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JOÃO CABRAL DE MELO NETO

DO AUTOR:

Poemas Escolhidos, Portugália Editôra, Lisboa, 1963


Antologia Poética, Editôra do Autor, Rio de Janeiro, 1965
A EDUCAÇÃO
Tais antologias foram extraídas dos seguintes textos:
Pedra do Sono (1939-1941)
O Engenheiro (1942-1945)
PELA PEDRA
Psicologia da Composição (1946-1947)
O Cão sem Plumas (1949-1950)
O Rio (1953)
Morte e Vida Severina (1954-1955)
Paisagens com Figuras (1954-1955)
Uma Faca só Lâmina (1955)
Quaderna (1956-1959)
Dois Parlamentos (1958-1960)
Serial (1959-1961)

EDITõRA DO AUTOR
Capa de GLAUCO RODRIGUES

EXEMPLAR N. A

MANUEL BANDEIRA
esta antiLIRA
PARA SEUS OITENT'ANOS

Direitos desta edição reservados à EDITõRA DO AUTOR,


Av. Nilo Peçanha, 155, Gr. 207 - Tel. 42-9421 - End.
teleg. "EDAUTOR" - Rio de Janeiro, GB - Copyright by
,João Cabral de Melo Neto; Rio, 1966.
a
O MAR E O CANAVIAL

O que o mar sim aprende do canavial: O que o canavial sim aprende do mar:

a elocução horizontal de seu verso; o avançar em linha rasteira da onda;

a geórgica de cordel, ininterrupta, o espraiar-se minucioso, de líquido,

narrada em voz e silêncio paralelos. alagando cova a cova onde se alonga.

O que o mar não 1.prende do canavial: O que o canavial não aprende do mar:

a veemência passional da preamar; o desmedido ,do derramar-se da cana;

mão-de-pilão das ondas na areia, o comedimento do latifúndio do mar,

moída e miúda, pilada do que pilar. que menos lastradamente se derrama.

8 !J
O SERTANEJO FALANDO 2.

A fala a nível do sertanejo engana: Daí porque o sertanejo fala pouco:

as palavras dêle vêm, como rebuçadas as palavras de pedra ulceram a bôca

(palavras confeito, pílula), na glace e no idioma pedra se fala doloroso ;

,de uma entonação lisa, de adocicada. o natural dêsse idioma fala à fôrça.

Enquanto que sob ela, dura e endurece Daí também porque êle fala devagar:

o caroço de pedra, a amêndoa pétrea, tem de pegar as palavras com cuidado,

.dessa árvore pedrenta (o sertanejo), confeitá~las na língua, rebuçá~las;

incapaz de não se expressar em pedra. pois toma tempo, todo êsse trabalho.

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DUAS DAS FESTAS DA MORTE

Recepções de cerimônia que dá a morte: Piqueniques infantis que dá a morte:

o morto, vestido para um ato inaugural; os enterros de criança no Nordeste;

e ambiguamente: com a roupa do orador reservados a menores de treze anos,

e a da estátua que se vai inaugurar. impróprios a adultos (nem o seguem).

No caixão, meio caixão meio pedestal, Festa meio excursão me10 p1quen1que,

o morto mais se inaugura do que morre; ao ar livre, boa para dia sem classe;

e duplamente: ora sua própria estátua nela, as crianças brincam de boneca,

ora seu próprio vivo, em dia de posse. e aliás, com uma boneca de verdade.

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NA MORTE DOS RIOS 2.

A Manuel Artur Souza Leão Neto

Desde que no Alto Sertão um no seca Desde que no Alto Sertão um rio seca,
'
a vegetação em volta, embora de unhas, o homem ocupa logo a múmia esgotada:

embora sabres, intratável e agressiva, com bôcas de homem, para beber as poças

faz alto à beira daquele leito tumba. que o rio esquece, até a mínima água;

Faz alto à agressão nata: jamais ocupa com bôcas de cacimba, para fazer subir

o rio de ossos areia, de areia múmia. a que dorme em lençóis, em fundas salas;

e com bôcas de bicho, para reequipar

seu fossar econômico, de bicho lógico.

Verme de rio, é'lC roer essa areia múmia,

o homem adianta os próprios, póstumos.

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2.
COISAS DE CABECEIRA, RECIFE

Algumas delas, e fora as já contadas:


Diversas c01sas se alinham na memória
o combogó, cristal do número quatro;
numa prateleira com o rótulo: Recife.
os paralelepípedos de algumas ruas,
Coisas como de cabeceira da memória
'
de linhas elegantes mas grão áspero;
a um tempo coisas e no próprio índice;
a empena dos telhados, quinas agudas
e pois em índice: densas, recortadas,
como se também para cortar, telhados;
bem legíveis, em suas formas simples.
os sobrados, paginados em romancero,
várias colunas por fólio, imprensados.

(Coisas de cabeceira, firmando módulos:

assim, o do vulto esguio dos sobrados).

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A FUMA:ÇA NO SERTÃO

Onde tampouco a fumaça encorpa muito; Onde também a fumaça encorpa pouco;

onde nem pode o barroco mil folheiro onde nem pode encopar~se de tão rala,

da mangueira matriarca, corpopulenta, tanto quanto o ar vago por que arvora

de que na Mata a fumaça finge o jeito. o fio da árvore que pode, desfiapada.

Nem o barroco, mais torto mas rasteiro, Onde porém, porque não pode o barroco,

de quando a fumaça se faz em cajueiro. pode empinar~se essencial, unicaule;

unicaule, mas bem diversa do coqueiro,

incapaz de ir linheiro ao empinar~se;

unicaule, mais bem de palmeira a prumo,

de uma palmeira coluna, sem folhagem.

