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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA

AMERICANOS E CABOCLOS: ENCONTROS E DESENCONTROS EM


FORDLÂNDIA E BELTERRA-PA

Elaine Lourenço

Dissertação apresentada ao programa de


Pós-Graduação em Geografia Humana –
FFLCH – USP, para a obtenção do título
de MESTRE

Coordenador: Professor-titular Ariovaldo Umbelino de Oliveira

São Paulo
1999

I
A PAZ

A paz invadiu o meu coração


De repente me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse os meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais
A paz fez o mar da revolução
Invadir meu destino, a paz.

(Gilberto Gil e João Donato)

II
Dedico este trabalho
ao meu pai e à minha mãe.
O primeiro que me embalou desde a infância
com as estórias da Amazônia e sua gente
e a segunda que é o meu porto seguro
e me oferece condições para alçar grandes vôos.

III
RESUMO

Este texto discute a implantação da Companhia Ford Industrial do Brasil, na


Amazônia brasileira, que se deu a partir de 1927 e ficou sobre o controle dos norte-
americanos até o ano de 1945 quando a concessão foi devolvida para o governo
brasileiro. O estudo foi dividido em seis capítulos que discutem: a trajetória do trabalho
de campo realizado em três diferentes etapas; a contextualização histórica do
empreendimento que se deu após o declínio da produção da borracha na região; os
debates realizados na imprensa de Santarém quando da chegada da empresa; a discussão
sobre a fração do território capitalista implantado na área; as hipóteses sobre o fracasso
do empreendimento e um levantamento parcial sobre os trabalhadores da Companhia.
As entrevistas com os antigos trabalhadores foram intercaladas ao longo dos capítulos
mostrando a sua visão dos acontecimentos e buscando ressaltar as diferenças entre o
sistema de trabalho implantado, baseado na exploração capitalista direta e marcado pelo
fordismo e taylorismo, e o que prevalecia no entorno, com relações tradicionais de
subordinação.

IV
ABSTRACT

This text discuss about the introduction of the Companhia Ford Industrial do
Brasil in the area of the brazilian Amazonian, which began in 1927 and was controlated
by north americans until 1945, when the concession returned to brazilian government.
This study is divided in six parts: the research in the area, which was visited for three
rtimes; the historical context of the undertaking after the decline of the rubber
production there; the arguments realized by the press in Santarém qhen the company
arrived; the discussion about the part of the capitalist territory implanted in region; the
hypothesis about the failura of the undertaking and a parcial research about the workers
of the company. The interviews with the ancients workers were inserted along the
chapters and show their vision of the occurrences na getting to throw into relief the
differences between the work method implanted, that was inspired in the direct
capitalist exploration with the fordism and taylorism, prevailing the traditionales
relationship of subordination.

V
AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa tem uma longa trajetória que se iniciou com duas pessoas muito
especiais, sem as quais este trabalho não teria sido realizado, que são a Márcia e a
Regina. A primeira apresentou-me à segunda, e com ambas tive a oportunidade de fazer
meu primeiro trabalho de campo. A elas o meu mais sincero obrigada.
Procurando não esquecer de ninguém, e já peço desculpas antecipadas pois sei
que vou fazê-lo, gostaria de agradecer a todas as pessoas com quem eu estive em
trabalho de campo e que me proporcionaram momentos importantes não só em termos
de pesquisa, como também de convivência humana: a Gabriela, o Celso, o Reinaldo, a
Magali e o Alfredo.
Em Santarém tive a satisfação de conhecer bons amigos, que não só me
hospedaram, como a dona Lindomar e a Raquel, como também fizeram a minha estadia
na cidade mais agradável, como o Cristóvam Sena, o Pedro Emiliano, a Alda. Sou
imensamente grata a todos os trabalhadores que eu entrevistei e que puderam me contar
suas estórias do “tempo dos americanos”. Sem a ajuda deles, este trabalho não existiria
e sinceramente espero não decepcionar suas expectativas.
O exame de qualificação também foi um momento importante do trabalho, com
as observações do professor Perides sobre o fordismo e do professor Ariovaldo sobre o
território. A eles, meu muito obrigada.
Uma outra colaboração fundamental foi dada desde o início pelas minhas irmãs,
pela minha mãe e, mais tarde, pelo meu cunhado, cuja ajuda é impossível de enumerar,
mas que deixou seus rastros ao longo do trajeto.
Aos meus amigos que dão brilho e alegria à minha existência e que durante
muitos anos têm ouvido falar da tal da “Fordlândia”, e que por diversas vezes me
forneceram pistas importantes sobre ela quero expressar minha profunda gratidão. São
eles a Sueli, o Luiz, o Cláudio, a Meire, o Paulo, a Libânia e o Chagas, o Adailto, o Luiz
Carlos, a Silvia, o Vadão, a Carla Regina, o Bernardo e a Ana.
Este trabalho, que começou de forma tão agradável, também foi finalizado da
mesma forma, porque graças aos problemas burocráticos criados pela aposentadoria da
Regina, tive a satisfação de contar não só com a sua leitura atenta, como também com a
do Ariovaldo, que foi quem me orientou na reta final do trabalho. Não quero com isto
responsabilizá-los pelas minhas falhas, mas sim dividir os meus acertos.

VI
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 001
CAPÍTULO I – TRAJETÓRIA DA PESQUISA 005
CAPÍTULO II – O CONTEXTO E A LOCALIZAÇÃO DA COMPANHIA
FORD INDUSTRIAL DO BRASIL 016
A Amazônia brasileira 018
Os seringais amazônicos dos séculos XIX e XX 020
O declínio da produção de borracha na Amazônia brasileira
e a ascensão dos seringais asiáticos 023
Os antecedentes 025
A instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil 030

CAPÍTULO III – A CHEGADA E A INSTALAÇÃO DA COMPANHIA FORD


INDUSTRIAL DO BRASIL 041
A imprensa e a chegada da Companhia Ford ao Tapajós 046
O jornal A Cidade nos anos de 1927, 1928, 1929
e 1930:a passagem dos elogios às críticas 048

CAPÍTULO IV – O FORDISMO, O TAYLORISMO E A COMPANHIA


FORD INDUSTRIAL DO BRASIL 075
A Companhia Ford Industrial do Brasil e o território capitalista 080
O fordismo e o taylorismo na Amazônia brasileira 084
O fordismo, o taylorismo e a Companhia Ford Industrial
do Brasil 088
O fordismo e a construção de um novo homem e de
uma nova sociedade 089

CAPÍTULO V – OS LIMITES DA COMPANHIA FORD INDUSTRIAL


DO BRASIL 111
Os limites oferecidos pelo meio 112
A correspondência diplomática entre o Brasil e os
Estados Unidos 124
A falta de trabalhadores como um dos limites da Companhia
Ford Industrial do Brasil 138

CAPÍTULO VI – OS TRABALHADORES DA COMPANHIA FORD


INDUSTRIAL DO BRASIL 146
Os trabalhadores da Companhia Ford Industrial do Brasil
e suas diferentes formas de resistência 157

CONSIDERAÇÕES FINAIS 177


BIBLIOGRAFIA 180

VII
INTRODUÇÃO

O tema deste trabalho é a discussão sobre a experiência da Companhia Ford


Industrial do Brasil1, na Amazônia brasileira, entre 1927 e 1945, dando ênfase nas
relações de trabalho lá implantadas, buscando ressaltar como este modelo contrasta com
o predominante na região, caracterizando uma fração diferenciada do território
capitalista no Brasil.
Esta pesquisa foi iniciada sob a orientação da professora-doutora Maria Regina
Cunha de Toledo Sáder, em 1993, sendo que a partir de 1996 ela passou a ser tema de
reflexão para um dissertação de mestrado no Departamento de Geografia da
Universidade de São Paulo. No ano de 1999, devido a problemas burocráticos advindos
com a aposentadoria da professora, a orientação final foi feita pelo professor-titular
Ariovaldo Umbelino de Oliveira.
O objetivo inicial da pesquisa era a reflexão sobre os trabalhadores que
participaram do empreendimento e que foram entrevistados ao longo dos trabalhos de
campo realizados. Durante o desenrolar do projeto e de posse de documentos obtidos
outras preocupações foram acrescentadas: o empreendimento apresentava-se como uma
novidade para a região, constituindo-se em um enclave, criando diversos problemas no
seu entorno. Além disso, as normas implantadas pela Companhia seguiam os padrões do
fordismo e do taylorismo o que era inovador não só na Amazônia, como também no
Brasil.
Desta forma, o projeto foi ampliado a fim de contemplar não só o
empreendimento visto por seus antigos trabalhadores, como também os debates
realizados na imprensa de Santarém que mostram as expectativas iniciais dos residentes
e a reversão das mesmas com a implantação da empresa; a constituição do projeto como
uma fração do território capitalista mundial e as diferenças culturais que ficaram
evidenciadas no processo de constituição de Fordlândia e de Belterra, os núcleos
urbanos construídos pelos yankees para viabilizar o retorno do capital investido nas
terras cedidas pelo governo do estado do Pará. Estas características inovadoras
justificam o presente texto e marcam sua diferença com o de outros autores que já se
debruçaram sobre este projeto, que buscaram ressaltar ou os aspectos ambientais, ou a
viabilidade econômica do empreendimento.

1
Como forma reduzida, por vezes utilizarei a palavra “Companhia” para me referir à mesma.

1
Este trabalho está dividido em seis capítulos: o primeiro narra a trajetória do
trabalho de campo, realizado em diferentes etapas, e que representa um dado essencial
na pesquisa. Os contrastes entre a realidade da região e a que vivencio na cidade de São
Paulo levaram-me a importantes reflexões sobre a importância do mesmo, sem o qual eu
ficaria privada de vivenciar experiências novas, acreditando que tudo se passava da
mesma forma e na mesma paisagem com a qual estou acostumada.
O segundo capítulo situa o momento em que se deu o empreendimento,
buscando contextualizar a experiência não só no seu tempo histórico, como também no
espaço em que se deu, no caso o oeste do Pará, na Amazônia brasileira. Assim, o
recurso à História se fará como uma forma de possibilitar a inserção deste
empreendimento como mais uma das tentativas de recuperação econômica da região
amazônica, após aquele período de apogeu da exploração da borracha, que se deu entre
o fim do século passado e a primeira década deste. Nesta parte também é analisado o
termo de concessão de terras à Companhia, feita pelo governo do estado do Pará,
ressaltando a enorme gama de possibilidades de exploração que este possibilitava à
Companhia.
A chegada e a instalação da Companhia são analisadas no terceiro capítulo. O
recurso utilizado será a interpretação dos textos dos jornais de Santarém referentes
àquele período, entre os quais foi selecionado A Cidade, que cobre o período inicial de
instalação da empresa.
A implantação do fordismo/taylorismo, não só como uma forma de
gerenciamento, mas também como uma forma de disciplinar os trabalhadores é
analisada no quarto capítulo, no qual ainda há a contextualização do empreendimento
como parte da expansão do território capitalista mundial, do início do século XX.
As discussões que foram feitas em torno dos problemas enfrentados pela
Companhia, tanto do ponto de vista do meio-ambiente, quanto da falta de trabalhadores
são analisadas no quinto capítulo, que contém não só as discussões elaboradas pelos
pesquisadores acadêmicos, como também trechos da correspondência diplomática entre
o Brasil e os Estados Unidos.

2
O sexto e último capítulo traz à tona um perfil dos trabalhadores e de suas
vivências cotidianas, do chamado “tempo dos americanos”, dos quais se lembram com
muita saudade, apesar de seus discursos nem sempre serem tão favoráveis à Companhia.
É preciso ressaltar que os trechos das conversas realizadas com os antigos funcionários
de Fordlândia e Belterra, que trabalharam para os americanos, estão inseridos ao longo
do texto, buscando promover um diálogo direto entre o discurso elaborado e as
memórias que as pessoas guardam daqueles momentos vividos.

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CAPÍTULO I

TRAJETÓRIA DA PESQUISA

4
TRAJETÓRIA DA PESQUISA

As estórias da Amazônia acompanham minha vida desde a infância, quando meu


pai, que esteve durante quatro anos como militar em uma área na fronteira entre o
Brasil, o Peru e a Colômbia; embalava minhas noites com seus relatos. Já o meu
interesse pela questão do trabalho vem desde o início da minha militância sindical,
como professora da rede pública estadual e de ensino e de instituições bancárias.
A possibilidade de juntar estas duas temáticas surgiu em 1993, quando tive a
oportunidade de fazer parte de uma pesquisa de trabalho de campo, na Amazônia, com a
professora Maria Regina Cunha de Toledo Sáder e outras duas pesquisadoras, a Márcia
Maria Cabreira e a Gabriela Soares. Naquela época eu era estudante do curso de pós-
graduação latu sensu em Ciências Sociais, da Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo. A condição exigida para que eu participasse do trabalho era que eu
contribuísse no estudo de alguma das áreas a serem visitadas e a sugestão oferecida foi
Fordlândia. Assim, fiz a minha primeira leitura sobre o assunto, através de um artigo de
Cruls (1939), publicado na Revista Brasileira de Geografia, intitulado Impressões de
uma Visita à Companhia Ford Industrial do Brasil. Esta viagem foi a minha primeira
experiência em trabalho de campo e já me indicou a importância deste como uma
abordagem da realidade de uma forma mais próxima, junto aos locais onde os fatos
estudados ocorreram. Ao voltarmos do “périplo amazônico”, conforme denominação
dada pela Regina, montamos um grupo de estudos sobre a Amazônia brasileira, com
seminários quinzenais que foram incluídos em um projeto do Laboratório de Geografia
Política e Planejamento Territorial e Ambiental, do Departamento de Geografia, da
Universidade de São Paulo, denominado “Geografia das Modernidades”.
Estivemos em Imperatriz e Grajau, no Maranhão; em Belém, Santarém,
Fordlândia e Belterra, no Pará; e em Manaus, no Amazonas. Dentre todos estes lugares,
o que mais me marcou foi a visita à Fordlândia, onde chegamos ao amanhecer, após
termos navegado durante toda a noite, subindo o rio Tapajós. É difícil descrever a
sensação que esta visita causou, é um misto de nostalgia, transmitida pelos relatos,
mesclada com a revolta de saber que aqueles moradores se encontravam tão
desassistidos pelo governo federal, que era o responsável pela área. De qualquer forma,
havia uma beleza e um encantamento que me levaram a escolher este local como objeto
de minhas reflexões. A visita a Belterra, do meu ponto de vista, não chega a ser tão
encantadora, uma vez que esta se encontra a cerca de 60 km de Santarém, e é alcançada

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através da rodovia Santarém-Cuiabá, sendo metade do percurso asfaltada, e metade não,
fazendo com que os visitantes cheguem bastante empoeirados, após mais de uma hora
de viagem de ônibus.
Desta forma, pude conciliar as minhas duas áreas de interesse - o estudo dos
trabalhadores e o estudo da Amazônia -, através desta opção de estudar o
estabelecimento da Companhia Ford Industrial do Brasil, tendo como ponto de partida e
como referência principal seus trabalhadores, através dos documentos de registro, bem
como das entrevistas que venho realizando desde então.
Esta viagem resultou em um artigo, escrito em setembro de 1993, com o título
Relato de viagem a uma certa Amazônia: Fordlândia e Belterra, não publicado, no qual
analiso as minhas primeiras impressões, partindo da análise do contrato de concessão
das terras, feito pelo governo do estado do Pará, para a Companhia Ford Industrial do
Brasil. Já naquele texto, procurei estabelecer os parâmetros do fordismo/taylorismo
empregado como forma de administração; indiquei algumas contestações a respeito do
empreendimento contidas no jornal A Cidade, de Santarém e discuti algumas formas de
resistência dos trabalhadores, expressas em um movimento reivindicatório denominado
“Quebra-Panelas”, ocorrido em fins de 1930, e nas contestações que se fazia à proibição
do consumo de álcool e da farinha nos limites da concessão.
Na ocasião deste primeiro trabalho de campo já pude coletar grande parte do
material que possuo, desde uma cópia do livro de Cohen, escrito em 1929, e que se
encontra na biblioteca do Museu Emílio Goeldi, em Belém/PA, até uma grande
quantidade de entrevistas que realizei com antigos trabalhadores da Companhia. A visita
do nosso grupo ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), em Belém/PA,
representou também uma passagem importante nesta trajetória de pesquisa, uma vez que
o coordenador da instituição, o professor Francisco de Assis Costa estava justamente
naqueles dias lançando o seu livro, fruto da sua redação de mestrado no Centro de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Agrícola (CPDA) da Fundação Getúlio Vargas do Rio
de Janeiro, no qual analisava justamente a Companhia Ford Industrial do Brasil, do
ponto de vista da economia, fazendo uma grande análise da empresa, a partir dos
balanços a que teve acesso. Pudemos conversar com o autor e obter um exemplar do seu
livro.
Quero destacar ainda, a existência de uma biblioteca particular, fundada em
23/09/81 e que hoje faz parte de um centro cultural, com o nome “Boanerges Sena”,
dirigida por Cristovam Sena, que assim se apresentou, em entrevista realizada em julho

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de 1993: “meu nome é Cristovam Sena, eu sou engenheiro florestal da Emater e, nas
horas vagas, mexo com papel antigo, papel velho... Eu digo sempre para a Ruth, que é
minha esposa, que ela não se preocupe de envelhecer que, cada vez que ela envelhece
mais, eu vou gostando mais dela.” O acervo desta biblioteca é riquíssimo: lá se
encontram desde jornais das décadas de 20 e 30 do presente século, até publicações
recentes, especialmente aquelas dedicadas à Amazônia. Além disso, há uma enorme
coleção de fitas de vídeo gravadas com personalidades da região, entre as quais eu
destacaria a do Frei Tiago, que foi Bispo de Santarém e, a partir de 1943, visitava a
concessão feita aos americanos, para rezar as missas, uma vez que não era permitido
que os padres lá residissem, o que só foi conseguido com a intervenção do Bispo de
Detroit junto a Henry Ford.
Merece destaque também o fato de que esta biblioteca é mantida pelos próprios
recursos de seu proprietário, o que torna a iniciativa ainda mais digna de elogios. Desta
forma, seja pela qualidade do seu acervo, seja pela amabilidade de Cristovam, esta
constitui ponto de parada obrigatório para todos aqueles que estudam a região.
Esta biblioteca do Cristóvão poderia fazer um contraponto, por exemplo com a
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no Rio de Janeiro: ao fazer um
levantamento bibliográfico na biblioteca do Departamento de Geografia da USP,
deparei-me com uma edição comemorativa da Revista Brasileira de Geografia, editada
em 1944, destinada somente à Amazônia. Na bibliografia de tal obra, na parte
assinalada como arquivo corográfico, encontrei diversos textos sobre Fordlândia e
Belterra, publicados na imprensa nacional, e que estavam classificados na pasta “E-11-
5-4-3 Fordlândia”. Durante o mês de julho de 1999 comuniquei-me, por telefone, por
diversas vezes com o responsável pelo acervo dos documentos na referida biblioteca,
sendo que o mesmo não foi capaz de localizar os que eu procurava.
Ainda nesta minha primeira visita, conheci o dentista aposentado Emir
Bermenguy, que se alia ao Cristovam nesta tentativa de preservação da memória e que
me forneceu cópias de alguns artigos de jornais sobre o empreendimento americano.
Um deles, inclusive, é de sua própria autoria e tem o sugestivo título de “Belterra e
Fordlândia: vexames nacionais”, tendo sido publicado no Jornal de Santarém, em
06/07/68.
Uma questão que me preocupava desde aquele momento era sobre o paradeiro
dos registros dos empregados da Companhia, uma vez que acreditava que estes
pudessem fornecer dados importantes, especialmente sobre a origem dos trabalhadores,

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uma vez que durante o trabalho de campo eles eram apresentados ora como nordestinos,
ora como paraenses ou provenientes das circunvizinhanças.
Esta curiosidade levou-me a procurar o escritório da Ford do Brasil, em São
Bernardo do Campo/SP, em janeiro de 1995, em busca de notícias destes registros. Em
contato com o gerente de imprensa, pude constatar que não havia por parte da empresa
nenhum interesse no resgate da história de Fordlândia e Belterra, uma vez que o
empreendimento havia sido frustrante no que diz respeito ao capital investido e o
retorno obtido e que também lá nada se sabia sobre estes documentos de registro.
Através de indicações constantes na bibliografia do livro de Dean (1989), pude
constatar a existência de um museu da Companhia Ford nos Estados Unidos, bem como
a existência de documentos relativos à concessão feita aos americanos, arquivados no
National Archives em Washington.
Aproveitando o contato que possuía com os escritórios da Ford em São Paulo,
solicitei a minha apresentação junto ao museu em Dearborn e aos escritórios de
Washington (D.C.), no que fui prontamente atendida.
Assim, em março de 1995, junto com a pesquisadora Márcia Maria Cabreira,
que desenvolvia dissertação de mestrado em Geografia Humana na Universidade de São
Paulo, embarquei para os Estados Unidos da América, tendo primeiramente estado na
Biblioteca Pública de Nova Iorque, onde não encontrei nada que interessasse ao meu
trabalho. Já em Washington, no National Archives, tive acesso a alguns documentos de
correspondência diplomática, que se referiam ao caso de Fordlândia e Belterra e pude
fazer uma cópia em vídeo de uma fita gravada pelos americanos em sua concessão, com
trechos de cenas de 1929, 1930, 1932 e 1942, incluindo uma vista aérea de Fordlândia
em 1930. Estas cenas fazem parte de algumas fotografias ao longo deste texto.
Nossa próxima parada foi em Detroit, de onde seguimos para o Henry Ford
Museum & Greenfield Village, em Dearborn, em cuja biblioteca encontramos algumas
fotos, inclusive a de Getúlio Vargas visitando Belterra, em outubro de 1940; um
conjunto de reportagens realizadas em 1928 por um correspondente americano que
esteve em Fordlândia; o relatório de Carl d. LaRue escrito em 1927 quando de sua visita
à Amazônia brasileira, mais especificamente em Santarém e no vale do Tapajós; e um
relato da senhora Victor J. Perini que viveu em Fordlândia por três meses no ano de
1930 acompanhando seu marido que era funcionário da Ford.
Na volta da viagem fui convidada pela Ford do Brasil para acompanhar dois
jornalistas alemães que desejavam conhecer Fordlândia e Belterra, uma vez que tinham

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tomado conhecimento das mesmas em um artigo publicado na imprensa do seu país.
Desta forma, em fins de março retornei à minha área de estudo tendo novamente a
possibilidade de visitar as localidades, bem como à biblioteca de Cristovam Sena, que
nos recebeu com a costumeira hospitalidade. Embora a estadia não tenha sido longa,
aproveitei a visita para realizar novas fotografias que incorporei ao meu acervo.
Também realizei entrevistas com pessoas que já havia conhecido na viagem anterior.
Em setembro de 1996 através de informações obtidas com o pesquisador Carlos
Aparecido Fernandes que residia em Alcântara/MA pude realizar uma entrevista em São
Luiz com a assistente social Romain, que nascera em Belterra na década de 30, filha de
mãe paraense e pai escocês, o qual trabalhava para a Companhia. Sua entrevista foi
muito enriquecedora, especialmente o seu relato sobre o cuidado com os jardins; o
trabalho das mulheres recolhendo as lagartas que infestavam as plantações; e a forma
como deixaram os seringais da Ford depois do falecimento de seu pai, que fez com que
sua mãe fosse para a capital do estado em busca de emprego que pudesse sustentar a si e
a suas duas filhas. Esta mudança fez com que a minha entrevistada pudesse ter contato
com realidades diferenciadas, o que a levou a elogiar os americanos no cuidado que
dispensavam à saúde na área a eles concedida no Pará.
Nos meses de julho e agosto de 1997 estive novamente na Amazônia começando
por Belém onde consultei a biblioteca do Centur (Centro de Turismo e Cultura), órgão
vinculado ao governo do estado, tendo encontrado nos jornais da década de 40 as
notícias sobre a visita do presidente Getúlio Vargas a Belterra. Os exemplares das
décadas anteriores encontravam-se em péssimo estado de conservação, não podendo ser
consultados. A biblioteca da Universidade Federal do Pará não pode ser consultada pois
se encontrava fechada por estar em reforma.
De Belém fui para Manaus, de avião, tendo me encontrado com outros dois
pesquisadores, a Magali Franco Bueno e o Alfredo Pereira de Queirós Filho, aos quais
me juntei para partirmos em um navio da Enasa - a companhia estatal de navegação -
rumo a Santarém. Esta viagem me permitiu conhecer um pouco mais a região
amazônica, uma vez que iniciamos o trajeto pelo rio Amazonas, podendo observar a
paisagem que nos cercava. À primeira vista ela parecia repetitiva marcada unicamente
pela floresta que parecia homogênea. Foi só quando conseguimos o binóculo do
comandante emprestado, que pudemos ver os traços da ocupação humana, bem como a
diversidade vegetal, embora não encontrássemos nenhuma grande concentração humana
até alcançarmos Parintins, depois de mais de 20 horas de viagem, tendo sido esta a

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primeira parada do navio. Há que se ressaltar que esta embarcação era extremamente
lenta, e isto foi explicado pelo comandante como sendo fruto da má gestão da empresa,
uma vez que o motor colocado na mesma não tinha capacidade suficiente para a sua
movimentação, além do que os diversos reparos nele feitos não se deram com peças
apropriadas. Assim, costumo relatar que nós só ultrapassamos canoas, ainda assim
apenas as que se encontravam paradas, porque as demais eram mais velozes.
Durante a noite a embarcação aportou em Oriximiná, sendo que neste dia pude
ver um dos mais lindos espetáculos da natureza: a lua nascendo ao longe, como uma
enorme bola de fogo, subindo lentamente no firmamento, até adquirir o seu brilho
característico. O nosso ponto de parada foi Santarém, onde chegamos na manhã
seguinte, e a embarcação seguiu para Belém.
É importante neste ponto esclarecer que a existência destes documentos em
posse do Ministério da Agricultura pode ser explicada pela história da área a partir da
saída dos americanos. O empreendimento da Companhia Ford Industrial do Brasil foi
finalizado em 24.12.1945 com o decreto-lei 8440 de 24/12/1945 (Diário Oficial da
União de 28.12.1945), o qual determinava que a empresa americana deveria ser
ressarcida pelo governo brasileiro através do Banco de Crédito da Borracha S.A. - atual
Banco de Crédito da Amazônia - em cinco milhões de cruzeiros, os quais
correspondiam à indenização pela infra-estrutura construída, incluindo cerca de
5.000.000 pés de seringueira. Para Costa (1993, p. 110) o prejuízo da empresa foi de
US$ 9.276.655,04, em valores de 1945.
O referido decreto devolveu as terras para o patrimônio da União estabelecendo
que seriam administradas pelo Instituto Agronômico do Norte até a criação de um órgão
específico para este fim. Num primeiro momento Felisberto Camargo, diretor do citado
instituto, optou por manter as seringueiras em Belterra e ampliar a área de cultivo com
outras culturas tropicais; bem como por instalar a pecuária em Fordlândia para onde
levou gado asiático da melhor qualidade. Em 1958 foi criado o Estabelecimento Rural
do Tapajós (ERT), vinculado ao Ministério da Agricultura, para a administração da
área. Em 1962 o ERT passou para a Superintendência da Política e Reforma Agrária
(SUPRA) voltando para o Ministério da Agricultura em 1964 com a extinção daquele
órgão. Em 1969 houve a transformação destas localidades em Bases Físicas
Operacionais - Base Física de Fordlândia e Base Física de Belterra - vinculadas à
Diretoria Estadual do Ministério da Agricultura do Pará (DEMA/PA).

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Durante a administração pelo governo brasileiro foram formadas diversas
comissões de trabalho que elaboraram pareceres sobre o destino de Fordlândia e
Belterra. É importante observar que, inicialmente, foi mantida a forma de exploração da
Companhia, inclusive em relação à contratação de empregados e à jornada de trabalho.
A maior parte dos funcionários passou para o quadro do Ministério da Agricultura e
atualmente encontra-se aposentada ou já faleceu.
Em julho de 1997, na minha última viagem, havia uma discussão a respeito da
incorporação de Fordlândia ao município de Aveiro, que seria realizada e possivelmente
aprovada em sessão extraordinária da Câmara Municipal da segunda. Esta prefeitura já
estava reformando uma das casas da Vila Americana para moradia do prefeito. Em
conversa mantida com o padre Vilmar, responsável pela paróquia de Fordlândia, fui
informada que esta é uma briga antiga que a própria transferência da paróquia de Aveiro
para Fordlândia, em 1943 havia desgostado os habitantes da primeira, que não aceitaram
o fato.
Ainda em Fordlândia, através de uma funcionária do Ministério da Agricultura,
pude entrevistar três antigos trabalhadores da Companhia que eu ainda não tinha
conhecido, sendo que a esposa de um deles, filha de ex-funcionários, fez várias críticas
aos americanos especialmente no que diz respeito à disciplina exigida por eles. Aliás,
em todas as entrevistas que realizei, o tom predominante é o do elogio ao
empreendimento, embora o descontentamento possa ser garimpado nas entrelinhas. De
qualquer maneira acredito que este desencontro de políticas para a área depois da saída
dos americanos possa ser o responsável, em grande parte, por esta nostalgia presente na
maior parte dos discursos.
Belterra em 1996 transformou-se em município, embora isto ainda fosse um fato
ilegal, uma vez que não havia autorização do governo federal mas apenas do governo
estadual, através do governador Almir Gabriel que havia assinado um decreto
autorizando a emancipação. Nas primeiras eleições realizadas para a prefeitura saiu
vencedor Oti Silva Santos, do PMDB, que anteriormente havia ocupado interinamente a
prefeitura de Santarém, onde também havia sido vereador, além de ter sido deputado
estadual na Assembléia Legislativa do Pará.
Durante a entrevista que realizei com o prefeito, ele me falou das dificuldades do
novo município, e também fez elogios à Companhia, afirmando que a maior exploração
dos trabalhadores na área, tinha sido realizada pelo governo brasileiro, que nas décadas
de 60 e 70 havia contratado seringueiros como arrendatários, não lhes dando nenhuma

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garantia: não tinham registro na carteira profissional e nem tinham direito à
aposentadoria. Apenas os empregados mais graduados, como professores, bombeiros e
capatazes tiveram estes direitos reconhecidos.
A proximidade de Santarém faz com que Belterra tenha uma economia mais
dinâmica do que Fordlândia e a impressão de abandono e nostalgia que esta causa não
se verifica na primeira. Ainda assim, no último dia desta viagem, estive no Pindobal, a
praia onde se localizava o porto da Companhia, tendo lá chegado ao final da tarde. Há
apenas uma família que lá habita, com cujas crianças tomei banho no rio. É difícil
descrever qual é a sensação que se tem ao chegar: a beleza do entardecer era realçada
pelo silêncio reinante; as águas do Tapajós deslizavam mansamente, sem que nada as
perturbasse. É realmente encantador, e me fez refletir como a instalação da Companhia
representava uma grande agressão para aquelas populações, com um modo de vida tão
diferente do que foi implantado, cujo símbolo pode ser representado pelas caixas d’água
- uma em Fordlândia e duas em Belterra -, que possuem apitos que serviam para marcar
os horários do início e do fim dos trabalhos. O contraste deste tempo, marcado pelo
relógio, com o tempo da região, marcado pelos ciclos da natureza, pelas cheias e
vazantes do rio, é realmente enorme!
Todo este caminho percorrido tem me levado a reflexões a respeito do
significado da instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil na Amazônia
brasileira especialmente no que diz respeito à criação de uma fração determinada do
território capitalista, que funcionava como um grande enclave na região e que, de
alguma forma, é um dos precursores dos grandes projetos que para lá se dirigiram a
partir dos anos 70.
Finalizando este relato, gostaria de ressaltar a importância que todas estas
pesquisas de campo, especialmente as realizadas na Amazônia, tiveram na minha
formação como pesquisadora. Foi a partir delas que eu pude formular questões sobre a
diversidade que encontrei, foi lá que eu pude ter contato com homens e mulheres reais,
que lá construíram suas vidas e depositaram seus sonhos. É importante ressaltar que este
olhar é de alguém que tem uma vivência exclusivamente urbana, que nasceu e se criou
na cidade de São Paulo. Desta forma, as diferenças são ainda mais marcantes.
A leitura de Lacoste (1997) - particularmente os capítulos “Esses homens e essas
mulheres que são ‘objetos’ de estudo” e “É preciso que as pessoas saibam o porquê das
pesquisas das quais são o objeto” -, e as reuniões que fiz com a minha orientadora
também me fizeram refletir sobre o meu papel de pesquisadora, sobre qual seria o

12
significado do meu trabalho. A conclusão que cheguei é a de que, como diz Regina
Sáder, em um país tão carente de pesquisas como o nosso, todos os trabalhos se
justificam. Mais do que isso, procurar entender como se deu este empreendimento tão
particular, pode abrir novos caminhos de pesquisa, além de acabar por se constituir em
uma homenagem aqueles homens e mulheres que dele participaram.
O texto de Lacoste (p. 173) também tem uma referência importante em relação
àqueles que são ‘objetos’ de estudo: “todo geógrafo ‘no terreno’ (esse termo tem um
valor muito forte para os geógrafos, assim como para os militares) sabe muito bem que
ele não pode conduzir sua pesquisa sem a simpatia das pessoas que vivem ali; e se
esforça, aliás, por suscitar essa simpatia: não somente eles respondem às suas
questões, eles lhe dão explicações, eles o guiam em direção aos locais que quer ver,
mas também eles o acolhem, abrigam e repartem com ele o que têm para comer, dando-
lhe a melhor parte.” (Grifos meus).
Em 1993 e em 1997 tive a oportunidade de vivenciar esta experiência: na
primeira fiquei hospedada em Santarém, na casa de uma professora, filha de um antigo
trabalhador da Companhia, que veio também a se tornar uma boa amiga, e da segunda
vez fiquei na casa da mãe dela, já que ela não vivia mais na cidade. Não só na casa das
pessoas, como também nas minhas andanças pude constatar a afirmação do autor, havia
uma acolhida bastante afável por parte das pessoas que entrevistei, sendo que umas me
apresentaram às outras, facilitando sobremaneira o meu trabalho. Até mesmo no
Ministério da Agricultura, onde estive por quatro dias seguidos copiando dados dos
registros de empregados, foi-me cedida uma sala para trabalhar que dispunha inclusive
de ar-condicionado, que em alguns momentos se torna imprescindível em um lugar tão
quente!
Um outro acontecimento que merece registro em relação ao trabalho de campo é
o fato de que, a partir dele, pode-se encontrar caminhos não imaginados, que às vezes
nos aparecem de forma casual. Neste caso, há o exemplo de uma ficha de um
empregado que encontrei no Ministério da Agricultura e que, no primeiro momento,
chamou minha atenção apenas pelo fato de tratar-se de um alemão. No entanto, ao
analisar a cópia que trouxe para São Paulo, pude verificar que no verso da mesma há
uma anotação informando que o mesmo não era empregado da Companhia e apenas
fazia a manutenção dos relógios da mesma. Relógio, tempo marcado pelo relógio,
cronometrado, dividido em tarefas a serem cumpridas em jornadas, tudo isto me ajudou

13
a compreender a enorme distância entre a cultura tradicional da Amazônia e esta nova
disciplina que o capital chegara e implantar.
Por fim, é importante lembrar que nem tudo são flores na Amazônia, por
exemplo, há uma enormidade de mosquitos que apreciam muito o meu sangue
paulistano, há um calor e uma umidade que chegam a incomodar quando os cabelos
permanecem todo o tempo molhados e há uma culinária diferente da que estou
acostumada: a tentativa de cozinhar um pacote de macarrão italiano comprado no
mercado resultou em um pacote que possuía mais bichos do que massa. Apesar disto os
peixes têm um sabor inigualável e a lembrança do creme de cupuaçu embala minhas
doces saudades dos dias em que lá estive.

14
CAPÍTULO II

O CONTEXTO E A LOCALIZAÇÃO DA COMPANHIA


FORD INDUSTRIAL DO BRASIL

“‘Chuva branca’; horas e dias de dilúvio do “inverno” nortista. As cores

desaparecem, o horizonte e as formas se apagam, a distinção entre a terra e o céu

perde a sua consistência. Fica-se mergulhado numa sufocante bolha de água de

contornos invisíveis.”

(LEROY, Jean-Pierre. Uma chama na Amazônia.

Rio de Janeiro: FASE-Vozes, 1991.p-185)

15
O CONTEXTO E A LOCALIZAÇÃO DA COMPANHIA
FORD INDUSTRIAL DO BRASIL

O estabelecimento da Companhia Ford Industrial do Brasil às margens do rio


Tapajós pode ser estudado no contexto do declínio da grande produção de borracha na
Amazônia brasileira, que se estendeu desde meados do século passado até a década de
10 do presente século. Esta recuperação do passado é importante porque é a partir dela
que podemos entender a escassez de mão-de-obra na região e a necessidade de
contratação de trabalhadores, especialmente nordestinos, e imigrantes estrangeiros.
A borracha já era conhecida e utilizada pelos indígenas, especialmente do
México, antes mesmo da chegada dos portugueses e espanhóis na América. No entanto,
sua difusão na Europa e nos Estados Unidos tomou um grande impulso no século XIX a
partir da descoberta, em 1839, por Charles Goodyear, do processo de vulcanização,
realizado a partir da mistura do enxofre ao látex, juntamente com seu aquecimento, que
tira o caráter pegajoso da borracha e facilita o seu uso em máquinas industriais, nos
vagões e locomotivas, no cobrimento de fiação etc.
Houve um aumento da demanda deste produto no mercado externo, segundo
Dean (1989, p. 32): “Em 1830 a Grã-Bretanha importou 211 quilos de borracha bruta;
em 1857, 10.000 quilos, e em 1874, com a borracha começando a ser aplicada nos fios
telegráficos, a importação pulou para 58.710 quilos.”
Esta situação causou enormes modificações na região amazônica, especialmente
na área situada na margem direita do rio Amazonas, nos atuais estados do Pará, Acre,
Rondônia e norte do Mato Grosso, áreas onde pode ser encontrada a Hevea Brasiliensis,
uma das espécies que produzem grande quantidade de leite, conforme mapa 1.

16
17
A Amazônia brasileira

A região amazônica aqui considerada é aquela definida posteriormente, em


1966, no governo militar de Castelo Branco, como Amazônia Legal, que compreende,
além da área dos estados da região norte - Amazonas, Pará, Acre, Amapá, Tocantins
Roraima e Rondônia - a totalidade também do estado do Mato Grosso, a partir de seu
desmembramento na década de 70, e uma porção do norte do estado de Goiás e do oeste
do Maranhão, conforme o mapa 2. Considero este critério mais abrangente, uma vez que
se refere ao domínio da área da floresta equatorial, bem como às áreas de transição. Nas
palavras de Oliveira (1993, p.12):
“Esta superfície que compõe a Amazônia Legal inclui todas as formações
florestais que formam a grande floresta equatorial (floresta de várzea e
igapó, floresta de terra firme e floresta semi-úmida), além de incluir em seu
espaço, particularmente no sul do Maranhão, centro de Goiás e centro-sul
do Mato Grosso, uma área de transição para a caatinga e cerrado, onde
floresce todo tipo de vegetação de transição.”
De qualquer forma, esta diversidade da vegetação, que também se encontra em
termos de relevo e de clima, da mesma forma se expressa em diferentes formas de
ocupação humana, fazendo com que o termo mais apropriado para nos referirmos a esta
área seja “Amazônias”, que chama a atenção para pluralidade lá existente.
A frase de Leroy que abre este capítulo a intensidade da chuva. Embora existam
áreas que não conheçam períodos de seca, e mesmo diferenças de pluviosidade -
segundo Conti (1995, p.103) a precipitação anual média de Itaranquá, à margem do rio
Negro é de 3.496 mm, em Belém, capital do estado do Pará, é de 2.204 mm, e em
Santarém, no mesmo estado, na área onde se realiza o presente estudo e também foi a
área pesquisada por Leroy, é de 1.973 mm, com uma estação seca de agosto a outubro -
a chuva quando cai é muito intensa e dá esta sensação de dissolução do mundo em água.
Sioli (1991, p.18) também afirma que em Santarém pode acontecer entre os meses de
agosto a setembro um período de seca de cerca de quatro semanas contínuas. Baseado
em diagrama citado por Sioli (1991, p. 19) e elaborado por Salati(1983, p. 23), temos a
figura 1, que demonstra a distribuição das chuvas na bacia Amazônica, ressaltando-se
que a concessão da Ford está situada entre os pontos 16 e 23 da figura.

18
19
Esta sensação de estranhamento em relação à chuva amazônica também ficou
gravada na memória de Victor J. Perini, uma americana, que morou em 1930 em
Fordlândia, acompanhando o seu marido que era funcionário da Ford, que incluiu o
texto seguinte em suas memórias relatadas para o museu da companhia, em Dearborn,
nos Estados Unidos:
“It rains awhile every day and when it comes you just can’t see your hand
in front of you. You can watch the rain clouds coming, the rain pours for a
short time, then the sun comes out and dries up the puddles. It was like
living in a steam bath!”2
São peculiaridades e estranhamentos como este que o presente trabalho busca
resgatar, no sentido de entender como se deram as relações entre americanos e
brasileiros, criando um espaço tão diferente dos que até então existiam na Amazônia e
que, de certa forma se assemelha aos grandes projetos que lá se instalaram a partir dos
anos 70.

Os seringais amazônicos dos séculos XIX e XX

Diversos autores discutem esta questão da produção da borracha e dos seringais,


e entre eles eu destacaria Oliveira Filho (1979), que faz uma distinção entre o “caboclo
e o brabo”, considerando os modelos de seringais anteriores ao grande surto e os que
foram provenientes deste. Para sua análise, o autor parte da consideração do seringal
enquanto fronteira, “como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua
incorporação em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado.”
A distinção dos modelos de seringais, então, se dá na diferente composição entre
o modelo caboclo e o modelo do apogeu, conforme o modelo a seguir:

2
Chove todos os dias e quando a chuva chega você não pode enxergar a mão à sua frente. Você pode ver
as nuvens de chuva chegando, ela cai por pouco tempo, e então o sol sai e seca completamente as poças.
Era como viver em uma sauna.

20
SERINGAL
Modelo Caboclo Modelo do Apogeu
- exploração nos limites da fronteira econômica. - exploração de áreas muito além das fronteiras do
mercado.
- mão-de-obra requisitada localmente. - mão-de-obra quase integralmente importada.
- força de trabalho familiar. - trabalhador isolado.
- pluralidade funcional da empresa (inclusive com - especialização da empresa, com o abandono da
atividade de subsistência). agricultura.
- pequena produtividade do trabalhador. - produtividade do trabalhador é bem mais elevada.
Fonte: OLIVEIRA FILHO, J.P. O caboclo e o brabo. Encontros com a civilização brasileira, v. 11,1979,
p.126.

Uma outra característica que diferencia os modelos está na composição do


capital investido em cada um deles. Enquanto o primeiro modelo está ligado ao
comércio local através de suas casas aviadoras, o segundo é financiado a partir de
capitais externos, especialmente ingleses, que passam a determinar o ritmo dos
investimentos.
O sistema de aviamento é bem descrito por Oliveira (1983) como sendo uma
cadeia vertical, onde no alto se situavam as grandes casas aviadoras e exportadoras, que
intermediavam, abasteciam e financiavam os aviadores menores, normalmente situados
mais próximos aos seringais. Estes, por sua vez, comercializavam com os seringalistas,
que eram os donos dos barracões onde os coletores trocavam a borracha obtida pelos
produtos de que necessitavam, especialmente gêneros alimentícios e querosene. O
caminho da borracha para as grandes casas aviadoras, geralmente situadas em Manaus e
Belém, era o inverso, sendo que de lá o seu destino era a exportação.
É importante ressaltar a extrema penúria em que viviam os coletores, que
atualmente designamos por seringueiros. Grande parte destes eram migrantes
nordestinos que iam para a Amazônia em busca de riqueza fácil e lá chegando
endividavam-se cada vez mais no sistema de troca dos barracões, onde poucas vezes o
dinheiro era utilizado. Segundo Santos(1980b) um seringueiro chegava a comprar os
produtos por preços até cinco vezes maiores que os do Rio de Janeiro, se trabalhasse no
rio Solimões, e até dez vezes maiores, se trabalhasse no rio Madeira. Além disso, os
produtos consumidos eram de péssima qualidade, chegando a estar deteriorados. Ainda
assim, havia poucas possibilidades de fuga por causa da vigilância policial e porque

21
havia um acordo entre os seringalistas de não contratar empregados que estivessem com
dívida em outro barracão.
Em recente documentário realizado pela TV Cultura de São Paulo, intitulado “A
Árvore da Fortuna”, há o depoimento de Florêncio de Carvalho, que trabalhou durante
muitos anos como seringueiro na Amazônia e relata que neste período chegava a se
“esquecer do dinheiro”. Este episódio revela o quanto o sistema do barracão mantinha o
coletor isolado da sociedade e dá a dimensão da sua peculiaridade em relação ao
trabalho assalariado.
Diversos autores ressaltam a importância das secas no Nordeste como o fator
motivador da migração de seus habitantes. Oliveira Filho (1979), entretanto, ressalta
que a primeira leva que chega expulsa a partir da seca de 1877 ainda não se constituirá
no seringueiro do modelo do apogeu, uma vez que estes migrantes vêm com as famílias
e dirigem-se preferencialmente para as colônias agrícolas. É provável que ao fazê-lo
esteja substituindo o antigo morador da área que pode ter sido atraído para a coleta do
látex. Entretanto, conforme já foi discutido, o seringal no seu modelo de apogeu
necessita de um trabalhador completamente expropriado e só, que possa ser totalmente
subordinado ao modelo do barracão. Esta demanda foi suprida com trabalhadores
nordestinos que vieram em um processo de agenciamento no qual já começavam
devendo a passagem. Ainda de acordo com o citado autor, os nordestinos que se dirigem
para a Amazônia não são originários da área da grande plantação açucareira, mas sim da
zona criatória e de outras lavouras subsidiárias, que forneciam mão-de-obra para a
primeira em seus momentos de expansão.
Considerando o baixo custo do seringueiro e o alto preço da borracha no
mercado internacional na virada deste século, pode-se imaginar a riqueza que ela
proporcionou, especialmente entre 1910-1912, quando o auge da produção coincidiu
com o maior preço no mercado internacional, conforme Santos (1980b, p.213). Um
outro indicador da riqueza gerada pela exportação da borracha também se encontra
neste autor, em quadro retirado do Anuário Estatístico 1939/40, (p.290), onde notamos
que em 1910 a borracha correspondeu a 40% das exportações brasileiras, enquanto o
café, o principal produto de exportação do Brasil desde o Segundo Império,
correspondeu a 41%. No entanto, conforme já foi afirmado, o desenvolvimento da
região após o fim do surto da borracha ficou prejudicado uma vez que o capital
investido era estrangeiro e não foi reaplicado na produção naquela região de modo que
pudesse garantir a continuidade de outra atividade econômica.

