Escritos Sobre A Religião Dos Orixas

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Meu sina ex no teu corpo (Eseritas sobre a religiéo dos orixds)€ 0 quarto volume de uma sei iniciada em 1981, com a publicacio de Olddriga (Excrtas sobre {a religito dos ores), que se seguiram Bandeira de Aird (Outros esritos sobre a religito do, orixis) e Candomblé ~ Desvendando identidades. (Novos escris sobre ‘areligido dos orixés). ‘Um dos objtivos da série ¢colocar novamente em circulagio ensios ¢ arti- 0s publicados nas décadas de 1940 a 1960 poios pioneros dos estudos sobre as re- ligises afro-brasliras (Edison Carneiro, Baste, Herskovits, Verger ¢ Costa iuardo), com énfase no candomblé, Tal producio,divulgeda em publicasoes espe- cializadas, tomou-s de dic acesso. Outro propésto¢ divulgar ensios inéitos de autores contemporineos, a nova geragio de antropélogos,socislogose peicdlogos aus vin aprofndan, rvs cavindy gaye caninbos mga ctenimento a) 7 MONIQUE AUGRAS # RITA LAURA SE- GATO © JOSE FLAVIO PESSOA DE BARROS & MARIA LINA LEAO-TEI- XEIRA @ MARIA THEREZA LEMOS DE ARRUDA CAMARGO ¢ JOSE JORGE DE CARVALHO ¢ KAREN BARBER ¢ SER- GIO FIGUEIREDO FERRETTI @ MUNDI- CARMO FERRETTI @ REGINALDO PRANDI & VAGNER GONCALVES @ CARLOS EUGENIO MARCONDES DE a religido afro-brasileird.“Mfuitos centram suas pesquisas nas regides diversas da- quelas privilegiadas na fase inicial. A produgéo dos africanistas ilumina certos as~ pectos da religio, tal como ¢ praticada atualmente no Benin ¢ Nigéria, ao revelar a manutengao de valores tradicionais, descrever e analisar procedimentos rrituais, ‘apontar fendéncias de adaptacio ou renovacdo de conhecimentos e, sobretudo, pos- sibilitar a realizacio de estudos comparativos em relacdo ao Brasil. Alguns de seus censaios constam sistematicamente da série. Finalmente a elaboracdo de uma biblio- ‘grafia, a cargo do organizador, encarada como instrumento imprescindivel de traba- Iho, abrange alguns dos patses onde é praticada a religido dos orixés, voduns ¢ in- ‘quices: Brasil, Cuba, ¢ Haiti, na América Latina, e Benin e Nigétia, na Africa Oci- dental. Até agora foram Ievantados cerca de 1.500 titulos, isolados em mais de SO diferentes temas. Escritos sobre a religiao dos _orixas Carlos Eugénio Marcondes de Moura /org- y EDICON/EDUSP 0.9 NIETZSCHE E XANGO: DOIS MITOS DO CETICISMO E DO DESMASCARAMENTO José Jorge de Carvatho* Zeus pode lancar a chama abrasadora, desenca- dear a neve de asas brancas © os trovées sub- terineos que confundem e modificam 0 mundo interior, que nada disto me faré vergar nem me fard revelar-Ihe quem 0 apearé do poder. Esquilo, Prometeu Acorrentado Atengéo! — Nada existe que mais gostemos de mostrar a0s outros que o selo do segredo — sem esquecer 0 que hé por baixo. Nietzche, A Gaia Ciéncia, § 197. A obscuridade do mistério é luz de outra gama. Eudoro de Souza, Sempre 0 mesmo acerca do mesmo I. Antropologia e Teologia Este ensaio parte de uma indagacéo sobre as relagées entre An- tropologia e Teologia.(1) Se tomamos estas duas disciplinas no seu * Antropéiogo profesor 90 Departamento de Antropologia da Universidade de Bras, (1) Exe trabalho fi apresentado no Simpisio sobre Antropotogia e Teologia, XVI Reu- nifo da Ascociagio Braslein de Antropotogia, em Carmpinas, margo de 1988, Agra- ‘ego a Luis Eduardo Soares pel estmuloiniia e Rita Sega pela eitura critica do us sentido mais abrangente, sem concess6es conjunturais ou puramente académicas, estaremos dispostos a inguirir sobre as relagées que texistem entre a esséncia humana — ou, se se guiser, sobre a esséncia dos homens ~e a esséncia divina — ou dos deuses. Deveremos pro- curar, entio, um nivel de abstracdo que se situe além das consta- tagées etnogréficas — ou empiricas ~ das formas concretas de viver dos homens, ou das consideragées particulares de um tipo ou forma de divindade, E dizer, devemos contar com uma Antropologia que seja, por um lado, mais abrangente do que aquela que se especializa no discurso sobre 0 outro, e que, por outro lado, v4 além, em seu in- teresse conceitual e empirico, da Antropologia Filoséfica, que se restringe a ser um ramo da Filosofia Ocidental. Paralelamente, a Teologia que requeremos deve postular-se como uma espécie de et- noteologia, é dizer, deve situar-se além da reflexdo especifica sobre ‘© Deus judaico-cristao. A um nivel, pode-se dizer que a Teologia ~ vista primeiro.em sua dimensao histérica, como uma disciplina tipicamente ocidental — comega quando surge tum grau de desconfianca com relaglo & divin- dade. Pois enquanto o culto & divindade € pleno, imediato, inserido completamente na vida, quando nfo hé ainda nem sequer mito con- tado, mas apenas mito vivido, 0 homem se contenta com fazer pre- ‘ces, cantar, dangar, sacrificar, incorporar o ser divino, € nao necessi- ta inquirir racionalmente sobre 0 ser da divindade. E possfvel ima- ginar que o mito contado (0 corpus mitolégico constituido e transmi- tido pela escrita, como os ““Hinos Védicos” © a “Teogonia” de Hesfodo, por exemplo) seja um primeiro passo dialético para um dis- tanciamento critico-racional com relacio & divindade.(2) Dado que apresenta muitas vezes narrativas fixas (ainda que apresentando também suas variantes), solugées lingtifsticas estaveis, relagées es- ‘iruturais entre eventos e seres, esquemas Idgicos explicitos etc, 0 corpo de mitos permite perfilar e delinear claramente os atributos da divindade e ~ 0 que € mais importante — j se Ihe negam & divindade atributos. Um passo posterior dessa dialética da narracao é a trans- formaco do mito em mera alegoria, como substituto ou exemplo da inquirigo racional, como 0 fez Platdo. E claro que 0 discurso teolégico ocidental sempre foi uma li- nha muito especifiea de desenvolvimento, com suas relagées to marcadas com a especulagéo metaffsica e até mesmo com 0 desen- ( Acoma Horkheimerdetectam eta estigi” do desencantamente do mitona ialéi- ado Eielareconentos“O mito queria relatar, denomins dizer a origer, mas também Exper. iar, explicar. Com 0 registra e a colegio dos mitos, essa tendéncia reforgou SelMuito cedo deinaram de serum relato, para se tomarer uma doutrina’"(1986:23) ng volvimento do espirito cientifico. E se a Teologia permite distingvir Sceeavolve muito mais intensamente no fértil terreno da investigacéo facional, A culminagdo I6gica (e paradoxal) dessa inquirigéo det vaerjada do pensamento ocidental sobre 0 que seja ou nio seja a di- Gindade, sobre a parccla de mundo que ela abarca e sobre os limites Ge seus poderes, € chegar a nega a existencia mesma da divinds: Ge-G) A nivel racional, entio (€ néo a nivel da £6, que, confo seicmos, é muito mais complexo), 6 parte ¢ parcela da Teologia oci- Nemual a discussfo, que s6 recebe um nome no século passado, sobre cimorte de Deus. Apesar de haver surgido como tema explicito no omantisimo (geralmente se aceita que Hegel foi um dos primeiros a falar da morte de Deus, j6 nos seus escritos de juventude) o tema ae oe go, atado com genisidade por Esquilo: Prometen, 20 dese fan Zeuse afirmar que sabe o nome daquele que um dia o derrotars, fala da morte de um deus, € no menos que do mais poderoso. Mul- fer séeulos depois Plutarco conta-nos, numa belissima narrative & tica morte do deus P8.