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INTRODUÇÃO

AO ESTUDO
DO DIREITO

Magnum Eltz
Ramos do Direito
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Analisar as diferenças entre Direito Público e Privado.


„„ Compreender os ramos do Direito Público e do Direito Privado.
„„ Avaliar as características dos ramos do Direito Público e Privado.

Introdução
O estudo do Direito pode ser classificado em diferentes ramos. Na
sua grande árvore classificatória, os dois principais ramos são descri-
tos como Direito Público e Direito Privado, dos quais surgem diversas
subclassificações.
Neste capítulo, você vai ler a respeito dos motivos dessa classificação
e das suas consequências para o estudo e a prática da ciência jurídica.

Diferenças entre o Direito Público


e o Direito Privado
O Direito, a partir da visão de Hans Kelsen e demais positivistas do século
XX, é considerado uma ciência social viva, em oposição à teologia jurídica
que o antecedeu. Segundo Kelsen (1999, p. 309):

A teoria da construção escalonada na ordem jurídica apreende o Direito no


seu movimento, no processo, constantemente a renovar-se, da sua autocriação.
É uma teoria dinâmica do Direito, em contraposição a uma teoria estática do
Direito que procura conceber este apenas como ordem já criada, a sua validade,
o seu domínio de validade, etc. sem ter em conta a sua criação.

Portanto, é construído em conformidade com os movimentos sociais que


o moldam. Nessa perspectiva, como todas as ciências modernas, o Direito se
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subdivide em ramos de especialidade, de acordo com determinadas caracte-


rísticas que unem as suas diversas modalidades.
Nesse sentido, podemos dizer que a principal divisão existente no Direito,
e que percorre as suas demais especialidades, reza sobre as figuras do Direito
Público e do Direito Privado. Sobre essa dicotomia, ensina o autor que:

No centro dos problemas de uma dinâmica jurídica, situa-se a questão dos


diferentes métodos de produção jurídica ou das formas do Direito. Se colher-
mos aquelas normas jurídicas que constituem a parte principal de uma ordem
jurídica, aquelas, a saber, que ligam a uma determinada conduta humana um ato
coercitivo como sanção, e se reconhecemos que um indivíduo é juridicamente
obrigado a uma determinada conduta pelo fato de a conduta oposta ser tornada
pressuposto de uma sanção, podemos distinguir dois tipos de normas jurídi-
cas que estatuem obrigações: aquelas em cuja criação participa o indivíduo
que vai ser obrigado, e aquelas que são criadas sem a sua comparticipação.
A questão decisiva, do ponto de vista do indivíduo subordinado às normas,
é se a vinculação se opera com a sua vontade ou sem a sua vontade – even-
tualmente mesmo contra a sua vontade. É aquela diferença que se costuma
caracterizar como a oposição entre a autonomia e heteronomia e que a teoria
jurídica costuma verificar, essencialmente, no domínio do Direito do Estado
(KELSEN, 1999, p. 309–310):

Dessa forma, conforme os ensinamentos de Kelsen, a questão central que


define a construção das normas (objeto central da teoria pura do Direito) é a
presença ou não da vontade dos sujeitos sobre a elaboração dessas normas.
No campo do Direito do Estado, ela aparece como diferença entre democracia
(vontade coletiva) e autocracia (imposição de vontade de um indivíduo), ou
república (divisão do Estado entre os seus sujeitos) e monarquia (unidade do
Estado sobre a tutela de um indivíduo).

A possibilidade de participação ou não da criação das normas às quais se sujeitam


os indivíduos componentes de um Estado é o mote da suma divisão entre Direito
Público ou Privado.

A divisão entre Direito Público e Privado pode ser fundamentada por


questões de poder, como ensina Kelsen (1999, p. 310):
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Segundo a concepção dominante, trata-se de uma repartição das relações


jurídicas. Assim, o Direito privado representa uma relação entre sujeitos em
posição de igualdade — sujeitos que tem juridicamente o mesmo valor — e
o Direito público uma relação entre um sujeito supra ordenado e um sujeito
subordinado — entre dois sujeitos, portanto, dos quais um tem, em face do
outro, um valor jurídico superior. A relação típica de Direito público é a que
existe entre o Estado e o súdito. Também se costumam designar as relações
jurídicas de Direito privado como relações jurídicas tout court, como relações
“de Direito” no sentido próprio e estrito da palavra, para lhes contrapor as
relações de Direito público como relações “de poder” ou “de domínio”.

