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MEU OFÍCIO, MOEDA E SUSTENTO: PROPRIEDADE DE

OFÍCIOS NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO NO PERÍODO


POST-BELLUM1
Aledson Manoel Silva Dantas2

Resumo: Um aspecto importante da administração dos impérios coloniais ibéricos da


Idade Moderna foi a venda de ofícios, ou sua doação em propriedade. No Império
português, embora esta prática não se tenha generalizado, possuía uma relevância
econômica e social. Na segunda metade do século XVII, a concessão de ofícios em
propriedade foi um elemento da política remuneratória da Coroa portuguesa no norte
do Estado do Brasil. Alguns indivíduos tiveram, assim, a oportunidade de se inserirem
no aparato administrativo e de garantir uma fonte de renda. O ofício adquirido poderia
servir como símbolo de determinada posição social, ou poderia conferir prestígio a seus
detentores. Em Pernambuco, os ofícios da Fazenda Real foram concedidos em
propriedade, refletindo as relações dos proprietários com a Coroa portuguesa e a sua
posição dentro da sociedade. A importância de uma propriedade de ofício no contexto
social e familiar são questões que este estudo pretende discutir. Para tanto, analisar-se-á
as estratégias de patrimonialização e de manutenção da propriedade por parte das
famílias que exerceram os ofícios de escrivão e de Provedor da Fazenda Real de
Pernambuco, na segunda metade do século XVII.

Palavras-chave: Propriedades de ofício; redes familiares; prestígio social.

Abstract: An important feature of the administration of the Iberian colonial empires in


the Early Modern period was the sale of bureaucratic field’s official positions, or its
concession into property. In the Portuguese Empire, although this practice has not been
widely implemented, it had an economic and social relevance. In the late the
seventeenth century, the concession of official positions into property was an element of
the Portuguese crown remuneration policy. Several petitioners had, thus, the
opportunity to insert them in the administrative apparatus and ensure a source of
income. The property of a post could confer social status and prestige for its owners. In
the captaincy of Pernambuco, the positions responsible for the Royal Treasury were also
granted into property, reflecting the relationships of the owners and his social
importance in the Portuguese America society. The relevance of these properties in the
familiar context is an issue that will be discussed in this article. It intends to understand
strategies for appropriation and maintenance of property, which was endeavored by the
families who served the Portuguese crown as clerical and as Treasurer Chancellor of the
Captaincy of Pernambuco’s Royal Treasury, in the late seventeenth century.

1
Recebido em 10/05/2014. Aprovado em 08/08/2014.
2Bolsista de Iniciação Científica, PROPESQ-UFRN, e-mail: aledsondantas@gmail.com. Trabalho feito sob
orientação da professora Dra. Carmen Margarida Oliveira Alveal.

Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 230-247.


Meu ofício, moeda e sustento

Keywords: Properties of official posts, social networks, social prestige.

Ofícios e patrimonialização no império português.

Com a ascensão do duque de Bragança ao trono português, em 1640, houve uma


reconfiguração das relações entre reis e vassalos. A nova monarquia portuguesa foi
fundada sob um pacto político entre a Coroa e os restauradores do Ultramar e
“sustentado pela cultura política do Antigo Regime” (BICALHO, 2000, p. 21-34). Cultura
esta que se embasava na “economia de mercê” (BICALHO, 2000)3. Nas conquistas e no
reino, uma de suas manifestações, o exercício de ofícios e cargos, adquiridos por meio de
compra ou doados em propriedade, permitia ao indivíduo ascender socialmente.
A venda de ofícios, cargos e títulos no contexto da monarquia portuguesa é um
tema ainda pouco estudado, muito em razão da alegação do baixo impacto dessa prática
no Império português. Desde a década de 2000, entretanto, novos estudos vêm sendo
realizados sobre a prática da venalidade em Portugal e nas colônias (CHATUVERDULA,
2011, p. 268). Os trabalhos de Fernanda Olival avançam neste sentido, pois são
importantes para a compreensão dos mecanismos de venda de hábitos de ordens
militares e de serviços pela Coroa portuguesa. Segundo esta autora, no século XVII o
tema da venalidade emergia no discurso político associado a “conjunturas de afirmaç~o”
e de conquista de legitimidade por parte de D. João IV. Os partidários dos Bragança
acusaram os Filipes de atropelarem as “tradições portuguesas” ao venderem cargos e
honras (OLIVAL, 2003, p. 743-769).
Para a monarquia portuguesa havia razões para não generalizar este tipo de
prática. De acordo com Roberta Stumpf, a monarquia portuguesa não se utilizou muito
das diversas formas de venalidade por questões culturais e históricas. Os reis

3Por “Economia de mercê” entende-se a concepção de que o rei deveria recompensar os seus vassalos por
serviços prestados, na busca destes por prestígio e ascensão social. As mercês régias criavam, segundo
Bicalho, um ciclo “de obrigações recíprocas: disponibilidade para o serviço régio; pedido de mercês ao rei
em retribuição aos serviços prestados; atribuição/doação de mercês por parte do rei;
engrandecimento/atribuição de status, honra e posição mais elevada na hierarquia social devido às
mercês recebidas; agradecimento e profundo reconhecimento/reforço dos laços de submissão, lealdade e
vassalagem; renovada disponibilidade de prestar mais e maiores serviços ao monarca”. Para mais, ver:
OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal
(1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, XAVIER, Ângela B. e HESPANHA, António Manuel. “As Redes
Clientelares” In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), vol. 4. Lisboa:
Editorial Estampa, 1993 pp. 381-393.

