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Júlio Medeiros

AFASTAMENTO “HIC ET NUNC” DA SÚMULA 691 DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL: SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA?

Palavras-chave: Habeas Corpus – Súmula 691 do STF – Flexibilização – Supressão


de instância - Teoria da Causa Madura - Supremacia do Direito.

A Súmula 691 do STF1 - aprovada em Plenário no dia 24 de


setembro de 2003 com a notória preocupação de se evitar a chamada
“supressão de instância” - exige que o writ tenha o seu mérito apreciado
pelas instâncias inferiores antes de se recorrer ao Tribunal Constitucional via
habeas corpus. Em singelas palavras, não têm, pois, os Ministros do Supremo
(de acordo com o teor da Súmula) o direito de avocar habeas corpus em
início de tramitação, em qualquer lugar do Brasil, para lhe examinar o mérito.

Foi aplicando a referida Súmula, inclusive, que a Min. ELLEN


GRACIE indeferiu liminarmente a ordem impetrada em favor do médico
ROGER ABDELMASSIH – uma vez que o remédio constitucional não havia
sido julgado meritorialmente pelo STJ - , acusado de autoria de 56 crimes de
atentados violentos ao pudor (hoje estupros por mudança legislativa
introduzidas pela Lei nº 12.015/09) perpetrados contra 39 mulheres, segundo
o Parquet (HC nº 100.429/SP).

Posteriormente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Min.


GILMAR MENDES, deferiu liminar em outro mandamus (HC nº 102.098) para
conceder liberdade ao médico, registrando, na oportunidade, que em 18 de
agosto de 2009 o Conselho Regional de Medicina suspendeu o registro
profissional do médico, afastando a possibilidade de reiteração dos supostos

1
Teor da Súmula 691 do STF: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de
‘habeas corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em ‘habeas corpus’ requerido a
Tribunal Superior, indefere a liminar”.
Júlio Medeiros

abusos sobre clientes, não mais se justificando, assim, a manutenção da


prisão provisória.

Entretanto, foi mesmo a decisão da Min. ELEN GRACIE que


reavivou uma intensa e acalorada discussão, a partir de um paralelo que pode
ser traçado entre o caso do médico e o caso do banqueiro DANIEL DANTAS,
no STF - cuja prisão havia sido fruto das investigações advindas da
denominada “Operação Satiagraha”.

No aludido caso, como se sabe, ocorreram impetrações


sucessivas – ou, como preferem alguns, impetrações per saltum2 – em face
de decisões denegatórias de liminar nas instâncias inferiores. È bom que se
ressalte, entretanto, que tais impetrações em grande parte das vezes deve-se à
demora no julgamento meritório do próprio writ pela instância inferior3.

Destarte, quanto ao caso supra, o banqueiro (em situação similar


á do médico) também havia recorrido ao STF sem que seus habeas corpus
impetrados nas instâncias inferiores (TRF e STJ) tivessem sido
meritoriamente julgados, todavia, o Min.GILMAR MENDES (relator), na
oportunidade, afastou o óbice da Súmula 691 do STF para conceder a ordem
ao acusado (HC nº 95.009/SP).

Juridicamente, diversas foram as vozes que se levantaram contra


MENDES, alegando suposta "supressão de instâncias", com fulcro nos
argumentos de Wálter Fanganiello MAIEROVITCH4, Desembargador

2
Interessante notar que a jurisprudência que deu substrato à construção da Súmula em exame
tinha como pilares precisamente as idéias bem condensadas pelo Min. MOREIRA ALVES,
segundo as quais “a admitir-se essa sucessividade de ‘habeas corpus’, sem que o anterior
tenha sido julgado definitivamente para a concessão de liminar ‘per saltum’, ter-se-ão de
admitir consequências que ferem princípios processuais fundamentais, como o da hierarquia
dos graus de jurisdição e o da competência deles” (HC nº 76.347-1/MS, DJ 08/5/98).
3
Não por acaso, com incomum reiteração, assistimos tanto à prática de se abandonar o uso
do recurso ordinário em habeas corpus (RHC), com o manejo da impetração originária,
substitutiva daquele e, da mesma forma, à busca da liminar, solicitando a prestação
jurisdicional initio litis. Na esteira de Toron, fossem os tribunais mais céleres quer nos
julgamentos, quer na publicação das suas decisões (que não raro leva diversas semanas),
a questão da liminar seria menos preocupante, mais acadêmica, e a própria Súmula 691 não
viesse, talvez, a lume.
4
Informações colhidas a partir do blog pessoal do Desembargador:
http://maierovitch.blog.terra.com.br.
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aposentado do TJ/SP, insinuando, pois, que o Ministro teria “rasgado a


jurisprudência do STF".

Inicialmente, MENDES concedeu liminar convertendo o HC


preventivo em liberatório, revogando a prisão temporária de DANIEL e
VERÔNICA DANTAS. Em seguida, diante da decretação da prisão preventiva
de ambos, revogou novamente a ordem do juiz da 6ª Vara Federal Criminal de
São Paulo, dentro do mesmo processo, haja vista que, em seu entender, o
Estado de Direito (distintamente do chamado Estado Policial marcado tanto
pelo que chamamos de “processo penal midiático” quanto pelas prisões
temporárias decretadas em atacado) viabiliza a preservação das práticas
democráticas e, especialmente, o direito de defesa.

“O despacho de Vossa Excelência foi irrepreensível. Eu não teria


feito melhor”5, afirmou EROS GRAU, voltando-se para MENDES. Estendendo a
ordem (com fulcro no art. 580 da Lei Instrumental Penal), posteriormente, aos
demais envolvidos no processo: HUGO CHICARONI e HUMBERTO BRAZ,
assessores de Dantas acusados de tentativa de subornar um delegado da
Polícia Federal para que deixasse de investigar o banqueiro.

