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A Mão do Povo Brasileiro

Qualquer discurso, mesmo que rudimentar, que aborde a possibilidade do conceito


de descolonização no Brasil é bem vindo, já que a mera menção desta palavra tem
sido, e continua a ser, veementemente e vigorosamente rejeitada por não-
indígenas como uma impossibilidade, ou como inaplicável ao Brasil.

O MASP, que, desde seu início, tem sido chamado de “o bastião da arte
Ocidental”, teve como sua exposição inaugural "A Mão do Povo Brasileiro". O
press release afirma: “ ‘A Mão do Povo Brasileiro’ foi a exposição inaugural
temporária no MASP, na Av. Paulista, em 1969, apresentando um vasto panorama
da rica cultura material do Brasil: cerca de mil objetos, incluindo bustos, ex-votos,
têxteis, vestuário, mobiliário, instrumentos, utensílios, maquinário, instrumentos
musicais, ornamentos, brinquedos, objetos religiosos, pinturas e esculturas. … Para
atribuir valor a uma produção frequentemente marginalizada pelo museu e pela
história da arte, o MASP, conhecido por sua coleção de obras Europeias, se engaja
num gesto radical de descolonização. Descolonizar o museu significou repensá-lo a
partir de uma perspectiva ‘debaixo para cima,’ apresentando arte como trabalho.
Neste sentido, uma pintura de Candido Portinari, pintor modernista brasileiro, e
uma enxada, são ambos considerados como trabalho––uma noção que transcende
as distinções entre arte, artefato, e ofício… Esta exposição é tida como um objeto
de estudo e um precedente exemplar de descolonização na prática museológica”.
É louvável que a equipe curatorial tenha recriado esta exposição, em 2016, como
uma tentativa de re-contextualizá-la dentro de um discurso sempre nascente de
descolonização no Brasil.

Mas seria este um “gesto radical de descolonização?”

A descolonização resulta na população indígena no controle sobre suas terras e


suas vidas. Desta forma, o principio básico da descolonização é que aqueles que
foram colonizados devem ser os agentes ativos de seus próprios discursos e dos
processos de descolonização. Em outras palavras, os indígenas devem vir em
primeiro lugar em todos os discursos sobre descolonização no Brasil e, portanto,
devem estar presentes em qualquer discurso sobre descolonização.

A equipe curatorial da exposição original consistia de quatro organizadores: dois


italianos, um descendente de um Bandeirante (assassino dos povos indígenas) e um
ex-estudante de medicina––todos de perfis privilegiados e não-indígenas. A
solidariedade com aqueles que não eram parte da tradição da arte Ocidental é
admirável, no entanto, mantém-se que a exposição foi organizada sem qualquer
voz ativa de perspectivas histórica e cultural não-Ocidentais.
Na recriação da exposição em 2016, encontramos uma re-encenação curatorial do
mesmo dilema: os organizadores são não-indígenas e imagina-se, portanto, que
eles também provenham de um perfil Ocidental e privilegiado.

A escolha museográfica original de tábuas de pinho brutas que servem como


suporte para os trabalhos é problemática, e revela a presunção comum de que as
classes não-privilegiadas são, de alguma forma, “brutas”. (É um erro típico
cometido por visitantes a eventos “populares” de “vestirem-se casualmente,”
(como a classe-média se veste nos finais de semana, quando vai à casa de praia de
amigos) enquanto aqueles que pertencem às classes não-privilegiadas estariam se
“vestindo bem” para estes eventos. Este fato é percebido pelos visitantes
privilegiados como tentativas dos participantes em imitar as classes dominantes, ao
invés de se vestirem da forma mais comemorativa possível – já que durante todos
os outros dias da semana se vestem em roupas de trabalho ––digamos, o oposto
daqueles que se vestem casualmente no final de semana, etc.) Sendo assim, os
relógios pintados à mão de madeira entalhada e os guarda-louças inseridos, por
vezes, entre estas tábuas, parecem estar claramente fora de lugar…como deveriam.
Onde quer que seja possível, em regiões onde a madeira é usada para construir
casas, grande esforço é feito para se cobrir as tábuas cruas com qualquer coisa que
esteja à mão e que seja acessível, como tinta, panos, ou papel (muitas vezes com
jornal e páginas de revista) para parecer mais agradável esteticamente. Até mesmo
as junções onde as tábuas de madeira se encontram são cobertas por faixas mais
finas para barrar correntes de vento, e por elegância. Mas isto não era o caso na
exposição. Era “grosseiro” porque os não-privilegiados são vistos como
“grosseiros....”

