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AULA 5 – TEORIA DO ESTADO

TRANSCRIÇÃO EDUARDO MATOS

ARQUIVO AULA 5A

Resumo da última aula feito por um aluno - inaudível

Não havia, de um lado, um Estado montado e estruturado, e, de outro, um complexo de


símbolos mitológicos para justificá-lo. O complexo de símbolos era a própria
organização do Estado. Não existia essa separação, que se torna possível mais adiante,
entre uma estrutura de poder e sua legitimação ideológica; isso era absolutamente
impossível na época. No entanto, é claro que o estudioso moderno, na maior parte dos
casos, tende a ver essa organização antiga aos olhos da moderna, usando os mesmos
conceitos para descrevê-las, por falta de outros mais adequados. Essas coisas acontecem
em grande parte porque todo e qualquer estudo, seja da sociedade humana ou das
ciências da natureza, é recebido, hoje, sob a forma de disciplinas mais ou menos
estruturadas; e o esforço que o estudante tem de fazer para dominar somente o
vocabulário técnico e os complexos de conceitos nominais de cada disciplina é uma
coisa imensa. Some-se a isso a necessidade de operar tecnicamente com esse material e
estaremos diante de algo extremamente complicado. Isso demanda uns três ou quatro
anos de adaptação, que equivale a um processo de realização, no sentido inglês da
palavra, o de perceber a realidade de alguma coisa, onde o estudante vai percebendo
aqueles conceitos gradativamente como realidades que aparecem na prática
experimental daquela ciência. Depois de tanto tempo imerso na esfera de uma certa
ciência, adquirindo todo esse treinamento, vocabulário etc., a tendência inevitável é
acreditar que as realidades representadas por aqueles conceitos existem realmente, e isso
marcará a diferença entre o estudioso daquele assunto e o leigo. Para este, tudo aquilo
serão nomes, na maior parte dos casos, ininteligíveis; para aquele, sabe-se a que coisas
esses nomes se referem.

Porém, entre a experiência do leigo, para o qual tudo é palavra vazia, e a experiência do
estudioso profissional, que já reconhece mais ou menos as realidades por trás daquilo,
existe uma terceira etapa, na qual é preciso se perguntar de onde saíram os conceitos
que formam o corpus de uma ciência, ou a maneira como eles foram encontrados pelos
estudiosos da área. Sabemos, por exemplo, que os corpos tem massa e peso,
independententemente da existência de um químico ou físico que os analise, porém, o
conceito de peso e de massa não surge naturalmente, pois tem de ser obtido mediante
uma diferenciação analítica da própria experiência. Todo e qualquer objeto que possua
uma massa, possui também uma qualidade cromática, então, se decidirmos considerar o
objeto somente em sua massa e não na sua cor, não estaremos estudando o objeto real,
mas um aspecto dele, que foi separado analiticamente por nós. Nesse processo de
separação analítica, pelo qual se formam os conceitos básicos de todas as ciências, pode
ter havido uma multidão de erros. Este é o primeiro risco. E o segundo risco é o de nos
acostumarmos demais a lidar com as coisas através dos conceitos básicos de uma
ciência particular, ao ponte de crermos que aqueles aspectos, separados e abstraídos dos
objetos, são reais em si mesmo, quando nunca o são na realidade.

Ora, se isso aconcete até na ciência da natureza, onde os objetos tem existência física, e
podem ser recolocados a qualquer momento diante dos olhos do pesquiisador, para que
ele volta a examiná-los na sua concretude existencial, e volte a fazer toda a separação
analítica novamente para verificar se houve algum erro, que se dirá das ciências sociais,
históricas e humanas, onde os objetos não podem ser convocados fisicamente para
reaparecer na nossa frente. Isso quer dizer que, quando estudamos direito ou sociologia,
estamos lidando com conceitos que também foram obtidos por separação analítica,
exatamente como (#0:10:00) os conceitos de qualquer ciência natural, porém, não uma
separação analítica feita em objetos que podem ser tornados presentes fisicamente, mas
em objetos que só podem ser recolocados na sua presença através da memória e da
imaginação.

Ora, se isso acontece até nas ciêncisa da natureza, onde os objetos tem existência física,
e podem ser recolocados a qualquer momento diante dos olhos do pesquiisador, para
que ele volta a examiná-los na sua concretude existencial, e volte a fazer toda a
separação analítica novamente para verificar se houve algum erro, que se dirá das
ciências sociais, históricas e humanas, onde os objetos não podem ser convocados
fisicamente para reaparecer na nossa frente. Isso quer dizer que, quando estudamos
direito ou sociologia, estamos lidando com conceitos que também foram obtidos por
separação analítica, exatamente como os conceitos de qualquer ciência natural, porém,
não uma separação analítica feita em objetos que podem ser tornados presentes
fisicamente, mas em objetos que só podem ser recolocados na sua presença através da
memória e da imaginação.

Isso quer dizer que qualquer conceito, seja da antropologia, da economia, do direito, da
história, da sociologia etc., foi obtido a partir de um complexo que é a própria
experiência humana e foi sendo diferenciado. É evidente que essa diferenciação não
pode ser feito exatamente como podemos separar a cor e o peso de um corpo, porque a
cor e o peso, embora sempre apareçam juntos, não podem aparecer da mesma maneira.
Não há um jeito de a cor aparecer como peso e o peso aparecer como cor. Não é
possível ver o peso de um objeto, ou pesar com a mão a sua cor. Essa impossibilidade
física de confundir as duas coisas demonstra que estamos tratanto com aspectos que,
embora fisicamente unidos, correspondem a realidades diferentes e inconfundíveis.
Mas, quando se trata de uma realidade sociológica, política, jurídica etc., não existe essa
separação dos cinco sentidos que nos permite perceber este ou aquele aspecto desta ou
daquela maneira. Isso quer dizer que, de certo modo, os conceitos de ciência natural,
pelo menos os mais elementares, são adquiridos com a ajuda da própria estrutura do
nosso corpo. Ou seja, há certas diferenciações no aparato cognitivo que correspondem a
diferenciações no corpo do objeto.

Mesmo assim, separar o peso da cor já não é muito fácil, considerando que você nunca
pode ter peso sem cor, nem cor sem peso. Todo objeto que tem cor, é porque ocupa um
lugar no espaço, e se ele ocupa um lugar no espaço, é porque pesa alguma coisa. Essas
separação já é um tanto problemática, porém, quando falamos sobre algo como o
Estado, de onde poderíamos obter o conceito de Estado? Sabemos que não existe o
Estado na natureza - não existe o Estado das minhocas ou das pedras. Trata-se de uma
entidade que só existe onde existe uma sociedade humana, um certo aglomerado
humano de um certo tamanho, onde as pessoas se dedicam simultâneamente a milhões
de atividades completamente diferente e interligadas de algum modo, com interesses
variados. É desse complexo que teremos de obter, por abstração imaginativa, o conceito
de Estado. Imaginem quantos erros podem ser cometidos nesse processo de separação.
Ao fazermos um curso de direito ou ciência política, onde o professor dá uma definição
de Estado, ou consultando um dicionário em busca do verbete, costumamos aceitar
aquela definição como uma entidade objetiva, algo tão real quanto a cor ou o peso dos
objetos. De fato, não é assim. Ou seja, Estado é um nome de uma realidade altamente
problemática, que se recorta dificultosamente de um complexo de experiências, que não
pode ser apresentado diante dos nossos olhos como uma cadeira ou uma mesa para que
distingamos características como cor e peso. Mesmo porque, para que possamos fazer
esse estudo, uma das condições necessárias é que nós próprios estejamos dentro de uma
sociedade humana. Ou seja, a realidade de dentro da qual obtêm-se o conceito de Estado
é a realidade em que se está, onde o objeto não pode ser apresentado como que
projetado em uma tela. Mas não só isso. Este Estado não apenas será diferenciado como
uma entidade em particular, mas por vários aspectos que serão estudados pela ciência
política, pelo direito, pela história etc. Evidentemente, esses vários aspectos também
não aparecem nem existem separadamente e de maneira distinta como a cor e o peso.
Isso quer dizer que o fato destes estudos já estarem classificados em conjuntos
disciplinares diferentes é um grande obstáculo à compreensão do fenômeno, porque
todas essas distinções foram obtidas por um processo abstrativo operado em cima do
mesmo complexo de fenômenos.

Mais ou menos por intuição, sabemos que o Estado tem um aspecto jurídico que é
distinto de seu fundamento militar ou geográfico. É óbvio que o Estado considerado
geograficamente não é a mesma coisa que o Estado considerado juridicamente. Porém,
nesse caso, as distinções entre as várias disciplinas, que são como enfoques ou
pespectivas, não correspondem a distinções objetivas no corpo do próprio objeto
considerado. Nunca é possível ter certeza a esse respeito. Isso quer dizer que se estamos
lidando com os conceitos da ciência jurídica, da ciência política ou da sociologia, é
sempre preciso ter em vista o próprio complexo de experiências do qual esses conceitos
emergiram, retornando constantemente a esses complexos, tendo em vista a necessidade
verificar se as distinções disciplinares com as quais estamos lidando tem algum
fundamento no próprio corpo do objeto.

Essa é a primeira precaução, que já é, em noventa e nove porcento dos caso,


negligenciada. Normalmente, opera-se com os conceitos da própria disciplina sem se
perguntar de onde eles saíram. Ou seja, aquelas distinções, às vezes de alcançe
puramente metodológico, que foram estabelecidas para obter uma conceituação jurídica
(#0:20:00), econômica ou geográfica do Estado, acabam funcionando como se fossem
coisas ou entidades reais. Essa falsa impressão é ainda reforçada pela própria
dificuldade que o estudante tem de adquirir os conceitos daquela ciência determinada.
Se esse esforço consiste em dar realidade a termos e conceitos, já que a diferença entre
alguém que conhece uma matéria e um outro que não a conhece consiste em que o
primeiro vê como realidade aquilo que o principiante ou o leigo vê apenas como
palavras. Acontece que, em alguns casos, ver essas coisas como realidade pode ser um
grande erro. Em verdade, às vezes, a diferença entre o leigo o profissional é que o leigo
sabe que não está compreendendo coisa alguma, e o profissional não sabe nem isto. Ao
conversar com advogados, psicólogos ou sociólogos, muitas vezes vemos como é
possível dar realidade a palavras, acreditando que elas são realidades. Mas isso só é
possível de ser verificado quando trazemos à consciência o próprio complexo de
realidades do qual esses conceitos foram obtidos por abstração, para daí sabermos se
essa abstração foi obtida corretamente ou não, e quais são as condições da qual ela
depende.
Ora, já é difícil enunciar a distinção entre o mesmo conceito considerado do ponto de
vista das várias ciências, ou seja, já é dificíl perceber qual é o limite ou a fronteira entre
várias disciplinas - por exemplo, onde começa e onde termina a diferença entre
antropologia e sociologia. Mesmo na hora que acreditamos conseguir entender a
fronteira entre uma coisa e outra, ainda não sabemos se a fronteira entre elas existe
objetivamente no corpo da realidade social, ou se é apenas uma distinção metodológica
disciplinar. Quando não se sabe nem isso, é impossível saber do que se está falando.