(4) om ‘este mito especifico do mundo ocidental — 0 mito da reve tagao da morte de Deus, ou seja, da desdivinizagdo ~ que me inte: ease considerar, usando como exemplo uma variante que se tornov ‘aremamente famosa: a célebre frase de Nietzsche de que “Deus ceed morte”, Aceitando que essa colocacao vai muito além do ambi- fo espectfico da obra nietzscheana, pretendo contrasté-le. com wm v te pndlogo das tradigdes religiosas afro-brasileiras discutir 2 implicagdes de ambos. Em outras palavras, propooho-me realizar vm wrPloieio de didlogo intercultural, fazendo uma métva Teitura das Sues atitudes & face do segredo e da revelacéo, analisando as limi- fagoes, tanto de f€ cega nos valores constnuidos (contra @ qual Nistssche tanto se debateu) quanto de sua negacdo absoluta enquat- to meras construcées humanas. sneer em ey sie, gu em como miss fi yo speeemivelcnsiaucm que Deut oa foes enacts oon ores loge net x ‘ae ponies ema sar que Pi significava primeiro wn a pr sntenngn Sahn amnfts Tsmacmr ae Seeing ma Se ere cee wink eo etapa Soon en sect gn crate Sesaherts cen iaroeetc aoe 120 ssoue Il. Nietzsche ¢ a morte de Deus Em virios escritos seus Nietzsche expressa, com uma energia intelectual e um estilo literério inigualéveis, uma crise profunda e de rafzes muito antigas na cultura ocidental, Tigando ao mesmo tempo as dimensGes teoldgicas, filoséficas, culturais, psicolégicas e morais, de um Gnico problema. Imbuido do espfrito insacivel e desmistifi- cador da ciéncia, ele propés-se revelar para o homem ocidental, com uma veeméneia que no deixasse lugar a nenhuma divida, que toda e qualquer idéia crista de Deus é um embuste, tanto quanto é um ‘embuste a existéncia de valores transcendentes, supra-sensiveis. Hi, entio, uma equivaléncia entre a idéia crista de deus ¢ a idéia platé- nica de um mundo-verdade, Conforme arguments, todas “‘as verda- des so ilusées cuja origem esta esquecida, metéforas que foram usadas e que perderam a sua forga sensivel” (1987:69). Em nome, entio, desse suposto mundo-verdade (ou desse plano divino) que no passa de em engodo, negamos o mundo das aparéncias, a0 ta- ché-lo de imperfeito, transitério, em eterno devir mas sem jamais chegar a ser etc. E é este mundo aparente, entao (ou melhor, este mundo, pois s6 faz sentido falar em aparéncia na medida em que julgamos 0 mundo em que vivemos com a visdo posta num imagind- rio mundo-verdade), que Nietzsche quer valorizar. E nele que se de- ve depositar a forca e a vontade de viver. Através do mesmo proces- so, passamos a negar nossas contingentes decisdes existenciais para afirmar um hipotético mundo de valores morais absolutos como jus- tiga, igualdade, fratemidade etc. Estas idéias estio expressas de diversas formas nas obras de Nietzsche. Segundo ele, tanto a idéia de um outro mundo, ideal, co- mo a idéia de Deus, atentam contra a vida, negam a vontade de viver livremente, de aceitar a existéncia em toda a sua intensidade ¢ com- plexidade, sem a necessidade de acrescentar jufzos de distingaio ou quolificativos para a experiéncia humana. Embora haja insistido nes- sas questées sobre os mais variados angulos ~ as vezes na forma de seu antiplatonismo furioso, na sua raiva contra a razéo socrética, no seu imoralismo dionisfaco, na sua afirmacao do mundo dos sentidos fe do corpo — Nietzsche rebelou-se principalmente contra o cristia- nismo e seu deus punitivo (ver, por exemplo, 0 seu Anticristo). (© que é para mim mais que um mero recurso literério € que ele apresenta como uma verdadeira descoberta sua 0 fato de que Deus (© também 0 mundo-verdade) foram primeiro criagées humanas ante as quais 0s homens mais tarde se curvaram, esquecidos e enfraquecidos em sua vontade e em seu instinto vital de que foram eles mesmos 121 gue as criaram. Daf essa veeméncia com que ele quer destruir isso que cle considera um erro hist6rico, gritando — como o faria qual- quer bom crente no caréter desmistificador da ciéncia ~ para todos @ inexisténcia de qualquer nivel de realidade além desse da vida tem- poral. ‘A melhor imagem, de quantas encontramos nas obras de Nietasche, que plasme esse mitico desmascaramento do mundo-ver- dade, encontro-a n’A Gaia Ciéncia, § 125, na antolégica passagem 40 louco que sai 8 rua de dia com uma lanterna, gritando em altos brados, procurando Deus entre os descrentes © que finalmente Ihes diz que Deus morrev, Logo se desespera desse deic{dio humano ¢ diz: ‘Deus morreu! Deus continua morto! E nés 0 matamos!!! Como nos consolaremos, nés, 0s assassinos dos assassinos? O que © mun- do possui de mais sagrado e possante perdeu seu sangue sob nossa faca. O que nos limparé deste sangue? Com qual agua nos purifica- remos? Que expiagdes, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato nao € muito grande para nds? Nao seremos for- gados a torarmo-nos deuses para parecermos, pelo menos, dignos dos deuses? Jamais houve ago tio grandiosa e aqueles que poderio nascer depois de nés pertenceréo por esta acdo a uma histéria mais alta que o foi aqui qualquer hist6ria. O insensato calou apés pronun- ciar estas palavras e voltou a olhar para seus ouvintes; também eles se calavam com ele ¢ 0 fitavam com espanto, Atirou, finalmente, a lantemna a0 chéo de tal modo que se espatifou, apagando-se. ‘Chego muito cedo ~ disse entio ~ meu tempo ndo € chegado. Este evento enorme esté a caminho, aproxima-se e no chegou ainda aos ouvidos gos homens’ ”. Neste texto, que representa 0 melhor estilo do pensamento ociz dental livre, rebelde © angustiado, Nietzsche expressa duas coisas simultaneamente: que descobriu uma profunda verdade humana, = qual revela em altos brados, ¢ que esta perplexo diante de sua des- coberta, Néo sabe muito bem 0 que fazer com ela, mas sabe que nio. pode mais escondé-la dos olhos de todos.O que ele quer mostrar, de fato, € a histGria da mentira (como o Mundo-Verdade tornou-se en- fim uma Fébula, contada no Creptisculo dos fdolos).. Sua revelagdo pretende ser liberadora, se vista do ponto de vis- ta da ciéncia, que também dispensa metafisica e divindade; mas, co- mo 0 atestam todos os pensadores do século XX, desencadeia um problema para a cultura ocidental (e para 0 préprio Nietzsche, pois, rio deixa de ser significativo que ele morreu louco, como o seu per- sonagem que perpetrou o réquiem ao Deus eterno). Nietzsche fala entéo de um momento histérico preciso (cuja repercussio sentimos 12 até hoje), a partir do qual a cultura ocidental jé no consegue aceitar ‘um nfvel de reatidade que nao seja compativel com a compreensio cientifica; dizer, que no seja empirico. £ a desconfianga do su- pra-sensfvel que foi narrada mitologicamente nas suas obras.