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A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação pela pedra: por lições; Outra educação pela pedra: no Sertão
para aprender da pedra, freqüentá-la; (de dentro para fora, e pré-didática).
captar sua voz inenfática, impessoal No Sertão a pedra não sabe lecionar,
r(pela de dicção ela começa as aulas). e se lecionasse, não ensinaria nada;
,A lição de moral, sua resistência fria lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
-.ao que flui e a fluir, a ser maleada; uma pedra d~ nascença, entranha a alma.
a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-Ia.

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ELOGIO DA USINA
E DE SOFIA DE MELO BREINER ANDRESEN 2.

O engenho banguê (o rôlo compressor,


Sofia vai de ida e de volta (e a usina);
mais o monjolo, a moela de galinha,
ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima,
e muitas moelas e moendas de poetas)
e usando apenas (sem turbinas, vácuos)
vai unicamente numa direção: na ida.
algarves de sol e mar por serpentinas.
Êle faz quando na ida, ou ao desfazer
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,
em bagaço e caldo ; êle faz o informe;
em cristais (os dela, de luz marinha).
faz-desfaz na direção de moer a cana,

que aí deixa; e que de mel nos moldes

madura só, faz..,se '. no cristal que sabe,

o do mascavo, cego (de luz e corte).

22 23
2.
O URUBU MOBILIZADO

Embora mobilizado, nesse urubu em ação


Durante as sêcas do Sertão, o urubu,
reponta logo o perfeito profissional.
de urubu livre, passa a funcionário.
No ar compenetrado, curvo e secretário
Êle nunca retira, pois prevendo cedo '
no todo de guarda~chuva, na unção clerical,
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
com que age, embora em pôsto subalterno~
cala os serviços prestados e diplomas \

êle, um convicto profissional liberal.


que o enquadrariam num melhor salário
'
e vai acolitar os empreiteiros da sêca,

veterano, mas ainda com zelos de novato:

aviando com eutanásia o morto incerto


'
êle, que no civil quer o morto claro.

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FAZER O SÊCO, FAZER O úMIDO

A Rafael Santos Torroella

A gente de uma capital entre mangues, A gente de uma Caatinga entre sêcas,
gente de pavio e de alma encharcada, entre datas de sêca e sêca entre~datas,
.se acolhe sob uma música tão ressêca se acolhe sob uma música tão líquida
que vai ao timbre de punhal, navalha. que bem poderia executar~se com água.
Talvez o metal sem húmus dessa música, Talvez as gotas úmidas dessa música
ácido e elétrico, pedernal de isqueiro, que a gente dali faz chover de violas,
lhe dê uma chispa capaz de tocar fogo umedeçam, e senão com a água da água,
na molhada alma pavio, molhada mesmo. com a convivência da água, langorosa.

:26 27
2.
O CANAVIAL E O MAR

O que o mar não ensma ao canavial:


O que o mar sim ensina ao canavial:
a veemência passional da preamar;
o avançar em linha rasteira da onda;
a mão~de~pilão das ondas na areia,
o espraiar~se minucioso, de líquido,
moída e miúda, pilada do que pilar.
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não ensina ao mar:
O que o canavial sim ensina ao mar:
o desmedido 1 do derramar~se da cana;
a elocução horizontal de seu verso·
'
-0 comedimento do latifúndio do mar,
a geórgica de cordel, ininterrupta,
que menos lastradamente se derrama.
narrada em voz e silêncio paralelos.

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UMA MULHER E O BEBERIBE

Ela se imove com o andamento da água Ao no Beberibe, quando no adolescente


(indecisa entre ser tempo ou espaço) (precipitadamente tempo, não espaço),
daqueles rios do litoral do Nordeste nada lhe pára os pés ; se rio maduro,
que os geógrafos chamam "rios fracos". êle assume um andamento mais andado.
Lânguidos; que se deixam pelo mangue Adulto no mangue, imita o imovimento
a um banco de areia do mar de chegada; que há poucb imitara dêle uma mulher:
vegetais; de água espaço e sem tempo indolente, de água espaço e sem tempo
(sem o cabo por que o tempo a arrasta). (fora o do cio e da prenhez da maré).

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b
DE BERNARDA A FERNANDA
DE UTRERA

A ·Jatyr de Almeida Rodrigues

Bernarda de Utrera arranca-se o cante Fernanda de U trera arranca~se o cante

quando a brasa chama a si as chamas; quando a brasa extenuada já definha;

quando ainda brasa, no entanto quando, quando a brasa resfriada já se recobre

chamado a si o excesso, se desinflama. com o cobertor ou as plumas da cinza.

Ela usa a brasa íntima no quando breve Ela usa a brasa íntima no quando longo

em que, brasa apenas e em brasa viva, em que rola calor abaixo até a pedra;

arde numa dosagem exata de si mesma: no da brasa em pedra, no da brasa do frio :

brasa estritamente brasa, inexcessiva. para daí reacendê-la, contra a queda.

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UMA MINEIRA EM BRASÍLIA

Aqui, as horizontais descampinadas No cimento de Brasília se resguarda


farão o que os alpendres sem ânsia, maneiras de casa antiga de fazenda,
dissolvendo no homem o agarrotamento de copiar, de casa~grande de engenho,
que trouxe consigo de cidades cãibra. das casaronas de alma fêmea.
Mas ela já veio com o lhano que virá Com os palácios daqui ( casas~grandes)
\
ao homem daqui, hoje ainda crispado: por isso a presença dela assim combina:
em seu estar~se tão fluente, de Minas, dela, que guarda no jeito o feminino
onde os alpendres diluentes, de lago. e o enyo}vimento de alpendre de

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NAS COVAS DE BAZA 2.

O cigano deslisa por encima da terra De onde quem sabe, o cigano das covas

não podendo acima dela, sobrepairado; dormir na entranha da terra, enfiado;

jamais a toca, sequer calçadamente, dentro dela, e nela de corpo inteiro,

'Senão supercalçado: de cavalo, carro. dentros mais de ventre que de abraço.