22
Após o declínio da produção gumífera na Amazônia existiram duas tentativas de
recuperação econômica: a primeira foi o convênio Pará-Amazonas que se baseava na
criação de dois bancos que pudessem financiar a extração do látex, bem como em um
empréstimo exterior. Ambas as medidas dependiam do aval da União, que se negou a
dá-lo, fazendo com que este convênio malograsse.
A segunda tentativa, bastante audaciosa, foi chamada de Plano de Defesa da
Borracha, e elaborada pelo ministro da Agricultura Pedro de Toledo, com a anuência do
presidente Hermes da Fonseca. De acordo com Santos ( 1980b) o plano visava o
desenvolvimento da região como um todo e propunha o estímulo à extração do látex e à
industrialização, a elaboração de uma política de imigração, a intervenção na área da
saúde, - em especial na medicina preventiva e nas práticas de higiene -, a facilitação dos
transportes na região - com a construção de diversas ferrovias - o incentivo à produção
de gêneros agrícolas e estímulo à pecuária e, por fim, a instalação de companhias
pesqueiras. Todas estas medidas seriam estimuladas por incentivos da União e dos
estados e compreendiam não só a Amazônia, mas parte de Minas Gerais e da Bahia
onde havia exploração da goma elástica.
Para a execução deste plano foi criada a Superintendência da Borracha, em
1912, que contava, de acordo com Santos (1980b, p. 250) “com um médico, um
agrônomo, dois técnicos auxiliares e nove funcionários de burocracia e zeladoria.”
Ainda segundo este mesmo autor o único saldo deste plano para a região foram os
estudos na área da saúde efetuados por uma comissão chefiada por Oswaldo Cruz.

O declínio da produção de borracha na Amazônia brasileira e a ascensão dos


seringais asiáticos

O grande declínio da exportação da borracha brasileira entre 1911-1914 está


relacionado ao crescimento dos seringais asiáticos. Este episódio é bastante polêmico e
diz respeito as sementes que, segundo alguns autores teriam sido “contrabandeadas”, em
1876, por Henry Wickham, um inglês, que as remeteu para o Jardim Botânico de Kew,
na Inglaterra, de onde foram transplantadas para o Ceilão e distribuídas para os
plantadores asiáticos. Santos (1980B) considera que esta façanha é “pouco defensável à
luz do Direito Internacional”(p.256), uma vez que não é lícito a alguém “apropriar-se
individualmente de coisas alheias quando há dono certo ou jurisdição definida, e este é
um princípio geral que prescinde de lei positiva.”.(p. 230).

23
A respeito deste fato Dean (1989) tem uma opinião diversa: se as sementes são
coletadas em árvores que estão produzindo, por certo elas pertenceriam a alguém que
teria dado permissão para a coleta. Além disso, ele lembra que o princípio da natureza
como um patrimônio nacional não foi aplicado na legislação brasileira antes de 1934.
Há ainda, de acordo com o autor, mais detalhes interessantes nesta estória: o café que
foi durante décadas o sustentáculo da economia brasileira, foi aqui introduzido a partir
de métodos semelhantes quando Francisco de Melo Palheta, em 1727, teria trazido as
sementes de Caiena, também sem a permissão dos governantes. Mais do que isso, a
queda dos preços do café no final do século XIX fez com que muitos plantadores
asiáticos, ironicamente, optassem por outros cultivos, entre eles o da seringueira.
Os seringais asiáticos se desenvolveram rapidamente, com o cultivo racional e o
emprego de mão-de-obra mal remunerada, e já em 1915 não havia mais mercado para a
goma brasileira. De acordo com Santos (1980b, p. 256): “Por volta de 1915, o preço do
quilo da goma no mercado internacional variava de 6,38 a 6,60 francos, enquanto que
o custo de produção era de 3,48 para o produto cultivado e de 7,50 para o silvestre.”.
O panorama após o fim desta exploração intensiva da seringueira pode ser
resumido, de acordo com o autor como uma volta às atividades tradicionais de coleta e
pesca por parte dos antigos habitantes da Amazônia, enquanto que grande parte do
migrantes voltaram para os seus locais de origem ou foram para o Maranhão. Houve um
certo florescimento agrícola na Zona Bragantina. As cidades maiores, especialmente as
capitais foram o destino de muitas pessoas, em busca de emprego no comércio ou na
indústria, sendo que esta última era pouco significativa naquele momento.
Belém, novamente passa a ter um papel importante na região uma vez que tem
uma localização estratégica em relação aos navios que se dirigem para a região
amazônica. De acordo com Santos (1980b, p.279) podemos distinguir duas áreas na
Amazônia a partir de 1910: a que compreende o Acre, o Amazonas e o Alto Madeira,
com uma vocação mais extrativista, e outra que abrange o Pará e o Amapá, onde o
comércio é mais acentuado e há alguma diversificação agrícola e a presença de algumas
indústrias.
Este é o cenário em que se encontra a Amazônia no momento em que Henry
Ford decide não mais se submeter ao monopólio da borracha asiática, controlado pelos
ingleses, para poder dispor de sua própria plantação, que seria capaz de suprir toda a
necessidade de látex para a produção de automóveis de suas indústrias.

24
Os Antecedentes

O Plano Stevenson que em 1922 propunha a valorização da borracha, buscando


controlar a quantidade do produto no mercado mundial confrontava-se com os
interesses dos industriais, notadamente os americanos, que tinham na manufatura da
borracha um importante complemento para a sua crescente indústria automobilística.
Os industriais americanos passam a se movimentar buscando alternativas que
lhes pudessem garantir o fornecimento de borracha nos menores preços possíveis. Já em
1923 este grupo consegue a aprovação pelo Congresso Americano da liberação de uma
verba de U.S.$ 500 mil para viabilizar estudos a respeito da possibilidade da
implantação de seringais nas Filipinas e na América Latina.
Este projeto americano coaduna-se perfeitamente com os interesses das
oligarquias da Amazônia brasileira que buscam alternativas econômicas que possam
garantir a sua sobrevivência ameaçada pelo fim do surto da borracha. Desta forma, o
capital estrangeiro é visto como uma nova chance para o desenvolvimento da região.
Ao analisar este processo, Costa (1993, p.30) destaca três aspectos: o primeiro é
que os governos dos estados do Pará e do Amazonas não só não se opõem a estes
interesses, como também estão dispostos a incentivar outras formas de exploração,
favorecendo estes capitais estrangeiros com uma política de isenção de impostos. O
segundo aspecto é que o governo federal também apóia esta iniciativa e pretende
ampliá-la para a pecuária, a construção de ferrovias, facilitando também a entrada de
trabalhadores como forma de resolver a questão da mão-de-obra. O último aspecto é que
o governo federal tenta capitalizar para si os frutos desta negociação, como se fossem
oriundos de uma política sua para a revalorização econômica da região amazônica.
Conclui o autor dizendo: “...naquele momento, o ‘atrair capitais americanos para a
Amazônia’ toma foros de uma política nacional de ocupação da Amazônia, de um
projeto político das frações hegemônicas em nível nacional das classes dominantes
relativamente à utilização dos recursos naturais da região. O que é, de resto,
completamente aceito pelas oligarquias locais. Mas não sem alguma relutância.”
(p.31)

25
Este mesmo autor ainda ressalta como a vinda dos americanos é encarada como
um fator de civilização, através de um discurso de Álvaro Maia 3: “[enquanto] raça
superior e dominadora, ensinará a gente a ter higiene, a querer, a fazer economia, e
erguerá núcleos modelares de atividade, aproveitando os recursos da natureza que
serão transformados em cidades do amanhã. Mas, o americano, que é mais forte pela
raça e pelo dinheiro, com direitos incontestáveis de senhor, explorará o mais fraco,
embora exercendo uma soberania benéfica, melhor talvez que a atual para o
seringueiro, e faz muito bem. Dessa forma, a civilização penetrará no Amazonas por
processos singulares, mas, enfim penetrará”. (p.37). É curioso observar neste discurso
como ele é profético: de alguma forma Fordlândia e Belterra irão se constituir em
importantes núcleos urbanos, superando a maior parte das cidades amazônicas em
relação aos salários, às condições de habitação, de higiene, de saúde etc. O que causa
espanto é que não há a menor preocupação, nem mesmo valorização, do modo de vida
das populações locais.
Ao analisar o recente processo de instalação dos grandes projetos na Amazônia e
os impactos que estes causam sobre as populações indígenas e os camponeses, Martins
(1991, p 16) faz a mesma ressalva:
“Não se trata de introduzir nada na vida dessas populações, mas de tirar-
lhes o que têm de vital para sua sobrevivência, não só econômica: terras e
territórios, meios e condições de existência material, social, cultural e
política. É como se elas não existissem ou, existindo, não tivessem direito
ao reconhecimento de sua humanidade.” (Grifos do autor).
Desta forma, no início de agosto de 1923 chegou a Belém a American Rubber
Mission com a missão de verificar as possibilidades do plantio da seringueira no Brasil.
O governo brasileiro colaborou com os técnicos estrangeiros enviando quatro técnicos
brasileiros e um barco a vapor. Desta expedição resultou um relatório publicado pelo
Departamento de Comércio dos Estados Unidos em 1925 com o título Rubber
Plantation in the Amazon Valley que avaliava as possibilidades do ponto de vista
técnico em relação ao solo e concluía pela viabilidade do empreendimento. A questão
da mão-de-obra também é discutida e a alternativa sugerida, tomando-se como
referência a pequena população local, é a migração, especialmente de nordestinos.

3
Álvaro Maia, no período do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), viria a ser interventor no
estado do Amazonas, aparecendo em fotos da imprensa local, quando da visita do chefe de estado à
Amazônia, em 1940.

26
Já naquele momento os americanos estavam preocupados com a ocorrências do
mal-das-folhas, causado por um fungo e que inviabilizava os seringais e James R. Weir,
funcionário do Serviço Florestal americano, elaborou um relatório minucioso para o
Departamento de Agricultura em que acreditava que este fosse o principal obstáculo
para o cultivo da seringueira, embora não o considerasse como intransponível, apenas
seria necessário um maior investimento de capital para evitar o surgimento e
proliferação desta doença.
O empenho de José Custódio de Lima, um representante consular do Brasil nos
Estados Unidos foi decisivo, segundo Dean, para a viabilização do empreendimento que
resultou na vinda de Ford para a Amazônia brasileira. Já em 1923 aquele enviara cartas
a este último, buscando convencê-lo a investir no plantio das seringueiras e em 1925 foi
chamado a Dearborn, no escritório central da Ford, para explicar suas idéias. Na ocasião
pode expor a política de incentivos que os governos estaduais brasileiros ofereciam.
Henry Ford encarregou, então, W. E. McCullough de fazer uma investigação sobre a
possibilidade deste empreendimento.
Estas notícias, ainda segundo Dean, (1989, p. 112), teriam provocado alvoroço
no Rio de Janeiro e um importante empresário de uma tradicional família cafeeira, Jorge
Dumont Villares passou a obter do governo do estado do Pará concessões de terras em
sete pontos diferentes. Quem o aconselhou na escolha destes lugares foi William L.
Schurz, que havia participado da expedição americana em terras brasileiras. Quando W.
L. Reeves Blakeley, funcionário da Ford encarregado de encontrar uma área para o
plantio da seringueira no Brasil, junto com Carl D. La Rue,- que além de lhe prestar
assessoria técnica também participara da citada expedição - chegam a Belém, são
recepcionados por Villares que os acompanha em viagem pelo Amazonas, mostrando-
lhes apenas as áreas que possuía ao longo do rio Tapajós, sendo então esta a única
opção apresentada a Henry Ford.
Em carta datada de 6 de maio de 1927, redigida por Carl D. LaRue - a qual foi
consultada no Henry Ford Museum & Greenfield Village, em Dearborn, EUA -, após
relatar as condições de vida dos habitantes da Amazônia brasileira, em especial dos
coletores do látex da seringueira, a conclusão a que chega o autor é amplamente
favorável ao investimento nas terras do Pará:
“I believe the Ford Motor Co. could profitably establish trading posts at
various points and buy rubber at a price low enough to make a reasonable
return on the investment, and at the same time, help the seringueroes to

27
make a decent living. There is no question that production would be
stimulated, once the seringueroes have some hope ahead and for once have
enough to eat. This is an opportunity to do a great service to hundreds of
deserving folk.”4
Em relação à aquisição das terras, a concessão que poderia ter sido obtida
gratuitamente do governo do estado do Pará, custou a Ford a quantia de 125 mil dólares,
pagos a Villares pela área de um milhão de hectares que este possuía na margem direita
do rio Tapajós. Segundo Dean (1989), este fato, bem como o das áreas não serem as
melhores disponíveis - uma vez que eram montanhosas, a chuva era muito abundante, o
solo não era rico e a navegabilidade era restrita a algumas épocas do ano - já
expressariam um “mau começo”.Este aspecto montanhoso, referido por Dean, na
verdade refere-se às diferenças entre terra firme e várzea, sendo que a primeira se
contitui de terrenos menos inclinados, o que já não ocorre na segunda.
Este episódio protagonizado por Villares não foi sua única interferência nos
negócios da Companhia Ford na Amazônia. Em artigo publicado no jornal A CIDADE,
em Santarém, no dia 23 de fevereiro de 1929, há uma denúncia de que este industrial
teria obtido, em março de 1926, do Conselho Municipal daquela cidade, o arrendamento
de um área junto às margens do rio Tapajós, pelo prazo de cinqüenta anos, as quais
foram oferecidas à referida Companhia, para que ali pudesse construir seus armazéns,
uma vez que a navegação pelo Tapajós, para as embarcações de grande porte, era
restrita ao período das cheias. Futuramente poderia ser construída uma estrada de
rodagem entre Santarém e Boa Vista, local onde se instalou a Fordlândia. A denúncia
feita pelo jornal era de que a companhia não aceitava o valor exigido por Villares, o que
dificultava a transação. Esta discórdia provocou a anulação da concessão de
arrendamento, facilitando os entendimentos diretos entre os americanos e a prefeitura de
Santarém. É bom frisar que esta estrada nunca foi construída, uma vez que facilitaria o
acesso de pessoas das proximidades às terras da concessão, ao mesmo tempo que
dificultaria o controle de quem entrava ou saía, sendo que não era do interesse dos
americanos a facilitação do contato entre os trabalhadores da Companhia e os habitantes
das redondezas.

4
Eu acredito que a Ford Motor Co. poderia estabelecer lucrativos postos comerciais em diversos pontos
e comprar borracha por um preço suficientemente baixo que possa garantir um razoável retorno do
investimento, e ao mesmo tempo, ajudar os seringueiros a terem uma vida decente. Não há dúvida que a
produção pode ser estimulada, uma vez que os seringueiros tenham alguma ajuda e tenham o suficiente
para se alimentar. Esta é uma oportunidade de prestar um grande serviço para centenas de pessoas
merecedoras.

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A Instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil

O estabelecimento da Companhia Ford Industrial do Brasil no Tapajós é uma


história que começa com ares de grandiosidade: de um lado seus estatutos e o termo de
concessão das terras são bastante amplos no que se refere às possibilidades de
exploração daquela área, de outro lado há a criação de um núcleo urbano bastante
moderno para os padrões amazônicos, o que causa grande alvoroço nos habitantes da
área e suas adjacências.
Em 10 de outubro de 1927 a Junta Comercial do Pará aprovou, por escritura
pública, os estatutos de criação da Companhia Ford Industrial do Brasil, iniciando o
processo que iria culminar com a concessão das terras feitas pelo estado do Pará. Já no
capítulo IV - Do objeto e dos fins da Sociedade - pode-se perceber claramente o
tamanho do empreendimento:
“Art. 10º - A Companhia terá por objeto:
1º - Adquirir terras do domínio de particulares ou do domínio do Estado.
2º - Proceder à plantação de seringueiras e exercer a indústria extrativa
relativa a esse produto.
3º - Montar e explorar fábricas de beneficiamento e artefatos de borracha.
4º - Realizar todas as operações de crédito conexas com o objeto da Sociedade e
dar em hipoteca ou outra garantia os bens a esta pertencentes.
5º - Criar comissariados ou entrepostos para o fim de vender, comprar e
transacionar em geral com o público em negócios de fazendas, comestíveis, farmácia,
utensílios, borracha, peles e couros, sementes oleaginosas, madeira e produtos e
artigos de toda natureza.
6º - Cultivar e explorar qualquer produto agrícola ou industriais.
7º - Proceder a pesquisas e explorações de minas de quaisquer espécies.
8º - Exercer o comércio de exportação e importação, compra e venda comissões
e consignações.
9º - Adquirir embarcações e quaisquer bens móveis ou imóveis.
10º - Realizar operações bancárias de depósitos e descontos e outras que
convierem aos interesses da Sociedade, em conexão com o seu objeto e afins.
11º - Construir e explorar estradas de ferro, linhas de navegação e transportes
de toda espécie pelo ar, por terra ou por água.
12º - Criar e explorar estabelecimentos bancários em geral.

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13º - Fundar escolas e hospitais e construir edifícios para esse fim, como
também para fins religiosos e de beneficência.
14º - Construir docas e armazéns e interessar-se em geral em negócios relativos
a melhoramentos de portos e construções de cais e depósitos de mercadorias.
15º - Explorar a concessão que lhe foi feita pelo Governo do Estado do Pará.”
Este capítulo mostra que a Companhia tem amplos poderes para atuar: pode se
dedicar tanto ao plantio e cultivo das seringueiras - que seria o objetivo inicial da
concessão -, como também desenvolver outros cultivos e a exploração de minerais.
Além disso, pode implantar casas de comércio e estabelecimentos bancários, criando
um núcleo urbano que contaria com escolas e hospitais
Os investimentos da Companhia Ford no Brasil concentraram-se no plantio e
cultivo da seringueira, embora, inicialmente, houvesse uma diversificação: foi montada
uma moderna serraria que se destinava a beneficiar a madeira existente na área, mas
este empreendimento mostrou-se inviável pela diversidade de madeiras encontradas,
pela dureza de algumas espécies que quebravam as serras - uma vez que estas eram
importadas e não levavam em conta as técnicas locais - e por dificuldades no transporte.
Segundo Dean (1989, p.115), Ford também se interessou pela exploração de petróleo,
tendo feito um contrato de prospecção com a Standard Oil que foi cancelado em 1931
tendo em vista a não localização deste combustível. A estrada de ferro que foi
construída nos primórdios também foi abandonada, uma vez que seu custo era muito
alto, levando-se em consideração que os trilhos deveriam ser desviados todas as vezes
que se derrubava uma nova área.
Esta amplitude do termo de concessão nem sempre foi do conhecimento de seus
trabalhadores, que relatam diversas estórias sobre prospecções em lugares secretos,
freqüentados apenas pelos americanos. Os relatos dos antigos trabalhadores de Belterra
apresentam diferentes pontos de vista sobre o assunto, enquanto o senhor Miguel Xavier
Nogueira afirma que houve exploração de ouro, enquanto o senhor Antonio Cardoso
Pinto, também de Belterra, afirma: “Então dizem que lá eles tiraram ouro, levavam
dentro do buraco do pau. ... Não vi esse ouro não. Então o povo que falava.”,
mostrando dúvidas quanto à realidade do fato. Já o senhor Raimundo Miranda é
enfático: “Diziam que o americano roubava ouro aqui, mas isso era tudo conversa”.
Estas estórias sobre a exploração de ouro, de minério, adquirem então uma autonomia,
incorporando-se às lendas da região.

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No capítulo VI dos estatutos - Da Diretoria -, estava previsto que esta poderia
criar uma “direção local nos Estados Unidos da América do Norte, exercida por
diretores ou mandatários com poderes que lhes forem conferidos a fim de gerir os
interesses da Companhia naquele país”, deixando claro a vinculação da Companhia
então criada na Amazônia brasileira com a sua matriz americana. Este ponto também é
reafirmado no último capítulo dos estatutos, o VIII - Disposições Gerais -, no seu artigo
41: “As contas e balanços da Companhia serão examinados por auditores ou chattered
accountants, pela maneira usual nas sociedades congêneres dos Estados Unidos da
América do Norte.”. Tanto um artigo como o outro ressaltam a questão de que este é um
empreendimento americano, em terras brasileiras, e que desta forma será gerenciado.
Este ponto é importante e será aprofundado na análise das relações de trabalho
implantadas pela Companhia.
De qualquer forma, o estatuto de criação da Companhia revela também que este
investimento se enquadra nos moldes daquilo que era pretendido pelos grupos
dominantes da Amazônia: atrair os capitais estrangeiros como forma de reverter a
estagnação gerada com a decadência da exploração da borracha sem opor-lhes qualquer
espécie de obstáculo, ou seja, permitindo-lhes amplas possibilidades de atuação tanto no
setor agrícola, como no mineral, facilitando, ainda, a intervenção nas áreas de transporte
e comunicações.
O termo de concessão das terras foi assinado inicialmente pelo governo do
estado do Pará e o industrial W. L. Reeves Blakeley, o já citado funcionário da Ford
encarregado de encontrar a área mais adequada à instalação da Companhia. O contrato
assinado em 21 de julho de 1927 era um termo de opção que tinha a validade de dois
anos, nos quais deveria ser constituída uma empresa que pudesse administrar a
concessão, quando então se faria o contrato definitivo. Em 03 de outubro de 1927 o
citado termo, após aprovação do Congresso Legislativo do Estado do Pará, foi assinado
pelo governo do estado e em 05 de dezembro de 1927 foi feita a petição de transferência
da referida concessão do industrial para a Companhia Ford Industrial do Brasil. A
transferência foi efetivada em 07 de dezembro de 1927, através do decreto 4374 do
Palácio do Governo do Estado do Pará. O título definitivo das terras da concessão da
Companhia Ford Industrial do Brasil foi expedido em 18 de agosto de 1928, sob o
número 37.160 do protocolo nº 4 da Diretoria de Obras Públicas, Terras e Viação do
Estado do Pará.

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É importante observar que em nenhum destes documentos há qualquer
referência a Jorge Dumont Villares que, conforme citação anterior de Waren Dean, teria
recebido uma indenização pela cessão da área onde seria implantada Fordlândia.
Segundo este mesmo autor, tal indenização só teria sido tornada pública quando um dos
sócios de Villares, ressentido por não ter levado sua parte no negócio, denunciou o caso
à imprensa, acusando até o governador do Estado do Pará de ter sido beneficiado com
uma comissão. Este episódio é parte das contestações que foram feitas à concessão e
que perduraram até a Revolução de 30, quando Getúlio Vargas assume o governo
federal e, com sua política de favorecimento à industrialização, desembaraça as
cláusulas pendentes dos referidos contratos e termos.
O termo de opção assinado por Blakeley junto ao governo do estado do Pará
ratifica as possibilidades amplas de exploração da área, já presentes nos estatutos de
criação da Companhia. Neste sentido, a cláusula segunda estabelece que: “A concessão
terá por fim o estabelecimento de uma ou mais empresas ou companhias, com direito à
propriedade, uso e gozo dessas terras, para exploração de seringais nativos e plantio
intensivo de seringueiras, assim como para utilização das matérias-primas de produção
do Estado e plantação de espécies vegetais de valor econômico, exploração das
riquezas minerais e da força hidráulica, estabelecimento de vias de comunicações de
qualquer natureza, edificações e outras benfeitorias e melhoramentos concernentes à
utilização das terras e o bem-estar do pessoal nela localizado.”. As cláusulas seguintes
detalham esta, prevendo a construção estradas, escolas e hospitais e a implantação de
serviços de transporte aéreo e ferroviário, bem como de sistemas de telecomunicações.
A não interferência do Estado na área da Companhia fica ressaltado na cláusula
décima-quarta: “O concessionário não será obrigado a submeter à aprovação de
quaisquer autoridades as plantas de todas e quaisquer edificações ou construções nas
terras concedidas, assim como o plano de qualquer trabalho agrícola ou industrial nela
realizados.”, ou seja, cabe ao concessionário organizar o traçado do núcleo urbano a ser
instalado, o qual seguirá um padrão semelhante ao das cidades americanas, conforme se
discutirá posteriormente.
Ainda de acordo com o projeto de propiciar o máximo de incentivo como forma
de atração do capital estrangeiro, neste caso o americano, há a cláusula décima-sexta:
“Ad referendum do Congresso Legislativo do Estado, terão o concessionário ou as
companhias ou empresas que o concessionário organizar ou a que o concessionário
vier a transferir a presente concessão, no todo ou em parte, direito de isenção de todos

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os impostos, taxas e contribuições de qualquer origem, natureza ou denominação que
sejam, quer do Estado, quer de seus municípios, durante o prazo de cinqüenta anos a
contar da data em que essas companhias ou empresas começaram a funcionar, ficando
estas obrigadas, depois dos primeiros doze anos de seu funcionamento, a retribuir ao
Estado e municípios a isenção de que continuam a gozar, mediante sete por cento de
seus lucros líquidos, sendo cinco por cento para o Estado e dois por cento para os
municípios interessados.”. A cláusula décima-sétima também estabelece que o Estado
se propõe a fazer, junto com o concessionário, esforços junto ao governo federal a fim
de que este conceda também a isenção dos impostos e taxas federais, notadamente os de
importação de maquinário. Desta forma, além das amplas possibilidades de atuação, a
Companhia gozava também da isenção do pagamento dos impostos municipais e
estaduais.
O termo ainda previa a possibilidade de exploração dos recursos minerais, com
preferência na exploração de lavras; da construção de estradas férreas ou de rodagem
até Santarém, com a concessão dos lotes de terras devolutas marginais a estas estradas;
com prioridade na concessão da exploração das mesmas.
Em relação aos trabalhadores, o termo - na cláusula vigésima - estabelece que a
Companhia tem o direito de contratá-los, “de preferência nacionais”, não excluindo a
introdução de “colonos e imigrantes estrangeiros”. A Companhia utilizará ambas as
formas de contratação, conforme se verá nos capítulos posteriores.
A notícia da criação de Fordlândia deve ter percorrido muitos caminhos na
Amazônia porque um antigo trabalhador da Companhia, o senhor Miguel Guimarães
Souza, relata que havia fugido da Comissão Rondon, que fazia a demarcação das
fronteiras do Brasil, estando em Guajará-Mirim, Rondônia, próximo ao rio Mamoré,
quando soube da empresa e para onde seguiu por navios a serviço da mesma.
Os limites da concessão já estavam expressos no termo de opção assinado entre
Blakeley e o governo do estado do Pará, constando na cláusula primeira. No entanto, em
09 de maio de 1932, foi assinado um termo de esclarecimento desta cláusula, por
despacho do interventor interino do Pará, Clementino de Almeida Lisboa, o qual
possivelmente faz parte dos esforços do governo Vargas de solucionar as pendências em
relação à concessão. Nesta retificação da cláusula primeira, há uma maior precisão em
relação aos limites da área, havendo a inclusão das coordenadas topográficas. A redação
final do termo passa a ser a seguinte:

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“CLÁUSULA PRIMEIRA - A concessão compreenderá uma área de terras
devolutas, situadas na zona marginal direita do rio Tapajós, nos municípios de Aveiros
e Itaituba, neste Estado, limitando-se pela frente com o mesmo rio Tapajós; pelo lado
de cima com uma linha reta em rumo aproximado de dezoito graus sudeste (18º S.E.),
partindo de um ponto na orla marginal direita do rio Tapajós, acima do rio Tapacurá-
Assu, e a uma distância de doze quilômetros (12 Km) da margem esquerda deste rio, na
sua foz; pelo lado de baixo com uma linha reta em rumo aproximado de dezoito graus
sudeste (18º S.E.), partindo de outro ponto da mesma orla marginal do rio Tapajós
abaixo do rio Cupary, e a uma distância de doze quilômetros (12 Km) da margem
direita deste rio, na sua foz; pelos fundos com uma linha reta aproximadamente
paralela ao curso geral do rio Tapajós, distante cento e vinte quilômetros (120 Km) da
sua orla marginal direita, confinando pela frente com o referido rio Tapajós, e pelos
lados de cima, de baixo e pelos fundos, com terras presumivelmente devolutas,
compreendendo essa área cerca de um milhão de hectares (1.000.000), ressalvadas as
terras de propriedade legítima e posses legitimáveis e concessões em vigor, à data da
de que é titular a suplicante, assim também o direito de desapropriação na forma da
legislação em vigor.”(Grifos meus). A questão da desapropriação de antigos moradores
será objeto de discussão mais adiante.
Em 04 de maio de 1934, foi assinado, na mesma Diretoria de Obras Públicas,
Terras e Viação do estado do Pará, onde haviam sido assinados os documentos
anteriores, um termo de permuta de 281.500 hectares da concessão da Companhia Ford
- que se estendia na forma de um trapézio na área dos fundos -, por outra de igual
dimensão na mesma margem direita do rio Tapajós, contudo mais próxima de Santarém,
conforme se pode verificar nos mapas 3, 4 e 5, sendo que um é brasileiro, e provem do
já citado texto da Revista Brasileira de Geografia, e os outros são de publicações
americanas, tendo sido consultados no museu da Ford, em Dearborn. A justificativa
apresentada pela Companhia e que consta do documento é “facilitar o embarque de seus
produtos em qualquer época do ano e, também, o desenvolvimento de novas plantações
e explorações agrícolas e industriais, concernentes à sua concessão ”. Além da
questão da navegabilidade do rio Tapajós, um fator que se mostrou decisivo para que
esta permuta fosse feita, foi a ocorrência do mal-das-folhas, causado por um fungo,que
fazia com que os seringais as perdessem, diminuindo a produção de látex.

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Esta permuta, segundo Dean (1989) foi sugerida por James R. Weir, que já
participara da missão americana em terras brasileiras, o qual contratado pela Ford em
1933, e após visitar os seringais asiáticos coletando espécimes mais produtivos da
Hevea, indicou à Companhia que o local onde se instalara Fordlândia não era o mais
adequado, sugerindo a troca de uma parte da concessão por outra, onde se instalou
Belterra. Segundo este autor, até esta data não houve nenhum outro técnico ou
especialista em agricultura tropical que orientasse a instalação e manutenção dos
seringais, a despeito de os relatórios anteriores, a que Ford tivera acesso, indicarem a
possibilidade da ocorrência de doenças nas árvores.
O capítulo cinco do livro de Dean chama-se, curiosamente, “Um Salto no
Escuro”, termo que segundo ele foi como Weir designou a experiência que realizou com
os enxertos da seringueira: a árvore era dividida em três partes, a inferior composta por
sementes nativas; o caule era enxertado de uma espécie de grande produção de leite,
selecionada entre as trazidas da Ásia; e a copa era de uma espécie mais resistente às
pragas, selecionada nas pesquisas realizadas em Fordlândia. Esta forma de enxertia foi a
que predominou nas plantações da Ford, tendo sido citada pelo senhor Raimundo
Miranda Lopes e por outros antigos funcionários, em entrevistas realizadas em 1993,
1995 e 1997, que foi funcionário da Companhia no “tempo dos americanos”, e até hoje
reside em Belterra. É curioso observar que até hoje ele cultiva em seu quintal algumas
espécies de seringueira enxertadas, bem como de laranjas, limões, etc.
O senhor Miranda também demonstra que conhece as peculiaridades da área em
que vive, quando relata as diferenças naturais entre Fordlândia e Belterra, salientando
que a primeira fica à beira do rio, em área de inundação, o que facilita a presença de
mosquitos, entre eles o transmissor da malária, enquanto Belterra fica em um terreno
mais elevado, distante do rio, que se apresenta, então, mais sadio:
“Malária era muito difícil aqui e febre amarela também. Aqui é um lugar
sadio, um lugar muito sadio. Desde os tempos da Companhia Ford, aqui é
um lugar muito sadio, agora lá em Fordlândia morreu muita gente de
malária. É porque aqui é um planalto, agora lá a Companhia Ford era
situada na beira do rio Tapajós e tinha muitos igarapés e é isso que dá a
malária. Mas aqui é central e não tem igarapé de jeito nenhum. A água que
a gente bebe aqui é uma água sadia que vem da bomba.”

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CAPÍTULO III

A CHEGADA E A INSTALAÇÃO DA
COMPANHIA FORD INDUSTRIAL DO BRASIL

“ Santarém
Gostei do lugar, gostei da idéia do lugar.
Dois rios. Não eram dois os rios que corriam do Éden? Não, eles eram quatro.
E se dividiam em direções opostas.
Aqui há dois apenas - em confluência -
Mesmo se estivesse alguém tentado a dar explicações literárias
do tipo vida/morte, certo/errado, homem/mulher
-tais noções tenderiam a resolver-se, dissolvidas, logo ali
naquela surpreendente dialética da água.”
(BISHOP, E. Poemas: seleção, tradução e introdução de Horácio Costa.
São Paulo: Cia das Letras, 1990)

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A CHEGADA DA COMPANHIA FORD À AMAZÔNIA BRASILEIRA

A instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil na Amazônia brasileira


começou causando grande espanto nos habitantes daquela área.
No romance Fordlândia, escrito por Eduardo Sguiglia, o autor relata uma
passagem onde o protagonista, um argentino encarregado de contratar pessoas para
trabalhar nos seringais da Ford, faz uma reunião com seringueiros que trabalhavam em
propriedades ao longo do rio Tapajós. Ao contar sobre o empreendimento e suas
vantagens para os trabalhadores, um deles indagou: O que são automóveis? A resposta
foi dada por um dos caboclos que acompanhava o argentino que explicou que
automóveis eram carroças que, ao invés de cavalos, utilizavam um motor. Chamou-me a
atenção este fato porque ele, embora ficcional, mostra o espanto e a novidade que a
chegada da Companhia Ford pode ter causado ao chegar na Amazônia.
A memória do senhor Emanoel Rocha Rufino também registrou esta idéia do
automóvel, mas de forma oposta: para ele que morava nas ruas de Santarém após ter
desistido de ser soldado da borracha, o encontro com o pessoal da Companhia
representava uma esperança promissora, não só a possibilidade de sair da miséria em
que se encontrava, mas também de vir a dirigir um carro. O encontro se deu no porto de
Santarém e foi narrado da seguinte forma:
“Aí o rapaz veio, o senhor, olhou, olhou e perguntou: -De onde tu és? Aí
olhei para ele e repondi: - Sou de Belém. - É mesmo? Aí ele subiu a escada,
foi lá conversar comigo, aí eu contei rapidamente a minha situaçào. Ele
voltou. Chegou lá, começou a conversar com os americanos. Aí mandou me
chamar, eu desci, fui lá a bordo e ele falou: - Olhe, nós vamos sair oito
horas da noite prá Belterra. Eu não tô sabendo que chamavam Bela Terra,
o pessoal aí de Santarém. - Lá é uma companhia americana, não tá vendo?
A companhia Ford. Eu fiquei animado quando eu ouvi falar em Ford
porque eu pensei: agora eu vou aprender ao menos a guiar carro.”
É curioso o fato do senhor Belém, como é conhecido em Belterra, morando há
meses em Belterra, não ter ouvido falar da Companhia antes de encontrar seus
contratadores, mas o evento também mostra que ainda na década de 40, ao menos para
ele, a empresa ainda oferecia possibilidades de melhoria de vida.
A cidade de Fordlândia foi totalmente construída com material importado dos
Estados Unidos, que chegou em dois grandes navios, o Lake Ormoc e o Lake Farge. A

40
partir do momento em que chegaram, começaram os trabalhos de derrubada da mata e
de construção dos prédios, incluindo a serraria e os alojamentos. O burburinho instalado
com a construção da cidade foi ampliado pelo fato dos americanos serem
completamente diferentes da população local: enquanto esta se caracterizava pelo
caboclo - vindo da mistura de brancos e índios que outrora habitavam aquela área do
Tapajós -, com um tom de pele moreno; os estrangeiros eram altos, loiros, de olhos
claros e ainda por cima falavam uma língua totalmente diferente.
O senhor Belém também registrou este fato em suas memórias, tendo narrado o
encontro com os americanos, em entrevista que realizei com ele em julho de 1993 em
Belterra da seguinte maneira:
“Aí eu fiquei passando lá uns meses em Santarém, até que chegou uma
lancha prá lá, fiquei olhando assim, embarcando um pessoal, falando tudo
atrapalhado, blá, blá, blá.”
A própria aquisição do porto de Boa Vista e suas terras circundantes, onde foi
instalada a Fordlândia, revela a estranheza causada por esta chegada. A Companhia teve
que efetuar a compra destas concessões uma vez que o documento em que o governo do
Pará cedia as terras, conforme já foi relatado, previa a indenização aos proprietários
cujas posses estivessem dentro da área cedida. Em seu livro de memórias, a ser editado,
o senhor Eymar Franco relata episódio tão pitoresco. Sua família havia se instalado às
margens do Tapajós desde 1836, vinda do Maranhão, descendendo de portugueses. À
época da chegada da Companhia Ford, D. Bibiana - concubina de seu avô que falecera
recentemente - tinha a concessão daquelas terras e recebeu a quantia de trinta conto de
réis, pagos em moeda corrente ao seu filho mais velho, Luiz. O intérprete da transação
foi Davi Rilke, descendente dos Confederados, cuja família se instalara nas
proximidades de Santarém5. A descrição do ocorrido segue nas palavras do próprio
Eimar:
“Lembro-me ainda vivamente daquele dia! A escritura de compra e venda
foi lavrada em nossa casa, ou seja, na casa que era de meu pai e que ficava
próximo à capela. Presentes ao ato estavam o representante da Companhia
Ford, o Tabelião de Aveiro com aquele imenso livro, várias testemunhas e
um montão de curiosos caboclos das redondezas. Havia uma espécie de
nervosa tensão em todos os rostos e, enquanto o Tabelião lia os termos da

5
A este respeito, consultar: GUILHON, N.Confederados em Santarém:saga americana na Amazônia. Rio
de Janeiro: Presença. 1987, 223p.

41
transação, ao seu redor havia um silêncio quase religioso. Um
acontecimento daquela envergadura creio que jamais ocorrera no Tapajós.
Terminado o ato chegou o momento do pagamento e conferência do
dinheiro. Este foi depositado sobre a grande mesa de nossa sala de
refeições e conferido nota por nota por meu pai, diante dos olhos
perturbados de Luiz que, em seguida, sobraçando todo aquele monte de
notas, deixou nossa casa rumo a sua, depois do cacaual, sendo seguido por
uma chusma de garotos palradores, entre os quais eu me encontrava. O
séquito, depois de percorrer o caminho entre as duas casas, só se desfez
depois que o Luiz entrou em sua casa e depositou o dinheiro de sua mãe em
lugar seguro. Até hoje lembro-me bem do tremor das mãos do condutor
daquela pequena fortuna. Era muito dinheiro junto de uma vez! Nessa
ocasião Luiz tinha 23 anos de idade e eu apenas 7, incompletos.”
As lembranças do senhor Eimar são um importante sinal de como a instalação
dos americanos causou alvoroço em um lugar onde a vida corria mansamente como as
águas do rio, especialmente depois do fim do período de exploração da borracha.
Mesmo naquele período, segundo o seu relato, a extração do látex não se deu naquelas
paragens, mas acima do trecho navegável do rio Tapajós, na área das cachoeiras.
A própria visão do rio Tapajós, com suas águas esverdeadas, que em frente a
Santarém encontra-se com o rio Amazonas, de águas barrentas, oferece um belo
espetáculo, tal como descrito no poema de Bishop, que pode ter maravilhado os
americanos quando lá chegaram. O rio ainda possui diversas praias, especialmente no
período das secas, sendo que a de Alter do Chão tem fama internacional, e em cujo lago,
segundo reza uma das lendas locais, as Amazonas guerreiras retiravam do seu fundo o
material que moldavam para fazer os “muiraquitãs”, que ofereciam aos guerreiros com
que se deitavam uma vez ao ano.
A respeito do alvoroço provocado pela vinda da Companhia Ford para a
Amazônia também encontrei no jornal A Cidade, de Santarém, no ano de 1928 três
referências irônicas e bem-humoradas. A primeira é de autoria do Dr. Piaba e foi
publicado em 04 de fevereiro, com o título Quando chegar o Ford..., no qual o autor
ressalta que este é “o refrão da moda”, todas as pessoas comentam este assunto e em
torno dele se fazem promessas de pagamento de dívidas e de casamentos. Já há
referência à chegada de muitas pessoas atraídas pela notícia: “De extramuros há

42
43
chegado gente com o intuito, louvável por sinal, de arranjar um osso quando chegar o
Ford...”.
Na coluna Saltos de Grilo, do frei Jeremias, publicada em 17 de março do
mesmo ano, o autor se refere ao bordão “o Ford vem aí”, como sendo uma esperança e,
ao mesmo tempo, a possibilidade de “muita gente dar com os burros n’água, e a quem
não tiver burros, fará andar de quatro, falando só pelas esquinas.”
No dia 24 de março, Frei Tibúrcio também escreveu um artigo a esse respeito,
com o título Fordophilia ou fordomania?, comentando já no primeiro parágrafo:
“Como quer que seja, esta palavra Ford é, entre nós e quiçá extramuros, como um
amuleto, um ‘porte-bonheur’ para aqueles que projetam, se não enricar sem custo, ao
menos ver modificada a situação de arrocho que palmilham.” O texto segue contando a
respeito dos produtos que poderiam ser inventados, tais como “lingüiças marca Ford,
papel de cheiro rotulado com a marca Ford.” Sugere ainda um coquetel à Ford, uma
mistura do açaí paraense com o uísque americano.
A leitura destes artigos sugere que havia em Santarém uma grande expectativa
em relação à chegada dos americanos, que era vista com um misto de esperança de um
ressurgimento da Amazônia e de temor com a chegada de muitas pessoas atraídas pela
possibilidade de emprego e de conseguir enriquecer.
É possível perceber também, desde as primeiras especulações sobre a vinda da
empresa, a vinculação entre a mesma e o seu proprietário, Henry Ford. Em alguns
momentos, utiliza-se a palavra como masculina, o Ford, referindo-se ao velho Henry,
em outros a palavra é feminina, a Ford, referindo-se à empresa do mesmo. Esta
dubiedade mostra a estreita vinculação que há nesta empresa entre seu proprietário e a
direção dos negócios, realizada de forma extremamente centralizada. Os próprios
biógrafos de Henry referem-se à sua forte personalidade que teria, inclusive, eclipsado
seu filho Edsel, que nunca conseguiu assumir a administração da empresa de forma
efetiva.
Esta percepção aparece na imprensa de Santarém que se refere a Ford como o
“milionário yankee”, ou ainda, “o multi-milionário yankee”; e também pode ter sido
clara para alguns de seus trabalhadores na Amazônia. O senhor Luiz Frazão, em
entrevista em Belterra, em julho de 1997 mostra esta vinculação quando afirma:
“Isso aqui foi bonito, muito bonito. Sabe, tinha gente do Rio de Janeiro, de
São Paulo, de Belém, de tudo quanto era lugar. Diziam: eu vou prá Belterra

44
que lá se ganha dinheiro. Não dizia Belterra, dizia: eu vou prá Ford. Aqui
correu muito dinheiro.” (Grifos meus)
A fala do senhor Luiz mostra tanto uma vinculação entre a Companhia e a idéia de
riqueza, como também esta personificação da empresa na pessoa do seu fundador.
Aliás, o nome de “Ford” ganhou um cor local, sendo pronunciado tanto em Belterra
como em Fordlândia como “For”.

