese é firmada contra o
litigante habitual. Ao que parece, essas decisões não têm o impacto de inibir a
continuidade da litigância de massa, nem de obter do litigante habitual a resignação
quanto ao resultado da solução judicial. Talvez o caso mais paradigmático dessa situação
seja a solução dada ao caso dos expurgos inflacionários das décadas de 1980 e 1990,
45
pelo Supremo Tribunal Federal.

Como se sabe, embora os tribunais estaduais e o Superior Tribunal de Justiça tenham


46
entendido, pacificamente, que os consumidores foram lesados com a exclusão de
valores a que tinham direito, os bancos afirmavam que o cumprimento dessas
condenações causar-lhes-ia grave prejuízo, podendo até mesmo (segundo essas
mesmas instituições financeiras) inviabilizar o funcionamento do sistema financeiro
brasileiro. Diante disso, o que já revela a falta de disposição das instituições em –
mesmo depois de tantos anos de litigância, quase trinta – dar cumprimento à solução
judicial, a Advocacia-Geral da União mediou acordo, firmado especialmente entre o
Banco Central do Brasil, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a Frente
Brasileira pelos Poupadores e a Federação Brasileira de Bancos, por meio do qual os
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

47
consumidores sofrerão descontos nos valores a que teriam direito, recebendo o
montante remanescente de forma parcelada, semestralmente. Além de excluir todos os
poupadores que não ajuizaram ações dentro do prazo prescricional, ou aqueles que
deixaram transitar em julgado eventuais decisões de improcedência, o acordo parece
claramente impor a força econômica dos bancos aos consumidores, já que, sem esses
acordos, provavelmente, os valores que lhes são devidos jamais seriam (ou serão)
recebidos.

Noutros termos, embora claramente perdedores na solução judicial da controvérsia, e


conquanto a jurisprudência fosse francamente favorável aos poupadores há, pelo menos,
cinco anos, os bancos acabaram sendo beneficiados, obtendo redução no valor que
devem e obtendo – a par de todo o tempo da demora da solução final da causa – prazo
razoavelmente largo para a satisfação da decisão. Por outro lado, em razão da
manutenção dessa controvérsia por longos anos, os litígios sobre o tema só deixaram de
chegar ao Judiciário em razão da prescrição das respectivas pretensões, sem que a
orientação da jurisprudência tivesse qualquer efeito inibitório em relação ao
48
comportamento das instituições financeiras.

Provavelmente, situações como essa ocorrem – como já dito – porque o litigante


habitual calcula, previamente, os riscos e as vantagens do litígio de massa. Por isso, se a
violação ocorre, é porque já foram ponderados os fatores envolvidos – como a
quantidade de litígios, o risco de insucesso, os custos e as vantagens da demanda etc. –
49
e mesmo assim a opção pela infração se mostrou lucrativa.

Mais do que isso, a par da decisão de concretizar violação que repercuta de forma serial,
o litigante habitual também está mais habilitado a realizar estratégias – inclusive
processuais – para maximizar seus ganhos no universo de demandas eventualmente
instauradas. Assim, por exemplo, tem ele melhores condições de determinar quando e
em face de quem suscitar eventuais instrumentos de solução de questões repetitivas, de
avaliar as vantagens e as desvantagens de sugerir soluções autocompositivas para
certos litigantes ou de pensar em que caso deverá ser aplicada maior quantidade de
50
recursos, pela sua repercussão frente aos demais litígios.

Por outro lado, não se pode esquecer que, para o litigante eventual – ou seja, para o
indivíduo titular de uma das demandas de massa – é absolutamente irrelevante a
consequência geral eventualmente decorrente do litígio serial. Por outras palavras: para
o indivíduo, litigante eventual, a formação ou não da decisão vinculante (para outros
casos) é indiferente, já que lhe interessa apenas a solução do seu específico caso. Já
para o litigante habitual, a existência de eventual decisão, com força vinculante, que
possa prejudicar seus interesses é algo certamente considerável, de sorte a influenciar
sua decisão de investir pesadamente nesse caso, assegurando-lhe, na melhor maneira
possível, a vitória nesse debate, até pelas consequências positivas que isso lhe gerará
51
futuramente.

Todo esse panorama torna razoável concluir que os instrumentos concebidos pelo código
de processo civil para a solução de casos repetitivos – tais como as súmulas, os recursos
repetitivos ou o incidente de resolução de demandas repetitivas – não apenas se
afastam da lógica dos precedentes, mas ainda são instrumentos com clara vocação de
atender aos interesses precipuamente do litigante habitual, por mais contraditória que
52
essa afirmação possa parecer.

De fato, como já visto, embora esses instrumentos tenham sido positivados com o
intuito de reduzir a carga de trabalho do Poder Judiciário nacional, diminuindo a
quantidade de casos repetitivos, a própria sistemática de atuação dessas ferramentas
acaba por exigir que se ingresse em juízo para que alguém possa beneficiar-se de
eventual solução favorável.

A par disso, a persistência de constantes mudanças em entendimentos já consolidados


faz com que todos os litigantes – repetitivos ou não – mantenham esperança em outra
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

solução para o caso, muitas vezes insistindo em demandas eventualmente já resolvidas.


Há ainda a dúvida – emergente da complexa estruturação dessas ferramentas no código
– sobre a efetiva identidade entre casos particulares e a situação julgada, ou até mesmo
sobre a possibilidade de superação da tese firmada ou de distinção entre algum caso
específico e a situação examinada. Todos esses fatores, a par de tantos outros, fazem
com que seja improvável que esses instrumentos de fato colaborem para reduzir
significativamente o volume de casos repetitivos existentes perante o Judiciário.

Também para a parte contrária (o litigante “não habitual”) esses instrumentos


mostram-se inúteis. Como já dito, esses litigantes não têm interesse em “gerar” tese
consolidada, na medida em que não terão nenhum ganho com isso. Eventual excesso de
recursos a serem gastos nesses incidentes não lhes gerará nenhum retorno, de sorte
que essas ferramentas só lhes representarão ônus. Por isso também, como dito, a
chance de aceitarem solução consensual – ainda que não atenda integralmente seus
interesses – é alta e se eleva na proporção do incremento dos custos e da demora da
solução definitiva de sua controvérsia.

