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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE POS-GRADUACAO EM ESTUDOS
ÉTNICOS E AFRICANOS

CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO


MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE
ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Salvador
2011
CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO


MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE
ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa Multidisciplinar de Pós-
Graduação em Estudos Étnicos e Africanos
da Universidade Federal da Bahia para
obtenção do Grau de Doutor em Estudos
Étnicos e Africanos

Orientador: Prof. Dr. Valdemir Donizete


Zamparoni

Salvador
2011
SIGLAS E ABREVIATURAS

AGRICOM - Empresa Estatal da Agricultura


ANC – Congresso Nacional Africano
BM – Banco Mundial
CAIL - Complexo Agro-Industrial do Limpopo
CD – Curso de Desenvolvimento
CCDA - Comissão Coordenadora Distrital da Comercialização Agrária
CFMAG - Committee for Freedom in Mozambique, Angola e Guiné-Bissau
CEA – Centro de Estudos Africanos
CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas
EGUM - Estudos Gerais Universitários de Moçambique
EM – Estudos Moçambicanos
FPLM – Forças Armadas de Libertação de Moçambique
FMI – Fundo Monetário Internacional
FM-L – Faculdade de Marxismo -Leninismo
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique
IICM – Instituto de Investigação Científica de Moçambique
MANU - Mozambique African National Union
MHD - Materialismo Histórico e Dialéctico
MNR – Movimento de Resistência Nacional
NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte
OMS - Organização Mundial da Saúde
PIDE – Policia Internacional de Defesa do Estado
PRE - Programa de Reabilitação Económica,
RDA - Republica Democrática Alemã
RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana
SADCC – Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral
SGL - Sociedade de Geografia de Lisboa
SAREC – Agência Sueca para a Cooperação na Pesquisa com os Países em Desenvolvimento.
SIDA – Agência internacional Sueca para o Desenvolvimento Internacional
TBARN - Centro de Estudos de Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos
Naturais
UDENAMO - União Democrática Nacional de Moçambique
UEM – Universidade Eduardo Mondlane
ULM – Universidade de Lourenço Marques
UNAMI - União Nacional Moçambicana Independente
UNESCO - Organização das Nações Unidas Para Cultura, Educação e Ciência
USAID – Agencia Americana para o Desenvolvimento Internacional
ZANU (PF) – Zimbabwé African National Union (Patriotic Front)
CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS –


INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


Multidisciplinar de Pós-graduação em Estudos
Étnicos e Africanos da Universidade Federal da
Bahia para obtenção do Grau de Doutor em Estudos
Étnicos e Africanos

APROVADA EM: _______ de ______________ de 2011

_____________________________________
Prof. Dr. Valdemir Zamparoni - (Orientador)
Universidade Federal da Bahia

_______________________________________
Profª Dra. Maria Rosário Gonçalves de Carvalho
Universidade Federal da Bahia

_______________________________________
Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos
Universidade Federal da Bahia

_____________________________________
Prof. Dr. Jacques Depelchin
Universidade Estadual de Feira de Santana

_______________________________________
Prof: Dr. Cláudio Alves Furtado
Universidade de Cabo Verde
RESUMO

Este estudo pretende examinar as condições sociais da produção de conhecimento científico


no Moçambique pós-independente, durante o período da “transição socialista” (1975-1990). O
caso em estudo é o do Centro de Estudos Africanos (CEA). O argumento central do trabalho é
de que o próprio processo de produção de conhecimento num contexto onde o partido no
poder pretendia introduzir transformações radicais na sociedade, ganhou dinâmicas que
problematizaram os pressupostos a partir dos quais o CEA deveria produzir conhecimento.
Estas inter-relações entre produção de conhecimento e legitimação do Estado poderiam então
explicar não só as especificidades do CEA como também as condições em que as Ciências
Sociais ganharam contornos em Moçambique como modo privilegiado de produção de
conhecimento sobre a sociedade. A partir daí o trabalho crítico do CEA iria mudar
radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro permitindo a emergência de um novo campo
da pesquisa no pós-independência, ao introduzir três inovações: (1) uma abordagem no
“atual” (sem contudo deixar de levar em consideração as suas raízes históricas), em vez de
focalizar na história como tal; (2) uma mudança de uma pesquisa individual para uma
pesquisa coletiva; e (3) a introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a
preocupações imediatas.

Palavras-chaves: Intelectual Orgânico – Culturas Epistémicas-Engajamento Crítico-


Ciências Sociais-Socialismo
ABSTRACT

This study intends to examine the social conditions of scientific knowledge production in
post- independence Mozambique particularly during the period of "socialist transition" (1975-
1990). The case study is the Center for African Studies (CEA).
The main thesis of the study is that the very process of knowledge production in a context
where the ruling party wanted to introduce radical changes in society, generated dynamics
that problematized the assumptions within which the CEA should have produced knowledge.
These inter-relationships between knowledge production and legitimation of the state, could
then not only explain the specificities of the CEA but also the conditions under which the
social sciences gained contours in Mozambique as privileged mode of knowledge production
on society.
Thus, the critical work of the CEA would radically change the dynamics of research at the
Centre allowing the emergence of a new field of research in the post-independence,
introducing three innovations: (1) an approach to the contemporary issues (without, however,
fail to take into account its historical roots), rather than focus on history as such, (2) a change
in an individual search for a collective research, and (3) the introduction of a sense of urgency
in research to answer the immediate concerns of the power politics.

Key-words: Organic Intellectual – Epistemic Cultures – Critical Engagement – Social


Sciences-Socialism
As cortinas do comunismo estão a fechar-se, porém, um
mistério permanece: quais eram os atractivos do marxismo
revolucionário que captou tantos intelectuais apaixonados para a sua
bandeira? Qual era o credo que…convocou tanta gente para morrer
por uma causa? Sob um certo ponto de vista, a resposta é simples:
aquilo que, em tempos, tinha atraído em nome de Deus passou a estar
sob a bandeira da História … O marxismo foi uma religião secular.
(Daniel Bell apud, Paul Hollander. O Fim do Compromisso,
Lisboa:Pedra da Lua, 2009).
AGRADECIMENTOS

Esta Tese não teria sido possível sem a ajuda de várias pessoas que de uma forma ou
de outra contribuíram e alargaram a sua valiosa assistência na preparação e finalização deste
estudo. Queria, em primeiro lugar, expressar a minha profunda gratidão ao meu orientador,
Prof. Dr. Valdemir Zamparoni pela sua postura crítica, atenta, rigorosa, e sempre também,
humana, paciente e carinhosa. Estou grato ainda a sua forma de orientar, possibilitando uma
liberdade de acção que foi decisiva para que este trabalho contribuísse para o meu
desenvolvimento pessoal.

Este trabalho não teria sido realizado se não fosse também o apoio financeiro, em
momentos diferentes, da FASPEB e da CAPES. Não posso deixar de registar o meu
reconhecimento pelos professores Jocélio Teles Santos, Lívio Sansone, e Valdemir
Zamparoni, que lutaram incansavelmente para que eu sempre tivesse uma bolsa de estudos.

O meu agradecimento sincero, aos investigadores e professores, Dan O’Meara, Marc


Wuyts, Luís de Brito, Teresa Cruz e Silva, Fernando Ganhão, Yussuf Adam, Isabel Casimiro,
Conceição Osório, Alexandrino José, Carlos Serra, Amélia Souto, Jacques Depelchin, Ana
Maria Loforte, Ana Maria Gentili, Aurélio Rocha, Alpheus Manghezi, Calisto Pachaleque,
Gerard Liesegang, João Paulo Borges Coelho, António Sopa, Bridget O’Laughilin, Judith
Head, José Luís Cabaço, Manuel Araújo, Amélia Souto e Dipac Jeichande, pela vossa
simpatia e total disposição em ajudar a esclarecer muitas das minhas inquietações iniciais na
formulação do problema e mais tarde quando já tinha o problema relativamente estruturado,
nos labirintos do funcionamento de uma organização complexa e interessante como foi o
CEA naqueles utópicos anos da transição socialista.

Não posso deixar de estar profundamente grato aos comentários construtivos do Prof.
Luís de Brito ao capítulo sobre a Questão Rodesiana, ás professoras Teresa Cruz e Silva e
Conceição Osório pela assistência e comentários críticos valiosos, quando este trabalho ainda
era um projecto de pesquisa. Ao professor Elísio Macamo que já na licenciatura nos finais
dos anos 1990, incentivou-me a explorar este campo da sociologia do conhecimento e das
condições sociais da produção do conhecimento científico e pelos ricos comentários que se
estenderam até a conclusão do trabalho.

A professora Maria do Rosário pelo seu apoio inicial ao projecto e inspiração na sua
forma peculiar e cativante de dar aulas. Aos meus colega do Mestrado e do Doutorado do
POSAFRO/UFBA, Saravá! Muito obrigado Cristina Mchanon, pela amizade e sugestão de
bibliografia pertinente para a construção deste estudo. Um Kanimambo, ao Prof. Georgui
Delurguian da Northwestern University, Chicago, pelo carinho, amizade, hospitalidade no seu
departamento de sociologia e também sugestões de leitura. Ao pessoal do CEA e do seu
Centro de Documentação, especialmente a Deolinda e Teresa, por me deixarem consultar
livremente as várias “caixas” de documentação do Centro. Aos funcionários do Arquivo
Histórico de Moçambique, na pessoa do seu director Joel das Neves, pela sua ajuda
prestimosa na consulta do espólio “Fernando Ganhão”.

Que seria de mim sem a minha família? Meu saudoso pai, José, minha mãe Filomena,
irmãos, Zé, Nitinha, Dindinha e Luís e queridas sobrinhas, Liane e Melanie, merecem uma
atenção especial pelo seu carinho, amor, amizade e apoio incondicional. Sem vocês não sei se
conseguiria levar esta empreitada até ao final!
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................14

1. A EDUCAÇÃO COLONIAL E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS ......................30

1.1 O Processo de estabelecimento da administração colonial (1895-1945)................................................... 31

1.2 A implantação do Estado Novo e a educação africana............................................................................... 35

1.3 A crise do Estado Novo e a fundação do ensino superior em Moçambique (1960-1975) ........................ 41

1.4 Algumas notas sobre a pesquisa em Ciências Sociais no período colonial............................................... 45

2. AS CONDICÕES SOCIAIS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO PÓS-


INDEPENDÊNCIA ................................................................................................................59

2.1 O contexto internacional: Descolonização, Africanistas Radicais e Solidariedade................................. 59

2.2 Moçambique e a Utopia Socialista: Dinâmicas Internas e Regionais....................................................... 69


2.2.1 Da Luta de Libertação Colonial em Moçambique ao golpe de Estado em Portugal: 1962 – 1974......... 71
2.2.2 Os primeiros anos “eufóricos” sob a sombra da guerra de “desestabilização”: 1975-1980.................... 73
2.2.3 A Construção do Socialismo…Cada Vez mais Longe: 1980 – 1984...................................................... 77
2.2.4 A Metamorfose Ideológica da FRELIMO: 1984-1990........................................................................... 81

3. AS CONDICÕES SOCIAS E EPISTÉMICAS DA EMERGÊNCIA E


CONSOLIDAÇÃO DO CEA.................................................................................................85

3. 1 O Ano de 1976 e a Tentativa de Criação de uma “Universidade para o Povo” ..................................... 85

3.2 O Nascimento do Centro de Estudos Moçambicanos (CEA).................................................................... 88

3.3 Actualidade, Urgência e Colectivo na Emergência de um Novo Campo de Pesquisa em Moçambique 92


3.3.1 A Questão Rodesiana e o Contexto Social da sua Produção .................................................................. 92
3.3.2 A Génese de uma Nova Forma de Fazer Pesquisa.................................................................................. 95
3.3.3. Os processos da produção de “O Mineiro Moçambicano”: consolidando o novo campo de pesquisa .. 99

3.2 O Retorno Temporário de Ruth First à África Austral…Cada vez mais perto da Toca do Lobo ......... 99

3.3 Os Antecedentes da Pesquisa sobre O Mineiro Moçambicano ................................................................ 103

4. “A PEDAGOGIA” DO PROJECTO SOBRE O DESEMPREGO E O CONTEXTO DA


SUA PRODUÇÃO ................................................................................................................108

4.1 O Projecto sobre o Desemprego: Uma “encomenda” do Poder ............................................................. 108

4.2 Os Anos de Alvoroço na Universidade e no CEA: 1979 – 1984 .............................................................. 113

5. A DUPLA CONTRIBUIÇÃO DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO: PRODUÇÃO


DE CONHECIMENTO POLITICAMENTE ENGAJADO ............................................123
5.1 O ensino como um acto de investigação.................................................................................................... 123

5.2 Logo de inicio…Algumas Vozes Discordantes ......................................................................................... 126

5.3 Os Objectivos do Curso de Desenvolvimento ............................................................................................ 128

5.4 Os Métodos do Curso de Desenvolvimento................................................................................................ 130

5.5 A Crítica e Auto-Crítica no Curso de Desenvolvimento........................................................................... 132

5.6 Os Conteúdos Teóricos do Curso de Desenvolvimento............................................................................. 136

5.7 Ênfase na economia? Ausência de aspectos culturais?............................................................................ 138

5.8 A Contribuição do Curso de Desenvolvimento no Ensino/Pesquisa em Ciências Sociais...................... 140

6. A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO ...................142

6.1 As Principais Linhas de Investigação ....................................................................................................... 142

6.2 O Projecto sobre o Trabalho Mineiro na África do Sul .......................................................................... 148

6.3 Analisando os Camponeses e a Economia Rural em Moçambique ........................................................ 152

6.4 Problemas da Transformação Rural na Província de Gaza ................................................................... 154

6.5 O (s) Projecto (s ) Sobre o Algodão ........................................................................................................... 157

6.6 A Comercialização Agrária: Estado, Sector Familiar e Privado............................................................ 160

6.7 Examinando o Falhanço das Aldeias Comunais ...................................................................................... 162

7. A OFICINA DE HISTÓRIA: O “HOMEM NOVO” E A NOVA HISTÓRIA ..........165

7.1 História e Memória..................................................................................................................................... 165

7.2 “Tensões Criativas” no Nascimento da Oficina de História .................................................................... 171

7.3 Produzir uma História Crítica ao Cânone ............................................................................................... 175

7.4 Não vamos Esquecer!: História Social Contada pelos “de baixo” .......................................................... 178

7.5 Não Vamos Esquecer! nº1: Resistência Africana e Luta armada ........................................................... 181

7.6 Não Vamos Esquecer! nº2/3: Reconstituindo a História da “Classe Operária Moçambicana” ........... 183

7.7 Não Vamos Esquecer! nº4: Persistindo na Reconstituição Histórica da Experiencia da Luta de
Libertação Nacional ......................................................................................................................................... 187

7.8 O Colectivo de Artesãos da Oficina de História: Historiadores como Activistas? ................................. 193
8. ESTUDOS MOÇAMBICANOS: PENSAR MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO DA
ÁFRICA AUSTRAL ............................................................................................................202

8.1 A fundação da revista e a sua linha teórica .............................................................................................. 202

8.2 A Hierarquia dos Objectos de Pesquisa.................................................................................................... 204


8.2.1 Estudos Moçambicanos nº 1: Uma análise sobre como o colonialismo português empobreceu
Moçambique .................................................................................................................................................. 207
8.2.2 Estudos Moçambicanos nº 2: Olhando para as Formas de Exploração Colonial do Trabalho e Lutas de
Liberação na África Austral........................................................................................................................... 210
8.2.3 Estudos Moçambicanos n º 3: Contribuindo na Reflexão sobre a Socialização do Campo .................. 213
8.2.4 Estudos Moçambicanos nº 4, 1983: Enfatizando a Participação do CEA na “Reflexão de Problemas
Nacionais” ..................................................................................................................................................... 217
8.2.5 Estudos Moçambicanos nº 5/6: A Importância da Investigação Histórica............................................ 223
8.2.6 Estudos Moçambicanos nº 7: As Dinâmicas da Política Externa na Região Austral............................ 230
8.2.7 Estudos Moçambicanos nº 8: Moçambique no contexto da África Austral: conflitos, estratégias e
perspectivas pós-apartheid ............................................................................................................................ 234

8.3 Estudos Moçambicanos: Uma Revista Interdisciplinar? ......................................................................... 237

9. O TRABALHO CRÍTICO E POLITICAMENTE ENGAJADO DO CEA .................241

9. 1 A emergência de Culturas Epistémicas no Centro: “Facções” e Versões Contestadas........................ 241

9.2 Intelectuais orgânicos e a legitimação do Estado..................................................................................... 247

9.3 Engajamento Critico: Um Oxímoro?........................................................................................................ 252

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................259

OBRAS CONSULTADAS ...................................................................................................266

Livros, Teses & Artigos.................................................................................................................................... 266

Periódicos e Revistas Consultados .................................................................................................................. 282

ANEXOS ...............................................................................................................................283
ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1 - Alunos Matriculados 1930 .....................................................................................38


Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990) .............................................91
Quadro 3 – Principais Linhas de Investigação .......................................................................143
Quadro 4 - Não Vamos Esquecer! nº1 (Fevereiro, 1983).......................................................182
Quadro 5 - Não Vamos Esquecer !nº2/3 (Dezembro, 1983) ..................................................185
Quadro 6 - “Não Vamos Esquecer!” nº4 (Julho, 1987) ..........................................................189
Quadro 7 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº1 (1980) ......................................208
Quadro 8 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº2 (1981) .....................................211
Quadro 9 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº3 (1982) ......................................215
Quadro 10 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº4 (1983) ....................................218
Quadro 11 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº5/6 (1986).................................225
Quadro 12- Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº7 (1990) .....................................230
Quadro 13 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº8 (1990) ....................................235
14

INTRODUÇÃO

Objecto da pesquisa

O presente estudo pretende reflectir, no âmbito da sociologia do conhecimento, sobre


as condições sociais da produção de conhecimento científico em Moçambique e no contexto
histórico particular conhecido como o período da “transição socialista” (1975-19901), durante
o qual o partido no poder, a FRELIMO2, tentou construir uma sociedade socialista, tendo
como guia os princípios teóricos e práticos do marxismo-leninismo.

