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Reformismo na Consulta Popular?

Paulo Henrique Oliveira Lima1

Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe
repetia serem sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão
cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar
já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:
— Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe.
(Dom Quixote de La Mancha)

No último período vivenciamos na Consulta Popular uma crise de construção partidária.


Concordo com os companheiros que escreveram o texto “O papel da Consulta Popular como
instrumento político”2, que a atual crise que vivemos, não é uma crise simples e motivada somente
por uma única contradição da realidade, no caso a relação da Consulta Popular com o núcleo
dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Gostaria inclusive que nossos
problemas fossem tão fáceis de identificar.
No decurso do nosso processo assemblear, e em especial nos últimos dois cadernos de
debates, além da crítica ao movimentismo, que subscrevo em certos aspectos – embora possamos
e devamos discutir o seu estatuto teórico em nossa organização3 - tem surgido uma crítica a um
suposto reformismo nas fileiras da Consulta Popular.
Esta crítica aparece inicialmente, nos textos como uma possibilidade, como uma “porta de
entrada” ou como “um caminho insidioso da penetração de conceitos reformistas”. No entanto, no
último caderno de debates o reformismo aparece como algo dado em nossa organização e em um
devaneio como “predominante hoje na CP4”.
Neste sentido, este texto tem como objetivo problematizar a existência do reformismo na
Consulta Popular, como parte do esforço de identificar as reais contradições a serem enfrentadas
pelo conjunto da militância em nosso processo assemblear, não moinhos de vento.

1 Militante do núcleo Luiz Gama da Consulta Popular Ceará.


2 Nos referimos ao texto escrito pelos companheiros Leidiano Farias, Jessy Dayane e Joceli Andreoli no primeiro
caderno de debates, que inaugura nosso atual processo assemblear.
3 Embora o movimentismo seja uma tensão histórica na Consulta Popular, produto do nosso processo de formação
e constituição, da singularidade dos movimentos populares do nosso campo político do projeto popular, que
combinam um movimento de massas e uma estrutura de quadros e da nossa fragilidade enquanto instrumento
político, é inegável que o movimentismo conquistou um novo patamar interno na organização com a tese do
“partido é o campo”, do companheiro Ricardo Gebrim, apresentada no processo da nossa V Assembleia Nacional
Zilda Xavier. Nos é estranho que essa autocrítica nunca tenha sido realizada para o conjunto da militância nos
textos que o companheiro escreve para o Caderno de Debates.
4 Textos dos companheiros Durval Siqueira e Marcos Galvão, “Sobre o Levante Popular da Juventude”, presente no
caderno de debates de junho de 2020, página 69.
1. O que é o reformismo e como ele se manifestou historicamente nas organizações
revolucionárias?
O reformismo é um fenômeno complexo e se manifestou de diferentes formas
historicamente, embora tenham como denominador comum o abandono da centralidade da luta
pelo poder. No entanto, como veremos, mesmo as organizações que tinham como perspectiva a
conquista revolucionária do poder político e se autoproclamavam revolucionárias também
padeceram deste equívoco teórico e político, a exemplo de alguns Partidos Comunistas. A
experiência das revoluções triunfantes evidenciam que a melhor vacina contra o reformismo é a
construção de uma estratégia revolucionária adequada a realidade nacional de cada país. Perdoem
a redundância.
Ao longo da história da classe trabalhadora o reformismo se manifestou das seguintes
formas:

a) Em uma concepção evolucionista do marxismo, centrada no desenvolvimento das forças


produtivas.

Esta concepção caracterizou parte dos partidos que compuseram a Internacional Socialista
(IS), em especial o Partido Socialista Italiano (PSI). Na referida concepção, o desenvolvimento das
forças produtivas nos marcos do modo de produção capitalista levariam necessariamente a uma
crise de tipo catastrófica e ao colapso do capitalismo, cabendo ao proletariado fortalecer suas
organizações e esperar a irrupção da insurreição:

Uma concepção positivista-evolucionista do marxismo; e essa concepção servia como uma


luva para justificar ideologicamente a prática política imobilista, fatalista [...]. Os principais
ideólogos do PSI entendiam a revolução proletária como o resultado de uma inexorável lei
do desenvolvimento econômico: o progresso das forças produtivas, aguçando a
polarização de classe e conduzindo a crises do tipo catastrófico, levaria fatalmente, em um
dado momento, a um colapso do capitalismo, com a consequente irrupção da insurreição
proletária. Enquanto isso cabia ao proletariado fortalecer ao máximo suas organizações e
esperar pelo ‘grande dia’; à intransigência doutrinária juntava-se uma posição
objetivamente passiva, de expectativa imobilista. O marxismo era interpretado como uma
defesa dos fatos contra a vontade, da objetividade ‘natural’ contra a subjetividade
criadora5.

b) Uma concepção gradualista na luta por reformas.