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Aledson Manoel Silva Dantas

portugueses não tiveram que recorrer muitas vezes a uma quantidade grande de
recursos, o que se explica pelo menor número de guerras que Portugal ingressou se
comparado a Espanha. Contribuíram, também, “as fortes censuras morais, sobretudo dos
tratadistas” (STUMPF, 2011, p. 284). Segundo Stumpf, além da depreciativa ligaç~o com
os governos dos Felipes, preconizava-se que

um rei mercador que premiava os homens cuja riqueza era o principal,


senão o único, atributo qualificador, não condizia com a imagem de um
monarca justo que agraciava com cargos e honras os homens
beneméritos de elevada condição social (STUMPF, 2011, p. 284).

Junta-se a estas ideias, a concepção de que um homem que comprasse


determinado ofício poderia não ser apto para exercê-lo, pois interessar-lhe-ia mais a
recuperação do investimento feito do que o bom exercício e o bem da república
(STUMPF, 2011). Apesar da pouca quantidade de vendas de ofícios, muitos foram
doados em propriedade, existindo a possibilidade de sua patrimonialização, garantida
pelo direito de hereditariedade aos filhos, embora não fosse automático (STUMPF,
2011). O “costume doutrinal”, porém, proporcionava a um filho a garantia do exercício
que pertencia ao seu pai, conforme afirma Susana Münch Miranda (MIRANDA, 2011, p.
93). Essa seria uma característica marcante do caso português. Na América espanhola,
segundo a americanista Ángel Sanz Tapia, não se pode verificar nas provisões para os
cargos da Fazenda Real da Audiência de Quito “la tan reiterada idea de la propriedade
del oficio como patrimônio familiar” (TAPIA, 2003, p. 646). Segundo seus argumentos,
somente é possível perceber em um dos exemplos que analisa em seu artigo La venta de
oficios de hacienda en la Audiencia de Quito (1650-1700). A autora reitera, ainda,
afirmando que a Coroa espanhola mantinha um controle rigoroso sobre a sucessão dos
ofícios, cabendo aos herdeiros de algum proprietário falecido realizar novamente a
compra do cargo.
Um trabalho clássico que atentou de uma forma geral para o caráter patrimonial
da administração do império português, na América , é o de Raimundo Faoro. Em, Os
Donos do Poder, tendo como ponto de partida uma matriz weberiana de análise, o autor
afirma que Portugal baseava-se em um patrimonialismo, uma “organizaç~o política” que
se fechava sobre si própria e de car|ter “marcadamente burocr|tico” (FAORO, 2001, p.
102). Uma burocracia, entendida

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Meu ofício, moeda e sustento

não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da


apropriação do cargo — o cargo carregado de poder próprio, articulado
com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência. O
Estado ainda não é uma pirâmide autoritária, mas um feixe de cargos,
reunidos por coordenação, com respeito à aristocracia dos
subordinados (FAORO, 2001, p. 102).

De uma forma parecida, e mais crítica em relação à colonização portuguesa em terras


americanas, o sociólogo Sergio Buarque de Holanda apresenta um aspecto importante
do funcionalismo da administração colonial, a busca pela garantia dos benefícios
pessoais e dos direitos adquiridos. Segundo este autor, para

o funcion|rio “patrimonial”, a própria gest~o política apresenta-se


como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos
e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais
do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no
verdadeiro Estado burocrático, em que prevalece a especialização
das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas
aos cidadãos (HOLANDA, 1995, p. 146).

Embora não se pense do modelo burocrático português da mesma forma que


Faoro, como algo desprovido de uma racionalidade, tem-se, assim, uma das principais
características da administração portuguesa: a apropriação dos cargos e ofícios. Essa
apropriação, contudo, não redunda postura de simples rapinagem daqueles que
recebiam os cargos. A historiadora Fernanda Olival, em As Ordens Militares e o Estado
Moderno, afirma que a concessão de mercês construía laços de solidariedade e
vassalagem entre a Coroa e os vassalos agraciados (OLIVAL, 2001). A “economia de
mercê” legitimava o car|ter recompensador do rei, pela garantia da premiaç~o dos
distintos corpos sociais, assegurando a obediência e o amor dos vassalos (OLIVAL,
2001).
Os ofícios analisados neste artigo foram doados mediante os serviços de duas
famílias nas guerras contra os holandeses: o de escrivão e o de Provedor da Fazenda
Real. Como será visto, os indivíduos que exerceram estes cargos empreenderam
estratégias para a manutenção da propriedade, utilizando-se dela como instrumento de
captação de renda e de ascensão social. Nestas estratégias estão inclusos casamentos e
vendas encobertas pelo sistema de nomeação de substitutos. Todos estes aspectos
poderão ser contemplados na análise que se segue.