O cigano foge da terra, de afagá~la, Contudo, dorme na terra uterinamente,

dela carne nua ou viva, no esfolado; dormir de feto, não o dormir de falo;

lhe repugna, êle que pouco a cultiva, escavando a cova sempre, para dormir

o hálito sexual da terra sob o arado. mais longe da porta, sexo inevitável.

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SôBRE O SENTAR-/ESTAR-NO-MUNDO
A Fanor Cumplido Jr.

Ondequer que certos homens se sentem


Ondequer que certos homens se sentem
sentam poltrona, qualquer o assento.
sentam bancos ferrenhos, de colégio;
Sentam poltrona: ou tábua-de-latrina,
por afetuoso e diplomata o estofado,
assento além de anatômico, ecumênico,
os ferem nós deh::tixo, senão pregos,
exemplo único de concepção universal,
e mesmo a tábua-de-latrina lhes nega
onde cabe qualquer homem e a contento.
o abaulado amigo, as curvas de afeto.

A vida tôda, se sentam mal sentados


'
e mesmo de pé algum assento os fere:

êles levam em si os nós-senão-pregos,

nas nádegas da alma, em efes e erres.

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COISAS DE CABECEIRA, SEVILHA 2.

Algumas delas, e fora as já contadas:


Diversas coisas se alinham na memória
não esparramarse, fazer na dose certa;
numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
por derecho, fazer qualquer quefazer,
Coisas, se na origem apenas expressões
e o do ser, com a incorrupção da reta;
de ciganos dali; mas claras e concisas
con nervio, dar a tensão ao que se faz
a um ponto de se condensarem em coisas
'
da corda de' arco e, a retensão da seta;
bem concretas, em suas formas nítidas.
pies claros, qualidade de quem dança,

se bem pontuada a linguagem da perna.

(Coisas de cabeceira somam: exponerse,

fazer no extremo, onde o risco começa).

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;i

DOIS P. S. A UM POEMA

Certo poema imaginou que a daria a ver Certo poema imagmou que a daria a ver

(sua pessoa, fora da dança) com o fogo. (quando dentro da dança) com a chama:

Porém o fogo, prisioneiro da fogueira, imagem pouca e pequena para contê-la,

tem de esgotar o incêndio, o fogo todo; conter sua chama e seu mais-que-chama.

e o dela, ela o apaga (se e quando quer) E embora o poema estime que a imagem

ou mete vivo no corpo: então, ao dôbro. não conteria 'tudo dessa chama sozinha,

que por si se ateia (se e quando quer),

de quanto o mais-que-chama não estima;

pois vale o duplo de uma qualquer chama:

estas só dançam da cintura para cima.

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TECENDO A MANHÃ 2.

Um galo sozinho não tece uma manhã: E se encorpando em tela, entre todos,

êle precisará sempre de outros galos. se erguendo tenda, onde entrem todos,

De um que apanhe êsse grito que êle se entretendendo para todos, no tôldo

e o lance a outro; de um outro galo (a manhã) que plana livre de armação.

que apanhe o grito que um galo antes A manhã, tôldo de um tecido tão aéreo

e o lance a outro; e de outros galos que, tecido, se eleva por si: luz balão.

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

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FÁBULA DE UM ARQUITETO 2.

A arquitetura como construir portas, Até que, tantos livres o amedrontando,

de abrir; ou como construir o aberto·, renegou dar a viver no claro e aberto.

construir, não como ilhar e prender, Onde vãos de abrir, êle foi amurando

nem construir como fechar secretos; opacos de fechar; onde vidro, concreto;

construir portas abertas, em portas; até refechar o homem: na capela útero,

casas exclusivamente portas e tecto. com confortos de matriz, outra vez feto.

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

portas por-onde, jamais portas-contra;

por onde, livres: ar luz razão certa.

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UMA OURIÇA 2..

Se o de longe esboça lhe chegar perto, Se o de longe lhe chega em (de longe) ,

se fecha (convexo integral de esfera), de esfera aos espinhos, ela se desouriça.

se eriça {bélica e multiespinhenta): Reconverte: o metal hermético e armado,

e esfera e espinho, se ouriça à espera. na carne de antes (côncava e propícia),

Mas não passiva {como ouriço na loca) e as molas felinas (para o assalto),

nem só defensiva (como se eriça o gato) ; nas molas erri espiral {para o abraço) .

sim agressiva {como jamais o ouriço),

do agressivo capaz de bote, de salto

(não do salto para trás, corno o gato) :

daquele capaz do salto para o assalto.

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CATAR FEIJÃO
2.
A Alexandre O'Neill

Catar feijão se limita com escrever:


Ora, nesse catar feijão entra um risco:
joga-se os grãos na água do alguidar
o de que entre os grãos pesados entre
e as palavras na da fôlha de papel;
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
e depois, joga-se fora o que boiar.
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo, tôda palavra boiará no papel,
Certo não, qµando ao catar palavras:
água congelada, por chumbo seu verbo:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
pois para catar êsse feijão, soprar nêle,
obstrui a leitura fluviante, flutuai,
e jogar o leve e o ôco, palha e eco.
açula a atenção, isca-a com o risco.

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NAS COVAS DE GUADIX

O cigano deslisa por encima da terra O cigano foge da terra, de afagá~la,


não podendo acima dela, sobrepairado; dela carne nua ou viva, no esfolado;
lhe repugna, êle que pouco a cultiva, jamais a toca, sequer calçadamente,

o hálito sexual da terra sob o arado. senão supercalçado: de cavalo, carro.

Contudo, dorme na terra uterinamente, De onde quem sabe, o cigano das covas

dormir de feto, não o dormir de falo; dormir na enÚanha da terra, enfiado;

dentro dela, e nela de corpo inteiro, escavando a cova sempre, para dormir

dentros mais de ventre que de abraço. mais longe da porta, sexo inevitável.