(5) Que este problema apontado por Nietzsche nfo € nada novo, podemos ver pelas afirmacées de Heidegger, um dos seus mais Nici- dos comentadores. Para Heidegger, 0 niilismo subjacente & reve- aco nietzscheana (niilismo entendido aqui como a capacidade de prescindir de valores supremos € que, conforme dissemos anterior- mente, € sinénimo da morte de Deus), “pensado na sua esséncia, & movimento fundamental da hist6ria do Ocidente. Cala tao fundo que seu desenvolvimento jé s6 pode ter como conseqiiéncia cataclismas mundiais. © niilismo € 0 movimento hist6rico dos povos da terra Jangados ao ambito de poder da Idade Modena” (1960: 181-182). Paralelamente a0 surgimento do niilismo, Heidegger coloca também © problema da desdivinizacao (Entgétterung) como um dos fend- menos essenciais da nossa época. Para ele, foi uma certa ambiguida~ de da concepgao de mundo do cristianismo que trouxe consigo a si- tuacao de “indecisio sobre Deus e deuses”. A desdivinizagio (e di- vinizagio implicaria, por principio, uma relagdo direta, néo-intelec- tualizada, com a divindade) fez. com que a relacdo com os deuses se transformasse em mera vivéncia subjetiva (Eriebnis), isenta da pro- fundidade religiosa presente na experiéncia (Erfahrung) legada pe- Ia tradigao. “Quando isso ocorre, & porque os deuses fugiram. O vé- cuo assim surgido € compensado com a investigacao historiogréfi- ca e psicolégica do mito” (Heidegger 1960: 117). Mircea Eliade, Justamente um dos grandes historiadores do mito, chega a uma con- cluséo anéloga: ““O mundo profano na sua totalidade, 0 Cosmos to- talmente des-sacralizado € uma descoberta recente na hist6ria do espirito humano” (Bliade s.d.:27). E dessa descoberta recente que 0 insensato da Gaia Ciéncia nos fala. E ele no-la coloca em termos muito mais radicais e destru- tivos que a parcial “morte de Deus” discutida por Hegel em Fé € Saber, pois o insensato nio apenas diz que nfo cré ou que Deus morreu, mas que nds 0 matamos.(6) Eis a instauragao, pela primeira vez, do Cosmos inteiramente des-sacralizado de que fala Eliade. (5) ~O mundo das aparéncias ico seal, © mundo-verdade fol aeescentado pola men tia” (Crepiria dos fdotos, A" Raeto" na Filosofia, $2. (6) Como bem explica Arsenio Guinzo 1981), 0 que morre para Hegel é apenas o Deus da representacio: o divino, porém. renasce dialeticamente no seu famoso “Reino do Eprito™. Entendo que Hegel atuliza a relagdo Devs-homem (onde 0 Devs deita de serum Deus de tanseedéncia).masnio chega sequer a vslumbrar as conseqiéneias do lini dramatizado por Nictsche 123 Porém, como 0 proprio Nietzche argumenta, esta revelacdo trouxe ‘ao insensato (e quem € esse insensato, se nio 0 proprio filésofo?) tim conflito de ordem ainda maior. Como pode 0 homem ter sido a- ppaz de provocar um efeito de tal magnitude? Nao seré que a di- fnensio do divino deverd estar sempre presente, teré que ser reintro- Guzida de alguma maneira para justamente possibilitar 0 deicidio? ‘afinal, quem vive ¢ se regozija na “pura” aparéncia (0 super-ho~ mem nietzscheano; ver Gaia Ciéncia, § 54) néo tem que matar & ‘Deus, pois no precisou introduzir sua presenca em cena, Tal € pa- radoxo desgarrador a que chegou Nietzsche com 0 seu ateismo dei- ida que nao sabe como livrar-se do Deus que destruiu. ‘Sabemos a maneira como Nietzsche pretendeu responder a0 vazio causado pelo seu requiem aeternam Deo: com a afirmacio Yo homem dionisfaco, com o Zaratustra, com 0 seu Anticristo, nas- ido “a partir do ltimo dia do cristianismo” (O Anticristo, § 62). E {que pode ser esse Anticristo sendo uma figura de uma dimensio nao inuito distinta da do proprio Cristo? Porém, como pode um niilista ‘assumido erigir algo equivalente a Cristo? Afinal, 0 Dionisio dilace- fado, com © gual ele encerra seu titimo ¢ inacabado livro de sintese, 1 Vontade de Poténcia (© om 0 qual encerra também sua lucidez de fildsofo, pois a partir daf enlouguece irreversivelmente), € wma pro- messa de vida, s6 conquistada, como o fez 0 homem grego, com ‘muita prudéncia e espirito piedoso”, “‘ndo sem um estremecimento sgrato do que é iniciado num segredo"(Vontade de Poténcia, § 482). De novo, é a dimensio religiosa, com 0 seu calar-se, seus s¢- gredos, seu espitito piedoso, que redime o horror vacui do mundo Sem valores supremos. E 0 que provoca esse horror? Para mim, nfo cabe diividas de que este € 0 efeito da moderna atitude cientifica so- bre o seu pensamento, Sugiro que, sem dar-se conta, talvez, Nietzs- che viveu 0 mito da ciéncia: a transparéncia absoluta, a lucidez total, a literalidade, a compartimentago segura, ¢ principalmente,,a dis- posigdo e a compulsio, mais que a necessidade, de revelar univer Ealmente suas descobertas. Esta ¢ a promesse de bonheur da cién- Gia, sua vocacdo democrética ¢ igualitéria, pois nos diz de quanta forga dispemos e de quantos fantasmas nos livramos. Nao se pode imaginar, portanto, a meu ver, 0 tipo de rebeldia nietzscheana sem © mito que dé fundamento & atitude cientffica perante o mundo(7). (7) Daniel Haiévy mostra que Nietzhe,em 1881, quando tem a visto do Etemo Retorno, {& fascinava pelos eas de filosfis natural. "Um livro recente de Vogt, insiulado 4 Foren iaterassao copia para seu uso alguns trechos, Vogt rejeitava como estrit funajer expeculagdo metafica ¢limitava-se&interpretaglo anata dos fenémenos ANP hodtam ser mensurados. Afsstada ahipétese de umn Deus Crador fic a forge pu- Mo oriznada, desprovida de sentido, isto €, arrastada num movimento circulas 124 ___ Por outro lado, nesta afirmagio radical da a nico nivel da sealdade Ce, porta, come 9 nivel), Rd tae un niilismo dificil de superar, pois a liberdade, a transparéncia dos fa- tos, a vida instintiva vém existir no lugar de alguma forma de erenca rlisiosa: enim, de algum modelo extr-empirco de vide, E Niets- che, apesar de querer se colocar fora do uni valores (i Siem do bem 2 Jo mad, sme anectsdnde de inodusir um velo para a vida (o dionisfaco, 0 sofrimento afirmativo) € neste momento tem necessariamente que criticar a ciéncia, sair fora do seu mito, desmitificé-la, denunciando-a como um mito. Na Vontade de Potén= cia Nietsche expressa claramente @ ambiguidade da posigio niilista ‘0 niilismo, ideal da mais alta poténcia do espirito, da vida mais abundante, é em parte destruidor, em parte irénico” (§ 23). Ea mesma ambiguidade da posicdo niilista € encontrada na posicao da ciéncia(8). Ambas as posigdes tanto podem gerar a grandeza do ho- mem (a ponto de divinizé-la em seu antropomorfismo ilimitado) com ‘a sua cegueira mais completa: reduzi-io a um mero repérter das leis gue regem a ocorréncia de um fato bruto (enquanto exclusivamente natural, desespiritualizado). Eis af, para mim, a perplexidade de Nietzsche: rebela-se contra a opressio, a negagio da vida ¢ da ciéncia imposta pela religid tustt@), O espn cao» desonfado do iso Ihe permite i lumbrar a possibilidade de que toda essa opressio foi colocada pelos proprios homens, ¢ eles mesmos, que os criaram, podem igualmente maté-lo, Enfim, podemos precindir de Deus © nao 0 querfamos dizer. Assim que o descobre, revela esse segredo para todos, desmascara a mentira com uma veeméncia nunca antes vista no Ocidente. Ao mesmo tempo que o faz, porém, conscientiza-se de que esté perple- ee ee, ee ee pe nt Reedy Seat tre ale Bas ee eee ea Ise ec guieend a nce eee emeaeeeertaa {iloséfica — 0 eterno retorno do mesmo — em termos mecanicistas, tipicamentt ei. Indnclens cul Nanay decent mp, Sele aque de omen ceanaced Egcotncs ener deine ot Mist eae kaa (6) 8 citncia 1) € um signo de forgae de domtnio desi, indica que pode absier-se de wn ‘nuando de uses que consolam e curan: 2) pode também solapar,dssecar, desiluir, tnfraquecer’ (Vontade de Potente, $285). . (8) “0 peed, igamo-to un vez forma de po sti, eu forms de polish da humid, por ex- ceteee fi ince arora imposes caesar, toh acevo. 6 agcbres do Bomem: o sce reine pela vento do pends” (0 Ants 125, ‘xo: como construir um novo significado para a existéncia baseando- se estritamente no nivel da aparéncia?