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Aledson Manoel Silva Dantas

Entre casamentos e rendas

A sucessão do ofício de escrivão da fazenda não seguiu uma sucessão masculina,


pois foi herdado seguidamente por mulheres. Isto significou que, a cada geração, era
necessária a absorção de homens de outros círculos familiares e a concessão do ofício
como dote. Outro fator que influenciou nas estratégias empreendidas foram os
problemas de saúde que um dos proprietários sofria. Repetidamente, este tinha que
nomear serventuários, com os quais tinha que repartir parte da remuneração que
tinham direito.
O ano de 1698 foi crucial para as famílias que possuíam a propriedade do ofício
de escrivão da Fazenda Real de Pernambuco. O que estava em questão era não somente
a conservação de um status, ou de posição social adquirida, mas o próprio sustento
familiar. Muito provavelmente, o exercício destes ofícios proporcionou aos que o
exerceram um incremento de qualidade e a sobrevivência social de suas linhagens. É o
que se depreende da história de Teófilo Homem da Costa e de sua filha dona Helena
Maria de Melo, proprietários do ofício de escrivão. Este ofício, na capitania de
Pernambuco seiscentista, anexava a função de escrivão da matrícula da gente de guerra
da capitania, o que é um reflexo do período de guerras que o norte do Estado do Brasil
enfrentou com a guerra contra os holandeses. Isto significa que o escrivão da Fazenda
Real era responsável pelo controle das inscrições dos soldados das tropas da capitania,
além dos registros das ações da Provedoria.
No dia 7 de agosto do mesmo ano, Helena de Melo buscou garantir que
continuaria recebendo as rendas do ofício que pertencia ao seu pai, recém-falecido,
solicitando que o mesmo fosse doado em propriedade para o seu marido Antonio da
Fonseca Malho4. Teófilo da Costa era um homem que sofria com doenças, que pareciam
ser crônicas. Nos 38 anos, entre 1660 e 1698, o ofício fora exercido por serventuários na
maior parte do tempo. Já no ano de 1665, Teófilo Homem requeria ao Conselho
Ultramarino para poder nomear um substituto, tendo em vista os “v|rios achaques e
doenças que lhe sobreviera”5. Ele teria contraído os problemas de saúde durante uma

4 Arquivo Histórico Ultramarino-Pernambuco, Papéis Avulsos, Caixa. 18, Doc. 1761.


5 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 757.

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Meu ofício, moeda e sustento

jornada que fez para a Inglaterra, na qual acompanhou a “Rainha da Gr~ Bretanha”,
segundo suas próprias palavras6.
Isto se repetiu mais duas vezes, em 1666 e em 16727. Nesta primeira data, Teófilo
Homem comentou que não teria conseguido voltar a exercer o ofício e pedia novamente
para nomear um serventuário. Na segunda, queixou-se que vivia de cama e “com
manifesto risco de sua vida” por n~o haver em Pernambuco os remédios que
necessitava. A nomeação de um substituto era crucial para a vida de Teófilo Homem da
Costa e sua família. Somente tinha uma única filha e, afirmava, não possuía outra renda
que n~o fosse os vencimentos provenientes do ofício “para remediar sua casa”8. Além
disso, enfatizando o dever do rei recompensar os seus leais vassalos, afirmou que havia
“gastado nos sérvios de Vossa Majestade o que de seus Pais lhe ficou”9.
Poder nomear um substituto para o exercício de algum ofício era uma das
vantagens de ser proprietário. Segundo Roberta Stumpf, em seu importante estudo
sobre nobilitaç~o em Minas Gerais, “era possível ceder a serventia dos mesmos [ofícios]
a terceiros, o que garantia aos proprietários rendas adicionais sem que precisassem
exercer os postos para os quais foram agraciados” (STUMPF, 2009, p. 98-99). De outra
forma, “muitos entregavam suas propriedades aos cuidados de terceiros para ocuparem-
se de funções muito mais notórias, embora fossem necessariamente remuneradas”
(STUMPF, 2009, p. 122). Não se tem muitas informações sobre os serviços prestados por
Teófilo Homem da Costa. Até o momento da pesquisa, não foi encontrado nenhuma
informação que possa indicar que este recebeu algum hábito de ordens militares ou foro
de fidalgo, por exemplo. Teófilo declarava, entretanto, ser uma “pessoa de qualidade” 10.
Pode-se chegar a um contorno mínimo do seu perfil social por meio da análise do círculo
de relações estabelecidas por ele, ou seja, de sua rede de sociabilidade.
Teófilo adquiriu, provavelmente em 1660, a propriedade de ofício de escrivão da
fazenda como dote recebido pelo seu casamento com dona Isabel Mendes de
Vasconcelos. Anteriormente à 1660, o proprietário do ofício era Manoel Mendes de
Vasconcelos, tio do pai de Isabel de Vasconcelos, também chamado Manoel de
Vasconcelos. Posteriormente, o primeiro Manoel renunciou ao ofício em favor de seu
sobrinho, pai de dona Isabel. Em 1659, esta pedia ao Conselho Ultramarino que

6 Idem.
7 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 798; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 10, Doc. 973.
8 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, Doc. 798.
9 Idem.
10 Idem.