Sob outra perspectiva, a previsibilidade gerada, para estes litigantes, com tese já
firmada em outro caso, também implica vantagens questionáveis. Inicialmente, como
dito, não gera nenhuma vantagem para o(s) caso(s) em que suscitada a técnica de
solução de caso repetitivo que, ao contrário, acabará suportando custos extraordinários
com a condução desse incidente. Em segundo lugar, para os demais litigantes (não
habituais), haverá sempre os custos próprios de qualquer demanda judicial,
eventualmente somados à demora inerente ao tempo necessário para a solução do “caso
53
paradigma”. Além disso, e não obstante algumas vantagens processuais dadas diante
54
da presença de tese já firmada, a simples necessidade de ajuizar demanda judicial já
pode implicar significativos obstáculos para as vítimas da lesão serial. Com efeito, a
pequena expressão econômica da demanda individual, a dificuldade de acesso a provas e
até mesmo a variabilidade das circunstâncias de fato, podem simplesmente inutilizar
eventual vantagem decorrente da fixação da tese repetitiva.

Diante disso, parece que, realmente, o maior favorecido com as técnicas do código para
a solução de casos de massa seja o litigante habitual. Ele é o destinatário das vantagens
anteriormente já indicadas, sendo o único a quem sempre interessará a solução
destacada da questão de direito de massa.

Por todas essas razões, são discutíveis e criticáveis as técnicas concebidas pelo código a
título de precedentes.

Outros instrumentos teriam muito maior habilidade para trabalhar com a litigância de
massa, bastando pensar na ação civil pública ou na técnica de aglutinação, que pode ser
desenvolvida a partir do art. 69, § 2º, do CPC (LGL\2015\1656). Essas técnicas, sem
dúvida, têm maior potencial para operar legitimamente com demandas de massa,
sobretudo quando bem aplicadas e adequadamente acolhidas pela prática judiciária. É
verdade que a jurisprudência brasileira é muitas vezes refratária à tutela coletiva de
casos repetitivos. A solução para esse equívoco, porém, não pode ser o simples
abandono de instrumento que foi especificamente concebido para essa finalidade. Há de
ser, sim, a readequação da jurisprudência, dando a essa forma de processo, de status
55
constitucional, lastro para que possa desenvolver sua vocação específica.

Em conclusão, parece ter ficado claro que os instrumentos do código não têm nenhuma
relação com a verdadeira teoria dos precedentes judiciais. São coisas distintas, cuja
operatividade exige avaliação detalhada de seus limites e possibilidades constitucionais,
já que implicam patente restrição a garantias como o contraditório, o acesso à Justiça e
o devido processo legal.

Isso tudo, porém, não exclui a possibilidade de que o Brasil adote – e com muito ganho
– a teoria desenvolvida nos sistemas anglo-americanos de precedentes. A unidade, a
coerência e a previsibilidade do Direito são valores relevantes para qualquer país, sendo
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

também desejáveis no modelo nacional. Sua implementação, porém, demandará muitos


outros ajustes no sistema decisório brasileiro, sendo certo que as regras do código foram
e são insuficientes para tanto. Daí a importância da jurisdição para o adequado
redimensionamento do sistema de precedentes na ordem institucional brasileira.

1 Caso contrário, a resposta jurisdicional dada aos litigantes, ali situados em sua frente,
será a de um governo de homens, e não efetivamente a de um governo de direito, que
tem por objetivo realizar a justiça formal, ao menos na dimensão procedimental do
Estado. Como argumenta MacCormick “as razões que divulgam ao público para suas
decisões devem ser razões que (desde que sejam levadas a sério) [...] demonstrem que
suas decisões garantem a ‘justiça de acordo com a lei’, e que sejam pelo menos nesse
sentido razões justificatórias” (MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do
direito. Trad. Waldéia Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 21).

2 De acordo com a visão cooperativa do processo civil desenhada a partir dos direitos
fundamentais processuais, ver, por todos, MITIDIERO, Daniel. A colaboração no processo
civil. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2015. passim.

3 Sobre o argumento consequencialista na acepção jurídica na argumentação jurídica,


ver MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito: uma teoria da argumentação
jurídica. Trad. Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2008. p. 149-159.

4 Sobre a questão da indeterminação do direito e sua interpretação na jurisdição como


um dos problemas essenciais para a filosofia do direito contemporânea, reanimada a
partir da teoria constitucional e sua centralidade no funcionamento do Estado e da
ordem jurídica como fundamento de validade, ver trabalho anterior PEREIRA, Paula
Pessoa. Legitimidade dos precedentes: universabilidade das decisões do STJ. São Paulo:
Ed. RT, 2014. p. 21-79. Ainda, ver SCHAUER, Frederick. Las reglas en juego: un examen
filosófico de la toma de decisiones basada en reglas en el derecho y en la vida cotidiana.
Madrid: Marcial Pons, 2004; SCHAUER, Frederick. Opinions as rules. The University of
Chicago Law Review, Chicago, v. 62, n. 4, p. 1455-1475, 1995.

5 Sobre o conceito do critério da universabilidade na filosofia do direito, ver, por todos,


MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito, ob. cit., passim;
MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito, ob. cit., p. 103-133; GASCON,
Marina. Rationality and (self) precedent: brief considerations concerning the grounding
and implications of the rule of self-precedent. Archiv für rechts-und sozialphilosophie,
ARSP, Beiheft, n. 133, p. 35-50, 2012. Em especial sobre a sua aplicação no contexto da
justificação das decisões judiciais e no controle da atividade de interpretação e
reconstrução do direito pelas Supremas Cortes, enquanto cortes de vértice da
organização hierárquica do Poder Judiciário, literatura brasileira, ver PEREIRA, Paula
Pessoa. Legitimidade dos precedentes..., ob. cit., passim; MITIDIERO, Daniel. Cortes
superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao
precedente. 2. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Ed. RT, 2014; MARINONI, Luiz
Guilherme. O STJ enquanto corte de precedentes: recompreensão do sistema processual
da Corte Suprema. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014; ZANETTI, Hermes. O valor
vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente
vinculantes. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

6 A expressão replicabilidade é usada por Melvin Einseberg para denotar um dos


princípios fundamentais que deve governar a forma como a lei é estabelecida e
modificada pelos tribunais. Nesse sentido, o jurista norte-americano argumenta que o
princípio da replicabilidade tem como principal aspecto fornecer aos tribunais o emprego
de uma metodologia consistente de resolução dos casos particulares, que afaste a
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

arbitrariedade do direito. Em suas palavras: “Since the courts remain the final arbiters of
law, if courts did not use a replicable process of reasoning the profession could not give
reliable legal advice in planning and dispute-settlement, and planning and
dispute-settlement on the basis of law would be frustrated. [...]. If the courts employed
one set of criteria for selecting relevant social propositions in some cases and a wholly
different set of criteria in others, judicial reasoning would become non replicable unless
there were clear principles that controlled which criteria were used in which cases”
(EINSEBERG, Melvin. The Nature of the Common Law. Cambridge: Harvard University
Press, 1998. p. 11-12).