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MESMA MINEIRA EM BRASÍLIA

No cimento duro, de aço e de cimento, Aqui, as horizontais descampinadas


Brasília enxertou~se, e guarda vivo, farão o que os alpendres remansos,

êsse poroso quase carnal da alvenaria alargando espaçoso o tempo do homem

da casa de fazenda do Brasil antigo. de tempo atravancado e sem quandos.

Com os palácios daqui ( casas~grandes) Mas ela já veio com a calma que virá

por isso a presença dela assim combina: ao homem 'daqui, hoje ainda apurado:

dela, que guarda no corpo o receptivo em seu tempo amplo de tempo, de Minas,

e o absorvimento de alpendre de Minas. onde os alpendres espaçosos, de largo.

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·.A
DUAS BANANAS & A BANANEIRA

A Rodolpho G. de Souza Dantas

Entre a caatinga tolhida e raquítica, A bananeira dá, luzidia de contente,


entre uma vegetação ruim, de orfanato: nos fundos de quintal, com despejos,
no mais alto, o mandacaru se edifica com monturos de lixo: fogueira fria
a tôrre gigante e de braço levantado; e sem fumo, mas fumegando mau cheiro;
quem o depara, nessas chãs atrofiadas, e mais daria i se o dicionário omitisse
pensa que êle nasceu ali por um acaso; banana gesto de rebeldia e indecente;
mas êle dá nativo ali, daí fazer-se se além da banana fruta, registrasse

assim alto e com o braço para o alto. banana coisa sem espinhaço, somente.

Para que, por encima do mato anêmico, Daí a bananeira dobrar, como impotente,
desde o país eugênico além das chãs, a ereção do mangará, de crua macheza;
se veja a banana que êle, mandacaru, e daí conceber as bananas sem caroço,
dá em nome da caatinga anã e irmã. fáceis de despir, de carne de rameira.

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AGULHAS 2.

Nas praias do Nordeste, tudo padece Entretanto, nas praias do Nordeste,


com a ponta de finíssimas agulhas: nem tudo vem com agulhas e em lâmina;
primeiro, com a das agulhas da luz, assim, o vento alíseo que ali visita
ácidas para os olhos e a carne nua, não leva debaixo da capa arma branca.
fundidas nesse metal azulado e duro O vento, que por outras leva punhais
do céu dali, fundido em duralumínio, feitos do meital do gêlo, agulhíssimos,
e amoladas na pedra de um mar duro, no Nordeste sopra brisa: de algodão,
de brilho peixe também duro, de zinco. despontado; vento abaulado e macio;
Depois, com a ponta das agulhas do ar, e sequer em agôsto, ao enflorestar-se
vaporizadas no alíseo do mar cítrico, vento-Mata da Mirueira a brisa-arbusto,
desinfetante, fumigando agulhas tais o vento mete metais dentro do sôco:
que lavam a areia do lixo e do vivo. então bate forte, mas sempre rombudo.

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RIOS SEM DISCURSO

Quando um rio corta, corta-se de vez O curso de um rio, seu discurso-rio,


o discurso-rio de água que êle fazia; chega raramente a se reatar de vez;
cortado, a água se quebra em pedaços, um rio precisa de muito fio de água
em poços de água, em água paralítica. para refazer o fio antigo que o fêz.
Em situação de poço, a água equivale Salvo a grandiloqüência de uma cheia
a uma palavra em situação dicionária: lhe impondo de passo outra linguagem,
isolada, estanque no poço dela mesma, um rio precisa de muita água em fios
e porque assim estanque, estancada; para que todos os poços se enfrasem:
e mais: porque assim estancada, muda, se reatando, de um para outro poço,
e muda, porque com nenhuma comunica em frases curtas, então frase e frase,
'
porque cortou-se a sintaxe dêsse rio, até a sentença-rio do discurso único
o fio de água por que êle discorria. em que se tem voz a sêca êle combate.

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"THE COUNTRY OF THE HOUYHNHNMS"
2.

Para falar dos Y ahoos, se necessita


Ou para quando falarem dos Y ahoos:
que as palavras funcionem de pedra:
furtar-se a ouvir falar, no mínimo;
se pronunciadas, que se pronunciem ou ouvir no silêncio todo em pontas
com a bôca para pronunciar pedras. do cacto espinhento, bem agrestino;

E que a frase se arme do perfurante aviar e ativar, debaixo do silêncio,


~

que têm no Pajeú as facas-de-ponta: o cacto que dorme em qualquer não;


\

avivar no silêncio os cem espinhos


faca sem dois gumes e contudo ambígua,
com que pode despertar o cacto não.
por não se ver onde nela não é ponta.
Ou para quando falarem dos Y ahoo~:
não querer ouvir falar, pelo menos;
ou ouvir, mas engatilhando o sorriso,
para dispará-lo, a qualquer momento;
ouvir os planos-afinal para os Yahoos
com um sorriso na bôca, engatilhado:
na bôca que não pode balas, mas pode
um sorriso de zombaria, tiro claro.
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OS RIOS DE UM DIA
2.