5 ESCORSIM, L. Mariátegui. Vida e obra. S. Paulo: Expressão Popular, 2006. P. 85.


Outra concepção reformista presente no seio da Internacional Socialista foi formulada por
Eduard Bernstein. Para o social-democrata alemão, considerado o principal quadro teórico do
reformismo, as mudanças ocorridas no modo de produção capitalista na transição do século XIX
para o século XX, próprias de sua etapa superior imperialista, comprovariam a inevitabilidade do
capitalismo. Além disso, Bernstein identificava, ao contrário de um processo ainda mais intenso de
concentração e centralização de capital, um processo de democratização do mesmo, através do
surgimento das sociedades anônimas. Do mesmo modo, uma democratização do crédito que, se
não impediria, pelo menos atenuaria as agruras das crises capitalistas.
Bernstein não nega a existência das contradições sociais do capitalismo. Embora as mascare
profundamente. O bem-estar social da classe trabalhadora, através da luta por direitos políticos e
sociais deve ser buscada através de reformas e a “transição da sociedade capitalista para a
socialista (não da ditadura burguesa para a proletária) deve ocorrer gradualmente, utilizando a
democracia6”, compreendida como meio e fim da luta pelo socialismo.
O teórico alemão opera portanto uma revisão das ideias fundamentais do marxismo,
utilizando-se inclusive da aclamada “liberdade de crítica”.

c) O abandono do internacionalismo substituído pela defesa da pátria.

Outra expressão do reformismo no interior do movimento socialista internacional é o que


Lenin classificou como social-chauvinismo. O principal defensor desta concepção, o então marxista
tcheco-austríaco Karl Kautsky defendia que “todos tem o direito e o dever de defender sua pátria;
o internacionalismo verdadeiro consiste em reconhecer este direito aos socialistas de todas as
nações, inclusive aos da nação que guerreia contra a minha7”.
No contexto da primeira Guerra Mundial, a defesa da pátria negava as resoluções
aprovadas pela Internacional em seu Congresso de Basileia (1912), no qual o conflito militar que se
avizinhava possuía um caráter imperialista, de espoliação e repartição do mundo pelas principais
potências capitalistas. A tática aprovada pelo movimento socialista em Basileia consistia na

6 HOBSBAWM, E. (org.). História do marxismo. II. O marxismo na época da Segunda Internacional. Rio de
Janeiro:Paz e Terra, 1987. P.282.
7 LENIN, V.I. O oportunismo e a falência da Segunda Internacional. 1916. Disponível na internet via
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm Arquivo capturado em 03 de agosto de 2020.
“transformação da guerra imperialista numa guerra civil revolucionária 8”. Por isso, Lenin afirma a
traição e a falência da II Internacional.
Kautsky busca construir uma justificativa teórica para sua posição política através da tese
do “ultra-imperialismo”, que, segundo Lenin, negava “a profundidade das contradições do
imperialismo e a crise revolucionária que este engendra 9”. Tal posição fez com que os partidos
social-democratas da Europa apoiassem, em sua maioria, suas respectivas burguesias durante a
Primeira Guerra Mundial. Plekhanov, outro teórico do social-chauvinismo, defendia que “a vitória
de meu país acelerá a evolução do capitalismo e, consequentemente, o advento do socialismo 10”.

d) A incompreensão da formação social e da estrutura de classes de um determinado país.

Outra variante do reformismo, agora presente na Internacional Comunista, foi derivado de