A imprensa e a chegada da Companhia Ford ao Tapajós

Acompanhar a chegada e a instalação da Companhia Ford Industrial do Brasil


através da imprensa escrita de Santarém é uma aventura fascinante: as promessas são
muitas e há uma esperança generalizada na possibilidade de progresso que deste evento
poderia advir. No entanto, pouco a pouco, o otimismo cede lugar às críticas e às
notícias desabonadoras sobre o empreendimento americano em terras paraenses.
O material que aqui será analisado provem de diversas fontes que consegui
reunir ao longo do trabalho de campo. Em Santarém, mais especificamente na
Biblioteca Boanerges Sena pude consultar diversos números de semanários daquela
cidade que são: A Cidade, com exemplares desde o ano de 1927 até o ano de 1930; A
Gazeta do Norte, com números entre os anos de 1931 e 1932; O Jornal de Santarém,
com números dos anos de 1933 e 1934. Havia ainda alguns exemplares do jornal O
Momento, do ano de 1935, nos quais não localizei nenhuma notícia relativa ao
empreendimento da Ford na Amazônia.
Em Belém do Pará, na biblioteca do Centro de Cultura e Turismo (Centur),
órgão do governo do estado do Pará, fui informada de que os jornais da década de 20
não poderiam ser consultados uma vez que estavam mal conservados. Desta forma,
privilegiei a visita do presidente Getúlio Vargas à Belterra, em outubro de 1940,
consultando os seguintes jornais deste período: Folha do Norte, O Estado do Pará, O
Imparcial e A Vanguarda.
Analisarei este material com o intuito de mostrar como a chegada da Companhia
e o seu funcionamento posterior afetaram o seu entorno, especialmente a cidade de
Santarém, que foi para onde rumou grande parte dos trabalhadores que não foram
aceitos pelos americanos. Entre estes periódicos optei por analisar o material constante
em A Cidade, uma vez que este cobre os períodos de 1927 a 1930, onde mais facilmente

45
se pode identificar esta contraposição entre os primeiros momentos, repletos de notícias
alvissareiras, e o declínio destas esperanças, que acabam por não se concretizar.
O jornal A Cidade, no ano de 1928 noticiou a vinda da Companhia desde o dia
03 de março quando relatava que o correspondente do diário carioca O Paiz havia
recebido, em Belém, telegrama noticiando os entendimentos de Edsel B. Ford com a
companhia de navegação Booth, a fim de que esta fizesse o transporte nos seus
vapores, entre Nova York e Belém do material necessário à construção da cidade onde
seria instalada a Companhia, junto ao rio Tapajós. Há ainda referência a Jorge Dumont
Villares e a Raymundo Monteiro da Costa, emissários de Ford, que estariam em Detroit,
onde foram recebidos festivamente. No dia 17 do mesmo mês há a notícia da chegada
dos emissários de Ford a Santarém, onde verificariam a possibilidade de navegação
entre esta e Boa Vista, o porto onde seria instalada a Fordlândia. Em 04 de agosto há a
notícia de que o paquete Lake Ormoc havia zarpado de Detroit, com destino a Santarém,
onde deveria aportar ainda naquele mês. No entanto, apenas na edição do dia 15 de
setembro é que se previa sua chegada, bem como do Lake Farger, para o dia seguinte.
A descarga era prevista para aquela cidade, uma vez que não havia condições de
navegabilidade até Boa Vista, sendo o material novamente embarcado em alvarengas 6
que fariam este transporte para a futura “city-Ford”.
O mesmo jornal noticiou, em edição de 20 de outubro, que no dia 16 dois
trabalhadores que atuavam na descarga dos navios foram acidentados e atendidos na
farmácia Amazonas, às custas da Companhia Ford Industrial do Brasil, dando a idéia de
que esta se responsabilizava pelos que trabalhavam a seu serviço.
Somente em dezembro de 1928 foi o Lake Ormoc conduzido Tapajós acima,
feito realizado por Silvito Augusto Pereira, em 16 horas de navegação. A edição de A
Cidade do dia 15 daquele mês comemora o feito, por ela designado como “Uma
empresa arriscada”, uma vez que a largura do Tapajós era bastante estreita em alguns
pontos, além de existir uma grande quantidade de pedras que dificultavam o
empreendimento. Mais uma vez a Companhia Ford causava alvoroço nas imediações.
A imprensa local e americana acompanhava de perto este empreendimento e é
possível acompanhar a trajetória destas reportagens desde o otimismo inicial, até os
comentários críticos feitos à medida que os trabalhos vão se iniciando. O mesmo foi
feito por Moog (1954), quando consultou os jornais da Biblioteca Pública de Nova

6
Embarcação para carga e descarga de navios.

46
York, de 1928 a 1946 e, através das manchetes da pasta assinalada com Rubber,
constata três momentos distintos, que refletem a passagem da euforia à desesperança:
“Na primeira fase, refletem a euforia das grandes expectativas: A resposta
da América ao monopólio inglês da borrracha. Fim do controle británico
da borracha. Libertando o mercado da borracha.
Na segunda fase, a expectativa se converte em certeza: Borracha para a
América: fábrica nos Estados Unidos, plantações no Brasil. Domando a
selva na bacia amazônica. O ouro da selva: Fordlândia, onde a borracha
do Brasil voltou novamente à vida. Ford no Brasil. Ford no Tapajós.
Plantações de borracha na Fordlândia. A cidade-prodígio do Amazonas.
Por fim, os primeiros rebates de insucessos e a retirada brusca: Más
notícias sobre a borracha. As folhas douradas da seringueira são afetadas
pela luz solar. A borracha sintética. Ford reitra-se do Brasil. Ford
withdraws from Brazil.
O resto, daí por diante, é silêncio.”
Silêncio não só na imprensa norte-americana, como também aqui no Brasil: os
escritórios da Ford em São Bernardo do Campo em São Paulo, não possuíam qualquer
informação sobre Fordlândia ou Belterra antes da minha visita aos mesmos, numa
demonstração clara de que a empresa não quis manter na sua memória a história deste
empreendimento tão vultoso do ponto de vista do capital investido, que se mostrou tão
pouco viável do ponto de vista comercial.

O Jornal A Cidade nos anos de 1927, 1928, 1929 e 1930: a passagem dos elogios às
críticas

A análise deste periódico se reveste de particular importância, porque é ele que


cobre o momento inicial da Companhia, e é particularmente nesta época que se tem uma
grande expectativa de que o empreendimento americano possa vir a representar um
novo patamar de desenvolvimento para a área. No entanto, especialmente a partir do
momento em que começam os trabalhos de contratação do pessoal, os elogios vão
cedendo lugar para as críticas, uma vez que se percebe que a possibilidade de progresso
estaria restrita a Fordlândia e que, mesmo naquele local, havia diversos pontos a serem
questionados, mormente em relação ao tratamento dispensado aos trabalhadores.

47
A primeira notícia encontrada neste auto-intitulado Semanário dos interesses da
região tapajônica, referente ao empreendimento de Henry Ford, se encontra na edição
de 29 de outubro de 1927, em artigo chamado de Novos Horizontes, assinado por L.
Nunes e escrito em Belém em 20 de outubro do mesmo ano.
O autor começa por contrapor a situação penosa em que vive a região
amazônica, do ponto de vista da economia, com a possibilidade de “novos horizontes”
aberta com a vinda próxima de Ford e suas companhias. Segue comentando a
localização privilegiada de Santarém, no encontro dos rios Tapajós e Amazonas, que lhe
proporciona a recepção de navios de grande porte, sendo que este fato se soma à
excelente administração municipal realizada pelo intendente coronel Joaquim Braga,
que faz com que a cidade esteja limpa e higienizada. Apesar de todas estas qualidades,
Santarém não é conhecida devido à falta de propaganda, fato que teria sido assinalado
por um turista americano em entrevista a um jornal da capital.
Há uma adequação entre este texto e o momento econômico pelo qual passava a
Amazônia, conforme discussão apresentada no capítulo anterior. No entanto, o artigo é
extremamente exagerado, desde o seu parágrafo inicial, citado a seguir:
“Depois de um longo período de tempo em que a angustiosa situação
econômica e financeira de toda a região amazônica parecia pelos sérios
obstáculos que a rodeavam, não mais sair desse estado grave, perigoso em
que ainda se acha, as esperanças de um futuro próspero e confiante se
concretizam agora tomando corpo e vida nas grandes empresas que o
miliardário Ford projeta e já está dando início para desdobrá-las segundo
o contrato, em todo o vale do Tapajós.”
Há uma contraposição entre o estado de perigo e o de esperança, que não se
justifica, até porque com o fim do surto da borracha as pessoas da área retomaram suas
antigas atividades de extrativismo e agricultura, não oferecendo risco à ordem
estabelecida. Mais do que isso, não há qualquer cogitação por parte de Ford, conforme
afirma o autor, de instalação de mais de uma empresa, muito menos de instalá-las ao
longo do Tapajós.
O autor do artigo ainda acredita que este empreendimento possa ser a redenção
de toda a Amazônia: “não deixa mais dúvida sobre a melhora sensível que daí se vai
irradiar para a vida incipiente do Pará e Amazonas”, fazendo mais uma vez um
discurso grandioso sobre um fato que não tem este alcance, ao contrário, a instalação da
Companhia mostrará que não há nenhum interesse no desenvolvimento regional, ao

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contrário, é apenas mais um empreendimento capitalista, destinado a proporcionar
lucros para sua matriz.
No dia 10 de dezembro, ainda de 1927, o mesmo autor, novamente de Belém,
escreve outro artigo que complementa o primeiro, afirmando que a possibilidade de
desenvolvimento advinda com Ford e sua empresa - já não há o emprego do plural para
o empreendimento - deve ser aproveitada para a criação de uma indústria e um comércio
locais que possam alavancar e promover o crescimento da região:
“Santarém, o município paradigma de toda Amazônia, pela posição
maravilhosa que ocupa, participará de certo em maiores proporções das
vantagens que são dadas esperar. Entretanto uma vez os projetos e os
planos da poderosa empresa, passados para o campo prático, devemos não
nos deixar extasiados demoradamente no gozo da impressão, desses
benefícios prováveis. As duras lições levadas das amargas provações
decorrentes da crítica situação que ainda nos aflige, ensinam que é preciso
agir sem demora na ocasião própria de maneira a se tirar o melhor partido
possível da promissora situação em expectativa.
Saber aproveitá-la praticamente criando-se e organizando indústrias e
comércios que contribuam diretamente para avultar a fortuna pública e
particular, assegurando-lhe uma vida mais próspera com um equilíbrio
mais estável.”
O artigo comenta que o termo de concessão permite à empresa Ford a
exploração não só da seringueira, como também de outros produtos agrícolas e
industriais e que seria esta uma excelente oportunidade de associação com o capital
estrangeiro para o desenvolvimento da indústria e do comércio. A fertilidade dos solos
de Santarém também é mencionada e o autor propõe o estímulo à atividade agrícola,
notadamente a voltada para a exportação, sugerindo em particular a cultura do algodão,
que tem tido sua demanda elevada no mercado externo, e também de algumas frutas,
como a banana e o ananás, que também possuem mercado garantido no estrangeiro.
O interesse dos capitais estrangeiros pela região é mencionado quando Nunes
menciona que haveria um emissário da General Motors, em Belém, em negociações
secretas. O autor finaliza reafirmando a necessidade do desenvolvimento da indústria e
do comércio:
“Finalmente o que precisamos não perder de vista, é a necessidade instante
de criar-se uma indústria, um comércio que pela sua importância e solidez,

49
seja um poderoso elemento de vida para Santarém. Para esse fim hão de
concorrer não somente os capitais americanos e o empenho patriótico do
atual chefe do município, como ainda a opulência das nossas riquezas
naturais e a excelência do nosso solo rico de humus fecundante.”
Este artigo já é menos exagerado que o primeiro que enxergava na vinda de
Ford, por si só, a possibilidade de redenção econômica de toda região amazônica. Aqui
o autor reflete sobre a necessidade do desenvolvimento da indústria e do comércio local
para assegurar o crescimento econômico. No entanto, o desenvolvimento da agricultura
de produtos para exportação, conforme é sugerido pelo autor para o incremento
comercial da área, representa uma contradição: se a produção está presa à demanda do
mercado externo, como se pode garantir o seu crescimento de forma irrestrita? É
importante relembrar que esta total dependência do mercado externo foi um dos fatores
responsáveis pelo declínio da exploração do látex na Amazônia, que não pode ser
substituído por outro produto uma vez que não tinha havido o investimento em outra
atividade. Mais do que isso, se a atividade agrícola se destina ao comércio externo, de
onde virá a matéria-prima para as indústrias que lá se instalariam?
Desta forma, este artigo, mais uma vez, mostra exageros, a industrialização na
Amazônia é absolutamente incipiente e se concentra nas capitais - Belém e Manaus.
Além disso, a vinda da Companhia é um fato isolado, que não pode significar que outras
a acompanharão, inclusive a história não registrou a instalação de nenhuma outra
empresa na área naquele momento, fato que só veio a ocorrer no período pós-64,
quando não só empresas estrangeiras, como também o Estado passaram a investir na
Amazônia, através de projetos de colonização e de exploração.
A questão da imensa fertilidade dos solos da Amazônia é uma questão recorrente
em vários dos artigos e é uma tema antigo presente em textos de diversos pesquisadores
europeus que lá estiveram, especialmente no século XIX. No entanto, é necessário
diferenciar duas áreas na Amazônia: de um lado há as denominadas terras firmes, que
compõem cerca de 80% da área e que são aquelas que não estão sujeitas às inundações
dos rios, vivendo portanto do equilíbrio entre os elementos ali presentes. De outro lado,
as áreas de várzea são aquelas próximas às margens dos rios e que sofrem o efeito de
marés e das inundações anuais, recebendo os detritos carregados pelos rios em suas
trajetórias.
Atualmente sabe-se que a Amazônia possui áreas com solos extremamente
pobres e que a pujança de sua vegetação deve-se a um complexo equilíbrio que faz com

50
que todo o material orgânico, proveniente da decomposição de detritos, seja
rapidamente absorvido pelas raízes das plantas, geralmente árvores que, desta forma,
não são profundas. Tal fato prende-se à formação da Bacia Amazônica que teve início
com uma regressão marinha, no período Carbonífero, quando houve uma elevação do
continente, fazendo com que aquele terreno, mais baixo que os outros, passasse a ser
uma área de ligação entre os oceanos Pacífico e Atlântico. O surgimento posterior da
Cordilheira dos Andes fez com que se perdesse a ligação com o Pacífico e deu origem à
floresta. Assim, os solos possuem uma pequena camada fértil, de 20 a 30 cm, sendo
seguidos pela areia, que não possui nutrientes para a vegetação.
A inexistência de vegetação rasteira está ligada à dificuldade de penetração da
luz solar, uma vez que as árvores são bastante altas, cerca de 40 metros, e tem ramagens
que se enroscam umas às outras, possibilitando sua sustentação, uma vez que as raízes
são pouco profundas. Esta ausência é a responsável pela falta de animais herbívoros e
de seus predadores os carnívoros, mas não impede a presença de um sem número de
espécies de aves e de insetos que povoam a floresta e que proporcionam os detritos
orgânicos que serão prontamente absorvidos pelas raízes das árvores, evitando sua
absorção pelo solo, onde se abrigariam na parte arenosa, de difícil acesso para as
mesmas.
Assim, pode-se dizer que a floresta vive do seu próprio equilíbrio interno e que a
alteração de qualquer uma destas características pode afetar todo o sistema. Há que se
ressaltar ainda que as características acima descritas são próprias das terras firmes, uma
vez que a áreas de várzea podem se beneficiar das enchentes dos rios, que lhes trazem
nutrientes recolhidos ao longo do seu trajeto, proporcionando-lhes uma fertilidade
maior.7
Se todas estas constatações são frutos de pesquisas cumulativas, que vem desde
a chegada do colonizador europeu e que são amplamente beneficiadas pelo
desenvolvimento da ciência no século XX, sendo desconhecidas no início do mesmo,
ainda assim não se poderia ter desconsiderado o resultado de experiências anteriores,
inclusive das que ocorreram nas adjacências de Santarém.
Durante a colonização portuguesa no Brasil, os jesuítas tiveram permissão para
estabelecer aldeamentos indígenas na Amazônia, onde os índios eram catequizados e,

7
A este respeito, consultar: SIOLI, H. Amazônia: fundamentos da ecologia da maior região de florestas
tropicais, 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1991; e BRANCO, S.M. O desafio amazônico. 17.ed. São Paulo:
Moderna, 1997. (Coleção Polêmica).

51
em troca, trabalhavam para os religiosos. De acordo com Oliveira (1983, p.184), a
chegada dos integrantes da Companhia de Jesus deu-se em 1653 e eles possuíam
autorização para atuar em toda a margem direita do rio Amazonas, incluindo-se os
sertões.
Um destes aldeamentos, dos índios Arapiuns ou Cumaru, foi estabelecido na
margem direita do rio Tapajós, e posteriormente deu origem à localidade de Vila
Franca, que se situa na área da concessão feita a Ford. De acordo com Branco (1997,
p.36), os jesuítas arrebanharam cerca de 10 mil nativos para ali desenvolverem a
agricultura baseada no modelo europeu, com o desmatamento total da área. A expulsão
da Companhia de Jesus, em 1756, realizada pelo Marquês de Pombal, promoveu o
abandono desta área, onde não foi possível que a floresta recuperasse seu espaço, dando
origem a “savanas extremamente pobres e improdutivas, em conseqüência do rápido e
irreversível esgotamento dos solos.”
O contraponto a esta experiência, realizada em terras firmes, é apresentado pelo
mesmo autor e foi realizado nas áreas de várzea, em Óbidos e Santarém, onde escravos
plantaram cacau e formaram pastagens, que ao serem abandonadas com a Abolição,
“deram lugar à recuperação da floresta ou à permanência das pastagens que ainda
hoje têm valor econômico.”
Tudo isto me leva a reafirmar o exagero contido nas afirmações de Nunes, uma
vez que a possibilidade da agricultura em grande escala, vinculada à suposta existência
de solos extremamente férteis, é bastante limitada, fato este já comprovado pela história
local, através dos empreendimentos narrados.
O mapa 6 elaborado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
constante da edição de 1996 do Anuário Estatístico do Brasil também ilustra a baixa
potencialidade agrícola dos solos da Amazônia, mostrando que grande parte da região
possui classificadas de regulares e restritas, sendo a área da concessão Ford, na margem
direita do Tapajós, próxima à confluência deste com o Amazonas, é classificada de
regular.

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53
No dia 21 de janeiro de 1928, o jornal A Cidade transcreveu um artigo do
Correio do Pará, assinado por Alarico Barata que inicia por comentar que um jornal
paulista, em edição recente, havia noticiado a chegada dos capitais americanos à
Amazônia, que seriam responsáveis por concretizar a profecia de Humboldt8, que via
aquela região como “o celeiro do mundo”, fazendo referência a um suposto potencial do
solo amazônico, que estaria se revelando para o mundo com a vinda de Ford.
É defendida a colonização científica da área, citando como exemplo o fato de
que os cearenses haviam sido responsáveis pelo grande desenvolvimento do Acre no
período áureo da extração do látex, e que, por falta de alguém que dirigisse seus
esforços, haviam se retirado sem deixar rastros da riqueza que lá proporcionaram.
Assim, a vinda dos americanos, que fariam a “conjugação do braço com o capital”, é
vista como o prenúncio da instalação de novos núcleos de colonização.
Novamente temos a imagem de uma região com “imensas possibilidades
econômicas e grandeza sem par do seu ubertoso e invejável solo”, que poderia ser
mostrado para o mundo a partir da vitrine que seria a empresa de Ford na área.
O acréscimo que este autor coloca em relação aos anteriores é a questão da
colonização científica, vista como uma solução para o “atraso da Amazônia”. Esta
conclusão é obtida após uma análise sobre o processo de extração da borracha no Acre,
realizada pelo “cearense tão destemeroso e sentimental, na sua pertinácia de homem
afeito à dor e ao sofrimento, à aventura e ao trabalho , (que) pode embora
rotineiramente e quase de improviso, colonizar e povoar anonimamente as longínqüas
artérias fluviais do alto Acre”. A primeira questão que aparece é este elogio ao
cearense, fazendo uma afirmação bastante temerária de que este povo seria
caracterizado pelo seu sofrimento e pelo espírito aventureiro, sem levar em
consideração que anteriormente havia escrito sobre a exploração da borracha no Acre
que “o desbravamento dos primeiros estirões da terra moça por desgraçadas levas
sertanejas, que acossadas pela inclemência das secas nordestinas, subiram a majestosa
estrada líquida...”, ou seja, se a seca é que os empurrava, o espírito aventureiro não era
inato, e sim uma das possibilidades de sobrevivência que se oferecia através da
migração.

8
Alexander von Humboldt (1769-1859), pesquisador alemão, ligado à aristocracia prussiana e
considerado um dos precursores da sistematização da Geografia, esteve na América tropical entre 1799 e
1804, tendo realizado pesquisas em diversas partes da Amazônia, especialmente a venezuelana, uma vez
que foi impedido de penetrar nas possessões portuguesas que não via com bons olhos seus interesses de
estudioso em traçar mapas e pesquisar espécies vegetais e animais. (Para maiores esclarecimentos
consultar Moraes (1995) e Branco (1997) .

54
Outro ponto colocado pelo autor é a espontaneidade daqueles homens simples,
que careciam de um orientação e de um planejamento, deixando transparecer uma
crítica à ausência do Estado naquele empreendimento, que explicaria a falta de
desenvolvimento da região:
“O atraso da Amazônia, pois, diante dos outros estados da
República é uma condição resultante, além de outros motivos,
da desorganização das massas, povoadoras das suas cidades,
que sem empreendimento nem diretrizes nunca puderam
elaborar nem desenvolver o desbravamento metódico da terra
virgem, sendo vencidos pela inércia, embora se achem dentro
do ‘maior celeiro do mundo’ ”.
A solução preconizada, então, é “a colonização científica dos núcleos de
trabalho”, com a construção de hospitais, escolas e de um sistema de transporte eficaz,
que pudesse facilitar a mobilidade em uma área tão extensa. É importante notar que
estes estabelecimentos serão construídos em Fordlândia e em Belterra, e serão vistos
como símbolo do progresso do empreendimento de Ford na Amazônia.
O povo americano também possuiria características peculiares, que lhes
facilitaria o sucesso no empreendimento:
“Ford, homem prático e experimentado, frio e reservado como sabem ser os
americanos do norte, enxergou com olhos de vidente, e, após meticuloso
estudo feito, por profissionais habilitados, o papel preponderante que esse
imenso território da República está destinado a representar,
economicamente na hora atual.”
Há que se ressaltar também o papel de pioneirismo atribuído a Ford, considerado
como um vidente, não no sentido do misticismo, mas como homem conhecedor da
ciência, uma vez que é guiado por profissionais habilitados, em contraponto com o
homem simples que era o trabalhador cearense.
Este ponto também contem uma distorção nos fatos, uma vez, conforme já foi
discutido neste trabalho, a escolha do lugar onde foi implantado Fordlândia é muito
mais fruto de artimanhas de Villares, do que de um estudo racional, até porque este
local apresentava diversas dificuldades para o empreendimento, tais como o relevo
acidentado e a impossibilidade da navegação de embarcações de grande porte no
período das secas. Também o fato da matriz americana não ter se preocupado em
contratar um técnico agrícola, embora o relatório da comissão americana já tivesse feito

55
advertências sobre o possível ataque do “mal-das-folhas” demonstra que o planejamento
inicial da Companhia não era dirigido por profissionais tão habilitados quanto propunha
o autor do artigo.
Uma outra dicotomia presente no texto é a visão da floresta como um lugar
selvagem, contrapondo-se com os futuros núcleos de colonização onde imperaria a
civilização:
“Daí a sua (de Ford) entrada positiva nas artérias do majestoso rio, que,
mais tarde terá os seus ‘firmes’ e alcantis soberbos , rasgados por
ininterruptas trilhas de automóveis a encurtarem distâncias, fazendo recuar
a selva, espantando as feras, e preparando, assim, o definitivo ‘habitat’ de
uma população feliz e laboriosa, inteligente e sadia, que se caldeou através
de sofrimentos e vicissitudes incalculáveis.” (Grifos meus)
A idéia da insalubridade da floresta também se opõe à salubridade dos núcleos,
onde a população sofredora poderia encontrar a felicidade, como se não houvessem
pessoas que habitavam o local há séculos, tendo estabelecido um modo de vida
perfeitamente adequado à área, sem que vissem a floresta como um inimigo a ser
vencido. Esta reflexão já foi feita por Leroy (1991), que preconiza a existência, na
Amazônia, de um ecossistema em que o homem atua na natureza de forma a garantir
sua sobrevivência.
“A essas duas dimensões - espaço e tempo - que a Amazônia nos convida a
repensar, precisaria acrescentar uma terceira, que chamaria de
profundidade, que é a relação recíproca entre organismos vivos da
natureza, entre o vegetal e o animal, entre microorganismos e os
organismos animais, entre a natureza e o homem, em cadeias de relações
complexas e permanentes. A Amazônia forma, assim, um vasto ecossistema,
em que toda vida em qualquer lugar, longe de se encerrar em si mesma, é
relacionada com o conjunto do meio ambiente, num processo constante de
interações.”
O texto de Leroy é bastante pertinente neste caso da Companhia Ford, há uma
discrepância entre o que se propõe ser construído face a forma de ocupação original da
área. O espaço será todo remodelado, com padrões importados dos Estados Unidos, e o
tempo também será alterado, não mais prevalecerá o tempo amazônico marcado pelos
ciclos da natureza, mas será implantado o tempo do relógio, marcado pelos apitos

56
emitidos pela caixa d’água, que organizará o trabalho em tempos de produção e de
descanso.
O autor finaliza o artigo comparando a administração de São Paulo e a do Pará,
esperando que o governante deste último possa aproveitar a ocasião para fazer cumprir
o ideal do paraense que é “educar, trabalhar, produzir e economizar.” Há aqui uma
generalização, que remete para os novos parâmetros da sociedade capitalista, na qual o
produzir e o economizar são vistos como a tarefa da sociedade.
Apesar de todos estes artigos louvando a chegada dos americanos, ainda no ano
de 1928, mais precisamente no dia 18 de fevereiro, há o primeiro editorial em que se
questiona as vantagens da vinda de Ford, que o autor diz ser necessário avaliar “sob
todos os seus aspectos bons e maus”, baseado no fato de que uma grande leva de
pessoas de Pernambuco, do Ceará, dos altos rios amazônicos e até de Manaus iniciaram
um movimento de emigração para Santarém, o que já vem causando um sério problema
de habitação na cidade. Além disso, o autor vê a possibilidade de atração de
“malandros, vadios e vagabundos”, ao invés de trabalhadores para a lavoura,
necessários para a colonização da região.
Há uma forte desconfiança e racismo contra os estrangeiros, notadamente os que
são comerciantes, ao mesmo tempo que se louva o trabalhador agrícola: “O que
precisamos, o de que temos urgente necessidade, não é de engraxates italianos, nem
carroceiros portugueses, nem teques-teques da Síria, nem cartomantes tziganas, nem
cangaceiros nordestinos. Precisamos de braços para a lavoura, venham eles de onde
vierem; precisamos de colonizar essas imensas zonas inexploradas do nosso
‘interland’; precisamos de quem produza, de quem, fundando sua casa, se fixe na terra
e a trabalhe e a povoe e a engrandeça.”
As afirmações do autor demonstram uma dubiedade, ao mesmo tempo em que
vê com bons olhos a chegada dos americanos, revela um nítido preconceito contra
outros grupos de estrangeiros, cuja chegada era repelida de forma veemente. Há uma
separação entre aqueles que se dedicam ao trabalho da lavoura e os que não o fazem,
sendo que o autor somente valoriza os primeiros, que poderiam vir para colonizar a
Amazônia. Para os demais, ele sugere uma “fiscalização rigorosa e severíssima da
polícia.”
A repercussão da vinda do Ford já extrapolara os limites da Amazônia como se
pode perceber na leitura de artigo do dia 10 de março, quando se discute as notícias
publicadas na capital federal. O autor discute uma campanha que estaria em curso na

57
campanha carioca, com o intuito de afastar os capitais americanos que viriam para o
Brasil, enquanto O Jornal, da mesma cidade, se ocuparia de defender os valores
patrióticos contidos neste empreendimento.
Os jornais contrários à vinda de Ford são classificados como “jornais
vermelhos”, que querem atingir outros alvos como o governo da República e o do Pará.
Enquanto a maioria da imprensa se rejubilava com a vinda do capital estrangeiro, “a
imprensa esquerdista, numa desfaçatez que revolta, move essa campanha de descrédito,
criminosa e ingrata que bem reflete a pequenez desses patrioteiros que querem salvar o
país. Mas não será o ladrido continuado dos rafeiros que se acoitam nas colunas dessa
imprensa inimiga do Brasil que há de afastar os dólares de Ford da ubertosa
Amazônia.” O autor conclui o texto com o chamado para que os brasileiros que amam o
Brasil recebam com “carinho e amizade” os americanos que podem fazer o
ressurgimento da Amazônia, vista como “terra imatura que em breve amadurecerá”.
O autor não nomeia estes jornais esquerdistas mas Munakata(1981) afirma que o
Partido Comunista do Brasil, criado em 1922, já em 1925 possuía alguma influência nos
sindicatos cariocas e que a partir de 1927 iniciava uma investida para estruturar o
movimento sindical brasileiro, utilizando o vespertino carioca A Nação para difundir
suas idéias. De qualquer forma, o autor parece estar se referindo a qualquer jornal que
se posicione contra a vinda da Ford.
O que chama a atenção no artigo é esta oposição entre os “jornais vermelhos” e
seus membros “patrioteiros”, em contraposição àqueles que “amam o Brasil” que
lembra a associação feita pelos governos militares no Brasil pós-64, com o seu lema:
“Brasil: ame-o ou deixe-o”. É um paradoxo que vê na chegada do capital estrangeiro
um fator de progresso, que deve ser valorizado por todos aqueles que amam o Brasil,
enquanto os que se opõe a tal iniciativa não são verdadeiramente patriotas, sua ação é
“criminosa” e revolta os verdadeiros brasileiros. O uso deste adjetivo dá uma idéia do
que o autor pretende para aqueles que não concordam com suas idéias: devem ser
enquadrados como malfeitores, merecendo a justa punição.
Outra questão que a leitura do artigo sugere, e que pode se aplicar a outros
textos, é sobre o porquê de apenas o capital estrangeiro poder fazer o ressurgimento da
Amazônia. Mais do que isto, há uma preocupação em fazer o capital voltar a circular
naquela região como no tempo áureo do extrativismo da borracha, quando apenas uma
pequena parcela da população pode usufruir desta riqueza. Nenhum destes autores
parece enxergar a possibilidade de um desenvolvimento regional que respeite as

58
peculiaridades amazônicas, que possa melhorar a condição de vida das populações sem
promover tão grandes alterações no modo de vida local. Estes artigos também não
parecem sequer entrever a real intenção de Ford, que não deriva de uma preocupação
com as condições econômicas da região, mas sim de uma tentativa de aumentar o seu
capital, fugindo do monopólio inglês na produção da borracha.
A caracterização da Amazônia como terra imatura, também lembra a idéia de
que esta região viveria numa grande infância e que a chegada do capital americano
representaria uma passagem para a vida adulta, quando esta poderia se integrar nos
grandes circuitos do mercado internacional, ainda que não se discuta as condições de
dependência que esta vinculação representaria.
A questão do aumento dos aluguéis em Santarém é retomada em artigo do dia 31
de março, assinado por Zé Quieto. O autor ressalta que esta cidade está “atravessando
uma das piores épocas ou fases da sua vida” citando dificuldades na pesca; o problema
da carne que, embora com preço estável, possui cada vez mais osso; a dificuldade no
abastecimento de gêneros primários como o feijão e o arroz e os baixos preços pagos
aos gêneros de exportação como a castanha, a borracha e o cacau. Esta situação de
penúria soma-se ao aumento do preço da lenha, que dificulta a iluminação da cidade e à
falta de trabalho, que além de escasso, é mal remunerado.
O aumento dos aluguéis, face a isto, é considerado abusivo, ainda mais que a
prefeitura é extremamente condescendente com os senhorios, não lhes exigindo
calçamento e nem instalações sanitárias adequadas. O autor finaliza chamando a atenção
das autoridades para a questão: “Mas as autoridades que sabem julgar, saberão também
chamá-los ao caminho da razão, estou certo disso.”
O editorial do dia 25 de agosto do mesmo ano também se dedica às críticas,
neste caso contra os paulistas, afirmando que através de sua “mocidade estudantina” a
Amazônia foi lembrada mas não para ser ajudada, mas sim para o protesto contra a
vinda do capital americano. O texto é bastante emotivo e contrasta de um lado os
nortistas, desamparados, e de outro os sulistas, abastados: “Padecemos as nossas dores
sem conto; suportamos as nossas prolongadas misérias, resignados, sem queixumes
nem recriminações mas com fé inabalável e esperança imorredoura de melhores dias;
sofremos e os nossos irmãos sulistas não se apercebem de nós, nem os comovem as
nossas vicissitudes.” Segundo o texto, estes críticos veriam na vinda de Ford uma
entrega “do território pátrio aos estrangeiros”, no entanto, o autor lembra que não é um

59
privilégio dos sulistas o progresso e o enriquecimento e que tudo isto seria possível com
a concessão feita a Ford.
Esta oposição norte-sul, que contrapõe o primeiro, desprotegido e pobre, ao
segundo, rico e poderoso, está presente em vários discursos na história do Brasil, nos
quais se busca justificar a atração do capital estatal e estrangeiro para estas regiões,
vendo nesta possibilidade de sair do atraso. Os diversos projetos estatais que são
concebidos para a região tem esta premissa como verdadeira, embora quase sempre
escape aos burocratas que os elaboram a análise pormenorizada da área, do modo de
vida das populações, e das causas que levam à miséria local.
A edição do dia 22 de setembro também comenta a vinda do capital estrangeiro,
na pessoa do “multi-milionário yankee”, acreditando que este fato trará a prosperidade
para Santarém e talvez até para os municípios vizinhos, e que a notícia se espalhou de
tal forma que chegam do estrangeiro diversos pedidos de informações sobre a região e
suas possibilidades. Todo esta expectativa gira em torno da chegada dos primeiros
navios, que se deu em meados daquele mês.
O articulista aproveita para atacar aqueles que combatem a vinda da empresa,
afirmando que: “nada obstante o nacionalismo vesgo dos adversários do nosso
progresso, que outros não são senão os que se opõe por sistema aos atos, sejam maus
ou bons, dos poderes constituídos e nada obstante, ainda a grita dos que não vêem com
bons olhos o ressurgimento do ‘escravizado’ estado nortista que é o nosso Pará - quer
isto dizer nada obstante tudo isso, que a aplicação dos capitais americanos na
Tapajônia é de real proveito para a nossa terra e de real interesse para a nossa gente.”
Mais uma vez aparece a idéia de que os capitais americanos são bem vindos e que os
que se contrapõe a tal fato são falsos nacionalistas, que querem manter o Pará como
estado dependente dos demais.
O autor identifica que tais ataques são dirigidos a Dionysio Bentes, governador
daquele estado, que foi o responsável pela concessão e defende o mesmo afirmando que
seu nome ficará para a posteridade: “Num futuro não remoto, quando os possantes
locomóveis de Ford, espantando as feras e os pássaros de nossa rica fauna chegarem
aos pontos de embarque repletos dos productos da laboriosa colméia humana, um
nome será lembrado, - nome hoje alvo das assacadilhas de meia dúzia de despeitados,
mas que, amanhã, ver-se-á cercado duma auréola de benemerência - Dionysio Bentes.”
Além de demonstrar as disputas políticas que envolviam a concessão da Ford, o
retrato que o autor oferece de sua região é curioso: ele faz um contraponto entre a

60
situação da época, com o domínio da floresta, lugar das feras, e o futuro, onde esta seria
eliminada e substituída por uma área onde predominaria o trabalho laborioso. As feras,
perigosas, deveriam então ser eliminadas para que os automóveis, símbolos da
civilização, pudessem se instalar. A metáfora da colméia também é aqui bastante
pertinente: as abelhas possuem uma grande especialização de tarefas e obedecem a uma
rígida hierarquia, o que não difere muito do sistema do fordismo e do taylorismo que
será implantado pela Companhia.
No dia 06 de outubro, o jornal volta a alertar para o perigo que representa a
chegada de inúmeras pessoas, atraídas pela possibilidade de empregar-se na Companhia,
sugerindo que se fizesse uma “profilaxia policial rigorosa” em todos aqueles que
chegassem sem prévia recomendação, evitando que os vagabundos e malfeitores
tomassem a Tapajônia de assalto. Ressalta ainda que já chegaram em Santarém,
“atraídos pelos dólares de Henry Ford, indivíduos de nacionalidades e procedências
várias, sem que possamos saber a que, porque e como vieram. E estão ainda de início
os trabalhos fordianos.” Desta forma, seria este o momento adequado para se tomar
providências visando evitar a permanência de pessoas indesejáveis.
A primeira notícia de levante de trabalhadores da concessão Ford também é do
ano de 1928 e foi noticiada na edição de 24 de novembro. Segundo o jornal, no dia 20
daquele mês, ao fim da tarde, chegou a notícia em Santarém de que houvera um
movimento grevista em Boa Vista e que os empregados da Companhia estariam
abandonando a área, rumando para Itaituba, Aveiro, Santarém e outras localidades. Na
noite do mesmo dia o rebocador Mero aportou no trapiche municipal, trazendo um
grande número de grevistas, que só foram autorizados a desembarcar depois que as
autoridades locais verificaram que sua intenção era de paz, buscando apenas voltar para
suas casas.
O líder do movimento, segundo os trabalhadores, era Sebastião Rozendo da
Silva, um norte-rio-grandense, de Ceará-Mirim, que havia chegado a Boa Vista em 6 de
novembro e que declarou que o motivo da paralisação era a má alimentação e os baixos
salários: “-Era uma ‘baguá’ desgraçado, seu patrão, que nem porco ‘havera’ de tragar,
- afirmou-nos ele com o falar característico da gente sertaneja.” Ainda segundo o
relato dos trabalhadores, recolhido pelos jornalistas, o movimento se iniciara entre os
trabalhadores do campo, que obrigaram os outros a aderirem, inclusive um médico e um
engenheiro, todos brasileiros.

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A reportagem é concluída com a afirmação de que entre todos os entrevistados
houve unanimidade em afirmar que “a causa da parede foi a má alimentação, culpando
do fato, não os americanos, para os quais tiveram palavras elogiosas, mas os
nacionais, que são os maiores perseguidores dos trabalhadores.” Mais uma vez se nota
a ambivalência em relação ao empreendimento de Ford: embora os americanos sejam os
responsáveis pela direção da Companhia, a culpa pela greve é atribuída aos brasileiros
que estariam maltratando seus compatriotas.
A rapidez com que se processam os trabalhos pode se percebida também neste
texto, os navios chegaram em setembro e já em novembro os trabalhos seguiam em
grande velocidade, tendo atraído trabalhadores de áreas distantes: Ceará-Mirim, terra do
líder do movimento que ainda mantinha seu sotaque sertanejo, fica no Rio Grande do
Norte, próximo a Natal, portanto em lugar bastante distante da Boa Vista.
No dia 22 de dezembro, ainda de 1928, há a notícia da criação, pelo governo do
estado do Pará, de uma prefeitura de polícia em Boa Vista, para onde foi nomeado o 2º
tenente José Xavier da Silva, que teria a seu serviço o sargento Manoel Ferreira da
Conceição e um cabo. Este fato já é emblemático do controle que a empresa julgava ter
sobre seus trabalhadores: a obra de Cohen (1929) relata que os candidatos que se
apresentavam à Companhia passavam por inspeção médica e policial rigorosa, sendo
que eram dispensados no caso de não adequação. O relatório de um destes delegados
também oferece dados preciosos sobre estes primeiros tempos da instalação da
Companhia e será analisado no sexto capítulo deste trabalho. É significativo também o
fato de que, apenas um mês após a greve dos trabalhadores, o governo do Estado
autorize a criação de uma prefeitura de polícia na concessão da Ford.
Os problemas sociais em Santarém podem ter sido agravados após a instalação
deste posto policial em Boa Vista, porque é para a primeira que irão rumar as pessoas
que foram rejeitadas pela Ford. Esta hipótese pode ajudar a compreender o fato de que
no ano de 1929 as notícias alvissareiras sobre o empreendimento da Ford ficaram cada
vez mais raras neste periódico. A primeira já foi citada, é de 23 de fevereiro de 1929 e
se refere ao arrendamento que Villares havia obtido do Conselho Municipal de
Santarém, na área onde poderiam ser instalados armazéns da Companhia, e que foi
anulado tendo em vista a possibilidade de entendimento direto entre os gerentes da
mesma e a administração daquela cidade.
Um artigo de março de 1929, transcrito do jornal O País, do Rio de Janeiro,
relata as impressões bastante favoráveis de um comandante da marinha mercante norte-

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americana sobre suas visitas à área em que se instalara a Companhia Ford na Amazônia
brasileira que teria caracterizado como “um dos pontos do universo mais
favoravelmente dotados pela natureza”.
O autor do artigo faz questão de ressaltar ainda que há uma grande
desinformação sobre a região, inclusive sobre sua salubridade, diferenciando duas áreas:
“É apenas nos terrenos marginais do trecho interior do referido rio [Tapajós], que
grassa endemicamente o paludismo - circunstância essa cuja origem está no
alagamento periódico desses terrenos, à época da enchente, e nos charcos que às vezes
se formam nas adjacências das cachoeiras.” A outra área é caracterizada pelas boas
condições de saúde: “Para além dos travessões começa o Alto Tapajós, a Tapajônia
propriamente dita - região que, devido à sua altitude, possue temperatura amena e
onde a definição natural das águas, garantida por uma inclinação sensível do leito,
cria situação favorável à saúde de todos os habitantes, seja qual for a respectiva
nacionalidade.”
O autor continua fazendo um alerta bastante importante: “O caso desse
riquíssimo setor do território paraense é o de quase todos, senão todos, os recantos da
Amazônia. Perto, ao lado, até, às vezes, de lugares insalubres, outros se encontram
salubérrimos. E essa aparente anomalia somente surpreenderá quem não estiver
apercebido, ainda, de quanto variam, a pequena distância, as características
topográficas da formidável planície.” Concordo com esta afirmação, não só pelo fato de
que ainda hoje há muita desinformação sobre a região amazônica, como também porque
é desnecessário desfazer este mito da homogeneização em relação à região. Há uma
grande diversidade nesta área, não só das paisagens naturais, como do quadro da
ocupação humana. Pude verificar isto mais de perto em minha última viagem de
trabalho de campo, em julho de 1997, quando fiz a viagem de Manaus a Santarém, de
barco, pelo rio Amazonas e aquilo que parecia homogêneo e repetitivo à primeira vista,
se mostrava diferenciado se observado com binóculos, que permitem um olhar mais
detalhado, evidenciando diversas formas de ocupação ao longo do rio.
A impressão de grata surpresa do comandante do navio, ao se deparar com
Fordlândia é uma constante nos seus visitantes, estrangeiros e nacionais. Até hoje
chegar em Fordlândia ao amanhecer, depois de viajar de barco por cerca de dez horas a
partir de Santarém, causa uma enorme surpresa: a paisagem é dominada por pequenas
colinas, destacando-se a visão dos galpões, da caixa d’água e da igreja, que

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testemunham um tempo passado que pode ser revivido através dos depoimentos dos
antigos trabalhadores.
Neste artigo o autor ainda retoma a questão de que este relato é importante
porque se opõe àqueles que procuram detratar “a terra que tão hospitaleiramente colhe
os desejosos de conhecê-la.” Este trecho remete à idéia de que as notícias sobre a Ford
ainda repercutiam na imprensa carioca e deveriam ser alvo de debates na imprensa
local.
Estas condições idílicas descritas pelo comandante norte-americano parecem
refletir apenas uma parte da verdade, visto que em 17 de maio há duas notícias
desmentindo a salubridade da região. A primeira tem o título de Guerra aos carapanãs,
informando que a lancha Sete de Setembro está proibida de estacionar no porto de
Fordlândia porque o serviço sanitário da Companhia Ford encontrou em seus porões
larvas e mosquitos do transmissor da febre amarela. Nesta mesma edição há um outro
artigo intitulado O Estado Sanitário em Boa Vista é péssimo que relata a ocorrência de
inúmeros casos de beribéri naquela área, fato este inédito até a chegada e instalação dos
americanos. Alguns dos infectados atribuíram sua doença à alimentação que recebiam,
que consideravam mal cozida. O artigo finaliza chamando a atenção das autoridades
para o fato, sugerindo que se verifique a origem da doença, bem como formas de evitá-
la, uma vez que diversas pessoas estavam doentes e já tinha havido a ocorrência de
vítimas fatais. Assim, ao mesmo tempo em que os agentes sanitários de Boa Vista se
debatiam para combater a febre amarela, a alimentação mal cozida tinha feito
aparecerem casos inéditos de beribéri na área.
Ao exigir providências das autoridades locais o autor ressalta que “a vida de
milhares de indivíduos, na sua maioria nacionais, não pode ficar sujeita aos caprichos
da fortuna...” demonstrando uma visão crítica do empreendimento da Ford que, em
busca de enriquecimento, deixava seus trabalhadores à mercê de péssimas condições de
vida.