Os rios, de tudo o que existe vivo,


Pois isso, que êle define com clareza,
vivem a vida mais definida e clara·
' o rio aceita e professa, friamente,
para os rios, viver vale se definir
e se procuram lhe atar a hemorragia,
e definir viver com a língua da água.
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O rio corre; e assim viver para o rio O que um rio do Sertão, rio interino,
vale não só ser corrido pelo tempo: prova com sua água, curta nas medidas:

o no o corre; e pois que com sua água, ao se correr torrencial, de uma vez,

viver vale suicidar~se, todo o tempo. sôbre leitos de hotel, de um só dia;


ao se correr na carreira, de enxurro,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá~lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros;
êsses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa dêles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sêde.
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O HOSPITAL DA CAATINGA 2.
A Danilo Coimbra Gonçalves

O poema trata a Caatinga de hospital


O poema trata a Caatinga de hospital
pela ponta oposta do símile ambíguo;
não porque esterilizada, sendo deserto;
por não deserta e sim, superpovoada;
não por essa ponta do símile que liga
por se ligar a um hospital, mas nisso.
deserto e hospital: seu nu asséptico. Na verdade, superpovoa êsse hospital
(Os areais lençol, o madapolão areal, para bicho, P,lanta e tudo que subviva,

os leitos duna, as dunas enfermaria, a melhor mostra de estilos de aleijão


que a vida a fim de sobreviver se ena,
que o timol do vento e o sol formal
assim como dos outros estilos que ela,
vivem a desinfetar, de morte e vida).
a vida, vivida em condições de pouco,
monta, se não cria: com o esquelético
e o atrofiado, com o informe e o torto;
estilos para que a cati11gueira dá idéias
com seu aleijão poliforme, imaginoso;
tantos estilos, que se toma o hospital
por uma clínica ortopédica, êle todo.

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A CANA DE AÇúCAR DE AGORA

Agora nos partidos, se entrevê pouco Agora nos partidos, se entrevê pouco

da arquitetura clara do objeto cana: do corpo da cana: é demais a palha;


seu desenho, preciso até o cortante, a folhagem das saias de que se cobre
entre a palha informal que a enliana; e onde encobre porque se resguarda.
sua coluna, matemática mas nervosa,
Se resguarda, multiplicando as saias,
em seções construidamente, modulada,
a perna brunida ou o talhe esbelto,
escorando tôda a lage folhai imensa
ou se se resguarda ela, na palha saia,
com uma leveza de colunas para nada;
para não assistir o que vai por perto.
seu verniz metalizado; sua escultura,
coluna de Weissmann ou Vieira (Mary);
em resumo, a elegância fina e moderna
de seu objeto, embora objeto em série.
(A cana se esconde, na cana de agora,
que dá mais palha e evita despalhá-la;
e agora se corre menos, nos partidos,
plantas-de-cana que plantas-de-palha).

72 73
BIFURCADOS DE "HABITAR O TEMPO"

Êle ocorre vazio, o tal tempo ao vivo;


Viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto, literal ou de alpendres; e como além de vazio, transparente,

em ermos, que não distraiam de viver habitar o invisível dá em habitar-se:


a agulha de um só instante, plenamente. · a ermida corpo, no deserto ou alpendre.
Exceção aos desertos: o da Caatinga, Desertos onde ir viver para habitar-se,
que não libera o homem, como outros,
mas que lo~o surgem como viciosamente,
para que êle imagine ouvir-se mundos
a quem foi ir ao da Caatinga nordestina:
ouvindo-se a máquina bicho do corpo;
que não se quer deserto, reage a dentes.
para que, só e entre coisas de vazio,
de vidro igual ao do que não existe,
o homem, como lhe sucede num deserto,
imagine sentir outras ao sentir-se;
embora um deserto, a Caatinga atrai,
ata a imaginação; não a deixa livre,
para deixar-se, ser; a Caatinga a fere
e a idéia-fixa: com seu vazio em riste.

75
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2.
"THE COUNTRY OF THE HOUYHNHNMS"'
(outra composição)

Ou para quando falarem dos Y ahoos:


Para falar dos Y ahoos, se necessita
não querer ouvir falar, pelo menos;
que as palavras funcionem de pedra:
ou ouvir, mas engatilhando o sorriso,
se pronunciadas, que se pronunciem
para dispará~lo, a qualquer momento.
com a bôca para pronunciar pedras;
·
Aviar e ativar, d e b a1xo
· do silêncio,
se escritas, que se escrevam em duro
o cacto que dorme em qualquer não;
na página dura de um muro de pedra;
e mais que pronunciadas ou escritas, avivar no silêncio os cem espinhos

que se atirem, como se atiram pedras. com que pode despertar o cacto não.
Para falar dos Y ahoos, se necessita
que as palavras se rearmem de gume,
como numa sátira; ou como na iroma,
se armem ambiguamente de dois gumes;
e que a frase se arme do perfurante
que têm no Pajeú as facas~de~ponta:

faca sem dois gumes e contudo ambígua,


por não se ver onde nela não é ponta.
77
76
PSICANÁLISE DO AÇúCAR

O açúcar cristal, ou açúcar de usina, Só os banguês que-ainda purgam ainda


mostra a mais instável das brancuras: o açúcar bruto com barro, de mistura;
quem do Recife sabe direito o quanto, ~usina já não o purga: da infância,
e o pouco dêsse quanto, que ela dura. não de depois de adulto, ela o educa;
Sabe o mínimo do pouco que o cristal em enfermarias, com vácuos e turbinas,
se estabiliza cristal sôbre o açúcar, em mãos de metal de gente indústria,
por cima do fundo antigo, de mascavo, a usina o lev~ a sublimar em cristal
do mascavado barrento que se incuba; o pardo do xarope: não o purga, cura.
e sabe que tudo pode romper o mínimo Mas como a cana se cria, ainda hoje,
em que o cristal é capaz de censura: em mãos de barro de gente agricultura,
pois o tal fundo mascavo logo aflora o barrento da pré-infância logo aflora
quer inverno ou verão mele o açúcar. quer inverno ou verão mele o açúcar.

78
79
OS REINOS DO AMARELO 2.