Temos então o primeiro problema. Se entendermos que é necessário trazer sempre à


consciência o próprio complexo indiferenciado de experiências, para depois, em cima
desse material, criar consciência da diferenciação operada, nos defrontamos com uma
segunda dificuldade: esse objeto não pode ser trazido à consciência como um objeto
físico é trazido ao exame dos sentidos. Ao falarmos da anatomia dos elefantes, é sempre
possível trazer um exemplar da espécie para ser examinado. Porém, é mais fácil arranjar
uma manada de elefantes do que tornar presente à consciência algo como "a sociedade
humana". Mesmo porque a sociedade humana nunca aparece separada do ambiente
físico no qual ela existe. Ou seja, não existe, de um lado, o ambiente físico, e de outro, a
sociedade humana. O que existe é um conjunto de interações entre pessoas e o ambiente
físico que tem algo a ver com os limites que definem a sociedade humana.

Dessa forma, temos os seguintes problemas: Primeiro, não podemos lidar com os
conceitos das várias disciplinas sem evocarmos o complexo de objetos dos quais esses
conceitos foram obtidos; Segundo, não sabemos como trazer à consciência esse objeto.
Tudo isso são precauções metodológicas absolutamente básicas e fundamentais. Quando
vemos sociólogos, juristas e historiadores operando com esses conceitos como se
fossem realidades e falando a seu respeito com um ar de certeza absolutamente seguro,
não podemos deixar de sentir arrepios, porque a quantidade de erros que pode haver
nessas análises é imensa. E o risco é maior ainda quando espremos esses sujeitos para
saber de onde saíram os conceitos e verificamos que a quase totalidade nunca se
perguntou sobre o assunto. Ora, esses conceitos que estão sendo utilizados fazem parte
de um conjunto de conceitos disciplinares, que só podem ser entendidos quando
sabemos a história de todas as discussões e operações cognitivas que foram realizadas
para que fosse possível destacá-los de dentro do corpo do objeto. Ou seja, cada conceito
nas ciências humanas tem a sua própria história, e essa história é a história de um
problema, de um conjunto de discussões no qual, frequentemente, a maior parte do
problema ainda está sem solução. Isso quer dizer que um bom estudioso da área, um
erudito acadêmico ou profissional, pode ser avaliado pelo seu domínio do assunto se
quando, perguntado sobre um determinado tema, ele responde com uma definição ou
uma narrativa da evolução dos estudos de um problema. No último caso, ele
provavelmente sabe do que está falando.

É claro que, para fins de transmissão didática, qualquer um terá que utilizar desses
conceitos como se fossem realidades estabelecidas, mas é preciso estar ciente de que
não o são; é preciso saber que cada um deles é um problema, e só pode ser concebido
como tal. Por exemplo, a fronteira entre o econômico ou o jurídico não pode ser
delimitada, visto que qualquer fenômeno da primeira ordem sempre tem uma
implicação e uma contrapartida na segunda. É impossível dizer precisamente onde está
a fronteira entre uma coisa e outra, essa separação é estabelecida apenas para fins de
estudo, visto que, na realidade do objeto, ela não existe e nem pode existir,
simplesmente porque um ato econômico, considerado na sua totalidade, está sob a
vigência do aspecto jurídico. Esses dois territórios se recobrem inteiramente: tudo que é
econômico é jurídico, embora nem tudo que é jurídico seja econômico. Quando
estudamos economia, vamos lidar com diversos conceitos durante anos sem nunca
lembrarnos que estamos tratando com realidades jurídicas. É o mesmo que dizer que
estamos estudando uma fantasmagoria, que só existe dentro de uma determinada clave,
para fins de estudo. (#0:30:00) É como se fossêmos estudar anatomia sem fisiologia,
sem preocupações para com o funcionamento dos órgãos, mas só com o seu formato, a
ordem, a estrutra, estudando aquilo anos à fio sem atinar para o pequeno detalhe que
tudo aquilo funciona, e só existe porque funciona.

Isso quer dizer que a distinção entre os pontos de vista que adotamos para estudar a
realidade e as diferenciações internas no próprio corpo desta realidade podem não
coincidir, ou podem coincidir problematicamente. E a única maneira de garantir uma
certa seriedade científica em qualquer estudo que se faça é estar constantemente se
reportando a esta diferença e a esta tensão entre as diferenciações entre o corpo de
conceitos utilizados e as diferenciações reais e objetivas da realidade, sabendo que elas
nunca coincidem perfeitamente e que a primeira tem que ser constantemente corrigida
em função da segunda.

Ora, pelo tipo de organização curricular que hoje temos na universidade, isso é
extremamente difícil. Porque as pessoas primeiro vão estudar a disciplina depois vão
fazer algo chamado intirdisciplina. Quer dizer, primeiro se vai lidar com aqueles
conceitos que são próprios de um determinado enfoque, e quando acostuma-se a lidar
com aquilo, é hora de tentar articular com outros conceitos. Mas aconcete que, na
realidade, eles foram obtidos da maneira exatamente inversa. Esses conceitos não
apareceram separadamente, mas todos juntos, misturados num complexo de realidades
que nós chamamos de experiência humana, e daí foram sendo separados
gradativamente. Isso quer dizer que, se aprendemos um corpo de conceitos e uma
determinada disciplina e nos acostumamos com ele, para depois, mais tarde, fazer algo
chamado interdisciplina, primeiro comeceçamos a imaginar que a interdisciplina é mais
uma disciplina, mais um enfoque abstrativo; segundo, vamos sempre achar que os
conceitos da nossa disciplina podem ser articulados com os conceitos de outra
disciplina. Às vezes, isso é impossível, porque, no corpo da experiência real humana, os
vários aspectos dos seres aparecem juntos, articulados ou separados não de acordo com
os nomes das nossas disciplinas, mas de acordo com a estrutura objetiva do objeto
considerado. Por exemplo, é possível entender que um animal qualquer possui sua
anatomia, sua fisiologia, sua embriologia etc., mas ele também pode ser objeto de uma
atividade econômica, com um determinado preço e valor no mercado. Qual é
precisamente a relação entre a anatomo-fisiologia do animal e seu preço de mercado?
Sob certos aspectos, uma coisa e outra pode estar articulada, mas sob outros, não. Se
não sabemos disse, e se não temos presente constantemente na nossa consciência essa
diferença, quer falemos de anatomo-fisiologia, quer falemos de preços e mercados, não
saberemos ao certo do que estamos falando, porque estamos utilizando conceitos que
tem uma validade disciplinar, mas não sabemos qual o encaixe real deles no objeto que
está sendo tratado.

Isso é só uma amostra de como é devastador o panorama da chamada ciências humanas.


Cada uma delas possui um cabedal de conceitos que é um corpo de problemas, mas,
para o estudante, se você oferecê-los como aquilo que eles realmente são desde o início,
ele pode ficar aterrorizado. Então, é preciso fingir que aquilo tudo está bem
estabelecido, organizado e definido, e basta decorar tudo para tornar-se um profissional
da área; e aí é precisamente quando ele não estará entendendo nada do que diz. Então,
quando aparecem erros como esses, que eu mencionei na aula passada, quando
projetamos sobre uma estrutura socio-política de quatro mil anos atrás conceitos
descritivos que servem para o Estado moderno, erraremos exatamente por causa disso;
porque tivemos tanto trabalho para adquirirmos aqueles conceitos descritivos do Estado
moderno que acabamos supondo que aquilo corresponde a realidades objetivas, que
existem per si. Ora, o Estado moderno é uma realidade histórica, ele passa a existir num
certo momento. E os conceitos que o descrevem também. Mais ainda: os conceitos que
descrevem o Estado frequentemente não o descrevem, mas o projetam; são conceitos
concebidos para montar o Estado. Ou seja, a história do objeto e a história da sua
descrição estão profundamente ligados, de uma maneira que não acontece com as
entidades do reino da natureza.

A existência das vacas não depende de maneira alguma da maneira pela qual nós a
descrevamos. Não é porque descrevemos ela dessa ou daquela forma que elas passarão a
ser daquele jeito. Quando erramos na descrição da vaca, é problema nosso, não da vaca.
Mas, com o Estado, as coisas não se passam assim, porque as idéias descritivas do
Estado se tornam elas mesmas moeda corrente na sociedade, para, na etapa seguinte,
tornaram-se elementos estruturantes do próprio Estado. Por exemplo, quando Rosseau
diz que o Estado nasce de um contrato social, o que aconteceu? Não temos confirmação
alguma se esse fato ocorreu, porém, a partir do momento que as pessoas começaram a
conceber o Estado como um contrato social, começaram a exigir dele que tivesse
aspectos de contrato social. Dessa forma, é possível perguntar se Rosseau estava
descrevendo um Estado que existia ou estava projetando um Estado inexistente. Na
história do Estado, esses dois aspectos são absolutamente indistinguíveis. Podemos nos
questionar se a noção de contrato social é um conceito descritivo ou um plano, mas na
hora que fazemos esta pergunta, é porque a teoria do contrato social já está circulando,
já adquiriu uma importância pública, já se tornou um dos elementos estruturantes do
Estado tal como ele existe hoje. Ou seja, a noção do contrato social pode ser uma noção
fictícia que acabou funcionando como um plano, mas depois que isso aconteceu, ela
passa a ter algum valor descritivo; se não do Estado considerado em si mesmo, ao
menos da auto-interpretação que os participantes do fenômeno dão a respeito dele
(#0:40:00).

