Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Desde que assisti Paisagem na neblina (Topio stin omichli, 1988), do cineasta Theo
Angelopoulos, soube que seria o eleito para o trabalho final da disciplina, pois, sem querer
desmerecer as demais obras exibidas, nos permitiu realizar alguns links com o conteúdo
ministrado.
A história muito bem narrada pelas imagens é repleta de significados estéticos que
levam o espectador a pensar sobre sua existência e construção pessoal, refletida na saga de
dois irmãos, duas crianças em busca de um pai que se supõe estar na Alemanha.
Angelopoulos não dá muitas razões para a fuga dos irmãos Voula e Alexandre de casa
e a vagar por caminhos solitários e, por vezes, perigosos a procura de um pai que permanece
desconhecido para nós – o público – e para meninos.
Cada arte tem seu signo característico. A literatura tem a palavra assim como o teatro
tem a representação. Porém, quando Canudo propõe, no início do século XX, o Manifesto das
sete artes e coloca o cinema como convergência natural das outras seis artes, trouxe uma
problemática para os estudiosos da semiologia, uma vez que a pintura ou a música
apresentadas pelas lentes de uma câmera deixam seus identificadores para pertencer ao
universo cinematográfico.
Dizemos isto porque, sob uma perspectiva da semiótica, as demais, tais como a pintura
ou a literatura, presentes no cinema, não seriam pintura ou literatura, respectivamente, porém
sua representação.
mas o que qualifica um como arte senão a forma como estas histórias passam diante de nossos
olhos.
Assistindo o filme uma segunda vez, comecei a entender que a neblina do título não se
refere somente ao fenômeno natural no qual partículas secas obscurecem a clareza do céu,
mas faz referência a tudo que os impede de ver. Os irmãos esperam o trem passar como quem
1
LOUREIRO, João de Jesus Paes. A conversão semiótica: na arte e na cultura. Ed Trilíngue. Editora
Universitária UFPA. Belém, 2007. p. 24.
5
espera a neblina se dissipar, na esperança de que haja algo melhor a frente. Na cena de
abertura, quando o trem passa, só há paredes frias.
A esta altura sabemos que aquela não seria a primeira nem a última tentativa da
jornada de amadurecimento e dor que os esperava. O Tema do pai, leitmotiv que acompanha
nos momentos mais emblemáticos do filme, composto por Eleni Karaindrou, toca
melancólico e solitário enquanto assistimos a narrativa.
O filme pode ser considerado um road movie, porém de uma viagem que parece não se
completar. Quando finalmente conseguem embarcar, a falta de bilhetes o devolve à cidade e à
família inoperante. Depois, quando a jornada parece chegar ao fim, a falta de passaportes leva
os meninos a nova tentativa. Ainda assim, a notícia de que o pai não passa de um engodo da
mãe não tira dos pequenos a esperança.
Figura 1: Após a recusa do tio em assumir a responsabilidade dos irmãos, eles são levados à Delegacia de Polícia. A
queda da neve leva as autoridades para fora e as crianças aproveitam para fugir.
O filme é narrado pelos irmãos como quem escreve uma carta ao pai, contando todos
os temores, desafios, indiferença. Ávido observador, Alexandre resume a jornada ao declarar
que estão viajando como uma folha, sendo levados pelo vento.
6
Os atores à beira do mar, depois suas roupas estendidas balançando com o vento são
signos claros da ausência de vida que cerca a trajetória dos irmãos. Há um vazio existencial
que permeia o filme representado por personagens apáticas e mórbidas, de pessoas que
parecem olhar para o nada.
A ausência de cortes permitiu a construção de uma das cenas mais chocantes já vista:
o estupro de Voula pelo caminhoneiro, muito mais até que a explicita cena em Irreversível
(Irreversible, 2003), de Gaspar Noé. Angelopoulos deixa a cargo de nossa imaginação o ato
que se passa no baú do caminhão e este fato choca mais do que se o cineasta optasse por
mostrá-lo explicitamente.
A câmera acompanha o caminhão até que estacione no canto da estrada por onde
passam diversos carros. Faz um travelling para a esquerda e vemos o homem passar por trás
do veículo até a porta de Voula. A menina tenta escapar, mas é mais fraca fisicamente.
Este fato é muito coerente com a história das tragédias gregas que, segundo aprendido
na disciplina, optava por contar o fato trágico por terceiros que não participaram diretamente
da ação. No caso de Paisagem da neblina, coube à nossa mente dar a notícia do ocorrido,
finalizado com o zoom muito lento que Angelopoulos repousa sobre o sangue que escorre por
entre as pernas de Voula e suas mãos ensanguentadas que são adeus definitivamente á
infância.
Quando Orestes está a admirar o mar, surge paulatinamente uma mão gigante. A
imagem trouxe a memória o afresco de Michelangelo para o teto da Capela Sistina, intitulado
A criação de Adão. A mão gigante nos remete a mão do criador retratada pelo artista, todavia
a escultura que emerge das águas não possui o elemento que dá vida ao homem, o dedo
indicador. Em alguns momentos, a mão está apontada para o espectador, colocando-nos na
posição de Adão, porém sem o toque de vida do Criador. É uma imagem multilada,
desesperançosa que vemos diminuída paulatinamente diante das três figuras perdidas.
cai –, e literalmente estáticos, deixam as crianças abandonadas a própria sorte; pelo homem
que ignora, não alimenta, não dá passagem, segura e pratica violência.