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[0:00:00] Bom então, se alguém entendeu alguma coisa do que eu disse desde o
início, então é preciso ver o seguinte, que existe uma ciência da sociedade política, que
essa ciência não é nova, que ela existe, pelo menos, desde Platão e Aristóteles, senão
desde um pouco ates. Que ela nos fornece todos os meios necessários para a
compreensão do fenômeno com que nós estamos lidando. E que o preço disso, o que
ela exige em troca, é que uma série de procedimentos metódicos seja seguido, assim
ao pé da letra, à risca. Se falhou um pedacinho a coisa bagunça, tá certo.
Como por ignorância dos seus antecedentes, a partir do Século XIX, quando se
formam as chamadas ciências sociais, havia-se perdido a compreensão dessa tradição
que já vinha desde Platão e Aristóteles, no Século XIX se faz um novo começo, não a
partir do zero, mas a partir da imitação, da macaquice de procedimentos que tinham
dado algum resultado no campo das ciências naturais, quando se recomeça as ciências
sociais com Augusto Comte, Durkheim etc., é como se tivesse havido um hiato de
memória e esses fundadores entre aspas da ciência social moderna acreditavam que a
ciência que eles estavam buscando não existia, que eles estavam começando do zero,
e que a única base que havia pra isso era a ciência da natureza tal como concebidas no
período que ia mais ou menos de Newton e Descartes até a época deles. O erro
monstruoso que isso representava só se torna mais claro a partir do momento em que
para o próprio domínio das ciências naturais os pressupostos da ciência cartesiana e
newtoniana começam a falhar, isso no final do Século XIX e começo do Século XX,
quando vem então a relatividade, a teoria quântica etc. Foi preciso que esse conjunto
de pressupostos cartesianos e newtonianos caíssem e fossem desmoralizados no seu
próprio domínio, para que o erro de macaqueá-los para um outro domínio se tornasse
claro, então, durante um período que pega mais ou menos as primeiras décadas do
Século XX, então, os cientistas sociais e políticos ficam numa espécie de estado
desorientação na qual eles buscam um novo fundamento. Esse é um período muito
fértil das ciências humanas. É um período que é dominado pelas discussões
metodológicas e por um conjunto de esforços muito sério para delinear melhor qual
era o âmbito de problemas com os quais se estava lidando. Deste período data a
famosa Teoria do Direito do Kelsen, quando ele busca explicar qual é o domínio do
direito considerado em si mesmo e não por analogia com outros domínios. Ele busca
distinguir o campo do direito, distinguindo do campo da moral, da política etc., até
chegar no que é o direito como tal. Esse esforço pode não ter obtido resultados
definitivos, porém ele é muito importante para o período seguinte no qual se procede
uma reconquista da ciência política que vinha desde a Antiguidade. Paralelamente na
época havia muitos esforços semelhantes em vários domínios do conhecimento, até
mesmo nas ciências naturais. O que é a pergunta, por exemplo, do que é o campo
biológico considerado como tal, o que o distuingue propriamente do campo físico,
químico etc.
Ou seja, nesta época, se no Século XIX tinha havido uma espécie de mixórdia geral
das ciências, umas macaqueando os procedimentos das outras para um novo objeto,
no começo do Século XX aparece, então, essa preocupação de distinguir cada objeto
de uma maneira mais nítida. Este também é o período em que aparece uma obra
absolutamente fundamental para a metodologia da ciência que são as Investigações
Lógicas de Edmund Husserl. Husserl, então, entendendo a lógica, não como uma
técnica do pensamento e nem como uma ciência empírica do pensamento, uma
espécie de psicologia, mas entendendo como uma ciência puramente teorética do
conhecimento, ou seja, a ciência da ciência, a ciência encarregada de distinguir o que é
ciência do que não é ciência e por que a ciência é ciência, ele então com essa
concepção da lógica chega a delinear a idéia de que toda a atividade científica no seu
conjunto depende de uma ciência dos objetos em geral. Depende de uma ciência dos
objetos científicos.
Tal como Kelsen e outros vinham fazendo para determinados domínios específicos,
Husserl monta uma esquemática geral de uma teoria dos objetos mostrando a
absoluta necessidade de uma ontologia geral, uma ciência geral do ser ou do objeto,
em cima da qual ou dentro da qual se estabelecesse as várias ontologias regionais, ou
seja, as ontologias de determinados objetos de determinadas realidades em particular,
que nos esclarecesse não só sobre os limites dentre esses vários objetos, mas sobre o
modo de existência de cada um e, portanto, o modo de conhecimento admissível.
Existe uma frase dele, um tanto cômica, que resume isso aí. Ele diz: "não existe uma
embriologia dos triângulos, nem uma trigonometria dos leões", com isso ele quer dizer
o seguinte, que esses objetos, os leões e os triângulos, eles nos aparecem, eles se
manifestam para nós de maneira diferente. Nós temos acesso a eles por meio de
procedimentos cognitivos diferentes e existe um tal abismo entre um desses objetos e
outro que simplesmente não é possível articular o conhecimento de um com o
conhecimento de outro.
Vejamos que nos últimos vinte anos o panorama todo bagunçou de novo quando surge
o tal do Holismo que acredita que "tudo está relacionado com tudo" o que é uma frase
absolutamente vazia, pois é claro que tudo está relacionado com tudo, mas de que
maneira? Tudo está relacionado com tudo, mas não do mesmo modo. As coisas podem
estar relacionadas precisamente sobre o aspecto da sua diferença, daquilo que as
separa, ou daquilo que as torna absolutamente incomunicáveis, como por exemplo a
embriologia e a trigonometria. Então, idealmente o sistema, o conjunto, das ciências
que nós conhecemos se articula de tal modo que ele corresponde às diferentes
modalidades de objetos que se apresentam a nós. O sistema das ciências corresponde
à estrutura do real. Essa estrutura pode ser conhecida na sua linha geral e também
nas suas distinções internas. Se não houver possibilidade de conhecer as distinções
internas, então não haverá distinções entre os campos das ciências. As distinções
serão meramente convencionais ou até administrativas. [0:10:00] Isso quer dizer que
não haveria nenhum problema em, por exemplo, a Biologia estudar as oscilações da
Bolsa de Valores, ou a Antropologia estudar o comportamento dos piolhos. Não haveria
nenhum problema, e só não fariam isso por uma exigência administrativa. Agora se
você perguntar para um sujeito: qual é a diferença entre um piolho e uma ação da
bolsa de valores? Bom, de uma maneira quase instintiva você sabe que existe essa
diferença, mas você sabe apenas no sentido de que se te mostrarem uma ação da
bolsa e um piolho, você saberá que um é um e outro é outro. Mas você não tem a
expressão teórica disso aí. Você não é capaz de dizer no que consiste. E, é claro, que
para a organização do mundo das ciências não basta essa distinção por
reconhecimento é preciso uma distinção expressa, uma distinção teorética que seja
dita. E que possa servir, então, de fundamento, de premissa, para outros raciocínios
que você vai fazer em seguida. Então isso quer dizer que a simples capacidade de
reconhecer uma diferença não quer dizer que você saiba no que ela consiste.