É possível perceber quão impossível é fazer esta análise se nós, no curso dela, não
somos capazes de tomar consciência dos próprios atos que nós próprios fizemos para
adquirir este conceito. É preciso ver que, primeiro, pensamos a noção do contrato social
como uma noção nominal que foi lida nos textos do próprio Rosseau ou em algum
dicionário de política. No instante seguinte, é preciso entender como, uma vez adquirida
a noção nominal, passamos a entendê-la como um conceito descritivo ou um plano.
Finalmente, feita essas operações, sabemos como chegamos a adquirir uma certa
expectativa de que poderíamos ser capazes de compreender o Estado efetivamente
existente articulando esse conceito de uma maneira ou de outra. Isso tudo são atos de
consciência realizados por nós.

A conclusão disso é que o estudo do Estado implica, por um lado, uma especíe de
simbiose entre os conceitos descritivos e os planos ou conceitos normativos, e por outro,
um processo que não pode ser compreendido fora das discussões que formaram o
próprio Estado tal como ele existe. E finalmente, isso não pode ser compreendido fora
do conhecimento que temos da nossa própria autoconsciência. Isso quer dizer que os
conceitos, sejam políticos, jurídicos ou sociológicos, não apenas estão descrevendo uma
realidade histórica, como também tem uma história. Essa história está imbricada com a
própria história do Estado. Além disso, isso está imbricado com a própria história da
nossa auto-consciência tal como estamos vivendo agora.

Ou seja, esse elemento de autoconsciência é absolutamente imprencindível em toda área


das chamadas ciências humanas. Aquilo que foi pensado a respeito do Estado, a partir
de conceitos previamente adquiridos, reflete algo da própria história do Estado, não é
separado dele. Então, é possível compreender como, no meio dessa confusão, é normal
encontrar tantas dificuldades para se posicionar no meio deste estudo, de modo que se
acabe confundindo o império egípcio com o Estado moderno. É uma confunsão até
perdoável, visto que o assunto já é tão difícil que é normal cometer uma infinidade de
erros. Contudo, a partir do momento que se cria uma definição do Estado egípcio
baseado na descrição do Estado moderno, têm-se uma certa interpretação do Estado
egípcio, que é aquela que interpreta a identificação do Faraó com o Rei Sol é um
elemento ideológico de justificação da estrutura do Estado egípcio. A partir da hora que
adquiri-se essa noção errada, fazendo-a circular no ambiente em torno, ela própria
torna-se um elemento de autoconsciência do próprio Estado Moderno, que vai se definir
a si mesmo tentando se diferenciar do Estado egípcio, ainda que um Estado egípcio que
nunca existiu na realidade, mas tão só na cabeça do cientista moderno. Assim, o erro
científico se incorpora na estrutura do Estado como realidade historicamente existente.

Quando se entende que o único ponto de apoio que realmente se possui é a própria
autoconsciência, que realmente não nos abandona um único minuto, somos capazes de
entender que é nela que devemos encontrar as devidas diferenciações, contando a
história de como certas noções e diferenciações foram apreendidas a partir da própria
experiência real. É então que somos capazes de introduzir um pouco de ordem na
questão. É preciso perguntar como é que esta ou aquela noção veio parar na nossa
mente, como ficamos sabendo dela, como a concebemos, de onde ela veio
exteriormente, quem nos falou dela a primeira vez, por que ele nos disse, de onde aquela
pessoa a obteve, mediante que ato abstrativo, e, finalmente, qual é a experiência real da
qual ele abstraiu a noção. Todos esses atos se dão na imaginação. Ela é o instrumento
básico de conhecimento. Sua única diferença em relação à fantasia é que está
continuamente se referindo a certos dados que nós mesmos não podemos mudar, ao
passo que no sonho ou na pura fantasia podemos mudá-los conforme a vontade. Trata-se
de obter aquilo que Leonardo Da Vinci chamava de imaginação exata. É como tentar
lembrar um rosto de uma pessoa exatamente como ele é. É uma operação
complicadíssima. Se tentarmos lembrar daqueles que deixamos em casa ou conhecemos,
dos rostos ou das figuras, veremos como a imagem produzida será extremamente
reduzida e esquemática. Não é possível fazer nem sequer um desenho com base nessa
recordação. Para poder fazê-lo de memória, seria preciso voltar inúmeras vezes a essa
recordação, acrescentando dados, corrigindo, articulando e aperfeiçoando, um trabalho
medonho. Ao contemplarmos os quadros de Paul Gogan, vemos como ele pintava não o
objeto, mas a primeira recordação dele. No quadro do cavalo branco, por exemplo, nos é
apresentado um cavalo azul. Essa operação é feita a partir da primeira recordação do
cavalo que o artista tem, sem correção. Primeiro, ele pensava um cavalo visto, e assim,
em vez de corrigir essa imagem por outras recordações do objeto, fazia um esforço
contrário para repetir aquela mesmo imagem tal como ela tinha sido apresentada pela
primeira vez, e era isso que ele pintava. Por isso que os quadros de Gogan tem um valor
documental para esse estudo absolutamente fantástico. Pelo menos para que se possa
ver qual é a diferença entre a primeira recordação e um retrato efetivo. Porém, o esforço
que tem de ser feito para complementar a imagem é o mesmo que Gogan tinha que fazer
para fixá-la como estava. Nos dois casos é uma operação de memória e imaginação.
Não um jogo livro de imaginação, mas uma imaginação que está presa a um dado que
não pode ser alterado. (#0:50:00)

Essa ordem de estudos, portanto, possui uma implicação psicológica profunda. Nos
trabalhos dos bons historiadores, sociólogos e cientistas políticos, é possível ver como
cada enunciado feito sobre as realidades tratadas é um produto de um esforço de auto-
consciência altamente problemático, que está sendo realizado no mesmo momento em
que se escreve ou enuncia algo sobre o tema. Fora disso, só existem os conjuntos de
enunciados que são meras fantasmagorias. Então, é possível imaginar a quantidade de
tempo e esforço perdido, nas ciências humanas, com o trato de meras fantasmagorias.
Quando um professor expõe um determinado assunto e, ao ser cobrado sobre a origem
da questão, não é capaz de expor a problematicidade do conceito, é porque não sabe do
que está falando. Nesse momento, não está havendo os atos de consciência necessários
para que os conceitos correspondam a algo do mundo da experiência real. Nesta ordem
de estudos, o esforço é menos o de transmitir conceitos do que o de ilustrar na prática
certos atos de consciência de modo que os alunos aprendam a fazê-lo de maneira mais
ou menos igual. Ou seja, durante essa ordem de estudos, é preciso haver uma subida do
nível de consciência e uma identificação dos atos de consciência. Se não houver isso,
não se estuda absolutamente nada. Isso é algo que não se refere apenas à filosofia, mas a
todas as ciências humanas. Porém, se exigissemos isso de um curso de direito, veríamos
que nenhum deles mereceria estar funcionando. É claro que os pioneiros, os
descobridores, os grandes teóricos de cada área sempre souberam disso. Mas, na sua
transmissão acadêmica, os produtos simbólicos e verbais desses atos de consciência
tornam-se objetos de troca que não tem liquidez, que não podem ser trocados por coisa
alguma. O que um estudante sério deveria pedir de seus professores quando estes lhe
apresentam qualquer conceito era: primeiro, uma troca do que foi apresentado pela
experiência real da vivência na sociedade humana da qual os primeiros que estudaram o
assunto puxaram este conceito; e segundo, uma exposição de qual é o elemento
descritivo e o elemento normativo, como eles se articulam entre si e qual é a tensão
existente entre uma coisa e outra. É uma prova à qual cem por cento dos professores de
Direito no Brasil não saberiam responder. Do ponto de vista científico, é uma absoluta
catástrofe, pois a primeira obrigação deveria ser saber disso.

Como, nas ciências humanas, os objetos estudades não podem ser apresentados diante
de nós como corpos do espaço, e constituem o próprio complexo humano no qual
estamos vivendo, eles só podem ser apresentados por revivecência rememorativa.
Quando não há isso, não há nada, somente palavras. Qualquer conceito de qualquer
ciência humana só pode ser definido e explicitado mediante a revivecência da
problemática que o gerou. Cada conceito é um enunciado de um problema cognitivo
extraído de dentro de um problema existência real. E a função de um professor é
exatamente pegar cada conceito e explicar qual é esse problema e como os eles foram
retirados desta ou daquela maneira, chegando a este e ou aquele ponto. Ou seja, qual o
caminho foi percorrido para que o conceito chegase até aquele ponto, considerando que
no instante seguinte pode ser trabalhado melhor ainda, pois todos esses conceitos estão
em contínuo aperfeiçoamento, não porque a ciência progride a olhos vistos, ou porque
todos estão acostumados a isso, mas simplesmente porque qualquer revivecência de um
ato de consciência o intensifica. Isso é uma espécie de privilégio do próprio conceito de
consciência. Por exemplo, quando lhe é apresentado o conceito de elefante, o estudante
pode explicar o que é um elefante sem haver um presente, já que o objeto, nesse caso,
pode ser apresentado em signo, como numa figura, numa fotografia ou uma recordação.
Mas percebemos que uma recordação de elefante é similar ao elefante só sob certos
aspectos, já que ela não ocupa lugar dentro da sala. Se produzirmos uma recordação de
elefante, ela não terá sob os presentes o mesmo efeito que teria a presença física de um
elefante, que teria derrubado todas as cadeiras. No entanto, quando falamos de
consciência, não podemos tornar presente simbolicamente a consciência através de um
signo sem que ela esteja fisicamente presente. É absolutamente impossível. Portanto,
qualquer exame da própria consciência exige que ela esteja duplamente presente. É
justamente nisso que reside o valor extraordinário desses estudos. Eles são uma
contínua intensificação da consciência que se têm não somente dos conteúdos da ciência
que se está estudando, mas do próprio complexo existencial do qual essa ciência
emergiu e dentro do qual estamos operando naquele mesmo momento.