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Aledson Manoel Silva Dantas

concedesse a propriedade em questão a quem se cassasse com ela. Afirmava que o pai, já
falecido, deixou-a muito pobre, “sem outro remédio mais que a aução do dito ofício, e
por que está contratada para casar com um capitão benemérito que tem servido a Vossa
Majestade” 11[grifos do autor]. O Casamento de Teófilo e Isabel foi, então, a formação de
uma aliança, um “contrato”. A propriedade de ofício serviu de mediadora e de elemento
de acordo nesta troca.
Isabel Mendes de Vasconcelos possuía mais três irmãs e, segundo seus
argumentos, não havia quem quisesse se casar com elas, talvez por não terem dote.
Tinha, assim, a legitimidade de ser a primeira a casar para poder reclamar a propriedade
da família. No requerimento de Isabel de Vasconcelos, consta que a propriedade de
ofício pertencia metade à sua mãe e metade ao seu pai, Manoel de Vasconcelos 12. A mãe
de Isabel, dona Maria de Oliveira, teria concedido a metade que lhe pertencia do ofício,
segundo argumento de Isabel.
No período analisado neste artigo, o dono mais antigo deste ofício, Manoel
Mendes de Vasconcelos seguiu um carreira administrativa e militar no Império
português. Serviu por 26 anos, 20 deles “antes da guerra”13, como escrivão da Fazenda
Real e exercendo outros cargos. Seis anos serviu na guerra contra os holandeses, até
deixar a capitania de Pernambuco levando consigo a sua família, abandonando “a
fazenda que ali possuía com grande exemplo de fidelidade”14. Um irmão seu, Gonçalo
Mendes de Vasconcelos, serviu na África e na Índia como soldado, capitão e capitão-mor.
O padre Inácio Vasconcelos, outro irmão, ocupou cargos eclesiásticos na Índia, devendo-
lhe o rei mais de 525 mil réis15.
Manoel de Vasconcelos, pai de dona Isabel, fez carreira em Portugal e no Estado
do Brasil tanto com cargos militares quanto administrativos, assim como o seu tio,
recebendo várias mercês como recompensa de seus serviços. Ganhou o hábito da ordem
de Aviz, uma pens~o de 50 mil réis, além de dois “alvar|s de lembrança de ofícios de

11 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 7, Doc. 611.


12 Idem.
13 Provavelmente, refere-se não ao período holandês como um todo, 1630-1654, mas especificamente à

“Guerra de Restauraç~o”, iniciada em 1645. Sobre esse assunto ver MELLO, Evaldo Cabral. Olinda
Restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro; São Paulo: Forense-Universitária;
Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
14 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 7, Doc. 611.
15 Idem.

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Meu ofício, moeda e sustento

justiça, ou fazenda para filho e filha”16. Serviu de 1632 a 1647, no Brasil, no Alentejo e
como contador e vedor geral na província da Beira17. Tem-se, assim, o perfil social de
quem exerceu o ofício de escrivão da Fazenda antes de Teófilo. Era esperado que Manoel
de Vasconcelos arranjasse para sua filha alguém reconhecidamente importante.
Sendo “capit~o benemérito” e uma “pessoa de qualidade”, Teófilo Homem da
Costa teria alcançado o acerto do seu casamento, provavelmente, em Portugal. É a
própria dona Isabel Mendes de Vasconcelos que transmite informações sobre essa
possibilidade, referindo-se ao reino como o seu local de interlocução com o Conselho
Ultramarino. Importante nesta relação é o seu aspecto homógamo. Foi um casamento
entre indivíduos que possuíam uma posição social parecida, ou igual; de famílias que se
espalharam por todos os cantos do império português. Se não mentiram sobre a situação
econômica na qual se encontravam, passavam por dificuldades financeiras provenientes,
segundo os seus argumentos, do serviço prestado à monarquia portuguesa. Os tempos
eram de dificuldade econômica, o que não impediu que o casamento ocorresse dentro de
uma homogamia social. A propriedade de ofício de escrivão da fazenda funcionou como
um elemento facilitador. Evitou que uma das quatro filhas de Manoel de Vasconcelos
permanecesse solteira, e perpetuasse a família. Era o dote, a moeda, que promoveu a
união e coadunou o interesse de duas famílias, servindo como sustento e como objeto de
atração de um futuro bom casamento para os filhos e filhas que nasceriam. Foi o caso da
única filha de Teófilo Homem da Costa e de dona Isabel Mendes de Vasconcelos, Helena
Maria de Melo, que além de possuir o título de dona, assim como as outras mulheres da
família, casou-se em uma situação semelhante à de sua mãe.
As ações até o momento descritas são componentes do que se pode chamar de
estratégia matrimonial, uma “parte integrante dos comportamentos adoptados pelo
grupo, destinados a transmitir {s gerações vindouras o poder e os privilégios herdados”
(MONTEIRO, 1993, p. 923). Outra parte importante deste comportamento é a
manutenção de contatos com camadas de prestígio social elevado da sociedade, o que
pode ser verificado na trajetória social de Teófilo. Em 1690, apesar de todos os
problemas de saúde, teria atuado na corte como procurador da câmara de Olinda, com o

16 Isso significava que seria avisado caso vagassem cargos nestas duas esferas da administração e que
poderia ter preferência.
17 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 7, Doc. 611.