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As últimas notícias encontradas no jornal A Cidade que fazem elogios à Ford são
do mês de setembro de 1929, uma é do intendente municipal de Santarém que ressalta
que a presença da empresa é motivo de orgulho para a cidade, sendo que é através do
seu porto que se movimentam os navios da mesma. Além disso, o prefeito ressalta que à
própria proximidade com o milionário yankee é um importante fator de propaganda para
o mundo, servindo para desfazer “lendas injustas” que afastavam o capital internacional
da área: “...e quando mais não pudéssemos esperar da iniciativa yankee, esta só
aproximação, este intercâmbio com um homem universal como é o milionário
americano bastará para nos mostrar aos olhos do mundo, desfazendo lendas injustas e
atraindo as vistas de capitalistas estrangeiros e nacionais para este rincão maravilhoso
da Tapajônia.”.
No mesmo período, há a publicação de uma carta de um comerciante de Cassue-
pan, que esteve de passagem em Boa Vista e elogia a postura do coronel Guedes,
prefeito de Boa Vista, que visita os estabelecimentos comerciais daquela localidade
“delicadamente sustando o abuso de venda de bebidas alcoólicas, fazendo assim
cumprir o regulamento em boa hora adotado pela Companhia Ford.” Esta medida seria
importante, segundo o missivista, para manter a ordem em “uma das mais importantes
empresas estrangeiras localizadas no Brasil”.
O que o comerciante parece não ter percebido é que a proibição do consumo de
bebidas alcoólicas em Fordlândia não tinha o poder de fazer com que os trabalhadores
da Companhia se tornassem abstêmios. Desta forma, há inúmeros relatos de que na área
ao redor da concessão existiam lugares para onde estes se dirigiam em busca de bebidas
e mulheres solteiras, cuja presença também era proibida em Boa Vista. O próprio jornal
A Cidade noticiou um incidente que ocorreu na zona de Fordlândia, em 29 de março de
1930, em um local denominado Caassu-ê-páua, também conhecido como Cassipá, que
pode até ser o mesmo local de origem do referido comerciante, quando os trabalhadores
da Companhia invadiram um restaurante, “praticando depredações e desacatando as
pessoas idôneas presentes.” Na ocasião, um empregado do estabelecimento e o
proprietário do terreno foram gravemente feridos, e o missivista informante do jornal
relata que a causa era a falta de policiamento, uma vez que o subprefeito, coronel
Guedes encontrava-se em Belém. A direção da Companhia fora notificada do fato mas
não tomara providência alguma.
É muito provável que o fato gerador dos conflitos possa ter sido o consumo de
álcool por parte dos empregados da empresa. A manutenção da ordem em Fordlândia

67
com a proibição de bebidas alcoólicas e de prostituição tinha como contrapartida o
aumento da violência nas circunvizinhanças, para onde os trabalhadores rumavam em
seus momentos de folga.
Um dos artigos mais contundentes na crítica a Ford foi publicado no dia 2 de
março de 1929 e é assinado por Villa Vargas. O curioso é que ao criticar as condições
de trabalho a que estão sujeitos os brasileiros, o autor retira a responsabilidade de Ford
em tal questão, afirmando que tais ocorrências não combinam com as atitudes, como,
por exemplo, a de ter doado “40 mil contos para um museu de guardar fonógrafos,
lâmpadas incandescentes, bobinas, antenas e bugigangas elétricas”.
O motivo que leva o articulista a escrever é o fato de que Ford havia anunciado
que suas fábricas nos Estados Unidos estariam contratando cerca de 30 mil operários, o
que havia levado uma multidão aos escritórios da companhia, em busca de um emprego.
Tal ocorrência havia sido noticiada pelo jornal O País, do Rio de Janeiro, que havia
afirmado que “contavam-se ali cegos, crianças e velhos, homens e mulheres de todas as
nacionalidades e credos religiosos, tudo o que a humanidade tem de disponível naquela
grande cidade, com capacidade de trabalhar, porque Ford admite tudo nas suas
fábricas, exceto os dementes e os loucos.” Em seguida, prosseguia elogiando o método
fordista de buscar conciliar os interesses dos trabalhadores com o dos capitalistas,
buscando baratear custos e distribuir os lucros entre os empregados. De forma irônica,
Villa Vargas comenta que este pode ser o procedimento nos Estados Unidos, mas que
isto não ocorria em relação à “tragi-comédia da Fordlândia tapajoara.”
As condições de trabalho e o salário entre os operários nos Estados Unidos e os
do Brasil, são então comparadas de uma forma crítica: “Enquanto nas confortáveis
oficinas de Detroit, milhares de americanos do norte, homens e mulheres,
comodamente instalados, sob coberta, ao abrigo do frio e do calor, bem comidos, bem
bebidos, bem dormidos, trabalham cinco dias da semana, percebendo o ordenado de
40$000, no mínimo, por dia, nos lameiros de Boa Vista, encharcados, enlameados,
sujos, ao rigor das chuvas, sob os calores inclementes do sol, acossados pelos
mosquitos, ameaçados pelas cobras, candidatos ao beribéri e à malária, centenas de
brasileiros suam, da aurora ao sol-posto, cavando terra, cortando pau, desbravando
florestas, para arrancar dos humanitários cofres do milionário Ford a miséria, a
infâmia, os escárnio de três mil réis por dia!...”(Grifos do autor).É então que o autor
comenta que não acredita que isto seja do conhecimento de Ford, mas que
possivelmente este está sendo enganado por “algum bom brasileiro americanizado.”

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A caracterização da Fordlândia como uma “tragi-comédia” tem um impacto
grande e mostra que à medida que a Companhia foi se instalando os elogios vão
cedendo lugar às críticas, neste caso direcionadas para as condições de trabalho e de
salário. Uma inovação que o autor traz para o debate sobre os salários é esta de
comparar os salários dos trabalhadores locais com os da matriz em Detroit. Enquanto a
maior parte dos autores ressalta que os salários pagos em Fordlândia são superiores aos
locais, Vargas mostra a ilusão contida neste fato, uma vez que a exploração na
Amazônia era muito maior e os salários eram menores.
No mês de março ainda é noticiado que o governador do estado ordenou que a
Secretaria da Fazenda notificasse a Coletoria de Santarém a fim de que fizesse a
cobrança dos impostos sobre a madeira que a Companhia Ford Industrial do Brasil
estava embarcando para a América do Norte. O comentário é que esta medida é muito
justa, uma vez que a referida companhia não poderia ser considerada como uma
exceção, isenta da contribuição de impostos. Estas discussões sobre a cobrança de
impostos da Companhia, especialmente dos produtos que não se vinculavam
diretamente à produção da borracha foram uma constante nos primeiros tempos da
empresa, constando também dos relatórios diplomáticos analisados no quinto capítulo
deste trabalho.
Ainda no mesmo mês, na edição do dia 23 há um outro artigo que também traz
críticas contundentes aos americanos, ressaltando que não há, da parte destes, nenhuma
iniciativa no sentido de valorizar o trabalhador e a cultura do local, ao contrário,
comportam-se como se fizessem parte de uma raça superior, desprezando os nativos. O
caso é comparado ao de Cacaual-Grande, onde anos atrás houve empreendimento
semelhante, só que comandado por alemães, e atualmente se encontra como uma
“tapera”. Sobre este empreendimento não encontrei maiores referências a não ser neste
artigo, que comenta que lá foi construída uma “quase-cidade”, também com grande
importação de maquinários e grandes construções que foram abandonadas.
Ao lado dos desrespeito aos costumes, reaparece a crítica aos salários, com
críticas caricaturais: “O americano não admite opinião do brasileiro, prático, sabedor
dos costumes e conhecedor da região. Há o desprezo insultuoso e amesquinhador para
o filho da gleba. Haja vista o caso relatado pelo ‘Estado’ de 15, em que, trabalhando
lado a lado, no mesmo serviço, um brasileiro ganha 4$000 e um americano 15$000
diários. Os presunçosos lambedores de geléia tem a visão empanecida pela grandeza
do nome que representam. Os dólares que lhes escorrem em catadupas por entre os

69
dedos, fazem-nos delirantes, zonzos, zaragalhentos e ... curtos de idéias.” Em seguida,
no mesmo tom, é dado o exemplo da compra de pirarucu: “Um barrigudinho das furnas
tapajoaras lhes ensinaria que é asnice rematada comprar pirarucu podre nos armazéns
de Belém quando aqui, a dois passos, existe o produto novo, bom e mais barato. ... É tal
e qual se a Sibéria importasse gelo do Egito...”
Este discurso do autor expressa uma grande contradição quando valoriza o
“barrigudinho”, que ele sabe ser portador de vermes, desqualificando os cuidados
sanitários fundamentais para a qualidade de vida da população que a Companhia
procurava implantar. Há aqui um inversão que valoriza o tipo desnutrido, portador de
verminoses, em oposição aos sadios e bem nutridos americanos que lá foram habitar. De
um lado, o habitante local tem o conhecimento da região, de outro ele é a própria vítima
das condições que esta oferece quando não há a preocupação com os cuidados
sanitários. O que o autor busca, no fundo, é encobrir um sentimento de inferioridade,
valorizando o não-valorizável.
No mesmo mês foi noticiada uma briga entre a Companhia e a Port of Para, em
que a segunda queria cobrar da primeira uma quantia, tendo em vista que os navios da
Ford estiveram no porto de Belém. O comentário é que as duas são “répteis
estrangeiros, que trazidos pelas correntezas, vieram habitar junto a nós.” Mais uma
vez, critica-se o empreendimento dos americanos na Amazônia. A imagem feita pelo
articulista não deixa margem a dúvidas: ambas são perigosas, ‘répteis”, das quais não se
podem esperar iniciativas positivas. Além disso, há um oposição entre o local e o
estrangeiro, de onde estariam vindo os perigos. É o avesso dos discursos iniciais que
viam na vinda do capital estrangeiro um motivo de esperança e de júbilo.
Esta desesperança com o futuro da região também está retratada em artigo de 1°
de junho de 1929 quando o autor comenta as notícias alvissareiras que não se
concretizaram da mesma forma: “É a Santarém-Cuiabá; é o Ford com os seus milhões;
é uma estação disto ou daquilo, criada pelo governo federal; é colonização americana,
japonesa ou alemã; é uma estrada de rodagem mandada abrir pelo governo estadual; é
uma qualquer ‘Plantation rubber’; são empresas industriais sem capitães; é um
trapiche, um mercado, um grupo; água encanada; são fábricas de gelo, cinemas, luz
elétrica, etc.”
A realidade, porém, é que estes sonhos, propagados aos quatro cantos, não se
concretizam: “E a Santarém-Cuiabá não passa de um bonito mas irrealizável sonho; e
o Ford com todas as suas doutrinas e automóveis lá vai para Aveiro, enviando-nos

70
apenas um exército de impaludados, feridentos e edemáticos que a sua inspeção recusa,
a nossa profilaxia trata, e a caridade pública socorre; as estações até hoje não tem sido
mais que arquivos de papeladas e relatórios inúteis; as colonizações, as estradas, os
melhoramentos apenas promessas, sonhos, miragens...”
O autor parece desacreditar de soluções mais racionais para o problema,
atribuindo o fato ao sobrenatural: “A caveira de burro que os primeiros desbravadores
das brenhas tapajoaras plantaram em terras santarenses continua a produzir os seus
maléficos efeitos.”
As mazelas que a instalação de Fordlândia causou a Santarém e às cidades
vizinhas aparecem aqui de forma nua e crua, os milhões que a Ford despeja em seu
empreendimento não tem qualquer circulação em outras localidades e, pior do que isto,
os recusados pelo serviço médico da Companhia acabam se alojando em Santarém, que
não tem condições de absorver tal população. Para que se tenha uma idéia da dimensão
do problema pode-se citar o fato de que a inauguração do primeiro hospital de Santarém
só se deu no mês de junho de 1930, enquanto Fordlândia tinha um hospital provisório
desde 1928, que foi substituído pelo definitivo em 1932.
No ano de 1930 encontrei apenas duas notícias sobre Fordlândia: a primeira é de
15 de março e se refere à chegada próxima do “Lake Ormoc” que havia zarpado dos
Estados Unidos trazendo funcionários para Boa Vista, acompanhados de suas famílias, e
material para a construção da estrada de ferro. Estas famílias habitavam a Vila
Americana, com casas confortáveis, em lugar separado da área onde habitavam os
trabalhadores.
A edição do dia 12 de abril do mesmo ano contem uma referência ao aumento
salarial de cerca de 5% que Ford, a despeito do que aconselhavam os demais industriais
e o presidente dos Estados Unidos, concedeu aos seus empregados. O autor se pergunta
sobre a possibilidade de este aumento chegar a Boa Vista, concluindo com um
“Veremos”. Esta afirmação do autor pode simbolizar toda a dúvida que já naquele
momento representava o empreendimento da Ford em Boa Vista.
A leitura destes textos pode então cumprir o seu papel de mostrar parte das
discussões que se realizavam na época da vinda da Companhia para a Amazônia e
refletem esta passagem de um momento de grandes expectativas, em que as
possibilidades de ressurgimento da economia amazônica pareciam finalmente que iriam
se concretizar, para o ponto em que a instalação da empresa mostra a verdadeira face do

71
empreendimento que nada mais é do que um momento da expansão do capital
americano em busca de mais vantagens.

72
CAPÍTULO IV

O FORDISMO, O TAYLORISMO E A
COMPANHIA FORD INDUSTRIAL DO BRASIL

With one foot on the land

and one in industry

America is safe”

Henry Ford

(Com um pé na terra

e o outro na indústria

a América está salva)

73
O FORDISMO, O TAYLORISMO E A COMPANHIA FORD INDUSTRIAL DO
BRASIL

O objetivo deste capítulo é discutir o empreendimento americano da Ford na


Amazônia brasileira inserido como parte de um momento específico do capitalismo no
qual se formaram os grandes grupos econômicos nos países industrializados; bem como
analisar os processos de produção que lá foram implantados, fazendo com que a área se
constituísse em uma fração do território capitalista, onde este sistema econômico era
quase totalmente desconhecido.
O fim do século XIX assistiu a uma grande mudança nos rumos que o
capitalismo vinha tendo até então, a partir daquela época a concorrência entre as
empresas, que tinha sido o elemento dinâmico do processo e que possibilitara a alguns
uma enorme concentração de capital, passou a ser substituída pelo domínio dos grandes
grupos empresariais, formados a partir das fusões das empresas que se deram através de
uma luta feroz, e por vezes utilizando-se de métodos bastante questionáveis. Nas
palavras de HUNT&SHERMAN (1997, p.136):
“A guerra que as indústrias moveram umas contra as outras no final do
século XIX acelerou o processo de concentração de capital e inaugurou
uma era de fusões e conluios entre as grandes corporações. Atuando em
conluio, as corporações que controlavam determinado ramo industrial
podiam efetivamente exercer sobre ele o monopólio e maximizar, em
conjunto, seus lucros. Quando encontravam dificuldades para entrarem em
entendimento, as corporações solicitavam a mediação das agências
governamentais para a realização de acordos e cooperação.”
É este o período de formação dos trustes e cartéis que buscavam o controle do
mercado, os primeiros atuavam através de um grande grupo que tinha a maior parte da
oferta de um produto e desta forma buscava influenciar os preços a seu favor, e eram
característicos da economia americana do período; os segundos funcionavam através da
associação de industriais do mesmo ramo, que mesmo continuando independentes,
buscavam o monopólio no mercado, tendo sido característicos na economia alemã,
segundo HUBERMAN (1986). Este mesmo autor traz, na página 254, uma citação de
BERLE e MEANS (1933), a respeito de como as 200 maiores empresas não-bancárias
dos Estados Unidos, que controlavam metade da riqueza das sociedades anônimas,
estavam presentes no dia-a-dia dos americanos:

74
“Essas grandes companhias formam a estrutura mesma da indústria
americana. As pessoas têm de entrar em contato com elas quase
constantemente... E estão continuamente aceitando seus serviços. Se
viajarmos qualquer distância, quase que certamente o faremos por uma das
grandes ferrovias. A máquina que puxa o trem provavelmente terá sido
construída pela American Locomotive Company ou pela Baldwin
Locomotive Works; o carro em que nos sentamos deve ter sido feito pela
American Car and Foundry Company ou uma de suas subsidiárias. ... Os
trilhos quase certamente terão sido fornecidos por uma das 11 companhias
de aço da lista; e o carvão bem pode ter vindo de uma das 4 companhias,
quando não de uma mina de propriedade da própria estrada de ferro.
Talvez a pessoa prefira viajar de automóvel - num carro fabricado pela
Ford, General Motors, Studebaker ou Chrysler, com pneus fornecidos pela
Firestone, Goodrich, Goodyear ou United States Rubber Company ...”
Desta forma, paulatinamente, estas grandes empresas irão se tornar o centro do
novo modelo de capitalismo, não mais baseado nas pequenas indústrias - por vezes até
artesanais- que disputavam o mercado entre si; para este caracterizado pelos
monopólios. Alguns autores irão denominar este período de “capitalismo monopolista”,
expressão cunhada, segundo o Dicionário do Pensamento Marxista, por Lênin, e
posteriormente utilizada por Paul Baran e Paul Sweezy (1966), que argumentam que o
desenvolvimento do capitalismo tende a aumentar a produção de excedente, trazendo
maiores lucros para as empresas monopolistas. Esta definição é motivo de controvérsia
entre diversos autores e não é meu propósito discuti-la, o que interessa a este trabalho,
no entanto, é marcar este início do século XX como propício ao surgimento de grandes
companhias, que pouco a pouco foram acabando com as pequenas.
A história do império industrial construído por Henry Ford segue este modelo,
tendo surgido em 1903, através da associação do mesmo com outros onze sócios, dos
quais comprou a parte, até se tornar o único proprietário. O capital inicialmente
empregado foi de 28 mil dólares e neste ano a produção foi de 1.708 veículos de
passeio.
A fundação da Ford Motor Company é a realização de um antigo sonho de
Henry Ford, que naquela época contava com 40 anos e se dedicara desde a infância ao
estudo dos motores com o objetivo de construir automóveis. É curioso observar que este
filho de agricultores possuía uma formação bastante tradicional, tendo abandonado os

75
estudos na escola primária. Segundo BEYNON (1995, p. 38), esta origem no campo
influenciará toda a sua conduta pela vida afora:
“Henry Ford nasceu filho de agricultor em Dearborn, Michigan, em 1863.
Fez seu primeiro automóvel em 1893 e formou a Ford Motor Company em
1903, aos quarenta anos. Dominou os negócios da Companhia durante os
quarenta anos seguintes. Por toda a vida ele conservou os preconceitos e
idéias do pequeno agricultor. Foi um anacronismo. O multibilionário
agricultor do interior que fabricava automóveis.” (Grifos meus).
Estes preconceitos mencionados por Beynon vão desde a aversão aos judeus, até
o medo exagerado do comunismo, o que não impediu que fornecesse automóveis para a
Rússia. Os valores da família também eram extremamente cultuados por Ford, que ao
mesmo tempo combatia o álcool - cujo consumo, na sua concepção, retirava os
trabalhadores do convívio dos seus -, bem como condenava o tabaco, cujo vício era
considerado extremamente pernicioso e proibido no interior de suas fábricas. Um outro
exemplo desta mentalidade conservadora é que, embora a produção em massa tenha
aumentado enormemente a quantidade de bens de consumo disponíveis no mercado, não
havia nenhum interesse pela qualidade dos produtos, ou seja, itens como conforto e
segurança não faziam parte das preocupações do dirigente da companhia, que não
testava um só de seus automóveis. Além disso, o modelo T, que inaugurou este processo
de produção, vinha com um manual que permitiria ao seu proprietário repará-lo em caso
de necessidade, de maneira semelhante ao que acontecia com as máquinas agrícolas.
A centralização do poder nas mãos do proprietário também era outra das
características da Ford e serve para mostrar o estilo de administração de seu fundador,
que evitava delegar a outros o controle da “sua” companhia.
Em relação aos fornecedores, a postura de Ford também se adequa ao espírito de
sua época, ao ditar os preços que ele considera razoáveis em relação ao pagamento dos
mesmos. No seu livro Hoje e amanhã, nas páginas 61 e 62, ele cita o exemplo de um
produtor que fornecia chassis para suas indústrias, que foi obrigado a fazê-lo pela
metade do preço que praticava, em função das exigências do seu comprador.
Após a sua fundação, a Ford conhece um vertiginoso progresso, assim descrito
em suplemento especial da revista Isto é - Dinheiro (1998, p.14):
“...Nos primeiros cinco anos de pleno funcionamento da linha de operação,
a produção saltou de 17.771 carros para 202.667. Onze anos mais tarde,
somava 1.8 milhão de unidades, algo pouco inferior à atual produção

76
brasileira de automóveis. Estranhamente, para os padrões da época, os
preços trilhavam o caminho inverso. De 950 dólares caíram para 550 até
fixar-se no patamar de 355 dólares.”
Este crescimento da Ford costuma ser atribuído pelos autores à inovação
introduzida por Henry Ford, a linha de montagem, que lhe permitiu passar da fabricação
artesanal, praticada até então, para a era da produção em massa, segundo as palavras do
próprio, que cunhou esta expressão em artigo publicado na Enciclopédia Britânica, em
1926. No entanto, em estudo recente realizado por WOMACK, JONES e ROOS (1992,
p. 14) - pesquisadores do MIT (Massachusetts Institute of Tecnology) -, os autores
afirmam que a grande novidade trazida por Ford ao processo de fabricação de
automóveis através da linha de montagem só foi possível graças às mudanças anteriores,
que permitiram uma uniformização das peças, garantindo o seu perfeito ajuste:
“A chave para a produção em massa não residia - conforme muitas pessoas
acreditavam ou acreditam - na linha de montagem em movimento contínuo.
Pelo contrário, consistia na completa e consistente intercambiabilidade das
peças e na facilidade de ajustá-las entre si. Essas foram as inovações na
fabricação que tornaram a linha de montagem possível.” (Grifos do autor)
Esta padronização permitirá não só este considerável aumento da produção
como também será um grande trunfo na expansão da companhia pelo mundo, porque
lhe permitirá montar os automóveis em outros países, quando os governos locais
dificultam, através de taxações, a entrada dos mesmos já acabados.
A formação da Companhia Ford Industrial do Brasil em 1927, portanto, não faz
parte de um quadro isolado da empresa: naquele momento, segundo o próprio fundador
Henry Ford, o grupo já possuía 88 fábricas, sendo 60 nos Estados Unidos - 24
manufatureiras e 36 de montagem ou mistas - e 28 no estrangeiro, as principais em
Cork, na Irlanda, e em Manchester, na Inglaterra. Além disso, possuía fábricas em
Antuérpia, Barcelona, Bordéus, Buenos-Aires, Copenhague, Montevidéu, Pernambuco,
Roterdã, Santiago do Chile, São Paulo, Estocolmo, Trieste, Berlim, México, Yokohama
e Havana, além das empresas vinculadas a Ford Motor Company of Canada, a Ford
Motor Company of Australia, e a Ford Motor Company, da África do Sul.9
As indústrias adquiridas ou montadas pela empresa também são bastante
diversificadas, segundo Ford (1927, p.59), a empresa dispunha da “...seguinte linha de

9
A este respeito, consultar: FORD, H. Hoje e amanhã. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1927.
339p.

77
indústrias, todas relacionadas à do motor: aeroplanos, mineração de hulha,
manufatura de coque, subprodutos de manufatura, fabrico de instrumentos, fabrico de
maquinário, de truques de carros e tratores, de vidro, couro artificial, fios de cobre,
fordite, tecidos, baterias e geradores, papel, cimento, carrocerias de auto, força
elétrica, água filtrada, farinha, cinema, hospital, agricultura, rádio, impressão,
fotografia, forja, cultura de linho, turbinas, locomotivas elétricas, indústria florestal,
moagem, olarias, destilação de madeira, produtos hidroelétricos, armazéns de secos e
molhados, de calçado, de fazendas, de carne, estradas de ferro, escolas, navegação
marítima ou em lago, tratores e automóveis.” Isto nos mostra que havia, naquele
momento, um interesse do empresário de controlar os diversos momentos do processo
de produção. A Companhia Ford Industrial do Brasil seria, então, mais uma etapa que
permitiria o acesso à matéria-prima necessária para os pneus dos carros Ford, além de
oferecer muitas outras possibilidades de exploração, conforme foi discutido no segundo
capítulo.
Segundo os pesquisadores do MIT este controle de todos os passos necessários à
produção se tornaram indispensáveis quando houve a total verticalização das empresas,
quando a “mão invisível” do mercado, proposta por Adam Smith foi substituída pela
“mão visível”, termo cunhado em 1977 por Alfred Chandler, professor de Harvard.
Referindo-se ao método de administração implantado por Ford, os autores assim
descrevem a experiência da empresa na Amazônia:
“...chegou ele a agregar matérias-primas e transporte à ‘mão visível’: uma
plantação de borracha totalmente própria no Brasil, minas de ferro em
Minnesota, navios próprios para transportarem minério de ferro e carvão
pelos Grandes Lagos até Rouge, e uma ferrovia interligando as instalações
da Ford na região de Detroit.” (p.27)
O próprio Ford declara em seu livro já citado que a sua expansão industrial em
setores que não o da produção de motores se faz no sentido de controlar os preços que
lhes são oferecidos e que a sua intromissão na produção de pneus responde não só a este
desejo, como também à tentativa de evitar a paralisação da produção:
“Temos fabricado, por exemplo, pneumáticos de borracha, embora nossa
intenção atual não seja de nos metermos nessa indústria. O preço da
borracha pode altear-se desordenadamente, e nesse caso estaremos livres
de paralisar nossa produção por falta de pneumáticos.” (p.61)

78
Esta visão deve ter permanecido, pois ainda em 1938 ela consta da idéia do
Cônsul Geral dos Estados Unidos, William C. Burdett, que esteve visitando as
plantações Ford na Amazônia e remeteu para seus superiores um relatório bastante
crítico, considerando que a falta de trabalhadores, bem como enganos iniciais em
relação à localização da concessão, tornavam o empreendimento bastante oneroso. No
entanto, ele considerava que uma vez solucionado o problema da mão-de-obra, o
investimento poderia ser retornado de forma gradual e fornecer a quantidade de
borracha necessária à Companhia Ford. O que é importante ressaltar neste relatório é
que o autor põe em destaque o fato desta produção ser possível através de “uma
companhia americana, na América”, ou seja, as plantações seriam uma extensão do
território dos Estados Unidos na própria América. Este autor também mostra a
preocupação de Ford em garantir o abastecimento de borracha por outros meios que não
o da dependência das plantações asiáticas.10
Desta forma, podemos situar o empreendimento da Ford na Amazônia brasileira
neste contexto que norteava os empreendimentos dos capitalistas nos primeiros trinta
anos do século XX, particularmente aqueles controlados por Henry Ford.

A Companhia Ford Industrial do Brasil e o território capitalista

A formação da Companhia Ford Industrial do Brasil, conforme discussão


anterior, responde a um desejo de Henry Ford de controlar todo o processo de produção
e também a um momento específico de expansão do capitalismo mundial antes da crise
de 1929. É possível então fazer a leitura deste acontecimento como inscrito no território
capitalista, ainda que represente apenas uma parcela do todo.
A discussão sobre o território tem sido uma das preocupações dos geógrafos na
atualidade e assume um caráter especial neste trabalho uma vez que o mesmo trata de
um empreendimento capitalista que se desenvolve em uma área onde predominam as
relações tradicionais de mando e subordinação: de um lado ainda se encontra resquícios
do sistema de barracão, oriundo do período do auge da exploração da borracha; e de
outro há os ribeirinhos, que vivem em comunidades autônomas, sustentando-se da
pesca, da agricultura praticada pela família e, eventualmente, de uma ou outra atividade

10
“... a definitive amount of rubber will be produced by an American company, in America. This will
serve to stabilize prices and be of prime importance in the conceivable event of the supply of Far East
rubber to United States being blocked.”

79
de extrativismo na floresta. Nesta situação, até mesmo o dinheiro, em papel ou em
moeda, não faz parte do cotidiano destas populações.
A primeira distinção a ser feita é entre os conceitos de espaço e de território, que
são distintos: enquanto o primeiro é preexistente, o segundo é uma construção feita por
uma intervenção no espaço, através do trabalho. Segundo definição de OLIVEIRA
(1997, p.9):
“... o território não pode ser entendido como equivalente, como igual ao
espaço, como propõem muitos geógrafos. Nesse caminho, torna-se
fundamental compreender que o espaço é uma propriedade que o território
possui e desenvolve. Por isso, é anterior ao território. O território por sua
vez, é um espaço transformado pelo trabalho, é portanto, uma produção
humana, logo espaço de luta de classes ou frações de classes. Por causa de
todas as relações que envolve, inscreve-se no campo do poder, sendo pois, o
lugar da luta cotidiana da sociedade pelo seu devir histórico.”
Desta forma, o território considerado como uma construção, ou, conforme
RAFFESTIN (1993, p. 144) “o espaço é a ‘prisão original’, o território é a prisão que
os homens constróem para si”, podemos discutir a relação entre este e o capitalismo,
ou seja, como as relações capitalistas interferem no território.
Esta análise tomará como ponto de partida o texto “Sobre o uso capitalista do
território”, de Donatella Calabi e Francesco Indovina, escrito para uma discussão no
Laboratório de Análise Social e Econômica do Território, vinculado à Universidade de
Arquitetura de Veneza.
Estes autores sustentam que “O território (na sua totalidade) não é ‘outro’ com
relação ao processo ‘capitalista’ mas, ao contrário, ele é usado e se transforma em
função daquele processo geral.” Esta conclusão é baseada no fato de que, com o
desenvolvimento econômico, todas as esferas de produção de mercadorias são
integradas, portanto, todo o território. Além disso, o desenvolvimento dos meios de
comunicação permitiu uma redistribuição dos pontos de produção, que caminhou
paralelamente ao processo de concentração do capital, ou seja, há uma relação estreita
entre o território e o uso que o capital faz dele a cada fase do seu desenvolvimento.
O uso do território no capitalismo se faz nos diversos momentos do processo,
não só no momento da produção (extração de mais-valia), como também diz respeito ao
momento da circulação e valorização do capital e ao momento da reprodução da força
de trabalho.

80
Desta forma, o desenvolvimento das relações capitalistas, ao abranger o
conjunto da sociedade, dá uma configuração ao território, que é derivada do capital. No
entanto, esta configuração também está sujeita aos processos contraditórios que são
engendrados durante o desenvolvimento das forças produtivas e na relação entre as
diversas classes sociais; dando a esta uma grande complexidade.
O conflito entre o capital e o trabalho também representa um papel de destaque
em relação a esta formação, dando um instabilidade em relação aos blocos de poder
constituídos e mostrando a possibilidade da superação desta organização social imposta
pelo capitalismo. Além disso, este conflito é responsável pelas mudanças de localização
realizadas pelo capital, em busca de minimizar seus efeitos.
Em suma, o processo de desenvolvimento do capitalismo e sua influência na
configuração do território não está desvinculado da realidade histórica, ou seja, está em
conexão com o momento e o local onde ele ocorre.
Em relação à localização, os autores salientam que ela não é ditada por uma
racionalidade superior, que levaria em conta a técnica e seu instrumental, mas sim ela é
guiada pela garantia de maiores retorno do capital investido. Assim, esta localização
pode se apresentar de forma difusa, de acordo com as possibilidades oferecidas por cada
área.
A relação entre o território e o capitalismo também foi analisada por Oliveira
(1999, p. 105s.) que diferencia duas formas: a primeira é a que ocorre quando o capital
se territorializa e controla diretamente a produção agrícola e industrial, fazendo a fusão
do proprietário da terra e do capitalista e expulsando os antigos moradores, que passam
a ser assalariados no campo ou na cidade. O exemplo deste são as usinas ou destilarias
de açúcar e álcool. No segundo caso, quando se dá a monopolização do território, a
população não é expulsa, pode inclusive ser constituída de camponeses, que passam a
subordinar sua produção ao capital, desta forma a relação capitalista se dá no momento
da circulação, podendo-se distinguir o capitalista industrial e o proprietário da terra que
pode se utilizar também do sistema de arrendamento a camponeses. A Companhia irá se
utilizar do primeiro processo, havendo a expulsão dos antigos moradores, embora estes
não optem pelo assalariamento como caminho natural, face à abundância de terras livres
que a região possuía.
Assim, a localização da Companhia Ford Industrial do Brasil na Amazônia
brasileira adquire o seu pleno significado: ela está inserida no processo do
desenvolvimento do capitalismo mundial, portanto neste território engendrado pelo

81
mesmo e que se mundializou com a expansão deste. Desta forma, esta empresa constitui
uma fração do território capitalista mundial, destinando-se à produção de matéria-prima
(látex), que se transforma em mercadoria e se realiza como valor quando da montagem
dos automóveis e sua comercialização.
Esta localização oferece diversas vantagens que funcionam como garantia do
retorno do capital investido: em primeiro lugar há a possibilidade de recrutamento de
trabalhadores por salários muito menores que os oferecidos nos Estados Unidos, ainda
que eles sejam tidos como altos para a região; além disso, a concentração da força de
trabalho tende a aumentar o custo da reprodução da mesma, especialmente a partir do
momento em que estes trabalhadores se organizam e passam a reivindicar, perigo este
afastado, ao menos no início, se levarmos em conta as diversas origens destes
empregados, oriundos de diversos lugares do Norte e Nordeste brasileiros, pouco
acostumados ao pagamento de salários típicos deste processo capitalista. Assim, a
companhia poderia obter uma concentração de força de trabalho, que estaria totalmente
sujeita a seu controle, sem correr os riscos inerentes a este processo.
A isenção de impostos garantida pelo governo estadual e prometida pelo federal
também é um poderoso incentivo na atração deste capital internacional, bem como as
imensas possibilidades de exploração e a falta de fiscalização em relação às
construções que fossem feitas.
O fim do empreendimento americano na Amazônia brasileira também é bastante
elucidativo em relação à sua caracterização como uma fração do território capitalista
mundial: o fim da II Grande Guerra e o novo panorama mundial que se configurou, bem
como o surgimento da borracha sintética e as dificuldades surgidas no relacionamento
com a mão-de-obra empregada na companhia, levam ao encerramento das atividades em
Fordlândia e em Belterra. Como estas localidades se constituíam em um verdadeiro
enclave na região amazônica, sem relação com o seu entorno, a sua administração é
assumida diretamente pelo governo federal, uma vez que não há interesse do capital
nacional. Esta condição perdurou até meados da década de 90 quando a primeira buscou
se tornar um distrito da cidade vizinha de Aveiro e a segunda transformou-se em
município, elegendo seu primeiro prefeito.

82
O fordismo e o taylorismo na Amazônia brasileira

A discussão sobre o fordismo e o taylorismo neste trabalho se coloca a partir do


momento em que este investimento de Ford na Amazônia brasileira é um
desdobramento dos negócios da matriz norte-americana e desta forma sujeito às suas
diretrizes. Mais do que isto, como ficou claro no documento de concessão, o governo
brasileiro permitiu que os americanos tivessem ampla liberdade nas terras cedidas, o
que lhes permitiu implantar na área os padrões que vinham adotando em seu país de
origem, os quais Gramsci (1991) caracterizou como Americanismo e Fordismo.
A intenção desta análise sobre o fordismo e o taylorismo neste trabalho não é a
de aprofundar o assunto, nem de inseri-la nas discussões mais recentes. O grande
problema que se coloca é que a aplicação destes modelos na Amazônia brasileira é
anacrônica e, desta forma, foram privilegiados os autores que fazem uma análise mais
próxima de um novo modo de vida, como Gramsci (1991), em detrimento de outros que
se referem às décadas mais recentes, como por exemplo, Lipietz (1988).11
É preciso ressaltar, no entanto, que a produção de látex na Amazônia brasileira
é apenas uma das partes componentes do processo de produção de automóveis, e
assumirá características próprias, que irão mesclar tanto as características capitalistas
advindas das instruções da direção da empresa, como as características locais, baseadas
em um modelo de organização social não capitalista.
Antes de analisar os limites e as possibilidades de implantação do fordismo e do
taylorismo na concessão americana nas terras da Amazônia brasileira, irei fazer um
breve histórico para mostrar como se deu a implantação destes métodos no Brasil e
como este esteve quase sempre ligado aos pólos mais desenvolvidos e industrializados
do país, localizados na região Sudeste.
Esta recuperação se justifica porque serve para demonstrar como, embora no
Brasil das décadas de 20 e 30 pareça um exagero falar-se em fordismo e taylorismo,
estes poderiam estar presentes na Companhia Ford Industrial do Brasil, localizada na
Amazônia, uma vez que esta não tinha como referência o desenvolvimento da indústria
no Brasil, ao contrário, seus parâmetros eram ditados pela nova configuração do
território capitalista mundial, construído em sua fase monopolista.

11
Este autor discute o fordismo no Terceiro Mundo, que caracteriza como fordismo periférico,
ressaltando que tal fato se deu a partir da década de 70 em alguns países, o Brasil entre eles (p.96s). Tal
análise, conforme foi dito, não interessa ao presente trabalho, que discute uma aplicação extemporânea do
modelo.

83
O estudo da difusão do taylorismo e do fordismo no Brasil evidencia que esta
não foi simultânea à que ocorreu nos Estados Unidos, onde ela se deu desde os
princípios do século XX. Ao contrário disto, segundo Vargas (1985), o único padrão
presente em relação ao taylorismo e ao fordismo até a década de 20 no Brasil é a
negação da intervenção do Estado nas negociações entre trabalhadores e empresários.
Este autor, para fins de análise, utiliza o conceito de taylorismo para designar o
fordismo e o taylorismo visto que os dois “estavam orientados para a criação de um
novo tipo de trabalhador que se submetesse às exigências da disciplina fabril
necessárias para intensificar o ritmo de trabalho. Ambos propunham a criação de um
corpo técnico para programar o trabalho. E também a negociação de salários mais
altos, já que a pura coerção não era eficaz, como fazem questão de ressaltar em suas
obras, embora essa negociação fosse individual, negando originalmente a
intermediação do sindicato ou do Estado.” A grande diferença consistia no fato de que
Ford não havia restringido suas idéias ao interior da fábrica, buscando criar um novo
padrão de trabalhador que se adequasse melhor ao novo modelo fabril.
Esta situação se modifica a partir dos anos 30, quando começam a se difundir,
através da atuação de empresários e da criação de institutos, - como o Idort (Instituto de
Organização Racional do Trabalho), em 1931; o DASP (Departamento Administrativo
do Serviço Público), em 1939; a Fundação Getúlio Vargas, em 1944 e o Senai (Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial), em 1942, do qual se originou o Sesi (Serviço
Nacional da Indústria), - os princípios tayloristas.
Nesta primeira fase, há uma distinção entre os princípios e as técnicas
tayloristas, porque os primeiros: “privilegiam o controle da reprodução do ‘trabalhador
coletivo’ enquanto que as técnicas tayloristas são a resposta econômica à reprodução
do capital, isto é, ao estabelecimento de uma forma mais racional de extração de mais-
valia, e ambos têm como objetivo a economia do tempo de trabalho.” No período entre
a década de 30 e meados da década de 50, Vargas considera que os primeiros se
propagaram, buscando formar esta nova classe de trabalhadores, através da ação de
institutos e associações, diferentemente dos Estados Unidos, onde toda forma
associativa era vista como um perigo a ser combatido; enquanto as técnicas tayloristas
foram deixadas de lado, aparecendo apenas em algumas iniciativas isoladas.
No Brasil, também de forma contrária ao que ocorreu nos Estados Unidos, o
Estado assumirá, entre nós um importante papel, atuando junto às instituições e ao
empresariado, na constituição desta força-de-trabalho mais adequada.

84
Outro pressuposto dos postulados do fordismo/taylorismo, que diz respeito aos
ganhos salariais - decorrentes do aumento da produção e também como forma de
incentivo à adequação aos novos padrões impostos -, igualmente deixou de ser seguido
pelos nossos empresários, que mantiveram a classe trabalhadora sujeita aos baixos
salários.
O governo de Juscelino Kubistschek (1956-1961) marca um divisor de águas
entre a primeira fase, marcada pela disseminação dos princípios tayloristas, e a segunda,
onde as técnicas serão aplicadas a uma nova classe operária, formada no período
anterior. A atração dos capitais internacionais, verificada neste período, foi possível
graças a esta premissa que preparou a vinda das multinacionais que já podiam contar
com uma mão-de-obra disciplinada para as novas técnicas a serem implantadas.
Este processo aconteceu de forma gradativa e não encontrou grandes oposições:
“é interessante notar que, nas décadas de sessenta e setenta, o taylorismo foi
‘mudamente’ introduzido em nossas fábricas, sem o alarde e a propaganda das
décadas anteriores: a prática industrial substituiu o discurso.” A indústria
automobilística foi a grande pioneira e inaugurava a época da produção de massa,
característica básica do fordismo.
A aliança tríplice - capital nacional, capital internacional e Estado - pode então
se consolidar, e só passou a ser questionada no fim da década de 70, com o
ressurgimento do movimento operário, a abertura política e as novas posturas adotados
pelo empresariado, especialmente os paulistas, que passaram a pautar sua conduta no
modelo da Toyota, a famosa fábrica japonesa, que trabalha com o paradigma da
produção flexível.
O autor finaliza seu trabalho, apresentado no VIII Encontro Anual da Anpocs
(Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em 1984,
afirmando que os desdobramentos desta nova fase estão vinculados à organização da
sociedade, que deveria questionar o poder da burguesia,- o qual não considera como
hegemônico -, buscando novos caminhos para a história brasileira.
É preciso ressaltar que em toda sua análise o autor mostra que este processo
começa em São Paulo, através da atuação de seu empresariado em torno da FIESP
(Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), que se formou da CIESP (Centro
Industrial do Estado de São Paulo), fundada em 1928, quando Roberto Simonsen, seu
vice-presidente, fez o seguinte discurso:

85
“Querer negar que o desenvolvimento e a consolidação do Parque
Industrial Brasileiro concorrem para o aumento da riqueza, prestígio,
poder e formação de nossa própria raça, é desconhecer os mais comezinhos
princípios da política econômica e social. A grande indústria, por toda a
parte do mundo em que se instala, traz como corolário a melhoria dos
salários, o barateamento relativo do produto, o enriquecimento social, e o
aumento da capacidade de consumo. Traz ainda mais, como conseqüência,
intensificação das relações comerciais, dos meios de transporte e a marcha
vitoriosa da civilização.”12(p.63)
As vantagens apresentadas por Simonsen que deveriam provir da
industrialização fazem parte dos benefícios prometidos à sociedade americana com a
implementação do taylorismo/fordismo. No entanto, as condições que aquela oferecia
eram completamente diferentes da realidade brasileira: éramos um país com uma
economia essencialmente voltada para a agricultura de exportação, onde a
industrialização mal se iniciara.
O novo patamar de desenvolvimento do governo de Juscelino também teve a
região Sudeste, e particularmente São Paulo, como alvo de sua implantação, através da
instalação das multinacionais nesta área.
Partindo deste quadro, que evidencia como o uso de princípios e técnicas
tayloristas e fordistas esteve vinculado a uma determinada região do país, irei analisar
em que medida é possível caracterizar o uso destes no empreendimento da Ford nas
terras da Amazônia brasileira.

12
Citado por MUNAKATA, K. A legislação trabalhista no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1991. (Tudo é
História, 32). Este trabalho do autor faz uma importante análise da legislação trabalhista, mostrando como
ela foi sendo gestada, durante o primeiro governo Vargas, e paulatinamente impôs o modelo corporativo à
organização sindical, apesar de ter incorporado algumas reivindicações dos trabalhadores. Desta forma, o
Estado atua não só na formação da classe trabalhadora, como também no seu disciplinamento, através da
legislação trabalhista, cujo corolário é a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), criada pelo decreto
5452, de 1943.

86
O fordismo, o taylorismo e a Companhia Ford Industrial do Brasil

O fordismo, como a análise de Vargas já demonstrou, é um termo ambivalente e


torna-se necessário, antes de qualquer discussão, especificar quais dos seus aspectos
serão considerados.
Em primeiro lugar o fordismo refere-se às concepções adotadas por Henry Ford
no início do século XX, em sua fábrica nos Estados Unidos, que visavam formar um
novo modelo de sociedade, partindo dos trabalhadores, ou seja, à criação de um novo
homem que seria o alicerce da nova ordem social. Este projeto não se limitava ao
controle dos operários apenas na fábrica, mas extrapolava os seus muros, interferindo
na vida privada dos trabalhadores e nos seus valores que seriam remodelados para
serem adequados ao novo modelo industrial.
O autor que realizou esta análise pioneira foi Gramsci (1991), que em seu texto
Americanismo e Fordismo fez uma análise da história e da sociedade dos Estados
Unidos, buscando entender como o fordismo foi gestado e quais foram as condições que
propiciaram a ele se tornar um modelo seguido pelos industriais daquele país. Faz parte
das preocupações do autor questionar, também, quais os limites oferecidos pela
diferente configuração da sociedade européia, que dificultariam a implantação deste
modelo naquele continente.
Há ainda uma nova forma de encarar este conceito quando limitamos o nosso
estudo ao interior da fábrica, onde podemos identificar formas de organização do
trabalho diferentes das adotadas anteriormente, mesclando técnicas oriundas do
fordismo, - a linha de montagem, por exemplo - com técnicas sugeridas por Taylor, que
se baseavam numa organização racional do trabalho a ser executado, eliminando os
tempos mortos, entre outras inovações
As duas formas de configuração do fordismo serão analisadas neste trabalho,
buscando estabelecer seus vínculos com a Companhia Ford Industrial do Brasil.
Iniciarei com a discussão sobre a construção de um novo homem, o paradigma proposto
por Gramsci, por ser este mais abrangente.