Esta reflexão teórica - que procura interligar produção científica e existência social -
terá como “objecto empírico” o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo
Mondlane (UEM). Este Centro foi, no período em análise, a mais importante e prolífica
instituição de pesquisa e ensino em Ciências Sociais. Como afirmou Teresa Cruz e Silva,

O CEA fundado em 1976, teve um papel fundamental na dinamização


da pesquisa, dando assim um novo impulso à produção científica e
consequentemente aos programas e métodos de ensino no campo das
Ciências Sociais e Humanas3.

Uma das principais causas desta preeminência do CEA no campo da pesquisa e ensino
no pós-independência se deveu ao facto deste lugar ter atraído um número considerável de

1
Traçar limites cronológicos rigorosos sobre este contexto histórico pode ser problemático. Neste estudo, por
uma questão metodológica, preferimos, olhar para esta fase de uma forma fluida, sem contudo deixar de
utilizar como barreiras temporais o ano de 1977, quando a Frelimo no seu III Congresso se transformou num
partido marxista-leninista; e, o ano de 1990 quando entrou em vigor a nova Constituição da Republica,
preconizando um sistema de democracia multipartidária. Há no entanto outras datas significativas desse
período “socialista”, como o ano de 1984 quando se deu a assinatura dos acordos de não-agressão (Acordo de
Nkomati) com a África do Sul, que iriam ter - como veremos ao longo deste estudo - grandes repercussões no
trabalho crítico do CEA. Não menos importante é o ano de 1986, com a morte do presidente Samora Machel e
do director do Centro, Aquino de Bragança. Por fim, poderíamos também mencionar o ano de 1987, quando a
Frelimo introduziu um programa de reajustamento estrutural (PRE) financiado pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI). Dois anos depois, o partido Frelimo formalmente abandona o marxismo-leninismo, a sua
ideologia oficial desde 1977.
2
Frente de Libertação de Moçambique.
3
SILVA, Cruz, Teresa. Instituições de Ensino superior e investigação em Ciências Sociais: A herança colonial,
a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique, Lusofonia em
África Historia, Democracia e integração africana. Dakar, CODESRIA, 2005, p.34-76.
15

investigadores estrangeiros (muitos deles já com grande experiência de pesquisa e docência)


como, a jornalista, pesquisadora, professora universitária e activista anti-apartheid a sul-
africana, Ruth First e que se tornaria a Directora científica do Centro; membros do ANC,
como Robert Davies, Dan O´Meara, Alpheus Manghezi e Sipho Dlamini; a historiadora
italiana Anna Maria Gentili, a antropóloga americana e professora de Antropologia na
prestigiada Universidade de Stanford, Bridget O’Laughilin, o macro-economista belga, Marc
Wuyts, o historiador congolês, Jacques Depelchin, o jovem historiador brasileiro Valdemir
Zamparoni, dentre vários outros. A congregação destes investigadores no Centro, iria
concorrer, para o fortalecimento do ensino e pesquisa em Ciências Sociais, contribuindo
assim para a consolidação (durante o periodo de 1975-1990) de um padrão de pesquisa em
Moçambique de qualidade, e internacionalmente reconhecido.

É de referir que este estudo, não se propõe avaliar se Moçambique foi, realmente, um
Estado socialista, ou mesmo se a FRELIMO foi de facto um partido marxista-leninista.
Autores, como Marina Ottaway (1998)4, Catherine Scott (1988)5 e, Michel Cahen (1993)6 na
sua análise sociológica sobre o contexto do pós-independência em Moçambique, se
debruçaram com maior afinco nas fraquezas do Partido/Estado freliminiano. Por exemplo, na
visão de Cahen e Ottaway, a Frelimo nunca tinha chegado a ser um partido de vanguarda e o
Estado moçambicano tinha falhado, logo de inicio, em transformar a economia moçambicana
em moldes socialistas. Ainda na óptica de Marina Ottaway, tudo não passava de um
“socialismo simbólico” e de uma “reforma simbólica”, sem nenhuma modificação real na
economia como também no sistema político. Na mesma senda, Catherine Scott (1986), vai
aplicar o conceito de soft state e de “política personalista” para definir a primeira década de
“transição socialista” em Moçambique. Segundo esta autora, a emergência das características
do “Estado fraco” e da “política personalista” em Moçambique deveria ser vista no contexto
das tentativas que foram feitas pelo regime frelimista como forma de criar novas instituições
sócio - económicas e administrativas.
Assim, neste trabalho o foco esteve mais direcionado em olhar para o contexto da
“transição socialista”, na sua dimensão processual, dinâmica, não-essencialista, mais
preocupado com uma ordem discursiva (por exemplo, a construção da sociedade socialista, do

4
OTTAWAY,Marina. Mozambique: From Symbolic Socialism to Symbolic Reform. The Journal of Modern
African Studies, vol.26, nº2, p.211-226, Junho,1988.
5
SCOTT, Catherine V. Socialism and the 'Soft State' in Africa: An Analysis of Angola and Mozambique. The
Journal of Modern African Studies, vol. 26, nº 1, Mar.ço, 1988 p. 23-36.
6
Cahen, Michel. Check on Socialism in Mozambique: What check? What Socialism?, ROAPE, nº57, 1993,
p.46-59.
16

“homem novo”, etc.,) que se procurava reforçar e legitimar-se regularmente. Em seguida,


procuraremos estabelecer as inter-relações entre situação social e produção de conhecimento
científico pelo CEA, dando especial ênfase no papel que essa produção de conhecimento
desempenhou nesse contexto da “transição socialista”.

Perguntas de Partida

A análise será conduzida a partir de três grandes perguntas de partida:

1. Como as Ciências Sociais colaboraram na “transição para o


socialismo”, elas que teriam emergido no bojo das contradições resultantes da
experiência colonial/luta de libertação nacional, contexto internacional da
“guerra-fria”?

2. Há relação entre o campo científico e o campo politico ou


partidário? De qual ordem? Nesse sentido então, poder-se-á falar de uma
classe intelectual independente?

3. Há uma produção científica do CEA, que efectivamente esteja


orientada para os processos sociais locais, mediante suas distintas expressões e
que seja inventiva/criativa, no sentido de não ser mera reprodutora das
elaborações teóricas produzidas no ocidente e da ideologia do partido no
poder?

Tese do Estudo

O argumento central deste trabalho é de que as “condições sociais7”, e os processos

7
Usamos este termo no seu sentido mais lato, o que incluiria não somente os aspectos sociais, mas também
políticos, econômicos e culturais. Neste sentido, estaríamos então falando, grosso modo, basicamente da
primeira década do pós -independência (1975-1986) onde se deu a tentativa de construção do socialismo em
Moçambique liderado por um partido auto-intitulado “marxista-leninista”, a solidariedade e apoio
internacional a causa da “revolução” moçambicana, a emergência de uma guerra civil, a crescente crise
econômica, etc.
17

(muitas das vezes conflitivos8) da produção de conhecimento adquiriram dinâmicas próprias


que problematizaram os pressupostos dentro dos quais o CEA devia produzir conhecimento9 e
que isso explicaria não só as especificidades do trabalho científico do CEA (por exemplo a
relação de proximidade/distanciamento do CEA com o poder) como também as condições em
que as ciências sociais ganharam contornos em Moçambique com o modo privilegiado de
produção de conhecimento sobre a sociedade (por exemplo, a emergência no pós –
independência de uma nova forma de se fazer pesquisa).

A primeira asserção remete-nos para uma discussão sobre a relação entre produção de
conhecimento e contexto politico, o que possibilitará também discutir a questão de que como
eram definidas as escolhas dos objectos de pesquisa, os temas eram privilegiados, e quais
provavelmente “desclassificados”.A segunda, para uma discussão sobre a contribuição teórica
e metodológica do CEA para o panorama das ciências sociais no pós-independência.

Quadro Teórico

Este estudo estará alicerçado em dois principais enunciados teóricos: “intelectual


orgânico”, de António Gramsci e “culturas epistémicas”, de Karin Knorr-Cetina. Estes
conceitos, possibilitarão em primeiro lugar, e de uma forma geral, olhar para o CEA e seus
actores não como se fossem intelectuais “ideólogos10” mas pelo contrário, como agentes do
conhecimento, pertencentes a um mesmo “sistema cognitivo”, que no entanto compreendia
diferentes práticas, metodologias, objectivos, enfim, distintas “culturas” em relação a
produção de conhecimento e sendo capazes de olhar criticamente para a sua prática científica
e para as causas que apoiavam.

8
Como vermos ao longo deste trabalho, a estruturação do Centro em”facções”, a relação de complementaridade
e de ambiguidades entre o director do CEA (Aquino de Bragança) e a directora científica (Ruth First) a
indiferença em relação aos estudos antropológicos, etc.
9
Veja-se por exemplo, a tónica do Reitor da Universidade Eduardo Mondlane na distinção entre a teoria da
“transformação social” e a teoria “burguesa” e “reaccionária” da ordem social; mas por outro lado, no interior
do CEA em relação as diferentes abordagens teóricas e metodológicas da Oficina de História, do Núcleo da
África Austral, e do Curso de Desenvolvimento). GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação
em ciências Sociais. Estudos Moçambicanos, nº. 4, Maputo:CEA, 1984, p.5-17 .Este tema será retomado no
último capítulo.
10
No sentido usado por Karl Mannheim, como aqueles que defendem o status quo, em oposição aos “utópicos”,
os que lutam para mudar uma determina visão de mundo dominante. Vide, MANNHEIM, Karl. Ideologia e
Utopia. Rio de Janeiro:Zahar,, 1982.
18

Comecemos então olhando mais especificamente para a relevância neste estudo do


primeiro. De acordo com António Gramsci, “todos os homens são intelectuais, mas nem todos
têm na sociedade a função de intelectuais11”. António Gramsci pensou a existência de dois
tipos de intelectuais. O “intelectual tradicional” que estaria preso a uma formação econômica
superada e que, no contexto em que António Gramsci viveu, seriam os intelectuais
“estagnados” no mundo do agrário do sul de Itália, como por exemplo o “clero”, “a casa
militar”, voltados a manter os camponeses atrelados a um status quo, que não mais fazia
sentido. Em segundo lugar, haviam os “intelectuais orgânicos”, produtos do mundo moderno,
dinâmico, prenhe de transformações e vicissitudes. Eram “orgânicos” porque estavam
vinculados a uma classe social ou modo de produção específico12. É assim que este autor vai
elaborar mais afincadamente na função social dos intelectual, afirmando que,

Cada grupo social nascendo no terreno originário de uma função


essencial no mundo da produção econômica, cria para si,
simultaneamente, organicamente, uma ou mais camadas de
intelectuais que lhes dão homogeneidade e consciência da sua própria
função não somente no campo econômico, mas também no social e no
político13.
11
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo:Civilização Brasileira, 2004, p.16.
12
Vide, SEMERARO, Giovanni. Intelectuais Orgânicos em Tempos de Pós – Modernidade. Cad. Cedes,
Campinas, Vol. 26, nº 70, p. 373-391, set./dez. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br.
13
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo: Civilização Brasileira, 2004,p.16.
19

Os intelectuais orgânicos seriam uma espécie de “gestores da legitimação14”, eles


contribuiriam para tornar a “classe” a qual pertencem na classe dirigente e hegemónica da
sociedade. É então a partir desta vinculação de classe que Robert Fatton dá à definição de
intelectual orgânico de António Gramsci que precisamos explicitar melhor a posição teórica
que este trabalho pretende tomar. Argumentamos logo de partida, que este estudo pretende
usar uma definição não restrita deste conceito gramsciniano. Assim, a ênfase na
operacionalização do conceito para o caso do CEA, será dada à questão da legitimação do
Estado. Assim, “classe” é aqui conceptualizado como “classe do Estado”, pois como
asseverou George Balandier, “é o acesso e a luta em torno do poder o que contribui para a
formação da única classe bem constituída em África, a classe dirigente.15”
Somente então a partir da ideia de “classe de Estado”, poderemos olhar para os
investigadores do CEA como intelectuais orgânicos, uma vez que se usássemos a ideia
clássica de classe social (como em Karl Marx e a sua vinculação a questão da propriedade),
encontraremos certas limitações. Como podemos ver, apesar de estes investigadores
comungarem uma visão não elitista do trabalho de investigação e de defenderem a
constituição de uma universidade popular, nunca viram a si próprios como membros da classe
trabalhadora.
Como iremos demonstrar ao longo deste trabalho, o CEA teve a particularidade de
congregar, no seu interior, um grande número de investigadores cooperantes onde durante os
anos 1979 a 198416 chegou a superar o número de investigadores nacionais. E foram os
investigadores que de facto tomaram a liderança da pesquisa e ensino no CEA (foram os
professores e alguns deles orientadores de tese dos jovens investigadores nacionais do CEA) e
que, em última instância, decidiam sobre a definição, planeamento e execução e análise de
dados da maior parte das pesquisas levadas a cabo. Podíamos até afirmar que estes
investigadores, parafraseando Pierre Bourdieu, por deterem um volume de “capital

14
FATTON, Robert. Gramsci and the legitimization od the State: The case of the Senegalese Passive
Revolution. Canadian Journal of Political Science, vol.19, nº4, 1986, p.735.
15
BALANDIER, George. Problematique des classes sociale en Afrique noire », In : Cahier Internatioux de
Sociologie, XXXVIII, 1965, P.141, Apud, ZAMPARONI, Valdemir. Entre Narros &Mulungos –
Colonialismo e Paisagem Social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940.1998, 582f. Tese (Doutorado em
História) – São Paulo. Nesta Tese o autor reserva um capitulo, para discutir de forma minuciosa, os eixos
centrais na grande discussão em torno do conceito de classe, que segundo ele, tem envolvido não só
investigadores como também políticos.
16
Ver Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990).
20

intelectual” mais elevado, tinham um melhor entendimento da situação social do que os


investigadores locais (ou mesmo, melhor do que a própria liderança da FRELIMO.)
Em suma, tendo como elemento definidor a ideia de “classe de Estado” os
investigadores do CEA poderão ser considerados intelectuais orgânicos no sentido em que
eles se constituíam como produtores de um conhecimento que não só iria ajudar o poder a
alcançar os seus objectivos como também justificar as suas opções perante o público.
A sua vinculação à classe do Estado, possibilitará um melhor exame da questão da
independência dos intelectuais, e também a relação entre as prioridades de pesquisas definidas
pelo CEA e as prioridades políticas traçadas pela FRELIMO para o desenvolvimento
socialista de Moçambique, durante o período em análise. E, de facto, a perspectiva
gramsciniana nos fornece elementos para enfatizar a postura crítica dos intelectuais orgânicos,
e não vê-los simplesmente como reprodutores da ideologia hegemónica do Estado. Daí
Gramsci conceber os intelectuais como “consciência crítica”, de um “distanciamento gerador
de capacidade de autocrítica, de consciência para si”. António Gramsci fala-nos ainda de
“hierarquias intelectuais”, do “lugar contraditório” que os intelectuais ocupam. Uma
perspectiva que procura mostrar como os intelectuais são e não normativamente “como
deveriam ser”. No que se refere às diferenciações dentro do grupo dos intelectuais, António
Gramsci nota,

Por um lado, a existência de uma hierarquia intelectual, que vai desde os


‘grandes intelectuais’ até aos mais humildes ‘administradores’ e, por
outro lado, em função do lugar ocupado na hierarquia, uma autonomia
relativa destes em relação à classe fundamental de que são ‘intelectuais
orgânicos’.17

No contexto moçambicano poderíamos ter como exemplo, Aquino de Bragança


diretor do Centro e conselheiro pessoal do presidente da república. Aquino de Bragança funda
um núcleo de pesquisa no Centro, a Oficina de História que pretendia resgatar (através das
fontes orais) e reescrever a história da luta de libertação nacional em Moçambique. Um dos
artigos do CEA, produzido por Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, procurava, de uma
forma crítica, analisar, a partir de dois livros escritos por africanistas18, “a problemática do

17
SANTOS, op.cit.p.97.
18
HALON, Joseph. Mozambique: Revolution under fire, London :Zed Books, 1984. SAUL, Jonh. (editor), A
difficult Road: The transition to socialism in Mozambique, New York : Monthly Review Press, 1985.
21

processo revolucionário iniciado pela Frelimo durante a luta armada de libertação nacional.
19