Isso quer dizer que não é possível estudar qualquer dessas ciências da maneira correta
sem, no mesmo ato, tornar-se mais inteligente do que ela. Não é como na matemática,
onde essa operação é perfeitamente possível. Na verdade, em muitos casos, quanto mais
o estudante sabe de matemática, mais burro se torna, já que a tendênca dos estudos
matemáticos é inevitavelmente transformar tudo em algorítimo, em sequências de
cálculos mais ou menos padronizadas que podem ser imitadas por um computador,
numa operação que exige o mínimo de consciência. Quanto mais elucidado está um
problema matemático, mais fácil é colocá-lo em um computador e resolvê-lo de maneira
automática. Ou seja, o progresso da matemática corre no sentido da automação, não no
da consciência. Na infância, é comum dizer aos filhos que estudar matemática irá torná-
los intelientes, porém, deveríamos dizer que é necessário fazê-lo por alguns motivos,
mas que é preciso tomar cuidado porque ela emburrece, já que ela não se refere a
nenhuma experiência real, não requer a presença da consciência, sendo seu ideal
exatamente o contrário, pois quanto melhor determinado está certo procedimento
matemático, mais ele pode ser operado sem consciência nenhuma (#1:00:00). O
conjunto do esforço matemático é para produzir algorítimos que sejam reprodutíveis,
mecanicamente reprodutíveis. É claro que, no começo, os primeiros esforços da
humanidade nesse sentido implicaram um esforço de consciência absolutamente
formidável só para fazer a abstração matemática. Mas depois que isso foi feito, como
quando separou-se a idéia de medida da própria presença física do corpo, o próximo que
aprenderá sobre o assunto não necessita fazer a primeira operação, coisa que atrasaria
inutilmente o progresso da disciplina. Dessa forma, no aprendizado da matemática ou da
lógica, o ideal é a automação: aquilo que foi uma vez realizado não precisa sê-lo
novamente. O ideal é operar com conceitos abstratos em prol da velocidade. Isso quer
dizer que esse estudo, para a inteligência humana, é um estudo entrópico; ele baixo o
nível de intenção intelectual paulatinamente, até que tudo possa ser realizado no piloto
automático. O próprio fato de uma multidão de operações matemáticas poder ser feito
por computador sem interferência humana ajuda os cientistas, que podem se concentrar
mais nos aspectos da abstração real e menos nas operações formais envolvidas.

A mesma coisa ocorre no estudo da lógica. Pensar que estudar essa disciplina é
necessário para apurar a inteligência ou a capacidade de argumentação é um erro
formidável. Esse estudo tem uma utilidade específica para o desenvolvimento das
ciências, uma utilidade social objetiva, porém, do ponte vista pedagógico e psicológico,
pode ser um desastre.

A única coisa que ajuda o desenvolvimento da inteligência é exatamente esta


intensificação do conhecimento pela reapresentação da experiência direta e pela
revivência dos procedimentos abstrativos por meio dos quais os conceitos foram
obtidos. Cada vez que fazemos isso, intensificamos a consciência de um determinado
problema. E com o hábito de repetir essa mesma operação milhares de vezes, o universo
das ciências humanas torna-se translúcido para o estudioso. Translúcido ao ponto que
profissional treinado nessa área é capaz de captar instantaneamente certas nuanças que
levariam anos para ser explicadas. Esse é exatamente o ideal deste estudo, que não é
produzir exatamente obras escritas ou faladas, mas pessoas habitlidadas a captar essas
coisas.

Ora, quando este conjunto de ciências é ensinado sem levar esses vários aspectos em
conta, está-se no puro reino do fetichismo, onde se tratam símbolos e palavras como se
fossem coisas que existissem efetivamente. Mas quando uma multidão de profissionais
age dessa forma, sua atuação dentro da sociedade humana faz com que toda ela trate
essas entidades como existentes, criando expectativas a respeito, e modificando a
própria estrutura da sociedade. Isso quer dizer que, quanto menos se entende o que se
fala, mais produz-se efeitos absolutamente incompreensíveis no ambiente em torno, que
só servirão para tornar o todo o conjunto algo mais ininteligível para a próxima geração.

Ou seja, o progresso das ciências humanas corre simultâneamente em duas linhas


contrárias: no sentido do maior esclarecimento e no sentido da maior confusão. Quando
Hans Kelsen, no começo do século XX, se perguntou o que é o Direito, e tentou obter
um conceito objetivo do que seria o universo jurídico dentro do contexto total da
experiência humana, ele captou um traço que existe de fato no edifício jurídio: o traço
sistêmico. O mundo das leis sempre se articula como um sistema formal dedutivo, no
qual sempre se vai do geral ao particular. Por isso, o Direito é uma lógica normativa, um
exercício de deduções lógico-normativas. Mas seria o Direito somente isso? Quando
Kelsen faz a sua descoberta, expõe-na no tratado intitulado Teoria Pura do Direito -
pura porque tenta separar o que é o Direito dos outros elementos que, na experiência
real, aparecem com ele, como a moral, a religião, a política etc. A realidade jurídica
vem mesclada com todos esses pontos, e só existe dessa forma na experiência real. Mas
o que é um aspecto jurídico considerado em si mesmo? Para Kelsen, é o aspecto de
lógica normativa. Porém, a partir do momento que esse enunciado é feito, duas linhas de
consequências aparecem na mesma hora. Na primeira, alguns cientistas vão se esforçar
para tentar verificar essa teoria, procurando suas bases de sustentação e a eventual
necessidade de outros elementos para definir o campo jurídico. Por exemplo, a
necessidade de imposição dessa lógica normativa, que lhe dá realidade jurídica, visto
que ela não se constitui somente como estrutura lógica do edifício legal, mas também do
fato de que esse edifício legal tem vigência sob certas pessoas, o que o torna jurídico. E
assim, somando inúmeros questionamentos e observações semelhantes, o conceito do
Direito vai se aperfeiçoando por meio da revivecência dos atos cognitivos feitos por
Kelsen para captar esse aspecto normativo; revivecência e intensificação. Com o mesmo
conjunto de experiências ao qual Kelsen se reportou, que está documentado numa
infinidade de textos jurídicos consultados, além de todos os outros estudos sociais e
históricos que foram considerados, refaz-se o mesmo estudo com um pouco mais de
atenção, procurando perceber os elementos que não foram apreendidos por Kelsen. E
assim, podemos ver como é maravilhosa a história da evolução do conceito do Direito
do século XX a partir desse autor; uma sucessão de gênios assombrosos dando o melhor
de si para refazer toda aquela experiência e captar novas nuanças.

Mas há uma segunda linha de consequências. Seu início ocorre no momento que
alguém, ao ler o tratado de Kelsen, começa a fazer leis inspirado na idéia de que o
Direito é um sistema normativo. Como é um sistema normativo (#1:10:00), então
também o dedutivo, e toda dedução parte de premissas. A premissa não faz parte do
sistema dedutivo, é dada pronta, tomada como um axioma, uma verdade em si que não é
mais questionada no curso da dedução. Então, se o direito é um sistema normativo, tem
de partir de uma premissa inquestionável que será sua norma fundamental. Essa norma
fundamenta o edifício jurídico, mas não faz parte dele: é um dado externo. Isso quer
dizer que, juridicamente, não há como escolher entre uma norma fundamental e outra. A
norma fundamental, não fazendo parte do edifício jurídico, não pode ser julgada por
esse mesmo edifício. Mas de onde vem essa norma fundamental? "Não sei", foi a
resposta de Kelsen num primeiro momento. E desse problema surge a idéia do Furher,
"o condutor", o sujeito que baixa a norma fundamental, que não pode ser julgada, pois
seria considerada um dado extra-jurídico. Isso quer dizer que, se a norma fundamental
fere a moral ou a religião, juridicamente nada se têm a objetar contra ela. Daí em diante,
o serviço do jurista torna-se um serviço técnico, cujo objetivo é deduzir as normas
secundárias a partir da norma fundamental e de aplicá-las por dedução. Idealmente,
seria possível colocar essa operação no computador, visto que, se tudo estiver
estruturado logicamente, então não só as leis secundárias poderão ser deduzidas
logicamente da norma fundamental, mas a própria aplicação terá de ser feita de maneira
lógica e automática. Dessa forma, todo o trabalho do jurista será um trabalho mecânico
de extensão do edifício jurídico ou de sua aplicação. E se o edifício inteiro for baseado
numa norma imoral, do ponto de vista do jurista, isso tanto faz como tanto fez.

Essas são as duas linhas de conseqüências. Uma teórica, resultado de um esforço


cognitivo que pode ser intensificada ou melhorada mediante novos esforços. E outra
prática, que, quando posta em circulação, torna-se um elemento estruturante da própria
sociedade. No Brasil, em inúmeras faculdades de direito, esta concepção positivista do
Direito é ensinada sem questionamentos. Com ela, o Direito vira uma técnica no
momento que não pode mais questionar a norma fundamental. Idealmente, um
computador no lugar do juiz faria o mesmo trabalho. Eis um fato social de enorme
alcance, o qual, evidentemente, produz um progressivo obscurecimento da questão, já
que uma teoria utilizada para explicar o edifício jurídico torna-se ela própria um
componente ativo do próprio edifício jurídico na geração seguinte. isso quer dizer que,
no momento que tentemos elucidar a veracidade ou falsidade da teoria de Kelsen,
seremos obrigados a desfazer mentalmente a malha de conseqüências confusas que se
seguiram de sua aplicação prática. Portanto, a geração seguinte de investigadores
sempre terá uma vantagem e uma desvantagem. Por um lado, este aspecto do problema
já está elucidado, de forma que refazê-lo é uma operação mental muito mais fácil; por
outro, não estaremos tratando de uma pura teoria, mas de um fato social externo que
produziu consequências que não tem nada a ver com o aprofundamento teórico da
investigação, mas, ao contrário, o complicam formidavelmente.
ARQUIVO AULA 5b

Isso é algo que se aplica para qualquer teoria já inventada pelas ciências humanas.
Porque ela sempre será, ao mesmo tempo, um progresso da ciência e um progresso da
confusão. No primeiro caso, quando considerado na evolução interna das descobertas
com a passagem de um estudioso para outro. No segundo, quando considerado nos seus
efeitos sociais. Com exceção dos casos em que o próprio cientista, prevendo a
possibilidade de que aquilo seja incorporado na sociedade, cria alguns anticorpos para
que a sua teoria, se não ajudar no esclarecimento, pelo menos não ajudará na confusão.
Porém, o controle de cada cientista sobre esse processo é sempre muito pequeno. É
sempre possível fazer confusão sobre a teoria mais séria e bem articulada, basta que ela
seja tratada não como o efeito de uma análise feita sobre a experiência, mas como uma
doutrina pronta. Pois nenhuma teoria científica aparece como uma doutrina, mas como
um resultado temporário, parcial e provisório do esforço de análise da experiência -
esforço que só vale se a experiência puder ser revivenciada na geração seguinte, para
que o significado que a teoria possui dentro da realidade da experiência da qual ela
partiu se torne nítida para o sucessor. Quando a teoria é desligada da experiência
originária, sendo tratada em si mesma como um enunciado doutrinal que deve ser
aprovado ou desaprovado, está pronta a confusão.

