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OS ANJOS MANDEVILLEANOS

“A razão pela qual uma geração parece confusa é devido ao caos na mentalidade do
espectador.”

- Jean Cocteau

“Esta intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, embala os


cérebros.”

- André Breton

A sociologia, minha ciência, devo reconhecer, tem raízes liberais e capitalistas. Através da
doação do milionário americano, Rockfeller, a escola de Chicago pôde criar matérias
científicas híbridas, cruzadas de níveis significativamente exóticos à estranhos, no mínimo. A
antropologia urbana-metropolitana e a sociobiologia, infortunadas pela sua época, foram
frustadas de se desenvolverem corretamente, pois foram influenciadas por, a dizer poucos
nomes, Hyppolite Taine, Auguste Comte e sua física social, Francis Galton, primo de Darwin,
e Herbert Spencer. Algumas belíssimas exceções de disciplinas trançadas com sucesso podem
ser mencionadas, como Gabriel de Tarde, Antonio Gramsci, Ernst Haeckel.
Simmel é, sem sombra de dúvidas, o mais psicológico dos pioneiros da sociologia. Basta ver
a descrição que ele faz da atitude blasé, termo introduzido em seu A Metrópole e a Vida
Mental:

“A base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos


estímulos nervosos. Uma vida em perseguição desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé
porque agita os nervos até seu ponto de mais forte reatividade por um tempo tão longo que
eles finalmente cessam completamente de reagir. Da mesma forma, através da rapidez e
contraditoriedade de suas mudanças, impressões menos ofensivas formam reações tão
violentas, estirando os nervos tão brutalmente em uma e outra direção, que suas últimas
reservas são gastas. Surge assim a incapacidade de reagir a novas sensações com a energia
apropriada. A atitude de blasé, em sua essência, consiste no embotamento do poder de
discriminar. O significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas são
experimentados como destituídos de substância. Aparecem num tom uniformemente plano e
fosco; objeto algum merece preferência sobre outro.”