A terra lauta da Mata produz e exibe Só que fere a vista um amarelo outro:
um amarelo rico (se não o dos metais) : . 1 d homem. de corpo humano;
se anima, e ·
o amarelo do maracujá e os da manga, de corpo e vida; de tudo o que segrega
do oití-da-praia, do caju e do cajá; (sarro ou suor' bile íntima ou ranho) '
amarelo vegetal, alegre de sol livre, ou sofre (o amarelo de sentir triste,
beirando o estridente, de tão alegre, de ser analfabeto, de existir aguado) :
e que o sol eleva de vegetal a mineral, amarelo que no homem dali se adiciona
polindo-o, até um aceso metal de pele. o que há em ser pântano, ser-s~ fardo.
Só que fere a vista um amarelo outro, Embora comum ali, êsse amarelo humano
e a fere embora baço (sol não o acende) : ainda dá na vista (mais pelo prodígio):
amarelo aquém do vegetal, e se animal, pelo que tardam a secar, e ao sol dali,

,de um animal cobre: pobre-, podremente. tais poças de amarelo, de escarro vivo.

80 81
O SOL EM PERNAMBUCO

A José Sette Câmara

Pinzón diz que o cabo Rostro Hermoso


(O sol em Pernambuco leva dois sóis,
(que se diz hoje de Santo Agostinho)
sol de dois canos, de tiro repetido;
cai pela terra de mais luz da terra
o primeiro dos dois, 0 fuzil de fogo,
(mudou o nome, sobrou a luz a pino);
incendeia a terra: tiro de inimigo) .
dá-se que hoje dói na vida tanta luz:
O sol, ao aterrissar em Pernambuco ,
ela revela real o real, impõe filtros:
acaba de voar dormindo o mar deserto;
as lentes negras, lentes de diminuir,
dormiu porque deserto; mas ao dormir
as lentes de distanciar, ou do exílio.
se refaz, e pode decolar mais aceso.
' (O sol em Pernambuco leva dois sóis,
assim, mais do que acender incendeia,
sol de dois canos, de tiro repetido;
para rasar mais desertos no caminho;
o segundo dos dois, o fuzil de luz,
ou rasá-los mais, até um vazio de mar
revela real a terra: tiro de inimigo).
por onde êle continui a voar dormindo.

82
B
A URBANIZAÇÃO DO REGAÇO

Os bairros mais antigos de Sevilha Com ruas medindo corredores de casa,

criaram uma urbanização do regaço, onde um balcão toca o do outro lado,

para quem, em meio a qualquer praça, com ruas arruelando mais, em becos,

sente o ôlho de alguém a espioná-lo, ou alargando, mas em mínimos largos,

para quem sente nu no meio da sala os bairros mais antigos de Sevilha

e se veste com os cantos retirados. criam o gôsto pelo regaço urbanizado.

Com ruas feitas com pedaços de rua, í:.les têm o aconchego que a um corpo

se agregando mal, por mal colados, dá estar noutro, interno ou aninhado,

com ruas feitas apenas com esquinas para quem torce a avenida devassada

e por onde o caminhar fia quadrado, e enfia o embainhamento de um atalho,

êles têm abrigos e íntimos de corpo para quem quer, quando fora de casa,

nos recantos em desvão e esconsados. seus dentros e resguardos de quarto.

87
86
OS VAZIOS DO HOMEM 2.

Os vazios do homem não sentem ao nada Os vaz10s do homem, ainda que sintam
do vazio qualquer: do do casaco vazio, a uma plenitude (gôra mas presença}
do da saca vazia (que não ficam de pé contêm nadas, contêm apenas vazios:
quando vazios, ou o homem com vazios) ; o que a esponja, vazia quando plena;
os vazios do homem sentem a um cheio incham do que a esponja, de ar vazio,
de uma coisa que inchasse já inchada; e dela copiarµ certamente a estrutura:
ou ao que deve sentir, quando cheia, tôda em grutas ou em gotas de vazio,
uma saca: todavia não, qualquer saca. postas em cachos de bolha, de não-uva.
Os vazios do homem, êsse vazio cheio, :Ê:.sse cheio vazio sente ao que uma saca
não sentem ao que uma saca de tijolos, mas cheia de esponjas cheias de vazio;
uma saca de rebites; nem têm o pulso os vazios do homem ou o vazio inchado:
que bate numa de sementes, de ovos. ou o vazio que inchou de estar vazio.

88 89
NUM MONUMENTO À ASPIRINA

Claramente: o mais prático dos sóis, Convergem: a aparência e os efeitos


o sol de um comprimido de aspirina: da lente do comprimido de aspirina:
de emprêgo fácil, portátil e barato, ü acabamento esmerado dêsse cristal,
compacto de sol na lápide sucinta. polido a esmeril e repolido a lima,
Principalmente porque, sol artificial, prefigura o clima onde êle faz viver
que nada limita a funcionar de dia, e o cartesiano de tudo nesse clima.
que a noite não expulsa, cada noite, De outro lado, porque lente interna,
sol isento das leis da meteorologia, de uso interno, por detrás da retina,

a tôda hora em que se necessita dêle não serve exclusivamente para o ôlho

levanta e vem (sempre num claro dia): a lente, ou o comprimido de aspirina:

acende, para secar a aniagem da alma, ela reenfoca, para o corpo inteiro,

·quará-la, em linhos de um meio-dia. o borroso de ao redor, e o reafina.

90 91
COMENDADORES JANTANDO 2.
A Frei Benevenuto Santa Cruz

Assentados, mais fundo que sentados,


Assentados fundo, ou fundassentados,
êles sentam sôbre as super-cadeiras:
à prova de qualquer abalo e falência,
cadeiras com patas, mais que pernas,
se centram no problema circunscrito
e de pau-d'aço, um que não manqueja.
que o prato de cada um lhe apresenta;
Se assentam tão fundo e fundadamente
se centram atentos na questão prato,
que mais do que sentados em cadeiras,
atenção ao mesmo tempo acesa e cega,
êles parecem assentados, com cimento,
tão em ponta que o talher se contagia
sôbre as fundações das próprias igrejas.
e que a prata inemocional se retesa.
Então, fazem lembrar os do anatomista
o método e os modos dêles nessa mesa:
contudo, êles consomem o que dissecam
(daí se aguçarem em ponta, em vespa);
o prato deu soluções, não problemas,
e tanta atenção só visa a evitar perdas:
no consumir das questões pré-cozidas

que demandam das cozinhas e igrejas.