uma incompreensão da formação social e da estrutura de classes nos países coloniais,
semicoloniais ou dependentes. A Internacional analisou a questão colonial e a luta dos povos
oprimidos ao longo de sua história, com destaque para os IV, V e VI congressos, ao mesmo tempo
que buscava aglutinar e atrair organizações e lideranças anti-imperialistas destes países. Em 1926,
a Comintern chegou a convidar Chang Kai-Shek como membro honorário do seu presidium, e
convidou o Kuomitang a compô-la na condição de partido simpatizante.
A burguesia dos países coloniais, semicoloniais e dependentes era compreendida pela
Internacional como anti-imperialista. Tal elaboração culminará na formulação da “teoria das
formações sociais”, em 1928. A história da humanidade era compreendida a partir de uma
concepção evolucionista e unilinear, na qual a sucessão dos diversos modos de produção:
comunismo primitivo – escravismo – feudalismo – capitalismo, típicos da Europa Ocidental eram
universalizados para todo o mundo11.
Esta interpretação, não obstante, culminou em desastres. Na China, o governo do
Kuomitang realiza uma feroz repressão em Xangai e na comuna do Cantão. Como consequência
desses episódios, o partido comunista foi posto na clandestinidade, tendo que se refugiar entre os
camponeses. Neste período, Mao Zedong se diferencia da linha política da Internacional através da
aplicação criativa do marxismo a sua realidade nacional, através do texto “Análise das classes na

8 LENIN, V.I. O oportunismo e a falência da Segunda Internacional. 1916. Disponível na internet via
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm Arquivo capturado em 03 de agosto de 2020.
9 LENIN, V.I. O oportunismo e a falência da Segunda Internacional. 1916. Disponível na internet via
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm Arquivo capturado em 03 de agosto de 2020.
10 LENIN, V.I. O oportunismo e a falência da Segunda Internacional. 1916. Disponível na internet via
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm Arquivo capturado em 03 de agosto de 2020.
11 GEBRAN, Philomena (org). Conceito de Modo de Produção. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1978.
sociedade chinesa12”, identificando as frações burguesas, mas também atribuindo um papel
revolucionário ao campesinato.
No Brasil, a implementação mecânica da teoria das formações sociais pelo PCB, fez com
que este acreditasse na existência do modo de produção feudal durante o período colonial. A
grande propriedade de terra, e a existência de relações sociais pré-capitalistas no campo, fez com
que este elaborasse a teoria das “duas revoluções”, uma primeira democrático-burguesa,
conduzida e dirigida pela burguesia nacional, e outra de caráter socialista. Tal elaboração, culminou
na subordinação do proletariado a frações da burguesia brasileira, que se reunificariam com a
Ditadura Militar em 1964.
Mesmo não abandonando a perspectiva revolucionária, a incompreensão da formação
social e da estrutura de classes de cada país, fez com que na prática adotassem posturas
reformistas e subordinadas às classes dominantes.

d) A compreensão da democracia burguesa como valor universal.

A crise e desagregação do stalinismo após o XX Congresso do Partido Comunista da União


Soviética (PCUS), com a revelação dos crimes cometidos por Stalin contidos no relatório Krushev,
fez com que vários partidos comunistas da Europa, buscassem maior autonomia perante a linha
política da URSS e que serediscutisse a relação entre socialismo e democracia.
Os acontecimentos em Budapeste (1956) e em Praga (1968), corroboravam com a
necessidade de rediscussão do tema. É neste contexto que o Partido Comunista Italiano (PCI),
através do seu secretário-geral Enrico Berlinguer proclamará, em 1977, na União Soviética, o
discurso “Democracia como valor universal”. Para Berlinguer, “a democracia é hoje não apenas o
terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor
historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista 13”.
As distinções entre democracia burguesa e a democracia proletária são secundarizadas. O
caráter de classe da democracia é esvaziado.
O PCI, que adota a teoria do valor universal da democracia burguesa, e a via pacífica ao
socialismo, apesar de ser o principal partido comunista do Ocidente, acabará se degenerando

12 Zedong, Mao. Análise das classes na sociedade chinesa. 1926. Disponível na internet via
https://www.marxists.org/portugues/mao/1926/03/classes.htm Arquivo capturado em 03 de agosto de 2020.
13 COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. 1979. Disponível na internet via
https://www.marxists.org/portugues/coutinho/1979/mes/democracia.htm . Arquivo capturado em 03 de agosto de
2020.
politicamente, convertendo-se em um partido da ordem, numa aliança estratégica com a
democracia-cristã.
Tal formulação estratégica chega ao Brasil no final da década de 70, através de intelectuais
vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, tais como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder,
que posteriormente integrarão o PT. Esta concepção permaneceu secundária entre a esquerda
brasileira durante a década de 80, ganhando força principalmente após a queda do Muro de Berlim
e a dissolução da União Soviética.

e) O abandono da perspectiva da questão do poder e a negação da violência revolucionária.