Admiro muito o trabalho de Thomas Kühn, em especial a sua obra A Estrutura das
Revoluções Científicas, pois é nesta em que ele dinamita a filosofia positivista, ou ao menos
oferece recursos para explodi-la em pedaços. Em primeiro lugar, ele despe a pseudeia de que
a ciência deve ser neutra e que seja morna, dessaborosa, ausente de novidades, inovações, o
que ele chama, quando há uma insistência de persistir em um paradigma arcaico, de crise de
paradigma, ou seja, o momento em que as ideias passadas são insustentáveis mesmo que com
correções e atualizações de dados, pois estes mais os destroçam do que os reparam, e em
segundo, goza do perfil dos cientistas, sejam eles sociais, matemáticos, meteorológicos,
físicos, químicos, naturais, etc., que procuram ser solucionadores de problemas existentes
com as ferramentas já existentes em seu meio, e jamais construir algo novo. Ouso dizer que
Kühn, superior a que Bachelard, Bergson, Popper foram nesses termos, foi o mais
revolucionário dos teóricos e filósofos da ciência. Graças ao meliorismo, nomes como
Monteiro Lobato criticaram a arte de Anita Malfatti como se correspondessem suas obras à
deformações de nível fisiológico esteticamente negativas aplicados universalmente, e caso
isso não ocorra por observação empírica no mundo exterior, tais abstrações são deformidades,
feiuras, mas não do espaço físico, e sim do espaço neurocerebral, uma deficiência mental.
Mas isso equivale a uma incongruência do pensamento e conhecimento científico, não a uma
realidade científica de fato. Ele jamais poderia dizer o mesmo de M.C. Escher, pois suas artes
tem comparáveis reais conhecidos pela comunidade científica, como a fita de Möbius e a
garrafa de Klein, ou a Hilma af Klint, cujas pinturas, precursoras do abstracionismo, também
podem ser consideradas precursoras dos fractais de Mandelbrot, formas espirais infinitas
autossemelhantes mas não idênticas que produzem imagens moleculares com excedentes
assimétricos dependentes para a formação das imagens congruentemente similares, que foram
descobertas pelo matemático dos sete instrumentos da ala de pesquisa pura da International
Business Machines Corporation, Benoit Mandelbrot. Por isso tudo, uma análise da obra de
Simmel e da escola de Chicago deve ser cautelosa, reconhecer o contexto e condição de suas
épocas mas também, como um modernista e contemporâneo por excelência, trazer a tona
estes tesouros à superfície, não apenas desmanchar o sólido em partículas desintegradas no
espaço, mas fazer a matéria, a disciplina passar por todos seus estados possíveis, todos seus
estágios da flecha do tempo ou do projétil de direção caótica. A psicologia de Simmel é
sinônima das filosofias da psiquê mais atuais, em verdade, ela em pouquíssimo está datada,
envelheceu sem se apodrecer, apenas maturar em estado impecável. Vejamos alguns paralelos
com a ciência cognitiva e neurociência moderna. Na multidão, há um caos sonoro, e um
ouvinte sensível perceberia suas fugazes sutilezas com o mesmo ar estrondeante e
estupefaciente que balizas desastrosas demolindo paredes, ripas e barras de ferro caindo a
cem metros de altura e ricocheteando nos andaimes ecoantes, ecóicos como obras de arte
balísticas dentro de uma cela a prova de contatos exteriores, e imagine esse caos como uma
complexa rede de linhas telefônicas que começa como uma bola de lã ou um nó górdio, cujas
linhas surgem de lugares de origens diferentes, não necessariamente do início. Seus
receptores sonoros, para a captação da mensagem de quem desejas compreender, não irão
conseguir abafar os ruídos exteriores, muito menos ajustar ou anular suas frequência para a
predominância de uma única linha sonora. Invés disso, a quantidade de invólucros sonoros é
constantemente ganhada e perdida enquanto a qualidade delas, suas mensagens, é inalterável
e transmitida em degraus, por assim dizer. Assim sendo, imagine que há uma distância factual
entre você e o sujeito com quem quer se comunicar, mas invés dos ruídos permanecerem
como ruídos, seus receptores auditivos de fluxo aferente e eferente criam, em interação com o
ambiente, um sistema atrator. Atratores são pontos centrífugos - de direção irreversível
circular ou não - que conduzem seus elementos até uma estabilidade final, por exemplo: um
palíndromo não-linear, que a palavra semântica não seja formada a mesma por sua inversão,
mas por colocações específicas que precisam ser repetidas no mínimo cinco vezes para obter
uma forma racional morfofonológica, alcança sua estabilidade final apenas quando o
significado é alcançado. Entretanto, na metrópole, o caos civilizatório não permite que haja
apenas um par de indivíduos conversando, ou melhor, a quantidade ideal de ouvintes e
discursantes, a datilologia e a datiloscopia se distorcem no que Claude Shannon descobriu
serem de ruídos para os canais de comunicação, estática em eletrônica, ou interferência ou
ainda fios cruzados, e doravante. Isso significa, na prática, que máquinas tipográficas, e os
próprios corpúsculos sinápticos do ser humano, absorvem sons que, como em radiologia,