92
93
RETRATO DE ESCRITOR

Insolúvel: na água quente e na fria; Solúvel: em tôda tinta de escrever,

nas de furar a pedra ou nas Iangues; o mais simples de seus dissolventes;

nas águas lavadeiras; até nos álcoois primeiramente, na da caneta-tinteiro


com que êle se escreve dêle, sempre
que dissolvem o desdém mais diamante.
(manuscrito, até em carta se abranda,
Insolúvel: por muito o dissolvente;
em pedra-sabão, seu diamante primo) ;
igual, nas gotas de um pranto ao lado,
solúvel, mais: na da fita da máquina
e nas águas do banho que o submerge,
onde mais tarde êle se passa a limpo
em beatitude, e de que emerge ingasto.
o que êle se escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito
( dactiloscrito, já se acaramela muito
seu diamante em pessoa, pré-escrito).
Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,
da rotativa, manando seu auto-escrito
(impresso, e tanto em livro-cisterna
ou jornal-rio, seu diamante é líquido).

94 95
ILUSTRAÇÃO PARA A "CARTA AOS
PUROS" DE VINíCIUS DE MORAES

Uma cal sai por aí tudo, vestindo tudo


A uma se diz cal viva: a uma, morta;
com o algodãozinho alvo de sua camisa,
uma, de ação até o ponto de ativista, de uma camisa que, ao vestir de fresco,
passa de pura a purista, e daí passa veste de claro e de nôvo, e reperfila;
a depurar (destruindo o que purifica). e nas vêzes de vestir parede de adôbe,

E uma, nada purista e só construtora, ou de taipa, d<1 terra crua ou de argila,


essa cal lhe constrói um perfil afiado,
trabalha apagadamente e sem cronista:
uma quina pura, quase de pedra cantaria.
mais modesta que servente de pedreiro,
Uma cal não sai: se referve em caeiras,
aquém de salário mínimo, de nortista.
se apurando sem fim a corrosão e a ira,
o purismo e a intolerância inquisidora,
de beata e gramatical, sàmente punitiva;
se a deixassem sair, sairia roendo tudo
(de tudo, e até de coisas nem nascidas),
e no fim, roídas as fichas e indicadores,
se roeria os dentes: enfim, autopolícia.

96 97
NA BAIXA ANDALUZIA 2.

Nessa Andaluzia colSa nenhuma cessa A terra das telhas, apesar de cozida,

completamente, de ser da e de terra; não cessa de dar~se ao que engravida:

e de uma terra dessa sua, de noiva, segue do feminino; aliás são do gênero
de entreperna: terra de vale, coxa; as cidades ali, sem pedra nem cimento,
donde germinarem ali, pelos telhados,
feitas só do tijolo de terra parideira
e verdadeiros, jardins de jaramago: i

de que herdam tais traços de femeeza.


a terra das telhas, apesar de cozida,
(Sevilha os herdou, todos e ao extremo:
nem cessa de parir nem a ninfomania.
a menos macha, e tendo pedra e cimento).
De parir flôres de flor, não de urtiga:
os jardins germinam em casas sadias,
que exibem os tais jardins suspensos
e outro interior, no pátio de dentro,
e outros sempre onde da terra incasta
dessa Andaluzia, terra sem menopausa,
que fácil deita e deixa, não enviúva,
e que de ser fêmea nenhum fôrno cura.

98 99
PARA MASCAR COM CHICLETS 2.

Quem subiu, no novêlo do chiclets, Quem pôde não reincidir no chidets,


ao fim do fio ou do desgastamento,
e saberente que não encarna o tempo:
sem poder não sacudir fora, antes,
êle faz sentir o tempo e faz o homem
a borracha infensa e imune ao tempo;
sentir que êle homem o está fazendo.
imune ao tempo ou o tempo em coisa,
Faz o homem, sentindo o tempo dentro,
em pessoa, encarnado nessa borracha,
de tal maneira, e conforme ao tempo, sentir dentro do tempo, em tempo-firme,

o chidets se contrai e se dilata, e com que, mascando o tempo chidets,

e consubstante ao tempo, se rompe, imagine-o bem dominado, e o exorcise.


interrompe, embora logo se reemende,
e fique a romper-se, a reemendar-se,
sem usura nem fim, do fio do sempre.
No entanto quem, e saberente que êle
não encarna o tempo em sua borracha,
quem já ficou num primeiro chiclets
sem reincidir nessa coisa (ou nada).

100
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O REGAÇO URBANIZADO 2.

Os bairros mais antigos de Sevilha Com ruas arruelando mais, em becos,

-criam o gôsto pelo regaço urbanizado. ou alargando, mas em mínimos largos,


Com ruas feitas apenas com esquinas êles têm abrigos e íntimos de corpo
e por onde o caminhar fia quadrado,
nos recantos em desvão e esconsados.
para quem sente nu no meio da sala
Êles têm o aconchego que a um corpo
e se veste com os cantos retirados,
dá estar noutro, interno ou aninhado,
com ruas medindo corredores de casa,
para quem quer, quando fora de casa,
onde um balcão toca o do outro lado,
seus dentros e resguardos de quarto.
para quem torce a avenida devassada
e enfia o embainhamento de um atalho,
com ruas feitas com pedaços de rua,
se agregando mal, por mal colados,
para quem, em meio a qualquer praça,
sente o ôlho de alguém a espioná~lo,
os bairros mais antigos de Sevilha

criaram uma urbanização do regaço.