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Aledson Manoel Silva Dantas

salário de 100 mil réis, que deveria ser pago ao procurador de Teófilo da Costa na
América, João Batista Campeli18.
Percebe-se dois tipos de alianças. Teófilo Homem da Costa mantinha relações
com a câmara de Olinda, ao menos com aqueles que serviram em 1690: Braz de Araújo
Pessoa, Bernardo de Carvalho de Andrade, Rodrigo da Silveira e Pedro Ribeiro da Silva.
O outro tipo de relação que Teófilo mantinha era com o comerciante de origem italiana
João Batista Campeli, que teria vindo para Pernambuco em 1688. Campeli comerciava,
“sem que a atividade de mercador lhe atingisse ou maculasse a honra e prosápia de
funcion|rio” (SOUZA, 2012, p. 448). Além disso, foi vereador da câmara do Recife em
171219.
Em 1698, juntamente com seu marido, Antonio da Fonseca Malho, Helena de
Melo requeria a propriedade do ofício de escrivão da fazenda real e matrícula de gente
de guerra, ofícios anexados. No documento, Antonio Malho afirmou que Teófilo Homem
da Costa faleceu sem deixar testamento, “em triste estado”, e “sem outro filho ou
herdeiros mais que a dita sua mulher [Isabel]”. Apelou para a obrigaç~o do rei de bem
governar, afirmando que é “estilo do Reino costumar Vossa Majestade dar os ofícios aos
filhos dos propriet|rios, maiormente, quando servir~o com bom procedimento” e que
possuía “todos os requisitos necessários para o bem servir” 20. No mesmo ano, Antonio fez
um requerimento ao Conselho Ultramarino pedindo para nomear a João Batista Campeli
como serventuário, que havia sido procurador de Teófilo Homem da Costa, oito anos
antes.
A ideia contida na expressão requisitos necessários refere-se às qualidades
mínimas, em termos hierárquicos e técnicos, que um indivíduo precisaria ter para o
exercício de determinadas funções no aparato administrativo, levando-se em conta o
tipo de relações sociais comuns a uma sociedade de Antigo Regime. Além disso, denota
que, apesar de o ofício de escrivão da fazenda não estar entre os mais prestigiosos da
administração da capitania de Pernambuco, as pessoas que o exerceram gozavam de
uma posiç~o social destacada. Teófilo Homem da Costa tinha como “atrativo social” o
fato de ser reconhecido como uma pessoa diferenciada na capitania de Pernambuco.
Utilizando-se dessa característica, pôde contornar as dificuldades financeiras atraindo
para o seu círculo social pessoas que necessitavam de qualidade. João Batista Campeli é

18 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 15, Doc. 1527.


19 Idem.
20 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 18, Doc. 1761.

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Meu ofício, moeda e sustento

o maior exemplo disso. Provavelmente, o ofício de escrivão foi-lhe concedido em troca


da estabilidade financeira da família. E, nesse sentido, pode-se dizer que se caracteriza
uma venda, mesmo que de forma não evidente.
Acredita-se que as diversas concessões em serventias são um tipo de venalidade
praticada por Teófilo Homem da Costa e seus sucessores. É possível afirmar que três
pessoas exerceram o ofício de escrivão da Fazenda Real como serventuário: Francisco
Varela Pereira, Francisco de Mesquita e João Batista Campeli21. É certo que o substituto
deveria pagar um terço da renda proveniente do exercício da serventia do ofício, que
durava três anos. Isso não exclui a possibilidade de negociação do valor pago ao
proprietário, no qual estaria inserida uma possível dívida.
Sobre Francisco de Mesquita não se tem muitas informações. Pode-se afirmar,
entretanto, que agia quase como um “serventu|rio de carreira”, pois integrou a
administração fazendária como escrivão e como provedor da Fazenda Real, possuindo
os requesitos necessários para o bem servir22. Sobre Francisco Varela Pereira, ainda não
foi possível levantar outras informações.
Sobre João Batista Campeli, tem-se o seguinte quadro. Conjectura-se que Campeli
já exercia a serventia do ofício em 1690, ano em que atuou como procurador de Teófilo
Homem da Costa em Pernambuco. É interessante notar, também, a rápida entrada de
Campeli em um círculo importante de relações sociais, pois teria chegado à capitania em
1688. Como comerciante, exercer um ofício poderia ser bastante vantajoso, pois, em
tese, teria contato pessoal e imediato com o provedor da Fazenda Real, principal
autoridade fazendária da capitania. De fato, a carreira de Campeli pode ser considerada
como ascensional. Foi síndico da Ordem Terceira de São Francisco do Recife, entre 1696-
1697 e 1703-1704, e admitido como cavaleiro na Ordem de Cristo, em 1697. De acordo
com George F. C. de Souza, Campeli “teve vida próspera que lhe tornou ‘verdadeira
figura de proa entre os mascates do Recife’” (SOUZA, 2012, p. 448).
Não é possível afirmar se Teófilo Homem da Costa e seus sucessores dependiam
economicamente de Campeli. Não seria improvável, contudo, que isso acontecesse,
tendo em vista as dificuldades financeiras alegadas pela família de Teófilo. Seu genro
Antônio da Fonseca Malho, por exemplo, argumentava que não tinha condições de
exercer o ofício de escrivão da fazenda por que o seu sogro havia deixado-lhe muitas

21AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 8, D. 757; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 8, D. 798; AHU-PE, Papéis
Avulsos, Caixa 10, D. 973; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 18, D. 1767
22 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa 8, D. 734; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa, D. 772.