(10) (© insensato da Gaia Ciéncia presente que o oprimia no Deus cristéo era a ameaca da perda de referéncia para as agdes humanas tno momento em que ele fosse eliminado, A rebeldia ¢ a desconfian- ica de Nietzsche The indicam o caminho para desfazer-se dessa opresséo. Contudo, essa mesma rebeldia ¢ essa mesma desconfianga Jogo se aquictam para dar lugar a uma nova trajet6ria, feita com no- vos elementos de mistérios, prudéncia, espirito piedoso, capaz de transmitir significado e, supostamente, sem oprimir: Cristo se retirou @ Dioniso foi colocado no seu lugar. A busca insaciével da ciéncia por romper barreiras © dogmas abriu caminho para 2 morte do Deus tristéo, Nao chegaré o dia em que ela atentaré também contra Dioni- 50? A propria biografia do pensador parece responder a esta pergun- ta.) ois, que dizer do final de Nietzsche? Morreu da embriaguez dionisfaca, como um ser superior, de novo pagio, cléssico ¢ nobre, como foi sua tiltima profissio de {6 no final da Vontade de Poténcia (§ 476)? Afinal de contas, a vida de Nietazche é parte ¢ parcela do tito da morte de Deus por ele contado e que ainda vivemos. Eo homem Nietzsche, ¢ nfo apenas uma idéia abstrata, que motiva a todos que se aproximam do Zaratustra. Padre Leonel Franca, com sua 6tica eminentemente cristé, apontou brilhantemente para as con- ‘seqiiéncias pessoais dessa reposicao Cristo-Dioniso: “Nietzsche, na tensio de um esforgo etermamente frustrado, ha de contemplar, em ciclos sem fim, as suas aspiragbes efémeras de super-homem malo- ‘grarem nas trevas de uma loucura sem remédio” (1955:117). Este € tum comentério cléssico do mito do deicidio, que possui uma vigé! cia ¢ uma penetrago que vio muito além da fama ou do prestigio i telectual de quem o formulou, Na verdade, Leonel Franca consegue atualizar, numa reflexio moral que transcende os limites da moral cristé, uma variante do castigo de Prometeu. Com uma ética muito distinta (¢ nem por isso menos moralista, obviamente), Michel Fou: calt também comenta a Joucura nietzcheana, contraparte humana da (10) “Tudo © que é bom ¢ tudo 0 que é belo depende de ilusio: verdade mata ~ ¢ ain, ‘inca, ela propria se mata (a medida que reconhece que se fundamento est no erro" (Sobre a Verdade ea Mentra no Sentido Extramoral, $176) (11) Pare avalisrmes a ificuldade com que se enfrenia Nietzsche para uma nova trajt6 ‘Ta, embremos por um momento da sua inicio mixima,o eterno retorno do mes~ tno, Tal como o vejo esta Joutrna afirma o proprio imobilismo (psicolieico, epiti tual) e em aus ctelaridade infnita impede arecolocagho da trajetra de creseimen fo, gue 2¢ apreenta geralmente sob a forma de uma espral, que se modifice a cada ‘yee que regressa a0 seu ponto de partida 128 | sua rebeldia mitica. Como Leonel Franca, ele também considera 0 esforgo sobre-humano de Nietzsche por interpretar a cultura de seu tempo € a histéria da cultura ocidental: “quanto mais se avanca na interpretago, tanto mais ha uma aproximagao de uma regio perigo- sa em absoluto, onde no s6 a interpretagao vai encontrar o infcio de seu retrocesso, mas que vai ainda desaparecer como interpretacao € pode chegar a significar inclusivamente a desaparicéo do préprio intérprete”” (1980:14). E conclui: “Esta experiéncia da loucura seria a sangéo contra um movimento de interpretacdo que se avizinhava do infinito do seu centro, porém que se derruba, calcinada” a:16).(12) Sango de quem, perguntarfamos? Foucault deixa indefinide seu ponto de vista segundo qual a interpretacdo excessiva se toma fatalidade. Dioniso, certamente, nao se interessa pela interpretacdo racional, pela dianoia platonica, mas com “‘a prépria vida com sua eterna fecundidade e retorno” (Vontade de Poténcia, § 483). A pri- meira vista parecia que o ceticismo (que para Nietzsche € atributo dos espiritos superiores)(13) se complementava com 0 dionisfaco, mas de fato © primeiro embota o segundo. O ceticismo da ciéncia moderna jamais embriaga, pois a embriagués suspende — ov pelo menos transforma, icracional ou impulsivamente ~ a inquirisfo, a experimentacdo; e 0 bom cientista jamais deve suspender a capaci dade de perscrutar, de olhar com a visdo clara. Talvez af esteja uma das rafzes do paradoxo nio resolvido por Nietzsche: mergulhado no espfrito cientifico, asceta e autocontrolado ao extremo, quer recobrar Dioniso, deus da embriaguez, do frenesi da loucura, que é justa- mente um antipoda desse espirito. IIE. Xangé e a negagao dos eguns Na discussdo anterior vimos como duas caracteristicas bésicas do espirito cientifico europeu — 0 ceticismo © o agnosticismo — con- vergiram, através da crise vivida por Nietzsche, para a deflagracio de uma crise teol6gica. Tanto um como o outro dispensam a referén- cia a entidades sobrenaturais e postuilam a necessidade de tornar pi (12) Descaveve esa pequena letra de Neuss 2 de Niewsche(¢ pla gual me responsi) sm perder de vista a gama de exegeses, interpretacées ¢ anilises de xm obra executadas, for Martin Heidegger. Eugen Kink, ies Delees, Waller Kanan, 1. Stem Rotero Macad, Pere Klosovake Glan Vato, queso s de qu iponho. (13) "Neos deisemosextravar on andes esptis sl ction. Zaria Um c- co. A forges berdde ait do sgor ed lente J copii, demon ‘se pelo ceticismo.”"(Anricristo, 54). bi " spit demonssam 127 blica suas descobertas, também como uma forma de nevtralizar poder de qualquer mistério que se interponha no caminho humano do conhecimento positive e seguro. E dizer, o ceticismo ¢ a insacia- bilidade gnoseolégica conduziram-no a declarar em alta voz a ne- gagdo do Deus da sua tradicao (0 Deus cristo). Comento agora as implicagées de um outro espirito rebelde, cético, que também se dispés a negar os seres sobrenaturais de sua tradicéo: 0 conflito de Xangé, deus do trovo, com os ojés, (guardises do culto aos mortos ou eguns). ‘Os orixés da tradigao Nagé sio extremamente conhecidos no © mesmo n&o ocorre com os eguns (almas dos mortos que se materializam ritualmente), que so motivo de um culto especial, se- parado do culto aos orixds, tanto no Recife como na Bahia, Na ilha de Itaparica, na Bahia, existem templos aos eguns, com instalagées préprias e locais piblicos onde eles se apresentam para a populacéo de fiis e curiosos. Nos xangOs tradicionais do Recife 0 culto aos, ‘eguns esté integrado & vida ritual normal, cuja ténica predominante € de fato dada pelos orixés. No Recife os eguns jé nao saem mais com suas roupas espetaculares, como 0 faziam no princfpio do sécu- o.