7 Cf., WALDRON, Jeremy. Stare decisis and the Rule of Law: a layered approach. NYU
School of Law, Public Law Research Paper, n. 11-75. Disponível em:
[http://ssrn.com/abstract=1942557]; FEREJOHN, John. Judicializing politics, politicizing
law. Law and Contemporary Problems, [S.l.], v. 65, p. 41-68, 2002; PASQUINO,
Pasquale. Le autorità non elletive nelle democrazie. Il Mulino- Rivisteweb, [S.l.], n. 4,
luglio-agosto, p. 596-604, 2001; PASQUINO, Pasquale. Votare e deliberare. Filosofia
Politica, [S.l.], n.1, p. 103-114, 2006; PASQUINO, Pasquale. Il giudice e il voto. Il
Mulino, fascicolo 5, [S.l.], settembre-ottobre, p. 803-812, 2003; ISSACHAROFF, Samuel.
The majoritarian threat to democracy: Constitutional courts and the democratic pact. In:
ELSTER, Jon; NOVAK, Stephanie (Ed.). Majority decisions: principles and practice. New
York: Cambridge University Press, 2014. p. 236-256; GRIMM, Dieter. Constitutional
adjudication and democracy. Israel Law Review, Cambridge, v. 33, p. 193-215, 1999.

8 Melvin Eisenberg, ao tratar da função social dos tribunais, afirma que aos tribunais
compete o exercício de duas funções, a de resolver disputas jurídicas e a de enriquecer o
estoque das regras jurídicas (enriching the supply of legal rules), sendo que essa
segunda função deve ser desenvolvida pelos tribunais como uma obrigação a ser
observada, embora essa função ocorra mesmo nos contextos em que os tribunais
assumem a única função de resolver disputas privadas. De acordo com o Professor
norte-americano: “it is socially desirable that the courts should act to enrich the supply
of legal rules that govern social conduct - not by taking on lawmaking as a free-standing
function but by attaching much greater emphasis to the establishment of legal rules than
would be necessary if the courts sole function was the resolution of disputes […]. Under
the enrichment model, in contrast, the establishment of legal rules to govern social
conduct is treated as desirable in itself – although subordinated in a variety of important
ways of dispute-resolution – so that the courts consciously take on the function of
developing certain bodies of law, albeit on a case-by-case basis” (EINSEBERG, Melvin.
The nature of common law, ob. cit., p. 05-07). Esse modelo de função requer que as
regras jurídicas definidas sejam tratadas como vinculantes para os futuros casos
semelhantes. Nesse sentido, a proposta normativa defendida por Daniel Mitidiero, com o
argumento do duplo discurso a partir da decisão judicial, no contexto normativo das
Cortes Supremas, ver, MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e cortes supremas..., ob.
cit., passim.

9 Nomenclatura atribuída, a partir da ressignificação do papel das cortes de vértice como


órgãos jurisdicionais vocacionados à tutela do precedente judicial, na doutrina brasileira
por MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e cortes supremas..., ob. cit., passim. No
mesmo sentido, MARINONI, Luiz Guilherme. STJ enquanto corte de precedente..., ob.
cit., passim. Ver também TARUFFO, Michele. Le funzioni delle Corti supreme: cenni
generali. In: Annuario di Diritto Comparato e di Studi Legislativi. Nápoles: Edizione
Scientifiche Italiane, 2011. p. 11-36; STÜRNER, Rolf. The New Role of Supreme Courts
in a Political and Institutional Context from the German Point of View. In: Annuario di
Diritto Comparato e di Studi Legislativi. Nápoles: Edizione Scientifiche Italiane, 2011. p.
335-358; SILVESTRI, Elisabetta. Corti supreme europee: acceso, filtri e selezione. In:Le
Corti Supreme: atti del convegno svoltosi a Perugia il 5-6 maggio 2000. Centro Studi
Giuridici e Politici della Regione Umbria. Centro Internazionale Magistrati “Luigi Severini”.
Milão: Giuffrè, 2001. p. 105-116; SILVESTRI, Gaetano. Le Corti Supremi negli
ordinamenti costituzionali contemporanei. In: Le Corti Supreme: atti del convegno
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

svoltosi a Perugia il 5-6 maggio 2000. Centro Studi Giuridici e Politici della Regione
Umbria. Centro Internaionale Magistrati “Luigi Severini”. Milão: Giuffrè Editore, 2001. p.
35-50; KERAMEUS, Konstantinos. Corti supreme a confronto: stato delle cose e linee
evolutive. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedure Civile, Milano, anno LIII, p. 143-148,
1999.

10 Desse modo, pode-se afirmar que “a dinâmica do ordenamento jurídico é produzida,


em última instância pelos juristas práticos. Deste ponto de vista, o criador, mais
importante do sistema – mais do que o legislador – é o juiz, especialmente os juízes da
Corte Suprema”. Esse fato revela a cumplicidade e responsabilidade que deve haver
entre os poderes legislativo e judiciário na atividade de produção das normas jurídicas.
(AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable: Un tratado sobre la justificación jurídica.
Tradução de Ernesto Garzón Valdéz. Madrid: Centro de estudios constitucionales, p. 183,
1991).