Na última aula, eu falei sobre a economia liberal. Essa ciência surge de uma análise que
Adam Smith vai fazer em cima dos dados da experiência. Dentro de um conjunto
existencial tomado para análise, um pedaço foi recortado e tentou-se descrevê-lo,
sabendo sua existência fazia parte de um complexo que não poderia ser explicado
mediante a compreensão de uma única parte. A economia de mercado tem antecedentes
históricos, psicológicos, culturais e morais que a fundamentam, os quais eram e são
amplamente conhecidos. De dentro desse complexo é que Adam Smith vai retirar o
conceito de economia liberal. Porém, a geração seguinte não sabe como esse processo
foi realizado, e assim, começa a tratar a economia liberal como se fosse uma ferramenta
capaz de explicar todo o conjunto cultural, moral, histórico, psicológico e político que a
fundamenta. Não só fazem isso, como inventam uma política liberal que, teoricamente,
resolveia não só os problemas da economia liberal como todos os outros que não foram
tratados por Adam Smith. E assim, por esse meio, chega-se às conclusões estapafúrdias
que vimos na última lição: por um lado, os princípios do liberalismo econômico exigem,
entre outros fatores, a liberação das drogas, porque o Estado não pode interferir no
consumo, então, cada um pode consumir o que quiser. Por outro lado, já que a liberdade
de mercado é a grande força movente da economia e da política liberal, tudo aquilo que
fizer sucesso no mercado não pode ser objeto de intervenção do Estado; portanto, se a
maioria do mercado escolher maciçamente o regime comunista, a melhor maneira de
aplicar a economia liberal seria adotá-lo como regime político. Com efeito, há toda uma
pletora de intelectuais liberais que pensam dessa forma, pelo simples fato de tratarem o
liberalismo econômico como uma doutrina, não como uma análise da experiência. Isso
quer dizer que eles tentam compreender o mundo a partir da teoria liberal, e não a teoria
liberal a partir do mundo.

Ora, acontece que qualquer teoria é sempre difícil e complicada, de modo que, para
aprendê-la, já gasta-se um bom tempo. Quando isso ocorre, entra-se dentro da sua
atmosfera. E assim ela transforma-se no próprio mundo. Isso ocorre em todas as áreas
das ciências humanas. Na psiquiatria, Viktor Frankl relata uma série de casos de
pacientes que tentam compreender os próprios problemas a partir do complexo
conceitual freudiano. Acontece que Freud, para obter a teoria da libido, trabalhou com
um montante imenso de dados da experiência, procurando uma interpretação possível
que os explicasse. No entanto, a experiência de base da qual Freud partiu pode gerar um
conjunto de interpretações totalmente diferentes. Mas essa revivecência não ocorre. O
que se faz é tratar o freudismo como doutrina e discutir a partir dele.

Por isso, é importante que vocês gravem essa regra: qualquer teoria, sobre o que quer
que seja, só será entendida quando nos reportarmos à experiência real que foi analisada.
Se o descobridor da teoria faz o favor de transmitir, junto com os conceitos que foram
elaborados, o complexo de experiências da qual aquilo foi tirado, tudo se torna mais
fácil. Mas, às vezes, não é assim que ocorre: somente o ponto de chegada é apresentado.
E então é preciso reconstituir imaginativamente a experiência. Porém, isso é algo
bastante trabalhoso. É antes mais fácil discutir a própria teoria, tomar partido, apontar
prós e contras. Contudo, antes de concordar ou discordar, é preciso inteligir. Uma teoria
não é uma coisa em sim, uma entidade fundante do universo. Ao contrário. É uma coisa
fundada, algo que está fundamentado numa instância prévia, que é o conjunto dos dados
e problemas de experiência que a teoria respondeu.

Por outro lado, ainda corre-se o risco de estar lidando com o mero charlatanismo. O
charlatão é aquele que vai ocultar a experiência propositalmente ou falsificá-la, de modo
que só é possível lidar com a teoria a partir dela mesma. O marximo é exatamente isto:
ele parte de um conjunto de experiências, cria uma certa interpretação, varre para
debaixo do tapete as experiências reais e daí é preciso sobreviver dentro desse ambiente.
E assim toda discussão se resume a um debate pró ou contra-marxista que nunca tem
fim. Com efeito, é impossível provar ou impugnar o marxismo a partir dele mesmo, é
algo com o qual pode-se desperdiçar uma vida inteira de estudo. O mesmo acontece
com a psicanálise e outras teorias.

Veja-se, por exemplo, a preocupação extrema de um cientista como o próprio Viktor


Frankl em expor, junto com a teoria, o conjunto de experiências problemáticas das quais
ela foi tirada. Esta é uma obra maravilhosa, pois ela inclui a teoria, a experiência e os
passos que foram percorridos até chegar nos enunciados conceituais. Nela, reside a
teoria e a história de uma consciência. Sua leitura equivale a revivenciar a experiência e
o esforço de elucidação realizado pelo autor. Dessa forma, o autor nos fornece não
somente um complexo conceitual para ser absorvido, mas todos os elementos para sua
correção e complementação. É assim que age um cientista de verdade, que não diz a
palavra final sobre um assunto, mas demonstra os dados, as suas conclusões e o espaço
para a continuidade das futuras gerações. Aqui, não há má fé. Como se trata de uma
teoria sobre a própria experiência do sofrimento anímico humano, do sofrimento
psiquíco, os dados apresentados são de ordem autobiográfica, mas também (#0:10:00)
históricos, antropológicos e culturais, que estão articulados com a própria biografia do
Frankl.

É algo que não ocorre quando se estuda Freud, que varre um pouco a experiência para
debaixo do tapete. Mas é evidente que, se eu tiver de fazer uma teoria sobre a
sexualidade humana, terei de partir do seguinte princípio: onde tomei conhecimento da
sexualidade humana? Foi olhando para o que faziam meu pai e minha mãe? Foi olhando
pelo buraco da fechadura? Certamente que não. As minhas reações a uma coisa e outra
eram muito mais importantes do que eu estava vendo. Portanto, terei de expor esses
dados tal como eles se apresentaram. Quando pegamos uma pesquisa como a de Master
& Jhonson, onde aparece a sexualidade da qual se fala? Eles põem um casal fazendo
sexo, ligado a eletrodos, e medem as reações. Nesse caso, é fácil perceber que não se
trata de um estudo sobre a sexualidade, mas tão somente sobre algumas reações elétricas
associadas ao fenômeno, visto que esses são os únicos dados disponíveis. Partindo dessa
experiência, que é constituída de alterações elétricas, o que se pode deduzir sobre a
sexualidade em geral? Nada. Pois só posso dizer algo sobre os aspectos elétricos do
processo. Quando autores como esses extraem uma teoria geral da sexualidade a partir
de uma investigação dessa espécie, se trata de um caso óbvio de charlatanismo. É só
perguntarmos qual a experiência original que foi considerada para sabermos dos seus
limites. É pura má fé, tal e qual o que ocorre com Kinsey, por exemplo. Esse sujeito não
passava de uma pedófilo que queria exercitar as próprias perversões com o pretexto de
realizar uma investigação científica. Houve um congresso, na Holanda, no qual havia
um assistente do Kinsey que estava apresentando uma pesquisa, via telefone, para os
participantes, vários dados, estatísticas e gráficos, entre os quais constava uma série de
dados sobre reações eróticas entre meninos. Em certo momento, um dos participantes
teve a infelicidade de perguntar de onde os pesquisadores obtiveram as informações
apresentadas, como era possível saber que os meninos reagiam dessa ou daquela
maneira durante, por exemplo, a penetração anal. E o assistente respondeu que a equipe
os testava pessoalmente. Seguiu-se um silêncio total na platéia e um progressivo
esvaziamento do auditório. Nesse caso, o que estava sendo apresentado? O mundo de
um pedófilo, nada mais. Obviamente, de uma forma que não poderia ser apresentado
com honestidade - se assim o fosse, talvez tivesse alguma validade científica, ainda que
encoberta por um crime evidente. Pois o verdadeiro conjunto de dados que estava
disponível, o qual descrevia a experiência de um pedófilo, não podia ser apresentado.
Como resultado, isso falseia toda a experiência científica realizada, que não vale
absolutamente nada.

É evidente que, quanto mais o ensino universitário se expande, multiplica-se em escala


geométrica o número de charlatães. Porque as pessoas acreditam que o acesso às
profissões universitárias é um direito universal, quando, na realidade não é um direito
de ninguém em particular. É um privilégio. O acesso à profissão universitária é um
acesso a uma autoridade, e isto não pode ser considerado direito de ninguém. Ao
contrário: é o restante da sociedade que tem o direito a receber da população
universitária serviços honestos e responsáveis. Portanto, o direito ao ensino
universitário não é um direito elementar, mas condicionado. Hoje em dia, todo o mundo
esquece isso. Porque não é qualquer um que tem o direito de ser médico, mas os
pacientes que o tem a uma boa assistência médica – este sim, um direito elementar,
enquanto o direito de um a tornar-se doutor está condicionado a n fatores. Essas
profissões só seriam dignas de respeito se, em vez de oferecidas a todo o mundo, fossem
sonegadas. Ninguém tem direito uma posição que constitui um privilégio muito honroso
e uma responsabilidade enorme. Portanto, ninguém deveria disputá-la como se fosse um
direito. É o mesmo que acontece com o cargo de presidente da república, o qual não
constitui um direito universal de maneira alguma. Por isso, um discurso de ampliação
incondicional de vagas nas universidades públicas é uma monstruosidade. É algo que
vai beneficiar um certo número de pessoas – os profissionais universitários –, em
detrimento do restante da população, que irá sofrer na mão desses maus profissionais.
São os operários e empregadas domésticas que receberão péssimos serviços sem
condição alguma de jugá-los. Esse acesso indiscriminado às profissões universitárias é
um crime. Oferê-lo é tão grave como fazê-lo em relação ao clero. No momento que
todos poderem ser padres, pastores protestantes e monges, qualquer um poderá falar o
que bem entender em nome da religião. Quando isso acontece nas universidades, o
aspecto de compromisso moral com a ciência, com a seriedade da tecnologia, etc., é
colocado em segundo plano, e o direito ao ensino universitário em primeiro. Se um
ministro promete isso – e todos prometem, pois nunca vi um que não tenha prometido
aumentar as vagas universitárias (eu, se fosse ministro, diria que teríamos de tirar pelo
menos metade das atuais, porque a espécie de serviço que será prestado será paga pelo
restante da população) –, agora, sabemos que ele não sabe o que fala.