Os autores chamavam a atenção para as artimanhas das justificações ideológicas na
análise da história de Moçambique, onde segundo eles, “um dos problemas de fundo da
História da Frelimo provém, não só da forma vitoriosa como esta história é abordada, mas,
sobretudo, da utilização dos seus conhecimentos de forma inquestionável”.20 Encontramos
também no CEA, Ruth First, diretora de investigação do Centro, socióloga e esposa de Joe
Slovo, chefe do braço armado do ANC (Unmkonto we Sizwe), que desenvolve no Centro um
“Núcleo da África Austral”, compreendendo maioritariamente investigadores estrangeiros,
procurando estudar a realidade moçambicana no contexto da África Austral, bem como
análises mais especificas relacionadas com a luta anti-apartheid na África do Sul. Sob
direção de Ruth First foi produzido em 1977, a maior pesquisa levada a cabo no CEA,
apresentada na forma de livro como “O mineiro moçambicano21”, um trabalho exaustivo, que
procurava grosso modo, medir as implicações para a economia de Moçambique do corte (pelo
poder político) do fluxo migratório de mão-de-obra moçambicana para as minas do regime do
apartheid.
Enfim, encontramos no Centro, pesquisadores que procuraram manter um certo
distanciamento em relação ao discurso do poder, lendo a realidade social de forma critica e
desmistificadora, porém sempre aliada a uma espécie de “militância critica” à causa que
apoiavam. Na mesma senda há uma preocupação de ligar o trabalho intelectual, com as
estratégias do poder no campo social, econômico e político de transformação socialista da
sociedade moçambicana.
É neste sentido que a noção de “conhecimento politicamente engajado” de Allen
Isaacman ajudará a traçar melhor os limites da “independência” dos intelectuais do CEA em
relação a ideologia “hegemônica” do parido no poder. De acordo com este autor fazem parte
deste grupo,

19
BRAGANÇA, Aquino e DEPELCHIN, Jacques.Da idealização da Frelimo à compreensão da História de
Moçambique. Estudos Moçambicanos, nº5/6, CEA, Maputo, 1986, p.29-52.
20
Ibid., p.33.
21
O livro foi publicado postumamente. Em 1982 Ruth First foi assassinada no CEA, através de uma carta-
bomba. A obra surgiu inicialmente em inglês com o título: The black gold: the Mozambican miner,
proletarian and peasant. Esta obra foi o culminar de cerca de seis anos de pesquisa iniciada em 1977 com a
chegada desta investigadora ao Centro.
22

Os intelectuais que desafiam as hierarquias sociais existentes e


instituições opressivas, como também os regimes de verdade e
estruturas de poder que as produzem e apoiam. Não se contentando
simplesmente em criticar o status quo, esses acadêmicos procuram
transformá-lo. O seu trabalho insurgente é assim organicamente e
inexoravelmente entrelaçado com a sua produção científica
oposicional.22

Até que ponto então estes investigadores conseguiram manter um espaço onde
pudessem exercer a crítica e questionamento? Esta é uma das questões que serão discutidas ao
longo deste trabalho.

O segundo eixo teórico que guiará este estudo é o de “culturas epistémicas” da


socióloga austríaca, Karin Knorr-Cetina. Refira-se antes de mais, que a autora cunha este
conceito a partir de uma análise comparativa entre duas disciplinas do campo científico das
ciências naturais (física nuclear e biologia molecular)23. Nesse estudo são examinados não
somente a construção do conhecimento, mas principalmente os mecanismos sociais,
epistémicos, instrumentais e tecnológicos que permitem a produção do conhecimento
científico. Na mesma senda, a autora procura saber como os diferentes campos científicos (ou
disciplinas) estão organizados e as suas diferentes estratégias para a aquisição de
conhecimento. É então a partir de uma análise comparativa entre as duas disciplinas acima
referidas que Knorr-Cetina vai argumentar que existem no campo cientifico diferentes
culturas epistémicas, quer dizer,

Essas amálgamas de arranjos e mecanismos - delimitados por


afinidade, necessidade e coincidência histórica - que, em um
determinado campo, constituem/definem como nós sabemos o que
sabemos."24.

22
No original: “engaged scholars as intellectuals who challenge existing social hierarchies and oppressive
institutions as well as the truth regimes and structures of power that produced and \supported them. Not
content simply to critique the status quo, these scholars seek to change it. Their insurgent work is thus
organically and inexorably intertwined with their oppositional scholarship.”, ISAACMAN, Allen. Legacies of
engagement: Scholarship informed by political commitment. African Studies Review, vol. 46, nº.1, p.1-41,
p.3, April 2003.
23
Vide, KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make Knowledge, Harvard: President and
Fellow of Harvard Collge,1999.
24
KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make Knowledge, Harvard. President and Fellow of
Harvard Collge. 1999, p.1.
23

Karin Knorr-Cetina defende que há uma “diversidade” entre as “culturas epistémicas,


que revelariam a “desunião” dentro das ciências e que apontariam para diferentes estratégias,
metodologias, significados simbólicos, enfim, distintas “culturas” que estariam por detrás da
constituição de mecanismos na produção do conhecimento científico. Para esta autora o
conceito de “disciplina” ou “áreas de especialização”, apesar de serem importantes na
organização e produção de conhecimento científico, provaram serem menos felizes em
capturar as estratégias no acto de conhecer, que não estão codificados nos textos escolares
mas que alimentam as práticas dos especialistas.25” Daí então Knorr-Cetina sugerir o conceito
de “culturas epistémicas”, que permitiriam apreender não somente a “maquinarias”
(macheneries) ligadas aos aspectos científicos, tecnológicos e instrumentais, mas também as
interacções humanas, as contingências, oportunismos, significados simbólicos, enfim
realidades também presentes no processo da produção dos mecanismos que permitem a
produção de conhecimento. Assim para esta autora o produto da ciência não pode ser
entendido como algo separado das práticas que o constituíram26. É então neste âmbito que
Karin-Knorr afirma que a distinção entre ciências naturais e sociais deveria ser superada: “a
evidência filosófica sugere que o método nas ciências naturais está baseado sob os mesmos
tipos de ciclos de interpretação comumente associados às ciências sociais”27.

É, então, a partir da tese de que os campos científicos exibem culturas epistémicas


distintas, que Knorr-Cetina (1981) vai propor uma distinção entre o locus da produção do
conhecimento (laboratórios, departamentos ou núcleos de pesquisa etc) da pesquisa em si
mesmo (experimentos, pesquisa empírica, colecta e análise de dados). Daí, ambos - o
conhecimento produzido e o “laboratório” - seriam então exemplo de uma “cognição
colectiva” (collective cognition), “que ocorreria onde duas os mais pessoas combinando
conhecimento individual, não inicialmente partilhado pelos outros28”. Assim, juntos,
produziriam um resultado cognitivo (conhecimento cientifico), que nenhum deles poderia
produzir sozinho29. Seria o caso, por exemplo, da pesquisa colectiva que levou à produção da

25
KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make knowledge, Harvard:President and Fellow of
Harvard Collge, 1999, p.3.
26
Ibid, p.4.
27
Tradução nossa: The philosophical evidence suggest that method in the natural sciences is based upon the
same kind of cycles of interpretation commonly associated with the social sciences”.Vide, KNORR-CETINA,
K. Social and scientific method or what do we make of the distinction between the natural and social
sciences?. Philosophy of the Social Sciences, vol.II, p.335-359, 1981, p.336.
28
GIERE, Ronald. Distributed Cognition in Epistemic Cultures. Philosophy of Science, nº 69, Dezembro, 2002,
p. 637–644, p.640.
29
Ibid, Idem.
24

grande obra de referência do CEA que foi “O Mineiro Moçambicano”. Como pretendemos
mostrar neste trabalho, havia no CEA pessoas que eram consideradas experts em
determinadas áreas de conhecimento. Por exemplo Marc Wuyts, nas questões
macroeconômicas, Alpheus Manghezi, mais do que ninguém no CEA dominava fluentemente
as várias línguas faladas no sul de Moçambique, sendo de extrema importância para pesquisa
empírica com as comunidades rurais. Poderíamos também mencionar, Bridget O’Laughilin e
Helena Dolny que eram especialistas nas questões agrárias.

A proposta teórica de Knorr-Cetina é ainda pertinente neste estudo, pois possibilitará


uma melhor compreensão da emergência de “facções” no âmbito do CEA; quer dizer distintos
grupos de pesquisa, organizados não só através de diferentes formas de produzir
conhecimento, e de conformidades teóricas, como também ligados a afinidades pessoais,
partidárias, linguísticas, etc. Foi então partir da estruturação do CEA em diferentes e por
vezes conflituantes nichos epistémicos, que pôde produzir um conhecimento não só
socialmente relevante, como também um conhecimento “de “inteligência” sobre a luta
política na Africa do Sul, que alimentaria directamente o “núcleo duro” do movimento
político e armado do ANC30 na África do Sul.

Recapitulando, estes dois principais alicerces teóricos permitirão compreender o


trabalho científico do CEA a partir de duas dimensões. Primeiro, no fato de que estávamos em
presença de uma organização complexa, plurivocal, onde coexistiam (e em algumas situações
competiam entre si) diferentes pesquisadores com agendas de pesquisa próprias. Segundo, de
um “sistema cognitivo” (o CEA) que procurava legitimar o Estado, sem contudo cair numa
aderência acrítica e dogmática da ideologia que dele irradiava. Quer dizer, mesmo estando
sob o manto da dominação e das repressões e proibições desse Estado, o CEA conseguiu criar
um espaço onde pudesse exercer um pensamento critico-social e daí permitir a consolidação
de uma nova forma de fazer pesquisa no pós-independência. Enfim, uma pesquisa em ciências
sociais “aplicada”, colectiva, actual, urgente e maioritariamente virada para o paradigma da
economia política marxista com ênfase na transformação das condições sociais das
populações.

30
Congresso Nacional Africano. No original, African National Congress (ANC). Foi fundado em 1912 e com
um dos propósitos fundamentais de lutar contras as injustiças contra os negros sul-africanos sob domínio de
um governo minoritário branco. Em 1961, o ANC fundou o seu braço armado, Umkhonto We Sizwe, onde
teve como seu chefe, Joe Slovo, marido de Ruth First. Vide, ROSS, Robert A concise history of South Africa.
Cambridge University Press,1999.
25

Metodologia

A colecta do material empírico foi produzida de duas formas. Primeiro, através de


uma pesquisa qualitativa das fontes bibliográficas e documentais referentes à produção
científica do CEA31 (particular enfoque foi dado às revistas Estudos Moçambicanos e Não
vamos Esquecer!, como também aos vários “Relatórios de Investigação” produzidos no
âmbito do Curso de pós-graduação em Desenvolvimento, criado por Ruth First). Em segundo
lugar, através de entrevistas semi-estruturadas aos pesquisadores locais e estrangeiros, aos
estudantes do Curso de Desenvolvimento, membros do governo e do partido FRELIMO.

Aos investigadores do CEA foram realizadas vinte entrevistas semi-estruturadas com


duração de quarenta e cinco minutos a uma hora. Aos entrevistados foi solicitado que
descrevessem duas situações. Primeiro, a sua experiencia de pesquisa, e ou de docência no
Centro. Segundo, as interações entre os vários investigadores do Centro como também com
outros investigadores da universidade e com outras instituições sociais como o partido
FRELIMO, ministérios, direcções províncias etc. Foram num segundo momento realizadas
cinco entrevistas com membros do governo (especialmente daqueles que tiveram um papel
chave na governação durante o período de analise), da administração pública etc.

O objectivo principal deste estudo que é o estabelecer a conexão entre produção


científica e existência social será empiricamente sustentado, a partir da análise de cerca de
trinta e dois32 trabalhos científicos produzidos e publicados pelo CEA, desde a sua fundação
(1976) até ao fim da auto-proclamada ideologia marxista-leninista da FRELIMO, em que se

31
Esta recolha foi executada, sobretudo no Centro de Documentação do CEA e no Arquivo Histórico de
Moçambique (AHM).
32
Uma das principais limitações deste trabalho refere-se ao facto de não fazer uma análise de mais de metade de
toda a produção científica do CEA. Colin Darch (1990), na altura documentalista do CEA, produziu um
“inventário de todos os trabalhos difundidos externamente ou não, ou pelo CEA no período que vai de 1977 a
1989”. Ainda segundo Darch, nesta compilação do acervo teórico do CEA, estavam “inclusas obras não só do
CEA e seus investigadores directos, mas também de outros colaboradores quer sejam estas pessoas singulares,
quer sejam instituições que participaram em projectos conjuntos de investigação com o CEA”. Este inventário
registou cerca de 267 referências bibliográfica (Cf.., DARCH, Colin, Bibliografia 1977-1989. Estudos
Moçambicanos nº7, Maputo, 1990, p.121-136. É de referir que estão aqui incluídas os artigos do CEA
publicados na revista, Estudos Moçambicanos (41) e na Não Vamos Esquecer! (13) e os vários Relatórios
Científicos produzidos no Curso de Desenvolvimento (35). Uma segunda limitação deste estudo relaciona-se
com o facto deste estudo não pretender fazer uma apreciação critica sobre o impacto da produção cientifica do
CEA na definição e criação (ou não) de políticas públicas do governo com vista ao tão almejado,
“desenvolvimento socialista” na primeira década do pós - independência. O seu objectivo é mais localizado e
modesto, no sentido de delinear a história intelectual de uma instituição de produção de conhecimento, como
também de estabelecer as várias conexões existentes entre produção de conhecimento e contexto social e
político.
26

procurou construir uma sociedade socialista em Moçambique (1990).

Estrutura do Estudo

O estudo está estruturado em nove capítulos. O primeiro apresenta de uma forma


geral, o panorama do sistema de educação e pesquisa colonial em Moçambique. Começa-se
por descrever o processo de estabelecimento do capitalismo colonial, passando pela
emergência do Estado fascista e a institucionalização de um sistema de educação na colônia,
baseado em princípios racistas e discriminatórios e culminando com a crise do Estado
salazarista e a fundação da única universidade no país.

O principal objectivo deste capítulo é de discutir o impacto do sistema colonial no


Moçambique pós-colonial, nos âmbitos político, econômico, no sistema de educação com
destaque para a emergência do campo da pesquisa científica. Pretende-se ainda, mostrar que a
dependência de Moçambique em relação a África do Sul (tema que vai ocupar de forma
central o trabalho científico do CEA, na selecção dos objectos de pesquisa, bem como na
própria contratação de pesquisadores estrangeiros) tem suas raízes na peculiaridade do
sistema colonial português.

O segundo capítulo, descreve o contexto histórico do pós-independência tanto a nível


local, como no que se refere ao contexto internacional da guerra fria e da região austral,
fortemente dominada pelo regime sul-africano do apartheid. Este período do pós-
independência foi também um momento em que começaram a surgir novas escolas de
pensamento em África, emergidas no campo das chamadas Ciências Sociais radicais, como a
Escola de Dar-es-Salaam, de Economia Política, e que procuraram construir um
conhecimento sobre África, de forma soberana e em oposição àquele saber ocidental
etnocêntrico.

De facto a Tanzânia tem um significado particular na história de Moçambique e do


CEA. Foi neste país da costa oriental africana que a FRELIMO se constituiu e começou a se
preparar política e militarmente para a luta de libertação nacional. Por outro lado, muitos dos
professores universitários e pesquisadores estrangeiros que passaram pelo Centro tinham
primeiro trabalhado em universidades tanzanianas, como foi o caso de Ruth First, directora de
investigação do CEA, Jacques Depelchin, Anna Maria Gentilli, Dan O’Meara, Judith Head,
Colin Darch, Robert Davies e Sipho Dlamini.
27

Ainda neste capítulo abordar-se-á o contexto regional da África Austral e sua


determinação na pesquisa em Ciências Sociais no Moçambique independente. O CEA teve, de
facto, uma componente de pesquisa sobre a região bastante significativa, tendo criado para o
efeito um “Núcleo” de estudos da África Austral. Daí então a nossa intenção de perceber os
factores por detrás destas escolhas, e como o trabalho do CEA se intersectava com os
desenvolvimentos políticos e econômicos da região. Na mesma senda, não deixaremos de
mencionar, ainda que brevemente, o contexto da “guerra fria”, e da dicotomização do mundo
em duas “visões de mundo”: o capitalismo e o socialismo/comunismo. Moçambique sem
dúvida foi impactado por este contexto internacional e suas escolhas políticas e ideológicas,
necessariamente tiveram que dialogar com estas duas grandes posições.

Tencionamos por fim, descrever o contexto político social e econômico de


Moçambique, no período da “transição socialista” como forma de melhor entender o trabalho
do CEA em relação com o poder político e as várias forças que estiveram em jogo. De facto,
não podemos falar desta instituição de pesquisa sem situá-la no contexto político
moçambicano, pois só assim poderemos compreender integralmente a sua existência como
instituição de pesquisa e ensino. Iremos também discutir a transformação da FRELIMO em
partido político de orientação marxista-leninista e como isso se traduziu na sociedade e de
uma forma particular, na sua interacção com o CEA.