Ou, ainda, pela simples aplicação da vontade na criação das leis e a sua
relação de disponibilidade sobre determinadas condutas, conforme elucida
o autor:

Se, porém, se investiga mais de perto em que consiste propriamente o maior


valor atribuído a certos sujeitos, a sua supra ordenação em relação aos outros,
verifica-se que se trata de uma distinção entre fatos de produção jurídica. E a
diferença decisiva é a mesma que subjaz à classificação das formas do Estado.
O maior valor que advém ao Estado, isto é, aos seus órgãos, em relação aos
súditos, consiste em que a ordem jurídica confere aos indivíduos qualificados
como órgãos do Estado, ou, pelo menos, a certos de entre eles – os chamados
órgãos da autoridade pública – a faculdade de obrigar os súditos através de
uma manifestação unilateral de vontade (comando). Exemplo típico de uma
relação de Direito público é o comando ou ordem administrativa, uma norma
individual posta pelo órgão administrativo através da qual o destinatário da
norma é juridicamente obrigado a uma conduta conforme àquele comando.
Em contraposição, apresenta-se como típica relação de Direito privado o
negócio jurídico, especialmente o contrato, quer dizer, a norma individual
criada pelo contrato, através da qual as partes contratantes são juridicamente
vinculadas a uma conduta recíproca. Enquanto aqui os sujeitos que hão de
ser vinculados participam na criação da norma vinculante – nisto reside
precisamente a essência da produção contratual do Direito – o sujeito que vai
ser obrigado não tem, relativamente ao comando administrativo de Direito
público, qualquer espécie de participação normativa autocrática, ao passo
que o contrato de Direito privado representa um método de criação jurídica
pronunciadamente democrático. Por isso, pois, já também a antiga teoria
designava a esfera jurídico-negocial como a esfera da autonomia privada
(KELSEN, 1999, p. 311).

Dessa forma, é possível dividir o Direito em Público ou Privado, depen-


dendo das relações de poder de admitir ou não determinada conduta imposta
pela relação, se de sujeição (entre o indivíduo e o Estado) ou de igualdade
(entre pessoas), ou pela presença da vontade na criação das normas. Se há
maior autonomia normativa entre os sujeitos da norma, estamos tratando do
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campo do Direito Privado; se há uma obrigação independente da vontade do


indivíduo e ele está sujeito ao cumprimento dessa norma, estamos tratando
do campo do Direito Público.

Definição dos os ramos do Direito Público


e do Direito Privado
Como você viu na seção anterior, por meio da teoria de Kelsen é possível
distinguir o Direito Público do Direito Privado por critérios de poder ou
determinação autônoma ou heterônoma na criação das normas. A partir desse
conceito basilar, é possível traçar os ramos que se destacam dessa divisão
primária. Nesse sentido, ensina Meirelles (2004, p. 38) que:

O Direito é dividido, inicialmente, em dois grandes ramos: Direito Público e


Direito Privado, consoante a sua destinação. O Direito Público, por sua vez,
subdivide-se em Interno e Externo.
O Direito público Interno visa a regular, precipuamente, os interesses estatais
e sociais, cuidando só reflexamente da conduta individual. Reparte-se em
Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito
Penal ou Criminal, Direito Processual ou Judiciário (Civil e Penal), Direito do
Trabalho, Direito Eleitoral, Direito Municipal. Esta subdivisão não é estanque,
admitindo o despontar de outros ramos, como o evolver da Ciência Jurídica,
que enseja a cada dia, a especialização do Direito e a consequente formação
de disciplinas autônomas, bem diversificadas de suas coirmãs.
O Direito Público Externo destina-se a reger as relações entre os Estados
Soberanos e as atividades individuais no plano internacional.
O Direito Privado tutela predominantemente os interesses individuais, de modo
a assegurar a coexistência das pessoas em sociedade e a fruição de seus bens,
quer nas relações de indivíduo a indivíduo, quer nas relações entre o indiví-
duo e o Estado. Biparte-se o Direito Privado em Direito Civil e Comercial.