Após a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética, uma enorme


crise ideológica atingirá o conjunto das organizações revolucionárias no mundo. A referida crise
atingiu tanto os partidos comunistas que em sua maioria reivindicavam acriticamente a
experiência de transição ao socialismo na União Soviética, mas também aquelas organizações
críticas a aquela experiência e que dela buscavam se diferenciar.
É o caso do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que em 1992 tornou-se o Partido
Popular Socialista (PPS) e mais recentemente, o Cidadania. Mas também é o exemplo do Partido
Revolucionário Comunista (PRC), que atuava no interior do Partido dos Trabalhadores e se
autoproclamava marxista-leninista, mas que acabará se fragmentando em dois novos
agrupamentos: a “Nova Esquerda” e a “Tendência Marxista”. Por sua vez, a “Nova Esquerda” se
transformará em “Democracia Radical”, evidenciando o processo de transformação ideológica.
Parte dos quadros do antigo PRC integraram recentemente a Rede Sustentabilidade.
A própria Articulação dos 113, agrupamento interno do PT, que aglutinou durante a década
de 80 os setores do “novo sindicalismo”, militantes advindos da luta armada contra a Ditadura e
setores vinculados a Teologia da Libertação, se dividirá durante a década de 90, originando a
Articulação Unidade na Luta, a Articulação de Esquerda e alguns militantes contribuirão para o
surgimento da Consulta Popular.
Schafik Handall, dirigente da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) atribui
como uma das consequências dessa debâclé ideológica o abandono da questão do poder e a
renúncia da violência revolucionária:

O problema da via da revolução e o problema do poder deve ser submetido a uma análise
profunda, apoiando-nos sobretudo em nossa própria experiência, porém também na
experiência alheia. Tudo o que tem a ver com o tema do poder está em debate: há que
sustente que há que aspirar a uma cota de poder; há quem, influenciados pelos
acontecimentos do Leste Europeu e em geral pelas mudanças que estão se operando a
nível mundial, sustentam de que a luta pelo poder engendra confronto, violência e que isto
não é conveniente14.

É neste sentido que podemos compreender o rebaixamento estratégico ocorrido no Partido


dos Trabalhadores durante a década de 90. A profunda crise gerada pelo fim da União Soviética,
somada a crise do stalinismo existente desde as décadas de 50 e 60, farão com que o partido
renuncie a uma estratégia centrada na conquista do poder. O socialismo para o PT passa a ser a
“radicalização da democracia15”, e a democracia (burguesa) “simultaneamente meio e fim 16”. A
ditadura do proletariado passar a não ser uma forma de estado na transição do modo de produção
capitalista para o comunismo, mas sim um regime político autoritário, “a ditadura do partido único
sobre a sociedade, inclusive sobre os próprios trabalhadores”.

2. Cristalização e caricaturas no debate interno.

Portanto, o reformismo não consiste, como alguns companheiros acreditam, na


combinação das formas de luta dentro de uma estratégia revolucionária. Ou mais objetivamente
na decisão da Direção Nacional da Consulta Popular de realizar experiências na luta político-
eleitoral nas eleições municipais de 2020.
Lenin ridicularizou os militantes comunistas que sob a afirmação de “lutar contra as
influências democrático-burguesas no seio do movimento operário” não compreendiam a
importância de utilizar o parlamento como uma “arena” da luta de classes. Lenin, em seu célebre
livro “O esquerdismo: doença infantil do comunismo” afirma:

Vocês se imaginam, caros boicotadores e antiparlamentaristas, “terrivelmente


revolucionários”, mas, na realidade, vocês se assustam com as dificuldades relativamente
pequenas da luta contra as influências burguesas no seio do movimento operário; no
entanto, a sua vitória, isto é, a derrubada da burguesia e a conquista do poder político pelo
proletariado criará estas mesmas dificuldades em proporções maiores,
incomensuravelmente maiores. Vocês se assustaram como crianças com a pequena

14 HÁNDAL, Schafik. La lucha política electoral – desde una perspectiva revolucionaria. Ediciones Instituto Schafik
Hándal. San Salvador. 2015. P. 11.
15 Resoluções do 1º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores. Disponível em
https://redept.org/uploads/biblioteca/Resolu
%C3%A7%C3%B5es_do_1%C2%BA_Congresso_Nacional_do_Partido_dos_Trabalhadores.pdf . Acesso em 03 de
agosto de 2020.
16 Resoluções do 1º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores. Disponível em
https://redept.org/uploads/biblioteca/Resolu
%C3%A7%C3%B5es_do_1%C2%BA_Congresso_Nacional_do_Partido_dos_Trabalhadores.pdf . Acesso em 03 de
agosto de 2020.
dificuldade que amanhã e depois de amanhã terão, de qualquer maneira, de aprender, e
aprender completamente, a vencer as mesmas dificuldades em proporções imensamente
mais consideráveis17.