O terceiro capítulo discute a questão da emergência de um novo campo da pesquisa no


período pós-independência, tendo como caso de estudo o primeiro trabalho colectivo do CEA.
“A Questão Rodesiana”, levado a cabo em 1976, antes da integração de Ruth First.
Argumentamos neste capítulo, que este projecto teve o condão de mudar radicalmente a
dinâmica de pesquisa do Centro e permitiu a emergência de um novo campo da pesquisa no
pós-independência, ao introduzir três inovações: uma abordagem no “actual” (sem contudo
deixar de levar em consideração as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história
como tal; uma mudança de uma pesquisa individual para uma pesquisa colectiva; e a
introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a preocupações imediatas.
Ainda neste capítulo, pretendemos fazer uma reconstituição histórica do Centro, atores em
jogo, e os seus objectivos, estrutura organizacional e hierárquica e linhas de pesquisa. Ainda
neste capítulo, traremos à discussão, como forma também de mostrar como se deu o processo
de consolidação deste novo campo da pesquisa, o mais importante e elaborado projecto
colectivo de pesquisa do Centro, “O Mineiro Moçambicano”, produzido em 1979 e que marca
simbolicamente a “entrada em cena” de Ruth First no CEA. São discutidos também os
28

antecedentes da pesquisa, a interacção com o meio universitário e com o governo, a


preparação, delimitação e realização da pesquisa, seus impasses e o seu contributo para o
fortalecimento das capacidades de pesquisa dos estudantes. É ainda apresentada em linhas
gerais o percurso intelectual de Ruth First até a sua nomeação como directora científica do
Centro.

O quarto capítulo focaliza a sua atenção na descrição e análise do “Projecto sobre o


Desemprego na Cidade de Maputo”, um dos primeiros relatórios científicos especialmente
“encomendado” pelo governo moçambicano com o objectivo expresso de “solucionar” um
problema social concreto e actual que Moçambique viveu nos primeiros anos do pós-
independência. Mostraremos como este estudo colectivo contribuiu para uma maior
dinamização da pesquisa empírica no Centro, e também na criação de um projeto de grande
envergadura para a formação de estudantes e quadros administrativos nas técnicas e
metodologias de pesquisa. Este capítulo não deixará também de discutir o contexto social e
político em que o estudo foi desenvolvido, abordando tema como os anos de “alvoroço” no
meio universitário (o partido Frelimo cada vez mais dominante na sociedade, a criação dos
círculos do partido na universidade, a criação da faculdade de marxismo-leninismo, e os
conflitos com os estudantes; as tensões entre o CEA e a disciplina de Antropologia, etc),
consequência de uma maior radicalização do partido FRELIMO na sociedade moçambicana
(por exemplo, o aumento da dominação e coerção do Estado com a criação dos “campos de
reeducação”, “operação produção33”, o recrudescer da crise econômica e de focos de
destabilização perpetrados pela RENAMO e forças armadas sul africanas.

O quinto capítulo pretende trazer elementos para a reconstituição histórica do primeiro


curso de pós-graduação em Moçambique, que ficou famoso como o Curso de
Desenvolvimento. Este curso idealizado principalmente por Ruth First iria marcar o seu
retorno definitivo ao CEA. Iremos focalizar nos objectivos, métodos, disciplinas e
organização curricular, enfoque teórico, grupo alvo e o seu significado para o campo da

33
Segundo José Luís Cabaço, apud Lorenzo Macagno, a operação produção “consistiu no envio forçado de
cidadãos considerados improdutivos da cidade para as áreas rurais, em particular, para a província do Niassa.”
Ainda na mesma senda, Luís de Brito apud, Macagno, afirmou que “no imaginário dos dirigentes da FRELIMO,
aqueles que eles consideravam 'improdutivos' (desempregados e outros) eram os preguiçosos, os bandidos, os
criminosos. Assim [...] o objetivo foi também o de eliminar a 'ameaça' que representava, nas grandes cidades,
uma camada social potencialmente perigosa e susceptível de apoiar a RENAMO”. Vide, MACAGNO, Lorenzo.
Fragmentos de uma Imaginação Nacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.24, nº70, São Paulo,
Junho, 2009, p.27. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092009000200002#nt35. Acesso em 15-6-2007.
29

pesquisa e ensino no pós-independência; uma vez que um dos grandes princípios do curso era
de encarar o ensino como um acto de investigação e de formar quadros nacionais para
trabalharem em problemas relacionados com o desenvolvimento social e econômico de
Moçambique. Por fim, o capítulo irá abordar as tensões existentes neste Curso, tanto no que
concerne às críticas (relacionadas com a sua natureza, grupo alvo e abordagem teórica) de
outros investigadores e docentes da universidade, como também as críticas vindas do interior
do próprio Curso, fundamentalmente dos seus estudantes.

O sexto capítulo na senda do anterior, irá examinar de forma mais detalhada seis
Relatórios de Investigação produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento e que estavam
relacionados com as prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento socialista de
Moçambique. O objectivo é assim o de enfatizar a ligação profunda existente entre
prioridades de pesquisas e prioridades políticas. Estes estudos do CEA estavam dentro das
seguintes áreas de investigação (que se confundiam com as prioridades politicas do governo):
a questão do fluxo migratório para as minas da África do Sul, os camponeses e a economia
rural, os problemas da transformação rural, a questão da produção algodoeira (uma das
principais culturas de produção no tempo colonial), a problemática da comercialização
agrária, a nível distrital e a questão da socialização do campo, especialmente da construção e
organização dos camponeses em aldeias comunais.

O sétimo capítulo, traz elementos para a construção de uma “biografia intelectual” da


Oficina de História, um colectivo de historiadores do Centro, que pretendiam reconstituir a
experiência da luta de libertação nacional e de construir uma “nova história, em clara
oposição à historiografia colonial. Este grupo de historiadores do CEA iria fundar uma revista
intitulada Não Vamos Esquecer!, onde eram publicados artigos científicos, documentos
políticos, entrevistas e canções de participantes na luta de libertação nacional, de operários e
camponeses moçambicanos. Era assim uma forma de escrever a história social de
Moçambique contada a partir dos “de baixo” e de perpetuar a memória dos moçambicanos
que viveram o período colonial e que participaram na experiência da luta armada. Por último,
são apresentadas as quatro edições da revista e analisados alguns dos seus conteúdos.

O oitavo capítulo, com a mesma lógica que no capítulo anterior, vai focalizar a sua
atenção numa outra forma de difusão literária do Centro, a revista científica, publicada duas
vezes por ano, Estudos Moçambicanos. Esta revista foi fundada em 1980 e até 1990 publicou
oito números onde, através da sua produção científica, o CEA propunha ”construir uma
30

economia política de Moçambique34”. Serão deste modo analisados neste capítulo, a linha
teórica e de investigação da revista, métodos, objectivos, os artigos publicados e, por fim,
seleccionados 12 destes estudos para uma análise crítica.

O nono e último capítulo, operacionaliza os dois principais eixos teóricos do estudo,


onde aborda, de forma mais localizada, o trabalho intelectual do CEA e a sua relação com o
contexto social e político da “transição socialista” em Moçambique. Este capítulo trata da fase
em que novos actores entram em jogo, principalmente Ruth First e a sua entourage.
Abordaremos o impacto que a vinda de acadêmicos e pesquisadores estrangeiros teve na
estruturação da pesquisa, como também na criação de “facções” dentro do Centro e como
estas foram organizando a agenda de pesquisa do Centro. Pretendemos também analisar a
ligação do CEA com o poder político, as relações de poder subjacentes, a conexão entre
prioridade de pesquisa e prioridades políticas, bem como o significado do conceito de
“engajamento crítico” no trabalho intelectual destes investigadores.

1. A EDUCAÇÃO COLONIAL E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Iremos adiante fazer um desvio histórico, no sentido de descrever, de forma


esquemática, a experiencia colonial em Moçambique. O seu principal propósito é o de
mostrar como algumas questões estruturais do colonialismo determinaram, por exemplo, a
existência de uma fraca capacidade institucional, de infra-estruturas e de formação de quadros
locais na área da educação e pesquisa em ciências sociais. Começaremos, no entanto, por
abordar primeiro a questão do estabelecimento de mecanismos de dominação colonial em
Moçambique, suas formas, instrumentos e legislações que permitiram aos portugueses a
implantação do Estado colonial. Por fim, abordaremos a questão da educação e pesquisa
colonial, mostrando, por exemplo, que a ideologia colonial, nunca se preocupou na formação
educacional da população local e nem no desenvolvimento de um sistema de educação formal
ou de pesquisa que beneficiasse a população local. É ainda enfatizada a questão do carácter
“retrógrado” de Portugal como potência colonizadora, mostrando por exemplo que mesmo na
metrópole o desenvolvimento do ensino e pesquisa em ciências sociais até finais dos anos
1960, era praticamente inexistente. Por outro lado é também referida a questão da pobreza
econômica e financeira de Portugal e como isso implicou uma maior dependência em relação

34
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1 , Revista Semestral de Ciências Sociais, CEA, Maputo, 1980.
31

às colônias africanas como também ao “aluguel” às outras potências europeias.

1.1 O Processo de estabelecimento da administração colonial (1895-1945)

Foi após a conferência de Berlim (1884-85) e consequente partilha de África pelas


potências europeias, que Portugal começou a desenhar uma política militarista mais
agressiva,35 com o intuito de estabelecer o seu poder colonial em todo o território
moçambicano36. Uma nova página na história colonial de Moçambique se abria37. Até então a
presença portuguesa em Moçambique limitava-se, como afirmou Lorenzo Macagno (2001), “
a um pequeno número de assentamentos costeiros. Das regiões do interior, o vale do Zambeze
era a única parte do país que conservava a aparência de um domínio europeu”38.

Um dos traços mais característicos desta época foi também o estabelecimento das
fundações para a predominância dos missionários da igreja católica em Moçambique. A
empreitada colonial, na óptica dos seus representantes, deveria trazer a “civilização” para os
povos “primitivos” de Moçambique. Os portugueses acreditavam, como afirmou James Duffy
(1961), que a sua missão em África era a conquista espiritual sobre as forças da ignorância39.
Daí então as primeiras campanhas educacionais para os africanos terem sido relegadas aos
missionários católicos. Como observou Valdemir Zamparoni, “Estado e igreja, espada e

35
Por exemplo, a conquista militar portuguesa do Estado de Gaza, no sul de Moçambique (1895-7).
36
Durante a Conferência de Berlin, as grandes potências europeias rejeitaram a reivindicação histórica de Lisboa
em relação a Moçambique decretaram que pacificação e controlo efectivo eram pré-requisitos para um
reconhecimento como potencia colonial. Vide, ISAACMAN, Allen. Mozambique – from colonialism to
revolution, 1900 – 1982, Boulder:Westview Press, 1983.
37
A presença portuguesa em Moçambique remonta ao século XVI, relacionada fundamentalmente a expansão
marítima portuguesa em toda a costa oriental africana em busca de especiarias, assentando-se como afirmou
Zamparoni “no sistema de feitoria e portos para o abastecimento desta nova rota”. Esta primeira fase
caracterizou-se também pelo estabelecimento de trocas comerciais nomeadamente de ouro, marfim, tecidos e
escravos, de exploradores portugueses, caçadores e aventureiros, com os povos africanos, árabes que já se
tinham instalado na costa oriental africana e construídos cidades-estados arabo-africanas. Por outro lado, é
preciso referir que antes da Conferencia de Berlin, particularmente, “entre 1770 e 1850, o tráfico de escravos
constituiu-se na principal actividade econômica da colónia”: Vide, ZAMPARONI, Valdemir. De Escravo a
Cozinheiro – Colonialismo e racismo em Moçambique, Salvador : EdUFBA, 2007.
38
MACAGNO, Lorenzo. O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes. FRY, Peter (Org.).
Moçambique Ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.p.63.
39
DUFFY, James. Portuguese Africa (Angola and Mozambique): Somes crucial problems and the role of
education in their resolution. The Journal of Negro Education, vol.30, nº3, 1961, p.294-301.
32

bíblia, sempre andaram de mãos dadas40”. No entanto, com o estabelecimento dos Jesuítas
(1610 a 1760) na Ilha de Moçambique e mais tarde os Dominicanos no Vale do Zambeze, na
zona central, os missionários católicos em Moçambique tiveram que contestar a forte
influência islâmica que tinha existido por muito tempo por toda a costa do nordeste de
Moçambique.41

O envolvimento de missionários protestantes42 na escolarização dos africanos iria criar


medo e indignação entre as autoridades portuguesas e os missionários católicos. Por volta de
1876, os portugueses começam a questionar as possíveis implicações políticas do trabalho dos
missionários não-católicos43. Estes eram suspeitos de “desnacionalizar os nativos” e de
agirem como agentes de governos estrangeiros44. O Estado colonial não conseguia controlar
todas as actividades desenvolvidas no território moçambicano tanto no que concerne à
educação como também no trabalho das missões religiosas. Por outro lado, o sistema público
de instrução escolar, mais do que um fracasso, se mostrava uma irrealidade, pois que das
poucas escolas existentes na colônia, a sua maioria pertencia à Igreja Católica, que se
circunscrevia somente ao ensino do catecismo.45 Mouzinho de Albuquerque, um dos
arquitectos da política colonial portuguesa do final do século XIX, reproduziu fielmente os
propósitos da ideologia colonial quando afirmou, “ o que nós temos que fazer para educar e
civilizar o indígena é desenvolver de uma forma prática a sua aptidão para o trabalho manual

40
Não obstante, neste “casamento” entre o Estado e a Igreja católica, Zamparoni adverte-nos da “excepção do
período Pombalino (Marquês de Pombal) e do período entre 1911 e 1936, no qual ideias de um
republicanismo positivista e de um certo anti-clericalismo abalaram tais relações”. Cf. ZAMPARONI,
Valdemir. Entre Narros &Mulungos – Colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940.
Tese apresentada para a obtenção do Grau de Doutor em Historia Social junto à Faculdade de Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998, p.416.
41
Vide, ZAMPARONI, 2007, op.cit.
42
Para uma leitura mais atenta sobre missionários protestantes em Moçambique, veja, BUTSELAAR, Jan Van.
Africains, Missionaires et Colonialistes. Leiden: E.J. Brill, 1984; Trabalhos mais recentes, veja, CRUZ e
Silva, Teresa. “Protestant churches and the formation of political consciousness in Southern Mozambique
(1930-1974): the case of the Swiss mission”, Bradford, University of Bradford, PhD thesis, 1996, Mimeo. Na
mesma senda, os seguintes artigos: CRUZ e Silva, Teresa. Identity and political consciousness in Southern
Mozambique, 1930-1974: Two Presbyterian biographies contextualized. Journal of Southern African Studies,
nº24, 1, 1998, p.223-236. CRUZ e Silva, Teresa. Colonizadores e protestantes: o jogo de identidades e
diferenças”. SERRA, Carlos ed., Estigmatizar e desqualificar: casos, análises, encontros. Maputo: Livraria
Universitária, 1998, p.203-226. CRUZ e Silva, Teresa. Educação, identidades e consciência política – A
missão Suíça no sul de Moçambique (1930-1975), Bourdeux: Lusotopie, 1998, p.397-405.
43
ZAMPARONI alerta-nos, no entanto, para o facto de que esta presença missionária protestante em
Moçambique data das últimas décadas do século XIX, “embora o protestantismo já se fizesse presente através
de alguns indivíduos catequizados nos territórios vizinhos”. ZAMPARONI, Valdemir, 1998, op.cit. p.427.
44
CROSS, Michael. The political economy of colonial education: Mozambique, 1930-1975. Comparative
Education Review, vol.31, nº4,, nov. 1987, p.550-569 op.cit, 1987, p.554 e ZAMPARONI, Valdemir, , op.cit.
1998.
45
CROSS, op.cit, 1987
33

e tirar vantagem dele para a exploração da província”46.

Durante o período compreendido entre a Conferência de Berlim e os finais da Primeira


Guerra Mundial, Portugal uma das economias mais frágeis da Europa, se viu na iminência de
procurar alianças com seus concorrentes imperialistas, principalmente Inglaterra e França, no
sentido de explorar lucrativamente as suas colônias, mas também de assim poder financiar os
custos da implantação de um sistema de administração colonial em todo o território, onde
estava também subjacente a formação de uma “política nativa”47 abrangente. Foi assim que,

Portugal optou por ceder as actuais províncias do Niassa e de Cabo


Delgado à Companhia do Niassa, uma companhia majestática, que
para além da sua função económica, tinha poderes militares e
administrativos. Da mesma foram, as províncias de Manica e de
Sofala passaram a ser administradas pela Companhia de Moçambique.
A províncias de Tete e da Zambézia forma submetidas a uma
administração conjunta do Estado português e de companhias que
arrendaram os antigos prazos. A província de Nampula e os territórios
ao sul do rio Save (Maputo, Gaza e Inhambane) ficaram sob a
administração directa do Estado português. 48

Mesmo tendo o controlo administrativo do sul de Moçambique, Portugal não


conseguiu competir com o capital estrangeiro (não português), principalmente com a
economia sul-africana. Daí se explica a transformação desta região do país em reservatório de
mão-de-obra para as minas de ouro e diamante da África do sul. O centro e norte de
Moçambique, como vimos anteriormente, estavam sob domínio econômico das companhias
arrendatárias, que gozavam de poderes absolutos (eram supostos de também estabelecer
escolas na colônia)49.