Você conhece os objetos, você distingue os objetos mas você não distingue a natureza
da diferença. Então justamente são essas diferenças e essas articulações entre os
vários objetos que é a isso que Husserl chama as ontologias regionais dentro do corpo
de uma ontologia geral, mas a ontologia geral ainda tem o seguinte problema: as
ciências não lidam somente com objetos existentes, elas lidam também com objetos
inventados. Por exemplo, muitas figuras geométricas você não pode dizer que elas
existem nem no sentido em que existe um leão e nem no sentido em que existe uma
ação da bolsa de valores. Você percebe que são modalidades diferentes de existência
embora você não consiga dizer no que consiste essa diferença. Isso quer dizer que o
sistema geral da ciência teria que ser fundamentado não só numa teoria geral do ser
mas numa teoria geral do objeto, independentemente do objeto fazer parte do ser ou
não fazer parte do ser. Então ainda dentro dessa linha de idéias inauguradas por
Husserl aparece outro filósofo muito interessante chamado Alexius Meinong, e Meinong
cria, então, a teoria geral do objeto numa linha bem parecida com Husserl.
A teoria do objeto se baseia na idéia husserliana de que toda consciência que você
tenha é sempre consciência de alguma coisa. Não existe consciência do nada. Mesmo
dizer consciência da própria consciência, uma coisa é a consciência tomada como
objeto dela mesma e a consciência no sentido executivo, no sentido do ato que
naquele momento está tomando consciência dela. Seria a consciência considerada
como ato do sujeito e a consciência considerada como objeto desse ato. Então,
partindo do princípio que toda consciência é consciência de alguma coisa essa alguma
coisa não precisa ser necessariamente algo de real. E você pensar por exemplo um
dragão cor de rosa com bolinhas, nós sabemos que isso não existe na realidade de
maneira alguma. E, no entanto, ele é pensável, e enquanto pensável ele é um objeto
da sua consciência. Se as distinções dependessem da experiência da realidade, então
aquilo que não pode ser objeto de experiência da realidade, não poderia ser distinto de
outras coisas, não poderia ser distinguido de outras coisas. Você discerne uma vaca de
uma ação da bolsa de valores porque você pode ter a experiência dos dois. Mas eu
digo, e o dragão? O dragão você não tem experiência nenhuma, você inventa. O
dragão cor de rosa com bolinhas você inventa. Então isso quer dizer que o princípio
das distinções ele tem que abranger não somente os objetos reais, os objetos de
experiência, mas todo e qualquer objeto. Independentemente de ele existir ou não.
Então, objeto quer dizer que não necessariamente objeto de pensamento, note bem, a
distinção é sutil entre pensamento e consciência. Objeto de pensamento só é objeto do
pensamento no momento em que você o pensa. Objeto de consciência é aquele que
você sabe que existe mesmo no momento em que você não está pensando naquilo.
Isso quer dizer que a distinção, entre os vários campos das ciências, ela se
fundamenta numa distinção entre os vários tipos de objetos, entre suas modalidades
de existência, ou seja, suas modalidades de apresentação como nós tomamos
conhecimento deles, e por fim a distinção entre as diferentes vias metodológicas que
você tem para ter um acesso científco ao conhecimento desses objetos. Tudo isso está
feito desde o começo do Século XX. E você pode ter a certeza de que isso aqui está
totalmente ausente do mundo acadêmico brasileiro. Pelo menos eu duvido, e faço
pouco, que o sujeito em um curso de Direito, ou de Sociologia, tenha chegado a isto
aqui. Isso quer dizer que ele na verdade receberá alguns conceitos prontos que ele vai
pegar dos manuais de sociologia e de direito, ele não sabe da onde isso saiu e,
portanto, não sabe qual é o fundamento científico disso. E se você disser ó meu filho
você tem que parar com esse negócio. Para você entender do que estão falando você
tem que parar com isto, e você tem que retornar até as investigações lógicas, as
investigações de teoria do conhecimento, que produziram esses conceitos que você
está usando. Senão você estará usando esses conceitos como fetiches. Como se eles
fossem diferenças naturais, dadas na própria experiência sensível, quando eles são um
produto da investigação humana, um produto do esforço humano. Sujeito, portanto, a
erros, e que pode ser que Husserl ou Meinong tenham feito algum erro lá para trás, e
se nós não sabemos que essas coisas nasceram de um esforço científico de Edmund
Husserl ou de Alexius Meinong, nós vamos tomar aquilo como se fossem obras da
providência divina, e jamais poderemos corrigir algum erro que tenha ali.
Então, só este detalhe mostra para vocês o quanto está deficiente no Brasil de hoje e
em muitos centros universitários do mundo o ensino dessas coisas. Quer dizer que as
ciências são transmitidas para as pessoas como se elas tivessem brotado em árvores.
Você não sabe todo o esforço que foi feito para produzir aquilo, você não sabe a
origem e o fundamento dos conceitos. Então você recebe aquilo como se fosse dogmas
da Santa Madre Igreja ou produtos da natureza, coisas que caíram do céu ou objetos
de revelação. E o dano que isso trás ao entendimento posterior das coisas é imenso.
Porque você vai pegar meros conceitos. Um conceito expressa um objeto que foi
apreendido mentalmente. Primeiro, você não sabe nem se esse objeto existe, e muito
menos você sabe se ele corresponde à experiência da realdiade. Então se você tem o
conceito do objeto, mas você não tem clara consciência de qual é a modalidade de
existência daquele objeto, então você não sabe do que está falando. Não quer dizer
que você não saiba nada. Algo a respeito você sabe, mas você está na condição de
uma criança que está em dúvida se Papai-Noel existe ou não. Está é exatamente a
situação, por mais academicamente embelezada que ela seja. Quer dizer, não passará
de uma ignorância adornada de títulos acadêmicos. E eu lhes garanto que isso aqui
representa quase cem por centro do que se faz nessas áreas no Brasil hoje. Outro dia
me trouxeram uma sentença de um juiz de Santa Catarina, uma sentença de trinta
páginas, cheia de citações filosóficas etc., e eu lia aquele negócio e via que o sujeito
não entendia um único conceito que ele estava usando, nada. Principalmente que
acontece o fenômeno de que estes conceitos científicos, uma vez criados, eles entram
em circulação na linguagem geral. No momento em que entram em circulação na
linguagem geral, eles ficam imantados de certos valores que você associa a eles.