11 Melvin Eisenberg ao tratar da função que os tribunais desempenham na nossa


sociedade contemporânea (em especial, na figura do raciocínio jurídico do common law),
marcada pela complexidade, impessoalidade e pluralidade, afirma que um dos princípios
estruturantes que governam a forma em que o direito é definido e modificado, bem
como que imprime legitimidade à atuação dos tribunais, é o da objetividade. Isso porque
esse princípio impõe ao julgador o dever de resolver a disputa jurídica com fundamento
em normas jurídicas que possam ser aplicadas em casos similares, e não apenas no
interesse das partes imediatas. Segundo o autor: “The principle of objectivity entails
several relates ideas. One is the concept of impartiality, which requires the courts to be
free of ties to the parties. Another is the concept of universality, which requires the
courts to resolve disputes by establishing and applying rules that are applicable not
merely to the parties to the immediate dispute but to all those who are similarly
situated.” (EINSEBERG, Melvin. The Nature of the Common Law..., ob. cit., p. 08-09).

12 PASQUINO, Pasquale; RANDAZZO, Barbara. Come decidono le Corti Costituzionale (e


altri Corti). How Constitutional Courts make decisions. Atti del Convegno Internazionale
svoltosi a Milano, il 25-26 maggio 2007. Milano: Giuffrè, 2009.

13 A prática jurisdicional de observância dos precedentes judiciais na atividade de


desenvolvimento judicial do direito, em razão dos argumentos a seu favor, os quais
justificam e legitimam sua adoção fonte normativa do Estado de Direito, é uma realidade
nos sistemas normativos contemporâneos, independente da origem de civil law ou
common law. Se o respeito aos precedentes judiciais outrora implicou grandes
discussões teóricas, doutrinárias e mesmo embates legislativos, é certo que na ordem
normativa contemporânea se trata de realidade, tanto no plano constitucional quanto no
legislativo ordinário, ainda que controversa quanto ao seu alcance e limites. Quanto ao
ponto, ver, MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Introduction. In: MACCORMICK,
Neil; SUMMERS, Robert. Interpreting precedents: a comparative study. Dartmouth:
Ashgate, 1997; MACCORMICK, Neil. The significance of precedent. Acta Juridica,
University of Edinburgh, n. 187, p. 174-187, 1998; EVANS, Jim. “Change in the Doctrine
of Precedent during the Nineteenth Century”. In: GOLDESTEIN, Laurence (Coord.).
Precedente in Law. Oxford: Oxford University Press, 1987; MITIDIERO, Daniel.
Precedentes: da persuasão à vinculação. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2017. p. 21-69.

14 Cf. PASQUINO, Pasquale. Le autorità non elletive nelle democrazie, ob. cit., passim;
PASQUINO, Pasquale. Votare e deliberare, ob. cit., passim; PASQUINO, Pasquale. Il
giudice e il voto, ob. cit., p. 803-812.

15 Para o estudo específico das teorias anglo-americanas que debatem sobre o conceito
de precedente judicial e seus elementos, como ratio decidendi e obter dictum, v.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2017.
passim.

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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

16 MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito, ob. cit., p. 202-203.

17 Sobre a questão da vinculatividade do precedente e o caráter da sua autoridade na


ordem normativa ver, por todos, SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer.
Cambridge: Harvard University Press, 2012. passim.

18 SCHAUER, Frederick. Ibidem, p. 41-43.

19 Cumpre assinalar, por questões de lealdade científica, que a prática de observância


dos precedentes horizontais, o chamado stare decisis, é extremamente controversa nos
países de tradição do common law, de modo que é incorreto afirmar tal ideia como
aceita de forma uniforme nesses sistemas. Na verdade, de acordo com pesquisas
empíricas feitas por cientistas políticos, a taxa de seguimento desses precedentes pela
própria Suprema Corte é baixa. A aceitação da figura do precedente horizontal é mais
aceita na teoria que na atividade jurisdicional. Para melhor exposição desse argumento,
ver, SCHAUER, Frederick. Stare decisis and the selection effect. In: Precedent in the
United States Supreme Court. Heidelberg: Springer, 2013. p. 121-133.

20 Tradução livre de: “There is [...] a point beyond which frequent overruling would
overtax the country's belief in the Court's good faith [...] If that limit should be
exceeded, disturbance of prior rulings would be taken as evidence that justifiable
reexamination of principle had given way to drives for particular results in the short
term. The legitimacy of the Court would fade with the frequency of its vacillation [...]
Like the character of an individual, the legitimacy of the Court must be earned over time.
So, indeed, must be the character of a Nation of people who aspire to live according to
the rule of law. Their belief in themselves as such a people is not readily separable from
their understanding of the Court invested with the authority to decide their constitutional
cases and speak before all others for their constitutional ideals.” (Planned Parenthood v.
Casey, 505 U.S. 833 (1992), p. 866, 868).

21 Nessa situação, para a legítima revogação do precedente, devem-se colocar em


deliberação razões importantes de justiça, segurança, igualdade, concepção geral do
direito, para um juízo mais pragmático sobre o contexto, como ocorrido no caso Brow v.
Board Education (347 U.S, 1954), em que o conceito de separate but equal (separados,
mas iguais), rejeitado pela sociedade, implicou razões fortes para a mudança da
concepção desse conceito e, por conseguinte, a superação do caso Plessy v. Ferguson
(163 U.S, 1896).

22 WALDRON, Jeremy. Stare Decisis and the Rule of Law, ob. cit., passim.

23 Nesse sentido, a Exposição de Motivos do Código de Processo Civil não deixa dúvidas.
Afirma ela: “Criou-se o incidente de julgamento conjunto de demandas repetitivas, a que
adiante se fará referência. Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo
mais célere as medidas cujo objetivo seja o julgamento conjunto de demandas que
gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o relativo àqueles
processos, em si mesmos considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que
concerne à atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o
tempo usado para decidir aqueles processos poderá ser mais eficazmente aproveitado
em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos “tempos
mortos” (= períodos em que nada acontece no processo). Por outro lado, haver,
indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito
da mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações
idênticas, tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões
judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera
intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade. Prestigiou-se,
seguindo-se direção já abertamente seguida pelo ordenamento jurídico brasileiro,
expressado na criação da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
regime de julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários repetitivos (que
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

foi mantido e aperfeiçoado) tendência a criar estímulos para que a jurisprudência se