(14) Entretanto, seu culto se localiza agora em um quarto escuro, sem janelas, constru{do nos fundos das casas de xang6 ¢ ao qual sé tém acesso os homens ligados & casa-de-santo (chamados generica- mente de ojés, e que passam a formar uma espécic de sociedade se- creta, atuante ainda, apesar de que ja bastante desfeita, Os ofés si0 membros da seita geralmente bem préximos do Ifder ou oficiante (0 ‘ojé principal), ou entio homens da casa ativamente ligados & vida do culto. Nem todos os homens que freqiientam um terreiro de xang6 tém acesso a0 quarto dos eguns e € uma alta prova de confianca que se dé a um estranho admiti-lo 14 dentro durante algum trabalho ou oferenda, Enfim, 0 quarto dos eguns, também chamado quarto de balé, € sem diivida 0 local mais secreto ¢ mais cheio de interditos de qualquer casa de xangé. ‘© mundo dos eguns é tabu completo para as mulheres: ndo de~ vem jamais ver ou saber o que se passa dentro daquele quarto, néo devem chegar perto de sua porta e nem sequer devem cozinhar a carne dos animais que Ihes sdo sacrificados. Sua nica participagio neste culto consiste em responder aos cantos de egun, puxados pelos homens durante os sacrificios a eles oferecidos. Brasil (14) Para uma anise da extingdo das casos e culto 30s eguns no Recife, ver Carvalho, 1987, Para informacie sobre os eguns na Rio de Taneiro no principio do seule, ver Soko do Rio 1976; sobre o culto na la de Iaparica ver Dos Santos 1976, Para urna ‘escrito do ritual dos eguns no Recife, ver Carvalho, 1984 128 A crenca bisica do xangé reza que toda pessoa, ao morrer, transforma-se num egun. Apesar disso,,0s membros concentram seu interesse sobretudo nos eguns daqueles que pertenccram ao culto, Cada casa de culto tem entdo sua galeria de eguns, alguns corres- pondendo inclusive a Ifderes que nasceram no continente afticano aos primeiros fundadores do culto no Recife. E crenca difundida também que os eguns assomam & superficie do quarto de balé, du- rante os rituais de oferenda. Nessas horas os ojés falam com eles € cuidam para que no deixem o seu quarto € ganhem outras partes da casa, ou mesmo a rua, o que causaria enorme perturbagio aos pre- sentes e transeuntes. Pode-se imaginar, penso, sem muita dificulda- de, 0 quanto de dramitico se desenrola durante um ritual para esses espiritos Se tudo sobre 0 culto dos eguns & segredo, segredo maior é 0 que se passa dentro do quarto de balé, bem assim como 0 que Id se contém. Dentze tantas manifestacées de confianca com que fui hon- rado pelos membros das casas que estudei, 0 privilégio de haver po- dido entrar no quarto de balé e de Id observar rituais completos para (0s eguns destaca-se como excepcional. Foi tempos apts eu ja haver entrado no quarto que pude conhecer a extraordinéria hist6ria sobre Xangé que pretendo relatar. Relaxando apés um sacrificio para os orixés do qual tinha par- ticipado, conversava com Joaquim, filho de Xangé e com Mario, fi- Iho de Orixalé(15). Como também sou filho de Xang6, Joaquim ex- plicava-me certas caracteristicas desta divindade. No caso, enfatizava a ojeriza que Xangé tem em relaco A morte, “Ele nao quer saber de quem morreu. Se tiver um defunto na sala ¢ ele t4 comendo, nin- ‘guém tira a comida dele. Ele é um santo brincalhao, alegre; 0 toque (festa) pode estar fajuto, tocou para ele, hd alegria, E outra coisa: cle no guarda segredo”. De sibito, Joaquim me pergunta se eu jé sei de um sigilo que ha de Xang6 com relacdo ao quarto de balé. Digo que no conheco. Ele ameaca dizer, depois desiste; depois es- pera que eu Ihe pague pela informagio. Finalmente explica que, se disser, imeditamente deverd fazer uma oferenda de dois galos ¢ de um beguiri para o seu Xangé, para que ele Ihe perdoe pelo que va dizer. Insiste comigo que 0 que vai contar € algo “‘chave” e que ele pode inclusive “‘apanhar” (ser castigado) por isso. Prometo entio comprar os galos e os ingredientes para o beguiri. Feito 0 acordo, cle pede que as mulheres presentes se retirem para contar-me. (15) Os dois nomes so fctcios, porrazées Sbvia. 128 sage dr sien pm te 6 eliminaram.” -_ a Eu, “Que nio viu nada? Que ado viu egun aparecer? Joaquim: “Nada.” eneua Bur "'Sei, se comportou como um descrente? Jeaguiay Come um ofidan, Por isso nfo se fala nle 1 den- 110." ; . Eu: “Para a sociedade dos eguns ele nfo vale nada’ Joaquim: "La ele € zero. E por isso que tem o negécio: se ele vir fun morto, um trabalho de morto}, estiver com ele, ele nfo quer Taber, Se ele aver comendo, falece uma pessoa, nada dele se tira. Os utros botam, despacham, ele nio.” : “Joaquita volla-se para Mério e diz: “Voce vai cuidar como si silo. Se falarem, sei que fot voce.” Volta-se para mim e comenta, com orgulho: - “Bu tent meu velho, né rapaz? (Refere-se a seu pai, que fot quem Ihe ensinou a histéria.) oe oa Eis a historia de como Xang6 trait o segredo dos eguns. E dentemente, of planos de compreensio de ume histéria tbo pequens oo vata de incenivar a Joaguim, 20 miso tempo que ands ps 16) Agu en peo i cot fe (16) Agu eu proeere esigom Jee releionad com © funsionamento do quarto de Bae StS tan Comat fa eto per er sobre osc em Carvalho or Santos 1976. a (17 Opa mo orbs ove inn, aos membros de Nang, "ane ae GP guanncretendos mien Jc pos oma conn aes a oe re sum often pasa sor ume pesca poueo conve justamen or ae oo nc dit Ag bunt o ona Xango, cup etcsmo pod ese tas ena es por, ima glide una ea 130 so imimeros € nao pretendo esgoté-los aqui. Ela poderia referir-se, por exemplo, a uma certa superioridade de posic6es entre os orixés ¢ 5 eguns: residuo talvez de algum antigo antagonismo entre 0s dois cultos inicidticos. Xang6, de longe o orixé mais popular de todos, ameaga destruir a sociedade dos eguns, jé que seu poder maior resi- de no segredo mantido pelos membros. E a tinica retaliagdo que Xangé recebe € a de ndo poder mais participar dos servigos no quar- to de balé: sua alegria, vitalidade ¢ fama, porém nio ficam abalados pela reagio dos ojés. Entrando agora mais no centro da questio, o ataque de Xang6 a0 segredo do culto dos eguns é o mais profundo possvel. Ele po- deria sair contando, por exemplo, o que vit Ié dentro —digamos que tenha visto estétuas, objetos rituais, imagens, qualquer coisa. Se ele tivesse ido, por exemplo, como lemos em René Ribeiro, que no quarto de balé havia “um elaborado sfmbolo de Ext!” (Ribeiro 1978:41-42), teria agugado, mais que destruido, a curiosidade da- gueles que nunca entraram num quarto de balé: afinal, ficaria a an- siedade por saber como seria aquele simbolo de Ext. O apelo senso- rial do que € secreto ndo 36 teria permanecido intacto como até, quem sabe, intensificado. Ao dizer, porém, que nada havia Ié dentro, acabou de vez com a curiosidade do aspirante. E essa curiosidade é inegavel fonte de poder para os ojés; 0 que cativa € no saber abso- Jutamente 0 que ha no quarto de balé até que se entre nele. Além disso, ao dizer que nada havia, ele quis desmascarar uma crenca muito difundida no Recife: a de que os mortos chegam, sob alguma forma fisica, ainda que etérea, a0 quarto de balé, Joaquim se referiu a isso, ao dizer “que todo mundo tem a crenca””. Xang6 ndo somente Feportou 0 que viu (ou no viu) dentro de um quarto; ele também qualificou de falsa, ilus6ria, embusteira, a pretensio dos ojés de tra- zerem 0s mortos ao mundo dos vivos. Muitas so as caracteristicas do orixé Xang6 que convergem nessa hist6ria. Primeiro, sua revelagdo é também uma rejeicao do mundo da morte, o que € consistente com a personalidade de um deus alegre, brincalhao e que muito tem de Dioniso na sua afirmagio intensa da vida, Logo, Xang6 é também conhecido por ser cético € desconfiado. Devotos de Xangé costumam trazer consigo a marca da diivida constante. Mesmo no jogo de biizios, hé um oréculo especifi- co de Xang6 que expressa a dimensio da dtivida: obé di, onde ele fala, juntamente com Temanjé, sobre enganos, suspeitas, mal-enten- didos ¢ desconfiangas. E 0 caminho quase inevitdvel de todo eético Ea crise de autoconfianga, Assim, h4, no jogo de bizios, um oréculo de Xango, extremamente positivo,¢jilé xebora,que reza que o nico 131 que pode destruira excelente estrela de um filho de Xang@ é a crise Je confianga em seus prdprios poderes. Finalmente, ha 0 lado des ‘nistificador de Xang6, que muito o assemelha a Nietzsche: 0 que Xangd quer dizer € que tudo nfo passa de uma invengao dos ojés. Ele certamente esposaria o argumento nietzscheano de que foram os mesmos membros do xangd que inventaram o culto dos eguns ¢ © mmantém agora, em segredo, como uma maneira de exercer poder ¢ opressio sobre os homens. ‘© jogo de poder revelado pela hist6ria ¢ extremamente com- plexo, Joaquim, de certa forma, me quis conté-la, como um modo de efirmar-se como conhecedor dos “*fundamentos” do culto. E qual foi 6 seu impulso para contar? Ele mesmo me alertou sobre a existéncia do mito ~ eu nfo tinha maneira de saber sequer que ele existia, Se 0 segredo existe supostamente para no ser contado, paradoxalmente, a graca esti em conté-lo, do contrério ele desaparece.