Certos valores, portanto, certos sentimentos, certas reações [0:20:00] humanas.
Coisas que você gosta ou não gosta, que você teme ou espera etc. Então a partir daí
são fetiches mesmo. Quer dizer que o sujeito quando ouve aquele discurso, de jurista,
de cientista político etc., ele tem uma reação pró ou contra. Por que ele imagina que
aquelas coisas existem. Agora se você perguntar para ele como isto existe, aonde
existe e como tomou conhecimento disto ele não sabe. Na medida em que o número
desses conceitos em circulação aumenta, você cria toda uma pseudo-cultura que é
baseada apenas na aquisição das palavras e dos sentimentos e das reações
sentimentais correspondentes. Então se você fala assim, por exemplo, "justiça social"
o sujeito até chora. Ele associa com o Betinho, então fica comovido e chora. Se você
fala "tortura", a pessoa ferve de indignação. Quando você vai ver e pergunta o que é
"justiça social", o que é "tortura", o sujeito não sabe nem distinguir os conceitos entre
si. Quanto mais os objetos correspondentes. E a confusão que isso pode alimentar nas
questões públicas... você já tem a confusão na esfera cognitiva, na esfera acadêmica.
Quando esses conceitos deixam de ser objetos apenas de debates acadêmicos e se
tornam objetos de debate público para a promulgação de leis etc., então a confusão
chega a um nível psicótico absolutamente infernal. Agora estão votando uma lei que
pune um sujeito que coloca um empregado em uma situação análoga a uma condição
de escravo, a lei diz isso: análoga. O que é analogia? Analogia é uma mistura de
semelhanças e diferenças. E isto está no texto da lei.
Então, tem um dispositivo penal, quer dizer você pune o negócio, mas você não sabe o
que é. É como se você dissesse: fica proibido o plux. Plux você não sabe o que é plux?
Eu também não sei o que o plux nem o que que é análogo de trabalho escravo.
Aluno: corrompe todo o sistema criminal, não é?
Eu por exemplo posso dizer que eu fui vítima de trabalho escravo quando comecei a
trabalhar no jornalismo. Eu trabalhei dois anos na Folha de São Paulo sem registro.
Então se eu não tinha um registro trabalhista eu não era um empregado, se não era
empregado então o que eu era? Era escravo. Ninguém me bateu, ninguém me
acorrentou etc., mas a analogia está presente. Ninguém vai dizer que isto não estava
presente, pois o escravo também não tem registro. Se ele não tem registro, não tem
direito à proteção trabalhista. Então, sob este aspecto a minha condição ali era
análoga a de escravo. Era suficiente para eu meter o dono da Folha de São Paulo na
cadeia. Não teria sido má idéia. Não por isso, mas por outras coisas. (Risos)
Mas é claro que a partir do momento em que você baixa uma lei cujo sentido não é
explícito, então é claro que aquela lei tem um sentido mágico. O mesmo procedimento
pode ser ou não ser trabalho escravo conforme dê na cabeça do juiz. Isso significa que
esta lei é baixada para transformar o juiz em legislador. O sentido da lei, não o sentido
específico para aquele caso, mas a interpretação geral do sentido da lei dependerá do
juiz. Não é como numa situação normal, a lei tem um sentido geral, nítido, e o juiz
verá se aquele sentido geral se aplica ou não a este caso em particular conforme este
caso tenha a tipicidade ou não. Até hoje o juiz fazia isso. Agora não, agora a lei não
tem sentido nenhum e o juiz a preencherá de sentido conforme dê na cabeça dele no
momento. Então você imagina o caos e a situação de absoluta prepotência jurídica que
isso pode criar. O juiz pode fazer o que quiser. Vira uma espécie de soberano. Tudo
dependerá de você eventualmente poder contestar a sentença dele apelando a um
outro juiz que também arbitrariamente atribua aquela lei um outro sentido. Você
percebe que a própra noção de direito e de lei foi para o brejo nessa hora. Você só tem
realmente a arbitrariedade, você está num regime de arbítrio. E como é que foi feito
esse regime de arbítrio? Através de uma instauração de uma ditadura? De uma
tirania? Não, foi feita através da própria lei. Você usa a própria lei como instrumento
para fazer com que não exista lei nenhuma. Onde é que começa isso? Começa na
cabeça dos acadêmicos. Começa na cabeça dos juristas. Quando de pelo menos vinte
anos para cá no Brasil você observa isso. Quando você vê que uma série de conceitos
de ordem jurídica, sociológica, política etc., são absolutamente esvaziados de sentido
lógico, isso para não falar de referência a um objeto de experiência, pois referência já
não tem nenhuma, mas se fosse pelo menos um conceito lógico que não significa nada
no mundo real, mas ele significa alguma coisa verbalmente, já é alguma coisa, mas
hoje não tem nem isto. Só o que sobrou é uma palavra e essa palavra é associada a
certas reações emocionais de um fulano, de um idiota togado que está lá e do qual a
sua vida pode depender. E o pessoal ainda fala mal da justiça islâmica. Da justiça do
Kadhi, que é o juiz islâmico. Conforme dê na cabeça dele, conforme a cabeça dele você
pode perder a sua cabeça por alguma arbitrariedade. Então a justiça do Kadhi está
institucionalizada. Cada juiz pode fazer o que quiser.
Muito bem, nós vimos que as duas linhas de precaução fundamentais para o trato com
qualquer conceito que se refira à sociedade humana é primeiro a permanente distinção
entre o que é discurso do agente e o que é discurso teorético, e você mesmo precisa
saber se você naquele momento não está na condição do agente. O que houve lá
atrás? Qual é a dúvida? Diga. Se for assunto da aula interrompa quantas vezes for
necessário, se não é assunto da aula não fale aqui. Senão eu vou querer me meter no
meio, talvez tenha alguma fofoca interessante lá e eu vou querer saber o que é.
[0:30:00] Vocês vejam que a minha cabeça também é tão sujeita a dispersão quanto a
de qualquer um de vocês, eu não tenho um discurso decorado para chegar aqui e blá
blá blá, não sou um ator que decorou o papel. Eu tenho que articular as coisas na hora
em que eu estou falando aqui. Começa uma outra conversa e aí bagunça a minha
cabeça.