Dessa forma, no âmbito do Direito Público, temos uma primeira subdivisão


entre Direito Público interno e externo, em que são traçadas normas ou rela-
ções de poder que fogem do controle dos indivíduos que compõem o Estado.
Tratando-se de Direito Público interno, as relações são estabelecidas
entre os indivíduos (pessoa física) ou coletividades organizadas na forma de
pessoa jurídica em relação à organização que abarca a toda a coletividade de
pessoas naquele território, ou seja, o Estado, partindo-se de normas-comando
e de uma relação de sujeição das pessoas que compõem o Estado para com
a sua administração (Poder Executivo) ou demais poderes que o compõem
(Legislativo e Judiciário).
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Essas normas podem ser próprias de Direito Público, por meio de legislação
específica de Direito Constitucional, Administrativo, Penal e Processual, e
regimentos internos dos órgãos dos respectivos poderes, ou impróprias, quando
da determinação de normas fechadas às relações entre iguais (pessoas físicas e
jurídicas, ou órgãos do Estado atuando em relações negociais ordinárias). São
as chamadas normas cogentes (que não podem ser excluídas ou revogadas por
disposições contratuais contrárias ou mais específicas sobre o suporte fático
dessas normas “fechadas”), como é o caso das leis que regulam o trabalho, o
consumo e a concorrência.
Já o Direito Público externo trata das relações entre o Estado e outros
Estados no âmbito internacional, ou entre o Estado e as pessoas que se en-
contram em outros estados nacionais. Se a relação é entre Estados, regula-se
por meio da manifestação de vontade dos Estados, representados pelos seus
órgãos diplomáticos na forma de acordos ou tratados internacionais. Já a
relação entre Estados e sujeitos que se encontram fora do seu território faz
parte da esfera de aplicação de normas de comando do Estado além das suas
fronteiras a partir da aplicação do conceito de soberania do Estado para com
os seus sujeitos.
Já o Direito Privado, conforme o ensinamento de Kelsen (1999), refere-se
à esfera de autonomia das partes para estabelecer negócios jurídicos, ou seja,
regras livres que correspondem à manifestação da vontade das partes (seja ela
declarada ou implícita). Conforme ensina Meirelles (2004), o Direito Privado
pode ser subdividido entre Direito Civil e Comercial, divisão que encontra eco
na evolução histórica de um Direito Civil restrito pela canonização do Direito
durante o período medieval e a relativização do Direito Comercial durante
a autorregulação dos mercadores pela Lex Mercatória durante o período em
que os estados não tratavam de relações mercantis.
A essência desses ramos, no entanto, é comum, no que se trata da auto-
nomia das partes para elaborar as suas regras entre as partes de determinado
negócio, tendo a sua forma mais comum no instrumento contratual. O
Direito Privado ainda pode ser classificado de acordo com a natureza das
relações negociadas entre as partes, a partir da classificação de obrigações
(dar, receber, pagar, entregar, informar, etc.) ou da licitude dos atos prati-
cados (válidos, nulos, anuláveis), de acordo com a teoria do fato jurídico.
Finalmente, pode ser diferenciado pela licitude (Direito das obrigações)
ou ilicitude dos atos praticados (responsabilidade civil), tratando-se de
aplicação de normas primárias ou secundárias estabelecidas pelas partes
ou pelo Estado em determinado grau de intervenção do Direito Público
no Direito Privado.
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O Direito Público e o Direito Privado possuem ramificações próprias, mas que se


interlaçam pela autonomia ou heteronomia na criação de normas, uma vez que o
Direito Privado pode ser restrito pelo Direito Público por meio de normas cogentes
e o Direito Público toma emprestado recursos do Direito Privado na elaboração de
acordos ou tratados internacionais, ou em contratos públicos quando os seus órgãos
atuam em relações negociais tradicionais em igualdade de condições para com as
pessoas físicas ou jurídicas.

Direito Contratual, Direito Administrativo


e Direito do Consumidor
Como você já sabe, o Direito é dividido de acordo com relações de poder e
autonomia ou heteronomia na criação de normas. No entanto, essa divisão
quanto à criação das normas pode ser relativizada de acordo com a interferência
do Estado nas relações privadas e no uso de ferramentas de Direito Privado
no Direito Público.
Para estabelecer melhor as diferenças entre um ramo e outro, utilizaremos
dois ramos que representam adequadamente essa dicotomia: o Direito Con-
tratual e o Direito Administrativo.
O Direito Contratual é a maior manifestação do Direito Privado próprio,
em que as partes podem exercer a sua liberdade por meio da vontade de
estabelecer relações com outras pessoas (físicas ou jurídicas).
Essas relações, no entanto, não são livres de regulação, devendo obedecer
aos direitos naturais previstos na Constituição Federal, como direitos fun-
damentais à vida, igualdade, etc., e a determinadas cláusulas fechadas que
o Estado impõe ao Direito Privado, como a forma de determinadas relações
contratuais e condições de validade dessas normas, previstas no Direito Civil,
e leis especiais para determinadas relações, como é o caso de relações de
consumo, trabalho ou que envolvam intervenção no meio ambiente.
Já o Direito Administrativo é o maior expoente das limitações que os
privados impõem às atividades do Estado, pois este somente pode interferir
na vida dos seus sujeitos quando há lei prévia, anterior e certa que determine
a possibilidade de interferência, ou seja, o princípio da legalidade.
Ramos do Direito 101