46
ISAACMAN Allen. e Isaacman, Barbara. Mozambique: from colonialism to Revolution, 1900 -1982, Boulder,
Colorado: Westview Press, 1983, p.50
47
Termo usado por HENRIKSEN, Thomas, op.cit.
48
HEDGES, David (Coord,). História de Moçambique – Moçambique no auge do colonialismo, 1930 – 1961,
Livraria Universitária, Maputo: UEM, 1999, p.1.
49
Kathleen Sheldon, observa no entanto, que as poucas escolas das companhias que haviam (em 1895 a única
escola que existia na região nordeste do Niassa - território da companhia do Niassa – era uma pequena escola
no Ibo, somente para rapazes e outra em Querimba que “mal funcionava” . Ainda segundo a autora, nos
distritos da Companhia de Moçambique no centro do país, no porto da Beira, havia uma pequena escola
aberta em1897 pelas Irmãs franciscanas .Vide, SHELDON, Kathleen. I studied with the Nuns, Learning to
34

A partir desta mudança qualitativa do capital mercantil para novas formas de


acumulação de capital, os portugueses foram tomando consciência da crescente necessidade
de uma força de trabalho (minimamente) letrada. Como afirmou Newitt, “muitas vezes eles
tinham que se virar para a comunidade dos comerciantes indianos e ficou claro que algumas
das oportunidades educacionais teriam que ser criadas para a população não-indígena das
cidades”.50

Em 1907 foi estabelecida uma estrutura legal para o controle estatal da educação na
colônia, embora não tenha sido aplicada por muitos anos. De acordo com esta regulação, era
exigido aos professores que passassem num exame de qualificação e que todos os livros
escolares teriam que ser autorizados pelo Estado. O ensino tinha que ser em português ou
numa língua local e não numa outra língua europeia, uma restrição que era direccionada
principalmente para as missões protestantes de língua inglesa.51 Kathleen Sheldon (1998)
afirma ainda, que neste período tinham sido também abertas algumas escolas do Estado,
contudo não eram ainda satisfatórias52.

Em 1921, o Estado colonial reconheceu a Igreja Católica como a única autoridade


sobre a educação missionária53, e muitos outros privilégios (como veremos posteriormente),
serão dados a esses missionários. No entanto, esta medida nunca foi executada, uma vez que
havia um número insuficiente de padres portugueses disponíveis para o serviço em
Moçambique. Muitas sociedades missionárias protestantes tinham estado directa ou
indirectamente a actuar em Moçambique durante este período54.

Os muçulmanos também operavam as suas próprias escolas em áreas da colónia onde


predominava sua religião, não obstante os portugueses considerarem a influência do Islã
como uma barreira para a assimilação dos africanos à cultura e nação portuguesa. O ideal
cristão prescrito no Evangelho foi gradualmente absorvido pela ideia geral da “missão
civilizadora” reivindicada pelos colonialistas portugueses. Ficou claro que o papel dos
missionários católicos não era unicamente de fornecer serviço espiritual aos comerciantes
portugueses e os colonizadores brancos, mas de efectuar mudanças culturais e educacionais

make blouses: Gender ideology and colonial education. The International Journal of African Historical
Studies, Vol.31, nº3, 1998, pp.595-625.
50
NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London : Hurst & Company, 1995, p.439.
51
SHELDON, op.cit, p.599 e ZAMPARONI, Valdemir, 1998, op.cit. p. 416 e segtes.
52
SHELDON, op.cit, p.599.
53
CROSS, op.cit, p.556.
54
CROSS, 1987:556 apud HERRICK, Allison et al. 1969.
35

nas sociedades africanas, conduzindo os africanos - como então era propalado pela ideologia
colonial - da “selvajaria para a civilização”55.

Neste período da Primeira República (1910-1926)56 as poucas escolas que existiam


eram exclusivamente para benefício dos filhos da elite colonial e de um pequeno grupo de
africanos “assimilados”. No que concerne aos africanos, o sistema de educação era ainda
muito precário, o que reflectia a situação paradoxal57 de Portugal em relação à educação da
maioria dos moçambicanos, que se encontrava à margem da campanha educacional.

Iniciou-se nesta fase, um processo de estabelecimento limitado de escolas, nos


principais postos comerciais e administrativos, tendo como assumpção de que os africanos
deviam ser suficientemente instruídos para unicamente poderem ler as escrituras sagradas,
exclusivamente na língua portuguesa não obstante encontrarmos missionários protestantes
interessados na introdução das línguas africanas.58 A actividade dos missionários protestantes
em relação à educação formal era também nesta fase insignificante, devido às restrições do
poder colonial português. Era enfim, uma concepção de educação baseada no preconceito da
superioridade racial e intelectual da civilização europeia em relação à africana.

1.2 A implantação do Estado Novo e a educação africana

Todas essas tendências para uma colonização efectiva de Moçambique começaram a


ser consolidadas com a ascensão de António Salazar ao poder e o estabelecimento do “Estado
Novo”59, nos princípios dos anos 193060. A sua política em relação às colônias era de apertar

55
CROSS, op. cit, 1987,p.555.
56
Para uma leitura mais atenta deste período vide, WHEELER, Dougals L. The Portuguese Revolution of 1910,
The Journal of Modern History, Vol.44, nº2, June, 1972, pp.172-194; Republican Portugal: A Political
History 1910-1926, The Review of Politics, Vol.41, nº2, 1979, pp.317-319.
57
Para Zamparoni, “era uma situação que parecia absurda: o estado não mantinha, não apoiava e não criava
escolas, mas era eficiente para criar obstáculos contra quem o fazia, temendo a desnacionalização do nosso
indígena. Zamparoni, 1998, op.cit. p.419.
58
Em relação a introdução das línguas vernáculas na educação africana, encontramos somente o trabalho das
missões protestantes, particularmente a Missão Suíça, que segundo Cruz e Silva começou a operar em 1880.
Segundo esta autora, desde o primeiro momento esta missão era vista com desconfiança pelos portugueses. É
de referir que a igreja católica nunca esteve interessada em ensinar nas línguas nativas. Ver ZAMPARONI,
1998, op. cit.
59
De acordo com Cláudia Castelo (2004), “Regime político autoritário, filo-fascista, católico e colonialista que
imperou em Portugal entre 1933 e 25 de Abril de 1974. Sucedeu à ditadura militar instaurada com o golpe de
28 de Maio de 1926, que derrubou a I República (1910-1926)”.
36

ainda mais o controle de Portugal e tornar a sua exploração, tanto da força de trabalho como
dos recursos naturais, mais eficiente e para benefício dos capitalistas portugueses61 (e não dos
produtores africanos ou investidores estrangeiros62).

De acordo com a estratégia política de Salazar em relação às suas possessões


ultramarinas, definidas pelo “Acto Colonial de 1930”63, os territórios coloniais eram
solicitados (1) a produzir matérias-primas (sobretudo o incremento da cultura forçada do
algodão), (2) contribuir para o equilíbrio da balança de pagamento português, (3) ser
financeiramente auto-suficiente, e (4) estar política e administrativamente centralizados sob
direcção do governo metropolitano64. O estatuto constitucional de Moçambique iria de
seguida mudar formalmente de “colônia” para o de “província” sob controlo de um
governador-geral.65

Ainda no âmbito da nova política colonial, o “Estado Novo” decidiu reformular66 os


diversos códigos e regulamentos sobre o “regime de indigenato” que vigoravam até a altura
do golpe militar. A divisão da população africana em duas categorias, (que já existia em
Moçambique desde 1917), foi reforçada: os indígenas (africanos “não-assimilados”67) e “não-

60
Em, 1926 dá-se o golpe de estado em Portugal, encabeçado por um grupo de generais. Em 1928, Salazar,
professor da universidade de Coimbra é convocado para gerir o sector financeiro. Só em 1932 assumira o
cargo de Primeiro-ministro que ocupara ditatorialmente ate 1968, quando é sucedido pelo seu amigo pessoal e
então Ministro das colónias, Marcelo Caetano.
61
Não podemos deixar de referir que quando Salazar ascende ao poder, a grande depressão de 1930 tinha
afectado profundamente Portugal, mais do qualquer outro país na Europa. A depressão iria assim forçar
Portugal a se tornar mais auto-suficiente em casa e de procurar investimento estrangeiro no exterior. Vide por
exemplo, BIRMINGHAM, David. A Concise History of Portugal, Cambridge:Cambridge University Press,
1993.
62
SHELDON, Kathleen. I studied with the Nuns, Learning to make blouses: Gender ideology and colonial
education. The International Journal of African Historical Studies, Vol.31, nº3, 1998, p.595-625.
63
“ O Acto Colonial define assim o quadro jurídico - institucional geral de uma nova politica para os territórios
sob dominação portuguesa. Dentro da opção colonial global do estado português, abre-se uma fase ‘imperial’,
nacionalista e centralizadora, fruto de uma nova conjuntura externa e interna e traduzida numa diferente
orientação geral para o aproveitamento das colónias. (THOMAZ, 2002, p.72, apud, ROSAS, 1994)
64
CROSS, 1987, p.558.
65
Segundo Michael Cross, a mudança deste estatuto teve como intenção, reforçar a situação colonial contra as
pressões desnacionalizante. Vide, CROSS, op.cit, 1987, p.558.
66
Zamparoni aborda especificamente a “criação do indígena”, onde afirma que “o primeiro diploma da
legislação colonial portuguesa, em Moçambique, que se preocupou em definir quem seria classificado como
indígena e quem estaria isento de tal classificação, remonta aos últimos anos do século XIX” quando da
“campanha movida por António Ennes em prol da obrigatoriedade do trabalho para os indígenas das colônias
africanas”. Ver, ZAMPARONI, 1998; 2007, op.cit.
67
Segundo Zamparoni, a lei de 1917, considerava assimilado ao europeu, o individuo da raça negra ou dela
descendente que: a) tivesse abandonado inteiramente os usos e costumes daquela raça; b) que falasse, lesse e
escrevesse a língua portuguesa; que adoptasse a monogamia; que exercesse profissão, arte ou oficio,
compatíveis com a “civilização” européia ou que tivesse obtido por “meio licito” rendimento que fosse
suficiente para a alimentação, sustento, habitação e vestuário dele e de sua família. Ver, ZAMPARONI,
37

indígenas” (qualquer um usufruindo totalmente a cidadania portuguesa, incluindo os


“africanos assimilados”, não obstante na prática eles permanecerem uma terceira categoria).

Os “indígenas” representavam a maioria da população africana. Como cidadãos de


estatuto inferior, os “assimilados” (negros, asiáticos, mestiços) tinham “cartões de identidade“
que os diferenciavam da massa de trabalhadores detentores de uma caderneta indígena. Esta
caderneta tinha sido um dos meios encontrados para limitar a circulação da força de
trabalho68. Em teoria, um “assimilado” como um “não indígena” era considerado como
cidadão português. Ele ou ela gozava de todos os privilégios que advinham da cidadania
portuguesa69. Como Michael Mawema70 correctamente indicou, a política de assimilação,

Pressupunha que todos portugueses eram civilizados e todos os


não portugueses não-civilizados e que, ao adquirirem educação,
tecnologia e religião, o não-civilizado iria então ser assimilado
na cultura e nação portuguesa ou em outras palavras na
civilização71.

De acordo com Malyn Newitt (1995), o “acto colonial” de Salazar manteve a


separação formal entre a igreja e o Estado, mas deu a igreja um reconhecimento especial
como um instrumento de “civilização” e de influência nacional canalizando a ajuda do Estado
para as missões para o seu trabalho educacional72.

Foi assim que em 1940, o governo português promulgou o “Acordo Missionário”, um


decreto que estabelecia que a igreja católica como provedora da educação para todos os

Valdemir. Frugalidade, moralidade e respeito: a política do assimilacionismo em Moçambique, c.1890-1930.


DELGADO Ignácio G; Albergaria, ENILCE; Ribeiro, GILVAN; Bruno, Renato. (Org.). Vozes (Além) da
África: Trópicos sobre Identidade Negra, Literatura e História Africana. Juiz de Fora:UFJF, 2006, p.145-
176.
68
Meneses et al.,”As autoridades tradicionais no contexto do pluralismo jurídico” p. 344, In: Sousa Santos,
Boaventura (Org). Conflito e transformação social – Uma paisagem das justiças em Moçambique.
Lisboa:Afrontamento, 2003.
69
MONDLANE, op.cit, ,1995,p.43.
70
MAWEMA, Michael. British and Portuguese Colonialism in Central African Education, New York:
Columbia University Teachers College, 1981.
71
MAWEMA, Michael. British and Portuguese Colonialism in Central African Education, New York:
Columbia University Teachers College, 1981.
72
NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London: Hurst & Company, 1995, p.479.
38

africanos e reforçava as regulações no que concernia a obrigatoriedade do uso da língua


portuguesa na instrução escolar73.

A igreja não oferecia educação universal e gratuita, mas em vez disso introduziu
barreiras em forma de propinas e restrições de idade que tornaram difícil para as crianças
africanas ingressarem nas escolas. Também requeria que as crianças fossem baptizadas como
católicas como condição básica para serem admitidas. Os estudantes só poderiam prosseguir
para o nível seguinte de educação se tivessem completado o 3º ano da “escola rudimentar” por
volta dos 14 anos de idade. Aliada a uma grande limitação de acesso as escolas, esses
constrangimentos iriam contribuir para que a maioria das crianças moçambicanas ficassem de
fora e tornasse difícil o êxito dos alunos.74

Quadro 1 - Alunos Matriculados 1930

Instituição Escolas Elementares Escolas Rudimentares

Governo 3.405 8.795

Privado 403 -

Católica 7.812 21.122

Missões estrangeiras 396 8.132


Fonte: Anuário Estatístico (1930), apud, Newitt (1995)

Foram criados dois sistemas escolares na colônia: o sistema estatal, que era uma
duplicação do sistema escolar metropolitano português, onde se encontravam as escolas
governamentais para os brancos, asiáticos, mulatos e “assimilados”.75 O ensino de adaptação”
(chamado até 1956, “ensino rudimentar”) que era exclusivo aos estudantes africanos e estava
sob responsabilidade das missões católicas. Este sistema - porque baseado numa filosofia
racista e discriminatória, que via o africano como “primitivo” que deveria ascender à
“civilização” portuguesa - tinha como propósito providenciar uma instrução para a

73
SHELDON, Kathleen, op.cit, p.614.
74
SHELDON, Kathleen, op.cit, p.615.
75
CROSS, op.cit, p.559
39

assimilação do africano, através da doutrinação dos valores culturais portugueses76.

De acordo com Malyn Newitt (1995), depois da segunda guerra mundial, as


oportunidades educacionais expandiram um pouco. Em 1942-3 houve 95.444 pupilos
registados nas escolas das missões. Por volta de 1961-2 o número tinha atingido 348.265, dos
quais 98% eram ensinados em escolas católicas e somente 7.191 nas escolas missionárias
estrangeiras. O declínio relativo das missões estrangeiras era, obviamente, parte de uma
política do governo, onde, ao longo da sua actuação, foram gradualmente postos obstáculos a
estas instituições.

Os professores africanos somente poderiam ser admitidos nos estabelecimentos de


ensino se fossem católicos, e o acesso a uma educação posterior dependia da filiação à igreja
estabelecida do Estado.77. Barry Munslow (apud Newitt, 1995) dá o exemplo eloquente de
Samora Machel78, onde a sua progressão educacional tinha sido barrada ao menos que se
transformasse num católico baptizado, tendo então, pelo benefício do avanço escolar, aliado-
se à igreja79. Esperava-se que a política de educação produzisse uma classe de trabalhadores
técnicos, agrícolas e artesãos que poderiam ser facilmente absorvidos pela economia colonial.
Daí então Eduardo Mondlane afirmar que a educação colonial assim concebida tinha sido
desenhada para responder a dois objectivos: “formar elementos da população que actuariam
como intermediários entre o Estado colonial e as massas; e inculcar uma atitude de servilismo
nos africanos educados”80. É sintomática a forma como o Cardeal Patriarca de Lisboa, na sua
carta pastoral de 1960, expôs de uma forma directa, os objectivos da educação colonial,

Tentamos atingir a população nativa em extensão e


profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os
fazer “doutores” (...) Educá-los e instruí-los de modo a fazer
deles prisioneiros da terra e protegê-los da atracção das cidades,
o caminho que os missionários católicos escolheram com
devoção e coragem, o caminho do bom senso e da segurança
política e social para a província. (...) As escolas são
necessárias, sim, mas escolas onde ensinemos ao nativo o

76
Vide, DUFFY, James. Portuguese Africa (Angola and Mozambique): Some crucial problems and the role of
education in their resolution. The Journal of Negro Education, Vol.30, nº3, 1961, p.294-301.
77
NEWITT, 1995 op.cit, p..480.
78
Líder da luta anti-colonial, membro fundador da Frelimo e primeiro presidente de Moçambique no pós–
independência.
79
NEWITT, 1995 op.cit, pp.480
80
MONDLANE, 1995, p.55.
40

caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os


protege81.