(18) Vencida esa primeira tensio provocada pela necessidade de contar, surge @ Solucdo de uma oferenda especial para Xang6 com a finalidade de aplaear, por antecipasio, sua provével retaliago, 0 que salva a pos- Sibilidade da revelagao. Quando Joaquim pede ao terceiro presente @Mirio) garantia como testemunha do sigilo, espera sobretudo con- trolar a divulgacio da histéria no contexto do culto no Recife. E ha finda um plano inteiramente mitico nessa revelacfo: eu sou filho de Yangé ¢ Joaquim também; dois tagarelas, portanto, que devem cir- ‘andar seu impulso de contar com a presenga de um orixd mais cala- Ser anais controlado com o que diz. E significativo que seja um Ori xal4, (0 santo de Mério), 0 pai dos orixas, que se interponha como testemunha e avalista da transmissio de segredo entre dois Xangés. ‘Na narrativa de Joaquim hé, além disso, outros niveis de con- fronto politico, Por um lado, o fascinio do culto aos eguns, que me Jevow inclusive a entrar no quarto dos mortos, faz-me cativo do sa ber dos ojés ¢ caio nas malhas do poder do culto ao querer escutar a historia que Joaquim me conta (afinal, ele sabia perfeitamente que & mito me interessava). Por outro lado, também me tomo mais podero: so (e agora também mais responstvel pelo destino do culto), aos ‘olhos de quem se interessa por esse mundo religioso afro-brasileiro, ao detectar um segredo suti] — um segredo sobre © segredo, isto é5 (18) Lembro aqui de uma crise analogs vivida pelo ino Simeon no Livro do Esplendor (Sepler he Zohar). I, 11b, um dos cénones do Cabala mistiea judsica, Ele chorava (Game do seguint diem: se revelava os arcanos, expunha-os 8 tersivel possibiidade de que fossa usados por malfeitores; se nada dzia, privava os colegase dsefpulos ‘do Zondecimento superior, ponda assim em risco o desaperecimento da prépria tra {ego eeterca, Felirmente para nos 0 rabino Simeon no permaneceu de todo cals ot 132 -segredo, conforme discutirei mais adiante. Quanto & histéria propriamente dita, foi to revelador para mim gue ma contassem, como que me permitissem entrar no quarto dos guns. Ela me ajudou a compreender 0 que vi dentro do quarto in lependentemente do que seja que eu haja visto Ié dentro) e, obvia- Reete, seu nivel principal de referéncia (Saber 0 que existe ou que nfo existe) s6 faz sentido para quem entrou alguna vez num quarto Nao & possivel saber se esse mito foi criado no Recife, mas funciona como um perfeito comentério-resposta & sitvacdo presente do xangé (€ também do candomblé baiano), que passa por um perio do de declinio de suas bases tradicionais e experimenta um certo afrouxamento das normas ¢ do rigor do segredo.(19) Afinal, toda a tradicio afro-brasileira tem sido bombardeada por duas geragées de pesquisadores a cata de desvendar seus segredos. J4 Henri Clouzot, em 1951, no seu livro Le Cheval des Dieux, havia publicado fotos de ne6fitos reclusos nas camarinhas; depois, Pierre Verger, no seu livro Diewx d'Afrique de 1954, Roger Bastide descreveu abertamen- te em Candomblés da Bahia (1958 em francés ¢ 1961 em portu- gués), detalhes de rituais que até hoje ainda sio tabus nas casas de Xangé do Recife; Juana Elbein discorreu extensamente sobre 0 culto dos eguns e seu livro Os Nagds e a Morte € amplamente conhecido pelo pessoal do santo. Além dos pesquisadores, houve também as conseqtlencias desastrosas das perseguig6es policiais aos cultos. $6 no caso particular do xang6, entre 1939 ¢ 1945 casas-de-santo foram invades, seus pesis violdos, a poica forando, mediane violencia, a exposigéo de objetos rituais ci violéace, a expasigto de objets rtuis ciosamente guardados da Enfim, enquanto nos anos quarenta era possivel de fato susten- tar que 0s cultos afro-brasileiros tradicionais mantinham uma mensio de sua vida ritual resguardada dos nio-iniciados (e, diga-se também, muito particularmente resguardada dos estudiosos), a partir dos anos cingilenta os segredos, materialmente definidos (c esta dimensdo material € uma das dimensées reconhecidas como signifi- © exposi¢ao que dura até hoje. E pelo menos significativo que em tal artistas, cineastas, jornalistas etc, surja um mito segundo © qual um dos préprios orixds resolve trair o segredo mais caro da seita toda: 0 segredo dos eguns. E claro que o conceito de revelagio de que partem esses explo- radores do mundo religioso afro-brasileiro, como dignos represen- tentes da cultura cientifica ocidental, é um conceito puramente mate- rial: desvendar é observar, ver, registrar em escrita, gravar, fotogra- far. E a exposicéo do material € a conquista do segredo. Neste con texto, 0 mito de Xangé sobre o fim do segredo (¢ que circula também dentro da estrutura do segredo) reconhece proceso da ex- posicio material dos sigilos do culto como irreversivel e quase irre- fredvel e recoloca a questéo do significado e do poder em outro pla- no — 0 do segredo contado, mas nio visto ~ salvando assim o culto da exposicao total. O mito nos diz que aquilo que os sentidos e nos- sas méquinas podem registrar deixa ainda muitos problemas sem re- solver, IV, Nietzsche e Xangé: os mitos da desmitificago Um dos temas centrais desta discussio poderia ser formulado diretamente em termos morais: a dificuldade da ciéncia em lidar com © mistério. Nietzsche comegou por acreditar que é a lei de causa e efeito que toma a religido prescindfvel — € a cigncia que mata a reli- gido(20) — © esse espaco vazio acaba sendo preenchido através de ‘uma reposigio espiritual: o retomo ao mundo “pagio”. Este gue ha- via sido supostamente “‘morto” pelo cristianismo (dai 2 imagem crist do pagenismo como um “mundo sem Deus") passa agore a tomar-se epftome da religiosidade viva (ou melhor, vivivel, pois © que ele oferece, nos escritos finais da Vontade de Poréncia, € a pos- sibilidade de renovacao do mundo divino — seu culto, propriamente dito, néo foi levado a prética(21). Em contraparte, 0 culto xangé pa- rece aceitar o cardter convencional da realidade ndo-empirica, maé constr6i altemativas simbélicas para que essa convencéo conserve seu poder e mistério, Para quem jé viu 0 quarto de balé (e que poderia entio tirar suas préprias conclusées a partir de sua observacao empirica, como uum cientista) 0 xangé reserva um mito, colecando 0 visto, 0 consta- (20) Nietzsche diz claramente no Amtcrsto: “0 sacerdote x8 conhece um grande perigo: cigncia, a nogto de causa cefeito" ($49). (21) Leia-se sobretudo 0 $480: “E quantos deuses novos so ainda possiveis.. Nio duvi- daria da existincia de muitasespécies de deuses... Ainda uma ved! quintos dewses ‘novos so ainda possvei! 