uniformize, à luz do que venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e
se estabilize. Essa é a função e a razão de ser dos tribunais superiores: proferir decisões
que moldem o ordenamento jurídico, objetivamente considerado. A função
paradigmática que devem desempenhar é inerente ao sistema. Por isso é que esses
princípios foram expressamente formulados. Veja-se, por exemplo, o que diz o novo
Código, no Livro IV: “A jurisprudência do STF e dos Tribunais Superiores deve nortear as
decisões de todos os Tribunais e Juízos singulares do país, de modo a concretizar
plenamente os princípios da legalidade e da isonomia”. Evidentemente, porém, para que
tenha eficácia a recomendação no sentido de que seja a jurisprudência do STF e dos
Tribunais superiores, efetivamente, norte para os demais órgãos integrantes do Poder
Judiciário, é necessário que aqueles Tribunais mantenham jurisprudência razoavelmente
estável. A segurança jurídica fica comprometida com a brusca e integral alteração do
entendimento dos tribunais sobre questões de direito”. Ver, corroborando a conclusão
exposta no texto, a respeito da finalidade especificamente do incidente de resolução de
demandas repetitivas, SILVA, Ricardo Menezes da. Breves considerações sobre os
requisitos de admissibilidade do incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista
de processo comparado, São Paulo, v. 6, p. 137-141, jul. - dez. 2017. Também na
mesma linha, v., BENETI, Sidnei. O NURER – Núcleo de Recursos Repetitivos do STJ e o
novo recurso especial. In: GALLOTTI, Isabel; DANTAS, Bruno; FREIRE, Alexandre;
GAJARDONI, Fernando da Fonseca; MEDINA, José Miguel Garcia (Coord.). O papel da
jurisprudência no STJ. São Paulo: Ed. RT, 2014. passim.

24 É curioso notar como essas técnicas aproximam-se de uma ótica que vê nos tribunais
aquilo que Daniel Mitidiero denomina de “Cortes Superiores”. Segundo o autor, o papel
tradicionalmente desempenhado por esses tribunais caracteriza-se por “do ponto de
vista de seus pressupostos teóricos, a Corte Superior apenas declarar uma norma
pré-existente ao decidir e, a duas, do ponto de vista de sua função, encontrar-se
pré-ordenada tão somente para o controle da legalidade das decisões judiciais mediante
recurso da parte interessada” (MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas
..., ob. cit., p. 58). Prossegue o autor, dizendo que “a teoria cognitivista da interpretação
pressupõe a existência de um significado normativo unívoco incorporado ao texto
legislativo, sendo função da jurisdição apenas declará-lo visando à disciplina do caso
concreto” (ob. loc. cit.). E, enfim, sobre a irrelevância dos fatos para essa atividade,
conclui o autor que “a limitação da cognição da Corte Superior às questões de direito
conjugada com a circunscrição da verdadeira decisão judicial à parte dispositiva acarreta
a neutralização da importância das questões de fato na composição do caso concreto e,
portanto, no quadro geral da atividade forense, e a neutralização da importância da
fundamentação das decisões judiciais como verdadeiro juízo sobre questões
fático-jurídicas. Essa dupla neutralização revela-se tanto na tendência à compreensão da
jurisprudência à luz tão somente do resultado do julgamento da causa como na sua
condensação em enunciados abstratos redigidos sem qualquer alusão ao contexto fático
que deu lugar à solução da causa – de que exemplos notórios as máximas italianas, os
assentos portugueses e as súmulas brasileiras” (MITIDIERO, Daniel. ob. cit., p. 59).

25 Nessa linha, sobre a formação e relação dos precedentes judiciais com questões de
fato e de direito no sistema jurídico anglo-americano, v. MACCORMICK, Neil. Retórica e o
Estado de Direito, ob. cit., p. 191-212; MACCORMICK, Neil. The significance of
precedent, ob. cit., p. 174-187; SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer, ob. cit., p.
35-61 e 85-103; SCHAUER, Frederick. Precedent, op. cit., p. 571-604; WALDRON,
Jeremy. Stare decisis and the Rule of Law, ob. cit., passim.

26 A técnica da suspensão nacional em IRDR foi acolhida, pela primeira vez, pelo
Superior Tribunal de Justiça, em face de pedido protocolado contra decisão tomada no
bojo do IRDR admitido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, nos termos da
decisão monocrática proferida pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da
Comissão Gestora de Precedentes do Superior Tribunal de Justiça, em 21.06.2017. No
mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal, na petição 7.001, ajuizada pela União
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

requerendo a suspensão nacional em incidente de resolução de demandas repetitivas


resolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, deferiu a suspensão nacional,
conforme decisão publicada em 01.02.2018: “[...] defiro o requerimento de suspensão
dos atos decisórios de mérito de controvérsia constante de todos os processos,
individuais ou coletivos, em curso no território nacional, que versem sobre a questão
objeto do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 5008835-
44.2017.4.04.0000, admitido no Tribunal Regional Federal da Quarta Região (§ 4º do
art. 1.029 do Código de Processo Civil), mantendo-se a possibilidade jurídica de adoção
dos atos e das providências necessárias à instrução das causas instauradas ou que
vierem a ser ajuizadas e do julgamento dos eventuais pedidos distintos e cumulativos
deduzidos”.

27 Nesse sentido, v., MARINONI, Luiz Guilherme. Incidente de resolução de demandas


repetitivas. São Paulo: Ed. RT, 2017. passim; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro.
Ações coletivas. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 286.

28 Sabe-se que o instituto da eficácia preclusiva da coisa julgada foi imaginado


exatamente para impedir que esses argumentos novos possam subsidiar outras
discussões sobre temas já decididos. Não é escopo deste artigo discutir essa eficácia
preclusiva (atualmente regulada pelo art. 508 do CPC), mas parece evidente a sua
relação com a provocação posta no texto.