Nós tínhamos duas distinções. Duas precauções fundamentais. Uma entre discurso do
agente e discurso teorético. Os dois discursos são interessados, não existe um discurso
desinteressado e neutro. Isto é uma bobagem. Apenas o objetivo do discurso do
agente é uma transformação da realidade e o objetivo do discurso teorético é você
chegar a entender alguma coisa. Ou seja, é preciso você estar tão interessado em
chegar a entender o fenômeno quanto o agente estava em produzir a transformação
que ele queria. Existe um elemento volitivo e passional embaixo dos dois discursos. A
idéia de que por um lado existe um discurso interessado e do outro existe um discurso
neutro, isso é uma besteira. O discurso neutro e desinteressado... bom em primeiro
lugar se você não tem sequer interesse você não vai conseguir fazer o discurso porque
você vai dormir. Então existe esse elemento passional e é necessário para isso que o
cientista, o estudioso, ele esteja tão visceralmente interessado em entender aquele
negócio quanto o agente estava interessado em obter aquilo que ele desejava. O
desejo do conhecimento ele só aparece quando existe consciência da ignorância e
existe a incomodidade da ignorância. Só se a confusão existente na sua cabeça ou no
estado de coisas ou no estado presente dos conhecimentos é tanta que chega a te
angustiar, então você realmente quer sair dela. Então aí você chegar a ter a condição
de sobrepor o interesse de conhecimento a qualquer outro interesse que você tenha,
fora disso não. Se você está mais interessado na sua carreira, em vencer uma eleição,
em fazer uma revolução, ou impedir uma revolução etc.. Se você está mais
interessado em outra coisa, então você está como agente.
Se porém você já percebeu que todas as ações humanas em jogo naquele ponto estão
tão confusas que ninguém vai obter o resultado que espera. Se você já entendeu que a
sociedade é uma espécie de hospício e que a necessidade de alguma clareza no
conhecimento é mais urgente do que a necessidade de qualquer daquelas ações
propostas pelos vários agentes, aí você está na condição de se tornar um estudioso do
assunto. Não é preciso dizer que no presente estado de coisas a confusão já se tornou
mais do que desesperadora. Ela passou daquele ponto em que você fica desesperado,
pois quando você está desesperado você está sofrendo. Mas hoje não pense que as
pessoas estão sofrendo por causa da sua confusão, elas não têm nem consciência de
que estão confusas. E se você diz isso elas ficam mortalmente ofendidas. Você não
está lidando com neurótico. Neurótico é o sujeito que sofre. Está lidando com psicótico,
que é o sujeito que já transcendeu o sofrimento. E eu não tenho a menor dúvida de
que toda a escola jurídica chamada Direito Alternativo, ela é todinha psicótica da
primeira à última linha. Não tem uma palavra, um conceito ali que corresponda a algo
identificável. O que você tem é uma troca de discursos poéticos na qual o discurso de
um é considerado acertado se ele produz no outro a emoção que o outro quer que
produza. E a emoção consiste sempre em dizer "nós estamos num mundo mau e nós
somos os agentes do bem". Quem é que não quer se sentir assim? Até um assaltante
de banco ele tem que sentir que algum bem ele está fazendo. Se ele ficar se
condenando a si mesmo, na hora do assalto, ele vai fazer alguma burrada. Toda ação
subentende uma unidade psicológica do sujeito. Se ele vai ficar com "devo fazer isso
ou não devo fazer isso?", pronto acabou o assalto. Do mesmo modo que o estuprador
no momento do estupro, ele se sente a vítima. Vocês assistiram um filme chamado M
o Vampiro de Dusseldorf? Um filme do Fritz Lang. A estória é a seguinte. Existe um
bandido estuprador que estupra as menininhas e as mata. E já matou tantas
menininhas que a cidade inteira está aterrorizada e ninguém consegue descobrir quem
é o estuprador. Então, diante do fracasso da polícia, chega uma hora que os
criminosos decidem que eles tem que para com esse negócio. Nós queremos continuar
com a nossa prostituição, tráfico de drogas, queremos trabalhar decentemente. E esse
camarada está atrapalhando tudo. Pois agora a polícia fica vigiando tudo quanto é
lugar, todo lugar que você vai tem polícia. Isso está muito opressivo. Decidem pegar o
sujeito, pois a coisa volta ao normal e volta-se a prática usual dos nossos crimes
decentes. Então eles conseguem. Criam uma rede de informações que vai desde os
mendigos de rua às prostitutas, aos pontos de drogas etc., e no fim eles têm muito
mais gente que a polícia evidentemente. Conseguem catar o sujeito. E o levam para
um porão e criam então um tribunal. Eles não podem simplesmente matar o cara
assim. Tem-se que dar a ele o direito de defesa. Então nomeiam um júri, constituído
de mendigos, prostitutas etc., e existe um promotor e um advogado de defesa. E no
fim tem o depoimento do réu. Então ele diz o seguinte: "todos vocês fazem essas
coisas por que vocês querem, mas eu não quero eu faço contra a minha vontade, é
mais forte do que eu. Eu sou uma vítima." E essa é a defesa dele. Ou seja, eu sou
forçado a fazer isso é uma compulsão mais forte do que eu portanto vocês são autores
dos seus crimes mais eu não. Eu sou a vítima.
Você não tenha a menor dúvida que grande parte dos autores de estupros, homicídios
e crimes hediondos se sentem exatamente assim. Isto mostra para você que a
necessidade da autojustificação é universalmente presente. Então, a autojustificação é
um elemento básico do discurso do agente. Seja esta autojustificação explícita ou
implícita. Mais ainda. Muitos discursos de agentes não se apresentam como discursos
de agentes, mas se apresentam como discursos científicos. Como discursos teoréticos.
E você os identifica como discurso do agente no instante que você percebe que eles
não atendem aos requisitos mínimos para ser um discurso teorético. Então é apenas
uma camuflagem, um travesti de discurso teorético que no fundo é um discurso de
agente. E neste discurso de agente você discernirá o elemento de autojustificação. Isto
é sempre possível fazer. Você identificando quais são os sentimentos que os indivíduos
trocam, os sentimentos que entram em jogo neste intercâmbio de discursos, você
percebe o desejo de sentir que é bom.
O discurso teorético também tem um desejo de sentir que é bom, é claro. Só que ele
quer se bom em uma única coisa. Ele quer corresponder com a realidade. Só isto. Não
quer mais nada. Não quer impressionar, não quer ser bonzinho, não quer ser santo. Só
quer ser exato e dizer a coisa como é. Existe este elemento. Se a autojustificação do
discurso, o elemento real de autojustificação ali presente é este, então é um discurso
teorético, evidentemente. Mas se existe alguma coisa a mais não é um discurso
teorético é um discurso de agente. Então esta seria a primeira precaução, a distinção
entre discurso do agente e o discurso teorético.