87
O fordismo e a construção de um novo homem e de uma nova sociedade

No período entre as duas guerras mundiais, Gramsci (1991) já havia analisado o


fordismo e o caracterizava como uma novidade em termos das relações de trabalho, que
visava à criação de um novo homem, perfeitamente adaptado ao padrão de consumo de
massa. O autor parte de uma análise das condições que propiciaram este surgimento na
sociedade americana buscando demonstrar como na sociedade européia as condições
históricas e culturais eram diferenciadas, dificultando a implantação deste sistema. Nas
palavras do autor:
“A América não possui grandes ‘tradições históricas e culturais’, mas em
compensação não está envolvida por esta camada de chumbo. Esta é uma
das razões principais ( mais importante do que a chamada riqueza natural)
da sua formidável acumulação de capitais, apesar de o nível de vida das
classes populares ser superior ao europeu. A não-existência dessas
sedimentações parasitárias, deixadas pelos períodos históricos passados,
permitiu uma base sadia para a indústria, e especialmente para o comércio,
e permite cada vez mais a redução da função econômica representada pelos
transportes e pelo comércio a uma real atividade subalterna da produção,
ou melhor, a tentativa de incorporar estas atividades à própria atividade
produtiva.” (p.381).
Seriam estas pré-condições que teriam permitido a grande racionalização da
produção, com a aniquilação dos movimentos sindicais territoriais, aliada aos benefícios
sociais trazidos por esta, que incluía altos salários e uma intensa propaganda ideológica.
Desta forma, este novo modelo pode se expandir, a partir da racionalização do trabalho
e da produção para toda a sociedade americana.
Em estudo realizado para o Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do
Trabalho), Ferreira (1993) denominou este processo de “círculo virtuoso do fordismo”,
construindo, a partir de Boyer (1989 e 1987), o esquema da figura 2.
Este esquema permite visualizar como, a partir da implantação de um novo
paradigma na produção - operacionalizado através de mudanças na relação capital-
trabalho -,toda a economia americana foi dinamizada, uma vez que o aumento da
produtividade permitiu o aumento dos salários, gerando a possibilidade de aumento no
consumo, que se refletiu no setor de bens de capital, elevando os lucros e permitindo
uma maior acumulação pelos capitalistas.

88
89
Na concepção de Ford, a questão dos salários era fundamental, dizendo mais
respeito aos industriais do que aos próprios trabalhadores, isto porque era através de um
salário compatível que se poderia proporcionar aos últimos o poder de compra,
transformando-os em consumidores, ou seja, estimulando a criação do mercado interno.
Desta forma, o que antes era um artigo de luxo, produzido de forma quase artesanal,
como eram os automóveis, poderia se tornar em um bem de consumo das massas, a
começar por aqueles que o produziam. A redução dos preços ao mínimo aceitável
também é um fator que concorre para impulsionar a criação deste mercado de
consumidores. Tal concepção já se encontra no seu livro Hoje e Amanhã:
“O preço justo não é o que o público possa suportar. O salário justo não é
a menor soma que um homem possa aceitar pelo seu trabalho. Preço justo é
o mais baixo por que possa vender-se um artigo e salário justo o mais alto
que a indústria possa pagar. E só uma coisa poderá conduzir a isto: a
inteligência do industrial. Tem ele que criar clientes e, se é fabricante de
artigos de uso de consumo vulgar, conduzir a indústria de modo a que seus
próprios operários se tornem seus melhores clientes. Nós, por exemplo,
contamos com 200.000 fregueses de primeira ordem em nossa empresa: os
nossos operários. E cada dia os adquirimos novos, entre os operários das
indústrias que nos servem.”(p.182)
Em relação aos sindicatos, é importante lembrar que, embora eles tenham se
tornado poderosos, as suas reivindicações não discutiam o modelo implantado,
aceitando-o como inevitável. Ao invés disso, passaram a se preocupar com a garantia
dos empregos, uma vez que a rotatividade dos trabalhadores na indústria automobilística
era muito grande. Segundo Womack (1992), este sindicalismo forte e atuante neste setor
da indústria pode se firmar após a crise da Depressão de 1929:
“Tratava-se, todavia, de um movimento sindical da produção em massa.
Sua liderança aceitava, tanto o papel da gerência, como a natureza inerente
do trabalho numa linha de montagem. Não causa surpresa que, quando o
sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística (UAW) finalmente
assinou os acordos com o que se tornara, no final dos anos 30, as três
grandes indústrias do setor (The Big Three), as principais questões fossem
os critérios de tempo de serviço e os direitos trabalhistas; o movimento foi
denominado de job-control unionism (‘sindicalismo de controle de
empregos’) .”(p.30)

90
A questão dos ganhos salariais proporcionados pelo advento do fordismo
também é uma questão controversa, uma vez que estes eram exclusividade de apenas
uma parcela da minoritária da sociedade. Segundo Harvey (1993): “...a negociação
fordista de salários estava confinada a certos setores da economia e a certas nações-
Estado em que o crescimento estável da demanda podia ser acompanhado por
investimentos de larga escala na tecnologia de produção em massa. Outros setores de
produção de alto risco ainda dependiam de baixos salários e de fraca garantia de
emprego.”(p.132)
Apesar de todas estas limitações, os novos paradigmas propostos por Henry Ford
se implantaram com vigor na sociedade americana estando vinculados não só a estas
modificações em relação à produção, mas também intervindo no sentido da criação de
uma força de trabalho plenamente adequada ao novo modelo.
Esta também foi uma das análises efetuadas no referido texto de Gramsci (1991,
p.382): “Na América, a racionalização determinou a necessidade de elaborar um novo
tipo humano, conforme ao novo tipo de trabalho e de produção ...”, o que foi possível
uma vez que neste continente as lutas operárias ainda eram um fenômeno recente, muito
mais ligadas às lutas corporativas de defesas de interesses particulares, do que a uma
defesa da classe operária como um todo. Outro fator que favoreceu o avanço desta
racionalização foi a heterogeneidade desta classe trabalhadora, formada a partir de
diversas culturas tanto de imigrantes europeus, quanto de descendentes dos escravos
africanos.
O Estado, para este autor, também cumpre um papel importante em relação a
este modelo americano, devendo ser o Estado liberal, “...não no sentido do liberalismo
alfandegário ou da efetiva liberdade política, mas no sentido mais fundamental da livre
iniciativa e do individualismo econômico que alcança através de meios próprios, como
‘sociedade civil’, através do próprio desenvolvimento histórico, o regime da
concentração industrial e do monopólio.”(p.388)
Com a disseminação deste modelo fordista o Estado também passou a ter um
papel importante buscando atenuar as diferenças entre estes setores privilegiados que
recebiam salários maiores e o restante da população, que passa a reivindicar estas
vantagens para si.
Ainda em relação aos salários, Gramsci já havia previsto que estes somente
iriam se sustentar enquanto durasse o regime de monopólio na produção, e que os
salários elevados eram uma forma de coerção importante no sentido de garantir que os

91
trabalhadores se adequassem aos novos processos. Uma vez que houvesse esta
adaptação, os mesmos tenderiam a serem rebaixados aos níveis permitidos pela
existência de um grande número de desempregados.
O mesmo autor ainda lembrava que os altos salários eram pagos apenas a uma
pequena parcela dos trabalhadores e que deveria ser feita uma pesquisa para se
determinar até que ponto eles eram realmente elevados.
Neste ponto cabe uma primeira observação em relação aos salários pagos pela
Companhia Ford Industrial do Brasil que, segundo o estudo de Costa (1993), eram
próximos aos maiores salários pagos aos agricultores do estado do Pará quando da
implantação da Companhia na Amazônia brasileira. Esta tendência deve ter sido
mantida uma vez que em relatório do cônsul americano no Pará, datado de 1938, mas
analisando dados dos trabalhadores em 1935, o mesmo relata que estes eram cerca de
300% maiores do que aqueles pagos na região amazônica.13 Desta forma, os altos
salários, ou mais elevados do que os habituais, foi uma das práticas da Ford importada
para seus seringais na Amazônia.
A memória dos antigos trabalhadores da Companhia registrou, mais do que o
fato dos salários serem altos, ou serem pagos em dinheiro, a pontualidade do
recebimento dos mesmos, que não falharam uma única vez, e além disso, eram pagos a
cada quinze dias. Ainda assim, alguns não deixaram de se espantar com o fato de
receber seu primeiro salário, como o senhor Hilário Branco Pedroso, entrevistado em
Belterra em julho de 1997, por volta das cinco horas da tarde:
“O primeiro dinheiro que eu, eu morava em Aramanaí, era um lugarzinho
diferente. Eu trabalhei o mês inteiro, sabe? Não fui no princípio do mês que
eu me alistei, e quando eu fui receber vinha e eu fui puxar tinha lá um
dinheiro de 50 reais, mil réis, naquele tempo era mil réis mesmo. Aí eu
disse: como é que eu vou fazer com esse dinheiro? Era uma hora dessas
mais ou menos. Eu vou trabalhar e vou levar esse dinheiro prá mamãe, os
cabra pode me matá, pode me roubá e eu nunca tinha pegado um dinheiro
assim, né? Aí eu toquei aqui pro Porto Novo, era no verão, no verão eu
peguei a beira da praia, aí eu botei o dinheiro no bolso da calça, de vez em
quando eu apalpava assim, ver se ainda tava.”

13
“Statistics for the months of March, April and May 1935 show an average working force of 500 men,
with a total of 259,778 working hours during these three months, against toal payrolls of 313:983$500.
This mens an average of 9$669 per men and day, or about 300 percent of the average wages paid
throughout the Amazon Valley.”

92
Esta idéia do pagamento de salários elevados nas indústrias Ford teve a sua
origem em 1914, quando o seu fundador fez um acordo inédito: o five dollars day (dia
de cinco dólares), vinculando o pagamento deste ao merecimento por parte do
trabalhador, o que significava que este deveria se sujeitar à nova moral desejada pelo
industrial.
Os funcionários da Ford foram então submetidos a inquéritos e visitas dos
inspetores da empresa, vinculados ao Departamento Sociológico, que apontaram quem
seriam os escolhidos. Segundo Beynon (1995, p.42):
“O sistema não se aplicava aos que ainda não houvessem completado seus
primeiros seis meses na empresa, nem a homens com menos de 21 anos.
Também não se destinava às mulheres, que desde o princípio foram
deixadas de fora do acordo. Quando lhe indagaram a respeito disso, Ford
confessou a omissão e se defendeu alegando: ‘Supomos que as jovens irão
se casar’. Os homens maduros, depois de cumprir o período de experiência,
eram elegíveis para receber o novo salário. Finalmente se enquadrariam
entre os escolhidos apenas se os seus hábitos pessoais em casa e no
trabalho fossem considerados satisfatórios. Asseio e comedimento eram
considerados atributos essenciais; o consumo de álcool e fumo era
malvisto, assim como ‘toda prática perniciosa, aviltante para a correta
virilidade física e moral’(citado em Nevins, 1954, p. 556) . Jogar estava
fora de questão, e também a prática de acolher pensionistas, especialmente
do sexo masculino.”
Todas estas afirmações podem ser verificadas em Fordlândia e Belterra, a
começar pelos critérios estabelecidos para a contratação inicial dos trabalhadores, já
relatados pelo pioneiro estudo de Cohen (1929, p.46) que demonstrava como os critérios
de seleção eram rigorosos, incluindo revista policial e inspeção médica:
“Chegando à Ford-lândia, é entregue ao chefe do pessoal da Secção de
estivas, ao qual, porque é a primeira pessoa que apparece a bordo, chamam
o Capitão do Porto. Este faz conduzir a bagagem do Posto do destacamento
policial, onde é escrupulosamente examinada contra o contrabando de
alcool e armas prohibidas. Quite com a polícia, o candidato se entende com
o Chefe do pessoal, - o Moreira. Este entrega-lhe um cartão a ser
apresentado ao Dr. Siqueira, médico da Companhia, que o interroga sobre
certas moléstias, acabando por ser submetido a exame rigoroso e depois é

93
obrigado a tomar quinopodio e posto em observação durante dois dias.
Findo este prazo, o candidato leva o cartão ao Moreira, ou ao Principe
Moreira, como é alcunhado, que faz sua identificação e entrega-lhe uma
chapa numerada que representa a Secção a que está destinado.”
Esta inspeção inicial era apenas um primeiro passo da vigilância que se
estenderia por todo o tempo em que o trabalhador estivesse a serviço da Companhia. O
álcool era proibido em toda a extensão da concessão, segundo o relato de seus antigos
trabalhadores, apesar de que os dirigentes tinham acesso ao seu Wiskey, consumido no
clube a eles destinado.
As visitas eram controladas pela Companhia que deveria ser notificada da data
da entrada das mesmas e quando de sua saída. É evidente que as “visitas” de prostitutas
eram proibidas. Desta forma, os trabalhadores em busca de álcool e de mulheres
deixavam Fordlândia, rumo ao local por eles designado de “Ilha dos Inocentes”, onde
poderiam obter as duas coisas. No entanto, quando tentavam contrabandear álcool -
escondido dentro de melancias - e eram pegos pelos agentes da fiscalização, sofriam
imediatamente a “descarga”, ou seja, eram demitidos.
As casas eram visitadas regularmente por agentes da inspeção sanitária, que
verificavam as condições de limpeza das mesmas. Os hábitos de higiene também eram
cobrados nas ruas, onde, de acordo com os relatos dos trabalhadores que entrevistei, não
se encontrava um único pedaço de papel jogado fora do lixo, uma vez que se isso
acontecesse, o responsável seria duramente repreendido.
A contratação de trabalhadores com famílias já constituídas também não era
vista como um problema para a Companhia uma vez que estes recebiam uma casa para
morar e havia escolas gratuitas para o estudo das crianças, com professores contratados
na capital do estado do Pará, que atuavam também no sentido de “educar” esta nova
geração de trabalhadores.
A preocupação com os estudos era encontrada da mesma forma em Detroit, onde
os primeiros operários das fábricas Ford, na sua maior parte constituídos de imigrantes
europeus, recebiam o ensinamento da língua inglesa. Beynon (1995, p.44) ressalta que
isto se vinculava à idéia de difusão dos valores americanos, inclusive através do
material didático oferecido:
“... o ensinamento da língua inglesa era mesclado à tentativa de inculcar
valores ‘americanos’, valores que Ford aprovava e considerava necessários
a uma força de trabalho estável e laboriosa. Como parte das lições de

94
inglês, por exemplo, apresentava-se aos trabalhadores uma pantomina na
qual um casal usando trajes camponeses era posto em uma panela e mexido
pelo ‘Tio Sam’, ressurgindo com um novo vestuário, ‘todo americano’”.
Desta forma, todos estas estratégias se combinam para formar este novo homem
adequado à moderna indústria, ressalvando-se, é claro, que na Amazônia brasileira não
há o processo industrial, mas apenas a produção de matéria-prima para as fábricas dos
Estados Unidos.
A racionalização da sexualidade, segundo Gramsci, é mais um dos fatores
presentes nesta construção, buscando acabar com as manifestações tidas como
“instintivas”, para adequá-las a este novo padrão. Assim, através do controle da vida
privada, da sexualidade, dos hábitos de higiene e de consumo dos trabalhadores, uma
nova sociedade estava sendo gestada. Para o autor, isto não deve ser encarado, de forma
ingênua, como apenas uma manifestação de uma moral puritana, mas como elemento
constitutivo desta nova ordem:
“...pois os novos métodos de trabalho estão indissoluvelmente ligados a um
determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida; não é possível
obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro. Na
América, a racionalização do trabalho e o proibicionismo estão
indubitavelmente ligados: os inquéritos dos industriais sobre a vida íntima
dos operários, os serviços de inspeção criados por alguma empresas para
controlar a ‘moralidade’ dos operários são necessidades do novo método
de trabalho. Quem risse destas iniciativas (mesmo falidas) e visse nelas
apenas uma manifestação hipócrita de ‘puritanismo’, estaria desprezando
qualquer possibilidade de compreender a importância, o significado e o
alcance objetivo do fenômeno americano, que é também o maior esforço
coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma
consciência do fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e
de homem”.(p.396, grifos do autor)
Desta maneira, esta construção do novo estaria se dando através da combinação
da coação, representada pela autodisciplina; com a persuasão, na forma das vantagens
sociais e dos altos salários.
Todas estas transformações na sociedade tiveram como ponto de partida as
mudanças ocorridas no interior da fábrica, através da combinação de elementos
característicos do fordismo e do taylorismo. No entanto, entre estes dois setores- o

95
interior e o exterior à fábrica -, Ferreira(1993), ressalta um terceiro, presente nos autores
da Escola Francesa de Regulação (EFR), que diz respeito à relação salarial fordista:
“Em termos analíticos, a noção salarial pode ser desdobrada em cinco
componentes ou aspectos: 1) a organização do processo de trabalho; 2) a
hierarquia das qualificações da mão-de-obra; 3) a mobilidade dos
trabalhadores (dentro e fora da fábrica); 4 a regra de formação do salário
(direto e indireto); 5) o modo de utilização da renda salarial (notadamente,
a norma de consumo vigente).”
Considerando que a produção de látex é apenas uma parcela da produção
capitalista, é possível observar que alguns destes preceitos estarão presentes na
Companhia Ford Industrial do Brasil, ressaltando-se aqui a questão dos salários
divididos entre diretos e indiretos. Com efeito, os trabalhadores da Companhia, além de
receber um salário alto para os padrões vigentes na região, também tinham direito à
moradia, à assistência médica e à escola gratuitas, o que lhes garantia uma salário
indireto. Também a compra de artigos poderia se dar nos armazéns, concessionários da
empresa, com preços controlados pela mesma. Assim, o salário se dividia no pagamento
direto e nestas formas indiretas.
A outra característica do fordismo, que diz respeito à organização da produção
propriamente dita, realizada no âmbito da unidade de produção, foi assim resumida por
Ferreira(1993);
“Neste plano, podem ser destacados os seguintes traços característicos ou
constitutivos do paradigma fordista:
a) racionalização taylorista do trabalho: profunda divisão - tanto
horizontal (parcelamento das tarefas) quanto vertical (separação entre
concepção e execução) - e especialização do trabalho;
b) desenvolvimento da mecanização através de equipamentos altamente
especializados;
c) produção em massa de bens com elevado grau de padronização;
d) a norma fordista de salários: salários relativamente elevados e
crescentes - incorporando ganhos de produtividade - para compensar o tipo
de processo de trabalho predominante.”
A primeira destas características é bastante visível nas plantações de Ford na
Amazônia: a divisão das tarefas entre os trabalhadores é bastante grande conforme se
pode notar na tabela 1, construída a partir do livro de Cohen, mostrando os empregados

96
a serem contratados para o início dos trabalhos de Fordlândia. É importante ressaltar
que, apesar deste parcelamento, não há nenhum tipo de especialização entre estes
trabalhadores, que poderiam ser remanejados para outras tarefas, quando necessário.
Causou-me espanto inicial, nas primeiras entrevistas realizadas em campo, a
constatação de que nem mesmo os seringueiros tinham esta especialização, sendo
treinados em cerca de uma semana, na própria plantação, tendo sido escolhidos entre os
que mostravam ser mais habilidosos para tal tarefa. Os seus salários também não eram
diferenciados daquele recebido pelos demais trabalhadores do campo.
O senhor Emanoel Rocha Rufino, que foi seringueiro na época da Companhia,
contou que, quando chegou na Companhia passou algum tempo fazendo roçagem,
“depois me mandaram prá tal escola de cortar seringa, aí fui pro seringal e aprendi a
cortar seringa, prá não dar no pau, prá tirar só leite. Passei lá 20 dias. A senhora que
era capataz lá era boa prá cortar seringa.” Pelo que se pode ver, não só o trabalho de
cortar as seringueiras não era especializado, como também as mulheres o realizavam,
podendo chegar a ser capatazes.

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TABELA 1 - As Seções de Fordlândia
SEÇÃO NUMERAÇÃO CHEFE NACIONALIDADE DO
NA CHAPA CHEFE
Oficina de Máquinas 1 a 149 Jovelino Maciel Brasileiro (Pernambuco)
Carpintaria 150 a 299 Barymyle -
Eletricidade 300 a 349 Bricher -
Pintores 350 a 399 Jovelino Maciel Brasileiro (Pernambuco)
Pedreiros 400 a 474 Aureliano Garcia -
Usina 475 a 549 Lassila Americano
Encanadores 550 a 599 Lassila Americano
Serraria 600 a 799 Rougg Americano
Garagem 800 a 874 Bromilder Austríaco
Marinha 875 a 899 Bromilder Austríaco
Almoxarifado e 900 a 949 Lucien Brevos, Brasileiro(Amazonas)
Armazém substituído por
Pedro
Serviços 950 a 999 Rodolphe Suíço
Fazenda 1000 a 1074 Bezerra -
Horta 1075 a 1149 Oscar Cokdorof -
Médicos e Hospital 1150 a 1199 Dr. Siqueira Brasileiro
Cozinhas 1200 a 1399 Coelho Brasileiro
Higiene 1400 a 1549 Miranda Brasileiro (Pará)
Assalariados das 1550 a 1599 Efira Brasileiro (Pernambuco)
Oficinas
Escritórios, 1600 a 1699 Efira Brasileiro (Pernambuco)
inclusive
mensalistas
Construção das Ruas 1700 a 1899 Reed Australiano
Serviços Gerais !900 a 1999 Neves -
Brocas e Derrubadas 2000 a 2499 Jim James Americano
Cultivo dos 2500 a 2599 Carcy -
Canteiros e Viveiros
Conservação do 2600 a 2799 Carr Americano
terreno - Limpezas
Plantações 2800 a 2999 Johasnen Inglês
Lenha para a Usina 3000 a 3099 Reed Australiano

Fonte: Cohen (1929), organização Elaine Lourenço

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A tabela também já evidencia um perfil da administração do empreendimento,
que é composta de membros brasileiros e estrangeiros, entre os quais predominam os
norte-americanos. Pelas diferentes nacionalidades presentes também já se pode ter uma
idéia do que será a convivência entre pessoas vindas de lugares tão distintos, com
diversas línguas e referências culturais.
Esta divisão de tarefas foi tão parcelada que a Companhia chegou a pagar a
quem se dispusesse a trabalhar retirando lagartas que infestaram os seringais de
Fordlândia: o pagamento era feito através da produção, medida através dos baldes de
lagartas que eram entregues na Comissária, que era o prédio que abrigava a
administração, o escritório e o almoxarifado, localizado próximo ao porto. De acordo
com o depoimento das pessoas entrevistadas, diversas pessoas realizaram esta tarefa,
especialmente as mulheres.
A separação entre as tarefas de concepção e execução também é encontrada na
Companhia Ford Industrial do Brasil, uma vez que os trabalhadores obedecem a um
esquema de trabalho previamente montado a partir da direção da empresa. Este esquema
diz respeito não só ao trabalho a ser realizado cotidianamente, como também a um
plano de tarefas a serem executadas durante o ano, adequadas ao clima da região,
conforme se pode notar no relato do já citado cônsul americano no Pará, de 1938:
“Os trabalhos de abertura de áreas e de plantio por um ano são
distribuídos por um período de 12 meses, na seguinte seqüência, a qual
depende um tanto da estação e das condições locais do tempo:
Abril a maio: levantamento e bloqueio da nova área
Abril a maio: retirada da vegetação rasteira
Maio a julho: derrubada
Junho a agosto: coleta de sementes
Julho a setembro: colocação de estacas
Agosto a setembro: queimada
Agosto a setembro: segundo e final bloqueio
Agosto a novembro: limpeza final
Setembro a novembro: demarcação
Outubro a dezembro: abertura das covas para plantio
Outubro a dezembro: plantio
Outubro a dezembro: limpeza das áreas para novos viveiros

100
Novembro a dezembro: classificação dos novos brotos dos
viveiros
Novembro a janeiro: plantio de sementes nas áreas recentemente
limpas
Novembro a janeiro: enxerto dos brotos
Novembro a fevereiro: plantio das sementes da seringueira
Dezembro a fevereiro: colheita das mudas dos viveiros e plantio
nas áreas
Janeiro a fevereiro: replantio das falhas na área do ano anterior
Janeiro a fevereiro: replantio de sementes nas velhas áreas
Janeiro a março: germinação e plantio de sementes no viveiro
Segue-se a isto a rotina regular de trabalho de manutenção de áreas,
viveiros, áreas experimentais, horta de clones, estradas, colheitas
secundárias, fertilização, controle de pestes e doenças, exame e sangria das
árvores (Test-tapping), trabalhos científicos experimentais, etc.”
Esta divisão se apresenta de acordo com o clima da região, uma vez que durante
a época das chuvas, no verão e no outono, predominam os trabalhos de plantio e
demarcação de áreas e nos meses intermediários, mais secos, há as queimadas e o
plantio e enxerto das sementes.
Estas técnicas também sofreram influência dos conhecimentos dos habitantes
nativos da região, uma vez que no relatório enviado pelo cônsul americano do Rio de
Janeiro ele relata que em Fordlândia havia o destocamento de todas as árvores da área a
ser utilizada, o que não ocorreu em Belterra, demonstrando que, de alguma forma, a
segunda beneficiou-se da utilização da lógica camponesa.
Outra concepção inovadora em relação ao processo de produção diz respeito aos
enxertos realizados nas seringueiras. Segundo o relato do senhor Miranda, antigo
trabalhador da Companhia, em Belterra e por mim entrevistado em julho de 1993 e
julho de 1997, as árvores eram compostas de três partes: a base era constituída pela
seringueira nativa, o caule era enxertado com espécies asiáticas - que produziam mais
leite -, e a copa era de uma espécie mais resistente ao “mal-das folhas”, desenvolvida
pelos técnicos da empresa.
O corte das seringueiras adotado nas plantações da Ford também se diferenciava
do tradicional corte em “V”, característico da região. Visando produzir a maior
quantidade de leite, expondo o menos possível o caule da árvore ao ataque das pragas,

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foi adotado o corte em espiral, característico dos seringais do Oriente, em sentido
contrário ao dos canais paralelos por onde corre o látex.
Estas inovações foram introduzidas ao longo do tempo, especialmente depois da
construção de Belterra, que fez com que Fordlândia se tornasse um campo para as
experiências a serem realizadas, enquanto na primeira ocorria a produção propriamente
dita.
A idéia de planejamento também se encontra presente nas plantas de construção
de Fordlândia e Belterra: ambas foram erguidas em áreas onde inicialmente
predominava a floresta, e tinham traçados bastante lineares, dividindo o espaço em três
partes distintas: aquele ocupado pelas casas dos trabalhadores; o que se destinava aos
equipamentos, tais como oficinas, usina de tratamento de água e de fornecimento de
energia elétrica; e o terceiro onde se localizavam as casas destinadas aos membros da
direção, conforme se pode verificar na planta urbana de Fordlândia anexa. Os
equipamentos de lazer também eram separados: os trabalhadores dispunham de quadras
de esportes e de cinema, enquanto os membros da direção dispunham de um clube para
seu uso exclusivo.
O relatório do cônsul americano do Rio de Janeiro mostra que em Belterra as
construções não são concentradas, como em Fordlândia onde as casas para os
trabalhadores estão junto às margens do rio, o que permitia uma exploração “mais
eficiente, mais econômica e mais promissora.” 14 fazendo com que o trabalhador
gastasse o menor tempo possível no seu deslocamento para o trabalho. Ainda assim, o
senhor Antonio Cardoso Pinto, que chegou em Belterra em 1934, foi para Fordlândia no
mesmo ano e retornou em 1937, quando eu perguntei se era longe o lugar em que ele
trabalhava, me respondeu da seguinte forma:
“Aqui era de pé, minha querida, aqui ninguém tinha bicicleta, só quem
tinha bicicleta aqui era o chefe e pronto, e nada. A gente saía da vila 129,
prá enxertar lá na 10. ... Vixe, é um hora de viagem prá ir lá e agora outra
prá voltar. ... Aqui a gente, a gente era, eles tratavam bem, mas a gente
comeu aquela moda, que é o pão que o diabo amassou, a gente comeu indo
de pé. Agora não, eu, eu de bicicleta prá ir eu vou bem ali, bem perto de pé,

14
“With the experience of Fordlândia back of it the company proposes to make Belterra a model camp.
Construction is on a permanent, but more modest scale, the flat country lends itself to more efficient
operation, the settlements are scattered over the work instead of being concentrated, and the entire camp
seems more efficient, more economical, and more promising.”

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não quero mais andar de pé. Ninguém que andar de pé. Aqui em casa tem cinco
bicicleta.”
Desta forma, para o cônsul que se deslocava no Rio de Janeiro em carros
oficiais, ou em Belterra quando de sua visita, em carros da Companhia, as distâncias
não pareciam ser grandes, já para quem as enfrentava a pé, embaixo de sol forte ou de
chuva, sendo que ambos são constantes na área, a realidade era bem diferente.
A segunda característica do paradigma fordista, a referente à mecanização do
processo não pode ser encontrada a não ser na serraria, extremamente moderna, uma
vez que na extração do látex os processos ainda dependem em grande parte do trabalho
humano; já a questão da desqualificação da mão-de-obra, ocorreu de forma efetiva,
através da contratação de todos os trabalhadores que se apresentavam desde que
estivessem gozando de perfeita saúde como já foi discutido neste texto.
A produção em massa de bens padronizados não era o objetivo das plantações da
Ford na Amazônia, uma vez que esta era apenas uma parcela do processo, que se
complementava na matriz americana, onde os pneus e automóveis eram fabricados.
A última das características, a questão do salário, também já foi alvo de
discussão anterior, restando acrescentar que este é um dos paradoxos da Companhia,
uma vez que, embora estes pudessem funcionar como um atrativo, não era o que
acontecia na realidade o que acarretava sempre problemas para a administração da
mesma, que acabava por reduzir suas metas de plantio por não dispor de mão-de-obra
suficiente.
Ainda em relação ao processo de produção é importante lembrar que o
capitalismo só pode se tornar uma realidade quando os trabalhadores foram
expropriados dos meios de produção e do seu próprio controle do processo, ou seja,
quando o tempo passou a ser marcado pelo relógio, que passou a controlar as jornadas.
O taylorismo, entretanto, aperfeiçoou este processo, quando o seu autor passou a estudar
os tempos gastos em cada fase da produção, visando eliminar os tempos mortos. A
junção deste com as inovações trazidas pelo fordismo foi o que permitiu um grande
aumento na produção, inaugurando o que se denominou Organização Científica do
Trabalho, um novo paradigma baseado nos postulados das duas teorias.
Esta foi uma das definições dadas por Cattani (1997), no verbete taylorismo, do
Dicionário Crítico de Trabalho e Tecnologia:
“O Taylorismo é uma estratégia patronal de gestão/organização do
processo de trabalho e, juntamente com o fordismo, integra a Organização

106
Científica do Trabalho. Conjugado à utilização intensiva da maquinaria,
sua ênfase é no controle e na disciplina fabris, com vistas à eliminação da
autonomia dos produtores diretos e do tempo ocioso como forma de
assegurarem aumentos na produtividade do trabalho.”
A Companhia Ford Industrial do Brasil utilizou largamente este princípio, além
das formas já mencionadas de controle externo do modo de vida dos empregados, o
processo de produção passou a ser controlado e vigiado inclusive pelos relógios de
ponto. Segundo o relato de Cruls (1939, p.16), a rotina de trabalho era a seguinte:

"Para o operário rural, o trabalho se inicia às 6:30 e termina às 15:30, com


uma hora para o almoço. Assim, ainda lhe poderá sobrar algum tempinho à
tarde para cuidar dos interesses próprios, fazendo a sua roça, se quiser.
Tanto a entrada como a saída de serviço, são marcadas em relógio
registrador, sendo que para aqueles que se destinam às plantações mais
distantes da residência, esse assinalamento deve ser feito com antecedência
que lhe permita alcançar a tempo o seu ponto de trabalho. Contudo,
facilitando essa obrigação, há relógios espalhados por vários pontos."

Este relógio de ponto é mais uma das novidades que a Companhia trouxe para a
região, onde, mesmo no auge da extração da borracha, este não existia, uma vez que o
pagamento era feito por produção de látex e não pela jornada de trabalho. Além disso,
os trabalhadores do campo eram também fiscalizados pelos apontadores, que iam
conferir se as anotações dos relógios estavam corretas. Dessa forma, o funcionário era
duplamente vigiado: pelo relógio e pelo apontador. Alguns antigos funcionários de
Belterra relataram que os trabalhadores do campo não precisavam marcar o ponto,
embora outros afirmem que sim.
Desta forma, todas as características apontadas neste capítulo evidenciam o
caráter de enclave que Fordlândia e Belterra apresentavam em relação ao seu entorno,
fazendo com que o estudo destas áreas não possa ter como referência apenas as relações
predominantes na área, mas torna necessária a busca de outros paradigmas que possam
orientar a análise. Assim, através da discussão do fordismo e do taylorismo, torna-se
possível entender as características peculiares do empreendimento que apresenta-se
como uma das etapas da produção em massa de automóveis na primeira metade do
século XX, e se integra como parte do território capitalista mundial. Os parâmetros de

107
planejamento e gerenciamento, então, emanam da matriz norte-americana, e apenas em
alguns casos serão levadas em conta as especificidades da localização do projeto.
Do meu ponto de vista, este é um dos grandes limites encontrados pelos
americanos na sua aventura amazônica: a todo momento fica presente esta sensação de
estranhamento em relação aos hábitos locais, que não são levados em conta,
prevalecendo a idéia de que seriam costumes primitivos a serem substituídos pelas
novas formas “civilizadas” de convivência.

108
CAPÍTULO V

OS LIMITES DA COMPANHIA FORD


INDUSTRIAL DO BRASIL

“ ‘Deus é grande, mas o mato é maior’, diz o caboclo amazônico por respeito à sua

floresta, por amor a ela, que é o seu ambiente mais íntimo.”

(SIOLI, H. Amazônia: fundamentos da ecologia da maior região de florestas tropicais,

3.ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p.67.)

109
OS LIMITES DA COMPANHIA FORD INDUSTRIAL DO BRASIL

O surgimento da Companhia Ford Industrial do Brasil na Amazônia brasileira


foi alvo de polêmicas e controvérsias como já foi discutido no capítulo II. No entanto,
estas não cessaram após a instalação definitiva e se prolongam até os dias de hoje. Se
em relação à Companhia Ford, pelo menos nos seus escritórios em São Bernardo do
Campo, São Paulo, prevalece o silêncio a respeito de um empreendimento que não se
mostrou viável do ponto de vista do capital; o mesmo não se aplica aos autores que
pesquisaram o assunto e, ao publicarem suas obras, acabam tornando presente
discussões sobre os motivos que levaram ao encerramento das atividades da empresa em
dezembro de 1945.
A grande polêmica retratada se dá em dois pólos: o primeiro grupo atribui um
grande peso à falta de trabalhadores, sempre abaixo das necessidades da Companhia;
enquanto o outro lado atribui à questão ambiental, em particular ao ataque dos fungos, o
fracasso da Companhia. De qualquer forma, ambas interpretações levam em conta as
modificações advindas com o fim da II Grande Guerra, o advento da borracha sintética
e a própria estrutura interna da Companhia Ford que deixa de investir nas áreas
subsidiárias para concentrar sua atuação exclusivamente na produção de veículos.
A falta de trabalhadores é assunto constante nos documentos diplomáticos a que
tive acesso no National Archives, em Washington, Estados Unidos e também ocupa um
lugar central no trabalho de Costa ( 1993), originado de sua dissertação de mestrado no
Centro de Pós-Graduação de Desenvolvimento Agrícola, da Fundação Getúlio Vargas,
no Rio de Janeiro. Nestes textos a questão dos ataques do fungos às seringueiras assume
um papel secundário, sendo pouco mencionado.
Em contraposição, o trabalho de Dean destaca a incapacidade da Companhia em
combater os ataques das pragas, salientando que a falta de braços não era um grande
problema, uma vez que a produção era muito baixa por causa da debilidade das árvores
atacadas pelos fungos. Também Moog, no primeiro capítulo de sua obra, intitulado
Raça e Geografia, discute os limites oferecidos pelo meio à implantação de um seringal
racional e conclui que o fracasso do investimento deve-se às condições ambientais.
Do meu ponto de vista, ambas interpretações são válidas e plausíveis, mas
considero que a primeira é mais importante, porque é capaz de englobar a segunda: a
falta de trabalhadores é também uma conseqüência do meio onde se desenvolveu o
projeto, o qual não era capaz de mobilizar os trabalhadores necessários tendo-se em

110
consideração que a enorme quantidade de terras livres dificultava a sujeição dos
trabalhadores, conforme discutirei posteriormente. Além disso, a questão da cultura foi
relegada a segundo plano pelos americanos, que preferiram transplantar seu modo de
vida, sem se importar com sua adequação à cultura local.
A discussão sobre estes tópicos será iniciada pela segunda hipótese, a de que os
fatores ambientais foram decisivos para o fim do empreendimento, que, a seguir, será
comparada com a primeira, a fim de que se possa tirar as devidas conclusões.

Os limites oferecidos pelo meio

O livro de Waren Dean, História da borracha no Brasil, é fruto das pesquisas do


autor sobre este assunto e possui uma bibliografia de fontes consultadas, reconstituindo
a trajetória deste produto desde os primeiros relatos dos viajantes europeus na
Amazônia, passando pelo período do auge da exploração nesta área, em fins do século
XIX e começo do XX, incluindo a discussão sobre Fordlândia e Belterra, bem como os
acordos de cooperação feitos entre o governo americano e o brasileiro visando
incrementar a produção na época da Segunda Grande Guerra.
É a partir do terceiro capítulo que o autor começa a discussão sobre o cultivo
racional da seringueira, na própria Amazônia e também na Ásia. Na primeira este
procedimento já tivera seu início possivelmente em 1865, em terras situadas ao sul de
Belém e herdadas de um comerciante português, que assim o previra em testamento.
Este plano foi logrado porque a área era muito baixa, e as águas do rio Guamá
arrastaram a maior parte das árvores. Há registros também de áreas cultivadas em
Maués e em Santarém, esta última tendo sido iniciativa de descendentes dos
confederados sulistas que para lá emigraram.
O governo do estado do Pará, em 1909, promulgou uma lei incentivando os
plantadores que se dedicassem a este cultivo com benefícios fiscais, além disso a alta
dos preços a partir de 1910 e benefícios do governo federal agiram como incentivos
para companhias nacionais e estrangeiras. A delegação americana que esteve na
Amazônia, em 1923, relata a existência de diversos seringais cultivados, embora muitos
destes tenham sucumbido quando da queda dos preços do produto no mercado
internacional a partir de 1913. Dean relata a existência de cerca de dois milhões de
seringueiras cultivadas no Brasil, tendo seu cultivo espalhado por outros estados que
não os amazônicos, como a Bahia, o Rio de Janeiro e São Paulo.

111
As causas do fracasso de tais tentativas, quando ainda havia mão-de-obra e
capital disponíveis, devem-se, em grande parte, à questão da baixa produção de látex
obtida nesta área, muito aquém das expectativas. As causas desta baixa produção ainda
eram um mistério a ser solucionado:
“De fato, na Amazônia, hábitat nativo da Hevea brasiliensis, algum tipo de
problema, ainda não identificado, desencorajava os primeiros plantadores
de seringueiras e levava seus seguidores em potencial a se voltarem para
outras culturas.” (p.87)
A descrição das pesquisas sobre o fungo que ataca as seringueiras é o tema do
quarto capítulo, no qual o autor descreve as primeiras experiências dos botânicos em
áreas de plantio de seringueiras, relatando estudos realizados tanto na Guiana Inglesa,
no Suriname e em Trinidad, onde fora tentada a cultura da mesma; quanto em Belém,
no Pará, onde havia um centro de estudos no Jardim Botânico, com vários espécimes da
Hevea, nome científico da seringueira. Também os cientistas sediados nas plantações
inglesas e holandesas do Oriente se dedicaram ao tema, patrocinados pelos países
colonizadores.
O fungo foi descrito em 1904, por Paul Hennings que o chamou de Dothidella
ulei, nome que foi substituído em 1962, quando Muller e Von Arx o incluíram no
gênero Microcyclus. O seu comportamento era caracterizado pelo ataque às folhas,
causando manchas e buracos na mesma, até a morte desta. O fungo prosseguia em sua
trajetória atacando os galhos e frutos, podendo até mesmo causar a morte da árvore.
Além disso, uma das conclusões dos cientistas era a de que havia uma
incompatibilidade entre a resistência ao ataque dos fungos e a alta produtividade de
látex, ou seja, as árvores que se mostravam mais resistentes à praga, possuíam uma
baixa produtividade de látex, o que tornava o investimento pouco rentável, no caso do
cultivo racional.
Os cientistas também apontavam que a floresta era capaz de proteger a Hevea,
na medida em que havia uma distância entre uma árvore e outra, o que diminuía a
intensidade do ataque do fungo, que era, inclusive, considerado altamente especializado,
uma vez que se adaptara à queda anual das folhas, podendo sobreviver por este período,
voltando a se manifestar quando as mesmas começavam a renascer e eram mais frágeis
e vulneráveis.
Dean relaciona ainda que as possibilidades da Hévea no Oriente eram imensas
porque esta árvore fazia parte do clímax da floresta, que o momento mais evoluído de

112
um ecossistema. Desta forma, o equilíbrio natural que a floresta garantia para a
seringueira, não podia ser facilmente conseguido no caso do plantio em seu próprio
hábitat, mas o transporte da mesma para áreas diferentes poderia isolá-la de seus
parasitas naturais. De fato, os ataques de fungos locais no Oriente não chegou a causar
grandes estragos, uma vez que estes só atacavam aquela, uma planta estranha para eles,
em último caso, na falta de seus hospedeiros tradicionais. Há o relato de um visitante
daqueles seringais que estranhou o silêncio dos mesmos, em plena luz do dia, o que
demonstrava, segundo Dean, que nem os pássaros, nem os insetos locais, reconheciam
aquela espécie estranha.
Assim, o empreendimento asiático pode se beneficiar da ausência de pragas e
pode dedicar-se mais ao estudo de espécimes que pudessem fornecer mais látex, tendo
realizado experiências com sementes de matrizes mais produtivas, bem como iniciado
os enxertos que, posteriormente, também seriam utilizados nas plantações da Ford.
Os estudos dos cientistas acabaram por descobrir algumas fórmulas de
fungicidas e a “mistura de Bordéus” (sulfato de cobre e água de cal), que podiam ser
eficientes no combate à praga, quando aplicados nos viveiros. No entanto, a altura das
árvores, que podia chegar até a 25 metros de altura, inviabilizava as pulverizações nas
árvores adultas.
Desta forma, Dean refere-se ao declínio e abandono dos seringais da Guiana
Inglesa, do Suriname e de Trinidad, como resultante do ataque dos fungos e do
conseqüente declínio da produção, afirmando que o problema não seria da falta de mão-
de-obra, como afirmaram alguns, uma vez que a exportação de produtos tropicais se
manteve, assim como a exploração de uma borracha local, extraída da maçaranduba.
A missão americana que esteve na Amazônia brasileira no início dos anos vinte
e a história de Fordlândia e Belterra são os pontos em discussão no quinto capítulo. O
primeiro dos temas já foi discutido e refere-se à tentativa de fugir do monopólio da
borracha inglesa efetuada pelos americanos através de visitas a diversos pontos na
América, buscando viabilizar o cultivo da seringueira.
Em relação ao empreendimento da Ford, começa por relatar as aventuras que
cercaram a aquisição da área, e as artimanhas de Villares neste caso. Além disso,
destaca os problemas políticos gerados quando o sócio do mesmo denunciou a
manipulação deste à imprensa de Belém, o que fez com que o governador Dionísio
Bentes, acusado de ter recebido uma comissão no negócio, retirasse seu apoio ao
projeto. Seu sucessor e adversário político, Eurico Valle, também obstacularizou a

113
implantação da Companhia e o assunto só foi resolvido com o novo governo instituído
após a Revolução de 30 e a ascensão de Vargas, cujo governo privilegiava os
empreendimentos industriais.
O autor ressalta que, embora a construção de Fordlândia impressionasse todos
que a visitavam, o ritmo de implantação dos seringais era extremamente baixo, tendo
sido de quatrocentos hectares em 1929, e de novecentos hectares nos dois anos
seguintes, quando em Sumatra, no seringal da U.S. Rubber, nos três primeiros anos
foram plantados 13.610 hectares. Segundo o autor, isto se deve ao fato de que em um
primeiro momento, optou-se por retirar a madeira comercializável antes e quando este
procedimento foi deixado de lado, a implantação cresceu apenas para 1.000 hectares, o
que faria com que o plantio de toda a concessão levasse mil anos para se efetivar.
Dean ressalta como um dos problemas iniciais da concessão o seu primeiro
administrador, antecessor de Johnston, que não foi capaz nem de efetivar um plano
eficaz, como também foi pouco maleável no trato com os trabalhadores, o que levou às
revoltas iniciais, que também podem ter sido causadas por “agitadores”, infiltrados
pelos governos estaduais. No entanto, estas rebeliões teriam cessado após 1930, quando
a Companhia permitiu ao governador a nomeação do delegado de polícia de Fordlândia.
Diante desta colocação de Dean eu pergunto: se a necessidade de contratar mais
trabalhadores, relatada constantemente por Johnston aos escritórios da matriz, tratava-se
de um problema de menor importância, por que a implantação dos seringais se efetivava
em um ritmo tão lento em relação ao vulto do empreendimento?
Em meados de 1932, os escritórios de Dearborn passaram a pensar na
possibilidade da contratação de um especialista no cultivo da borracha, como forma de
incrementar a produção e para tal finalidade foi contratado James R. Weir, um botânico
com doutorado em Munique, que já havia participado na missão americana no Brasil,
quando se dedicara ao estudo das pragas que atacavam as seringueiras.
Quando Weir chegou às plantações, encontrou diversos problemas, entre eles a
não numeração das quadras e a não destruição das seringueiras nativas em um raio de
um quilometro e meio das áreas de plantio. Além disso, era necessário iniciar um
procedimento que contivesse o ataque dos fungos, que já começara a se manifestar nos
seringais. Para aumentar a produção, sugeriu que fossem importados clones do sudeste
asiático, e conseguiu a permissão para fazê-lo, tendo para lá se dirigido a fim de
conseguir seu intento.