Tampouco, o reformismo consiste na adoção de uma política de alianças ampla, ou com


uma liderança de massas social-democrata, mais especificamente a relação estabelecida com Lula
e o lulismo. Ainda no Esquerdismo, Lenin é categórico:

Só se pode vencer um inimigo mais forte retesando e utilizando todas as


forças e aproveitando obrigatoriamente com o maior cuidado, minúcia,
prudência e habilidade a menor "brecha" entre os inimigos, toda
contradição de interesses entre a burguesia dos diferentes países, entre os
diferentes grupos ou categorias da burguesia dentro de cada país; também
é necessário aproveitar as menores possibilidades de conseguir um aliado
de massas, mesmo que temporário, vacilante, instável, pouco seguro,
condicional. Quem não compreende isto, não compreende nenhuma
palavra de marxismo nem de socialismo científico, contemporâneo, em
geral. Quem não demonstrou na prática, durante um período bem
considerável e em situações políticas bastante variadas, sua habilidade em
aplicar esta verdade à vida, ainda não aprendeu a ajudar a classe
revolucionária em sua luta para libertar toda a humanidade trabalhadora
dos exploradores. E isso aplica-se tanto ao período anterior à conquista do
Poder político pelo proletariado como ao posterior18.

Também é conhecida a relação estabelecida por Fidel Castro com Eduardo Chibás, principal
liderança do Partido Ortodoxo, um “partido populista de origem pluriclassista, composto
fundamentalmente por operários, camponeses, e pequena burguesia, e cuja direção era
burguesa19”. Mesmo identificando os limites da institucionalidade burguesa, é somente após a
morte de Chibás e o Golpe Militar de Batista, em dezembro de 1952, que Fidel oficializa a
construção do Movimento 26 de Julho, recrutando pacientemente os melhores militantes da
esquerda do Partido Ortodoxo.
Estamos diante um dilema. Se as diversas manifestações históricas do reformismo não
encontram materialidade na Consulta Popular. E se tampouco a recente decisão da Direção
Nacional em realizar experiências eleitorais e aprofundar a combinação das formas de luta em
nossa organização, ou a afirmação de uma política de alianças ampla são expressões do

17 LENINE, V. I. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disponível em:


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm Acesso em 03 de agosto de 2020.
18 LENINE, V. I. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm Acesso em 03 de agosto de 2020.
19 Harnecker, Marta. Fidel. A estratégia política da vitória. Editora Expressão Popular. São Paulo. 2000. P.25.
reformismo, por que em pleno processo assemblear este é um tema que ganha ressonância em
nossos cadernos de debates?
O suposto combate ao reformismo na Consulta Popular é parte do esforço de caricaturar as
posições políticas que identificam como um dos elementos centrais em nossa atual crise partidária
as nossas insuficiências no tema da construção de uma estratégia revolucionária para o Brasil. Por
sua vez, a caricatura tem como objetivo cristalizar determinadas posições no debate interno,
identificando dois supostos grupos: um revolucionário e outro reformista.
Por ocasião da Assembleia Estadual da Consulta Popular de São Paulo, que fez homenagem
ao companheiro José Resende, os companheiros Aton Fon Filho e Ricardo Gebrim, escreveram o
texto “A Consulta Popular jamais será uma seita!”. Neles, preocupados com a polarização existente
no debate organizativo e a crescente cristalização de posições entre dois grupos supostamente uns
mais “rígidos” e outros mais “frouxos” no referido tema, os companheiros escreveram:

É inevitável que se formem identidades de preferência afetiva em qualquer


agrupamento humano. Simpatizamos e antipatizamos com alguém em
razão de inúmeros fatores, nem todos determinados pelas teorias políticas.
O papel de um dirigente é não estimular isso. Um comando coletivo não
pode possibilitar que tais situações se desenvolvam. Entre as qualidades
que se exigem de um dirigente, além da humildade, iniciativa, audácia,
fraternidade e capacidade de reconhecer erros, destaca-se não alimentar a
formação de grupos, preferências em razão de afetividade ou concordância
de idéias. E, sem dúvida, tal requisito está entre as atribuições humanas
mais difíceis já que todos nós temos nossas preferências e simpatias 20.