Segunda precaução: cada conceito e cada julgamento, cada juízo, cada afirmação tem
que ser trazida de volta desde o plano semântico [0:40:00] no qual ela se coloca até
um plano que corresponda à evidências imediatamente identificáveis por qualquer
pessoa. Essas evidências terão que ser de duas ordens. Ou são evidências lógicas, isto
é, conclusões imediatamente derivadas do princípio de identidade, da não contradição
e do terceiro excluído. Ou tem que ser evidências dos sentidos. Podem ser sentidos
externos ou internos. Mas isto tem que ser feito de tal modo que corresponda a
realidades primárias identificáveis por qualquer pessoa. Fazendo essas duas
precauções nós entendemos facilmente que um elemento chamado Estado, que agora
finalmente nós chegamos ao conceito de Estado, não pode ter nascido em árvores e
que embora o Estado seja objeto de emoções humanas - tem pessoas que gostam
dele, tem pessoas que não gostam dele, tem pessoas que esperam dele a solução de
todos os problemas e tem outras que dizem que ele tem que ser abolido simplesmente
-, você entende que a colocação de todos esse juízos a respeito do Estado não é de
maneira alguma discurso teorético. É discurso de agente. O discurso de agente pode
ter alguns elementos cognitivos teorético dentro dele, mas esses elementos estarão
articulados não para formar uma ciência e sim para justificar ou fundamentar alguma
transformação da realidade. Normalmente todas as pessoas que querem uma
transformação da realidade, elas nunca vivem o bastante para ver esta transformação
se realizar e portanto elas nunca são chamadas para responder pelas consequências
desastrosas das idéias que sugeriram.
Isso quer dizer que o julgamento da posteridade não pode afetar um falecido. Se nós
pegamos alguns agentes do Século XIX, XVIII, XVII, XIII, XII etc., e achamos que o
que eles fizeram foi uma coisa horrível isso para eles não interessa absolutamente. No
entanto no mundo das ciências não é assim, porque toda ciência conserva, de geração
em geração, a referência aos elementos anteriormente adquiridos. E ela está em
permanente auto-correção. Isso quer dizer que uma teoria lançada por Aristóteles
pode ser confirmada ou impugnada hoje. E será importante isso para a ciência de hoje.
Porém, o julgamento que você faça sobre Alexandre O Grande, Napoleão Bonaparte,
Carlos Magno ou Júlio César não inflói nem contribói. Isto é uma diferença fundamental
entre discurso de agente e discurso científico. O discurso de agente ele só pode ser
corrigido em vida do agente. O discurso científico não, ele pode ser corrigido mil, dois
mil, três mil ou dez mil anos depois e a correção ainda será importante.
Tendo em vista essas precauções nós entendemos que um fenômeno chamado Estado
não pode ter nascido das árvores, não pode ter aparecido sozinho, mas que ele foi a
obra de alguns agentes. E que estes agentes tinham que buscar para ele uma
justificação. Ora, essa justificação não podia ser de maneira alguma uma coisa
enganosa, ou seja, que fosse apenas para enganar os outros. Porque se você tem um
discurso de autojustificação que você sabe que é só para enganar os outros, então
você mesmo está em dúvida. Nós temos que distinguir dois níveis de enganos
possíveis no discurso do agente. O engano dos outros e o auto-engano. Sendo que o
engano dos outros só é possível de houver primeiro um auto-engano muito bem feito.
Então podemos dar por descontada a hipótese de que os agentes criados da concepção
do Estado tivessem o intuito de enganar o próximo. Porque se eles tiverão esse intuito,
isso será sempre o resultado de um auto-engano prévio. Apenas uma consequência.
Então quer dizer que o que interessa é o ponto do auto-engano. E não o engano dos
outros. Portanto não vamos pensar na hipótese de idéias maliciosas, de sacanagem,
tudo isso é irrelevante para o estudo. Interessa saber o que esses agentes realmente
pensavam, o que eles acreditavam estar fazendo, e como eles justificavam isso para si
mesmos.
Vamos partir de uma idéia simples. Quaisquer que sejam as nossas concepções sobre
o Estado e quaisquer que sejam as concepções sobre o Estado que você encontre em
circulação no mundo, há um elemento sempre presente que é a tal da soberania. Quer
dizer, um Estado é uma entidade constituída de tal modo que ela não pode reconhecer
a existência de uma outra autoridade superior a ela. Geralmente nós constumamos
estudar o fenômeno do Estado a partir da formação dos estados modernos que se dá
por volta da Renascença, quando com a dissolução do grande império europeu várias
nações se afirmam como soberanas. Então a idéia moderna do Estado surge junto com
a idéia da soberania nacional, e a soberania nacional está naturalmente associada à
soberania do próprio soberano. O governante, seja ele o indivíduo ou uma corporação
ou uma assembléia, é constituído de tal modo que ninguém pode dizer a ele o que
fazer. Então nós vemos que até um certo momento se podia associar isto à pessoa de
um monarca. Monarca, quer dizer monos, é um só. E arca princípio. Existe um só
princípio, o princípio da autoridade está corporificado neste indivíduo aqui. Pode ser
isso, mas pode ser também uma assembléia. Como por exemplo na fórmula inglesa o
monarca não é o rei, mas é o rei no parlamento. Quer dizer que quando o rei fala ao
parlamento e o parlamento concorda, este é o princípio da soberania. Isso quer dizer
que fora e acima daquele parlamento não há autoridade humana que possa se impor
àquela autoridade.
Este é o conceito pronto do Estado. Mas nós podemos agora perguntar o seguinte:
mas bom primeiro isto é evidentemente um discurso de agente. Não é um discurso
teorético. Nós só podemos fazer uma teoria do Estado depois que o Estado existe
como realidade histórica. E para que ele existe é preciso que alguém o tenha feito. O
discurso do agente é claro que precede o discurso teorético. Uma realidade histórico
social pode ser criada pela ação humana séculos antes de que exista algum discurso
teorético possível a respeito. Até a expressão Teoria do Estado surge na Alemanha no
começo do Século XIX. Mas o Estado moderno, no sentido do estado nacional, já
existia muito antes. E o estado multinacional já existia mais anteriormente. Então
temos uma realidade histórica criada por agentes precedendo de muitos séculos a
possibilidade de um discurso teórico a respeito. Se o Estado é um produto da ação
humana e se ele é constituído de uma trama de discursos de agentes, para estudá-lo
nós temos que: primeiro, distinguir os vários discursos dos agentes entre si e ver como
é que eles se articulavam; segundo, investigar - porque agora nosso objetivo
[0:50:00] não é fazer mais um discurso de agente, mas entender apenas o que se
passou -, onde e como esses discursos de agentes coincidem com a realidade tal como
ela aparece na experiência identificável de qualquer pessoa inteligente, e tal como
aparece no conhecimento que nós temos de alguns princípios lógicos elementares.