O Estado, por meio dos seus órgãos, somente pode fiscalizar, multar, expedir licenças
e restringir as atividades dos seus sujeitos se houver norma clara, anterior à atividade
estatal e que seja fruto do processo legislativo que garante aos sujeitos do Estado
segurança quanto às imposições que terão que obedecer.

Essas diferenças importantes são frutos da evolução jurídica pós-revoluções


burguesas, quando foi reconhecida a necessidade de controle do Estado pela
população, e pós-revolução industrial, quanto à necessidade do controle das
relações privadas pelo Estado para se evitarem abusos da população civil aos
bens jurídicos coletivos.
A presença de um Direito Contratual forte, com intervenção mínima do
Estado nas relações privadas, é importante para contrapor um momento de
autocracia derrubado pelas revoluções burguesas e para o desenvolvimento de
relações privadas que impulsionam a economia e o desenvolvimento de uma
nação. De outro lado, a atuação estatal é necessária para garantir a sustentabi-
lidade desse desenvolvimento ao controlar as relações privadas nos excessos
cometidos contra os princípios que a nação elenca como fundamentais.
Dessa forma, o Direito Privado, dentro das relações contratuais, serve como
um catalisador da criatividade negocial e como liberdade de criação de obrigações
recíprocas entre as partes e o Direito Administrativo, como parte do sistema de
Direito Público como um garantidor limitado pela desproporção de poderes inves-
tidos nos órgãos estatais dos próprios direitos dos cidadãos contra eles mesmos.

Um exemplo das relações contratuais é o Direito do Consumidor, em que pese as relações


de compra e venda de bens e produtos mediante pagamento em dinheiro serem
relações comerciais próprias do Direito Privado, em que a forma de pagamento, o objeto
da coisa e demais circunstâncias envolvendo essa relação não interessava ao Estado.

A partir da massificação das relações de compra e venda e das crescentes


dificuldades de controle de qualidade dos produtos ofertados no mercado ao
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consumidor, das complexas tecnologias ligadas à publicidade e à propaganda e


do poder manipulativo das pessoas jurídicas (fornecedores) frente à limitação
de racionalidade limitada dos compradores (consumidores), essas relações
passaram a receber um tratamento especial do Estado.
Assim, alguns países criaram normas específicas para tratar desse tipo de
relação contratual, limitando as possibilidades de manifestação da vontade das
partes e, portanto, restringindo a sua liberdade para proteger bens coletivos
como a vida e a integridade física e psíquica dos consumidores, em um cenário
em que produtos poderiam, pela velocidade da inovação e inobservância de
testes de qualidade individualizados, causar danos aos consumidores.
O Direito Privado e o Direito Público são, portanto, muito importantes para
o estabelecimento de diversas normas cogentes controladas por fiscais membros
da administração pública para garantir a segurança jurídica na continuidade de
contratos de compra e venda e o cumprimento dessas regras mínimas a partir de
normas de comando obrigatórias como a prestação de informações precisas sobre
os riscos de determinado produto ofertado, as limitações de informações que
conduzam ao erro por parte do consumidor e a inversão do ônus de comprovar
que houve relação entre o produto e o dano ocorrido, para que o fornecedor tome
todos os cuidados necessários para evitar demandas contrárias aos seus produtos.
Em conclusão, as distinções entre o Direito Público e o Direito Privado se
encontram na aplicação em maior ou menor grau dos princípios da legalidade
ou autonomia privada, sendo a sua distinção importante para compreender as
ramificações das especialidades da ciência jurídica. No entanto, a complexidade
das relações privadas e estatais tornam essas diferenças cada vez mais tênues
na prática jurídica, sendo importante a sua definição clara na aplicação dos
diferentes ferramentais públicos e privados do Direito.

KELSEN, H. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo brasileiro. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

Leituras recomendadas
LARENZ, K. Lehrbuch des schuldrechts. Berlin: Beck, 1987.
MIRAGEM, B. Direito Civil: Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2017.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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