Em suma, não se trata de dar acesso a mais gente, mas de tratar de providenciar que
aqueles que tem acesso adquiram a formação que os ablite a trabalhar
responsavelmente. É melhor ter um médico responsável do que uma multidão que não o
seja. Sabemos que a maior causa de doenças no mundo é uma coisa chamada iatrogenia
– doenças causadas pela medicina. Apesar de não dispor de dados mais atualizados,
lembro que, à época em que eu trabalhava numa revista de medicina, surgiu um livro
escrito pelo então secretário de saúde de São Paulo, o doutor Carlos da Silva Lacaz, um
homem seríssimo, o qual denunciava que, no Brasil, 60% do sofrimento médico era
causado pela própria medicina. Então, não seria exagero dizer que proibir a prática da
medicina reduziria drasticamente o número de doenças existentes no período
(#0:20:00). Uma vez que coloquemos esse tipo de pessoa no mercado, elas serão
escolhidas por aqueles que necessitem do serviço. Se, do ponto de vista estatístico,
houver alguma seleção prévia de eliminação de maus profissionais, do ponto de vista de
cada indivíduo considerado em si, cabe perguntar quantos médicos ou advogados
poderão ser escolhidos antes que ocorra alguma catástrofe. Você escolhe um advogado
incompetente ou desonesto para defendê-lo e vai parar na cadeia por isso, vinte anos
depois, acontece algo e você comete outro erro de escolha. Quantas vidas serão
necessárias até a eliminação do mau profissional? Estatisticamente, a sociedade, através
do mercado, pode adquirir uma certa prática na seleção, mas o preço que será pago
pelas pessoas reais é monstruoso. Em vez de aumentar a oferta, seria preciso diminui-la.
O número de exigências que deveriam ser fomuladas teria de ser imenso. Não se trata de
lidar com o aspecto quantitativo, pois o próprio conceito está errado. Considera-se
acesso ao ensino universitário como um direito, quando não o é, de maneira alguma,
mas um privilégio para um número limitado de pessoas. Um privilégio tal e qual o é ser
membro do parlamento. Se as pessoas pregassem uma democratização dessa instituição,
aumentando seu número para sessenta ou seicentos mil representantes, o número de
besteiras realizadas cresceria na mesma proporção. O mesmo se daria com o
crescimento na dificuldade de fiscalização desses representantes. Quando aumentamos a
classe política, tormamo-la blindada contra a fiscalização. Considerando que a classe
universitária é como a política, uma classe privilegiada, detentora de tecnologias e
conhecimentos que deveriam ser utilizados em benefício da coletividade, integrá-la não
poderá nunca ser um direito, mas um privilégio outorgado a um número privilegiado de
pessoas. O importante não é prometer um título de doutor a cada cidadão, mas prometer
que cada um poderá confiar nos poucos doutores que existem. E cada um desses será
detentor de um conhecimento limitado, dependendo, no restante da vida, de outros
profissionais.

Dizer isto, nos dias de hoje, escandaliza as pessoas. Mas é algo óbvio. A posição de
homem de ciência ou técnico deveria ser disputada à tapa. Primeiro, porque o sujeito
precisa provar que realmente quer aquilo. Alguém que alega desejar o título de filósofo
teria de primeiro levar um tapa na cara e ser mandado embora. Após umas cinco
experiências como essa, aqueles que realmente insistissem haveriam passado por um
filtro minimamente adequado à profissão. No entanto, quando um pode simplesmente
pagar por um título, essas posições tornam-se totalmente desmoralizadas. Quando
começaram a inventar instâncias infinitas de aperfeiçoamento, como pós-graduação,
mestrado e doutorado, é porque já reconheciam a desmoralização total dos níveis mais
básicos. Hoje, um diploma universitário significa um diploma de estudos primários.
Pois, cada vez que se democratiza, é preciso criar uma nova maneira de se elitizar. É
sempre assim. Essa espécie de política é fruto de uma incompreensão da própria
estrutura do ensino universitário, que é especificamente diferente de outras espécies de
ensino. Comumente, pensa-se que o primário, o secundário e o superior implica
somente uma diferença de grau, mas não o é. A diferença é de natureza. O primário
deverá ensinar tudo o que é necessário saber para viver em sociedade, não dá autoridade
alguma ou qualquer direito especial. Mas o ensino universitário dá autoridade, é
completamente diferente. Assim, a própria expansão do ensino universitário haverá de
criar um número incontrolável de falsários, charlatões e incompetentes.

Porém, se a situação caminha nesse sentido, não quer dizer que precisemos fazer o
mesmo. Em toda sociedade, por maior que seja o número de vigaristas, é preciso ter
uma certa quantidade de pessoas empenhadas em fazer a coisa certa, caso contrário, a
estrutura do corpo social jé teria desabado a muito tempo. Este curso e todos os demais
que dou está baseado nesse princípio. A profissão intelectual tem de comportar um certo
número de pessoas sérias, não importa quantas não o sejam; elas serão mais do que o
suficiente para compensar os prejuízos. Pois se o estudante tem a consciência do que
estou passando nesta aula, o número de teorias estúpidas e maluquices dos quais ele se
livrará será enorme. Só este critério será suficiente para livrar-se de muitas delas. Então,
não é preciso ter uma quantidade tão grande de pessoas esclarecidas para resolver a
maioria dos problemas; umas poucas já bastam para exorcizar as porcarias do ambiente.

Recapitulando. Toda teoria não pode ser encarada como uma doutrina, uma afirmação
da realidade a partir da qual é preciso concordar ou discordar. Ela resulta de uma análise
da experiência, e pode ser uma formulação que, em si mesma, é problemática. Que
requer ser complementada, corrigida, etc., antes mesmo que se concorde ou discorde
dela. Portanto, toda teoria é o esforço humano de análise da experiência. Um esforço
contínuo, que continua em todas as gerações. Em segundo lugar: a experiência não vem
catalogada segundo as distinções curriculares às quais estamos acostumados. Ela é um
composto multivariado. Até as distinções curriculares foram obtidas a partir da análise
da experiência, num processo no qual pode ter ocorrido erros de avaliação. E ainda que
essas distinções tenham sido realizadas corretamente, separadas da experiência que as
originou, não significam nada, a não ser fetiche. Finalmente, o esforço de absorção de
tudo isso é, inseparavelmente, um esforço de intensificação da sua consciência pessoal.
E nada disso tem escapatória.

Quando, na modernidade, se criou a Teoria do Estado, uma disciplina essencialmente


germânica, ela já aparece com um nome que denuncia um erro monstruoso. Porque o
Estado só passou a existir depois de uma certa época, surgindo de um complexo
histórico de experiências humanas, como uma resposta que pode ser provisória. A
própria Teoria do Estado surge depois. Assim, temos uma realidade histórica que está se
formando e um esforço teorético que se empenha não só em compreender essa
realidade, mas em forjá-la. Cada Teoria do Estado que existe é uma espécie de proposta
de um Estado. E uma vez que isso é absorvido, começa-se a examinar toda a história
humana à luz da Teoria do Estado, algo absolutamente impossível (#0:30:00). Era
preciso fazer exatamente o contrário: explicar a Teoria do Estado a partir da experiência
que a originou, assim, entenderíamos até que a noção de Estado é uma abstração parcial
que serve para descrever um certo fragmento de fenômenos considerados.