29 Em regra, costuma-se afirmar que a coisa julgada está sujeita a limites temporais,
cingindo-se a determinado momento histórico, de modo que a modificação do estado de
fato ou de direito presente no julgamento afasta a coisa julgada, autorizando novo
enfrentamento da controvérsia. Embora controversa a ligação dessa temática com os
ditos limites temporais da coisa julgada (v., sobre isso, MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu.
Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 198-200), é fato que as
circunstâncias de fato e de direito, porque determinantes para a configuração da causa
de pedir, são essenciais para determinar o alcance dos limites objetivos da coisa julgada.
Aqui no texto, porém, toma-se como premissa que a modificação do estado de fato da
controvérsia é irrelevante – ao menos para a lógica criada pelas técnicas estudadas. Isso
porque, se esses instrumentos de solução de casos repetitivos abstraem os fatos,
submetendo ao tribunal apenas a análise da questão de direito (como se isso fosse
possível), resta como conclusão inafastável a ideia de que a modificação dos fatos, seja
ela presente ou futura, é absolutamente irrelevante para a aplicação “vinculante” da tese
firmada. É fato que essa modificação fática pode ser tão radical a ponto de excluir
qualquer possibilidade de aplicação da tese firmada. Pense-se, por exemplo, em uma
tese firmada no âmbito do Direito do Consumidor, sendo que o caso a ser julgado
apresenta fatos que excluem a possibilidade de caracterizar aquela relação jurídica
específica como de consumo. Porém, nesse caso, o que se terá, na verdade, é a
incidência de outro regime jurídico para a causa, diante do enquadramento da situação
(mesmo tomada em tese) em outro campo de normatividade. A técnica, aqui, está mais
para a “escolha” da legislação aplicável do que para a imposição de unidade na
interpretação e aplicação do Direito. A distinção empregada no Brasil, portanto, não
considera especificamente a identidade de fatos de cada caso concreto; considera a tese
firmada como “regra em tese”, permitindo o seu afastamento simplesmente quando a
tese não se referir ao modelo fático (também considerado em tese) abstrato
apresentado no caso concreto.

30 A preservação da isonomia, como é evidente, não é exclusividade da teoria dos


precedentes. Trata-se de garantia mais ampla, a aplicar-se em diversos campos do
Direito e, em particular, do Direito Processual. De toda sorte, não há dúvida de que,
modificada a orientação jurisprudencial sobre algum tema, há evidente lesão à isonomia,
a par de prejuízos aos princípios da confiabilidade e da calculabilidade. Nesse sentido,
pondera Humberto Ávila que “como a orientação jurisprudencial anteriormente existente,
e na qual o indivíduo confiou, foi abandonada, este tenderá a deixar de orientar-se
novamente com base em outra orientação jurisprudencial, com receio de que esta
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Precedentes e casos repetitivos: por que não se pode
confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

também possa vir a ser futuramente abandonada. Em outras palavras, a mudança


jurisprudencial provoca um déficit de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento
jurídico: se a orientação jurisprudencial anterior não for mantida, haverá surpresa e
frustração, abaladoras dos ideais de estabilidade e de credibilidade do ordenamento
jurídico; se a orientação jurisprudencial anterior for abandonada, a orientação
jurisprudencial futura, pela desconfiança na sua conformação, não será mais calculável”
(ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 471). De
modo semelhante, v. CABRAL, Antonio do Passo. Estabilidade e alteração de
jurisprudência consolidada: proteção da confiança e a técnica do julgamento-alerta. In:
GALLOTTI, Isabel; DANTAS, Bruno; FREIRE, Alexandre; GAJARDONI, Fernando da
Fonseca; MEDINA, José Miguel Garcia (Coord.). O papel da jurisprudência no STJ. São
Paulo: Ed. RT, 2014. p. 31-35. Ainda, sobre o tema, ver PEIXOTO, Ravi. Superação do
precedente e segurança jurídica. 2. ed. rev. amp. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016. p.
169-187. Como exemplo prático do raciocínio jurídico que envolve a operação de
mudança de orientação jurisprudencial, ver a opinião majoritária da decisão tomada no
caso Planned Parenthood v. Casey, em 1992, pela Suprema Corte americana (505, U.S,
833), que, como já visto no texto, versou a hipótese de superação do caso Roe v. Wade
(410 U.S, 113, 1973), especificamente, as páginas 854-869. Nessa justificação, fica
clara a exigência de ponderação na decisão que escolhe a resposta jurisdicional no
sentido da alteração de entendimento anterior, haja vista as razões de igualdade,
segurança jurídica e coerência da atividade decisória judicial, que edificam e realizam o
princípio do Estado de Direito.

31 A meta de reduzir as demandas perante o Judiciário com instrumentos como o


incidente de resolução de demandas repetitivas, aliás, é, para dizer o mínimo, ingênua.
De um lado, é mais do que sabido que o litigante habitual contabiliza os custos das
demandas a que estará sujeito para a decisão de violar ou não um direito de massa.
Portanto, supor que sua conduta será alterada apenas em razão da previsibilidade da
solução final da controvérsia, é negar premissa já internalizada na opção pela litigância
repetitiva. Recorde-se, a propósito, que o litigante habitual normalmente estima de
antemão a quantidade dessa litigância repetitiva, contando com a demora na solução
das controvérsias individuais e com outras externalidades (como a possibilidade de
autocomposição, o erro judiciário e o erro da própria parte contrária), para sua decisão.
Portanto, imaginar que esses elementos serão desconsiderados, apenas em razão da
previsibilidade da solução final é desconsiderar vários aspectos que entraram em
consideração quando da decisão de violar o direito de massa. Por outro lado, também
importa lembrar que a solução adotada pelo incidente de resolução de demandas
repetitivas (e, indiscriminadamente, por todas as outras ferramentas escolhidas pelo
código para o combate à litigância de massa) exige que o indivíduo ajuíze sua demanda
individual para favorecer-se da decisão. Afinal, a decisão vinculante só é aplicada aos
“processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito” (arts.
985, I e 987, 2º), de sorte a impor que, qualquer pessoa que pretenda favorecer-se
dessa decisão deva ingressar em juízo. Essa solução, como amplamente observa a
doutrina, é péssima, não apenas porque deixa de resolver o problema do excesso de
demandas perante o Judiciário, mas também porque inviabiliza a resposta adequada a
várias situações de litígios de massa (v., por todos, ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela
coletiva de interesses individuais. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 47 e ss.).

32 Nesse sentido, v. MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito, ob. cit., p.


191-213; SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer, ob. cit., p. 36-61; WALDRON,
Jeremy. Stare decisis and the Rule of Law, ob. cit. passim; KOZEL, Randy J. Stare
Decisis in the Second-Best World. California Law Review, Berkeley, v. 5, p. 1139-1192,
2015; KOZEL, Randy J. Settled versus right: a theory of precedent. Cambridge:
Cambridge University Press, 2017. p. 60-92; MITIDIERO, Daniel. Precedentes..., op. cit.,
p. 53-65; MARINONI, Luiz Guilherme. STJ enquanto corte de precedentes, ob. cit., p.
162-173; PEREIRA, Paula Pessoa. Legitimidade dos precedentes..., ob. cit., passim.