Este sistema de educação colonial em nada beneficiou a população nativa, pois que
mais do que formar, instruir e libertar os africanos - porque baseada num pressuposto racista e
discriminatório - procurava somente, através do trabalho compulsório, tirar vantagem na
exploração lucrativa da colônia.

A política colonial de Salazar veio assim reforçar as estruturas de subdesenvolvimento


introduzidas no início do processo de colonização pelas companhias concessionárias. Como
vimos anteriormente, o norte de Moçambique estava mais virado para a produção agrícola
camponesa, com investimento de pequena escala. Havia monocultura do algodão onde os
camponeses vendiam o seu produto a um preço fixo. O centro de Moçambique estava
reservado para a economia de plantação, envolvendo a produção de chá, açúcar e plantações
de coqueiros que dependiam do trabalho forçado. O sul continuava sendo uma reserva de
mão-de-obra para as minas sul-africanas.

O subdesenvolvimento e as distorções da economia e estrutura social estavam, deste


modo, reflectidas na forma particular como o sistema educacional tinha sido implantado na
colônia. Era de facto um programa educacional moldado exclusivamente para reforçar as
relações de dominação colonial e de subordinação e, por outro lado, para a exploração
massiva da força de trabalho africana. Em 1959, segundo Eduardo Mondlane (1995), havia
“392.796 crianças nas “escolas de adaptação”, mas dessas somente 6.928 conseguiram
começar a escola primária82”.

Um outro dado eloquente é de que na altura da independência nacional 98% da


população negra era iletrada. Não havia assim nenhuma intenção de produzir “doutores”,
como afirmara o Cardeal Patriarca de Lisboa, mas somente a necessidade de promover certas
atitudes, hábitos e aptidões básicas que iriam tornar as pessoas leais à autoridade portuguesa e
mais produtivos para a economia colonial.

81
Ibid., p.56.
82
Vide, MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Maputo: Nosso Chão,1995.
41

1.3 A crise do Estado Novo e a fundação do ensino superior em Moçambique (1960-1975)

Os finais dos anos 1950 foram caracterizados pela adopção de uma política colonial
mais flexível por parte do Estado salazarista devido em grande parte às pressões externas e
internas para a descolonização. A agudização dos protestos anti-coloniais no mundo83, bem
como o crescente aumento dos protestos no interior de Moçambique, que culminaria com a
luta armada proclamada pela FRELIMO podem deste modo, ser vistas como dois dos
principais factores que determinaram a emergência de uma nova estratégia colonial.

Esta reforma politica, significou dentre outros aspectos, a reestruturação da economia


colonial, abrindo as portas para o estabelecimento de uma aliança firme com o capital
estrangeiro; o reforço da integração econômica no subsistema econômico da África Austral; a
abolição formal do regime de trabalho forçado e produção agrícola compulsória e
reconhecimento formal de cidadania completa e direitos para todos, como também a expansão
da educação secundária e a fundação da Universidade de Lourenço Marques em 1962 na
capital colonial do mesmo nome (atual Maputo).

Teve inicialmente a designação de Estudos Gerais Universitários de Moçambique


(EGUM), onde se administrava, então, apenas a parte geral de alguns cursos. Com o seu
desenvolvimento, e tendo sido assegurado o funcionamento integral dos mesmos, a
designação de universidade veio em Dezembro de 196884. Os primeiros cursos oferecidos
pela universidade seguiram uma lógica de prioridade dada pelo governo metropolitano. Foram
assim considerados prioritários os seguintes cursos: Ciências Pedagógicas, Formação Médico-
Cirúrgica, Engenharia Civil, Engenharia de Minas, Engenharia Mecânica, Engenharia
Electrotécnica, Engenharia Química-Industrial, Agronomia, Silvicultura e Medicina
Veterinária85. Até o ano lectivo de 1967/1968, estes cursos funcionavam somente até ao 3º
ano86.

83
Reflectida fundamentalmente na Conferência de Bandung (Indonésia), onde 29 países afro - asiáticos, com
destaque para a URSS, China e Índia, condenaram o colonialismo e apelaram a unidades dos povos contra ele.
Vide, CARDINA, Miguel. Violência e anti - colonialismo nas oposições ao Estado Novo, Revista Critica de
Ciências Sociais nº88, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Março, 2010, p.207-
231.
84
Vide, UNIVERSIDADE DE LOURENÇO MARQUES (ULM) , Prospecto Geral, 1971/1972, Lourenço
Marques:ULM, 1971, p.3.
85
ULM. Prospecto Geral, op.cit.
86
Neste ano, entram em funcionamento os 5º anos dos cursos: médico - cirúrgico, engenharia civil,
electrotécnica e químico - industrial. Em 1968/69, forma criados os 5º anos dos cursos de engenharia
42

Como podemos notar, o ensino das disciplinas das Ciências Sociais e Humanas ainda
não faziam parte dos objectivos da universidade. Somente no ano de 1969 seriam então
criados os cursos de Letras, nomeadamente os bacharelatos em Filologia Românica, História e
Geografia. No ano seguinte seria a vez do curso de Economia.87 Cursos em Direito e Ciências
Sociais, só estavam disponíveis em Portugal. Uma vez que o ensino primário e secundário era
por natureza selectivo, praticamente todos os estudantes universitários eram portugueses ou
filhos de portugueses nascidos em Moçambique88.

Como observou Miguel Buendia (1999), “em 1973 somente 40, em 3.000 estudantes,
eram negros89.” E estes estudantes, se quisessem prosseguir os seus estudos universitários, por
exemplo, para o nível de licenciatura, teriam que se deslocar à metrópole. O que tornava-se
muito difícil, uma vez que implicava grandes despesas em termos de viagem, acomodação e
propinas. O prosseguimento de uma licenciatura em Portugal tornava-se assim numa “missão
quase impossível.90” Daí encontramos no seio do universo de estudantes matriculados, na
altura da independência nacional, apenas 40 estudantes moçambicanos91.

O modelo de universidade nas ex-colônias era uma réplica do que acontecia na


metrópole, um modelo estatal totalmente dependente do Ministério da Educação português,
onde o currículo era centralmente aprovado. Era o governo, por exemplo, quem decidia que
cursos seriam oferecidos aos estudantes africanos92. A ULM estava em princípio acessível
unicamente para os filhos e filhas dos portugueses, uma vez que o seu acesso baseava-se
fortemente no capital social e econômico, o que não favorecia a presença dos filhos de
famílias africanas93. Por outro lado, só os africanos considerados “assimilados” tinham direito
de entrar para a universidade94.

mecânica e silvicultura, os 6º anos dos curso de médico - cirúrgico, engenharia civil, electrotecnia e químico
industrial. Vide, ULM, 1971, op.cit., p.4.
87
ULM. Prospecto Geral, op.cit, p.4.
88
Vide, EGERO, Bertil. Mozambique and Angola: Reconstruction in the Social Sciences. Research Report nº4,
The Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala, Sweden, 1977.
89
BUENDIA, op.cit.
90
Poderíamos referir aqui, como excepção, o pequeno grupo de moçambicanos, negros “assimilados” e mestiços
que conseguiram prosseguir os seus estudos na metrópole e que lá teriam um papel decisivo na dinamização
das campanhas anti - coloniais e no desencadeamento da luta armada contra o colonialismo português. Vide o
capítulo a seguir sobre o contexto histórico da luta armada e do pós -independência.
91
BEVERWIJK, 2005, p.36.
92
Ibid.,.p.27.
93
BEVERWIJK, 2005,p.102
94
Ibidem, Idem.
43

Não obstante, este sistema de educação selectiva, houve um pequeno número de


moçambicanos que conseguiu concluir os seus estudos universitários na “metrópole95”.
Alguns destes jovens moçambicanos, iriam mais tarde, desempenhar um papel decisivo na
emergência dos movimentos nacionalistas e que culminaria com a fundação da FRELIMO e o
desencadeamento da luta armada pela independência nacional. Como afirmou Miguel
Buendia (1999),

O governo português, no entanto, não permitiu que alunos


africanos frequentassem universidades não portuguesas, numa
clara tentativa de conter nestes o crescimento de uma
consciência nacionalista e impedir que estabelecessem contactos
com organizações políticas anticoloniais. Os que estudaram em
universidades europeias ou americanas96 foram obrigados a
deixar clandestinamente o país e exilar-se97.

A ULM era a única instituição de ensino superior a operar na colônia, onde até à
independência nacional não tinha ainda nenhum curso na área da Sociologia, Ciências
Politicas ou mesmo Direito98. O seu currículo estava assim mais virado para a área das
Ciências Naturais, o que reflectia uma certa desconfiança do governo colonial português em
relação às disciplinas das Ciências Sociais e o seu carácter de questionamento social e
político. A esse respeito Teresa Cruz e Silva (2005), traçou um perfil rigoroso da realidade
universitária no país, antes da independência nacional, e que vale a pena transcrever
demoradamente,

95
Somente em 1968, eles foram autorizados, pela primeira vez, a conceder diplomas de fim do curso.Vide,
JINADU, Adele. The social sciences and development in Africa: Ethiopia, Mozambique, Tanzania and
Mozambique, Uppsala:SAREC Report, 1985.
96
Um caso paradigmático seria o de Eduardo Mondlane, primeiro presidente e fundador da Frelimo, que teve
que se exilar na África do Sul e mais tarde nos EUM onde concluiria o seu doutoramento em Antropologia.
97
BUENDIA, 1999, op.cit.p.74.
98
Vide, SILVA e Cruz, Teresa. Instituições de Ensino Superior e Investigação em Ciências Sociais: A herança
colonial, a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique.
Lusofonia em África – História, Democracia e Integração Africana, Dakar, CODESRIA, 2005, p.36.
44

A natureza desta instituição pode ser ilustrada pela forma como


o ensino era restringido e controlado, particularmente nas áreas
das Ciências Sociais e Humanas, onde (e apenas mais tarde) foi
apenas permitida a introdução de cursos como Filologia
Românica, História e Geografia, e destes, apenas os primeiros
anos, obrigando, assim, a que os estudantes tivessem que
terminar a sua formação em Portugal, sob o olhar de um melhor
controlo político. Nesse quadro, a formação universitária em
Sociologia, Ciência Política e mesmo Direito, apenas foram
introduzidos depois da independência nacional. Assim, não
podemos deixar de sublinhar que a formação em Ciências
Sociais em Moçambique durante o período colonial era
praticamente inexistente99.

Não podia ser de outra forma, pois que mesmo na metrópole, o ensino de Ciências
Sociais na universidade seria introduzido somente no inicio dos anos 1970, num novo
contexto histórico, do Estado social sob liderança de Marcelo Caetano100, pese embora, o
primeiro curso de Pós-Graduação em Ciências Etnológicas e Antropológicas (especialização
em Administração Colonial) tenha sido iniciado no ano lectivo 1968/69101.

Na mesma senda, a disciplina de Sociologia apareceria em 1973 e a Antropologia logo


a seguir ao golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, que pôs fim à ditadura salazarista. É de
referir, no entanto, que três disciplinas tinham já uma história longa nas academias

99
SILVA e Cruz, Teresa, op.cit, p.36.
100
Marcelo Caetano, sucedeu a Salazar na presidência, em 1968 até ao golpe militar do 25 de Abril de 1974,
depois deste ter se retirado da actividade política, “devido a uma queda que o incapacitaria definitivamente”
(Castelo, 2004, op.cit.). Alguns autores afirmam que a sucessão de Marcelo não mudou em nada a política
salazarista, tendo somente dado continuidade ao que Salazar tinha projectado. Por exemplo, Erik Blakanoff
(1992), afirma que o período da administração de Marcelo, conhecido como o estado social, foi marcado pela
“evolução com continuidade”. Vide, BAKLANOFF, Eric N. The Political Economy of Portugal's Later
"Estado Novo": A Critique of the Stagnation Thesis. Luso - Brazilian Review, Vol. 29, No.1, 1992, pp. 1-17.
Thomas Henriksen, na mesma senda, afirma, “a doença de Salazar e a transferência do poder para Marcelo
Caetano em Setembro de 1968, dois anos após a morte de Salazar, não introduziu nenhuma mudança na
dependência politica do governo me relação as sua possessões africanas. Vide, HENRIKSEN, Thomas.
Portugal in Africa. A Non–Economic Interpretation. African Studies Review, vol.16, nº3, Dec., 1973, pp.405-
416. Houve no entanto autores como Stephen Stoer e Roger Dale, que afirmaram que o “reino” de Caetano
tinha iniciado um período de “liberalização”, um dos principais símbolos do que viria a ser a reforma de
Veiga Simão, na educação. É de referir, que o ministro da educação de Caetano, Veiga Simão, tinha sido
anteriormente reitor da universidade Lourenço Marques. Um dos principais objectivos desta reforma tinha
sido a “democratização do ensino”, o aumento do período da instrução compulsória dos 6 aos 8 anos, e
também a reforma e criação de novas instituições de ensino superior. Vide, STOER, Stephen & DALE,
Roger. Education, state and society in Portugal. Comparative Education Review, vol.31, nº3, August, 1987,
p.400-418.
101
FIALHO, José. As Ciências Sociais em Portugal – Algumas questões para as Ciências em Moçambique.
Seminário: Formação e Investigação em Ciências Sociais de 4 - 5 de Março, , Maputo :UEM, 1993.
45

portuguesas, como são o caso da Economia, História e Geografia, que estavam implantadas
em todas as universidades portuguesas102.

Como podemos depreender, o modelo de ensino das Ciências Sociais na colônia seria,
deste modo, um reflexo do próprio atraso no ensino e pesquisa em Ciências Sociais em
Portugal. Como afirmou Jinadu, o carácter autoritário do sistema político português sob
direcção de António Salazar e de Marcelo Caetano não era também conducente a uma ciência
social crítica no Moçambique colonial.103 Daí então Bertil Egero (1977) afirmar, que a
separação da pesquisa do ensino universitário ter sido uma das características da estrutura
universitária portuguesa, “uma estrutura desenhada para servir um sistema político autoritário
que não permitia nenhum espaço para debate e questionamento104”.

Assim não havia praticamente pesquisa empírica na universidade em Moçambique. Na


ULM funcionava apenas o Centro de Estudos Humanístico “Sarmento Rodrigues”, que tinha
sido criado em 1963 pelo Ministro do Ultramar e da Educação Nacional, com o objectivo de
promover a difusão da cultura portuguesa em terras de Moçambique. Em 1968 seria também
criado na universidade o Centro de Estudos de Psicologia, organismo administrativamente
integrado nos cursos de letras, com a função de investigação e de clínicas psicológicas ao
serviço da universidade, nomeadamente dos cursos de ciências pedagógicas e médico-
cirúrgicos105.

Como veremos mais adiante, a pesquisa empírica na área da Antropologia, História, e


Linguística sobre a realidade moçambicana estava somente no Instituto de Investigação
Cientifica de Moçambique (IICM), que tinha sido criado em 1955, como podemos ver, sete
anos antes da fundação do ensino superior na colônia.

1.4 Algumas notas sobre a pesquisa em Ciências Sociais no período colonial

Gerald Bender e Allen Isaacman (1976), referiram que antes da instituição do “Estado

102
Vide, FIALHO, op.cit.
103
Como observou Jinadu, mesmo em Portugal, sob comando de António Salazar em 1932 a 1968 e do seus
sucessor, Marcelo Caetano de 1968 a 1974, a educação superior sofreu vários reveses, com professores a
serem demitidos ou perseguidos. Vide, JINADU, 1985, op.cit.
104
EGERO, Bertil. “Mozambique and Angola: Reconstruction in the Social Sciences.”, Research Report nº4,
The Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala:Sweden, 1977.
105
Vide, ULM. Prospecto Geral, 1971, op.cit.
46

Novo”, os investigadores portugueses e estrangeiros tinham ignorado totalmente Angola e


Moçambique106. De acordo com este autores, foi com a ascensão de António Salazar que se
criou uma nova plataforma para o orgulho nacional português, onde os historiadores foram
persuadidos a redescobrirem as glórias do passado imperial português e de engrandecer as
suas “missões” heróicas. A disciplina de História, tornou-se assim um instrumento para
conscientemente instilar o orgulho nacional107. No entanto, o estudo da história africana, foi
deixado para os antropólogos (produzida fundamentalmente por viajantes aventureiros,
missionários, administradores coloniais, escritores e jornalistas) cujas assumpções históricas
sobre a natureza imóvel das sociedades “primitivas” eram raramente questionadas pelos
historiadores.108

Uma vez que as culturas africanas eram consideradas, a priori, de serem estagnantes e
atrasadas, os antropólogos não estavam interessados em estudar como elas funcionavam nem
mesmo como elas interagiam com o ambiente109. Estavam mais preocupados com os aspectos
“exóticos” das sociedades africanas, e que de certa forma, pudessem vincar a suposta
inferioridade dos africanos e legitimar os princípios da “missão civilizadora” portuguesa.
Eram assim produzidos trabalhos sobre escarificações, craniometria, estilos de cabelos,
magia, cerimónias rituais, etc. Como afirmaram Bender & Isaacman (1976), “esta auto-
adulação sobre a sua “missão civilizadora”, estava dependente dessa inferioridade. Até
mesmo os melhores antropólogos portugueses apoiavam essa visão”.110

Um dos mais eloquentes exemplos deste movimento colonial que pretendia apoiar as
pretensões imperialistas da monarquia portuguesa foi sem dúvida a fundação em 1875 de uma
instituição de iniciativa privada, a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), pelo jornalista e
geógrafo português Luciano Cordeiro111, e mais um pequeno grupo de historiadores,
jornalistas, administradores coloniais, professores do ensino superior, oficiais do exército,

106
BENDER, Gerald; ISAACMAN, Allen. The changing historiography of Angola and Mozambique. African
Studies since 1945 – A tribute to Basil Davidson, edited by Christopher Fyfe, London :Longam, 1976, p.220-
248.
107
BENDER & ISAACMAN, op.cit, p.220.
108
Idem, Ibid.
109
Ibidem, Ibid.
110
BENDER & ISAACMAN, op.cit, p. 221.
111
Acabou sendo também um dos 6 delegados portugueses a Conferencia de Berlin (1884-85). Vide,
The Colonial Congress at Lisbon 190:J. BARRET - LENNARD e Vicente Almeida d'Eça. Journal of the Royal
African Society, Vol. 2, No. 7 (Apr., 1903), p. 292-307.
47

industriais com particular interesse na área naval e do exército112. Uma das principais missões
da Sociedade foi o de propagar numa escala mais alargada, a ideia do império colonial
português e da necessidade de reter e expandi-lo.