134 tado sensoriaimente, num outro marco de signifieado que evita bana- lizar 0 que se tornaria, para a ciéncia, um mero fato bruto; hd (ou no ha), 16 dentro, isso © aquilo, com tais e tais caracteristicas fisi- cas. Ou seja, 0 que 0s sentidos constatam nem sempre € 0 mesmo que a razio aceita, ou que a crenga-absorve. Nietzsche faz do se- gredo que nos oprimia (que podemos prescindir de Deus © néo o queriamos dizer) uma revelagao; o xangé faz dessa revelagao (de que até dos eguns se pode duvidar) um novo segredo. O insensato de Nietzsche sai gritando pelas mas para quem queira ouvir: Deus morreu! Os ojés revelam, sotto voce, para os eleitos que Xango desmistificou-os. A questo, entio, deixa de ser a da oposicio nietzscheana entre mundo transcendente © mundo parente, apenas. Tal como 0 concebo, trata-se de uma questio entre mundo significa tivo (ou cheio) © mundo banalizado (vazio). O que Nietzsche fez foi tomar a equivaléncia direta (¢ tradicional) entre os dois mundos (mundo transcendente = significativo ¢ mundo aparente = banaliza- do) € inverté-la com sua revelagio, anunciando que foi o mundo transcendente que se banalizou ¢ o mundo aparente que se encheu de significado. © mito de Xangé me leva a crer ser possivel identifi- car equivaléncias ainda mais complexas do que estas. Sendo veja- mos. © desenvolvimento da ciéncia, no Ocidente costuma ser conta- do, historiografica e miticamente, como uma luta erescente por erra- dicar os aspectos magicos esotéricos e sobrenaturais da realidade empirica, Simplificando, a marcha da ciéncia é tipicamente colocada como a marcha platonica das trevas para a luz. Contudo, penso que toda a questo dos cultos esotéricos, das seitas magicas ¢ das socie~ dades secretas no mundo ocidental (é dizer, todo esse universo anti oda, que faz sombra ao saber cientifico institucionalizedo) pode ser vista como manifestagées de um grande mito, que tanto funda-se esse secretismo esotérico quanto o priprio agnosticismo exterio- Fizante da ciéncia, AmbOS 0s grupos (os magos ¢ os cientistas) bus- cam a manipulagéo de uma forca. A ciéncia fundamenta a existéncia da sua forca na revelago de todos os arcanos, na ruptura das barrei- ras, na lucidez completa, na crenga de que ao descobrir 0 mecanismo ‘da magia, por lexemplo, pode potencializar o seu efeito, no caso de ue se comprove sua existéncia(22). J4 0 mito iniciético também } Mesmo um cieniss © epistemstogo to aberto ¢ extco da citncia ocidental como Paul Feyerabend no deixa de assumir a tipia posig de buscar oconteddo cient fi- ©0.¢ material nos mitos e doutrinas dos primitivos,retirando-os do seu context0 sig nificativo maior, isto, temtando caprurar o sev segredo. Eis oque ele diz sobre0 vo- inguém o conhece, todos 0 usa como um paradigma dostraso ed canfusto. 135 postula uma forca, de origem mégica, secreta, que conduz a um po- der. A diferenca est em que, para 0 esoterismo ocidental, este poder 6 funciona enquanto se mantém dentro dos limites do segredo, do mistério, Hi, paralelamente ao seu funcionamento secreto, a erenca, exatamente contréria & da ciéncia, de que a revelacio libera forgas ou energias negativas, conduzindo inevitavelmente & sua destruiga0, Assim, as atitudes do esoterismo e da ciéncia se equivalem no momento em que se baseiam igualmente na literalidade do poder € ndo no seu simbolismo, Dentro desta atitude ocidental, 0 funda- mental da forga reside ou num estar completamente oculta, resguar~ dada, ou entéo no seu completo desvendamento, na sua exposicio total.(23) Contrastado com esses dois modelos, 0 mito de Xango ¢ os eguns parece colocar as relagées entre crenga, segredo e mundo empfrico de maneira obliqua. Por um lado, nao accita a democracia generalizadora da atitude cientifica, em sua luta sem téguas contra 0 “obcurantismo mégico”; por outro lado, no obstaculiza ou exclui o inguirir racional sobre 0 mundo, mas pée em xeque o préprio resul tado do inquirir cético, trazendo a desmistificagéo para o interior do mito e da estrutura inicidtica: o segredo (perplexidade maior tanto da ciéncia como do esoterismo)(24) & deslocado para um plano que fica além da dicotomia verdade x mentira, Neste sentido, 0 mito de Xang6 no ¢ um mito etiolégico, ov um mero comentario ao mundo empitico, mas funciona como um elemento que denomino de intensi- ficador de significado: apés ouvi-lo, toda aquela dimensao de reali- dade que pensava haver compreendido com meus esforgos de obser vvagio assumiu uma nova face de complexidade e estranhamento.(25) CContudo, © vodu possi uma base material ime, ainda que nfo sufcentemente compreendda, eum estudo de ne manifesagdes poe ser usa pas coger ¢ gust ste ait para revise nosso conbecimentadafiscloga" Fepeatend BT) De nove, 0 vod 6 fascina enavano resist setaduigo em linguagemcentice Una vez que iso see feito, 0 qu ret? Feyerabend nse compronste em aiaat s fica algo caja bate ao sje material ou tmpien. Sun ponur Temes al oe Nietaiche que ade Nang, apesar de seus esergs de aerodona cde su efcaso postiveme (23) Robin Horton, mim ens femoso, taba com wna eposigo entre mito eciéncia ue aparentemente se parece coma minha, ove, quando vss de pene noses spl oan le eds tdci rons Brprio local de circulate, o que mio €o caso dahiseria de Nangd ue daeutocr Horton 1967) = Saeeimcnaeeme (24) J, Bronowal, 0 grande defensor da democraca da cinca,comenta qe “com oad- vento do secrete toda traigho cientifes se ltoera 9868 Afinal, qual snecesidade de Joaquim vr me dizer ths ou no ti algo dentro 60 ‘és, quando mabe que eu mesmo o iupecionsi com meus propos eos? Mees pe tnt eoriir ov agucar minha peretpsto,pnso que sue engi ol elas Zire (espera em toca um nivel de drignio «aver dato do quvcu tha jssumido at ent) mum universe de sgnfcagesettament egies onde Dee 0% egunt podem até nf existe ainda asin conimuarem auande sabres sehen, de, desde qe nos preparemer ritilmemt paral pons 196 as © quarto de balé, 0 escuro quarto dos mistérios, é uma espécie de caverna platénica ao inverso; niio € quem sai da cavemna que des- venda o segredo, mas quem nela entra. A questo toda esté em que se faz com 0 que se ve. A propria simbélica do mito platénico, com © sol brilhando e a imensidio do espaco aberto, dirige-nos para 0 compartilhar generalizado do segredo.(26) Platio pressupde toda uma preparacao por parte do iniciante (a idade madura, as asceses, a prética da dialética) para que Ihe fosse finalmente revelado 0 misté- rio enquanto verdade absoluta(27). © culto aos eguns exige, em contraponto, dupla preparagio: uma primeira, para sair da luz or dindria e penetrar na escurido do quarto dos mistérios (e apreend: Jo enquanto um nivel de verdade); e uma segunda, para ser capaz de desmanchar essa verdade — agora relativa ~ sem desfazer a crenca no ristéri HG ainda um correlato desse meta-segredo (0 segredo sobre 0 nada que é 0 segredo) no argumento recente de Gianni Vattimo so- bre a desmitificacdo do mundo na época modema (e pés-modema). Neste mundo contempordneo, caracterizado pela secularizaco, ne- nhum retomo a0 mito intacto é mais possivel. Baseando-se também num belo aforismo da Gala Ciéncia ($58), Vattimo sugere que “te- mos que seguir sonhando, sem perder a consciéncia do fato de que tudo € um sonho" (1985:360)(28). O mito de Xang6 nos faz ver que esta experiéncia do homem ocidental contemporaneo, que Vattimo, enquanto filésofo, equaciona, é também vélida (ainda que expressa numa linguagem obviamente mais distante da consciéncia discursi- va) para os adeptos dos cultos afro-brasileiros tradicionais do Reci- fe. Falei no infcio da relagdo entre Teologia ¢ Antropologia. Digo agora que 0 arquétipo de Jasio ronda nossas atividades de aprendi- (26) Pensemos também no excesso de exteriorizagéo e luminesidade implicados no texto \de Niewsehe:o insesato acende uma lanterna em plena luz do di, (27) Jan A. Nufio desenvolveu recentemente uma argumentagao bastante cratva sobre & ‘losofia como um mistério initio. Inflizmente, a meu ver, continua presoa um ‘eticismo ainda mais problemitico que o nietescheano, porgue positivisia, chegando inclusive ridicularizar © mundo do mistério, da intuigho, do supra-racional (ver "Nutio 1985). Meneiono-0 como exemplo de uma posicfo oposia que defend. (28) Vale a pena citar sua frase inteira sobre © mito no mundo contemperineo: "pre senga do mito é um efeito da modernizagio enquanto secularizagic: tendo desma ado a idéia do progresso como dssolugso do mito, regrescames 40 mito, mas apse termos feito a experiéncia da sua dssolugso, surge um nove palitefimo, mas to n30 envolve apenas uma dissolusio da forca unitiria da divindade emmuitos deuss, em ‘uma pluralidade de forgas limitadss, Isto significa também, de um modo mais ger, 1 debilitagho da propria essenca da verdade: 0 que 6 de fatoaexperiénca do seta ‘na modernidade tarda, que nfo mais eré na primazia de sua autoconscigncia(Vat- timo 1985:361). Para uma discusso especifiea da posigdo nist de Vttimo.insp ‘da justamente em Niewsche, ver Carvalho 1985, 137 zes de feiticeiro: hé sempre 0 perigo de se destruir aquilo que se ‘quer compreender, pois, em vez de contemplar ¢ relacionar, apenas, somos tentados a possuir, para depois regressar 2 casa com um velo- ino de ouro, initil e maldito. Se para algo serve a reflexio antro- poldgica (ou teolégica) € para sensibilizar, com novos estimulos, hosso plano moral de existéncia, A leitura apaixoneda de Nietzsche ime faz ver que 0 seu fascinante reino dionisfaco no € muito mais do que uma bela promessa intelectiva, pois Ihe falta o suporte vivencial ppara que seja transmitido aos sentidos. A experiéncia de cumplicida- de com o culto xangé me ensina que a forca especial que ele emana esté na sua capacidade de atualizar constantemente a vida ritual. ‘Afinal, 0 misterioso no esté em que a existéncia dos eguns desafie a cigncia, mas que, através deles, se estetize e se dramatize com todo vigor as relagées entre a vida e a morte. SO 0 rito possui essa eapa~ cidade extraordinéria de se desmitificar por inteiro ¢ ele proprio re-mitificar-se. Sua transparéncia € to iluséria quanto a da nudez (que, uma vez surpreendida, néo desvenda o segredo siltimo do corpo {que olhamos: amanha, de novo vestido, reconstréi o seu mistério de curvas € reentrancias tinicas ¢ desejadas. E esta verdade, simples, mas as vezes perigosamente esquecida, de que nem todo o factual desvela 0 que 0 rito e 0 mito podem fazer recordar a ciéncia € & consciéncia discursiva. BIBLIOGRAFIA [ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max, Diaftica do eclarecinenta. Rio de Tanci- 170, Jorge Zahar Editores, 1986. 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No entanto a religifo tradicional yoruba apresenta uma concepc’o muito semelhante que, longe de indicar ce~ ticismo ou declinio da crenga, parece constituir um impulso vigoroso em direco & devosio. De acordo com o pensamento tradicional yo- ruba, 0s driga (‘‘deuses”) sféo mantidos vivos gracas & atencao que ‘os humanos Thes dedicam. Sem a colaboraco de seus fiis, 0 drisé seria atraigoado, ridicularizado e reduzido a zero. Tal concepgio pa- rece ser intrinseca a religido desde eras remotas. Como pode seme- Thante percepgdo fazer parte da “‘crenga’” de um devoto? Em vez de especular abstratamente se pessoas pertencentes a outras culturas acreditam ou nfo, conforme faz Rodney Needham (Needham, 1972), parece mais interessante recorrer a um exemplo como o yoruba, no qual ocorre uma inesperada configuracio de idéias, aparentemente * Artigo publicado pela primeira vex em Africa, 51(3), Journal ofthe Tniernational Af can Insitute, 1981 142 parodoxal ¢ indagar como essas idéias se formam(1). Ao encaré-la como integrante de um determinado tipo de sociedade, com determi nados tipos de relagées locais, € que se pode perceber por que essa configuragao € to convincente, O conceito de que os homens eriam 0s deuses de modo algum € privativo do pensamento yoruba. Apre- senta-se, dentro de certos limites, em numerosas religides tradicio- nais da Africa Ocidental, Em algumas, tal como se dé entre os kala- bari, essa concepséo pode ser vista sob uma forma ainda mais expli- cita do que entre os yoruba. Uma comparacio talvez possa ajudar a demonsirar como é a constituigao de relacionamentos sociais que toma esse concecito no somente aceitével, mas primordial para o pensamento religioso da sociedade. ‘As relag6es entre os homens © os drigd constituem, em certo sentido, uma projecéo das relagées entre as pessoas na sociedade. Gostaria de sugerir que, se os yoruba encaram poder dos érisd como algo que é mantido e ampliado gragas & atengéo do homem, is- to se deve a0 fato de que eles vive num tipo de sociedade onde fi- cca muito claro que 0 poder humano do individuo depende, 2 longo prazo, da atengio ¢ do reconhecimento de seus semelhantes. Trata- se de uma sociedade hierdrquica, dominada pela instituigéo da mo- narquia divina e articulada por meio de uma série de titulos de che- fia, que englobam diferentes graus e postos. No entanto 0 impulso dindmico, na vida politica, é a ascengio dos homens que se fazem por si mesmos. Os individuos competem a fim de criar uma posiglo prépria, recrutando seguidores dispostos a reconhecer sua grandeza. Os titulos significam posigées de poder, mas néo séo hereditérios So obtidos por homens que, antes de mais nada, devem ter-se fir- mado. O sistema de titulos é bastante flexivel, permitindo a um ho- mem que ocupa uma posicéo de segundo plano amplié-la, gracas a seus préprios esforgos. E igualmente possivel para os homens ultra- passarem o sistema de titulos ¢ se tomarem importantes na cidade (1) Aguile que interessa realmente a Needham & saber se existe ou no um estado interior discriminivel, universalmente experimentado, © que corresponde 20 conceit de "crenga’. Ele conclue que no e que, portato, nio se deve te apresungio de falar a respeito das “crengas" de outras cultura, A pats deste ponto de vst, o exemplo yo- nba provavelment seria encarado como uma prova a mais de sua conclusto. Se 06 {ado de mene do yoruba em relaggo a seus deuses de cero mode lembra 0 ceticiemo de um homem ecidenta, isso indica que ua experiénca de crengas ~ se é que al expe riencia existe ~ nfo €a mesma. A questio que, no meu modo de ver, deveia ser sbor- dada diz respeito a quaissio as diferencas de esraura ~ estruura da Sociedade e das ideas ~ que possibiltaa algo aparenterente semelhaate ao ceticismo exetcet un pel ti diferente. A articular conf guragdo de idtias que consti astitude devocio= ral yoruba faz sentido unicamente em circunstincis soiais histéricas partiulares, A natureza da "experigncia' da erenca me parece menes importante do que snatureza

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