Fenômeno idêntico acontece com uma infinidade de noções modernas. Quando surge,
por exemplo, a noção de ideologia, na forma de uma discurso de legitimação de um
determinado poder, a partir da hora em que inventam esse conceito, todo poder existente
acredita que precisa possuir a sua ideologia. Então as pessoas passam a cobrar de você
qual a sua ideologia. E assim, se antes não existia ideologia, agora, passou a existir.
Hoje, nós entendemos que a ideologia como discurso de justificação pode ter ou não ter
algo a ver com a estrutura real do poder considerado. Porém, em que sentido
poderíamos dizer, por exemplo, que a Igreja Católica na Idade Média possuía uma
ideologia, com uma estrutura de poder e uma doutrina? A reposta é não. Tomando o
assunto seriamente, veremos que a própria doutrina era a estruturação real; não havia
um hiato entre uma coisa e outra. Mas, se não há um hiato entre a estrutura de poder e o
respectivo discurso de legitimação, em que sentido se pode falar de ideologia? Pode
haver algo parecido, que não será exatamente isso, mas outra coisa. Consideremos, por
exemplo, a estrutura hierarquica do clero. Nesse caso, existe uma estrutura hierarquica e
também, independentemente e fora dela, uma doutrina que a justifica? Ou seria ao
contrário, com os elementos doutrinários do evangelho em primeiro lugar e depois essa
estrutura hierarquica foi sendo criada em função dessa doutrina? Porque,
historicamente, é exatamente assim. A própria noção do clero e dos primeiros padres é
um exemplo. Aqui, temos dois elementos: de um lado, o que está escrito no evangelho,
e do outro, o testemunho oral que é passado de geração em geração, daqueles que
ouviram Cristo dizer alguma coisa ou que literalmente viram, estavam lá quando
aconteceu. É evidente que a palavra desses tem autoridade sobre nós, pois nós não
estávamos lá, então, precisamos guiar-nos pelo que eles falaram, não somente pela letra
do evangelho. A estruturação do clero começa a partir desse ponto. Consequentemente,
não existe ideologia alguma em jogo. Pois a ideologia começa onde a estrutura de poder
é independente do seu princípio de justificação, e teoricamente deveria poder ser
justificada de outras maneiras. No mundo moderno, esta independência chega ao ponto
da completa oposição. Às vezes, temos estruturas de poder que se justificam exatamente
pelo princípio contrário. É o que aconteceu no Brasil, quando fizeram o movimento pela
Independência. Social e economicamente, os promotores da independência eram todos
proprietários de terra, verdadeiros senhores feudais, os quais, para justificar a
independência, adotaram o discurso da Revolução Francesa, que era, por princípio,
contra eles mesmos. Assim, é possível ver até que ponto a ideologia pode estar separada
da estrutura real. Se fosse para fazer uma ideologia que legitimasse o poder feudal, era
necessário fazer outra coisa completamente diferente. Mas acontece que esta
legitimação não tem relação intrinsenca com a estrutura de poder. Ela pode servir para
legitimá-la ou até para encobri-la, disfarçando-a não somente aos olhos dos outros, mas
aos dos próprios personagens que a criaram. É como se dissessemos que aquela classe
social não tinha exata noção do seu papel na sociedade. De certo modo, ela se ludribiou
a si mesma, no momento que todos passaram a fazer de conta que eram revolucionários
ao estilo jacobino. Este é um caso extremo de separação entre ideologia e realidade.
Trata-se de um conceito que tem sido usado abusivamente. Tornou-se moeda corrente,
ao ponto que passa a figurar como uma realidade, e então todos precisam ter uma
ideologia.
Outro dia, na internet, num certo grupo de discussões, um sujeito cobrou-me que eu não
expunha a minha ideologia. Respondi que não tinha ideologia alguma, simplesmente
porque não possuía nenhum poder que precisasse justificar. Então, para que eu teria
uma ideologia? Se a palavra fosse considerada no sentido de uma determinada teoria ou
explicação da sociedade, poderia até possui-la. Mas uma ideologia também supõe uma
proposta de ação. No meu caso, tenho uma proposta de ação para mim, das coisas que
acho que deveria fazer, e uma para os meus alunos, em relação à condução dos seus
estudos. Nada mais que isso. Uma proposta nacional para o país está fora de cogitação.
Se eu fosse um milhão de vezes mais inteligente do que sou, ainda sim, tratar-se-ia de
algo absolutamente inviável. Qualquer sujeito que apresente propostas para o Brasil,
pelo simples fato de apresentá-las, não sabe do que está falando. Pois julga-se capaz de
uma concepção abrangente o suficiente desse território, com todos seus componentes,
problemas e confusões, além do conhecimento de qual caminho toda essa gente deveria
tomar. Quando Moisés desceu do alto dos sinais, havia quarenta mil pessoas o
esperando. Hoje, grande parte das cidades do Paraná possui mais habitantes que isso. Se
o próprio Moisés cuidava de quarenta mil pessoas, que haveríamos de dizer de um
sujeito que faz planos para milhões delas. Quando isso acontece, obviamente, nenhum
desses planos poderá abranger toda essa gente, e, como a ação será executada sobre um
cenário indefinido, atuará sobre parte limitada do conjunto, desencadeando
consequências que estão infinitamente além da imaginação daquele que elaborou o
plano inicial. É isso que se chama de proposta para o Brasil: fazer algo que se
desconhece, sobre um meio que não se entende, produzindo resultados que estão além
da imaginação. Se alguém viesse me propor uma coisa dessas, eu diria que tenho mais o
que fazer. Porém, hoje em dia, todo mundo precisa apresentar uma proposta nacional. E
assim, todo o mundo tem que ser um Deus. Porém, são pessoas que nunca tentaram
resolver um único problema.

Há um livro muito interessante, escrito por um filósofo francês chamado Alain, que
pretendia estudar a dialética da ação humana. Seu plano consistiu em selecionar um
exemplo de ação humana complexa e bem sucedida. No fim do século XIX, os
americanos realizaram um combate bem-sucedido à febre amarela em Cuba. Com esse
exemplo de ação numa escala abarcável, no qual era possível conhecer todas as etapas e
processos que foram realizados, Alain tentou compreender o problema que havia se
proposto. Porém, no caso, por exemplo, do estudo do plano quinquenal soviético, isso
seria impossível, principalmente porque todas as estatísticas eram falsificadas. Com a
impressão de um controle total e centralizado de tudo (#0:40:00), o poder central
exercia tão somente um controle central da imagem do controle projetado sobre o
público, na medida que todos as estatísticas sobre o assunto eram inventadas. O que
estava realmente acontecendo na economia soviética, nem o próprio Stálin sabia.
Quando acabou o regime soviético, apareceram milionários russos em todo o país, mas
ninguém perguntou como, num regime comunista sem propriedade privada, poderiam
existir tantos sujeitos bem afortunados. Isso aconteceu porque havia um capitalismo
subterrâneo enorme durante toda a existência da União Soviética. Desse fato, só ficamos
sabendo agora. Porém, o homem mais poderoso do século XX não o sabia; era incapaz
de exercer um controle que se extendesse além de um determinado fragmento da
realidade, restrito a um círculo limitado de subordinados, gerando consequências que
não poderiam sequer ser imaginadas por ele.

A escala da capacidade humana é muito menor do que as pessoas hoje presumem.


Imaginem, por exemplo, o Mohamem Al Sahaf, um sujeito que é quase o protótipo do
intelectual moderno. Quando ele falava que não havia americanos no Iraque, muita
gente já podia ver os tanques avançando pelo país. Então, imaginem o Sadan Hussein
acreditando num indivíduo como esse, totalmente fora da realidade, mas que falava com
uma certeza muito impressionante. O mundo está cheio de pessoas assim. Um não
sabendo o que está acontecendo, diz o que gostaria que estivesse. Porém, muitos fazem
carreiras com isso, e eu espero que não seja o caso dos meus estudantes. Então, se
alguém lhe pedir um plano nacional, saia correndo. Talvez um plano distrital, que sirva
para um bairro, ou algo modesto, ao alcance de um ser humano comum, possa ser
levado em consideração. Se olharmos para o número atual de pessoas que têm soluções
para o mundo, podemos entender porque o mundo está passando mal. Quando vemos,
por exemplo, milhões de candidatos interessados em disputar um concurso para juiz,
não podemos deixar de nos aterrorizarmos com essa quantidade tão grande de pessoas
dispostas a julgar a vida alheia, mandar pessoas para a prisão, etc. Pois trata-se de coisa
da qual as pessoas deveriam fugir como se fosse da peste, porém, elas se candidatam,
sob a alegação de ser um direito delas. Na verdade, ser juiz é horrível. Um com o
mínimo de consciência sabe que a margem de erro é enorme, e que esses erros não
ficarão no papel. Por isso que o meu pai, que era advogado criminal, sempre dizia que o
juiz, sempre que puder dar uma sentença inóqua, a dará – nem sim nem não, muito antes
pelo contrário, etc. Pois o sonho do juiz é empurrar o abacaxi adiante. Mas, no fim,
alguém vai ter de decidir. E por que essa protelação? Porque, de fato, é angustiante
decidir alguma coisa. Esta profissão é um convite permanente à corrupção, não no
sentido financeiro, mas no sentido moral. No mais das vezes, o juiz mais honesto
moralmente já está corrompido, pelo simples fato que ele é submetido a uma pressão de
julgar diariamente coisas tão graves que fariam qualquer um de nós fugir dessa posição.
Isso gera uma necessidade de descensibilizar para as consequências das próprias ações.

Todas essas são contradições inerentes ao próprio Estado moderno democrático. Se,
com nosso trabalho, pudermos ajudar a esclarecer uma pequena parte desses problemas,
talvez, com uma continuidade desse trabalho por outras gerações, o atual estado de
coisas possa melhorar ao longo dos tempos. Só que, ao mesmo tempo que tentamos
melhorar a situação, há um monte de pessoas tentando piorá-la; o problema é saber
quem chegará primeiro.

ALUNA: No começo da palestra, o senhor falou do conceito do Estado, que não é algo
abstrato...

OLAVO: Abstrato é. Pois foi obtido por abstração a partir de uma situação complexa
real. Todos os nossos conceitos são obtidos por abstração. Mas, independentemente da
nossa abstração, existe uma entidade real chamada Estado. Acontece que essa abstração
tem de ser corrigida progressivamente através de novos atos de consciência. Porque, ao
abstrair, pegamos o objeto e separamos dele certos aspectos que achamos mais
importantes, e os formulamos. Porém, em primeiro lugar, pode ser que cometamos erros
nesse processo. Em segundo, como se trata de uma entidade histórica em contínua
transformação, pode ser que, antes de acabarmos de enunciar a teoria, o Estado seja
outra coisa. Kelsen, por exemplo, quando começa a formular sua teoria, estava num
regime democrático, e, quando a termina, o nazismo estava em plena vigência; ou seja,
o Estado que ele descrevia não existia mais. Assim, você pode estar tentando descrever
uma realidade presente, que se torna passada no momento seguinte. Esse problema só
comporta uma solução: o contínuo esforço de revivecência das condições e o contínuo
esforço de intensificação da consciência que vai passando de geração em geração. Para
isso, é necessário que cada geração passe para a seguinte não apenas a teoria, a doutrina,
mas a experiência real da qual aquilo foi abstraído, abreviando, portanto, o trabalho
necessário. Na verdade, Kelsen fez tudo de maneira honesta, expondo claramente as
condições, os dados, o problema encontrado e a solução para resolvê-lo. Como ele
procedeu honestamente, é fácil corrigir e complementar sua teoria, na medida que
Kelsen levou o serviço até o ponto que era possível. Por isso, ao considerarmos a teoria
tridimensional do direito ou a teoria do direito do Estado de um Miguel Reale, por
exemplo, vemos que o autor conta a história da evolução das investigações até o ponto
em que ele está. Esta é a história de uma investigação bem sucedida. Porém, enquanto
essas pessoas estavam tentando esclarecer mais as noções de Kelsen, ela gerava
consequências políticas e sociais que estavam além do alcance de seu criador. Hoje, por
exemplo, a constituição da ONU é toda baseada no trabalho desse autor. É um poder
absolutamente despótico, que surge numa roupagem positiva, mas que impõe ao mundo
inteiro programas uniformes de saúde pública, educação, moral, etc. Tudo isso baseado
na teoria do Kelsen, que nunca pensou nisso. Os efeitos sociais e históricos da produção
da ciência social e histórica escapam do controle do próprio cientista, criando situações
de uma complexidade imensa.

ALUNO: Os charlatões aos quais o senhor se referiu, já pensam na doutrina (#0:50:00)?