Foram levadas a cabo várias expedições científicas (financiadas por subscrição


nacional113) protagonizadas por Serpa Pinto, Guilherme de Brito Capello, Roberto Ivens,
António Maria Cardoso, dentre outros – com o intuito de mapear o interior africano, e mais
especificamente, como afirmou Mattoso (1993), de “reconhecer a bacia do Zaire e as suas
relações com o Zambeze114”. É preciso no entanto referir, que estes relatos geográfico-
naturais e etnográficos, acabavam no final reiterando a necessidade de uma futura “missão
civilizadora”115 portuguesa em África, que deveria iniciar os naturais “na lei e no
aproveitamento do trabalho culto e procurar modificar os usos bárbaros e desumanos das
sociedades indígenas”116.

E o mais interessante, é que neste contexto global do interesse e competição europeia


pela descoberta, exploração e colonização do continente africano, a Geografia tornou-se de
facto a disciplina hegemônica. Como referiu-se Silva Rego,

A partir do inicio da segunda metade do século XIX, deixou-se a


humanidade arrastar pelo prestigio da Geografia. Vinha de longe, sem
dúvida o amor pelo conhecimento de outras terras e outras gentes (…)
mas em virtude de interesses que de um momento para o outro a
África principiou a oferecer à Europa e à América, a geografia passou
repentinamente de uma ciência algo teórica para outra fortemente
influenciada pelas viagens, pelos reconhecimentos, pelos inquéritos
sociológicos, econômicos, etc. Como por encanto, surgiram por toda a
112
NOWELL, Charles. Portugal and the partition of Africa, Journal of Modern History, Vol. XIX, nº1, March,
1947, p.1-17.
113
MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Liberalismo (1807-1890), Vol. V, Ed. Estampa, Lisoba,
1993.
114
MATTOSO, 1993, op.cit, p.308.
115
Serpa Pinto, um dos mais famosos exploradores africanos do século XIX, no seu relato sobre a viagem que
empreendeu entre o Bié e o Zambeze, dá uma imagem deveras elucidativa desse propósito civilizador, quando
afirmava a certa altura: “O que mais me impressionou em relação a essas tribos, foi a sua afeição pelo
vestuário, uma disposição que é certamente favorável para o prospecto da futura civilização. Podemos
considerar aqui, que temos um grande mercado prospectivo para o consumo de produtos portugueses
manufacturados” (sublinhado nosso)..Vide, Serpa Pinto Alexandre Alberto. Major Serpa Pinto's Journey
across Africa. Royal Geographical Society and Monthly Record of Geography: New Monthly Series, Vol. 1,
No. 8 (Aug., 1879), p. 481-489
116
Legislação novíssima do ultramar, vol. Xi, 1881-1882, pp.292-294, apud Mattoso, op.cit, p.310.
48

parte “sociedades de geografia”117.

No que concernia ao caso português, esta instituição acabaria sendo, como observou
José Mattoso, “o fulcro do renascimento colonial português, despertando o interesse da
opinião pública para as questões do império118”. É no entanto Omar Ribeiro Thomaz quem
nos fornece subsídios para pensar mais profundamente as conexões entre produção de
conhecimento e ideologia colonial (tanto no que concernia a nação” como ao “império”), e
que vale a pena citar demoradamente,

A criação da Sociedade de Geografia de Lisboa representou uma


corrente do pensamento colonialista português moderno, que
procurou fazer com que Portugal retomasse o lugar que lhe
competiria no panorama internacional, não apenas tomando
parte nos debates sobre o conhecimento dos territórios tropicais,
mas também fornecendo subsídios ao Estado a fim de que
pudesse participar da “corrida de África”. Para poder garantir
uma demarcação de fontreiras favoráveis aos interesses
portugueses, um discurso que lançasse mão de apenas “direitos
históricos” não era suficiente: fazia-se necessário comprovar um
real conhecimento e dominio do Ultramar119.

Os artigos publicados no Boletim da SGL, classificavam-se, segundo Charles Nowell


(1947) em 3 categorias: escritos geográficos de interesse geral, estudos das conquistas dos
portugueses na “idade de ouro” do príncipe Henriques e Vasco da Gama e contribuições que
lidavam com os problemas contemporâneos da colonização portuguesa, principalmente de
questões africanas.120 A análise das actas e dos boletins da SGL a partir de 1876, levada a
cabo por Ângela Guimarães, permite destacar, por outro lado, os objectivos que marcaram as

117
Em termos cronológicos surgiu primeiro a de Paris (1821), a sociedade de Berlin (1828), e de Londres em
1830. Vide, Rego, Silva, A. O ultramar português no sec. XIX, Lisboa:Agencia - Geral do Ultramar,
,MCMLXIX, 2ªed., 1966.
118
MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Liberalismo (1807-1890), Vol. V, Lisoba:Estampa, , 1993,
pp.308
119
THOMAZ, Omar Ribeiro. “O Bom Povo Português”: Usos e Costumes de AʹQuém e DʹAlém- Mar. Mana 7
(1):55 - 87, 2001, p.55-87, p.65. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v7n1/a04v07n1.pdf. Acesso em
23-10-2007.
120
NOWELL, 1947 op, cit, p.6.
49

três fases fundamentais da actividade desta instituição:

De 1876 a 1880, a SG concentra todos os seus esforços em garantir o


lugar de Portugal no movimento expansionista. De 1880 a 1882,
esforça-se sobretudo por fazer um balanço das forças disponíveis para
investir na competição. De 1882 a 1895, dedica os seus esforços a
orientar a politica e a gestão coloniais sobre o conjunto do império,
embora as circunstâncias a levem a concentrar o máximo da sua
atenção em Moçambique121.

Em relação ao contexto colonial moçambicano, podemos afirmar que até finais dos
anos 1950 não havia ainda instituições viradas exclusivamente para a pesquisa em Ciências
Sociais. Encontrávamos somente trabalhos de carácter individual, ou filiados às pouquíssimas
instituições de pesquisa na metrópole. Estas investigações consistiam basicamente em
pequenos trabalhos descritivos e etnográficos sem nenhuma pretensão de análise ou
interpretação e sem nenhuma filiação a instituições de pesquisa baseadas em Moçambique. A
pesquisa em Ciências Sociais, em disciplinas como Antropologia e Sociologia eram
praticamente inexistentes no Moçambique colonial. Como observou Lorenzo Macagno,

Até final do século passado, os administradores/ militares


conservavam o monopólio da violência simbólica com o seu
“saber prático”, pois o “saber científico” ainda não tinha
chegado totalmente às colônias, embora a Sociedade de
Geografia de Lisboa já tivesse começado a interessar pelos
“usos e costumes” do ultramar e pelos problemas coloniais122.

No que respeitava por exemplo à pesquisa antropológica, Ana Loforte (1987),

121
GUIMARÃES, Ângela. Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de Lisboa,
1875-1895, Lisboa: Livros Horizonte, 1984 , p.21, apud, MATTOSO, op.cit, p.309.
122
MACAGNO, Lorenzo. O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes. FRY, Peter (Org).
Moçambique ensaios. Rio de Janeiro:UFRJ,2001, p.88.
50

correctamente observou que a política de assimilação adoptada pelo colonialismo português


tornou de certa forma desnecessária a utilização prática da Antropologia nas tarefas
administrativas. A autora argumenta assim, que uma vez que os objectivos da colonização
baseavam-se na ideia de que era preciso “civilizar” o negro “selvagem” e arrancá-lo dos seus
“usos e costumes indígenas”, substituindo por valores da cultura e nação portuguesa, assim o
empreendimento de se constituir uma pesquisa exclusivamente antropológica, tornava-se
desnecessário. Ainda segundo Ana Loforte, “as investigações que pudessem ser realizadas
destinavam-se a fornecer às autoridades coloniais os meios capazes de reforçar a ocupação
portuguesa e aumentar a reserva da força de trabalho e dos produtos agrícolas”.123

Os primeiros estudos de carácter científico produzidos sobre Moçambique eram


fundamentalmente relatórios ou pequenas monografias nas áreas de Antropologia. Loforte
afirma que se assistiu na primeira metade do século XX, uma certa preocupação pelo estudo
das estruturas políticas locais, pelos usos e costumes das populações, nomeadamente sistema
de parentesco e casamento, uso e propriedade de terra, etc124. Houve ainda pequenas
monografias na área de História e Linguística, conduzidos na sua maioria por administradores
coloniais e missionários e que tinham como objectivo conhecer a realidade social a fim de
“bem administrar”125. Estes missionários para o bom desempenho das suas funções tiveram de
se interessar pelo conhecimento das línguas, tendências, usos e costumes dos povos
nativos.126 A pesquisa antropológica adquiriu assim um maior protagonismo através do
beneplácito do Estado colonial. Como observou Brazão Mazula (2004), “ela apresentava-se
no conjunto da acção colonial como uma ciência global do homem africano. Encarregou-se da
universalização da ideologia colonial no espaço português”.127

Reiterou ainda Brazão Mazula, que a antropologia colonial durante o contexto do


Estado salazarista,

123
LOFORTE, Ana. Trabalhos realizados no âmbito da Antropologia em Moçambique. PRIMEIRO
SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA. Maputo:UEM, Março, 1987, p59.
124
Ibid. p.62.
125
LOFORTE, Ana &Mate, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique, Maputo:UEM,1993,p.2
126
LOFORTE, Ana et al, Loc.cit.p.2
127
MAZULA, Brazão. Educação, cultura e ideologia em Moçambique: 1975-1985, Lisboa:Afrontamento, 2004,
p.69.
51

Também fornecia aos missionários uma vasta panóplia de


preconceitos racistas e etnocêntricas e as diversas organizações
coloniais do Governo uma argumentação e conhecimentos que
lhe facilitava a sua acção destruidora das estruturas sociais e
económicas indígenas, prestando relevantes serviços ao Estado
Novo128.

Como podemos depreender, Portugal mantinha ainda, parafraseando Evans Pritchard,


a “fase amadora do trabalho antropológico”.129 Até então, Portugal assistia impávido e sereno
as incursões de outros pesquisadores estrangeiros das áreas de Antropologia, História e
Geografia, em seus territórios ultramarinos.

Como forma de responder melhor aos objectivos da colonização e sob impulso do


próprio “Estado Novo”, foram sendo criadas instituições de pesquisa especializadas. Após os
finais dos 1960, os relatórios multiplicaram-se e complexificaram-se por razões
fundamentalmente políticas. Era necessário fazer inquéritos pormenorizados de pesquisas
apropriadas para que a administração dispusesse dos melhores instrumentos para lutar contra
as acções político-militares dos nacionalistas130.

Lorenzo Macagno (2002) argumentou, que uma das razões que explicavam a chegada
tardia ao terreno colonial por parte dos antropólogos portugueses, tinha sido a posição
subalterna de Portugal em relação ao resto do establishment antropológico internacional.131
Além disso, as condições políticas do salazarismo teriam contribuído, em grande medida, para
um certo isolamento teórico da Antropologia em Portugal.

Como afirmou Lorenzo Macagno (2002), até a segunda metade da década de 1950,
numa altura em que países como a Inglaterra, França e EUA, começavam a desenvolver novas
correntes teóricas, críticas do etnocentrismo antropológico colonial, a Antropologia praticada
por portugueses na colônia de Moçambique era caracterizado por um profundo desvio
biologista, derivado sobretudo das correntes da Antropometria. Esta escola tinha alcançado
uma posição hegemônica através de Santos Júnior, antropólogo comprometido com a

128
MAZULA, Brazão, 2004, op.cit, p.78.
129
PRITCHARD, Evans, apud NTARANGWI, op. cit. p.12.
130
LOFORTE Ana & MATE, Alexandre., op.cit., 1993, p.2
131
MACAGNO, Lorenzo. Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e Moçambique.
Afro-Ásia, nº 28, Salvador. CEAO/ UFBA, 2002, p.97-124, p.100.
52

administração colonial portuguesa e seus discípulos do Porto, como António Augusto132, que
empreenderam uma série de campanhas em Moçambique entre 1937 e 1955.

Na mesma altura em que estas pesquisas bio-antropológicas estavam sendo realizadas


em Moçambique; na metrópole, Jorge Dias, considerado uma das mais importantes figuras da
Antropologia portuguesa do século XX133, efectuava trabalho de campo em pequenas aldeias
rurais de Portugal. Este pesquisador viria a ser uma peça decisiva no processo de emergência
de uma Antropologia orientada para o estudo das sociedades e culturas das ex-colônias
portuguesas, na segunda metade dos anos 1950. Podemos assim afirmar, que antes de Jorge
Dias a Antropologia portuguesa estava centrada em torno de problemas ligados à realidade
social e cultural portuguesa. Aquilo a que George Stocking cunhou de nation building
anthropology134, em oposição às outras potências coloniais, como a França e Grã-Bretanha
que se caracterizaram por uma empire building anthropology135.

Foi de facto com Jorge Dias, que este autocentramento da disciplina antropológica em
torno de Portugal foi, de alguma forma, posto em questão. Depois do seu regresso dos Estados
Unidos, onde foi profundamente influenciado pela antropologia cultural de Franz Boas136,
Jorge Dias, “comprometido com a administração colonial137”, foi encarregado pelo Ministério
de Ultramar de empreender missões para o estudo das minorias étnicas dos territórios
portugueses do Ultramar. Em Moçambique essa missão iria culminar com a famosa obra “Os

132
Estes autores, através da antropologia física e áreas afins, procuravam estabelecer uma espécie de caução
científica para a subordinação dos povos africanos e hierarquização das raças humanas. Segundo Lorenzo, [...]
“nesse trabalho, além de considerar óbvia e irrefutável a importância do cabelo como elemento de
classificação ‘racial’, Santos Júnior elabora uma detalhada tabela com uma tipologia de cabelos. Inclusive,
António Augusto (colaborador de Santos Júnior) aplicou um conjunto de testes para estabelecer cotas de
inteligência, comparando crianças portuguesas e crianças moçambicanas”.Ver António Augusto, “A evolução
intelectual das crianças pretas de Moçambique”, separata de A criança portuguesa (Lisboa, 1949).
MACAGNO, op.cit.,p.101.
133
LEAL, João, Recensão a obra de Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, Vol. I: Aspectos históricos e
económicos:<http://www.CEAS.iscte.pt/etnografica/Docs/vol_03/N1/vol_iii_N1_213-228.PDF.» Acesso:em
19/092007.
134
“Antropologia da construção da Nação” (tradução nossa). STOCKING, 1982 apud LEAL, 1998, p.213.
135
“Antropologia da construção do Império” (tradução nossa), STOCKING, 1982 apud LEAL, 1998, p.213.
136
De Franz Boas, Jorge Dias resgata a ideia de que as culturas não são mônadas e estáticas, e enfatizou uma
análise que privilegiasse os processos de aculturação. Não obstante esta influência de Boas, Macagno irá
sumarizar o trabalho antropológico de Dias afirmando, que “a Etnografia sobre os Macondes se localiza em
um registro descritivista e, até certo ponto, estático (Macagno, no entanto adverte que o próprio Dias
reconheceu este viés sincrónico e advertiu sobre os resultados parciais de seu trabalho. Cf. MACAGNO,
op.cit., p.121.
137
PERREIRA, apud MACAGNO, 2002 op.cit., p.105.
53

Macondes de Moçambique”138.

Como observou Rui Pereira (2002) foi a partir da reorientação da política colonial
portuguesa que ocorreu na segunda metade dos anos 1950 – no rescaldo da Conferência de
Bandung - que se tornou não só possível, mas necessário o desenvolvimento de estudos de
natureza antropológica nas ex-colônias, de forma a proporcionar às autoridades coloniais
portuguesas os meios para gerir política e socialmente as consciências das populações
africanas, na tentativa de impedir o desenvolvimento de um clima favorável às aspirações
independentistas.139

Foi neste contexto - e antes mesmo do estabelecimento da educação universitária em


Moçambique - que foi criado pelo decreto nº 40:078 de 2 de Abril de 1955 o Instituto de
Investigação Científica de Moçambique140 (IICM), que pretendia ser “na província de
Moçambique, o Centro mais activo141 de investigação das várias ciências, arquivo de
materiais, centro de formação, de documentação e de informação142”.