As colchas no fundo da exposição forneceram uma dica importante para o seu


problema mais básico: a estética desta exposição, tida como uma das primeiras
iniciativas de práticas de descolonização num museu no Brasil. As colchas, todas de
cores neutras em um fundo branco, mantêm a estética modernista Ocidental da
época e também a sua continuação. Elas são a clara indicação do que há de
impróprio com a exposição de 1969 e com a sua recriação: Quem decide? A todo
momento e em cada vitrine, devemos nos perguntar o que não foi escolhido? Por
que não foi escolhido? A partir das colchas, vemos que as cores neutras foram uma
base importante de inclusão de objetos na exposição. (Estranhamente, há um outro
exemplo de uma colcha mais colorida, mas que, no entanto, não está incluída na
seleção modernista “de bom gosto”.).
A possibilidade de se iniciar um discurso descolonizador é corroída, em seguida,
pela a apresentação dos colares indígenas (sem qualquer tentativa de identificar os
grupos étnicos responsáveis pela produção que, até para meus olhos não-
treinados, são facilmente identificados como, por exemplo, feitos pelos Kayapó e
pelos Rikbaktsa) que são parte de uma coleção de um galerista não-indígena. Os
colares, todos elegantes, e escolhidos primorosamente; são ou brancos, ou beges,
ou pretos. (Sim, existem outras vitrines que demostram uma maior variedade de
cores, mas mesmo estes colares nos levam à pergunta, novamente: o que não foi
escolhido e por quê?)

A equipe curatorial da exposição de 2016 pergunta: “A questão central colocada


pela exposição (e possivelmente subversiva para os olhos dos generais do bom
gosto) é: de que formas podem as histórias da arte e da cultura no Brasil serem
reconstruídas, re-colecionadas, e reconfiguradas, além dos costumes, gostos, e
protocolos das classes dominantes?”. Houve um seminário relacionado à
exposição, mas analisando as biografias dos oito palestrantes
(http://masp.art.br/masp2010/mediacaoeprogramaspublicos_a-mao-do-povo-
brasileiro.php) apenas um deles era indígena e de La Paz, Bolívia. Abaixo da
elegante seção superior flutuante do MASP, há um espaço público agradável para
se escapar da chuva ou do sol. Alguns Guaranis, que vivem em reservas em São
Paulo, também o usam como espaço de encontro. Por exemplo, Jera Guarani, a
jovem líder da reserva Guarani Tenondé Porã, no sul da cidade, algumas vezes
descansa ali entre um encontro e outro. Existem diversas entrevistas e gravações de
suas palestras, e aqui há uma em que ela conversa com um ministro:
https://www.youtube.com/watch?v=pftUMqF0Mzs. Para que o processo de
descolonização comece nos museus do Brasil, a voz indígena deve ser a primeira a
falar. Sem a voz indígena, tais exposições mantém-se como, tragicamente, um
resultado do discurso dominante, não importa o quão bem intencionadas.

Após décadas de discussão sobre a descolonização em tantas regiões do mundo,


com tantas publicações de pensadores brilhantes não-Ocidentais, por que a falta
de agência indígena nesta exposição continua a não parecer problemática no
Brasil? Por que a visão Ocidental da exposição de 1969 continua a ser re-encenada,
em 2016, sem qualquer participação crítica de pensadores indígenas no Brasil e
ainda é tristemente aceitável? Por que a falta de participação dos indígenas ainda é
invisível, e não reconhecida?

Maria Thereza Alves

18/09/2016, São Paulo

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