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Aledson Manoel Silva Dantas

“demandas” movidas contra ele mesmo depois de morte. Além disso, Fonseca Malho
afirma ter os seus próprios negócios, sendo ele próprio um comerciante. O mais
provável é que os cem mil réis referentes ao salário de procurador do senado da câmara
de Olinda na corte, em 1690, além de ser recolhido, era embolsado por João Batista
Campeli. Essas questões são difíceis de ter uma resposta conclusiva. Faltam informações
que possam elucidar problemas como este.
Atentando para a questão dos casamentos, tem-se uma mudança no padrão.
Embora Teófilo da Costa e seu sogro, Manoel Mendes, não possam ser considerados
como representantes diretos de uma açucarocracia23, o seu status social parece estar
mais vinculado a este grupo do que ao dos comerciantes. Os casamentos posteriores,
contudo, são feitos com comerciantes. Parece que, para este caso, tem-se uma exceção
para o contexto social da segunda metade do século XVII, em Pernambuco. Afinal, em
meio às tensões entre mascates e a nobreza da terra era comum a prática da endogamia
de grupo, largamente exercida (SOUZA, 2012, p. 125)24. Ambos são indivíduos que
parecem ter exercido apenas atividades administrativas, o que torna sua classificação
social, entretanto, difícil de ser colocada dentro da relação nobreza da terra versus
mascates.

Os Rego Barros e seus serviços.

Em 1698, João de Rego Barros, neto do primeiro provedor da fazenda da família,


requereu ao rei que lhe concedesse a mercê da propriedade deste ofício. O jovem Rego
Barros justificava a sua pouca idade evocando os serviços prestados por seu avô à Coroa,
tanto nas guerras de Pernambuco como na administração da república25. Buscava ele
dar continuidade a um domínio familiar do ofício que se estendeu para além da segunda
metade do século XVIII.
Em seis de julho do mesmo ano26, o rei solicitou ao governador de Pernambuco,
Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro, que informasse ao Conselho Ultramarino

23 Grupo social que tinha como nicho de poder a câmara de Olinda, caracterizado, de uma forma geral, pela
posse de engenhos de açúcar. Sobre este aspecto ver: MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos mazombos:
nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003.
24Sobre as disputas entre naturais da terra e os comerciantes ver: MELLO, Evaldo C. de. A fronda dos

mazombos: nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003.
25 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 18, Doc. 1763.
26 AHU, Códice 257, fl. 27.

240
Meu ofício, moeda e sustento

sobre a capacidade do requerente, para poder, então, efetuar ou não a doação da mercê
requerida. O jovem João do Rego Barros pertencia a um grupo de indivíduos que se
reconheciam como pessoas pertencentes {s “principais”27 famílias e da “governança”28
da Capitania de Pernambuco. João do Rego Barros também era neto e bisneto de
restauradores, os que teriam participado das batalhas que expulsaram os holandeses do
litoral norte do Estado do Brasil.
A expulsão dos holandeses permitiu a ascensão social de muitos indivíduos.
Beneficiando-se das mercês régias, adquiriram qualidade e se destacaram com as mais
diversas honras, desde escudos de vantagens, uma premiação pela execução de ações
tidas como heroicas nas guerras, até hábitos de ordens militares. Formou-se nesse
processo de reestabelecimento e de reocupação da capitania de Pernambuco um pacto
entre restauradores e a jovem monarquia que buscava a sua legitimação no Reino e no
Ultramar (BICALHO, 2011). Evaldo Cabral de Mello corrobora essa colocação, afirmando
que haveria entre os que participaram das guerras na capitania de Pernambuco e o rei
português um pacto político, tendo este a obrigação de negociar a submissão de seus
vassalos e de garantir-lhes privilégios, pois
alcançada [a restauraç~o] ‘{ custa de nosso sangue, vidas e fazendas’,
tirava-se o corolário da existência de um pacto entre a Coroa e a
‘nobreza da terra’, o qual teria estabelecido em favor desta um
tratamento preferencial, um estatuto jurídico privilegiado (MELLO,
1997, p. 127).

Um ponto a ser destacado nessas relações são os gastos com a guerra, e que pode
ser percebido no trecho citado pela utilizaç~o da express~o: “{ custa de nosso sangue,
vidas e fazenda”. O dispêndio de recursos locais na guerra contra as Províncias Unidas
estabeleceu uma relação inversamente proporcional com os gastos do reino, redundado
em uma participação de potentados locais nos custos da guerra foi cada vez mais
significativa (MELLO, 1975). Dessa forma, muitos indivíduos adquiriram a
argumentação necessária para o requerimento de mercês, tornando-se um topoi, uma
argumentação própria do grupo que se autointitulava de nobreza da terra, na segunda
meta do século XVII (MELLO, 1997, 105-152). O avô de João do Rego Barros foi um dos

27 Processo de Luís do Rego Barros, PT/TT/TSO-IL/028/12754. Datas de produção Cota actual Tribunal
do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12754; MELLO, Antonio Joaquim de. Biographia de João do
Rego Barros. Recife: Typ. DE MANOEL FIGUEROA DE FARIA & FILHO, 1896.
28 Idem.

Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 230-247.