Vamos ter que decompor esses discursos até saber realmente do que essas pessoas
estão falando. Não do que elas queriam falar. Porque o discurso do agente, ele só se
refere à realidade de uma maneira indireta, na verdade o discurso do agente é sempre
baseadno numa irrealidade, ou seja, em algo que ele quer produzir e que não existe
ainda. A referência dele à realidade, não ser direta, ela tem que ser escavada através
da interpretação e da compreensão dos seus discursos.
A documentação que você precisaria reunir para a Teoria do Estado teria que remontar
pelo menos, - deixemos de lado o Império Romano e vamos pensar na origem do
Estado tal como o conhecemos hoje - teria que remontar à constituição do primeiro
estado que aparece no contexto europeu, no contexto ocidental. Idealmente você teria
que ir muito mais para trás. Teria que ir ao Império Romano, China etc., mas para
simplificar nós vamos pegar apenas a evolução do conceito de Estado numa
determinada civilização que é essa na qual nós estamos ainda hoje. A pergunta que
nós teríamos que fazer é a seguinte: onde aparece pela primeira vez a idéia de uma
autoridade humana acima da qual não pode haver nenhuma outra. Quem foi o
primeiro sujeito que disse "acima de mim só Deus". As minhas decisões ou as decisões
dessa assembléia, ou as decisões desse povo - e pode ser um povo inteiro -, são
soberanas. Essa idéia não é comum, nem banal, ela não aparece sozinha. Algum de
vocês já teve essa idéia? Acima de mim só Deus. Se existir Deus, quer dizer, talvez
nem Deus. Normalmente nós não pensamos nisso, mas sempre sabemos que tem
alguém que pode mais que nós, que pode nos dar uma ordem. E se nós não pensamos
nisso o primeiro sinal vermelho que cruzar o guarda vai te demonstrar que tem alguém
que manda em você. Nós estamos acostumados que a nossa autoridade é limitada.
Existem algumas coisas que nós podemos e outras que nós não podemos e que se nós
transgredirmos aquilo, alguém nos imporá sua autoridade. [fim do primeiro arquivo
2004.06.24 - GAP I - Teoria do Estado - Aula 10a]
[0:00:00] Então se a idéia de soberania não é assim tão fácil de aparecer na cabeça
humana, então é claro que ela não existe desde o começo dos tempos. E que ela não
poderia ter aparecido de maneira alguma se não existisse para fundamentá-la a
referência a um poder ou autoridade supra-humana, que seria então o limite extra-
humano das decisões do soberano. Por exemplo, se o soberano mandar dois mais dois
dar cinco, não vai dar. Se ele mandar que todas as pessoas parem de envelhecer -
agora sua idade contará para trás -, ele não será obedecido. Então a existência da
idéia de soberania subentende que acima dela existe uma estrutura da realidade. Veja
que quando o Rei da Espanha, Felipe II, manda atacar a Inglaterra e ele reúne a maior
frota marítima que existia até então, suficiente para arrazar dez Inglaterras, e essa
frota é afundada por uma tempestade e não chega um só navio até a Inglaterra, o Rei
Felipe II comunicado disso bate os ombros e diz: bueno, yo no lo havia enviado contra
los elementos de la naturaleza. Era para derrotar sozinho eles, a natureza não. Então
ele sabe que a sua soberania tem um limite extra-humano.
É claro que a idéia da soberania se ela não é sequer pensável exceto contra um fundo
extra-humano, ou supra-humano, ela só pode ter surgido num momento em que se
acredita que esse fator supra-humano é suficientemente conhecido para que você
saiba quais são os limites intrínsecos da autoridade do soberano. Se você não tem uma
noção da distinção do humanamente possível do humanamente impossível, a idéia de
soberania não pode ter-se perfilado na cabeça humana.
Bom, também você veja que a hipótese de um monarca poder ser derrubado, ou
destruído, também depende da cosmovisão que tem nos vários lugares. Por exemplo,
você tem muitas tribos em que se entende o monarca como uma vítima sacrificial. Se
acontece uma sucessão de tempestades ou uma sucessão de colheitas ruins, uma
peste ou algo do tipo, deve ser o seu monarca que está errado. Então o que se tem de
fazer? Tem que matá-lo. Enquanto o sujeito estava lá, estava mandando. Se ele está
mandando e está mandando de acordo com a ordem cósmica, isto é, mandando de
acordo com a estrutura da realidade que o transcende, então deveria estar tudo
funcionando. Se algo falha, então é porque ele está no lugar errado e nós temos que
sacrificá-lo. Na China era assim. O imperador chinês tinha que praticar diariamente
uma série de rituais que teoricamente harmonizavam o estado chinês com a ordem
cósmica. Se de repente se espalha a peste ou uma tempestade, ou uma praga e
elimina todas as colheitas, então, falhou. Então o que a gente faz? A gente mata o Rei.
O Rei é sacrificado em nome da ordem cósmica. Isto não é um limite da soberania, ao
contrário. Isto é a prova de que ele era soberano mesmo, pois ele era o ponto de
ligação entre a ordem cósmica e a ordem humana. Então a noção de soberania é
exatamente desse limite, dessa fronteira. Aqui existe a ordem humana - o conjunto
das ações que para nós são possíveis - e acima disto existe uma ordem cósmica na
qual o ser humano não apita nada. E o monarca, o soberano, é o sujeito que está ali
colocado entre uma coisa e outra.
Aluno: Uma coisa que não ficou muito clara para mim, você desenvolveu que no limite
da percepção, quer dizer, que a percepção da limitação do homem cria nele esse
sentimento que há um ser maior que ele portanto a noção de soberania vai do maior
para o menor. É isso? Eu não consegui entender essa passagem aí para o Estado.