114
Ao voltar para Fordlândia, foi Weir quem sugeriu a troca de parte da área de
Fordlândia, pela outra, onde foi erguida Belterra, por acreditar que as terras firmes e
bem drenadas, com mais vento e menos umidade, eram as ideais para evitar a
propagação dos fungos, bem como oferecia melhores condições para o desenvolvimento
da árvore.
Apesar das poucas perspectivas que a Ford tinha em relação ao sucesso de seu
investimento na Amazônia, o projeto foi aceito e posto em implantação a seguir, com a
construção de Belterra. Por esta época, os seringais e também os viveiros de Fordlândia
estavam tomados pelo mal-das-folhas, e várias árvores foram substituídas.
O relatório escrito por Weir para a matriz americana, em 1936, era bastante
pessimista e sugeria que Fordlândia fosse mantida apenas como um laboratório
experimental e que as plantações deveriam ser removidas para outro lugar, sugerindo a
América Central. Neste texto, o botânico contradizia seu próprio relatório quando
membro da expedição americana, afirmando, agora, que o Brasil nunca deveria ter sido
escolhido para o plantio racional da seringueira.
Os atritos entre Weir e Johnston eram constantes, sendo que o segundo apostava
na expansão do projeto, e mandou para Dearborn relatórios de Bangham um técnico das
plantações da Goodyear na América Central, inimigo de Weir, que esteve nas
plantações da Ford em 1936.
Nos anos seguintes, iniciaram-se em Belterra os trabalhos de enxertia, fazendo
com que as árvores possuíssem as três partes: um exemplar nativo na raiz, um tronco
enxertado pelos espécimes de alta produtividade, e uma copa de variedade resistente.
Weir fora o responsável por classificar este procedimento de “um salto no escuro”.
Weir demitiu-se em 1938, tendo ficado em seu lugar o seu assistente, Charles
H.T. Townsend, que fora para as plantações, convidado por Johnston, em 1935, a fim
de examinar os insetos que atacavam a plantação e as formas de combatê-los, tendo
identificado 23 espécies.
Os anos de 1939 e 1940 foram bastante secos em Belterra, mas em 1940, com a
volta da umidade, o fungo alastrou-se de forma bastante rápida. No entanto, Bangham
visitou novamente a concessão e previu que estes não seriam impedimento à produção
que deveria contar com mais de 250.000 pés de seringueiras.
A questão dos trabalhadores não era central para a viabilidade do
empreendimento, segundo Dean, tanto que o sucessor de Johnston, Howard C. Deckard,

115
não mencionou o assunto quando da visita do presidente Vargas à Belterra, em 1940,
quando o presidente teria elogiado o empreendimento em cadeia nacional de rádio.
Os problemas em relação a este assunto teriam sido apenas no processo inicial
de instalação, quando os recrutadores da Companhia enfrentaram problemas com os
chefes políticos locais, que impediam o alistamento de seus eleitores. Além disso, estes
evitavam as áreas em que a malária era endêmica, bem como a contratação de índios,
que não era visto com bons olhos pela população local.
Sugere que os altos salários pagos pela Companhia, de duas a três vezes
superiores aos pagos em Belém, funcionavam como um atrativo, além dos benefícios
adicionais de moradia, assistência médica, escola e armazéns com preços controlados
pela empresa. Segundo ele, a força de trabalho entre 2.200 e 2.500 indivíduos na maior
parte da primeira década era suficiente, e os próprio relatórios de Johnston continham
mais reclamações em relação a Weir, do que em relação aos trabalhadores. Mesmo a
rotatividade destes era muito menor do que em Detroit. O grande problema da
Companhia era a falta de retorno do investimento:
“Para a Ford uma dificuldade muito maior do que a rotatividade da mão-
de-obra era o fato de que, decorridos treze anos e efetuados um
investimento de quase 10,5 milhões de dólares e o plantio de 3.650.000
seringueiras, praticamente não havia uma sequer em condições de ser
explorada.” (p.127)
O sexto capítulo é dedicado especialmente à questão do esforço produzido
durante a II. Guerra, a fim de se obter borracha que pudesse sustentar a demanda dos
países aliados, especialmente os Estados Unidos. Para tal, o governo brasileiro e o
norte-americano firmaram acordos de cooperação, conhecidos como “Acordos de
Washington”, no sentido de incrementar as pesquisas sobre o cultivo da seringueira na
Amazônia, bem como de reativar a exploração das espécies nativas. A companhia Ford
também esteve envolvida nestes acordos, tendo enviado diversos de seus clones mais
produtivos para o Instituto Agronômico do Norte, situado em Belém, no Pará, para que
servissem para pesquisas e futuros enxertos.
Ao relatar estes fatos, Dean afirma que as pesquisas iniciadas em 1941,
mostravam que alguns clones enviados dos seringais centro-americanos da Goodyear,
bem como os enviados pelas plantações da Ford no Tapajós, que eram resistentes em
sua área de origem, não mantiveram a mesma característica em Belém, sendo
infectados pelos fungos causadores do mal-das-folhas. Desta forma, deixa claro que, já

116
naquela época, a empresa possuía em seu poder clones de espécies resistentes ao fungo,
o que poderia reverter o quadro de infestação presente nas plantações.
Em 1942, os seringais sofreram novas infestações e em 1944 e 1945 até os
espécimes resistentes escolhidos para a enxertia das copas, foram infectados, o que fez
com que a Companhia passasse a se utilizar da técnica de polinização a fim de obter
árvores mais resistentes e mais produtivas, reduzindo seu ritmo de implantação de
novos seringais.
A extração do látex começou em 1941, abrangendo 171.000 árvores em
Fordlândia e 36.000 em Belterra, com uma produtividade de 75 quilos por hectare, que
subiu para 110 quilos por hectare na primeira e 170, na segunda, três anos após, com a
exploração de 260.000 pés. Esta produtividade, segundo Dean, era extremamente baixa,
sendo que os pequenos proprietários de Sumatra conseguiam cerca de três vezes mais. A
falta de mão-de-obra, alegada por Johnston, não seria o entrave para a baixa produção:
“Jonhston continuava lamentando a falta de mão-de-obra adicional; no
entanto, ainda que tivesse conseguido tantos trabalhadores quantos pudesse
utilizar, não mais de outras 50.000 seringueiras estavam em condições de
ser exploradas. Novamente se evidencia que a necessidade de mão-de-obra
não era o fator limitante nas contínuas dificuldades da Ford.”(p.144)
É importante observar que embora este não fosse o problema central, na visão do
autor, ele existia e dificultava a extração do látex, uma vez que havia árvores que não
estavam sendo cortadas pela falta de quem fizesse este trabalho.
Ao fazer o balanço da experiência da Ford na Amazônia, o autor destaca que as
plantações obtiveram muitos progressos, especialmente na produção de clones mais
produtivos, como também no uso de enxertia das copas, tendo provado que seria
possível constituir um seringal racional mesmo com a presença do mal-das-folhas,
desde que as pesquisas continuassem. Com o fim do empreendimento, que foi
transferido para o governo brasileiro por cinco milhões de cruzeiros, que constituía o
valor da dívida trabalhista com as indenizações por aviso prévio, o bem mais valioso
transferido, segundo Dean, foram justamente os clones e os jardins bem cuidados, que
poderiam servir de base para novas experiências.
Entre os motivos para o encerramento das atividades da Companhia o autor
ressalta as dificuldades financeiras da matriz, que também estava abandonando o
processo de integração vertical. Além disso, a produção de 115 toneladas de borracha,
de 1945, era insuficiente para pagar as despesas, devendo atingir 450 toneladas,

117
considerado o preço subsidiado do período da guerra. Outro fato poderia ser a
expectativa dos dirigentes da empresa de que a borracha sintética viesse a substituir a
borracha natural.
Dean ainda ressalta que diversos autores póstumos tentaram explicar o fracasso
de Ford, alguns defendendo que era impossível acreditar que o mesmo fosse capaz de
falhar, e outros defendendo que ele foi vítima de sabotagem dos responsáveis pelo cartel
inglês. O autor refuta esta última acusação da seguinte forma:
“Entretanto, nada na documentação sugere que os numerosos erros
cometidos pela equipe dirigente tenham resultado de irregularidades mais
graves do que a ignorância e o voluntarismo. A escassez ou a suposta
inconstância dos trabalhadores foram mencionados por autores que não
sabiam da presença do Microcyclus ou o consideravam relativamente sem
importância. A falta de produtividade das plantações era, porém, clara
para a companhia. A fim de ocultar seu embaraço, explicou a seus
funcionários, quase no fim, que os seringais foram ‘estabelecidos como
estações experimentais, nas quais se realizaria o trabalho pioneiro de
desenvolver seringueiras produtivas e resistentes às doenças’ .”(p.153)
Se o autor se refere à falta de produtividade da Companhia como um fator
decisivo, por que ele não considera que a presença de mais trabalhadores poderia ter
expandido a área cultivada, uma vez que havia terra em abundância e alguns clones se
mostravam com uma resistência adequada à produção?
Outra questão suscitada pela leitura do texto é a seguinte: por que o autor afirma
que havia trabalhadores suficientes, quando ao analisar a questão do recrutamento dos
mesmos, conclui que isto só foi possível com a entrega desta tarefa a contratadores
locais, após 1932? Onde estes contratadores foram recrutar a mão-de-obra, uma vez que
a local estava vinculada ao sistema extrativista? Mais do que isso: não seria a existência
de terras livres um atrativo que impulsionava os trabalhadores da Companhia a deixá-la,
buscando viver da agricultura e da pesca, tal como os grupos ribeirinhos? Ao analisar a
questão do recrutamento da mão-de-obra durante o período da “Batalha da Borracha”,
no período da Segunda Guerra Mundial, o próprio autor admitiu que os americanos,
embora tivessem relutado a princípio, foram obrigados a se submeter ao antigos
coronéis, que praticavam formas próximas à servidão, em relação a seus trabalhadores,
e quando houve necessidade de mais trabalhadores, estes foram trazidos do Nordeste,
com falsas promessas de enriquecimento. Onde estariam, então, os trabalhadores a

118
serem recrutados pelos contratadores a serviço da Ford? A existência do pagamento de
salário e dos benefícios adicionais seriam, por si só, suficientes para atrair populações
que na Amazônia ou no Nordeste viviam secularmente de práticas destinadas a produzir
apenas a subsistência?
Enfim, o autor ao atribuir um peso decisivo à questão dos fungos, acaba por
relegar a um segundo plano questões que, a meu ver, seriam igualmente importantes
para o sucesso do empreendimento, especialmente a questão do recrutamento dos
trabalhadores.
A questão do meio, não mais do ponto de vista biológico, mas enquanto
interação homem-natureza, é o ponto central da análise efetuada por Viana Moog, no
primeiro capítulo - Raça e Geografia -, de sua obra Bandeirantes e Pioneiros.
Moog, neste primeiro capítulo, busca estabelecer as possíveis relações entre as
raças humanas e o meio em que vivem, tentando descobrir se há qualidades inatas a
cada raça, que se reproduziriam em meios diferentes. O autor se utiliza basicamente de
três experiências para discutir este assunto: a presença dos confederados no Brasil,
especialmente na Amazônia; a emigração de um grupo de alemães para a Amazônia
peruana, em 1857: e a experiência de Fordlândia e Belterra.
O empreendimento da Ford na Amazônia brasileira é analisado em um tom
extremamente irônico. Já no início do texto, ao relatar que o investimento nos trópicos
se devia ao desejo de fugir do cartel formado pelos ingleses, o autor faz a seguinte
reflexão:
“Era lamentável, mas infelizmente aquelas árvores tão cobiçadas pela
indústria americana, talvez por terem o sangue branco como os deuses, e
que, por isso mesmo, no plano vegetal, deviam corresponder ao ariano no
plano antropológico, - por um equívoco da natureza, só vingavam nos
trópicos.”(p.138)
O tom irônico prossegue quando o autor relata a construção de Fordlândia, que
veio toda desmontada em um navio “como se tratasse de automóveis saídos das linhas
de montagem da Ford Motor Company: casas, hospitais, cafeterias, drug-stores,
cimento, areão para as canchas de tênis, aparelhos sanitários, bull-dozers, serraria,
uma cidade completa por armar.”(p.39)
O empreendimento prossegue e onde antes havia apenas a mata, agora um
cidade moderna surge, prenunciando o início de uma nova civilização. Os seringais são
comparados a um batalhão do exército, com as árvores enfileiradas.

119
Os coronéis do barranco e os ingleses passaram a se preocupar com o seu
destino, enquanto as notícias dos jornais norte-americano eram extremamente
alvissareiras em relação ao futuro do empreendimento da Ford.
As relações entre os americanos - felizes por estarem morando na Amazônia e
longe dos conflitos operários em Detroit -, e os caboclos brasileiros - tão cheios de
estórias para contar -, pareciam um romance com previsão de final feliz, quando surgiu
a revolta do “Quebra-Panelas”, assim descrito por Moog:
“De repente, no meio do idílio, o primeiro imprevisto. Os caboclos, aquela
gente mansa e humilde, viram bichos. Começam por quebrar toda a
cafeteria, arrasam tudo. Era um motim. Os funcionários da Ford Motor
Company, com suas famílias, transidos de medo, correm para os cargueiros
surtos no porto. Os caboclos, armados de varapaus, tais como os franceses
na tomada da Bastilha, encaminham-se para os redutos da elite rotativa e
dirigente, bradando qualquer coisa ininteligível aos ouvidos de bordo. Que
é que eles ganiam com tanta raiva? Será ‘abaixo Mr. Ford’? Será ‘abaixo a
Ford Motor Company’? Não era nada disso. Parecia que se tratava de um
caso pessoal com o marinheiro Poppey. O que os caboclos bradavam era:
Abaixo o espinafre! Chega de espinafre!”(p. 41)
Desta forma, o autor aponta como a causa para o motim, não as questões
relativas a salários ou às condições de trabalho, mas o problema da alimentação, que era
imposta pela companhia, desrespeitando os hábitos locais de consumo de farinha, de
feijoada, de cachaça. A conclusão do episódio é a de que “numa noite os dirigentes da
Ford Motor Company aprenderam mais sociologia do que em anos de universidade.”
(p.42). Além da questão da alimentação, o autor também se refere ao modelo das casas,
construídas sobre o chão, ao invés das palafitas - características da região -, o que as
tornava imensamente quentes e à questão dos modos puritanos que os americanos
tentavam impor a seus trabalhadores.
A reflexão sobre estes temas, estaria fora de cogitação para Henry Ford, que não
era capaz de compreender como aqueles caboclos, que lhe deviam ser imensamente
gratos por ele ter lhes proporcionado um grande progresso em suas vidas, de repente se
insurgiam contra seu benfeitor.
A grande questão a ser enfrentada pelo empreendimento, no entanto, surgiria
logo depois, quando o seringal começou a crescer e o sol começou a mostrar seus
efeitos maléficos sobre as árvores que não mais contavam com a proteção da floresta:

120
“O pior seria o milhão de pés de seringueiras, definhando pelo excesso de sol e pela
falta de umidade e de humo.”(p.44)
É curioso o fato de que Moog não se refere ao fungo como o causador dos males
nos seringais, mas ao excesso de sol e falta de umidade, sendo que esta última não
ocorre naquela região da Amazônia, especialmente em Fordlândia. De qualquer forma,
esta explicação serviria para demonstrar sua teoria de que, na existência de uma raça
típica dos americanos do norte, estes não eram infalíveis, mas sujeitos às pressões do
meio onde se instalavam:
“Segundo Darwin, a vida é luta, e na luta triunfa o mais forte. Na Amazônia
triunfava o desordenada da selva contra a disciplina do seringal.(p.44)
A questão dos confederados é relembrada quando em 1940, um representante do
jornal The Saturday Evening Post, é enviado para o Brasil a fim de encontrar e traçar as
histórias dos descendentes destes imigrantes que vieram para o Brasil fugindo do sul
dos Estados Unidos, durante a Guerra da Secessão. O autor se utiliza basicamente da
história relativa ao grupo que foi para as proximidades de Santarém, no rio Tapajós, que
se constituía de cerca de duzentas pessoas.
Ao procurar os vestígios materiais da colonização deste grupo, o repórter apenas
encontra uma única casa, com uma águia americana pintada na parede, onde encontra
um dos poucos sobreviventes do grupo, que viera para o Brasil ainda menino e “agora
ali estava, de cabelo grisalho, casado com uma cearense, dono de terras e pai de onze
caboclos.” O repórter fica sabendo, então, que a maior parte dos descendentes havia
morrido, não tendo, portanto, o grupo prosperado, como seria de se esperar no caso de
haver uma predisposição da raça americana de triunfar em todos os seus
empreendimentos.
A segunda experiência, a do grupo de alemães que foram para a Amazônia
peruana, também fracassa, e logo depois os membros do grupo estão reduzidos à
miséria, com descendentes que pouco lembram o “rijo arcabouço prussiano”. Segundo
Moog, uma interpretação racial que fosse feita por um caboclo ou um pajé indígena,
poderia concluir que os prussianos provinham de uma raça inferior, incapaz de se
adaptar à floresta como eles o faziam.
O autor relembra, então, que não há raças puras e que a questão do meio deve
ser levada em consideração quando se analisa a possibilidade de progresso em um
determinado local, em um determinado momento:

121
“...na Amazônia não há uma grande civilização, não por culpa ou
inferioridade racial do índio, do caboclo, do português, do alemão ou do
anglo-saxão, mas devido em grande parte às dificuldades inerentes ao
meio. Na Amazônia a natureza a todos até agora tem implacavelmente
derrotado. A única diferença para assinalar é que com o tempo os outros
fogem; o mestiço fica. A sua desambição, a sua conformidade fez dele um
adaptado à terra.”(p.63)
Em relação à questão do mestiço, o autor assinala que Ratzel havia afirmado que
é a presença do mestiço que garantiu ao Brasil a sua prosperidade, uma vez que é este
que pode vir a ser o elemento dirigente em um local onde a raça branca encontra
dificuldades para sobreviver, devido ao clima tropical. Moog ressalta que poderia haver
um exagero na afirmação de Ratzel, mas que a presença do mestiço, sem dúvida, é que
possibilitou o aparecimento do bandeirismo, ampliando a colonização do Brasil.
Assim, o autor conclui que a relação entre as raças e o meio só pode ser mantida
enquanto houver equilíbrio, que se houver alguma alteração, não se pode esperar os
mesmos resultados:
“Em matéria de raça tudo vai bem, quando e enquanto há coincidência
entre a cultura tradicional e o hábitat. Tão depressa, porém, seja rompido
este equilíbrio, acaba-se a raça, acaba-se a vocação civilizadora. Esta é,
pelo menos a regra que até agora tem prevalecido com relação a todos os
tipos de imigração experimentados no Brasil, assim com portugueses, como
com alemães, como com norte-americanos, suíços, italianos, russos,
polacos ou japoneses.” (p.64)
Esta ausência de um determinismo racial, bem como a inexistência de raças
puras, leva o autor a concluir que para o estudo de diferenças entre as nações “a
antropogeografia pode muito mais do que a etnografia.”(p.66)
A análise de Moog em relação ao empreendimento da Ford na Amazônia
brasileira, no meu entender, avança mais do que a anterior, porque permite visualizar
que as diferenças culturais entre os norte-americanos e os brasileiros foram um foco de
tensão na Companhia, e que este fato agia simultaneamente com os problemas gerados
pelas limitações que a floresta oferecia ao cultivo racional da seringueira ou de outros
produtos nativos. Desta forma, esta interpretação busca situar o problema do ponto de
vista sociológico, analisando as diferenças entre os grupos sociais que dela
participaram.

122
Esta questão dos problemas com os caboclos, com sua indisponibilidade para o
trabalho e sua cultura tão original e ao mesmo tempo diferente da norte-americana,
também se encontra presente nos relatórios diplomáticos entre os consulados norte-
americanos no Brasil e sua sede em Washington.

A correspondência diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos

Os consulados norte-americanos no Brasil mantiveram os seus superiores nos


Estados Unidos sempre informados sobre a Companhia Ford Industrial do Brasil e esta
correspondência está arquivada, atualmente, no National Archives, em Washington.
Neste tópico analisarei seis documentos a que tive acesso, buscando ressaltar neles a
questão dos problemas que envolvem a contratação e o tratamento dispensado aos
trabalhadores, que é uma das preocupações centrais de todos eles.
O primeiro dos documentos é um relatório do vice-cônsul Gerald. A. Drew,
enviado do Pará e datado de 15 de dezembro de 1928 e a referência feita na capa é
bastante sugestiva: “Strike of the Laborers on the Ford Plantation of the Companhia
Ford Industrial de Brazil.”15
A leitura do texto mostra que o consulado acompanhava o processo de instalação
da Companhia no Pará e o autor ressalta que todos os passos serão relatados para seus
superiores. Além disso, ele afirma que partes do texto poderão ser repassadas para os
dirigentes da Ford, uma vez que acredita que esta não tenha conhecimento de todos os
fatos, especialmente os negativos.
Há uma preocupação do cônsul, segundo seu documento, em deixar claro que
não nenhuma tipo de ajuda oficial para a empresa, que sua intervenção é feita apenas
quando é solicitada. Assim, quando os dirigentes da empresa procuraram o consulado,
diversos assuntos foram tratados, sem que isto acontecesse por iniciativa do diplomata,
e sim da empresa.
A primeira discussão que o autor relata é sobre os noticiários dos jornais, sendo
que alguns deles são classificados de “amarelos”, e contém uma enorme quantidade de
críticas ao empreendimento da Ford na Amazônia. O missivista sugere que talvez
houvesse interesse destes jornais em receber algum pagamento para se calar, revelando
um franco preconceito em relação à imprensa brasileira.

15
Greve de trabalhadores nas plantações da Ford, da Companhia Ford Industrial do Brasil.

123
As notícias dos jornais foram se multiplicando à medida que a Ford não iniciava
seu empreendimento, o que dava margem a muitas especulações sobre as reais intenções
da Companhia. Havia inclusive ingleses, residentes em Belém, que também
incentivavam estes boatos.
A chegada dos navios, de um lado, foi importante porque mostrou que
finalmente o projeto se iniciara, mas por outro, causou mais comentários críticos uma
vez que este episódio foi cercado de problemas com a alfândega paraense, o que teria
resultado em mais notícias reclamando do favorecimento que a Companhia possuía, em
detrimento da arrecadação de impostos nacionais. Além disso, houve um episódio que
um fiscal tentou cobrar uma taxa considerada exorbitante, que foi devidamente
rebaixada por ordem de seus superiores.
O grande problema que Drew acreditava existir era a má administração de um
empreendimento tão vultoso, que havia sido confiada a Oxholm, que fora capitão de um
dos barcos da Ford Motor Company, o que não o credenciava para tal empreitada. O
dirigente havia demonstrado que não conhecia nada sobre a população local, constituída
por caboclos - no dizer do missivista -, e que este foi um dos fatores que levou à greve
anunciada no título do texto.
A greve teria se dado durante os trabalhos de descarga dos navios, ancorados em
Santarém e dela haviam participado 400 homens. 16. Várias causas são apontadas, como
uma possível influência das organizações radicais dos trabalhadores do Sul, a questão
do pagamento por dia e a questão da alimentação. O autor afirma que é impossível de se
prever o que poderá acontecer se estes movimentos não forem controlados a tempo.
Em conversa reservada com o governador do estado do Pará, este teria dito ao
autor do relatório que acreditava que existissem agitadores sendo pagos pelos opositores
da Companhia para criar estes tumultos, os quais também seriam os responsáveis pelas
críticas veiculadas pela imprensa. No entanto, o governador não possuía provas do que
falava, embora se mostrasse bastante convicto de suas afirmações.
Um outro problema que a Companhia viria a enfrentar seria a oposição do futuro
governador eleito, que se mostrava contrário ao empreendimento e certamente tentaria
fazer com que o contrato fosse suspenso, ou modificado com menos benefícios para a
Ford.

16
Este movimento grevista é o mesmo noticiado pela imprensa de Santarém, em novembro de 1928,
contido no capítulo III deste trabalho.

124
Entre as questões levantadas por este relatório, gostaria de ressaltar três: a
primeira é a da influência que os movimentos de trabalhadores do sul estariam
exercendo sobre os trabalhadores de Fordlândia, afirmação que me parece bastante
exagerada uma vez que os primeiros contratados, em sua maior parte são oriundos da
própria Amazônia, não sendo conhecida nenhuma conexão entre movimentos operários
no Brasil de então.
Uma outra reflexão sobre o relatório prende-se à tentativa do consulado em
manter-se distante do empreendimento, evitando caracterizá-lo como um investimento
oficial. Embora este seja o discurso, o autor deixa transparecer ao longo do seu texto
preocupações com o destino da empresa, refletindo sobre as dificuldades inerentes à
implantação, e ao permitir que partes de seu relato cheguem à Ford, demonstra querer
notificar a mesma sobre estes problemas, contribuindo para a sua solução. No relatório a
seguir, do mesmo cônsul, as reflexões são ainda mais profundas, buscando o autor
apontar as possíveis soluções para os problemas que se apresentavam, além de defender
um ponto-de-vista sobre o que ele considerava o objetivo central de Ford.
Já a questão da falta de tato dos dirigentes em relação aos trabalhadores é muito
mais veemente, e será analisada novamente, por este mesmo autor, no relatório enviado
em 1930. O cônsul, por morar em Belém, teria se dado conta de que a população local
cultivava hábitos muito diferentes dos americanos e que estes precisavam ser levados
em consideração.
O relatório enviado por este mesmo autor, em 14 de fevereiro, é ainda mais
contundente em relação às questões levantadas no primeiro, quais sejam, as críticas
levantadas pelos jornais brasileiros, a questão da contratação da mão-de-obra e os
desentendimentos com o governo estadual e o federal.
Drew afirma que após analisar as possibilidades de lucro da Companhia, o que
seria pouco provável de acontecer; os noticiários dos jornais americanos e brasileiros, e
os próprios relatos dos empregados da empresa, chegou a uma única conclusão que
poderia explicar o investimento: “This belief is that Mr. Ford considers the project as a
‘work of civilization’.”17 Esta última expressão foi cunhada, segundo o autor, por um
dos mais altos funcionários da empresa em Detroit e leva a algumas reflexões, que têm
como base as análises dos capítulos anteriores, ou seja, os americanos consideram que
estariam vindo para a Amazônia brasileira para desenvolver um missão civilizadora, que
garantiria às atrasadas populações locais as condições de poderem viver no american
17
Esta opinião é que Mr. Ford considera o projeto como um “trabalho de civilização”.

125
way of life. Mais uma vez evidenciam-se os preconceitos em relação aos amazônidas,
considerados como vivendo em um estágio anterior ao da civilização, aqui entendida
como o modo de vida americano. Também a idéia de enclave se reforça à medida em
que os americanos estariam trazendo a civilização para um lugar onde ela não existiria.
O cônsul também conta que esteve visitando Fordlândia e a magnitude do
empreendimento o fez pensar que lá estava sendo construída uma cidade para duzentos
a trezentos mil habitantes, o que certamente constitui um enorme exagero de sua parte.
Havia problemas ainda insolúveis com o governo federal, mas a Companhia não
parecia se importar com isto, pois os trabalhos não cessaram, sendo que a maior parte
do pessoal estava engajada nas construções e apenas um terço da mão-de-obra local se
destinava aos trabalhos de plantio. Os equipamentos para a construção de uma ferrovia
também tinham vindo em uma remessa de Detroit.
A organização interna da Companhia também tinha melhorado com a abertura
de um escritório em Belém, responsável pela contabilidade e pela contratação de
pessoal, que se relacionava com as plantações através de um sistema de rádio de
inauguração recente.
Como desconhecesse as reais intenções da empresa, o cônsul mostra
preocupação com as especulações de que a Ford estaria planejando dedicar-se às
exportações de produtos brasileiros, através dos navios que ela enviava para o Pará. Esta
medida era considerada extremamente imprudente e poderia ocasionar protestos
generalizados não só naquele estado, como em todo o país, uma vez que a empresa
gozava de isenções fiscais, mas que estas seriam destinadas apenas aos produtos
relacionados à sua concessão, tanto em relação à importação de maquinário, quanto à
exportação de gêneros produzidos apenas naquela área.
A visita que o diplomata fez às plantações foi possível graças ao convite do vice-
presidente da Pan-American Airways, que planejava obter um contrato para fazer um
levantamento na propriedade, cuja maior parte ainda estava inexplorada. O autor se
impressionou com as dimensões do empreendimento que havia se levantado onde há
apenas um ano antes havia apenas a selva. Mais uma vez, refere-se à falta de uma
administração eficiente, assinalando que a impressão geral é a de que falta uma
coordenação dos trabalhos, havendo desperdício de esforços.
Assim, o autor demonstra que mesmo em um trabalho pouco lucrativo do ponto
de vista do capital, o trabalho e o tempo não podem ser desperdiçados, havendo

126
necessidade de um planejamento eficiente, ou seja, enquadra-se naquele ideário de que
nenhum tempo pode ser desperdiçado, como no ideário do fordismo e do taylorismo.
Entre as moradias, havia dez já concluídas para os americanos e os capatazes,
sendo que os trabalhadores ainda viviam em cabanas de sapê. A serraria em operação
era provisória e a definitiva estava em construção. Os equipamentos que forneciam
energia elétrica e água filtrada estavam parcialmente concluídos, mas já em operação.
O problema com o governo do estado do Amazonas que havia embargado a
retirada das mudas plantadas em seu território, também foi relatado. 18. A questão foi
resolvida posteriormente com uma decisão da Suprema Corte Federal do Brasil e
emissário da empresa foram enviados em busca de sementes ao longo do Tapajós e no
Acre. Drew acredita que a partir de então estes problemas não mais ocorreriam.
As condições de saneamento e de saúde são consideradas excelentes, sendo que
os trabalhadores recém contratados são submetidos a tratamentos contra o amarelão. As
internações são em média de sessenta a setenta pessoas, incluindo os acidentes de
trabalho e há uma equipe de sessenta homens responsável pelo controle dos mosquitos e
das condições sanitárias, o que dá às plantações um aspecto de estar livre dos insetos.
Assim, seriam falsas as notícias a respeito das febres que os jornais veiculavam.
A questão da contratação da mão-de-obra é considerada um dos problemas mais
sérios enfrentados pela Companhia: os jornais circulavam com anúncios requisitando
trabalhadores especializados ou não, e o exame médico realizado acabava por dispensar
metade dos que apareciam por não apresentarem boas condições de saúde.
Os salários mais altos e os benefícios adicionais não pareciam constituir um
atrativo muito grande uma vez que nos meses de novembro e dezembro apenas 27% e
20%, respectivamente, de mão-de-obra adicional fora contratada.
De acordo com seu espírito de colaboração já apontado, Drew passa a enumerar
as possíveis causas desta falta de candidatos: a primeira seria a inexistência de diversões
para os trabalhadores, bem como de acomodações para suas famílias, além da proibição
do consumo de álcool. Mas o principal seria um efeito “psicológico”, o qual estaria
relacionado ao modo de vida dos caboclos. Drew mostra que este estava acostumado a
uma vida de pobreza, raramente dispondo de alguma quantia de dinheiro. Quando este,

18
Este problema com as sementes teve origem quando a Companhia encarregou Raimundo Monteiro da
Costa de adquirir sementes no Alto Madeira, as quais veio a plantar em Parintins (AM). O governo
daquele estado, como forma de punição por não ter sido escolhido para sediar a empresa, embargou o
transporte das mudas, que das 600.000 sementes originais, se transformaram em apenas 100.000 pés. A
Companhia foi obrigada a recolher sementes às pressas, as quais foram plantadas fora de época, com
grande prejuízo para a formação dos seringais. (Cf. Dean, 1989, p.115).

127
após três meses de trabalho, adquiria de trinta e cinco a quarenta dólares,
“provavelmente representado mais dinheiro do que ele já tinha visto em toda sua vida”,
seu primeiro impulso era dirigir-se à cidade para gastá-lo, retornando em grande parte
dos casos. Assim, a solução seria a criação de opções de lazer na própria Fordlândia,
bem como a construção de moradias para as famílias dos empregados, o que evitaria
esta grande rotatividade.
Esta preocupação do cônsul lembra a reflexão de Moog sobre o “Quebra-
Panelas”, quando os americanos teriam aprendido muito de sociologia em apenas uma
noite. Como este relatório é anterior ao movimento, parece que, ou a empresa não teve
acesso a ele, ou se isto ocorreu, não o levou em consideração.
Coloca-se aqui uma divergência entre o missivista e a direção da Companhia: se
o primeiro acredita que a segunda estaria fazendo um trabalho civilizatório, ele sabe que
isto não poderia ser conseguido sem que se levasse em consideração os hábitos e
costumes locais. A empresa, por sua vez, parece desconhecer este fato, o que
representava um sério obstáculo para sua continuidade, quer fosse para um retorno do
capital investido, quer fosse para um “trabalho de civilização”.
Os próximos relatórios, ambos de 1938, apresentam divergências entre si: o
primeiro foi feito pelo cônsul do Pará e se baseia em relatórios do gerente da
Companhia, Mr. Johnston, bem como em publicações do balanço da empresa
publicados no Diário Oficial daquele mesmo estado. Já o segundo, enviado pelo cônsul
no Rio de Janeiro, é muito mais crítico ao empreendimento, sendo que o missivista
esteve nas plantações a fim de poder escrever sobre suas próprias impressões.
Em um memorando da Divisão de Negócios Latino-Americanos, do
Departamento de Estado, em Washington, o autor reflete sobre a duplicidade dos
relatórios, afirmando que embora ambos descrevam o mesmo empreendimento, eles
divergem em pontos importantes.
De uma maneira geral, o primeiro é mais informativo e não coloca nenhuma
crítica ao investimento da Ford, apenas levantando alguns problemas, como a falta de
trabalhadores, assunto sempre rememorado por Johnston. Já o relatório elaborado no
Rio de Janeiro levanta diversas considerações sobre a Companhia, a começar pela sua
localização, que não seria a melhor, referindo-se também ao problema da falta de
trabalhadores e como isto afetava o sucesso do empreendimento.
Analisarei primeiro o relatório enviado pelo cônsul G.E. Seltzer, datado de 31 de
maio de 1938, e elaborado no Pará. O autor começa por pedir desculpas em relação ao

128
atraso de sua correspondência, pois havia um pedido datado de dezembro de 1937 da
Secretaria de Estado de Washington solicitando informações sobre a Companhia. Tal
demora teria sido motivada pelo fato de que o cônsul, tendo já em mãos o relatório do
gerente da empresa e aguardando a publicação do balanço da mesma no Diário Oficial,
adoeceu, tendo ficado impossibilitado de redigir o texto. Assim, ele pede que tal fato
seja levado em consideração, uma vez que não se tratava de negligência de sua parte.
Provavelmente, enquanto aguardava o relatório do consulado no Pará, o
Departamento de Estado norte-americano repassou estas instruções para o Rio de
Janeiro, porque o relatório enviado deste estado refere-se a uma correspondência do
departamento para o estado do Pará de 29 de abril de 1938, sendo que o cônsul-geral
esteve visitando as plantações da Ford em maio de 1938, e seu relatório é datado de
junho de 1938. Daí a possível explicação da duplicidade de relatórios.
As fontes do relatório de Seltzer são o relatório da Companhia e o Diário Oficial
do Pará, de março de 1937 e o de fevereiro de 1938, cujos exemplares continham o
relatório e o balanço da empresa. Além disso, ele faz referência às páginas 17 a 19 do
documento que continha partes do texto enviado por Johnston para o consulado em
dezembro de 1937 e que deveriam ser considerados confidenciais. O conteúdo desta
parte trata da falta de trabalhadores, do carregamento de látex enviado para Detroit, do
departamento de pesquisa e dos planos futuros da empresa e é a parte mais instigante do
relatório.
A falta de trabalhadores é a primeira queixa de Johnston ao consulado e na
correspondência de 1937 ele pede a ajuda deste órgão no sentido de indicar-lhe
possíveis áreas onde estes poderiam ser contratados. Como o relatório do cônsul é
posterior, ele relata que o gerente da Companhia tinha feito uma viagem para o Ceará,
em janeiro de 1938, de onde tinha retornado desapontado, uma vez que aquela região,
que fora responsável por fornecer a maior parte dos trabalhadores no período do auge da
coleta da borracha, não mais os tinha disponíveis em grande quantidade. Tal fato era
creditado ao crescimento da cultura do algodão, particularmente no estado de São Paulo,
que estava atraindo esta força de trabalho. Os poucos que restavam eram doentes, não
servindo para serem empregados a serviço da Ford. Assim, a previsão inicial de limpeza
e plantio de 5.000 acres tinha sido reduzida para 2.000 acres.
Em relação às pesquisas, o texto discorre sobre as experiências feitas em
Fordlândia e Belterra, com a finalidade encontrar espécies mais resistentes aos ataques
dos fungos e dos insetos, bem como as técnicas de enxerto que estariam sendo

129
realizadas. Um acréscimo que este texto traz em relação a outros é que ele se reporta a
pesquisas com outras colheitas, como o algodão, a carnaúba, a soja, o bambu e outros,
que estariam sendo feitas pela Companhia. Isto indica que a empresa poderia estar
interessada em ampliar a sua área de atuação, o que lhe era permitido pelo contrato de
concessão.
Entre 1937 e 1938, a Companhia enviou para análise em Detroit dez
carregamentos de látex, de diferentes fontes, e acredita que a baixa produção ainda seria
mantida até 1942.
Apesar desta baixa produtividade, os projetos para o futuro, os próximos quinze
anos, eram bastante ambiciosos e o gerente esperava contar com milhares de
trabalhadores, que viriam “de uma vigorosa raça que possa resistir ao clima desta
região.” No entanto, não há referência a quem seriam os componentes desta raça capaz
de se adaptar à Amazônia. De qualquer forma, serve para mostrar que os americanos
atribuíam parte de suas dificuldades à hostilidade do meio, que fazia com que houvesse
algumas raças aptas para habitá-lo e outras não. Mais uma vez aparece um pensamento
determinista, que relaciona a possibilidade de sobrevivência no meio a determinadas
qualidades, neste caso, raciais.
O restante do relatório é bastante descritivo e nele eu apenas quero destacar um
trecho que mostra a preocupação do autor em fazer um texto isento, que não deixasse
transparecer sua opinião pessoal:
“Most of these constructions were completed by December 1930, when (a
riot made) changes necessary in the policy of the Company,(and) postponed
the following planned constructions: church, thetre, hotel, store buildings,
parks, promenades, concrete sidewalks, and general landscaping.”19
O primeiro parênteses tem a palavra certain (certamente) escrita sobre ele, para
substituir as originais, que mostram os distúrbios ocorridos na concessão e o segundo
parênteses deveria apenas se omitido. Assim, as causas que determinaram as mudanças
da política da empresa, da primeira forma, seriam atribuídas aos distúrbios, e na
segunda não teriam qualquer reflexão sobre o fato.
Esta imparcialidade de julgamento buscada no texto de Seltzer não é seguida
pelo seu conterrâneo, à época cônsul-geral no Rio de Janeiro, Willian C. Burdett. Ao

19
Muitas dessas construções foram completadas em dezembro de 1930, quando (uns distúrbios fizeram)
mudanças necessárias na política da Companhia, (e) adiaram as eguintes construções planejadas: igreja,
teatro, hotel, edifícios para comércio, parques, passeios públicos, calçadas de concreto e ajardinamento
em geral.

130
contrário, a última parte do relatório de quinze páginas tem o título de “Ponto de Vista”,
no qual o cônsul reflete sobre as possibilidades do empreendimento, discutindo os dois
pontos polêmicos, do seu ponto de vista, que são a falta de trabalhadores e a baixa
produtividade do empreendimento.
A falta de trabalhadores é um ponto crucial para Burdett e o sucesso do
empreendimento está vinculado à solução deste problema, e ele levanta a hipótese de
uma eventual ajuda do governo brasileiro para resolver esta questão, isto porque, ao
discutir a oferta de trabalhadores existentes no Brasil, o cônsul verifica a sua
insuficiência e coloca a atração de trabalhadores estrangeiros como uma possível
solução. Entre estes, o autor considera que não se enquadram os sul-americanos,
também por causa de sua escassez, e descarta os japoneses e chineses, tendo em vista
que o governo brasileiro não via com bons olhos estes imigrantes asiáticos. Os mais
viáveis, então, seriam os porto-riquenhos, por existirem muitos desempregados e porque
se acreditava que eles eram “dóceis e disponíveis para uma tabela de salários
moderada.”
Esta parte do relatório, com o subtítulo de “Labor”(mão-de-obra), é tão
polêmica que em duas partes, ao lado do texto, há a inscrição “not for publication” (não
publicar). Uma delas é quando é citada a questão da restrição do governo brasileiro à
imigração asiática e outra é quando o autor descreve o sistema de barracão a que os
seringueiros estão vinculados na Amazônia. Para o cônsul, este é um dos fatores que
limitam a oferta de trabalhadores.
De outro lado, o autor afirma que a implantação dos seringais foi uma sucessão
de erros, desde o inicial que se vincula a uma escolha inadequada do local - o cônsul
chega a afirmar que a Ford Company foi enganada nas informações sobre o cultivo das
seringueiras na Amazônia e faz uma anotação com a palavra Omit (omitir) na parte em
que escreveu que a companhia foi induzida a adquirir tal área -, até as informações
sobre a disponibilidade de mão-de-obra, declarando que, contrariamente a várias idéias,
não havia mão-de-obra disponível na Amazônia em quantidade suficiente a que a
Companhia necessitava. Assim, o empreendimento da Ford era visto como uma
experiência pioneira, que se destinava a fazer as pesquisas sobre o cultivo racional da
seringueira. Acreditava o autor, que estes erros poderiam comprometer o retorno do
capital investido.
Desta forma, a criticidade do documento assume um aspecto ambíguo: se por um
lado procura mostrar que diversos erros foram cometidos em relação ao

131
empreendimento, por outro lado, procura evitar atritos com o governo brasileiro,
pedindo que se mantenham sigilosas as informações que poderiam causar algum tipo de
atrito com este.
A visita às plantações não deixou de impressionar Burdett, que escreve que
qualquer pessoa que conhecesse os trópicos não deixaria de se impressionar com o
local, afirmando que tal proeza de conquista da selva somente poderia ser comparada ao
Canal do Panamá. A empresa ainda não tinha garantido seu objetivo primeiro, a
produção de borracha, “mas a Companhia tinha pelo menos demonstrado que as
pessoas podem estar muito confortáveis, saudáveis e seguras, e trabalhar arduamente
na Amazônia.”20 Assim, mais uma vez aparece o ideal civilizatório a nortear o
empreendimento, sugerindo que os americanos estariam vindo para mostrar aos
amazônidas, visto como atrasados, como se poderia viver de uma forma mais saudável
na região, e que isto estava vinculado ao trabalho árduo a ser executado.
Estes trabalhadores, no entanto, não demonstravam querer se adequar a este
processo civilizatório, apesar dos altos salários e das vantagens adicionais que a
empresa oferecia:
“There is considerable difficulty in accustoming the men to modern methods
and to living under controlled and sanitaty conditions.”21
Os primeiros problemas tinham surgido em relação à alimentação, que era
fornecida tendo em vista um equilíbrio das porções. Com as greves, a Companhia havia
cedido e permitido a alimentação com feijões e farinha de mandioca. Segundo o cônsul,
a política da empresa era a de ceder em todos o métodos modernos aos quais os
trabalhadores fossem contrários, sendo que havia uma exceção em relação ao relógio de
ponto que era mantido apesar das objeções ao seu uso.
Este é o primeiro autor a afirmar que a Companhia havia recuado em seus
princípios, a partir da reivindicação de trabalhadores. Ainda assim, o que era essencial
ao processo capitalista, qual seja, o controle do tempo marcado pelo relógio, era o ponto
crucial, e sobre este assunto a empresa não poderia ceder, uma vez que se o fizesse o
empreendimento seria totalmente descaracterizado quanto ao aspecto econômico. Desta
forma, manter o controle da jornada de trabalho, forçando a sujeição dos trabalhadores a
um ritmo ditado pelo relógio, igualava-se a afirmar que o objetivo da empresa era

20
“but the Company has at least demonstrated that people can be very comfortable, healthy, and safe,
and work very hard on the Amazon.”
21
Há um dificuldade considerável em acostumar os homens nos métodos modernos e a viver em
condições sanitárias e controladas.