Aledson Manoel Silva Dantas

que tiveram que dispender de seus bens para o financiamento da guerra, que lhe custou
parte de sua fortuna e dois escravos29.
João do Rego Barros, o avô e homônimo do suplicante, servia ao rei desde 1642. A
sua carreira foi marcada por avanços na hierarquia militar. Foi soldado, depois alferes e,
por último, Capit~o de Infantaria “achando-se nas mais importantes ocasiões”30. Em
1662, o rei concedeu-lhe o governo da Paraíba, o qual exerceu entre 1663 e 167031. Este
foi um momento de recuperação econômica para a sua família, que chegaria ao seu
melhor período com a concessão da propriedade de provedor da Fazenda Real.
Antes disso, no pós 1654, a família teve que recuperar o engenho deixado com a
fuga para a Bahia, depois da invasão dos holandeses. Segundo a mãe de João do Rego
Barros, Arc}ngela da Silveira, os bens da família “somavam muitos cruzados”, fazendo
com que recorresse a empréstimos para poder sustentar-se financeiramente32. Anos
depois, quando pedia a confirmação régia da patente de capitão de Infantaria que
exercia no terço de André Vidal de Negreiros, argumentou que precisava dos
rendimentos que a patente lhe proporcionava, pois era um “fidalgo pobre”33.
Foi em 1675, quando Portugal necessitava angariar fundos para socorrer Angola
que João do Rego Barros, o avô, recebeu a propriedade de ofício de provedor da fazenda
de Pernambuco. Tem-se, assim o ápice de sua carreira como vassalo, recompensado com
um dos cargos mais importantes da capitania de Pernambuco. Este ofício,
diferentemente do de escrivão analisado anteriormente, possui linha de sucessão
composta por indivíduos designados pela Coroa e por indivíduos restritos à família Rego
Barros. Além disso, seguiu uma linha de sucessão masculina no decorrer do século XVIII,
que extrapola o período analisado neste artigo.
João do Rego Barros concorreu ao ofício com João Dias da Costa, que servia como
provedor da Fazenda do Rio de Janeiro, conseguindo a mercê mediante oferecimento de
12 mil cruzados como donativo. Como não possível assumir, pois estava no Reino,
solicitou ao rei que seu irmão, Luís do Rego Barros, fosse admitido no exercício do ofício
como serventuário34. O que se estendeu até 167735, quando João do Rego Barros

29 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1023.


30 Coleção Documentos Históricos, V. 28, pp-9-12; AHU-PE, Papéis Avulsos, Cx. 11, doc. 1023.
31 Coleção Documentos Históricos, V. 20, pp.455-458.
32 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 7, Doc. 571
33 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa.6, Doc. 483
34 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1036. AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1057.
35 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1091.

242
Meu ofício, moeda e sustento

conseguiu voltar para Pernambuco, após ter solicitado ajuda de custo para fazer a
travessia do Atlântico36. Aparentemente, Luís do Rego Barros não teria conseguido ser
empossado como provedor, pois, até 1677, André Pinto Barbosa, que exerceu postos
importantes na administração da região de Tráz-os-Montes, atuava como provedor da
Fazenda37. Em tese, os funcionários de origem portuguesa estariam menos inclinados ao
favorecimento de potentados locais.
Além do ofício de provedor da Fazenda, a Coroa portuguesa vendeu mais um
ofício: o de escrivão da Fazenda Real da Bahia. Este foi, segundo a historiadora Roberta
Stumpf, um momento de exceção da política da Coroa portuguesa em relação à venda de
cargos e títulos e que não pode ser observado de forma recorrente no Império Português
(STUMPF, 2011). Fazendo-se uma comparação com a América espanhola, tem-se que,
entre 1651 e 1700, das 407 provisões para postos da Fazenda Real da Audiência de
Quito, 348 foram feitas por meio da venda de ofícios (TAPIA, 2003, p.636-637). Um dado
que reforça a cautela dos reis portugueses em recorrer à venda generalizada de títulos e
cargos.
Tendo recebido o ofício de provedor da Fazenda João do Rego Barros atuou como
a principal autoridade fazendária até 1697, ano de sua morte. Seu neto homônimo, em
razão da pouca idade, não pode desempenhar o ofício de provedor, apesar de ter
recebido a propriedade do ofício38. A sucessão deste cargo (ver tabela 01) demonstra a
importância que a Coroa atribuía ao cargo de provedor da Fazenda, reservando-o aos
seus proprietários, reconhecidos como pessoas de “qualidade” e dos “principais” da
capitania de Pernambuco39, e àqueles que demonstraram idoneidade servindo em
cargos de grande responsabilidade. Havia uma preocupação, então, de manter um
padrão social para o cargo de provedor. Até 1706, Inácio de Morais Sarmento, Ouvidor
Geral de Pernambuco, foi provedor da Fazenda Real de forma interina até João ter a
idade mínima para assumir esse cargo40.
Em relação à sucessão familiar propriamente dita, tem-se um caso interessante
no qual o herdeiro declarado do testamento de João do Rego Barros, o avô, era o seu
neto, quando o esperado seria que fosse o filho. No testamento, Rego Barros declara que

36 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1081.


37 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 10, Doc. 966.
38 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 18, Doc. 1763
39 Idem.
40 AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 22, Doc. 2021. Primeiro documento que cita João do Rego Barros Como

Provedor.

Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 230-247.