parecem estar ruidosos, mas o próprio corpo, e a própria máquina tipográfica tende a ajustá-lo
a frequência inteligível, mas não necessariamente tornando a frase em que ela se insere
inteligível, apenas a palavra individualmente. Alguns sons escapam, mas o significa reina, e
portanto, o aparelho nervoso capta os sons em abundância como enxertos substitutos do som
desejado de se ouvir, como se o “dó” fosse, inconscientemente, detectado como a sílaba
correta, mas não fosse ouvida pelo discursante alvo, mas outro dissera-a exatamente, então
ela é usurpada e acrescentada no discurso do discursante quase mudo como substituto das
palavras dele como autor. Isso reforça a tese de que a memória funciona menos a partir de
uma base inconfiável de eidética mnemônica flexível na troca de palavras e mais como uma
base rigorosa, ortodoxa, dogmática de termos que, embora nós não nos rememoremos deles
com facilidade, nós impomos uma ética sobre ela, e não me refiro a uma ética foucaultiano ou
spinozista, pois esta ética não tem raízes etimológicas: ela é, fundamentalmente, o tanto de
profunda que é na medida do quanto a memória é capaz de escavar, não em sua arqueologia
de saber, mas na sua arqueologia de obtenção de matéria prima de construção, como uma
indústria petroleira, esta que pode ser obtida através da destruição de tudo o que já pôde ser
construído. Não me agrada o termo “raízes” tanto na arqueologia, paleontologia, etimologia
quanto na filosofia. Eu sou brasileiro, e esse termo não faz sentido para o meu povo, pois sou
um eupátrida apenas na medida em que minha memória escava a si própria, não em busca do
ancestral, mas em busca de seu próprio cadáver a sete palmos. Meu professor de filosofia
costumava me perguntar, além de muitas outras perguntas intrigantes, qual era a minha
palavra da língua brasileira favorita, e eu sempre hesitava a ponto de jamais responder a essa
pergunta. O motivo disso é que para toda palavra que eu encontrava, havia uma raiz de outra
língua por trás dela. Não faz sentido eu admitir uma origem indígena, pois quem disse que a
origem jaz no início? Não necessariamente, assim como raízes não brotam do núcleo da
Terra, mas sim pousam sobre o solo alcançando o tanto que possível de profundidade para
sugar nutrientes. Malba Tahan e Oswald de Andrade, modernistas-semanistas, influenciaram
meu conceito de brasilidade, a hecceidade brasileira. A identidade se forma a partir de uma
atração de coisas exteriores que, ao toque do nosso interior, se desmancham, suas cadeias são
quebradas, suas formas perecem, e dessas cinzas, escombros, nasce uma face nova, sem
precedente. A ética memorial, por isso, se instala na configuração do ser, especialmente o
metropolitano cuja psiquê é caótica, de forma que ela aparente ser como uma biblioteca de
seções, alas, capas, páginas, estantes, corredores, andares sem nomes, numerações e
indicações, mas que o leitor, que nada mais é do que o processo de rememoração,
retroalimentação, já leu todas as obras presentes, sendo capaz de reconhecer qualquer uma
das obras apenas de ler a primeira página, abrindo e folheando as obras, e que, quando
provido apenas de sua memória sem tateamento, se orienta por noções de ser e não-ser, certo
e errado, nesse tempo ou naquele, sem contudo precisar lembrar do conteúdo propriamente
dito, mas de se é este o conteúdo que há ou se não o é. A memória, na metrópole, sofre abalos
que, se na vida rural ela rememorava as coisas de modo independente, as rememora agora de
modo visualmente simbiótico por sua celeridade, que como se reunisse todas as cores em um
pião cineticamente intensificado, forma uma imagem homogênea pela própria
desomogeneidade em que ele se encontra do tempo. Passe uma série de imagens na frente de
um espectador e aumente a velocidade com que elas são passadas, intercalando imagens
diferentes ou até mesmo a mesma imagem, mas com a velocidade aumentada cada vez mais,
o que ocorre em anúncios, propagandas, telas grandes, televisões em lanchonetes, rádios de
ilustração psíquica e, ainda que a cobaia do experimento perceba que há algo de errado, e
saiba o que é esse errado, ela não pode deixar de dissociar de seu campo de visão a imagem
alienável, viral que ela mesma formou pela simbiose cinética a qual apareceu em sua psiquê.
Destarte, o sujeito adquire precauções linguísticas sob as vivências na metrópole. Ele não
utiliza aspas para se referir aos seus semelhantes de espécie publicamente, mas em certas
situações a só o faz porque pensa neles como abstrações, e usa traços e parênteses
sinaleticamente para amenizar o nível de literalidade em público, pois sabe que tudo o que
pode dizer, sob a vivência na sociedade civil, deve ser relativamente surreal, onírico,
humorístico, lúdico e falseável, jamais literal e concretamente absoluto. Sua linguagem,
assim como todo ato que vos procede, tal a matemática tem a geometria, precisa ser
acompanhada de um equivalente gráfico, visual, simbólico, pois sem essa forma, ele não
possui valor real tampouco utilidade prática. Simmel escreve que:

“Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas
reações interiores quanto as da cidade pequena, a pessoa ficaria completamente atomizada
internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável. Como resultado dessa reserva,
frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante
anos. O aspecto interior da reserva exterior é uma leve aversão, uma estranheza e repulsão
mútuas, que redundarão em ódio e luta no momento de um contato mais próximo, ainda que
este tenha sido provocado.”

De fato, porém há ressalvas. Não sou um psicólogo emocional como Henri Wallon nem um
ultraromantista alemão para superestimar o papel das emoções como razão superior do
porquê há um ódio preescrito de mim pelo meu vizinho ou o porquê de, no caso de presenciar
um incêndio na casa vizinha, ir socorrê-lo sem sequer conhecê-lo profundamente, mas sei que
a razão de socorrer ou assassinar um desconhecido pode ser tudo, menos amor e ódio e tantas
outras lateralidades sentimentais além do fisiológico. Ao contrário de Simmel, não considero
os acontecimentos como responsáveis da execução ou da salvação das pessoas, pois trato de
desfechar suas existências dentro do teatro que elas mesmas escrevem e julgá-las como suas
próprias atoras e autoras de si. Jamais pensaria que foi um tornado, um incêndio, um
alagamento, um meteoro, uma erupção vulcânica que causou a morte de pessoas ou a
solidariedade entre elas. Antes isso, são elas que causaram uma causa impessoal para
promover um efeito pessoal entre elas. É tudo de autoria pessoal e humana, e se há uma
distinção entre artificial e natural, é de mero caráter de qual precedeu qual, pois de um modo
ou de outro, tudo o que a natureza faria pode ser feito pelo homem e vice-versa, pois são
partes um do outro. A reserva de energia, economizada, poupada pelos sujeitos, não advém
de razões de embotamento emocional, de embolia ao vegetamemento fisiopsicossocial, mas
do fato que, na metrópole, quem é capaz de drenar poder é superior a quem demonstra
excedentes de poder, ainda que aparentemente infinitos e de labutância stakhanovita. Nenhum
governante futuro conseguirá triunfar pelas demonstrações de poder, mas pelo consumo de
poder. Eles se deleitarão pelo consumo de êxtases, haxixes, narcóticos, opiáceos,
psicotrópicos sugadores, absorventes de poder, sem todavia precisar apresentar uma vez
sequer amostras de seu poder, mas apenas de seu consumo. Tratam-se de apresentações
pancreáticas de consumo de poder, e não de exibição dele. Não haverá mais, nos séculos
seguintes, governança nas metrópoles por exibição de energia, mas por consumo de energia, e
a dizer, energia cinética, de moção, o custo a se pagar pela sua logística e deslocação de ser,
de suas identidades, máscaras, faces, perfis, documentações. O conceito de energia cinética é
idêntico ao da fisica da mecânica quântica-relativística fundada por Paul Dirac. Posto em
termos simples: o tempo é relativo, não só espacialmente, mas individualmente, especiamente
e topologicamente. Por quê? Porque cada ser vivo consome, literalmente, o tempo de forma
quantitativamente diferente, embora o tempo seja eterno, infinito, e que como Prigogine uma
vez escreveu, “O tempo precede a existência.”. Em Micrômegas, o filósofo Voltaire, após ler
os cadernos de Leibniz e Newton, coloca de forma bem objetiva e didática como ocorre o
fenômeno do consumo de energia cinética: Micrômegas leva dez piscadas humanas para
piscar uma vez seus olhos. Isso significa que ele exige uma quantia significativamente maior