132
comercial, e que as concessões feitas destinavam-se apenas a manter o estoque de mão-
de-obra necessária ao investimento, visando o retorno do capital aplicado no mesmo.
A construção de Belterra é justificada pelo autor pelo fato de que a área de
Fordlândia era totalmente inadequada: o solo não era apropriado ao cultivo da Hévea, o
terreno era muito íngreme e os ventos eram muito cortantes, ao contrário da área da
primeira, cujo solo era plano e de boa qualidade. Há que se ressaltar que este autor, logo
no início do relatório, faz uma observação sobre Weir - em trecho marcado com o “not
for publication” -, afirmando ser este um reconhecido especialista da borracha, sendo
reconhecido como tal por toda a Amazônia. Considerando que foi este especialista que,
segundo afirmação de Dean (1989), foi o responsável pela troca dos terrenos; o fato de
que Burdett o elogiasse mostra que concordava com suas opiniões, colocando-se contra
Johnston, o administrador das áreas, tido como adversário de Weir. Tal fato pode ser
notado, uma vez que não há referência alguma a este gerente em todo o relatório, apesar
do cônsul ter visitado as plantações.
A doença das folhas também foi considerado por este autor um fator importante
na determinação da troca do terreno, o que mais uma vez confirma a hipótese de seu
alinhamento com as idéias de Weir. Seu colega de Belém, que se utilizava dos relatórios
de Johnston, apenas apontou como motivação da permuta o fato do terreno não ser
plano, o que encarecia os custos de implantação dos seringais, exigindo a construção de
barreiras que evitassem que o solo ficasse encharcado.
Há ainda uma parte do texto dedicada às instalações na qual o autor elogia as
construções e mais uma vez reafirma que Ford estava mostrando que a Amazônia
poderia ser um local habitável para os homens brancos desde que fossem tomadas as
devidas providências em relação às condições sanitárias. O próprio clima não é
considerado um empecilho, uma vez que as noites são frescas, mais do que as do verão
em Washington.
As construções destinadas ao “American staff” e as destinadas aos trabalhadores
locais e aos “Indians”, deixam entrever as diferentes situações vividas por cada grupo.
Enquanto os primeiros - três de Fordlândia e oito de Belterra, com suas respectivas
famílias -, viviam em casas de padrão norte-americano, com todos os equipamentos
modernos, e dispunham de “dois campos de golfe, quadras de tênis, piscina, campos de
futebol, um clube, sessões frequentes de cinema, sorveteria, restaurantes e lojas bem
supridas”; os segundos tinham concertos e bailes aos sábados, escolas e a oportunidade
de fazer compras nas lojas com preços controlados pela Companhia.

133
A divisão entre os grupos fica mais nítida: a uns se oferecem diversas opções de
lazer e diversão, enquanto a outros o lazer era restrito aos fins de semana, fora dos dias
de trabalho.
A separação também se dá em termos espaciais: tanto em Fordlândia quanto em
Belterra, as casas destinadas ao pessoal mais graduado ficavam em uma parte isolada e
localizada próxima aos hospitais, o que garantia assistência médica rápida, em caso de
necessidade. Já as casas para os trabalhadores ficavam próximas à margem do rio em
Fordlândia e em Belterra foram espalhadas ao longo das quadras, para facilitar o trajeto
até os seringais. Em Fordlândia esta separação é mais nítida, porque as casas destinadas
aos membros da direção, na Vila Americana, ficavam do lado oposto ao das construções
dos empregados, localizando-se em uma alameda margeada por mangueiras de ambos
os lados. Já em Belterra, a Vila Americana ficava ao final da estrada 1 e para atingi-la
era necessário passar pelo centro, onde se localizavam as igrejas, a batista e a católica e
as construções do “cercado”, que destinavam-se à administração e à manutenção.
Burdett ao relatar esta dispersão das casas em Belterra, atribui este fato ao
planejamento mais eficiente que foi feito na construção desta, que já pode contar com a
experiência da primeira, sendo que tal inovação fazia com que a área parecesse “mais
eficiente, mais econômica e mais promissora.” Para ele, embora as construções em
Fordlândia se assemelhassem às das cidades americanas, estas se ressentiam da falta de
uma experiência anterior na área, que pudesse servir de modelo.
Este relatório de Burtdett, que faz várias considerações sobre a viabilidade do
empreendimento, bem como critica os termos em que se deu sua instalação, assemelha-
se muito mais aos dois primeiros, escritos por Drew, que já localizavam alguns pontos
críticos no projeto; do que ao texto escrito por seu contemporâneo, no Pará, que procura
evitar qualquer reflexão sobre as plantações da Ford, denotando uma suposta
imparcialidade.
Os dois últimos documentos são um memorando do Departamento de Estado,
em Washington, que faz referência ao relatório de Burdett, afirmando que a questão da
falta de trabalhadores deveria ser discutida com o governo brasileiro, sem, contudo,
colocar as questões nos termos que o cônsul utilizara. Assim, a possibilidade de atração
de trabalhadores brasileiros deveria ser sondada com o nosso governo e a questão da
imigração dos porto-riquenhos deveria ser deixada de lado até que se pudesse avaliar as
conseqüências de tal medida. Além disso, a Ford Company deveria ser consultada a este
respeito.

134
135
O último documento é datado de 6 de março de 1939 sendo o memorando da
conversação entre dois representantes da Ford e do departamento de Estado, entre eles o
cônsul Drew, autor dos dois primeiros relatórios aqui analisados. Roberge, representante
da Ford, foi quem apresentou os problemas da empresa em seu empreendimento na
Amazônia, afirmando que os trabalhos estavam sendo prejudicados pela falta de mão-
de-obra disponível, ressaltando que a empresa estava negociando com o governo
brasileiro a possibilidade da vinda de trabalhadores portugueses para as plantações.
A remessa de látex também se mostrava abaixo do esperado, sendo que nos doze
meses anteriores o total enviado para Detroit foi de 37.000 libras, para um consumo
diário estimado em 75.000 libras.
Outro problema apontado era que o governo brasileiro estava exigindo que o
total exportado fosse suprido por remessa de igual valor para nosso país, o que estava
causando atraso nas remessas, cujo valor era superior ao que era enviado em troca. Este
problema não era considerado insuperável, mas poderia se tornar um obstáculo no
futuro. De qualquer forma, as autoridades brasileiras, na fala de Roberge, mostravam-se
bastante solícitas no Rio de Janeiro e as do Pará estavam se tornando mais receptivas ao
empreendimento.
Os representantes do governo americano asseguraram que iriam tratar do assunto
com Dr. Aranha, representante do governo brasileiro, e que estavam à disposição para
qualquer ajuda que a Ford necessitasse.
Em resumo, todos estes documentos demonstram que havia um efetivo
envolvimento das autoridades norte-americanas em relação ao empreendimento da Ford,
e que estas se mostravam preocupadas com o destino das plantações. Mais do que isso,
elas se mostravam dispostas a negociar com o governo brasileiro, visando à solução
daquele problema que era recorrente em todos os relatórios, qual seja, o da falta de
trabalhadores.
Desta forma, do ponto-de-vista dos cônsules que representavam o governo norte-
americano no Brasil, as plantações da Ford tinham um papel importante nas relações
comerciais entre estes países e o seu destino era objeto de preocupação constante.

136
A falta de trabalhadores como um dos limites da Companhia Ford Industrial do
Brasil

A disponibilidade de mão-de-obra suficiente para o empreendimento da Ford na


Amazônia é um assunto bastante polêmico, como foi discutido até agora. A despeito da
opinião de Dean (1989), todos os demais que se debruçaram sobre o tema enxergam
esta questão como um dos pontos principais, senão o central, para o sucesso do
investimento e o conseqüente retorno do capital investido.
Este tema acompanha a trajetória da própria empresa. Já o pioneiro livro de
Cohen(1929,p.54) analisava o fato, comentando que havia dificuldade em fixar os
trabalhadores e que isto era um dos fatores que tornava lenta a implantação dos
seringais:
“A Companhia, em Boa Vista, tem achado dificuldade em estabilizar o
operariado.
Quando ‘este’ já está mais ou menos enfronhado em seus místeres, dá o
fora. Uns alegam que o ordenado é pouco, outros, com saudades da família
ou do lar que os viu nascer, e finalmente os mais comuns pelo hábito da
vida nômade do operário na América do Sul.
Em geral o operário, por mais hábil que seja, não está ainda apto a este
novo regime.
Pacientemente o chefe de secção ensina sem reservas o seu auxiliar, mas,
por qualquer dá cá aquela palha, exige seu ‘bilhete’ e se retira.” (Grifos do
autor)
O problema da não adaptação dos empregados aos novos métodos de trabalho já
se colocava, então, desde o início dos trabalhos da Companhia. Já a questão do
nomadismo dos trabalhadores também é apontada no texto de Cruls (1939,p.15), quando
este se refere à pequena quantidade de funcionários - 1.200 em Belterra e 500 em
Fordlândia-que a empresa dispunha:
“Acredita o Sr. Johnston que esse entrave seja em grande parte devido à
falta de hábito que tem o caboclo amazonense por qualquer trabalho
metódico e com fixação à terra, uma vez que sempre se entregou ao
nomadismo da indústria extrativa. Justamente em 1938, houve uma prova
típica e comprovante dessa asserção. Tendo-se dado um alta súbita no
preço das semente de cumaru (Dipteryx, diversas espécies), perto de 300

137
homens abandonaram a Companhia para ir tentar a sorte, por conta
própria, na apanha daquele produto. É bem de ver que terminada essa
colheita erradia, grande parte deles quis voltar ao trabalho regular e a
Gerência, por não ter quem os substituísse, fechando os olhos a essa falta,
recebeu-os de muito bom grado.”
A questão do nomadismo dos trabalhadores amazônicos foi analisada por Sader
(1986), na região do Bico do Papagaio. Esta autora mostra que a agricultura camponesa
predominante naquela região baseava-se em um sistema de pousio, com três campos,
que eram utilizados alternadamente, havendo o retorno de tempos em tempos para as
mesmas áreas anteriormente cultivadas. Isto acontecia porque a região tinha solos
bastante pobres, que necessitavam de um longo período de tempo para se recompor após
o uso. Além disso, o avanço do processo de grilagem fazia com que o campesinato, a
fim de evitar sua sujeição, migrasse constantemente em busca de novas áreas para se
instalar:
“O que parece semi-nomadismo, agricultura itinerante, não passa de uma
estratégia de sobrevivência de grupos expropriados sem terra e sem meios
para garantir sua sobrevivência a não ser o trabalho na terra.”(p.117)
Nas proximidades de Santarém, estas migrações poderiam ter se originado no
período do auge da expansão da borracha, quando o campesinato original acabou
migrando para evitar a sua sujeição ao sistema do “barracão”. Assim, esta impressão de
nomadismo não se confirma, sobrando como uma das hipóteses a de que os
trabalhadores não encaravam o trabalho na Companhia como algo definitivo, partindo
quando uma oportunidade se apresentava. A região oferecia a possibilidade de encontrar
uma terra e cultivá-la, conforme lembrava o senhor Miguel Xavier Nogueira, falando do
destino dos trabalhadores que eram demitidos:
"Com a sacola, com a mala na cabeça, outros iam prá colônia. ... Nesse
tempo, derrubou a mata, era propriedade.”
A baixa densidade demográfica da Amazônia também não seria o fato que
impediria a contratação de trabalhadores, segundo Costa (1993). Para este autor, o
relatório da American Rubber Mission, de 1925, colocava a possibilidade de contratação
de cerca de 30.000 homens na Amazônia:
“É nossa convicção, baseados em cuidadosa observação e freqüentes
informações, que uma força de trabalho de 30.000 homens pode ser
arregimentada para ‘plantations’ no Vale Amazônico sem grandes

138
dificuldades. O problema, naturalmente, pode ser de mais fácil solução em
algumas localidades do que em outras, provavelmente sendo muito fácil no
Estado do Pará e aumentando progressivamente a dificuldade à proporção
que os altos rios são alcançados.” (Tradução de Costa, p.41)
O trabalhador nacional também é visto pelo relatório como tendo habilidades
para o regime de plantation, sendo destacado o cearense, como o mais adequado a tal
sistema.
A análise de Costa (1993, p.89), a partir dos dados dos censos de 1920 e de
1940, afirma que o primeiro demonstrava que havia no Pará “240.049 pessoas em
atividades agrícolas, pecuárias e de caça e pesca - 57% da Região Norte do Brasil.
Esta população sofre um pequeno acréscimo até 1940, passando a 248.313 pessoas.”.
Os dados do censo também demonstravam que houve um acréscimo do número de
estabelecimentos rurais com menos de 100 hectares, que passaram de 19.752, no
primeiro censo, para 50.188 no segundo levantamento.
A conclusão do autor, então, é de que havia pessoas em quantidade suficiente
para que a Ford pudesse desenvolver seu empreendimento. A grande dificuldade,
contudo, consistia no fato de que estas pessoas, tendo-se em vista a quantidade de terras
disponíveis na Amazônia, não se sujeitaria a trabalhar para a empresa enquanto tivesse
acesso à terra.
O fato que causava tanta exasperação nos dirigentes da Ford e nos representantes
diplomáticos, que levantaram diversas hipóteses para explicar a falta de trabalhadores,
não consistia nem no fato de que os caboclos estavam acostumados a uma vida de
pobreza, ou ao suposto nomadismo reinante na região, mas sim ao fato de que o
trabalhador não irá se sujeitar a trabalhar como assalariado enquanto tiver a
possibilidade de produzir o seu sustento de forma autônoma. Desta forma, o salário alto,
a assistência médica, a escola, Tc, não serviam como atrativos porque não faziam parte
da história de vida daquelas populações. A foto a seguir, que representa a chegada ao
hospital da Companhia é bastante elucidativa: a empresa oferecia uma assistência à
saúde extremamente moderna, chegando a fazer enxertos em dedos mutilados, mas os
pacientes chegavam nas redes, da forma mais tradicional possível.
Esta discussão sobre as diferentes formas de apropriação da terra também foi
referida por Martins (1995, p.131-132) ao analisar os posseiros que chegam à Amazônia
onde “se vende o serviço...”, ou seja, os migrantes que chegam podem se utilizar do

139
140
trabalho dos moradores mais antigos. Além disso, a concepção de pobreza destes
migrantes não é marcada pelo dinheiro, mas pela possibilidade de sobrevivência:

“Freqüentemente, tenho ouvido pessoas discutindo a problemática das


novas regiões em termos estritamente da terra porque, de fato, a pedra de
toque está na terra, mas há este outro elemento, ideológico, que marca
muito a existência e os movimentos dos posseiros que é o problema de sua
liberdade, a sua liberdade de trabalho familiar, a sua liberdade de trabalho
autônomo, a sua liberdade de locomoção, a sua liberdade de decisão. A sua
concepção de pobreza ...é totalmente diferente da concepção ‘paulista’ de
pobreza. Pobreza para o posseiro, em geral, é não ter o que comer, não é o
dinheiro.”
A análise de Costa (1993) é ainda mais pormenorizada na questão econômica da
viabilidade do retorno do capital. Este autor, baseada nos relatórios comissão americana,
afirma que a implantação dos seringais na proporção estabelecida pelo General Plan, o
primeiro plano diretor da empresa, elaborado pela matriz, requeria o emprego de 7.293
empregados para sua implantação, chegando a 10.929 no sexto ano a partir de quando
necessitaria de mais 1.035 trabalhadores por ano. Já o plano elaborado por Johnston,
quando este assumiu a gerência das plantações no começo dos anos 30, exigia 17.503
empregados para ser iniciado, chegando a 23.746 no quinto ano e a partir daí
necessitaria de mais 2.500 trabalhadores por ano.
A partir de diversas fontes, como os textos de Cohen, o de Cruls e relatórios da
própria empresa, o autor construiu uma tabela que demonstrava que em 1929 a empresa
dispunha de apenas 2.975 trabalhadores, sendo que o auge foi em 1931 com 3.100. A
partir de 1942, quando dispunha de 2.184 empregados não há mais dados referentes a
novas contratações. Desta forma, a empresa nunca sequer esteve próxima da quantidade
de trabalhadores necessária para os seus projetos.
Outro fator considerado por Costa, referia-se à área ocupada pelos seringais, que
também nunca esteve próxima da área considerada suficiente para promover o retorno
do capital investido, como também para satisfazer a demanda da matriz de Detroit. O
total de seringais plantados nos dezessete anos de funcionamento da Companhia
correspondeu a 10.186 hectares, sendo que para alcançar a taxa mínima de lucro seria
necessária uma área de 30.000 hectares, o que, na velocidade de implantação que se
dava, seria conseguido apenas em 30 anos. A conclusão do autor é a seguinte:

141
“Fica claro, portanto, que a Companhia Ford Industrial do Brasil foi incapaz
de estruturar-se, ao longo de sua existência, seja para o lucro, seja para atender as
necessidades da Ford Motor Company. E isto, em decorrência da incapacidade de
formar a massa de meios de produção para obtenção da borracha. Isto é, como
resultado da incapacidade de subordinar força de trabalho em volume adequado, quer
para atingir níveis de produção que permitissem o lucro quer, muito menos, para
alcançar escalas maiores de produção.”(p.89)
Além de considerar a questão da mão-de-obra como decisiva para o sucesso do
empreendimento e como a razão primeira do seu fracasso, Costa descarta a hipótese de
que tal fato pudesse ser creditado às questões agronômicas e sanitárias, baseando-se em
relatório de Felisberto Camargo, na época diretor do Instituto Agronômico do Norte,
que afirmava “...em 1945, que o clone Ford F-5084, desenvolvido por pesquisas da
Companhia, era praticamente livre da ‘Leaf Disease’ e ‘Lace Bug’. ” (p.105). Estes
fatores poderiam ter o efeito do encarecimento dos custos de implantação dos seringais,
mas não significavam a impossibilidade do retorno do capital investido.
Considero que os processos aqui discutidos não são excludentes, certamente o
ataque dos fungos e os demais problemas ambientais que o cultivo racional da
seringueira acarretava representavam uma dificuldade para as plantações da Ford,
especialmente porque estes não foram considerados desde o início, o que levou a
empresa a ter que tomar providências somente depois da infestação dos seringais. Tal
descaso não se justifica uma vez que Ford conhecia, desde o início os relatórios da
American Rubber Mission, nos quais Weir já destacava esta possibilidade. Esta
dificuldade e os custos adicionais que ela representou devem ter tido um peso
considerável quando a matriz resolveu desfazer o contrato de concessão, devolvendo as
terras para o governo brasileiro.
Em relação aos trabalhadores a questão, a meu ver, era mais crítica: a
Companhia não só carecia de mão-de-obra suficiente, como também havia uma grande
rotatividade entre os funcionários. Embora este fato não representasse uma novidade
para a Ford, que tinha o mesmo problema em Detroit, na Amazônia esta rotatividade era
mais danosa, uma vez que lá a empresa não tinha como repor os trabalhadores que a
deixavam. Considero que um dos fatores responsáveis por esta repulsa, e até mesmo
pela não apresentação de candidatos ao emprego na Companhia, eram as regras
extremamente rígidas no controle da força-de-trabalho, que se iniciavam no momento
da contratação e passavam pelo cotidiano de Fordlândia e de Belterra.

142
O texto da epígrafe deste capítulo adquire, então, seu pleno significado: se
trocarmos Deus por Ford, veremos que este foi derrotado pelo mato, tanto no sentido
deste como floresta, que possui o seu equilíbrio natural cujas alterações são altamente
danosas, quanto pelo sentido de que este mato representa uma área onde há uma
imensidão de terras livres que podem ser apropriadas por quem se dispuser a ocupá-las.

143
CAPÍTULO VI

OS TRABALHADORES DA COMPANHIA FORD


INDUSTRIAL DO BRASIL

“Corremos o perigo de esquecer que o sujeito e o objeto de nossas pesquisas são seres

humanos? Não deveríamos correr este risco, pois são pessoas - não o ‘trabalho’, mas

homens e mulheres reais (...) - o que nosso estudo focaliza. Para muitos de nós o objeto

final de nosso trabalho é criar um mundo no qual os trabalhadores possam fazer sua

própria vida e sua própria história, ao invés de recebê-las prontas de terceiros (...).”

(HOBSBAWM, E.J. História Operária e Ideologia. In: ___.Mundos do Trabalho

2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988)

144
OS TRABALHADORES DA COMPANHIA FORD INDUSTRIAL DO
BRASIL

Fordlândia e Belterra: dois lugares idílicos, à beira de um rio majestoso, uma


Companhia que pagava em dinheiro a cada quinze dias e que nunca atrasou um único
salário, casas, hospital e escola para os trabalhadores, afinal, quem seriam estes? De
onde vieram? Como vivenciaram a experiência de trabalhar para a Ford? Aliás, para a
“For”, como é o falar local.
Estas perguntas não têm respostas simples, há um longo intervalo de tempo que
percorre a memória dos antigos trabalhadores da Companhia e a documentação destes
não é facilmente localizável. Desde a primeira viagem para a área, em 1993, indaguei
sobre a documentação dos empregados, recebendo somente respostas negativas.
Somente em 1997 é que pude localizar parte desta documentação no escritório do
Ministério da Agricultura, em Santarém, no Pará. Certamente não havia lá todos os
registros e não é possível, a partir deles, retirar conclusões definitivas. Entretanto,
algumas pistas podem ser descobertas na análise dos mesmos.
O primeiro fato que chama a atenção é o de que a Companhia, também no que se
refere à documentação dos empregados, tinha um controle rigoroso, havendo um
envelope, chamado “record of employee” (registro de empregado) no qual eram
arquivados todos os papéis que se referiam à vida funcional de seus trabalhadores.
Estes envelopes continham diversos documentos, tais como o recibo de
conclusão de serviços; o exame médico - realizado a cada vez que o trabalhador se
engajasse a serviço da empresa -; a autorização para trabalhar dada pelos pais ou
responsáveis - no caso de menores de idade -; as transferências de setor; os recibos de
férias; as recomendações para mudança de salário e um impresso com o nome de
“Descarga de Ferramentas”, no qual o capataz conferia a devolução das mesmas cada
vez que o empregado fosse se ausentar, por dispensa ou por férias. É importante
ressaltar que a não devolução das mesmas implicava no ressarcimento de determinada
quantia à empresa.
Entre esta documentação também foram encontrados memorandos internos com
o título “Não se acceitam instrucções verbaes”, nos quais se dava as diferentes ordens
relativas aos empregados, seja transferência, ou, como no caso da senhora Luiza
Ferreira Souza, recomendando que seus filhos fossem admitidos na creche da

145
Companhia, conforme anexo 1 com a documentação da empregada no “tempo dos
americanos”..
A senhora Maria Doralice Pereira, cujos pais trabalhavam para a Companhia
Ford, lembra deste fato, que provavelmente ocorreu quando seu pai foi demitido pelo
uso de bebidas alcoólicas:
“Porque naquele tempo do Ford não é hoje. Naquele tempo do Ford, até
prá chamar a atenção não era nem falado, era escrito, deixava lá no cartão
de ponto prá ir lá no escritório comparecer. E o papai bebia cana, e foi lá
naquele castanhal, não sei se vocês sabem, aí ele tava capinando, aí ele
chegou lá, o mestre Eduardo, era americano, chegou lá, falou que não tava
bem feito o serviço. Aí papai foi e jogou a enxada, se ele quisesse fazer
bem, que fosse fazer. Aí foi, foi lá direto no escritório prá poder entregar
umas, as ferramenta, a chapa e ir embora.”
O documento de conclusão do serviço continha um relatório do capataz que
anotava se o trabalhador havia se demitido, ou se havia sido despedido. No caso da
primeira hipótese, havia a questão: desejaria que o homem voltasse? , a ser respondida
pelo responsável. Além disso, o verso invariavelmente continha a frase “Deixo os
serviços da Companhia por minha livre e espontânea vontade”, escrita e assinada pelo
próprio empregado, no caso de este ser alfabetizado. Nos campos das assinaturas a
serem apostas no documento um era destinado ao gerente e o outro continha a inscrição
“Escrit. Dearborn” ! Embora este último campo raramente contivesse assinatura, mais
uma vez a idéia de enclave se reforça: os escritórios da matriz deveriam estar cientes
dos empregados que deixavam os serviços da Companhia na Amazônia.
A ficha do exame médico continha uma avaliação em que se relatava a
ocorrência de paludismo, sífilis, gonorréia, epilepsia, desinteria, úlcera, pneumonia e
queimaduras, bem como outras doenças ou cirurgias sofridas pelo candidato. Ao final, o
médico classificava se o mesmo estava apto a trabalho pesado, moderado ou leve.
Conforme já foi descrito, a aprovação no exame médico era a primeira condição para o
empregado ser admitido. Outro fator a ser considerado era o fato de ele já ter trabalhado
para a Companhia, quando deveria ser verificada a anotação de sua ficha anterior para a
verificação da existência ou não de restrições anotadas pelo capataz.

146
A análise dos documentos chama também a atenção para o fato de que a
Companhia contratava menores de idade e mulheres 22, embora os salários destes fosse
diferente daquele dos homens maiores de idade. Estas contratações resolviam duas
questões, de um lado servia para diminuir o problema da falta da mão-de-obra, de outro,
diminuíam o custo da folha de pagamentos.
Entre a documentação pessoal dos trabalhadores, nem todos os registros parecem
ser tão organizados. O senhor Antonio Francisco da Silva, entrevistado em Fordlândia
em julho de 1997, afirma que a Companhia exigia de seus trabalhadores o certificado de
alistamento militar e que, para tirar este documento, ele teve que virar “filho do Pará”:
“Eu nasci, meus documento(sic) tá aqui do Pará, mas eu nasci dentro de
Mato Grosso. Eu sou de Mato Grosso, agora é, porque entrei prá cá,
naquele tempo havia muita dificuldade aquele negócio de documento, não
tinha, não se usava. E foi preciso tirar o alistamento militar, que eu entrei
aqui, me alistei, e o americano exigia que todos tivessem o alistamento
militar. Então, tirei já como fosse filho daqui, daqui do Pará. (Risos)
Porque ia dar rolo, meu pai morreu, eu não conheci mãe, meu pai morreu,
os filho (sic) pequeno(sic), aí a irmã mais velha ficou com os documento
(sic), registro, essas coisa (sic). Cupim deu e a casa pegou fogo, queimou
tudo, naquele tempo eles nem exigiam documento prá nada. Ninguém fazia
acordo, ninguém fazia nada. Então eu entrei assim, na marra, mas depois o
americano exigia que todos os empregado (sic) tinha que ter o alistamento
militar. Aí, prá não haver confusão, que era preciso, pro tabelião me disse:
se eu for fazer a busca o senhor não tem dinheiro prá me pagar, eu vou
fazer a busca em Itaituba e de lá eu vou fazer no Mato Grosso, se achar
logo é fácil, senão, cada folha de livro você vai pagar mil réis, naquele
tempo era mil réis.”
E foi assim que um mato-grossense virou paraense para poder trabalhar para a
Companhia! O seu relato mostra ainda que não havia grande preocupação em se guardar
os documentos, que aquilo não era valorizado, a não ser neste caso de alistamento na
Ford, que exigia tais papéis.
Esta falta de preocupação com o registro civil também foi discutida pelo jornal A
Cidade, de 9 de fevereiro de 1930, quando o articulista comenta que os pais não se

22
Womack (1992), afirma que o emprego de mulheres nas indústrias automibilísticas européias e norte-
americanas só se deu após a Segunda Guerra Mundial.(p. 19)

147
preocupam do registro dos filhos, dando o seguinte exemplo: “O Registro Civil de
Santarém demonstra 54 nascimentos em 1928, no mesmo ano foram levadas à pia
batismal 1.156 crianças. Feito o desconto dos que nasceram em anos anteriores,
possivelmente registrados em cartório, ainda fica muito ‘pano para mangas...’”. Tal
fato teria origens antigas, sendo que os pais apenas se preocupavam em batizar seus
filhos para evitar que eles se tornassem pagãos, sem se importar com a documentação
legal. Embora a separação do registro civil e religioso tivesse sido operada com a
implantação da República em 1889, este evento ainda não repercutira na população de
Santarém e parece que nem nas suas adjacências porque o artigo comenta que o mesmo
acontecia em Óbidos.
Entre a documentação encontrada no Ministério da Agricultura havia também
uma folha grande, tamanho ofício, na qual constava uma foto do empregado e seus
dados de identificação como número de ordem, número da carteira profissional, filiação,
etc. A análise destas fichas mostra que, possivelmente, ela foi implantada a partir de
1936, porque as que possuem data anterior mostram divergência entre a data de
admissão, a idade do empregado e sua data de nascimento.
Nestas fichas é possível verificar, tomando o ano de 1944 como referência, as
diferenças salariais entre os menores de idade, as mulheres e os homens, para a
categoria “Lavrador - Classe C”. Até a idade de 16 anos, as moças e os rapazes
ganhavam Cr$0,50 por hora; com 17 anos este valor subia para Cr$ 0,625 e aos 18 anos
eles passavam para o salário final, que era diferenciado: para as mulheres era de Cr$
0,75 e para os homens era de Cr$ 1,125, também por hora, conforme se pode observar
no anexo 2. Estes salários são os menores encontrados para esta função, embora no
mesmo período possam ser encontrados salários pouco maiores para a mesma função,
contudo tais ocorrências são menos freqüentes.
As mulheres que trabalhavam na Companhia, segundo o relato dos seus antigos
trabalhadores, não gozavam de nenhum privilégio, tampouco de licença-maternidade,
tendo que retornar logo após o parto, se quisessem receber. A senhora Maria Doralice
Pereira, em entrevista em Fordlândia em julho de 1997, contou sobre uma doença que
sua mãe adquiriu, cujo nome não consegui entender, mas por causa da qual ela teve que
deixar a Companhia:
“Naquele tempo tanto fazia estar de parto, como estar menstruada, não
tinha chuva, não tinha sol, minha filha, não tinha. O dia que passava mais
dia em casa era quinze dias, depois do parto. Aí era pará a chuva prá ir lá

148
pelo campo. Eu acho que aquela doença ela adquiriu foi nesse campo, não
é? ... Não, naquele tempo essas doença feia assim, não ficava aqui não. ...
Mandaram embora, tinha que ir embora. Tinha uns que queimavam até a
casa, aquela doença que cai os pedaço, os dedo, tudo em ferida. Aquela eles
queimavam a casa. Eu te digo porque lá no Cauacepá tinha uma vila assim,
uma mulher adoeceu, mandaram ela embora também. Quando a mulher
saiu botaram fogo na casa. Naquele tempo do americano era desse jeito.”
As medidas profiláticas que os americanos tomavam para evitar o contágio de
outras pessoas eram bastante rigorosas, ao que parece. A contrapartida desta situação
pode ser vista no editorial de A Cidade, do dia primeiro de junho de 1929, quando o
autor se referia aos doentes que chegavam a Santarém, provenientes de Fordlândia e
eram socorridos pela caridade pública.
O pagamento era feito quinzenalmente, poucos eram os mensalistas e entre estes
não se encontrava nenhum trabalhador do campo. Tal diferença pode ser notada no
traçado urbano de Belterra: a Vila Mensalista ficava bem na estrada 1, a mais central,
próxima ao “cercado”, - onde se localizavam o escritório e o almoxarifado -, que ficava
defronte à praça principal onde se localizam a igreja batista e a católica. Nesta vila todas
as casas eram de madeira, com uma varanda na frente. As casas destinadas aos
trabalhadores, em Belterra, eram espalhadas pelas quadras e eram de palha.
Em relação à origem destes trabalhadores pode-se construir a tabela número 2:

149
TABELA 2 – Origem dos trabalhadores da Companhia Ford Industrial do Brasil
Nascidos no Não nascidos no
ANOS TOTAL HOMENS MULHERES Pará Pará

1937 68 68 - 46 (68%) 22 (32%)

1938 76 75 1 54 (71%) 22 (29%)

1939 205 173 32 165 (80%) 40 (20%)

1940 264 212 52 234 (89%) 30 (11%)

1941 199 146 53 175 (88%) 24 (12%)

1942 217 176 41 163 (75%) 54 (25%)

1943 279 241 38 119 (43%) 160 (57%)

1944 820 570 250 431 (53%) 389 (47%)

1945 859 613 246 532 (62%) 327 (38%)


Fonte: Ministério da Agricultura, Santarém /PA
Org. Elaine Lourenço

A tabela permite visualizar que a maior parte das contratações do período se deu
justamente nos últimos anos em que os americanos controlavam a concessão e que a
partir da década de 40, especialmente de 1943, aumenta significativamente o número de
trabalhadores que vem de outros estados que não o Pará. As fichas demonstram um
grande número de cearenses, em particular no ano de 1944, quando 225 trabalhadores
vêm deste estado, totalizando 58% dos não-paraenses. Uma hipótese levantada para
explicar este fato seria a existência de uma estrada de ferro que ligava Fortaleza a Crato,
naquele estado. No entanto, apenas 52 pessoas seguiram esta rota, o que totaliza apenas
23% dos migrantes cearenses. Além disso, há uma grande imprecisão das localidades
citadas, algumas cidades que constam como pertencentes ao Ceará, como Areia Branca,
Riachuelo, Santana do Mato, são localizadas no Rio Grande do Norte e a cidade de
União, de onde chegaram 36 pessoas só pode ser localizada no Piauí. Desta forma, nem
todos os cearenses teriam de fato vindo do Ceará!
Uma hipótese que pode ser levantada aqui é a de que, tal como indicava o
relatório da American Rubber Mission, os americanos também consideravam os
cearenses como bons trabalhadores e acabavam por localizar neste estado cidades que
não lhes pertencia, ou ainda que isto quisesse refletir o esforço de Johnston, que
segundo o citado relatório do cônsul americano, havia visitado este estado em busca de
trabalhadores. A própria imprensa de Santarém, conforme discutido no segundo

150
capítulo, também valorizava os cearenses, tidos como povo afeito aos sofrimentos e que
se adaptava muito bem à Amazônia. Tudo leva a crer que houvesse uma mitificação em
torno destes migrantes, considerados salvadores frente à escassez de trabalhadores da
região dispostos a se tornarem assalariados.
O fato de que houvesse um grande número de nordestinos empregados em
Fordlândia e em Belterra não impediu a discriminação destes, chamados de arigós.
Segundo o dicionário Aurélio (1995), esta palavra é assim designada: “cassaco, o
indivíduo rústico, matuto, caipira. A segunda definição já mostra que a valoração da
palavra é negativa, uma vez que a nossa cultura tem o caipira como um elemento
inferior, incapaz de progredir, lembrando a figura do Jeca Tatu, criada por Monteiro
Lobato. As três definições de cassaco, todas relacionadas ao Nordeste, são ainda mais
esclarecedoras: “gambá, trabalhador de construção de estradas; trabalhador de
engenhos e usinas de açúcar.” Desta forma, o arigó seria o indivíduo de mau cheiro,
que se ocupava de profissões pouco valorizadas, como as da construção civil.
O senhor Miguel Xavier Nogueira, ficou conhecido na região como Miguel
Arigó, e quando perguntei a razão deste nome ele me disse que tal palavra lembrava um
pássaro que andava em bandos, e que por isso as pessoas que chegavam às plantações
da Ford, em grandes levas, ficaram assim conhecidas. Miguel era cearense, tendo vindo
de Fortaleza junto com 740 pessoas que embarcaram rumo a Ford. Esta divergência
entre a definição dada pelo dicionário e a do antigo trabalhador da Companhia, pode
indicar uma tentativa de tentar ocultar este preconceito existente na área da concessão.
A idéia desta grande leva de migrantes também ficou na memória do senhor
Hilário Branco Pedroso, que afirmou: “Não, vinha do Nordeste. Chegou uma tonelada
de gente de fora daqui.”
A existência destas contratações posteriores a 1942 entra em contradição com a
tabela 9 do trabalho de Costa (1993), que não mostra nenhuma alteração no número de
trabalhadores após este ano. De qualquer modo, não refuta sua tese de que os
trabalhadores que a Companhia possuía eram em número insuficiente para garantir-lhe
o retorno do investimento desejado.
Esta dificuldade de estabelecer o número real de empregados que a empresa
possuía a cada momento pode ser explicada, ao menos em parte, pela enorme
rotatividade entre os trabalhadores. Considerando as fichas de registro e verificando o
número daqueles que foram admitidos após 1937 e deixaram a empresa ao menos uma

151
vez, tendo ou não retornado, até 31 de dezembro de 1945, quando a concessão passou
para o governo brasileiro, tem-se a seguinte situação:

TABELA 3 – Rotatividade dos trabalhadores da Companhia Ford Industrial do Brasil


Total de Trabalhadores que deixaram a
ANOS Trabalhadores Cia antes de 31.12.45
1937 68 20 (29%)
1938 76 26 (34%)
1939 165 101 (61%)
1940 264 154 (58%)
1944 820 580 (71%)
Fonte: Ministério da Agricultura – Santarém/PA
Org. Elaine Lourenço

Estes números permitem visualizar a enorme rotatividade existente no quadro de


pessoal da Companhia, mostrando que havia anos em que mais da metade dos
trabalhadores engajados pedia dispensa, às vezes não retornando nunca mais, outras
vezes voltando algum tempo após sendo “reengajado”, no caso de não haver restrições
em sua ficha.
As idades dos trabalhadores também variavam muito, embora a maior parte
deles estivesse na faixa entre 18 e 35 anos, pude encontrar entre as fichas duas
contratações de trabalhadores com 68 e com 70 anos, admitidos em 1944, como vigia e
como lavrador classe C, respectivamente, conforme anexo 3.. Estas duas contratações,
de pessoas tão idosas, como também a grande quantidade de menores e de mulheres
admitidos podem reforçar a teoria de que havia uma escassez de trabalhadores na
Companhia, que era obrigada a admitir quem se apresentava, tendo como única restrição
a má condição de saúde, que impediria a pessoa de produzir o que dela se esperava,
além de onerar o serviço de saúde da empresa.
A distribuição dos trabalhadores por faixa etária representa a seguinte tabela:

152
TABELA 4 – Faixa etária dos trabalhadores da Companhia Ford Industrial do Brasil
ANOS FAIXA ETÁRIA
1937 Menores de 18 anos: 02
18 a 35 anos: 55
Mais de 35 anos: 11
1938 Menores de 18 anos: 01
18 a 35 anos: 58
Mais de 35 anos:17
1939 Menores de 18 anos: 22
De 18 a 35 anos: 148
Mais de 35 anos: 35
1940 Menores de 18 anos: 19
De 18 a 35 anos: 211
Mais de 35 anos: 34
1944 Menores de 18 anos: 106
De 18 a 35 anos: 587
Mais de 35 anos: 127
Fonte: Ministério da Agricultura – Santarém/PA
Org. Elaine Lourenço

O engajamento de estrangeiros também era aceito e nestes anos relacionados


também alguns deles começaram a trabalhar para a empresa. Estas contratações, aliadas
ao fato da empresa ser de origem norte-americana, com a maior parte de seus dirigentes
falando inglês, reforça a imagem que o senhor Eimar Franco usa em suas memórias que
descrevem Fordlândia como uma “Babel”. Possivelmente nem todos americanos
chegaram a aprender o português porque o senhor Emyr Bermenguy, nascido em
Belterra, e por mim entrevistado em julho de 1993, relata que o seu pai, um autodidata,
trabalhou durante muitos anos como intérprete dos americanos. O resumo destas
contratações de estrangeiros no período é representado a seguir:

153
TABELA 5 – Contratação de estrangeiros pela Companhia Ford Industrial do Brasil
ANOS ESTRANGEIROS CONTRATADOS
1937 Holanda: 2
Peru: 1
Portugal: 1
1938 EUA: 01
França: 01
China: 01
1939 Síria: 01
1940 Barbados: 01
Venezuela: 01
1944 Bolívia: 01
Portugal: 01
Trindade (Britânica): 01
Barbados: 01
Fonte: Ministério da Agricultura – Santarém/PA
Org. Elaine Lourenço

Estes estrangeiros eram contratados para todas as áreas. O chinês, por exemplo,
foi contratado como cozinheiro!
Uma passagem engraçada, mas bastante significativa para marcar o que devia
ser o encontro de línguas e de culturas tão diferentes, é narrada pelo senhor Eimar da
seguinte forma:
“Em outra ocasião, um operário deixou de comparecer ao guichê no dia do
pagamento e, quando isso acontecia, o faltoso tinha que ir ao escritório
justificar a sua ausência para poder receber o seu salário. O caboclo foi e
disse ao americano que lá estava que não havia recebido o seu pagamento
por causa do grande “fecha-fecha”. O americano ficou sem saber o que
fazer e assim resolveu mandar o operário para o hospital. Lá, foi atendido
pelo médico, também americano, ao qual repetiu a sua estória. Este pensou,
pensou e acabou mandando internar o “paciente”, sem que o mesmo tivesse
a menor idéia do que estava acontecendo. Por sua vez, o médico, depois de
folhear seus livros de doenças tropicais em vão, resolveu apelar para seu
colega brasileiro, para saber que diabos de doença era aquela tal de
“fecha-fecha”. O brasileiro também estranhou e foi procurar o caboclo na
enfermaria que então lhe explicou que ele não sentia nada e que não

154
recebera o pagamento devido à grande aglomeração havida na hora, ou
seja, ao grande “fecha-fecha”.
Desta forma, entre confusões e acertos, a vida cotidiana de Fordlândia e de
Belterra se desenrolava em situações não previstas pelo “manual do fordismo” que os
americanos possuíam quando lá aportaram, e que a cada dia parecia mais inadequado.
Certamente, diante de tais casos, pode-se concordar com os cônsules norte-americanos
que ressaltavam em seus relatórios que os dirigentes da Companhia não eram capazes
de entender os caboclos. Até mesmo nas expressões do dia-a-dia parecia haver um
abismo a separar estas culturas tão distintas, como mostra a estória a seguir, também
integrante das memórias do senhor Eimar:
“Os americanos, como já disse, construíram uma pequena estrada de ferro,
destinada a transportar madeira para a serraria e lenha para as caldeiras
que forneciam energia para suas máquinas e, não sei porque, os caboclos
apelidaram a locomotiva de “porca”. Talvez porque ela fungava e vivia
sempre coberta de lama. Pois bem, certa vez um operário caiu de um dos
vagões sofrendo escoriações e foi levado para o hospital. Lá chegando foi
atendido pelo médico americano que perguntou-lhe qual a causa do
acidente, obtendo como resposta do próprio operário que ele havia caído
da “porca”. Essa revelação irritou o médico que, indignado, perguntou-
lhe: - Você é doido? Como é que vai montar numa porca? O médico
brasileiro que passava na ocasião explicou então que não se tratava de uma
porca real, e sim da locomotiva.”
Estes dois mundos não se confrontavam apenas nestes incidentes, havia uma real
separação entre os trabalhadores e a direção da Companhia que se pautava nos
princípios do taylorismo e do fordismo, como já foi discutido anteriormente. Esta
oposição não se dava somente nos movimentos de reivindicações dos trabalhadores,
mas também é revelada nas memórias relatadas por seus antigos trabalhadores que pude
entrevistar em 1993, 1995 e 1997.