Se os companheiros permitirem um pequeno chiste leninista. “Como os companheiros


escreviam bem, há cinco anos atrás!”.

3. Afinal, o reformismo é um problema no seio da Consulta Popular?

Por tudo isso, é importante (re)afirmarmos que a atual divergência no seio da Consulta
Popular expressa diferenças de posições entre revolucionários/as. Não coincidentemente, os
debates internos que enfrentamos são muito semelhantes aos enfrentados pelo bolchevismo após
a derrota da Revolução Russa de 1905, e pela Internacional Comunista após a derrota das

20 A Consulta Popular jamais será uma seita! Aton Fon e Ricardo Gebrim. Caderno de Debates da Consulta Popular
São Paulo nº 4. 2015. P. 13
Revoluções Alemãs, Húngara e do Biênio Vermelho italiano. Ambas derrotas profundas que
alteraram significativamente a correlação de forças de forma desfavorável aos trabalhadores/as.
Além disso, a reação melancólica e saudosista de alguns companheiros ao texto “A Consulta
Popular e a luta político-eleitoral”, evidenciam que um dos nossos desafios é superar o “espírito de
círculo”, que insiste em restringir nossos desafios enquanto Consulta Popular aos momentos
iniciais de construção de uma organização revolucionária.
A derrota estratégica sofrida em 2016, e a emergência de um governo neofascista, que
busca acumular forças e transitar de regime político para uma ditadura fascista não nos permite
vacilação: ou damos um salto de qualidade na Consulta Popular enquanto instrumento político,
enfrentando nossas lacunas estratégicas ou perderemos nosso sentido histórico e não
conseguiremos exercer nossa vocação revolucionária.

4. Qual o balanço da Consulta Popular?

Em seu texto “Recalculando Rota: um roteiro para o debate estratégico”, presente no


caderno de debates de março deste ano, os companheiros Ricardo Gebrim e Aton Fon Filho
estabelecem o seguinte problema:

Sofremos uma derrota estratégica com o golpe de 2016 por termos abandonado a
estratégia centrada na conquista do poder. A responsabilidade não pode recair apenas
sobre o PT. Embora por ter sido o detentor da hegemonia nas classes trabalhadores e estar
à frente de sucessivos governos, possua o encargo principal, não se pode eximir as demais
organizações de esquerda, mesmo as que não compartilhavam do rebaixamento
estratégico, pela impotência em construir uma alternativa. Em nosso caso, qual o balanço
que devemos fazer por não ter efetivamente conseguido acumular maiores forças apesar
de contar com uma estratégia teoricamente centrada na questão do poder? 21

Concordo tanto com a caracterização da derrota estratégica, quanto com a problemática


estabelecida pelos companheiros. Por que a Consulta Popular não acumulou maiores forças,
mesmo possuindo uma estratégia centrada na conquista do poder? Esse necessário balanço da
nossa organização deve ser um dos debates centrais da nossa VI Assembleia Nacional. Nossas
lacunas no debate estratégico saltam aos olhos, e foram acumuladas ao longo de nossa história.
Clausewitz, o militar prussiano autor do célebre tratado “Da Guerra”, do qual Lenin foi um
leitor atento afirma que “é simplesmente impossível elaborar um modelo para a arte da guerra
que possa servir como um andaime, com o qual o comandante possa contar a qualquer momento
21 Recalculando Rota: um roteiro para o debate estratégico. Aton Fon e Ricardo Gebrim. Caderno de Debates da
Consulta Popular. Março de 2020. P. 48.
pra se apoiar22”. Pois, sempre que uma organização revolucionária tiver que construir uma
estratégia adequada a sua realidade nacional ela “encontrar-se-á fora do modelo e em conflito
com ele. Não importa o quanto o código seja versátil, a situação sempre leva às consequências a
que já nos referimos: o talento e o gênio operam fora das regras e a teoria diverge da prática 23".
Que possamos coletivamente identificar nossas lacunas enquanto organização e que
possamos enfrentá-las corretamente. Não façamos como aquele cavaleiro andante que de tão
cego passa a ver “gigantes” no lugar de “moinhos de vento”. Afinal, como a sabedoria milenar nos
ensina: “quem não sabe contra quem luta, jamais poderá vencer”.

22 Clausewitz, Carl V. Da Guerra. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2017 P.154
23 Clausewitz, Carl V. Da Guerra. Editora Martins Fontes. São Paulo. 2017 P.154

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