33 A doutrina dos precedentes judiciais tem como um de seus principais problemas a


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confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

questão da identidade entre os casos para a aplicação da ratio decidendi, de modo que
toda operação interpretativa de manejo dos precedentes principia com o argumento por
analogia, ou seja, de cotejo analítico entre os casos (passado e presente) para verificar a
justificação do argumento por precedente. Essa operação de aplicação dos precedentes
se deve justamente pela dificuldade em se definir casos como idênticos, notadamente,
quando se leva em consideração as questões de fato. Sobre o ponto, ver SCHAUER,
Frederick. Thinking like a lawyer...op. cit., p. 61-124 e p. 203-2019, e SCHAUER,
Frederick. Why precedent in law (and elsewhere) is not totally (or even substantially)
about analogy. Perspectives on Psychological Science, University of Missouri, v. 3, n. 6,
p. 454-460, 2008. No mesmo sentido, ver, MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes
obrigatórios. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016. p. 327 e ss.

34 Sobre a lógica que autoriza essa abstração, dentro de um modelo cognitivista de


interpretação do Direito, ver o já referido estudo de Daniel Mitidiero (MITIDIERO, Daniel.
Cortes superiores..., ob. cit., p. 59). Por outro lado, demonstrando como a abstração dos
fatos acaba levando a atividade criadora do Direito como algo típico da legislação, v.
LAMY, Eduardo de Avelar. A nocividade do aspecto prospectivo e a importância dos fatos
na construção do ‘precedente’. Revista de processo comparado, São Paulo, v. 6, jul. -
dez. 2017. passim.

35 Não é objetivo deste texto enfrentar a seríssima discussão a respeito da inviabilidade


de dissociar fato e Direito no processo de interpretação. Porém, não há dúvida de que o
incidente em comento parte dessa possibilidade e trabalha com ela, razão pela qual o
texto assume essa intenção.

36 Nessa mesma linha, aponta Eduardo Lamy que “quando se extirpa a base factual,
criando uma regra geral e abstrata, o processo de se encontrar semelhanças e
diferenças é destituído e, contrariando o sustentado por Schauer, isso dará ao futuro juiz
muito mais espaço para diferentes caracterizações. Em outras palavras, o caráter
genérico e abstrato não permite a construção de analogias e, consequentemente, sobre
quais novos casos pode ser o precedente aplicado ou não, dando margem maior ao
protagonismo e subjetivismo do juiz superveniente” (LAMY, Eduardo de Avelar. Ob. cit.,
p. 126). E conclui o mesmo autor, dizendo que “um tribunal simplesmente não pode
prever – como um vidente – o que acontecerá antes que efetivamente aconteça, ou seja,
quais serão os fatos dos próximos casos e, principalmente, em que grau sejam eles
distinguíveis ou não do caso julgado” (LAMY, Eduardo de Avelar. Ob. cit., p. 128).

37 V., sobre isso, TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 2. ed.
Salvador: JusPodivm, 2017. passim.

38 Semelhante é a crítica apresentada por Marcelo Abelha Rodrigues, que diz que “o
exercício mental de distinção e a superação daquele que aplicar o texto legislado pelos
tribunais (enunciados ou súmulas) não será feita de caso concreto para caso concreto
como é num sistema de precedentes que se fortalece justamente pela lenta e gradual
análise do julgado futuro com o passado. Pelo contrário, será feita (distinção e
superação) em torno de um texto abstrato e, portanto, fruto de uma interpretação de
um texto normativo como qualquer outros que, como tal, submete-se ao mesmo regime
jurídico de um texto normativo. [...] As particularidades dos fatos que envolvem o
precedente não poderão ou não conseguirão ser abstratizados, embora tais fatos sejam
sempre importantes para a forção de sua ratio decidendi. Ora, se estas particularidades
são essenciais na operação do raciocínio analógico para julgar o presente com base no
passado evitando decisões contraditórias para situações concretas comparadas, então o
que se esperar do julgamento de um caso concreto a partir da interpretação de um texto
normativo (judicial) onde a fattispecie é abstrata? Vários sentidos, várias interpretações
descoladas com as particularidades dos casos concretos que ali não estão em moldura
abstrata” (RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos da tutela coletiva. Brasília:
Gazeta Jurídica, 2017. p. 229).

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confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

39 Por todos, acerca dos principais elementos que identificam e distinguem as teorias da
argumentação jurídica, ver ATIENZA, Manuel. Las razones del derecho: teorias de la
argumentación jurídica. México: Universidad Autonoma de México, 2005. passim. Com
relação às teorias da interpretação jurídica, a relevância dos precedentes para a teoria
do direito, cf. CHIASSONI, Pierluigi. The philosophy of precedente: conceptual analysis
and rational reconstruction. In: BUSTAMANTE, Thomas; PULIDO, Carlos Bernal (Ed.). On
the philosophy of precedent: the 24th World Congress of the International Association
for Philosophy of Law and Social Philosophy, Beijing, 2009. Proceedings... Stuttgart:
Franz Steiner Verlag, 2012. v. 3. p. 13-34. Ainda, ver, MITIDIERO, Daniel. Precedentes
..., op. cit., p. 21-69.

40 Como corretamente lembram Humberto Theodoro Jr., Dierle Nunes, Alexandre Melo
Franco Bahia e Flávio Quinaud Pedron, oferecendo crítica semelhante à apresentada no
texto, “o precedente no common law é um ponto de partida, quando de modo recorrente
entre nós é visto como ponto de chegada” (THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle.;
BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e
sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 349.

41 Nesse sentido, pertinentes dois estudos de direito comparado a respeito da questão


da interpretação de normas e aplicação de precedentes em diversos sistemas jurídicos,
seja de common law ou civil law, abstraindo aqui neste texto qualquer juízo de valor
sobre a utilidade e necessidade dessa classificação dicotômica na ordem jurídica global
contemporânea, respectivamente, MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert (Ed.).
Interpreting statutes, ob. cit., passim e MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert.
Interpreting precedentes...,ob. cit., passim. Para um estudo comparado mais
contemporâneo sobre argumentação jurídica, especificamente no campo da jurisdição
constitucional, ver, por todos, JAKAB, András; DYEVRE, Arthur; ITZCOVICH, Giulio.
Comparative constitutional reasoning. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.
passim.