Em que pese tudo isso, é oportuno deixar vincado que, em termos


de diretriz hermenêutica, a Corte Constitucional tem abrandado o rigor do
referido verbete, sempre em caráter extraordinário, nos casos em que há
flagrante ilegalidade (decisões teratológicas) ou abuso de poder, além das
hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência
predominante da Corte, uma vez que o habeas corpus - de envergadura
constitucional6 - não sofre qualquer peia além dos limites estipulados pela
própria Lei Fundamental.

5
STF, HC nº 95.009/SP, rel. Min.EROS GRAU, DJE 19.12.2008.
6
Segundo entendemos, o habeas corpus enquanto ação de direito processual
constitucional é o mais eficaz instrumento de atuação da denominada “jurisdição
constitucional das liberdades”.
Júlio Medeiros

Sobre a gênese da flexibilização da Súmula 691 do STF, aliás, é


oportuno destacar que o julgamento do HC nº 85.185/SP7 foi um verdadeiro
leading case, ocasião na qual o advogado Alberto Zacharias TORON (em
sustentação oral da ordem no Pleno da Suprema Corte) ofereceu proposta de
cancelamento da referida Súmula ou, alternativamente, interpretação que,
com redução teleológica, implicasse-lhe acrescentar, ao final do enunciado, a
expressão: “a menos que a ilegalidade ou o abuso de poder seja flagrante”.

No entanto, hoje nota-se que o STF vem interpretando a referida


Súmula com certa flexibilidade, assim como o faz em relação aos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade em determinados casos concretos;
procedendo-se ao seu afastamento hic et nunc sempre que necessário, sob
pena de se respaldar a denegação da justiça.

Um exemplo prático e não muito incomum de concessão initio litis


de habeas corpus pela Suprema Corte, afastando o óbice da combatida
Súmula ocorre quando se pleitea o direito de recorrer em liberdade nada
obstante ter sido decretada a prisão do paciente pela mera disposição de que
“os recursos extraodrinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo”
(art. 27, § 2º da Lei nº 8.038/90).

Como se vê, trata-se de assunto já debatido pelo Pleno do


Tribunal Constitucional (HC nº 84.078/RS), autorizando, inclusive, além do
afastamento hic et nunc do verbete sumular nº 691 o julgamento da ordem
apenas pelo Relator, assim como fez o Min. CELSO DE MELLO no julgamento
do HC nº 97.457/MT impetrado em favor de pacientes acusados de serem
mandantes de um homicídio triplamente qualificado ocorrido na década de 80.

Por sua vez, o Min. MARCO AURÉLIO, quando da concessão de


liminar para libertar 20 pessoas que estavam sendo presas em decorrência das
investigações realizadas pela “Operação Hurricane”, da Polícia Federal,
acenou para a necessidade de se compatibilizar o citado verbete com a Lei

7
No julgamento do HC nº 85.185/SP, o Pleno do STF rejeitou a proposta de cancelamento
da Súmula 691, formulada pelo relator, e reconheceu a possibilidade de atenuação do seu
enunciado para a hipótese de flagrante constrangimento ilegal.
Júlio Medeiros

Maior, aduzindo que não pode ser levado às últimas consequências o que nele
se contém a ponto de, configurado ato ilícito e existindo órgão capaz de
apreciá-lo, vir-se simplesmente a dizer da incompetência deste último (HC
nº 91.723/RJ).

Tal constatação do Ministro, aliás, está em perfeita consonância


com a “Teoria da Causa Madura”, de Paulo RANGEL8, no substrato de que
jamais poderia o Pretório Excelso invocar uma Súmula para indeferir
liminarmente a ordem impetrada, quando estivesse presente alguma
ilegalidade (conferir, a respeito, o Agravo Regimental no HC nº 98.324/MT);
ainda mais quando, nessa hipótese, o Regimento Interno, o Código Processual
Penal e a Constituição Federal autorizam a concessão de habeas corpus de
ofício pelo magistrado.

Assim, o fato de alguns Ministros ultrapassarem a súmula de


barreira, apreciando em sede liminar pedidos já indeferidos em instâncias
inferiores, é plenamente justificável; uma vez que equivocou-se o Supremo
quando elaborou tal verbete - limitando o acesso ao Poder Judiciário – (e
violando o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional), tanto é que
inverteu-se a lógica da própria súmula, tantas e tamanhas são as nulidades
de decretações de prisões pelo Brasil afora.

Quanto à proposição de Alberto Zacharias TORON, se fosse


aceita, acabaria confundindo dois planos essenciais do habeas corpus, que é o
da admissibilidade e do conhecimento. Nas palavras do Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE9 a solução, na teoria, seria contrária à prática e, na prática,
revogaria a própria Súmula.

Contudo, o certo é que em situações dessa matiz, de flagrante


ilegalidade (aptas a afastar a aplicação da Súmula) o acusado nunca deveria
ficar no prejuízo, uma vez que esse singelo patamar sempre desafiará a
concessão da ordem ex officio pelo magistrado enquanto sujeito suprapartes

8
RANGEL, Paulo. Direito processual penal, p.769.
9
STF, HC nº 85.185/SP, rel. Min.CEZAR PELUSO, DJ 01.09.2006.
Júlio Medeiros

que é; consagrando, pois, a supremacia do Direito sobre o Império da Lei, em


clara decorrência de um nítido esgotamento do clássico modelo
positivista.

BIBLIOGRAFIA

RANGEL, Paulo, Direito Processual Penal, Rio de Janeiro, Editora Lúmen


Júris, 16ª ed., 2009.

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