Então a noção de soberania está também ligada a uma outra noção mitológica, mito-
poética, que é a noção de centro do mundo. Se o soberano está no topo do mundo
humano e ele é o limite entre o mundo humano e o mundo supra-humano, ou extra-
humano, então para isto é necessário que ele esteja colocado no preciso ponto onde
esses dois mundos se tocam. Daí a noção de que a residência do sobeano é o centro
do mundo. Hoje quando nós dizemos, por exemplo, que Washington é o centro do
mundo, pois todas as decisões humanas passam por lá, ainda é a mesma coisa que
nós estamos dizendo, ou seja, não existe um outro lugar mais importante. Só existe
lugares mais importante do ponto de vista supra-humano. Na ordem da natureza
podem acontecer coisas extraordinariamente importantes que não passem por
Washington.
Quando explodiu a usina de Chernobyl ela não pediu autorização de Washington para
acontecer, nem de Moscou. Ela aconteceu. Aí se manifesta um poder supra-humano
que fura a soberania, mas isto não é considerado um atentado contra a soberania,
porquê? Porque foi a natureza, ou Deus, ou um poder supra-humano qualquer que fez
aquilo. Então isso não desmente a noção de soberania. A soberania só seria
desmentida, ou seria ameaçada, se houvesse uma ação humana contra ela, no supra-
humano não interessa. De uma vez para cima. A noção de Estado é a mesmíssima
noção de soberania. Existe a soberania mundial, a princípio, ou seja, os limites do
soberano coincidem com os limites da ação humana onde quer que ela se desenrole. E
existe mais tarde a noção das soberanias limitadas, regionalmente ou
geograficamente. Não é necessário dizer que o surgimento das soberanias limitadas
coincide com uma formidável proliferação de guerras e com o aprimoramento fora do
comum da arte da guerra. Por que a noção, pensando bem, é absurda em si mesma. A
existência de vários soberanos mostra que eles não são soberanos de maneira alguma.
Sempre pode haver um terceiro que pode ser superior a ambos.
Aluno: A França negou-se a assinar a Carta Política Européia, por que havia menção do
desenvolvimento da Europa à adesão ao Cristianismo. E a França agora tomada pelo
Islã não podia aceitar isso.
Então isso quer dizer que a idéia da soberania no Ocidente surge do contexto mito-
poético cristão. Então surge da Igreja. É a Igreja que estabelece o primeiro soberano.
No momento em que o estabelece já surge dentro do contexto europeu a seguinte
dúvida: se a Igreja nomeou o soberano, mas se nomeou é porque ele era
intrínsecamente. Então ele recebe a sua soberania da Igreja ou diretamente de Deus,
onde a Igreja atua apenas como o intermediário que oficializa a situação. Quando se
constitui a monarquia nacional francesa a idéia que percorre toda a sua história é de
que o monarca francês não é instituído pela Igreja, mas de que é Rei por direito divino
direto. Quando se vê na escola os moleques achando engraçado que os Reis tivessem
direito divino, a risada mostra somente a total imbecilidade das pessoas, pois a
soberania é de direito divino pela sua natureza. Se não há outra acima dela, está no
limite do humano. Fora do humano só existe o supra-humano. Isso quer dizer que todo
poder soberano se afirma como supra-humano, com ou sem nome religioso. Se é
possível dizer que o Brasil é um Estado soberano, então não existe ninguém acima
dele. Na verdade existe, tem um monte de gente acima dele. Qualquer empresa
multinacional, qualquer fiscal da ONU chega aí e cospe em cima e pronto, mas a ilusão
demora para morrer. O território ainda não foi ocupado por ninguém, acredita-se que
como existe esse limite territorial o Estado é soberano. Se ele é soberano então não
tem ninguém acima dele, não se pode reconhecer ninguém acima dele. Não se pode
reconhecer que existe ninguém acima dele, mas a partir do momento em que existem
vários Estados Nacionais qualquer soberano pode ser destronado e portanto qualquer
estado pode ser destruído, apagado do mapa e absorvido em um outro estado. Daí
surge a necessidade de justificar a soberania em uma situação de soberania limitada.
Entende-se que essa justificação é bastante diferente da anterior. A anterior é simples.
Este sujeito é o soberano porque acima dele não tem nada, a não ser a ordem natural
e divina. [0:30:00] O limite do poder do monarca embora impossível de definir
verbalmente de uma vez por todas, podia ser reconhecimento em cada circunstância.
Conforme o tempo passasse ia-se entendendo onde está o limite dele. Porém agora
não existe somente o limite supra-humano, existe um outro limite humano. Isso quer
dizer que a partir daí, a justificativa não pode ser extraída diretamente da ordem
natural das coisas. É necessário achar um outro discurso.
O limite do poder do soberano mongol era a própria natureza das coisas. Ele não fará o
que não puder, porque nenhum homem pode. Agora e o Rei da França? O Rei da
França não faz o que nenhum homem pode, e ele não faz o que o Rei da Espanha não
deixa. Entende-se nesse ponto que o discurso de justificativa começa a ficar mais
complicado. Por exemplo, nós temos aqui um território, basta procurar no território as
marcas físicas naturais do limite você não vai encontrar. Você anda da Espanha para a
França e fisicamente você não vê marca nenhuma. Percebe-se que aquela marca foi
estabelecida apenas por uma decisão humana e essas fronteiras estão sempre
mudando. O sujeito invade um pedaço aqui, depois devolve. A justificativa disso se
torna muito complicada. Então, qual é o artifício a que se apela? Não se pode apelar
mais a limites naturais. Apela-se então a limites históricos. A limites derivados da
antiguidade de certos costumes e, portanto, você apela à memória dos povos e a sua
identidade. Ou seja, nós estamos nesse território a não sei quanto tempo e aqui
fizemos isso e mais isto etc.. Assim começa-se a formar a idéia de identidade nacional.
Identidade nacional já é um artifício que você concebe para justificar que o seu
soberano é soberano sem chegar a sê-lo no sentido mongol do termo. É claro que as
justificativas a partir daí começam a ficar cada vez mais complicadas e cada vez mais
contestáveis, evidentemente. Primeiro por que essa identidade nacional formada ao
longo do tempo, ela sempre terá algum limite. A história do seu povo começou em
algum momento. A não ser que mitologicamente consiga-se comprovar que você
estava lá na criação do mundo e que ali já estava o primeiro alemão, o primeiro
francês etc.. Por mais que você remonte, como os judeus que possuem uma história
de cinco mil anos, cosmicamente é nada. A gente já estava aqui no território há cinco
mil anos... mas se existir alguém que estivesse cinco mil e um. Além disso seria
necessário acreditar na continuidade histórica daquilo. E entende-se que o famoso
progresso da ciência histórica é causado exatamente por isso. Se é preciso apelar a
argumentos históricos, então é preciso conhecer a história, e não só é preciso
conhecer a história, mas você há de comprovar. Daí surge a necessidade de você ter
documentos cada vez mais antigos que provem a continuidade da sua existência
territorial etc.., para "provar" que você tem "direito" aquele território.