42 Recorde-se que o incidente de assunção de competência, embora não tenha sido


designado especificamente para esse fim, também pode ser empregado para a solução
de casos repetitivos, sempre que a hipótese que dê ensejo à sua instauração esteja
fundada no art. 947, § 4º, do CPC. O preceito, ao autorizar a instauração do incidente de
assunção de competência quando houver questão de direito a respeito da qual seja
conveniente “a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do
tribunal” evidentemente pressupõe a multiplicação da questão, já que só então haverá a
possibilidade de divergência em relação a ela. A regra, de perigosíssima aplicabilidade,
já que esse incidente sequer vem forrado das garantias de participação que foram
outorgadas ao incidente de resolução de demandas repetitivas, precisa ser tomada com
cautela, sob pena de autorizar a deformação de todo o sistema de solução de casos de
massa.

43 Todos esses dados estão disponíveis no sítio do Superior Tribunal de Justiça


[www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?vPortalAreaPai=183&vPortalArea=584].
Acessado em: 04.2018..

44 Ainda pendem de julgamento 74 temas, apenas perante o Superior Tribunal de


Justiça.

45 Por uma crítica contundente à condução desse feito e, sobretudo, à homologação do


acordo celebrado, v., VITORELLI, Edilson. Acordo coletivo dos planos econômicos e por
que ele não deveria ser homologado. Jota. 15.01.2018. Disponível em:
[www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acordo-coletivo-dos-planos-economicos-e-por-que-ele-nao-dev
Acessado em: 04. 2018.

46 No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a questão estava afetada em quatro


recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida (RE 626307, Tema 264 da
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confundir precedentes com as técnicas do CPC para
solução da litigância de massa?

repercussão geral, Min. Dias Toffoli; RE 591797, Tema 265 da repercussão geral, Min.
Dias Toffoli; RE 631363, Tema 284 da repercussão geral, Min. Gilmar Mendes; RE
636212, Tema 285 da repercussão geral, Min. Gilmar Mendes), e posta para discussão
também na ADPF 165.

47 Salvo para valores inferiores a R$ 5.000,00, que deverão ser pagos à vista, tão logo
realizada a habilitação do interessado.

48 Nos termos do acordo homologado na ADPF 165, pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal, por unanimidade, em 01.03.2018.

49 O raciocínio anteriormente desenvolvido, embora especulativo, assenta-se nas


premissas lançadas por Marc Galanter, em seu conhecido estudo que deu origem à ideia
dos repeat players e à forma de seu agir (v., GALANTER, Marc. “Why the ‘haves’ come
out ahead: speculations on the limits of legal change”. Law and society review, [S.I.], v.
9, n. 1, 1974. passim).

50 Novamente, como pondera Galanter, enquanto o litigante eventual pensa em


maximizar seus ganhos no caso singular em que ele participa, o litigante habitual está
interessado em maximizar seus ganhos considerando o universo de casos em que está
envolvido (Id. Ibidem, p. 101). Por isso, é natural que o litigante habitual escolha em
que casos recorrer e investir mais recursos, o que naturalmente leva à conclusão de que
“we would expect the body of ‘precedent’ cases – that is, cases capable of influencing
the outcome of future cases – to be relatively skewed towards those favorable to RP” (p.
102, em uma tradução livre: “podemos esperar que o corpo de decisões ‘precedentes’ –
ou seja, decisões capazes de influenciar a solução de casos futuros – seja relativamente
inclinado no sentido daqueles favoráveis aos litigantes habituais”).

51 V., nesse sentido, GIUSSANI, Andrea. “The ‘Verbandsklage’ and the class action: two
models for collective litigation”. In: STORME, Marcel (Ed.). Procedural law in Europe:
towards harmonization. Antuérpia: Maklu, 2003. p. 395.

52 Essa é, precisamente, a tese defendida por Marc Galanter, no texto anteriormente


indicado, e reiterada por vários outros estudiosos. Catherine Albiston, por exemplo,
aponta que a condição de litigantes habituais permite que eles facilmente identifiquem
casos em que é grande a chance de perderem, propondo solução consensual para esses
casos. Sabendo que à parte contrária importa apenas a solução de seu caso, a
probabilidade de aceitação de um acordo nesses casos é grande, sobretudo em razão
dos recursos que o litigante habitual está propenso a gastar nesses feitos. Com isso, diz
a autora, “when repeat player defendants settle cases they are likely to lose, judicial
determinations of rights are based on a selective group of weaker cases” (ALBISTON,
Catherine. The rule of law and the litigation process: the paradox of losing by winning.
Law & society review, [S.I.], v 33, n. 4, 1999. p. 902 – em uma tradução livre: “quando
réus litigantes habituais transacionam em casos que eles provavelmente perderão, a
determinação judicial de direitos será baseada em um específico grupo de casos fracos”).

53 Recorde-se que, ao menos para os feitos pendentes enquanto não resolvida a


questão repetitiva, todos esses processos ficarão suspensos até a decisão da questão –
e, eventualmente, até o último julgamento sobre ela.

54 De fato, examinando o código de processo civil, vê-se que a lei, havendo tese já
firmada com o emprego das técnicas em debate, autoriza a concessão de tutela da
evidência (art. 311, II, do CPC), permite a rejeição liminar da petição inicial (art. 332, do
CPC), exclui a possibilidade de reexame necessário (art. 496, § 4º, do CPC), dispensa
em certos casos a caução para o cumprimento provisório da sentença (art. 521, IV, do
CPC), autoriza o julgamento monocrático de recursos (art. 932, IV e V, do CPC) e pode
inviabilizar eventual admissão de recurso especial ou extraordinário (art. 1.040, do CPC).

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solução da litigância de massa?

55 V., sobre isso, ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela..., ob. cit., passim. OSNA, Gustavo.
Direitos individuais homogêneos. São Paulo: Ed. RT, 2014. passim. Compartilhando com
a crítica apresentada no texto, v., RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos..., ob.
cit., p. 107 e ss., com especial ênfase nas p. 128-130.

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