OLAVO: Invariavelmente. Esse tipo de gente não está interessada em conhecimento,


mas em efeitos, em criar determinada situação, uma situação que estrutura um poder de
acordo com o que foi previamente concebido. Aqui, funciona como propunha o próprio
Marx, que não queria interpretar a realidade, mas transformá-la. Porém, o que acontece
é que, se já não se entendia a realidade presente, sua transformação gerará uma coisa
ainda mais incompreensível. Alguém com essa proposta teria de ser calado
imediatamente, pois a situação já é suficientemente confusa sem esse tipo de atitude. O
número de falsos teóricos que não passam de profetas messiânicos é imenso; são
sujeitos que não querem compreender coisa alguma, mas mudar a história humana,
dirigi-la para além do horizonte de sua própria vida, deixando consequências que não
poderiam ser previstas ou controladas para as gerações futuras. Considere a obra de
George Sorel. Este autor estuda o problema dos mitos na política e na história,
descobrindo que o mito é uma força agente. Como resultado, todos os partidos
começam a ler suas descobertas e a inventar seus próprios mitos. Ganharam um presente
de Sorel, que os forneceu um instrumento de enganação do público. Trata-se de um mito
que não tem nada a ver com propaganda ou com o objetivo que se quer, funcionando
como a chamada cenoura de burro, que é posta na sua frente não para que ele a coma,
mas para que siga em certa direção. A partir da hora que começamos a conhecer esse
processo, aprendendo a distinguir o que é o esforço verdadeiro de ciência do que é
intervenção histórica desses falsos profetas, poderemos, ao final, compreender os
limites da ação humana, entendendo, assim, como certas situações, uma vez montadas,
também tem consequências limitadas. Aqui, temos um instrumento de análise histórica
e política absolutamente formidável. Sobre tudo o que estou escrevendo a pelo menos
dez anos, não fiz uma previsão errada, o que é uma satisfação do ponto de vista
científico e uma desgraça do ponto de vista humano. Isso mostra que é possível
compreender a história que está se passando em determinado momento, desde que se
tenha uma idéia da articulação real dos fatores e saiba destingui-la dos mitos,
ideologias, etc. Quando eu dizia para as pessoas, anos atrás, que elas estavam
reclamando de corrupção sem fazer idéia do que aquilo significava, pois só saberiam o
alcance da palavra no momento que o PT chegasse ao poder, todos pensavam que eu
afirmava isso porque eu era contra o PT, quando, na verdade, se dava exatamente o
contrário. Porque eu estudei, sei como a coisa funciona, sei como se organiza um
partido assim, e sei que é impossível organizá-lo honestamente. Consideremos o tema
por um instante. São vinte organizações partidárias, com somente uma que possui uma
militância de milhões de pessoas; que exerce controle sobre centenas e centenas de
ONGs, muitas delas com dinheiro do exterior; que tem o apoio de organizações
terroristas e narcoterroristas do continente; que tem uma estratégia para os cem
proximos anos, enquanto os outros partidos tem somente um programa para concorrer
na próxima eleição. Será possível que uma organização deste tamanho se construa
honestamente? Não é uma questão de honestidade dos indivíduos que a construíram,
mas do tamanho do empreendimento. Ainda que fossem todos santos, seriam santos de
um partido corrupta, cuja própria estrutura exige que ele seja assim, Não se pode criar
um partido tão abrangente, que mexa em todas as esferas da vida social, enquanto o
restante age somente no âmbito da disputa eleitoral, sem roubar algo, matar alguém, etc.
Por isso, pela própria abrangência das atividades do partido, é fácil supor seu
envolvimento com banditismo e altos esquemas de corrupção. É óbvio. Vendo como ele
se organiza, a partir de uma leitura atenta dos princípios de organização partidária de
autores como Lênin, Gramsci e Trótski, entende-se o significado de por que não se pode
fazer um omelete sem quebrar os ovos. É preciso fazer muitas maldades no meio do
caminho, que inevitavelmente serão feitas. E como nenhuma das outras organizações
partidárias são sequer capazes de concorrer com eles nessa escala, podemos ver como se
forma um conjunto que reduz qualquer espécie de banditismo político ao mero varejo.
Trata-se da diferença entre vários corruptos e toda uma máquina de corrupção, que, para
alcançar seus objetivos, precisa agir desonestamente. Pois uma força histórica desse
tamanho, construída honestamente, necessitaria de um santo, como os que fundam
igrejas, para que não fosse totalmente corrompida. Mas, como se trata de força política,
podemos saber o que irá acontecer. É só estudarmos o próprio Lênin, cuja regra número
um era fomentar a corrupção e denunciá-la. Assim, cria-se, por um lado, um desespero
geral, e, por outro, uma organização ou líder salvador para o qual se voltarão as
esperanças do povo. No Brasil, essa estratégia foi herdada do antigo Partido Comunista
e da Ação Popular, dois partidos comunistas, cujos membros estudaram Marx, Engels e,
sobretudo, Lênin. E como não estamos falando de sujeitos tão inteligentes que serão
capazes de inventar algo muito novo, é exatamente essa linha que eles seguirão. É algo
claro como água, uma questão científica e não de posição pessoal. Até o Fidel Castro
concordaria comigo. Não se trata de tomar partido, mas da ciência da ação humana. Se
houvesse no país um certo número de intelectuais capazes de saber disso, tirando
aqueles que estão executando esse projeto, talvez não teríamos chegado a tanto. Quando
começou a campanha contra a corrupção a mais de dez anos, escrevi que a corrupção
iria aumentar por dez mil, e que todos os inimigos do PT seriam derrotados. E foi
exatamente isso que aconteceu. Pois a campanha contra a corrupção não tem nada a ver
com corrupção, mas é parte de uma grande estratégia, uma obra intelectual
verdadeiramente admirável. Com essa política, o que nunca se conseguiu foi o objetivo
mais alto alegado por essa gente: criar uma sociedade justa. Pois os meios tornam o
objetivo materialmente impossível. Quando se corrompe tanto o sistema político, o
poder que é conquistado serve para tudo, menos para fazer o bem. A própria quantidade
de poder que se tem já é um mal. Existe, inclusive, um corpo de intelectuais que
trabalha para isso. Na minha página da internet, exise um link para a página de um
desses grupos, que é o Gramsci Brasil, um grupo de intelectuais empenhados no estudo
da obra desse autor, com Carlos Nelson Coutinho, o sujeito que lançou Gramsci no
Brasil durante a década de sessenta, como líder principal (#1:00:00). Não é uma coisa
abstrata. Creio que, no Brasil, algo na faixa de mil e quinhentos intelectuais estão
continuamente trabalhando e retrabalhando isso. A articulação, por exemplo, da
estratégia gramsciniana com a leninista, um problema terrível, que não é qualquer um
que pode lidar com isso, é um trabalho realizado por gerações e gerações de indivíduos
empenhados. Há partidos que passaram décadas e décadas tramando isso, mas nunca
conseguiram nada. É o caso do partido comunista francês, que nunca conseguiu nada
nos seus cento e cinquenta anos. Na américa latina, parece que foi mais fácil. Mas na
hora que se conquista esse poder, é impossível fazer qualquer bem. O simples fato de
querer uma concentração de poder desse tamanho já é um mal. Como se explica o fato
das pessoas desejarem isso é algo mais complicado, que envolve uma compreensão do
gnosticismo, do messianismo etc. O fato é que, na modernidade, existe esse ethos que
faz com que um pense que é bom pelo simples fato que odeia o mal. Mas quem disse
que o demônio ama o mal? Ele o odeia também. A revolta contra a injustiça é tida como
o maior mérito moral que se poder ter, quando é exatamente o contrário. Pois o homem
bom jamais se revolta contra a injustiça. Ele entende que ela é uma fatalidade humana e
tenta corrigi-la na medida do possível. E só. Agora, estar revoltado contra a injustiça é o
começo de toda uma complicação. Mas é o ethos gnóstico, que se basei na idéia de que
o mundo é uma coisa má, criada por um deus maligno, contra a vontade de um deus
espiritual que não tem nada a ver com isso. É uma história com mais de dois mil anos. A
partir do século XVIII, isso vira uma série ininterrupta de movimentos de massa, todos
revoltados contra a injustiça e produzindo cada vez mais injutisça. Quando o Cristo fala
“não resistais ao mal”, é porque não é para lutarmos contra a injustiça, pois ela é uma
fatalidade humana, fruto inevitável do pecado original, e como nenhum de nós vale
muita coisa, nossa tarefa é tentar melhorar um pouco, compensando o nosso próprio mal
em primeiro lugar. É o máximo que dá para fazer. Mas imaginem a quantidade de mal e
ódio que existe na cabeça de um sujeito que quer eliminar a injustiça do mundo. Pois
eliminar a injustiça do mundo significa estar contra a estrutura da realidade, na medida
que todos nós somos humanos, cometemos injustiças, e o máximo que podemos fazer é
fazer o mínimo de mal, com muito esforço, autoconsciência, etc. Até quando estudamos
a vida de São Francisco de Assis, por exemplo, podemos ver quanto mal involuntário
nasceu como fruto das consequências políticas da criação das ordens mendicantes.
Talvez, se São Francisco pudesse prevê-lo, não houvesse inventado coisa alguma, mas
tratado de fazer o bem numa escala pequena, sem que ninguém o percebesse. Porém, o
sentimento ético básico que impera hoje é esse: a revolta contra a injustiça. Tirem isso
de seus corações. Não precisamos gostar da injustiça, é claro, mas, quando nos
revoltamos contra ela, estamos desejando que a estrutura da realidade seja transformada,
e quando desejamos isso, nos colocamos no lugar de Deus, como seres superiores a
própria realidade. Nesse momento, a quantidade de mal em nós mesmos será
infinitamente superior ao do meio. É como querer santificar uma pessoa, revoltando-se
contra todos os pecados e defeitos dela, obviamente, matando-a como consequência. Na
verdade, ninguém corrige ninguém. Estou casado a vinte anos com a mesma mulher,
nenhum corrigiu os defeitos do outro – de certo modo, estamos cada vez piores. O que
aprendemos é a nos perdoar. Se quisessemos eliminar o mal um do outro, não
estaríamos mais vivos. Cristo não disse “aperfeiçoai-vos uns aos outros”, mas “amai-
vos”, um amor que toma a forma específica do perdão. Quando a revolta contra a
injustiça, que já é um erro, é transformada no principal sentimento moral, temos o
nazismo, o fascismo, o comunismo e todas os genocídios tão comuns ao século XX. É
uma matança que não vai parar enquanto essa fantasia gnóstica não sair da cabeça
dessas pessoas.
(0:41:08)

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