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O sertão vai virar barragem (carvão, papel, álcool e ração)!

Uma carvoaria, onde o cerrado vira carvão para alimentar auto-fornos de siderúrgicas em Sete Lagoas

Estive mais uma vez no sertão de início da estrada de terra. Passa- ritizeiro, Lassance e Várzea da
Minas. Pedalei entre Buritizeiro mos pelo vilarejo de Xupé e dor- Palma; na região que compreen-
e Paredão, na região noroeste, mimos numa vereda no meio do de Paracatu, João Pinheiro, Bra-
pelo lado esquerdo do Rio São caminho. silândia, Bonfinópolis e Santa Fé
Francisco. Desta vez, fui acom- foi instalada uma usina de bene-
panhado dos fotógrafos e cine- Voltar a pedalar no sertão é como ficiamento de álcool e o cerrado
grafistas Davi Fuzzari e Marco entrar novamente num sonho li- vira cana ((http://migre.me/
Antonio Gonçalves, da Laborató- sérgico, com experiências senso- gBysq).
rio Filmes, que estão fazendo um riais indescritíveis. Mas pedalar
documentário sobre o projeto nessa região provoca também Mais acima, incluindo Unaí, Ari-
“Cavalo Motor”. uma angústia, porque há sempre nos, Buritis e a região da Serra
uma tensão, rastros da devasta- das Araras em Chapada Gaú-
No primeiro dia dormimos em ção que avança a cada ano so- cha predomina a soja, em geral
Buritizeiro, na Pousada Portal bre o cerrado, cedendo hectares transgênica. Isso sem mencionar
do Sertão. Saímos pela manhã para florestas de eucalipto, plan- a extração de gás natural e a ação
a caminho de Barra do Guaicuí tações de cana, de soja, de capim. das mineradoras. Tem mais, em
para fotografar e registrar o en- toda a região as carvoarias fun-
contro do Rio das Velhas com o O mapa da devastação é resu- cionam dia e noite, transforman-
São Francisco. De lá pegamos a midamente o seguinte: florestas do em carbono uma infinidade
estrada no sentido de São Ro- de eucalipto tomam a paisagem de árvores como oiti, gomeira,
mão. Começamos a pedalar no entre Curvelo, Três Marias, Bu- embiruçu, paineira, barbatimão,
pau-doce, lobeira, marmelo, pe- do Tatarana. O segundo usou o pelas plantações não produz
quizeiro, murici, araçá, pau-terra rio como cenário para as grava- alimentos para aquelas pessoas.
e tantas outras. Não é raro en- ções da minissérie “Grande Ser- Os eucaliptos se transformam
contrar trabalho infantil e situ- tão: Veredas” exibida pela Glo- em celulose ou carvão para ali-
ação de escravidão nessas car- bo em 1985 e distribuída para mentar siderúrgicas, a cana vira
voeiras que funcionam na total diversos países. Esse rio que se combustível, a soja vira ração, o
ilegalidade e conivência dos po- abre numa corredeira por sobre minério, commodity. A energia
deres locais. as lajes por mais de um quilô- das barragens não vai iluminar
metro, onde ainda se pesca com aquelas vilas, não vai reduzir o
Mas, agora, uma nova ameaça abundância dourados e surubins preço das tarifas, não vai sequer
paira sobre o cerrado sob a égi- escassos hoje no São Francisco, gerar royalties para os municí-
de do progresso. São as PCH, está condenado a receber três pios. Ela vai sair direto das casas
pequenas centrais hidrelétricas barragens. Isso pode implicar de força para uma central de alta
programadas para interromper num impacto ambiental irrepa- tensão onde então será integra-
o curso de vários rios da região. rável. O projeto já foi aprovado da ao Sistema Nacional adminis-
Estão programadas barragens no pela ANEEL (http://migre.me/ trado pela CEMIG. Fica, portanto
Rio do Sono, no Carinhanha, no gByx4). a pergunta: qual a razão disso?
Itaguari e no Rio Pardo Peque- A destruição do cerrado não vai
no. Os rios Carinhanha e Itaguari E o projeto desenvolvimentista contribuir para diminuir a fome
atravessam unidades de con- segue com apoio da imprensa e de ninguém, não vai reduzir as
servação em Minas e na Bahia, dos órgãos governamentais. Há desigualdades sociais, não vai
como o Parque Nacional Grande cerca de dois anos foi publicado melhorar as condições de vida
Sertão Veredas e banham terras no jornal Estado de Minas um ar- daquelas pessoas, vai somen-
de comunidades tradicionais, tigo sobre a chegada do progres- te ampliar o lucro dos grandes
indígenas e quilombolas. Nessa so no Noroeste de Minas. A ma- produtores rurais, das empresas
região há espécies de plantas e téria especial, publicada em três envolvidas nos projetos e da in-
animais que não são encontra- capítulos, era uma espécie de dústria.
das em nenhum outro lugar do legitimação do social-desenvol- É isso mesmo que queremos?
planeta. Muitas ainda desconhe- vimentismo e, não por acaso, ga-
cidas, talvez jamais cheguemos a nhou o prêmio da Confederação
conhecê-las. Nacional das Indústrias (CNI) ( ”Sertão: estes seus vazios. O se-
http://migre.me/gByyo). nhor vá. Alguma coisa, ainda en-
O Rio do Sono, que corre mais ao contra.”
Grande Sertão: Veredas
sul, na bacia do Paracatu e que Diante disso, o que chama mais
banha o vilarejo de Paredão de atenção é um fato incontestá- Publicado no site
Minas, é mundialmente conhe- vel: esse avanço, esse progresso, Combate Racismo Ambiental
cido graças ao escritor minei- alardeado como imprescindí-
ro Guimarães Rosa e ao diretor vel, não gera nenhum benefício
Walter Avancini. O primeiro es- real para os moradores locais,
colheu esse rio para ambientar além de empregos temporários
a batalha final entre os jagunços e desqualificados, não traz ne-
comandados pelo Hermógenes e nhuma melhoria, só instabili-
os Ramiros, sob chefia de Riobal- dade. A substituição do cerrado

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