Todas essas confusões só são possíveis porque a idéia mesma de soberania é uma
idéia altamente problemática. E será problemática até o fim dos tempos. Ela é
problemática porque de fato não sabemos qual é o limite entre o poder humano e o
supra-humano. Então o estudioso, o cientista político, o filósofo da política, ele tem
que levar essas coisas em consideração. Ele tem que saber quando está lidando com
realidades efetivas, quando está lidando com realidades de mera criação humana,
quando está lidando com realidades de criação humana que são fundamentadas numa
realidade exterior e quando são puros produtos arbitrários da mente. Fora disso ele
começará a dar valor moral, até absoluto, até divino, a meras invenções arbitrárias da
mente. Associando valores, emoções e sentimentos a essas criações da mitologia
humana. Onde é que o sujeito vai parar?
Daí você entende da onde surgem coisas como o nazismo, comunismo etc., surge
disto. No fundo é uma confusão de ordem cognitiva, que aos poucos vai sainda da
esfera dos intelectuais, das pessoas letradas, das pessoas que pensam primeiro, e
aquilo acaba se disseminando pela sociedade inteira e se tornando base para a
organização da ação humana planejada, que produzirá uma infinidade de discursos de
agentes, cada um com a sua justificação, cada um imbuído da crença de estar
representando o bem, a realidade, a verdade e o próprio Deus. É claro que é inútil
você esperar pegar um discurso de agente e encontrar nele uma fundamentação
suficiente. Nunca tem. E quando você compara um discurso com outro discurso, no
contexto de um e no contexto do outro, você vê que frequentemente a atribuição de
valores é também arbitrária e, às vezes, mais que arbitrária, [0:50:00] é totalmente
maluca. Por exemplo, quando nós acreditamos que houve um grande progresso, e
você dizer: "não, mas espera aí, no império antigo o imperador era soberano, então
não tinha lei, não tinha limite para ele, ele fazia o que queria. Ele mandava em todo
mundo.", daí depois nós passamos para uma outra situação em que uma lei é válida
não porque o imperador mandou, mas porque houve um consenso, porque as pessoas
foram persuadidas a aceitar aquilo. Então isso quer dizer que a legitimação da lei
melhorou. Então eu digo: "muito bem, ao mesmo tempo em que acontecia este
processo, ou seja, o poder do soberano sobre os dominados, os governados, diminuía
neste sentido, os meios de ação do soberano se multiplicavam de tal maneira que o
soberano da antiguidade não poderia nem imaginar." O sujeito que imagina que hoje
ele tem mais liberdade do que um súdito do Estado Mongol, ele está maluco. A
diferença é muito pequena. A diferença é só no papel, na proclamação da legitimidade
da autoridade. O princípio legitimador mudou. Por exemplo, o imperador romano podia
mandar matar quem ele quisesse na hora que ele quisesse, ele só não tinha meios de
matar muita gente. Ele podia inteferir na vida de quem ele quisesse, só não tinha
meios de fazer. Hoje tem meios de grampear todos os seus telefonemas, violar toda a
sua correspondência, filmar você em um edifício à distância de dois mil metros, quer
dizer, eles filmam e gravam tudo o que você está falando lá dentro, ou seja, os meios
de interferência aumentaram formidavelmente na medida em que eram atenuados os
meios de legitimação.
Então nesse sentido quando pensamos como Bennedito Croce, que dizia que a história
é a história da liberdade, a liberdade crescente. Só liberdade jurídica. Não
materialmente. Aliás o crescimento da liberdade jurídica pode ser até um adorno
ideológico constituído em cima da diminuição real da liberdade. Como é que nós vamos
saber o que aconteceu realmente? Só estudando caso por caso. Mais ainda nós vimos
que o próprio processo de criação das leis é um meio de neutralizar as próprias leis.
Nós acabamos de ver isso no começo da aula. Isso quer dizer que o sujeito que
acredita que existe um progresso político, ele está fazendo um discurso de agente e
não um discurso científico. Cada um desses progressos é muito relativo, por que às
vezes acontece, mas às vezes ele é contrabalançado por um tal aumento das
dificuldades dos problemas que é difícil saber se melhorou ou piorou, às vezes parece
que melhora e piora, às vezes é o contrário. Se a pessoa está estudando a coisa com a
mentalidade científica, se ela quer saber o que aconteceu mesmo, a primeira coisa é se
livrar dessas expectativas ingênuas que as pessoas têm de que a liberdade aumenta,
ou de que existe um progresso neste ou naquele sentido. Todo progresso é
absolutamente relativo e frequentemente ele é compensado por problemas muito
maiores. Eu vejo, por exemplo, que fenômenos como esses totalitarismos do Século
XX, se você procurar os piores tiranos da Antiguidade, eles não seriam nem capazes de
imaginar uma coisa dessa. Se você chegasse para Gêngis Khan e dissesse: "olha nós
vamos fazer um negócio que você vai saber o que cada pessoa está fazendo dentro de
casa, o que cada um conversou com o outro." Eu acho que ele recuaria horrorizado.
Ele consideraria isso um poder divino do qual ele é indigno.
Ninguém negará que a cultura alemã, produziu uma série de coisas que são boas para
o resto do mundo. Quem é que não gosta de ouvir Bach, Wagner, Bhrams? Isto foi um
benefício para o mundo, mas isso quer dizer que os alemães tem o direito de trancar
todos os judeus na câmara de gás e ligar o botão? Eles acharam que sim. Mas, oras, o
judeu achava que não. Também é claro que a destruição do Império Alemão, trouxe a
destruição da cultura alemã. Alemanha culturalmente acabou. Acabou e não vai
levantar nunca mais. Se você pegar a universidade alemã, [1:00:00] o que era no
começo do século e o que é hoje, não tem comparação. "Mas então como vamos fazer
agora? Vamos deixar esse cara nos levar para a câmara de gás, ou vamos lá e
acabamos com ele e junto com eles acabamos com a cultura alemã?" Você escolhe
meu filho, se você é um masoquista você pode dizer que vai para a câmara de gás
quietinho, pois já que vocês são a cultura alemã e eu não quero acabar com ela, eu
vou numa boa. Mas é difícil convencer as pessoas disto. Então deu para pegar a noção
de Estado? Acho que a nossa próxima aula é a última, não é? Quando é? Amanhã
mesmo. Tá ótimo.