102 103
HABITAR O TEMPO 2.

Para não matar seu tempo, imaginou: E de volta de ir habitar seu tempo:

vivê-lo enquanto êle ocorre, ao vivo; êle ocorre vazio, o tal tempo ao vivo;

no instante finíssimo em que ocorre, e como além de vazio, transparente,

em ponta de agulha e porém acessível; o instante a habitar passa invisível.

viver seu tempo: para o que 1r viver Portanto: para não matá-lo, matá-lo;

num deserto, literal ou de alpendres; matar o tempo, enchendo-o de coisas;

em ermos, que não distraiam de viver em vez do deserto, ir viver nas ruas

a agulha de um só instante, plenamente. onde o enchem e o matam as pessoas;

Plenamente: vivendo-o de dentro dêle; pois como o tempo ocorre transparente

habitá-lo, na agulha de cada instante, e só ganha corpo e côr com seu miolo

em cada agulha instante; e habitar nêle (o que não passou do que lhe passou),

tudo o que habitar cede ao habitante. para habitá-lo: só no passado, já morto.

104 105
DUAS FASES
DO JANTAR DOS COMENDADORES

Assentados, mais fundo que sentados, Assentados fundo, ou fundassentados,


êles sentam sôbre as super-cadeiras: à prova de qualquer abalo e falência,
cadeiras com patas, mais que pernas,
se centram no problema circunscrito
e de pau-d'aço, um que não manqueja.
que o prato de cada um lhe apresenta.
F undassentados se abrem: todoabertos
F undassentados se fecham: revestindo,
ante a mesa, ainda uma mesa-de-espera,
contra tudo em tôrno, bem carangue11a,
e pré-abertos, para as ótimas opções
se mini-ultimando na cozinha e adega; a carapaça que usam, dentro do prato

almiabertos, para que nada lhes escape e de outros círculos e áreas defesas;

na escolha entre tudo o que a bandeja; .se fecham: erguem fronteiras no prato,
calmoabertos, podendo escolher o tudo se entrincheiram atrás das fronteiras;
do que oferecem bandejas e igrejas. se fecham até de poros, o que só fecham

.quando ouvem sermão de outras igre1as.

106 107
PARA A FEIRA DO LIVRO

A Ãngel Crespo·

Folheada, a fôlha de um livro retoma Silencioso: quer fechado ou aberto,


o lânguido e vegetal da fôlha fôlha, incluso o que grita dentro; anônimo:
e um livro se folheia ou se desfolha .só expõe o lombo, posto na estante,
como s~b o vento a árvore que o doa; que apaga em pardo todos os lombos;
folheada, a fôlha de um livro repete
modesto: só 1se abre se alguém o abre,
fricativas e labiais de ventos antigos,
.e tanto o oposto do quadro na parede,
e nada finge vento em fôlha de árvore
aberto a vida tôda, quanto da música,
melhor do que vento em fôlha de livro.
viva apenas enquanto voam suas rêdes.
Toda via a fôlha, na árvore do livro
'
Mas apesar disso e apesar de paciente
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento, (deixa-se ler onde queiram), severo:

ou ventania, varrendo o podre a zero. exige que lhe extraiam, o interroguem;

e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

108 109
INDICE A:
Duas bananas f5 a bananeira ....... . 60
Agulhas ...................... . 62
Rios sem discurso ................ . 64
a: "The country of the Houyhnhnms" .. 66
O mar e o canavial ............... 8 Os rios de um dia ................ . 68
O sertanejo falando 10 O hospital da Caatinga ........... . 70
Duas das festas da mo~;e· .......... . A cana de açúcar de agora ......... . 72
Na morte dos rios ...... "'· .. . 12
Bifurcados de "Habitar o tempo" ... . 74
"R.
Coisas de cabeceira, ~cife. ......... . 14
16 "The country of the Houyhnhnms"
A fumaça no Sertão ......... . (outra composição) . . . . . . . . . . . 76
18
A educação pela pedr~. : : : : : : : : : : : : 20 Psicanálise do açúcar ............. . 78
Elogio da usina e de S. M. B. Andresen 22 Os reinos do amarelo ............. . 80
O urubu mobilizado .............. 24 O sol em Pernambuco ............ . 82
Fazer o sêco, fazer o úmido
O canavial e o mar . . . . . ... 26 B:
28
Uma mulher e o Beb~;ib~ ". ·. ·. ·. ·. ·. ·. ". ·. '_ 30
A urbanização do regaço .......... . 86
Os vazios do homem ............. . 88
b: Num monumento à aspirina ....... . 90
De Bernarda a Fernanda de Utrera Comendadores jantando ........... . 92
34
Uma mineira em Brasília Retrato de escritor ................ . 94
Nas covas de Baza .......... 36
Ilustração para a "Carta aos puros" de
38
Sôbre o sentar-/ esta~~~o·-~~~do. .... . 40
Vinicius de Moraes .......... . 96,
Coisas de cabeceira Sevilha •.... 42
Na Baixa Andaluzia ............. . 98
Dois P. S. a um p~ema ........ . Para mascar com chiclets .......... . 100
Tecendo a manhã ........... . 44
46
O regaço urbanizado ...... '" ...... . 102
Fábula de um arquÚ~t~· ........... . Habitar o tempo ................ . '104
48
Uma ouriça . . . . . . . . . : : : : : : ..... . Duas fases do jantar dos Comendadores 106
Catar feijão . . . . . . . ............... .... . 50 '108
Para a Feira do Livro ............ .
52
Nas covas de Guadix 54 Madrid, Sevilha, Genebra, Berna•:
Mesma mineira em Br~~íÚ~· : : : : : : : : : 56 Janeiro 1962 - Dezembro 1965

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