Aledson Manoel Silva Dantas

era filho legítimo de Francisco do Rego Barros e de Arcângela da Silveira. Casou-se com
Catarina Teodoro Valcacer, com a qual teve um único filho chamado Francisco do Rego
Barros. Este teve sete filhos, três homens e quatro mulheres. Depois de ter listado os
seus bens e de ter providenciado o seu enterro, afirma que o seu único herdeiro era o
seu neto mais velho, João do Rego Barros, que tinha, assim, o direito reclamar a
propriedade do ofício de provedor da Fazenda, além de tomar posse dos dois engenhos
que o seu avô possuía, o Engenho Três Reis Magos, localizado na Paraíba, e o Engenho
Massiape, localizado em São Lourenço, Pernambuco. João do Rego Barros, o neto,
usufruiria, também, de uma igreja construída no Recife sob a invocação de Nossa
Senhora do Pilar, construída com recursos do avô e administrada por padres
pertencentes à família (MELLO, 1896, p. 30-31).
Tabela 01 – Perfil social dos provedores da Fazenda Real da Capitania de
Pernambuco (1675-1698)
NOME ANO DE EXERCÍCIO ATUANDO COMO ORIGEM TÍTULOS E
DO OFÍCIO SERVIÇOS
André Pinto 1672-1677 Serventuário. Reino Serviu como
Barbosa provedor da
Fazenda Real
do Rio de
Janeiro.
João do Rego 1677-1697 Proprietário Pernambuco Cavaleiro da
Barros (avô) Ordem de
Cristo e
Fidalgo
Inácio de Moraes 1698-1706 Serventuário Reino – Servia Serviu como
Sarmento (aproximadamente) como Ouvidor Ouvidor Geral
Geral da capitania de
de Pernambuco Pernambuco.
João do Rego 1706 em diante Proprietário Pernambuco Cavaleiro da
Barros (neto) Ordem de
Cristo
Fontes: MELLO, Antonio Joaquim de. Biographia de João do Rego Barros. Recife: Typ. DE MANOEL
FIGUEROA DE FARIA & FILHO, 1896; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 10, Doc. 966; AHU-PE, Papéis
Avulsos, Caixa. 11, Doc. 1023; AHU-PE, Papéis Avulsos, Caixa. 18, Doc. 1763. HU-PE, Papéis Avulsos,
Caixa. 22, Doc. 2021.

244
Meu ofício, moeda e sustento

Não é possível chegar a uma resposta conclusiva em relação à esta


estratégia de declarar como único herdeiro a seu neto. Pode ser que, em razão da grande
quantidade de filhas que Francisco do Rego Barros, seu pai tenha ficado receoso de ver o
patrimônio construído ser rateado pelos futuros genros na partilha dos dotes.
Tem-se, no caso dos Rego Barros, uma família que possuía elementos de distinção
social, desde os primórdios do povoamento da capitania de Pernambuco, de sua herança
de fidalgos portugueses adventícios, até a construç~o de uma “igreja particular”
reservada para o enterramento dos membros da família. Os Regos Barros são
descendentes de Arnau de Holanda e Luís do Rego Barros, membros reconhecidamente
importantes da capitania de Pernambuco no final do século XVI41. Logo, é possível que a
Coroa tenha escolhido a família Rego Barros para serem proprietários do ofício de
Provedor da Fazenda em razão de sua qualidade, somada aos serviços que prestou nas
guerras contra os holandeses. A sucessão confirmaria o bom procedimento de João do
Rego Barros, o avô, no ofício de Provedor, ao menos para a Coroa parece ter sido
satisfatório.

Considerações finais

Percebe-se, com as trajetórias analisadas neste artigo, a complexidade das


relações estabelecidas no processo de conquista e manutenção de um ofício. Pode-se
afirmar que um ofício pode ser classificado como um elemento de distinção social e de
facilitação da formação de redes com as mais variadas camadas da sociedade da
capitania portuguesa, marcada pela cultura política do Antigo Regime. Em relação à
venalidade de ofícios e a sua patrimonialização, é possível afirmar que, enquanto a
primeira, em um contexto mais pessoal de relações, é difícil de ser enxergada com
clareza, apesar dos indícios, a segunda é mais perceptível. A venda de ofícios parece ter
sido efetiva na nomeação de substitutos temporários, os serventuários. Alguém que
estivesse endividado, mas que possuísse um ofício que proporcionasse a formação de
redes e permitisse a construção de boas relações com indivíduos proeminentes, poderia
dispor por um tempo determinado o seu posto e mesmo assim garantir parte da renda
proveniente do ordenado. Pode ser que tenha sido o caso que envolveu Teófilo Homem

41Processo de Luís do Rego Barros, PT/TT/TSO-IL/028/12754. MELLO, Antonio Joaquim de.


Biographia de João do Rego Barros. Recife: Typ. DE MANOEL FIGUEROA DE FARIA & FILHO, 1896.

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Aledson Manoel Silva Dantas

da Costa, Antônio da Fonseca Malho e João Batista Campelo. A questão da


patrimonialização foi mais fácil de perceber, pois, apesar de o ofício de escrivão da
Fazenda não possuir uma linhagem masculina, as mulheres herdeiras conseguiram, na
forma que as leis lhes permitiam, usufruir de sua herança, mostrando a importância
social das propriedades de ofício para a formação de alianças por meio de casamentos,
para o caso de Teófilo Homem da Costa. Para o caso dos Regos Barros, a questão da
patrimonialização fica mais evidente, na medida em que sua família assenhora-se do
ofício de provedor, conseguindo valer o seu direito, embora não automático, de
sucessão.

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Meu ofício, moeda e sustento

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