de energia cinética para realizar movimento, mudança em si, e que são dez vezes o de um
humano. Após fazer isso, não há compensação, devolução de energia, é como se a drenagem
dos recursos fosse para um umbral sem volta, uma dimensão oculta. Não é como a fisica de
Galileu, em que quanto maior a distância, maior compensada a velocidade porque ele
imaginava que a cronometagem sempre se manteria inalterável independente da distância
percorrida, por alguma lei exótica da inércia, e que em exemplos práticos, caso eu disparasse
um projétil a partir de um ponto, sua velocidade se manteria a mesma independente da
distância entre o ponto do atirador e a do alvo e seu fator delta. A aplicação sociológica disso
não deve ser como a física social de Comte, pois ele não compreendia a física, e até mesmo
sua definição de física era irracional, incongruente. A aplicação em termos lógicos é que o
custo para o movimento de ações sociais e psicológicas tende a aumentar para os sujeitos que
representam um grupo maior de sujeitos do que ele mesmo, e são encarregados de maior
responsabilidade simbólica. Esse comportamento é invertido: o sujeito metropolitano servil,
ao contrário do sindicato que costuma representar os trabalhadores, precisa representar
produções em série, modas da época, dispositivos (no mesmo sentido que Foucault, Han e
Agamben empregam) alienáveis. Um levantamento de dados confiável demonstrará que a
predominância de transtornos e doenças psíquicas é maior, incomensuravelmente maior nas
metrópoles do que nas zonas rurais e nativas. Aí entra a escola de Chicago e sua antropologia
urbana-metropolitana. Todos os sujeitos metropolitanos sofrem, por assim dizer, de um
complexo de hipocondria, um desnorteamento de identidade e senso de direção onde noções
como as dimensões euclidianas são relativas e indeterminadas cohomologicamente,
derivantes do fato de que na cidade todos os tipos de trabalho tendem a se tornar uma
profissão, quer dizer, a ser extremamente organizados, a incluir posições socialmente
definidas, a ter regras de conduta que regulam o trabalho nessa ocupação. Ao mesmo tempo,
cada profissional avança numa dependência extraordinária um do outro, sendo que não basta
mais ter em mãos o seu perfil inato para sobreviver no ambiente de trabalho, como também é
preciso avaliações psicológicas, check-ups de saúde, testes de nível de intoxicação corporal
por uso de drogas e álcool, e isso progride em um ritmo que a doença acaba se descobrindo
como uma parte integral do sujeito. Ela é mais importante do que seu nome, sua identidade,
sua nacionalidade, sua genealogia familiar, porque é uma parte que luta para adquirir forma
em um mundo onde sua matéria é estranha, incompatível. É como se um organismo
incomposto de átomos se inserisse no nosso universo, e imediatamente seria decomposto,
impossibilitado de se formar, como um embrião deficiente, ou mais precisamente, um
embrião de uma espécie alienígena sendo gestado em útero terrestre. A patologia, por isso, é
buscada com o mesmo ardor que os poetas buscavam o objeto de paixão para suas obras: não
porque ela é oposta ao bem estar são e sadio, mas porque cada doença difere uma da outra
quando se trata de um transtorno, mesmo quando é o mesmo, pois o transtornado tem a
capacidade de tornar única sua condição, seja pela comorbidade, seja por novos fatores
mutativos. Essa é, ao que parece, o novo caráter da liberdade, que segundo Simmel:

“Seguir as leis de nossa própria natureza é liberdade, e só se as expressões dessa natureza


diferirem das expressões de outras. Apenas nosso caráter inconfundível pode provar que
nosso modo de vida não foi imposto por outros. A concentração de indivíduos e sua luta por
consumidores compelem o indivíduo a especializar-se em uma função na qual não possa ser
prontamente substituído por outro.”

Se Edward Tylor, na antropologia, foi o responsável por demonstrar cientificamente que não
há cultura, mas culturas, Simmel demonstrou que, mais interessante do que afirmar que não
existe natureza humana, não existe natureza, mas sim naturezas, e naturezas assintóticas, que
ameaçam umas às outras as danificando sem contato, sem choques diretos. A propósito disto,
a escola de Chicago foi notavelmente influenciada pelo estruturalismo de Lévi-Strauss, como
fica claro na passagem de Howard Becker:

“Decorre que um sistema de parentesco é formado pelas ações de pessoas que fazem as
coisas que se supõe que parentes devem fazer, e que, enquanto o fizerem, teremos um sistema
de parentesco. Quando não o fizerem mais, o sistema de parentesco se torna outra coisa.”

O estruturalismo straussiano fora aplicado em muitos estudos metropolitanos de gangues de


rua e de redes de prostituição, a dizer, os mais interessantes dos estudos da escola de Chicago.
Gostaria de terminar esta resenha com uma conclusão especial e de certa forma, pessoal.
“Escrever sobre o que já sabe é se recusar a aprender.” me dissera meu professor após muito
insistir que eu não estava tratando sobre o que ele solicitara. Compreender, descrever, criticar,
eis a linha linear de uma ciência, a qual eu buscava redefinir, revolucionar pela minha
natureza caótica. Caos, de origem grega, é talvez minha palavra favorita. Se escrevo sobre o
que eu já sei, devo dizer que não sei nada e sei tudo ao mesmo tempo, pois tenho a habilidade
de desconhecer o que conheço, de imprimir em termos ocultos, criptoglifos o que é do
alfabeto e dicionário linguístico do senso comum e levá-los ao prolixo e complexo, e
vice-versa. Ao ler Simmel, a primeira impressão que tive era a de que um fisiologista de
formação decidiu escrever sobre sociologia. Partes anatômicas, em especial os órgãos, são
usados como analogias ao estado, à metrópole, coração e cérebro, emoção e intelecto. O
corpo, eu o defino como um agente simétrico organizado por princípios de equivalência,
cujas forças o fazem funcionar desde que haja reciprocidade, e a menor cessão de interação
de forças faz com que ele pereça. Por isso, e apenas por isso, eu me recuso a concordar com
Simmel sobre a apatia que faz com que o ser humano sobreviva na metrópole, pois é
precisamente o contrário, a existência de órgãos emocionais que o faz ser um transtornado
sadio, positivo. É preciso muita energia demandada pelo ódio para que ele seja odioso por
tempos prolongados, e graças a isso, planos vingativos, o qual a revolução proletária é uma
das filhas, tendem a se anular, e apenas o amor pode sobreviver. Não se engane, não me refiro
a um amor inocente ou ingênuo, bondoso e cavalheiresco, gentil. Me refiro ao mesmo amor
que fez com que os maiores assassinatos em massa fossem cometidos. É preciso muito amor
para que haja carnificina, pois o amor é uma força de maior reciprocidade e equivalência do
que o ódio, e é mais alienável. Sem o amor por um ideal de ser humano, que se faz presente
nas altas classes, elegantes e chiques da metrópole ou nas eugenias evolucionistas, não se
daria o ódio da exclusão pelo que não está incluso nesse objeto de paixão, de amor. As
patologias, presentes sem precedentes na metrópole e em formas extremamente radicais e
perigosas, nada mais são do que perturbações nesses excessos emocionais que tornaram as
paixões da alma corruptas.
A ecologia, uma ciência da escola de Chicago, não fora usada na acepção hodierna do termo,
mas sim como o estudo da competição pelo espaço na natureza, e em sua secessão
protomutante, na metrópole, que encontrara dispositivos. O dispositivo é qualquer coisa que
tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.
Isso, vejo, é uma questão do livre arbítrio além do autoritarismo, chantagismo, questão de
gênero e sua liberação, mas uma extensão entrópica da própria liberdade e
governamentabilidade, a subjetivação de si. A liberdade sempre existiu, existe e existirá, a
questão é: você quer sofrer as consequências da sua liberdade a que prazo? e se sim,
suportaria elas a um longo, eterno prazo? Laplace e Newton, assim como Montesquieu e
Descartes, influenciados pela imagem de um Deus que, para mim é muito pior que um Deus
maligno, é um Deus controlador e determinista, semearam no senso comum que dependendo
da previsão das condições iniciais, todo o movimento do mundo, da humanidade, da
sociedade poderia ser previsto. Isso é uma falácia, bem conhecida pela descoberta de sua
refutação, a dependência sensível das condições iniciais. Mas para mim, o dilema fora sempre
este: a liberdade não é anulada pela previsão dos acontecimentos, como sonha as ciências
naturais e sociais, em especial a escola de Chicago, mas sim pela impossibilidade de prever a
sucessão dos mesmos, pois isso faz com que desconhecemos a identidade da própria
liberdade, do caos da previsão dos acontecimentos. O máximo que podemos é jogar dados e
apostar nos resultados, e para mim, jogar nesse caos social e natural é um prazer e tanto, sem
ceder, entretanto, às ingenuidades quanto a pontos relevantes a se considerar como eleições,
golpes, partidos, logística conspirados. Minha linguagem pode ser confundida com a
pré-científica, mas a isso, parafraseio Roberto Freire: “Não existe mais diferença hoje entre
um poeta e um cientista, assim como é impossível separar energia de matéria. O cientista me
provou que sou um ser original e único no universo. Nunca houve, não há nem haverá nunca
ninguém igual a mim.”
Skátos Dietmann Von Gott

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