155
Os trabalhadores da Companhia Ford Industrial do Brasil e suas diferentes
formas de resistência

A Companhia Ford Industrial do Brasil se destacava, em relação ao processo de


produção, de toda as adjacências. De um lado, encontramos ainda o sistema de barracão,
característico do auge da exploração da borracha, em que predominavam relações de
exploração muito intensas, com uma subordinação direta do trabalhador que se sujeitava
a longos períodos de internação na mata, recolhendo o látex a ser trocado pelos gêneros
de primeira necessidade. Neste esquema não havia o pagamento em dinheiro, muito
menos assistência médica, escolas e moradias.
A pequena propriedade camponesa, que mesclava a agricultura de subsistência
com o extrativismo da floresta, a caça e a pesca, também era encontrada na região,
inclusive em áreas da concessão, conforme relata Costa (1993). Segundo este autor, em
1931 e em 1942 foram enviados relatórios para os Estados Unidos, noticiando a
existência de pequenos lavradores em terras da concessão e sugerindo que estes fossem
aproveitados no sentido de fornecerem alimentos para as plantações. Na segunda carta,
escrita por Johnston, há inclusive a sugestão de um sistema em que a Companhia
permitiria o uso de “suas terras”, e que, em troca, estas pessoas poderiam vir a ser
empregados da empresa. Em ambos os casos, os missivistas sugerem que havia um
interesse por parte do governo do estado do Pará em aclarar títulos de terra. A conclusão
do autor é que ou as pessoas ocuparam as terras após a instalação da Ford, ou elas já lá
estavam quando isto se deu, o que considerou como o mais provável.
As memórias do senhor Eimar Franco também discutem este assunto: o seu pai
era proprietário das terras da outra margem do rio, em um lugar chamado Urucurituba, e
lá também os caboclos tinham a permissão de se instalar, sem a necessidade de pagar
por tal benefício. O proprietário apenas considerava que aquelas pessoas podiam ser
úteis quando houvesse a necessidade de braços adicionais para sua lavoura.
O senhor Francisco Franco, pai de Eimar, era prefeito de Aveiro na época da
instalação da Companhia e foi convidado por diversas vezes para ser funcionário da
mesma. Segundo seu filho, ele não aceitava tal encargo porque considerava que ele era
o único que podia defender os caboclos frente à pressão que a empresa fazia para que
eles deixassem suas roças e se empregassem na mesma. Apesar disto, as relações com
os primeiros administradores da Companhia tinham sido amigáveis e o grande
adversário de Francisco era o interventor do Pará, major Magalhães Barata, que era seu

156
adversário político, tendo cassado o seu mandato de prefeito. Possivelmente esta
rivalidade tenha tido um peso no processo de desocupação da Vila Franco.
A Vila Franco situava-se em um lugar em frente a Urucurituba, chamado
inicialmente de Pau d’Água, que ganhou este nome porque todos os dias, entre 11 e 14
horas chovia no lugar, independentemente da estação do ano. Segundo Eimar, mesmo
com o desmatamento promovido pela Ford este fenômeno climático não deixou de
ocorrer. A área, pertencente a Francisco Eimar, era alugada pelo mesmo para os
trabalhadores da Ford, que lá dispunham de casas com quintal e horta, onde podiam
criar animais e plantar hortaliças, coisas que não eram permitidas na concessão. A
ascensão do major Barata ao governo do Pará, fez com que este pressionasse para que as
terras fossem vendidas para a Ford, alegando que o lugar era habitado por meretrizes,
constituindo uma ameaça para a região. O senhor Eimar, no entanto, tem outra
explicação para o fato:
“O motivo real, porém, foi bem outro. Pau d’Água ou Vila Franco, era um
enclave dentro das terras da concessão Ford e meu pai havia se recusado a
vendê-lo a Ford, nem só porque a mesma lhe rendia uma certa quantia
mensal, mas, principalmente, porque ali, naquele pequeno território, as
pessoas podiam desfrutar de uma liberdade que nas vizinhanças lhe era
negada, tal como, criar, plantar, cultivar pequenas hortas, etc.
A Companhia Ford dava tudo mas, até certo ponto, limitava a liberdade e
isso parecia a meu pai uma afronta e, talvez por isso mesmo, jamais aceitou
qualquer cargo naquela empresa.” (Grifos meus)
Há diversos pontos a serem ressaltados neste relato: primeiro a confirmação de
que havia posses anteriores na área da concessão e que o governo do estado, pelo menos
neste caso, pressionava no sentido de confirmar a concessão dada à Companhia. Em
segundo lugar, o que chama a atenção é que, fossem quais fossem os motivos do senhor
Francisco em não entregar sua posse, o seu filho enxerga aquele local como um enclave
dentro da própria Companhia! Desta forma, as plantações da Ford, que se destacavam
em toda as adjacências por suas características originais, possuía em seu seio um
“território de liberdade”, no qual vigoravam as relações tradicionais de ocupação e
pagamento de renda.
Este episódio ilustra um pouco como se davam as relações da Companhia com o
seu entorno, em especial com os grandes proprietários. Junto a este fato, um outro
serviu para dificultar as relações entre os Franco e a empresa, quando Francisco

157
permitiu que em suas terras fosse instalado um sindicato de trabalhadores, o que
desagradou a Johnston, que veio a cortar relações com a família.
A existência de um sindicato ou associação de trabalhadores nas plantações da
Ford é assunto extremamente controverso, salvo esta passagem das memórias do senhor
Eimar e um relato do senhor Miguel Guimarães Souza, este assunto não é mencionado
em outras fontes. O próprio senhor Miguel, na primeira vez, afirma que tal tipo de
associação nunca existiu, somente depois, em entrevista realizada em julho de 1993, ele
afirma que um francês, que trabalhou como maquinista dos trens, tentou formar um
sindicato, sendo dispensado pelos americanos, que não viam com bons olhos tal
iniciativa.
O próprio presidente Getúlio Vargas, em visita à Amazônia em outubro de
194023, quando esteve em Belterra, não fez qualquer restrição ao cumprimento das leis
trabalhistas, ao contrário, elogiou muito o empreendimento, ressaltando que os salários
pagos pela Ford eram superiores ao salário mínimo nacional. A única ressalva feita pelo
chefe de Estado foi quanto à inexistência de uma creche, no que foi comunicado por
Barrunteis, representante enviado por Ford para recebê-lo, que esta seria construída pela
empresa. Ao discursar para os trabalhadores, no final da tarde, o presidente anunciou a
novidade.
Os jornais da Amazônia noticiaram amplamente o fato, e a Folha do Norte, do
Pará, anunciou que “ansiosos para conhecer o chefe do governo brasileiro, as
autoridades e parte da população de Santarém deixaram a cidade e foram ao encontro
de Sua Excelência em Belterra.” Tal fato dá uma dimensão da importância do
empreendimento da Ford, uma vez que a visita foi restrita à área da concessão: as
próprias autoridades de Santarém, que é uma das maiores cidades da Amazônia, tiveram
que se deslocar para receber o “maior dos brasileiros vivos”, conforme designação dada
pelo jornal O Imparcial, também da capital paraense.
A visita de Vargas também faz parte das memórias do senhor Raimundo
Miranda, que a relatou na primeira entrevista que fiz com ele, em julho de 1993:
“Eu não estou lembrado a data que ele veio, eu só lembro que ele chegou mais
ou menos às onze horas e veio de barco e foram buscá-lo num lugar chamado Pindobal
e nós fomos esperar ele no caminho. Estava cheio de gente esperando Getúlio Vargas

23
A respeito da visita de Vargas à Amazônia, consultar CABREIRA, M.M. Vargas e o rearranjo
espacial do Brasil: A Amazônia Brasileira - Um estudo de caso. São Paulo, 1996. 128p. Dissertação
(Mestrado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de
Geografia, Universidade de São Paulo.

158
chegar. Mas as autoridades assim tem seguro. Então o primeiro carro que subiu na
serra, nós suspendemos e carregamos e não era ele. Porque você sabe muito bem que
uma autoridade não vai de primeira, ele veio no terceiro carro prá ninguém saber.
Quando foi à noite teve guarda a noite inteira guarnecendo, rodeando o prédio que ele
ficou.”
A estória que o senhor Miranda conta é significativa por mostrar como esta
visita era tão importante que reforçava as normas de segurança da Companhia, que já
eram muitas. Além disso, mostra que deveria ter chovido anteriormente porque, a
despeito da boa conservação em que as estradas eram mantidas pela Ford, os
trabalhadores tiveram que suspender o carro.
A inexistência de sindicatos e de restrições por parte do governo federal não
significam, contudo, que os trabalhadores não contestassem as relações de trabalho
introduzidas, bem como os novos padrões de comportamento e disciplina trazidos pela
Companhia.
Em estudo publicado na Revista Brasileira de História, em 1984, com o
sugestivo título Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao imaginário
acadêmico, Sader, Telles e Paoli analisam a produção acadêmica, a partir dos anos 60,
identificando que os paradigmas então colocados, buscavam a existência de uma
identidade de classe, questionando o poder dos sindicatos, vistos como órgãos do
Estado e, portanto, como limitadores de sua ação social. No entanto, a partir de 1978,
uma nova produção acadêmica começava a surgir, que buscava ressaltar os operários
como sujeitos políticos, realizando uma ruptura com o modelo anterior. Nesta nova
concepção:
“... os trabalhadores urbanos não são mais exclusivamente o operariado
organizado, embora continuem a ser, de todos os modos, priorizados; são
sujeitos sociais que se expressam em múltiplas dimensões, com formas de
vida própria, estratégias de vida caracterizáveis, definindo-se a cada
momento em seu local de moradia, de trabalho, nas suas formas de lazer,
de religiosidade, de saber. São sobretudo, sujeitos de práticas diversas que
recobrem os vários campos de sua experiência, que se constituem na luta
contra opressões específicas, não redutíveis a um único lugar dado pelo
Estado fundador de uma dominação de classe unívoca e homogênea e que
produzem, portanto, a imagem de sujeitos múltiplos, que não se subordinam

159
a uma figuração única, para ganhar uma visibilidade que confira
significado político às suas práticas.”(p.149)
O texto coloca a produção acadêmica relativa aos trabalhadores urbanos, mas é
possível pensar também nos trabalhadores rurais das plantações da Ford, uma vez que
esta, entre outras peculiaridades, traz relações de produção características das fábricas
para a sua concessão na Amazônia. Desta forma, é nesta perspectiva, de múltiplas
formas de resistência dos trabalhadores da Companhia, encarados como sujeitos, que é
possível encontrar algumas formas de contestação destes. De um lado, há a questão do
problema da mão-de-obra, que poderia, entre outros motivos, ser atribuído a uma forma
de resistência em se tornar empregado de uma empresa com normas tão rígidas. De
outra parte, há movimentos reivindicatórios característicos especialmente da primeira
fase da implantação da Ford, quando estas normas diferenciadas começam a tomar
forma. Posteriormente, com o desenvolvimento dos trabalhos, tal resistência pode ser
encontrada na enorme rotatividade entre os empregados, que, possivelmente, não viam
com bons olhos a perspectiva de “fazer carreira” na empresa, trabalhando na mesma até
sua aposentadoria.
O primeiro incidente que se tem notícia foi o que ocorreu já em novembro de
1928, noticiado pelo jornal A Cidade, e já comentado no segundo capítulo deste
trabalho. Na ocasião, o líder do movimento afirmou que a causa do movimento foi a má
alimentação fornecida pela Companhia.
No início de 1929 também houve os incidentes entre os brasileiros e os
barbadianos que culminaram com a repatriação destes. A vinda destes imigrantes já era
uma tentativa da empresa de resolver o problema da mão-de-obra, mas a resistência dos
brasileiros em aceitá-los deve ter sido maior que as necessidades de mão-de-obra,
havendo o recuo da gerência. O fato que desencadeou a revolta dos brasileiros deu-se na
fila do pagamento dos salários, quando um barbadiano feriu um trabalhador nacional,
bastante idoso, o que gerou a revolta destes que exigiram soluções imediatas.
Uma outra greve teve lugar em Fordlândia em 13 de agosto de 1929 e se
encontra no relatório do tenente-coronel Luiz Guedes de Oliveira, da Força Pública
Militar do Pará, enviado em 5 de abril de 1930 para o secretário-geral daquele estado.
O tenente-coronel foi sub-prefeito de polícia de Boa Vista entre 14 de agosto de
1929 e 21 de abril de 1930, tendo presenciado a referida greve que se iniciou na tarde do
dia 13, quando lá chegou por volta das onze e meia da noite. Na ocasião havia cerca de
2.000 trabalhadores na empresa e por volta de 200 haviam aderido ao movimento, que

160
continuava crescendo. As reivindicações dos trabalhadores eram o aumento salarial de
cinco mil réis diários para oito mil e a melhoria da comida servida que era considerada
péssima.
A autoridade policial procurou os trabalhadores, afirmando que “o chefe do
Estado confiando na índole ordeira dos brasileiros mantinha ali apenas um
destacamento de duas praças. É que S. Excia., dizia eu, vê em cada operário ou
trabalhador, na Fordlândia, um mantenedor da ordem pública.” Segundo seu relato, o
discurso surtiu efeito, fazendo com que os trabalhadores retornassem ao trabalho apesar
da gerência da Companhia não ter feito nenhuma proposta de resolução das questões
apresentadas. O único compromisso que esta ofereceu foi a construção de moradias para
as famílias dos empregados, deixando para o futuro a possibilidade de aumento salarial.
Na ocasião, apenas 47 empregados deixaram a empresa, por sua própria vontade.
A última grande greve que se tem notícia em Fordlândia aconteceu naquele
mesmo ano, no dia 22 de dezembro e ficou conhecida como “Quebra-Panelas”. O
motivo alegado foi que a Companhia resolveu implantar, no refeitório, o sistema de
bandejões, acabando com o sistema anterior, no qual os trabalhadores eram servidos à
mesa. Os trabalhadores invadiram o refeitório, quebrando tudo que encontraram pela
frente e, saindo dali, continuaram o quebra-quebra no porto, no abatedouro, na central
de comunicações, etc. Assustados com a violência, os americanos se refugiaram nas
embarcações, enquanto uma delas seguia para buscar reforço policial em Santarém.
O governo do estado do Pará se solidarizou com os americanos, enviando
rapidamente destacamentos policiais, comandados pelo tenente revolucionário
Ismaelino Castro que fizera parte da Junta Governativa do Estado do Pará, entre 28 de
outubro de 1930 e 12 de novembro do mesmo ano, quando foi substituído por
Magalhães Barata, que assumiu como interventor militar no estado. Quando as tropas
chegaram a Boa Vista, o movimento já tinha cessado, tendo durado apenas a noite do
dia 22.
Os trabalhos da Companhia foram paralisados por alguns dias, chegando-se
mesmo a cogitar que a mesma desistiria de seu projeto. Os líderes do movimento foram
presos e muitos foram demitidos. Não encontrei registros referentes ao número de
pessoas desligadas mas os líderes foram identificados pelo historiador João Santos, em
artigo para o jornal O Liberal, como sendo “Manuel Caetano de Jesus, capataz de
pedreiro: Benedito Dias e Osvaldo Oliveira, carpinteiros e o chofer Jorge Oscar, todos
nordestinos.” Este mesmo autor refere-se ao semanário A Justiça, de Santarém, que em

161
edição de 27 de dezembro de 1930 classificara o ato como sendo influenciado pelas
idéias bolchevistas, pedindo pena de morte para seus líderes.
O movimento do “Quebra-Panelas” possui um traço de ligação com algumas da
revoltas anteriores que questionam a alimentação fornecida pela Companhia. Em alguns
relatos deste encontram-se referências ao fato de os trabalhadores terem sido obrigados
a comer espinafre; outros referem-se ao fato de a empresa proibir o consumo de farinha,
que era substituída por pão: outros ainda destacam que a introdução do novo sistema
acabava com a fartura existente no anterior. Costa (1993), afirma ainda que a
Companhia, após o movimento, incrementou a produção local de alimentos, para evitar
a escassez e deixou de fornecer alimentação aos trabalhadores, repassando esta tarefa a
terceiros que se tornaram concessionários da empresa.
De qualquer forma, o fato de a rebelião ter se iniciado no refeitório é por si só
simbólica de que havia algo de errado neste lugar, afinal não é a primeira greve dos
trabalhadores e todas as que a antecederam reclamavam da alimentação.
Um dos motivos que podem ser apontados como causa deste movimento pode
ser encontrado nesta oposição farinha-espinafre: enquanto a primeira era proibida por
não ser considerada um alimento nutritivo, o segundo teria que ser consumido pelo
motivo oposto. Tal distinção evidencia traços culturais diferenciados que podem ser
encontrados na análise de DaMatta(1997,p.55):
“Quero me referir à distinção entre comida e alimento, que é tão
importante no sistema social brasileiro. Realmente, para nós, saber comer é
algo muito mais refinado do que o simples ato de alimentar-se. Os
americanos inventaram a chamada ‘fast-food’ (alimento rápido) e, por
causa disso mesmo, podem comer em pé, sentados, com estranhos ou
amigos, sós ou acompanhados. Comem também misturando o doce com o
salgado, e uma de suas preocupações básicas é, com raras exceções, comer
para viver; comer, entre eles, é um ato que pode ser profundamente
individual.”(Grifos meus).
Desta forma, os americanos valorizam o fato de que se deva comer alimentos
nutritivos, que sirvam para garantir uma boa saúde e, neste caso, para fornecer
trabalhadores com energia suficiente para o trabalho nas plantações. O que é valorizado
é o que se come, e não a forma como se come. Já para os brasileiros, a alimentação
reveste-se de um outro caráter, ainda segundo DaMatta (p.55):

162
“Para nós, brasileiros, nem tudo que alimenta é sempre bom ou
socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que é alimento é comida.
Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva;
comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais
sagradas de comunhão e comensalidade. Em outras palavras, o alimento é
como uma grande moldura; mas a comida é o quadro, aquilo que foi
valorizado e escolhido entre os alimentos; aquilo que deve ser visto e
saboreado com os olhos e depois com a boca, o nariz, a boa companhia e,
finalmente, a barriga...” (Grifos meus).
Assim, para os brasileiros comer significa mais do que alimentar-se e há uma
valorização do quê se escolhe para ser consumido, importa sobremaneira o produto e
este está mais vinculado ao prazer que proporciona do que ao seu teor nutritivo. O
hábito de consumir farinha é extremamente disseminado no Brasil, - especialmente nas
regiões Norte e Nordeste que adquiriram este hábito indígena desde os tempos da
colonização, - e sua proibição tem um significado maior do que supunham os dirigentes
americanos da Companhia. Tal norma implica na negação do prazer que a comida lhes
proporcionava.
A implantação do sistema de bandejões também acaba com a experiência
anterior, em que os trabalhadores eram servidos à mesa, tal como acontecia em suas
casas, onde a norma imperante é a de que as mulheres, mães e esposas, devem servir os
homens. Acaba-se, então, com as normas da cultura brasileira em que a alimentação
refere-se a estes padrões de valorização do que é comido e de que os homens são
servidos, para se implantar este novo em que os alimentos são escolhidos por suas
qualidades nutritivas e que a forma de servir as refeições deve ser extremamente
simplificada, garantindo que o tempo mínimo necessário seja gasto nesta tarefa.
Hilário Branco Pedroso, em Belterra, descreveu como era a alimentação dos
trabalhadores daquele lugar: “A gente levava uma latinha de lanche. É, e quando
apitava prá largar lá mesmo a gente comia, e aí chamava o aguadeiro, ele trazia
aquela água gelada, quente na lata, ali quando apitava cinqüenta já era prá tá em pé
prá quando apitava de novo já era prá pegar. ... Era um hora. (Pergunta se a
Companhia fornecia o lanche) Não, era de casa, era. A gente só podia comer assim com
ovos, sabe? porque era muito grande, o vento dava muito, piracuí (farinha de peixe)
não podia porque levava na boca, o vento levava. (Risos). ... Tinha que ser bem
molhado.”

163
O discurso do senhor Hilário, além de mostrar que o trabalhador levava seu
próprio lanche, sendo que os solteiros tinham que prepará-lo à noite quando cuidavam
também da lavagem de suas roupas, também demonstra o rígido controle dos horários,
até no almoço, porque havia um apito anterior, que fazia a pessoa colocar-se no ponto
exato da tarefa a ser executada ao soar do segundo aviso.
O relatório do tenente-coronel Luiz Guedes de Oliveira também registra outros
incidentes que se deram nestes anos iniciais de implantação da Companhia. Um deles se
deu em setembro de 1929, quando um vapor chamado Tuchaua atracou no porto de Boa
Vista e a gerência da Companhia impediu que o mesmo vendesse bebidas alcoólicas, -
restrição esta que havia em toda a área da concessão -, embora os americanos e
estrangeiros fossem servidos das mesmas nos camarotes da embarcação. Tomando
como referência o fato de ser sábado a noite e de que no dia seguinte os trabalhadores
não tinham serviço, o policial autorizou a venda de cervejas e guaranás para a
população local.
Em outubro, um outro incidente ocorreu envolvendo oito funcionários da
Companhia que, com suas famílias, haviam construído suas cabanas em áreas da
concessão, tendo sido intimados a deixar o local em três dias. O policial interveio na
questão, afirmando para o chefe do escritório, responsável pela ordem, que a concessão
estava em “território brasileiro” e que ele daria o prazo de trinta dias para que as
famílias se mudassem.
Estes episódios deixam transparecer o conflito de poder entre a gerência da
Companhia e os representantes brasileiros: o policial, baseado na autoridade que lhe foi
confiada pelo governo do estado do Pará, reclamava para si o poder de decisão dos
conflitos que se apresentavam. Os gerentes da empresa, por sua vez possivelmente
influenciados pela amplitude de poderes que o termo de concessão das terras lhe
atribuía, agiam como se fossem a autoridade máxima na região. O tenente-coronel
chega inclusive a afirmar que parte de seu salário provem de gratificações pagas pela
empresa, que foram abruptamente retiradas em abril de 1930, sem comunicação prévia,
sendo que a gerência também já havia solicitado ao governo do estado, a sua
transferência daquela localidade. Este pagamento também servia para reforçar na
empresa o seu poder sobre o local, subordinando a si a própria autoridade policial.
Em Belterra a questão parece que foi resolvida, porque quem mandava eram
efetivamente os americanos, através de um “mister” cujo nome não consegui identificar

164
ao transcrever a entrevista do senhor Hilário Branco Pedroso, realizada em Belterra, em
julho de 1997:
“Não tinha delegado aqui, delegado era lá no Porto Novo, aqui era só
‘pingolé’, chamava o mister (?), e resolvia tudo a parada. Até acontecer
assim, um camarada prostituísse uma sua filha, uma minha filha por acaso,
eu não ia dar com o delegado não. Eu ia lá: doutor (?) olha, aconteceu esse
camarada aqui assim, desse jeito, o senhor faz uma migração, faz uma
migração, ou seja, manda dá uma casa lá no (?), dava uma casa, ela já ia
morar com ele. Quando era daí prá uns três ou quatro dia, ou um mês, ele
mandava os compadre fazer uma fila, como daqui ali e fazer o casamento
de tudinho, só num dia. ...Casava todo mundo. ... Ficava enquanto o padre
não estava. Não tinha padre aqui. Mandava buscar em Santarém.”
A demissão dos operários, segundo Luiz Guedes também se dava de forma
arbitrária, sendo que as que ocorriam em dias nos quais não havia passagem de vapores
pelo porto, motivavam a transferência dos demitidos para outra margem do rio, onde
eram largados sem nenhum recurso. O tenente-coronel afirma ter agido no sentido de
impedir que tais atos se tornassem rotineiros.
O hospital da Ford, que na maior parte dos relatos é tido como exemplar, para o
prefeito de polícia, “é o PHANTASMA de toda a gente na Boa Vista”, uma vez que as
instalações não são adequadas e há o registro de inúmeros casos de pneumonias,
seguidas de morte, que são contraídas no próprio estabelecimento de saúde.
Todos estes fatos, que certamente repercutiram nas redondezas, podem ter
contribuído para afastar pretendentes aos cargos oferecidos pela Companhia. O relatório
do prefeito de polícia mostra que as instalações para os trabalhadores ainda eram
precárias, que as normas de trabalho eram muito rígidas e que o próprio hospital era
mais um problema do que um atrativo.
Um último episódio relatado por Luiz Guedes também é significativo desta nova
cultura trazida pela Ford e se deu quando a gerência da empresa quis impedir o
sepultamento de Joaquim Félix de Araújo, seu empregado, no cemitério de Boa Vista,
alegando que o mesmo falecera fora de seus domínios, em um lugar denominado
Cauassu-epa. A real motivação, segundo o policial, era o fato de que aquele local era “a
espinha de garganta do Sr gerente”, uma vez que lá haviam botequins e casas de dança
e era para onde se dirigiam os trabalhadores em busca de diversão. O prefeito de polícia
afirma também que o trabalhador residia naquela localidade com a sua família.

165
A primeira conclusão que se pode tirar do fato é que ainda não havia casas em
quantidade suficiente para os trabalhadores na área da concessão, conforme fora
prometido pela empresa na greve de agosto de 1929. A segunda é a existência deste
lugar onde havia álcool e mulheres, fora das terras da Companhia.
Estes lugares em que se podia fugir às restrições da Companhia ao consumo de
álcool por parte de seus trabalhadores menos graduados e onde os homens podiam se
encontrar com meretrizes aparecem com diversos nomes e, geralmente, são de
localização imprecisa. Em Fordlândia há relatos que se referem à Ilha dos Inocentes, à
Cauassu-epa, e à já citada Vila Franco. Em Belterra, os trabalhadores localizam esta
área fora dos portões da Companhia, em um local denominado Porto Novo.
A denominação Ilha dos Inocentes dá uma idéia bastante próxima da
representação destes locais: o fato de se chamar ilha, não significa necessariamente que
o local fosse uma ilha no sentido estrito do termo - uma porção de terra cercada de água
por todos os lados -, mas pode ser entendido também como um lugar onde se chega
após atravessar um obstáculo, que é diferente da natureza da ilha, em um caso a água e
no outro, a concessão da Ford.
Na entrevista com Miguel Xavier Nogueira, conhecido como Miguel Arigó, ele
relata que morou durante cerca de um ano em Porto Novo, até conseguir casa na área da
concessão. Segundo seu relato era nesta localidade, fora dos portões da Companhia, que
os homens encontravam as mulheres que vinham de Santarém:
“Viu, elas vinham da Santarém. ... Elas vinham de Santarém, de sábado,
com o Deoclécio, ele fazia a linha, vinha sábado para Belterra e voltava
segunda-feira. Aí caboclo vinha sábado prá Belterra e voltava segunda-
feira. Aí caboclo vinha sábado e domingo prá ter a conversa lá em Porto
Novo. Tinha festa. Hoje fala bordel, não sei o quê. ... Lá era uns barracão
de palha, né, e aí o caboclo brigava, bebia cachaça lá, o diabo. E aí, na
segunda-feira, voltava. Lá podia fazer a bagunça que quisesse, agora do
portão lá da Companhia prá cá, Deus o livre. É, era muito bom.”
A fala do senhor Miguel mostra a existência de dois lugares que se opõe: a área
da concessão, onde não se podia fazer bagunça, onde imperava “uma disciplina doida”;
e a área fora dos portões da empresa, onde o trabalhador podia se encontrar com as
mulheres, beber cachaça e até, em alguns casos, tentar fazer o contrabando da mesma
para dentro dos portões. Esse contrabando, que também é relatado no caso da Ilha dos
Inocentes, podia ser feito dentro de melancias, de bambus, etc. No entanto, havia a

166
fiscalização nos portões e quando este era descoberto, havia a demissão imediata do
trabalhador:
“Aí passava por lá, passava prá cá, qualquer coisa que ele trouxesse o
fiscal revistava. Melancia, caboclo vinha com melancia no ombro, melancia
desse tamanho, custasse o quanto custasse, aquela melancia ele comprava
porque ele ia trazer a cachaça.(Risos) Ele pegou, um conhecido meu uma
vez pegou descarga com esse negócio de trazer melancia com cachaça. E
bambu.”
Causa surpresa o fato do senhor Miguel terminar a primeira fala citada com a
frase: era muito bom. No entanto, é preciso ressaltar que entre o tempo em que
trabalhou para a Ford, “o tempo dos americanos”, e a entrevista, realizada em 1993,
houve o tempo de administração do governo federal, que nunca teve um projeto estável
para a área. Mais do que isto, o próprio entrevistado afirma que nesta segunda fase, na
época da administração do Dr. Veloso, os pagamentos foram feitos em vales, que eram
trocados com deságio junto aos comerciantes de Santarém. A questão do abastecimento
de água passou a ser um problema em Belterra, uma vez que a mesma é trazida do rio
Tapajós por um sistema de bombeamento, já que esta área fica acima do leito do rio.
Este bombeamento exige grande consumo de energia elétrica, cuja geração se faz por
motores a diesel, e que não funcionam durante o dia inteiro. Além disso, todo este
sistema é remanescente do período das plantações Ford, tendo recebido diversos reparos
e necessitando de manutenção constante. Assim, o contraponto entre “tempo dos
americanos” e o tempo da administração federal apresenta um grande contraste,
fazendo com que a memória do primeiro acabe lembrando de um tempo idílico, em
contraste com um tempo de desmandos.
A própria expressão “tempo dos americanos”, que é constantemente empregada
pelos antigos trabalhadores que entrevistei, lembra uma estrutura mítica: houve um
tempo no passado, como um elemento fundador daquela comunidade e de sua
identidade, em que tudo era harmonioso, “era muito bom”, e este tempo se perdeu na
história e foi substituído por um outro em que imperava o caos.
A entrevista com o senhor Emanoel Rocha Rufino, também trabalhador de
Belterra no “tempo dos americanos” também mostra essa passagem para o governo
brasileiro:
“Aí foi o tempo que eles entregaram o terreno, que era contrato dos
americanos com o governo, mas ficaram agüentando aquela ordem que

167
tinha pelos americanos, que era tudo direitinho, eu trabalhei 23 anos. Prá
completar os 35 anos me jogaram prá fora, que foi o tempo, como diz a
turma, que foi avacalhando, que o governo pode botar a lei que botar que
eles quer ver é mais.” (Grifos meus)
Novamente este contraste entre o tempo da ordem, do governo dos americanos, e
um tempo de “avacalhação”, que é o tempo do governo brasileiro. O senhor Belém,
como é chamado em Belterra, mostra em sua fala um contraste tão grande que a
expressão usada é “ser jogado prá fora”, há uma separação nítida entre os dois
momentos.
A entrevista com o senhor Luiz Correa Frazão, realizada em agosto de 1997 em
Belterra, onde ele trabalhou até se aposentar também mostra essa saudade de um tempo
que passou, e o faz de uma maneira poética, comovente:
“...Mas isso era muito bonito., hoje ficou, você sabe, muitas coisas aqui,
passa prá mão do governo, fica um relaxamento. Isso era uma ordem. Isso
era tudo direito, o cara obedecia, tudo era, era uma coisa tão linda que eu
pensei de não ficar velho e pensei de não ver Belterra se acabar do jeito. Já
escutou o apito dessa caixa d’água?” (Grifos meus)
O apito da caixa d’água era tão importante para o senhor Luiz que ele perguntou
se eu já havia gravado o mesmo, afirmando que “é um estrondo, aí é um estouro”. Este
apito da caixa d’água assume aqui um papel de fio condutor da história, é ele que é
capaz de ligar os dois tempos distintos, funcionando como um elo de ligação. A
oposição das palavras também se repete, aqui como “ordem” e “relaxamento”, e a
diferença é tão grande que faz com que ele renegue a sua condição presente, que mostra
a decadência de algo que já foi tão bonito.
As entrevistas que realizei com os trabalhadores parecem, à primeira vista,
concordar sempre que o “tempo dos americanos” era bom, que nele imperava a ordem e
a disciplina, que também são muito citadas e assumem uma valoração positiva. No
entanto, um exame mais profundo permite visualizar alguns elementos de resistência
contidos nas entrelinhas, que como citado no trabalho de Sader, Paoli e Telles, não
aparece necessariamente na organização sindical, mas pode se expressar quando os
trabalhadores assumem a condição de sujeitos sociais.
Há duas passagens no relato do senhor Miguel que podem ilustrar esta situação:
ele conta que os americanos tinham a idéia de instalar uma base aérea na área da
concessão e que isto foi impedido por Magalhães Barata, uma vez que a concessão

168
destinava-se exclusivamente à exploração da seringa. Depois ele relata a existência de
uma área secreta, em um local onde só os americanos tinham acesso, no qual eram
explorados minérios, ouro em particular. Quando perguntado se houve exploração de
petróleo ele afirma que em Belterra não, talvez em Fordlândia:
“Não sei não, aqui não, só se foi lá prá Fordlândia. Eles não interessava
nada disso não, era só o minério, só ouro. Eles estouraram muito essas
terras, deu até explosão.”
Não há nada nestes fatos que justificasse o segredo: o termo de concessão
permitia a construção de campo de aviação, bem como a exploração de minerais. Desta
forma, o relato do senhor Miguel mostra que não se podia confiar nos americanos, que
teriam negócios ilícitos, desviando sua crítica para algo que não era criticável, ao invés
de contestar diretamente as formas de exploração a que os americanos submetiam seus
trabalhadores.
A entrevista com o senhor Luiz Correa Frazão também traz esta passagem de
crítica velada:
“Não via, nesse tempo a água, tudo era na rua, nas torneira(sic). Aí os
americanos passavam, olhavam duas mulheres na torneira, parava (sic), e
(imitando sotaque de americano falando português): - Oh, que mulher faz
aqui? - Enchendo a água nesse pote? Mulher vai prá casa, espera a outra
sair prá, prá vocês vim. Mulher vai fazer comida prá marido quando
chegar.” (Risos).
À primeira vista a passagem remete ao riso, parece ser esta a intenção do orador.
No entanto, é possível pensar também que esta jocosidade é uma forma de desvalorizar
a fala dos americanos, que não conseguem conversar de forma coloquial na língua
portuguesa, o que dificulta a sua compreensão sobre a cultura local e seu universo
simbólico.
Este “tempo dos americanos” também é um tempo diferente do local, conforme
o senhor Miranda mostrou, ele é marcado pelo apito da caixa d’água, que marca os
horários de trabalho. Este apito, juntamente com a implantação dos relógios de ponto,
mostram uma nova marcação do tempo, que deixa de ser referenciado nos ciclos da
natureza para se adequar às necessidades do capital.
Esta análise dos diferentes tempos advindos com o capitalismo foi feita por
Thompson (1998), no texto “Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo industrial”,
que vê como uma das conseqüências de tal evento a separação que se opera entre o

169
170
tempo do trabalho e o tempo do lazer, já que estas duas dimensões passam a ser
distintas.
Os dirigentes da Companhia não deixaram de perceber a importância de fornecer
opções de lazer para seus trabalhadores: nos fins-de-semana havia bailes, cinema e
quadras à disposição dos mesmos. A confraternização se operava nos mesmos limites
que era a norma da empresa, ou seja, os membros da administração dispunham de um
clube separado, onde havia as projeções de filmes, enquanto os trabalhadores podiam
desfrutar de cinemas ao ar-livre, chamados de “Poeira”, existentes em diversas quadras
de Belterra, mostrando que estes não eram cinemas luxuosos, que se preocupassem com
o conforto de seus freqüentadores.
Os trabalhadores também encontravam neste item uma forma de fugir das
regras: o senhor Miranda contou que durante a semana, nos dias de aniversário de
algum morador, as pessoas se dirigiam para a casa do aniversariante, acompanhados dos
músicos locais, e dançavam até tarde da noite, indo trabalhar no dia seguinte
“ressaqueados”. O termo sugere o consumo de bebidas alcoólicas, embora o
entrevistado tenha dito que estas não compunham a festa, cujo principal atrativo eram as
danças e a música. Na entrevista anterior que fiz com ele, esta é de 1997, a primeira é de
1993, ele afirmava que o consumo de cerveja não era proibido, porque esta era uma
bebida “social”.
Nesta nova marcação do tempo Thompson também ressalta a importância
fundamental adquirida pelos relógios. A este respeito encontrei, entre os documentos
arquivados no Ministério da Agricultura, a ficha do senhor George A. Weiss, com data
de admissão de 1° de janeiro de 1934 e de nacionalidade alemã, sendo que tal fato foi o
que me despertou a atenção no primeiro momento. No entanto, ao virar a mesma
deparei-me com a seguinte anotação: “Não é empregado da Companhia - Tem, por
concessão da Companhia uma oficina de conserto de relógios e a Companhia paga-lhe,
presentemente, Cr$ 100, 00 por mês para manter em ordem os relógios da mesma. Esta
ficha foi feita por engano.”, conforme anexo 4. A expressão do funcionário não poderia
ter sido mais feliz “manter em ordem os relógios”, ou seja, há uma nova ordem marcada
pelos mesmos, que deve ser mantida. Este evento e sua casualidade reforçam a
importância que tem o trabalho de campo para o pesquisador que pode encontrar
significados em fatos aparentemente sem importância ou valorizados por outros
motivos, como foi o presente caso.

171
O senhor Hilário, quando fala do relógio de ponto, ressalta: “Aquele relógio que
marca o dia, a hora, o minuto, o segundo, né? Tudinho, né? Na ocasião eu não respondi
a ele, mas se o tivesse feito, certamente concordaria, este relógio marca todas as coisas,
marca um novo tempo de controle e disciplina rígida no dia a dia.
A senhora Olinda, de Fordlândia, quando perguntada se eram muito comuns as
demissões pelos americanos, apontou como causas do evento: “às vezes falhava muito o
trabalho, às vezes alguma discussão qualquer que não gostava, às vezes roubo. ... Aqui
tudo eles botavam logo um defeito. Camarada, até uma criança que trepasse numa
seringueira dessa prá cortar galho de seringa era repreendida.” Assim, o controle se
estendia aos próprios filhos dos trabalhadores, que estavam sob a vigilância dos seus
administradores.
O controle da área de Fordlândia e de Belterra chegava também às próprias casas
dos trabalhadores e às suas visitas, cuja chegada e partida deveria ser notificada para a
administração. Os cuidados com a conservação das casas também eram observados pela
Companhia, que enviava inspetores a fim de verificar as condições de limpeza das
mesmas, de forma semelhante ao que ocorria em Detroit.
A direção da empresa também valorizava e incentivava a manutenção de jardins
floridos nas casas, o que pode interpretado como uma tentativa de, através do controle e
ordenação das plantas, fazer uma contraposição com a desordem representada pela
floresta circundante. Os jardins seriam, então, representantes de um “natureza
domesticada”, em contraste com a “natureza selvagem” e possivelmente “perigosa”, da
selva ao redor.
Estes jardins mostravam a distância entre o espaço dos americanos e o espaço
dos trabalhadores. O senhor Antonio Cardoso Pinto, ao referir-se aos concursos de
premiação que os americanos promoviam para os jardins mais belos, afirmou: “Não,
nunca ganhamos, porque nós vivia assim, não dava prá fazer jardim onde nós morava.
Porque jardim fica prá cá. Nós morava lá (esta palavra foi dita mais alta que as outras,
como a indicar uma grande distância) pro fim dessa linha, não?”. Assim, a presença dos
jardins também delimitava áreas de ocupação diferenciadas.
As restrições culturais representada pela proibição do consumo de bebidas
alcoólicas, e nos primeiros momentos pela restrição à farinha, também se estendiam ao
plano religioso. Um antigo bispo de Santarém, em entrevista gravada em vídeo por
Cristóvão Sena, afirma que a construção dos prédios da igreja católica nas áreas da
concessão só se tornou possível graças à intervenção do bispo de Detroit, que procurou

172
173
Ford, afirmando que ele já tinha problemas suficientes com seus trabalhadores para
querer criar mais um com aquela instituição. Somente após tal conversa é que as igrejas
foram erguidas, na década de 40. Antes disso, as cerimônias religiosas só podiam ser
realizadas nos galpões da Companhia, sendo que os padres não tinham permissão de
morar nas terras da empresa. Considerando-se que a população ainda dava um valor
maior à certidão de batismo do que ao registro civil, pode-se ter uma dimensão do
alcance que tal medida produzia entre a população local.
Todos estes fatos levam à reflexão sobre o impacto que a Companhia Ford
Industrial do Brasil causou na Amazônia brasileira: há uma permanente tensão entre os
novos hábitos que ela procura introduzir e o modo de vida da população local. A atração
dos migrantes nordestinos também não é capaz de diluir este conflito, visto que tais
pessoas também não introjetaram as novas normas exigidas pela disciplina capitalista,
que valoriza a produção e o tempo a ela destinado. Nas palavras de Thompson (1998,
p.272):
“O tempo agora é moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta.”

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CONSIDERAÇÕES
FINAIS

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da trajetória da Companhia Ford Industrial do Brasil na Amazônia


brasileira revela o seu caráter altamente contraditório em relação às práticas não só da
região, como também do Brasil. Expressa uma novidade em termos da relação
capitalista na região porque se durante o auge da exploração da borracha o capital não
se territorializara, agora esta é a nova condição. No entanto, isto não se dá de forma
pacífica e a empresa irá encontrar diversos obstáculos que acabam por inviabilizar o
retorno do capital investido.
A primeira grande surpresa que o empreendimento causa vai se refletir na
imprensa de Santarém que aos poucos percebe que as vantagens da instalação da
empresa estão restritas à área da concessão, mais do que isto, elas se articulam apenas
com o circuito do capital internacional, sobrando para a região apenas o ônus de acolher
os rejeitados.
As relações de trabalho implantadas também trazem inovações que não são
facilmente assimiláveis pela população local. O que é oferecido como vantagem: a
escola, o hospital, o salário, etc., perde o seu poder de atração face às condições locais
que apresenta uma grande quantidade de terras livres que podem ser apropriadas por
aqueles que não quiserem se sujeitar ao assalariamento e ao rígido controle que a
Companhia tinha sobre seus empregados.
Outro obstáculo a ser superado era representado pelo meio que dificultava a
implantação de uma plantation nos moldes implantados pela Companhia. É importante
relembrar que tal advertência já constava dos relatórios da comissão americana no
Brasil e acabou sendo menosprezada por Ford.
O empreendimento da Ford mostra o encontro não só de duas culturas distintas,
a norte-americana e a brasileira, como também a tentativa de convivência com duas
lógicas tão diferenciadas como são a do capital e a das culturas tradicionais, neste caso,
fortemente marcadas pela herança camponesa, que valoriza a solidariedade, o trabalho
comunitário, em detrimento da competição e do individualismo, que marcam a primeira.
A existência de um território tão diferente nas plantações da Ford, onde
imperava a ordem e a disciplina, tinha como contrapartida os problemas sociais
causados no seu entorno, como foi descrito pelo senhor Eymar Franco, em suas
memórias:

176
“Diante do grande número de forasteiros que acorreram para a região,
movidos pelos mais diversos motivos, providências muito enérgicas tiveram
que ser tomadas para que o Uricurituba e seus pacíficos moradores não se
vissem acossados pelos males que os rodeavam. Do outro lado do rio, a
direção de Fordlândia mantinha tudo sob rígido controle e um
destacamento policial reforçado se encarregava de manter a ordem mas,
pelas cercanias proliferavam bordéis, casas de jogatina e de festas, onde as
bebidas eram consumidas livremente e as brigas, não raro, terminavam em
mortes e ferimentos diversos.”
A condição para a existência de Fordlândia e de Belterra seria, então, a
existência de territórios de liberdade nas suas cercanias, nos quais a violência se
instalava. É claro que a violência também fazia parte do cotidiano da Companhia, com
todas as restrições que ela impunha a seus trabalhadores, mas esta era mais velada, mais
sutil, disfarçava-se sob o véu ideológico que mostrava a escola, o hospital, a moradia, a
água encanada, o salário que não atrasava e era quinzenal, etc.
As plantações da Ford também foram precursoras dos grandes projetos que
foram instalados pelos militares na Amazônia, na década de 70, em especial o projeto
Jari, que também tinha a direção de americanos, também controlava seus trabalhadores
de forma rígida, enquanto lhes fornecia “strogonof” como refeição. Lá também tinha
uma “Ilha dos Inocentes”, com o nome de “Beiradão”, para onde os trabalhadores
seguiam em busca de bebidas alcoólicas e de prostitutas. Parece que o senhor Ludwig,
proprietário do Jari, não se deu ao trabalho de investigar as causas do insucesso de seu
compatriota na Amazônia.
Este trabalho também mostra uma lacuna, em se tratando de um estudo sobre a
Amazônia. Não há referência aos índios, que habitaram a região por muitos anos e cuja
miscigenação permitiu a criação do caboclo local. Na verdade, ninguém se referiu a ele,
com exceção do senhor Miguel Guimarães Souza, que afirmou que por volta de 1935 ou
1936, os caiapós teriam tentado invadir Fordlândia, tendo sido devidamente rechaçados.
O próprio engenheiro-agrônomo Jacob Cohen, quando se perguntava sobre o futuro da
Fordlândia, ainda em 1929, considerava que o grande mérito de Ford poderia ser, ao
menos, levar a civilização para áreas atrasadas, com hábitos indígenas:
“Deixemos que venham os capitais estrangeiros abrir-nos novas fontes de
riqueza, porque quando o Estado não aufira disso lucro ‘em dinheiro’,
aufere mais que isso: o desenvolvimento, o trabalho metodisado, a

177
proficiência dos nossos trabalhadores, além do saneamento material e
moral de zonas indimíssimas que não passam, atualmente de grandes focos
de infecção.”
A impressão que se tem então é de que este esquecimento é proposital, ninguém
quer lembrar estes antepassados, que não se preocupam com o capital e que impedem o
progresso da área, aqui entendido como a civilização branca, ocidental e cristã.
A realização deste trabalho foi profundamente marcada pelas visitas que fiz a
área e mais uma vez é importante ressaltar o trabalho de campo como parte essencial da
pesquisa científica. Os trajetos percorridos por barco, o encalhamento do carro no meio
de um areião, o contato com os hábitos locais, a observação da paisagem, as conversas
prolongadas com os antigos trabalhadores da Companhia, tudo isso abre um leque de
possibilidades para as reflexões acadêmicas, que de outra forma não se concretizariam.
Até mesmo a visita aos escritórios da Ford em Dearborn serviram-me para realçar o
contato com uma língua e uma cultura diferentes, até o ponto em que se decide optar
por comer apenas hamburgueres, porque neste caso o sabor já era conhecido e não
haveria confusão na hora do pedido...

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JORNAIS
A Cidade, Santarém/PA
A Gazeta do Norte, Santarém/PA
O Jornal de Santarém, Santarém/PA
O Momento, Santarém/PA
Folha do Norte, Belém/PA
O Estado do Pará, Belém/PA
O Imparcial, Belém/PA
A Vanguarda, Belém/PA

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ARQUIVOS CONSULTADOS
National Archives,Washington, EUA
Henry Ford Museum, Dearborn, EUA
Ministério da Agricultura, Santarém, Pará

183
ANEXO I

Documentação da empregada Luiza Pereira de Souza,


referente ao período em que trabalhou para os americanos

184
185
186
187
188
189
190
ANEXO II

Documentação dos empregados da Companhia Ford Industrial do Brasil,


comprovando as diferenças salariais entre homens e mulheres
e entre maiores e menores de idade

191
192
193
194
195
196
197
ANEXO III

Documentação de contratação de empregados


idosos com 68 e 70 anos de idade

198
199
200
ANEXO IV

Documento de contratação de empregado preenchido por engano


pois o mesmo apenas prestava serviço à Companhia

201
202
203

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