Um dos seus objectivos principais era o de, na Colônia, desenvolver de forma directa,
prolongada e intensiva, investigação científica, tecnológica, econômica e sociológica. O seu
pendor analítico ligava-se fundamentalmente à pesquisa social “aplicada” (sem deixar no
entanto de também realizar pesquisa de carácter mas especulativo, ou desinteressado), que
procurava, segundo os seus proponentes, “contribuir para o desenvolvimento econômico e
social da província e do continente africano em geral, por meio do estudo de problemas
locais. Estes “estudos técnicos”, tinham também o objectivo de “contribuir para a solução dos

138
Os “Macondes de Moçambique” de Jorge Dias em 4 volumes cobre toda a cultura dos Macondes (grupo
étnico presente no Norte de Moçambique). O primeiro cobre a história, ecologia e economia dos Macondes; o
segundo aborda a cultura material. O terceiro e quarto versam sobre a vida social, religião, arte e literatura
oral. Professor Dias fornece capítulos detalhados sobre a caça, a aldeia como unidade local, a arquitetura
doméstica, alimentação, bebidas, ornamento do corpo, tatuagens e técnica de escultura em Madeira e ferro.
Esta obra teve também a participação de sua esposa, a antropóloga alemã, Margot Dias que contribuiu com
um capítulo sobre cultura material.
139
LEAL, 1998, p.214.
140
Segundo PACHALEQUE, Calisto et al. “O IICM foi criado em 1955, mas só entrou em funcionamento em
1957, quando foi aprovado o seu regulamento.”, op.cit , p.14,.
141
Não obstante existirem na colónia, outras instituições de pesquisa, como o Instituto de Investigação
Agronómica de Moçambique, e o Instituto de Investigação Veterinária. Vide, BRITO, Luís Manuel Cerqueira
de. Luís Manuel Cerqueira de Brito (depoimento, 2008). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ;
ISCTE/IUL, 2010. 16 p.
IICM – Necessidades, problemas e perspectivas de desenvolvimento, Actividade em 1959 – Plano de trabalhos
para 1960, Lourenço Marques, Dezembro de 1959.
142
Pachaleque, Calisto. et al., 1993,p.3.
54

mais urgentes problemas práticos143”.

Esta instituição de pesquisa dependia do ministério do Ultramar, por intermédio do


governo-geral e da Junta de Investigação do Ultramar144. Era, no entanto, uma instituição
independente da EGUM/ULM, mas mantinha uma estreita colaboração na área de ensino e
pesquisa145. Tinha sido atribuído ao IICM um carácter de polivalência daí então o seu campo
de pesquisa ser bastante diversificado, englobando as áreas da biologia, ciência da terra e as
Ciências Sociais. Era assim, o único organismo da província em cuja estrutura tinha sido
considerado o estudo das Ciências Humanas e Sociais146.

A secção das Ciências Sociais competia efectuar estudos nos domínios da Etnografia,
Etnologia, Sociologia, História, Pré-História, Proto-História, Etno-História, Linguística,
Antropologia e Geografia Humana147. A área da pesquisa social funcionava com poucos
investigadores efectivos, tendo no entanto, a contribuição permanente de colaboradores e
investigadores associados, que acabaram sendo actores chaves para a própria existência do
Instituto148. De acordo com Pachaleque, um factor que limitava o crescimento do quadro
científico na área das Ciências Sociais do Instituto tinha sido,

O fraco desenvolvimento destas ciências em Portugal repercutiu


no número e na qualidade de especialistas disponíveis neste
domínio de saber. Assim, a existência de colaboradores permitia
superar alguns desses vazios e consentia ao IICM a
possibilidade de ter investigadores disseminados por várias
partes do país. [...] nota importante é que muitos destes
colaboradores não possuíam formação específica em Ciências
Sociais. Estamos aqui a falar de pessoas ligadas à administração
colonial e aos oficiais do exército.149

143
IICM, 1959, op.cit, p.3
144
IICM, 1959, op.cit,
145
PACHALEQUE, Calisto. et al. 1993, op.cit. p.14.
146
IICM, 1959, op.cit,p.62.
147
IICM, 1959, op.cit, p.3.
148
Ibid. p.14.
149
PACHALEQUE, Calisto. et al. 1993, op.cit, p.16.
55

Em 1965 o IICM lançou uma revista, “Memórias”, destinada a publicação, em três


séries, de trabalhos sobre Ciências Biológicas (Série A) Geográfico-Geológicas (Série B), E
Ciências Humanas (Série C). A serie “C”150 tinha um foco de análise bastante diversificado,
publicando trabalhos sobre migrações dos trabalhadores “indígenas” de Moçambique para a
África do Sul e internas, Antropologia física e serológica dos negros de Moçambique, Etno-
História, Linguística, Demografia, crenças e práticas mágicas e Etnomusicologia,151

A revista “Memórias”, surgida no contexto da nova historiografia pós-1960152, incluía


já estudos interessantes e em claro distanciamento do olhar etnocêntrico da primeira fase da
pesquisa colonial. Encontramos por exemplo o estudo aprofundado de Leonor Correia de
Matos, “Origens do povo Chope segundo a tradição oral153”, onde a autora faz uma
reconstrução histórica do povo Chopi, destrinçando os vários grupos sociais que o constituíam
e não de olhá-los como um grupo estanque e homogêneo.

Na mesma senda, esta pesquisa rompia com a historiografia clássica colonial ao


privilegiar o método das fontes orais na reconstituição das origen(s) do povo Chopi.
Encontramos também o texto do administrador colonial e antropólogo, Antonio Rita-Ferreira,
“Etno-História e cultura tradicional do grupo Anguni154 que na óptica de Bender e Isaacman,
“deveria preencher uma grande lacuna no nosso conhecimento sobre o Moçambique pré-
colonial.155 É de referir também, que este trabalho antropológico de Rita-Ferreira estava
profundamente influenciado pela historiografia africana moderna e de autores não
portugueses como os historiadores Gerard Liesegang, Malyn Newitt, Douglas L. Wheeler, etc.

Em relação a esta diversidade de temas publicados nesta revista, é preciso no entanto


referir, que não havia ainda nesta publicação, por exemplo, estudos críticos sobre a presença
colonial portuguesa em Moçambique, campanhas anti-portuguesas dos reinos de

150
No levantamento bibliográfico por mim efectuado, durante o período em que decorreu este estudo, foram
somente encontrados, nas instalações do CEA/UEM, 7 exemplares das Memórias do IICM, serie “C”.
151
PACHALEQUE, Calisto, op.cit.p.14.
152
BENDER & ISAACMAN, argumentam que após 1960, uma nova geração de cientistas sociais não
portugueses redefiniu as áreas vitais dos interesses de pesquisa na historiografia de Angola e Moçambique.
De acordo com estes autores o período anterior, era caracterizado por uma abordagem antropológica e
histórica eurocêntrica e racista, preocupando-se somente com aqueles aspectos “exóticos” da sociedade
moçambicana. Vide, BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit,
153
De MATOS, Leonor correia. Origens do povo Chope segundo a tradição oral. Memórias, , vol.10, IICM,
Série “C”, Lourenço Marques, 1973.
154
RITA - FERREIRA, A. Etno - História e cultura tradicional do grupo Anguni, Memórias do IICM, , vol.11,
Série “C”, Lourenço Marques, 1974.
155
BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit., p.225
56

Monomotapa, Tonga ou Manica, ou mesmo uma abordagem mais contemporânea sobre


formação de classes, religião etc. Como sabemos, a publicação das Memórias do IICM, tinha
nascido num contexto do crescente aumento dos movimentos anti-coloniais no mundo, onde
começavam também a emergir uma nova geração de cientistas sociais (fundamentalmente não
portugueses) que redefiniram as áreas vitais de pesquisa na historiografia de Moçambique.
Como observaram Bender & Isaacman (1976), enquanto muitos destes investigadores
começaram a se interessar pelas colônias, com o advento das lutas de libertação nacional,
quase todos estes tinham sido influenciados pela obra de James Duffy, Portuguese Africa
(1959), como também Black Mother (1961) de Basil Davidson.

Esta nova geração de investigadores, em nítido contraste com os seus predecessores,


rejeitavam o eurocentrismo e tratavam os colonos e comerciantes portugueses como um
elemento, muitas vezes, insignificante no desenvolvimento histórico de Moçambique. Além
do mais, eles desafiaram as interpretações portuguesas estabelecidas e atacaram “a verdadeira
alma do colonialismo português”, o mito da inexistência de racismo na colonial156 reforçada,
no período salazarista, na “ideologia do luso-tropicalismo”157 do sociólogo brasileiro Gilberto
Freyre, que, diga-se de passagem, dominava a maior parte da historiografia portuguesa158
sobre África. Um outro indicador desse afastamento da historiografia colonial, foi também a
emergência dos métodos da história oral, privilegiando assim as “vozes” africanas na
construção de uma nova história da resistência africana.

Autores como Charles Boxer, James Duffy, Allen Isaacman, Valdemir Zamparoni,
dentre outros, analisaram criticamente as relações raciais no colônia no Moçambique colonial
e demonstraram que os portugueses, frequentemente manifestavam racismo e discriminação,
não somente para com os negros africanos, mas também com os asiáticos e mestiços. Não
podemos deixar de mencionar também os nacionalistas africanos, rejeitaram e condenaram

156
BENDER & ISAACMAN, 1976,op.cit.
157
Costa Pinto afirmou que Portugal teria iniciado no sec. XV um novo tipo de civilização, devido ao seus
caráter de expansão singularmente simbiótico de união de europeu com os trópicos, e, ao lado desse novo tipo
de civilização vir-se-ia desenvolvendo um novo tipo de conhecimento ou saber dos trópicos pelo europeu,
para o qual se sugere a caracterização de lusotropicologia. Ainda de acordo com Costa Pinto, Freyre
postulado que dessa simbiose do português com os povos tropicais, originaram-se praticas fraternas de
assimilação cultura e de confluência inter-racial. Vide, COSTA PINTO, João Alberto. Gilberto Freyre e o
luso-tropicalismo como ideologia do colonialismo português (1951-19749), Revista UFG, Ano XI, nº6, Rio
de Janeiro, junho 2009, p.45-160.
158
Autores portugueses, pertencentes a Escola Colonial Superior, como Mendes Correia, Solva Cunha, Adriano
Morreira, Silva Rego e Jorge Dias, eram, de acordo com Bender e Issacman, responsáveis por formar a elite
da burocracia colonial, subscrevendo a imagem idílica de uma relação racial harmoniosa em Moçambique.
Vide, BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit.
57

profundamente o “luso-tropicalismo”, como “ um mito cruel perpetrado para cegar o mundo


para as realidades de opressão racial e exploração.”159

A eclosão da independência nacional trouxe consigo grandes mudanças a todos os


níveis na sociedade moçambicana. A universidade, bem como outras instituições de pesquisa
como o IICM, foram profundamente afectadas pelo êxodo de quadros portugueses, tanto de
professores universitários como de pesquisadores. Como afirmou Luís de Brito,

Com a independência, deu-se a partida da maior parte dos


investigadores. Os mesmos eram todos portugueses. Partiram e ficou
apenas a infra-estrutura que foi colocada na dependência da
universidade Eduardo Mondlane, ao contrário dos outros dois centros
que ficaram subordinados ao Ministério da Agricultura160.

No interior do IICM foram criados em 1976, quatro centros de investigação, todos eles
subordinados hierarquicamente à universidade: o Centro de Estudos Africanos (CEA), o
Centro de Estudos de Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos Naturais
(TBARN), o Centro de Estudos de Comunicação e por último o Centro de Ecologia161. Como
corolário do novo contexto do fim do colonialismo, a investigação em Ciências Sociais foi
dissolvida no IICM e integrada no CEA. Nascia assim uma nova instituição de pesquisa e
ensino, que iria se tornar no principal centro de produção de conhecimento no pós-
independência. Como bem observou Pachaleque,

Uma importante nota que nos salta à vista é a ruptura que se dá


com a independência. O IICM é integrado na UEM, mas surge
um outro Centro de pesquisa que acaba “ofuscando” o anterior,
mas sem o substituir em todos os domínios, pois que o CEA
ficou limitado às Ciências Sociais e como uma outra postura

159
BENDER & ISAACMAN, 1976, op.cit.
160
BRITO, Luís Manuel Cerqueira de. Luís Manuel Cerqueira de Brito (depoimento, 2008). Rio de Janeiro,
CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL, 2010. 16 p.
161
Ibid, Idem.
58

teórico-metodológica162.

Como iremos ver no próximo capítulo, a herança colonial irá afectar a educação
superior no Moçambique pós-independente, não somente na quase inexistência de
moçambicanos com nível superior, como também na carência de instituições de ensino
superior e de pesquisa em todo o país. Como vimos anteriormente, o governo português,
utilizou de facto uma política de limitar o acesso da população africana a educação, mantendo
o ingresso de negros no ensino superior muito pequeno, e nem não estava interessado nem na
criação de escolas e universidades para os autóctones e nem numa massiva alfabetização da
população africana. Por outro lado, o currículo português era explicitamente eurocêntrico,
discriminador e racista, onde apenas se ensinava os valores da cultura portuguesa, rasurando
deliberadamente toda acultura africana, vista como “retrógrada” e “selvagem”.

O grande desafio no pós-independência foi assim o de colmatar as grandes lacunas da


herança colonial, pondo a funcionar a única universidade existente no país, massificar o
acesso da população africana a educação e formar, com os pouquíssimos quadros disponíveis,
a grande maioria dos que nunca tinham tido acesso ao ensino formal. Por outro lado, houve
também uma grande campanha de solidariedade internacional a partir da qual quadros de
todas as áreas vieram a Moçambique para ajudar na reconstrução nacional do país. O CEA,
como veremos a seguir, de facto, não ficou incólume a toda esta dinâmica, atraindo de forma
surpreendente um grande número de professores e pesquisadores internacionais.

162
PACHALEQUE, Calisto. et al.,. 1993, op.cit. Em relação ao trabalho do Centro de Estudos Africanos, e essa
“outra postura teórico -metodológica” sugerida por Pachaleque, iremos abordar, com mais detalhe, no último
capítulo deste trabalho.
59

2. AS CONDICÕES SOCIAIS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO PÓS-


INDEPENDÊNCIA

A importância do contexto na compreensão das dinâmicas (internas e externas) de


pesquisa do CEA no pós-independência não deverá ser subestimada neste trabalho.
Alicerçado no paradigma da análise das condições sociais da produção do conhecimento, as
ideias, representações, teorias, enfim todo o conjunto da produção científica do CEA, serão
abordadas neste estudo, como estando intrinsecamente conectadas aos contextos particulares
(internacional, regional e nacional), nos quais foram produzidos.

Iremos deste modo, começar por aludir neste capítulo, (tendo em conta o objectivo
central deste estudo que é o de reconstituir a história intelectual do CEA), a um contexto mais
geral, e anterior à fundação do Centro, das lutas anti-imperialistas que se desencadeavam em
várias partes do mundo e que mobilizaram intelectuais e acadêmicos de “esquerda” engajados
nas lutas pela justiça social, como também em prol do desenvolvimento dos países
considerados do “terceiro mundo”. Em segundo lugar, Moçambique no contexto da África
Austral, dominado fundamentalmente pelas lutas de libertação nacional (no Zimbabwé até
1980, e ainda Namíbia163 e África do Sul164 que perduraria até aos anos 1990) e anti-apartheid
e da dependência econômica em relação ao capital sul-africano; e, por último, e não menos
importante, o contexto intelectual e histórico da tentativa165 de construção do socialismo em
Moçambique.

2.1 O contexto internacional: Descolonização, Africanistas Radicais e Solidariedade

Nos finais dos anos 1960, com as independências de muitos países africanos166,
intelectuais e activistas anti-imperialistas vindos maioritariamente da Europa (mas também de
163
O Movimento de Libertação Nacional Namibiano (SWAPO), continuou a sua estratégia combinada de luta
armada e resistência pacífica à ocupação pelo regime sul-africano do Apartheid.
164
Liderada pela luta armada e política desencadeada pelo ANC.
165
Barry Munslow, por exemplo, acredita que mesmo que nenhum estado africano tenha conseguido construir o
socialismo, houve um certo número de tentativa, e Moçambique era considerado como um deles. Vide, RAY,
Donald. Dictionary of the African Left. Vermont : Dartmouth, 1989, p.11.
166
A primeira onda das independências africanas vai de 1957 a 1968, e compreendia países como o Ghana, Mali,
Guiné Equatorial e Tanzânia.
60

países como Canadá e EUA), começaram gradualmente167 a focalizar as suas atenções para as
lutas anti-coloniais que se desencadeavam nos países africanos sob dominação colonial
portuguesa, considerados até então como o último reduto do colonialismo. Muitos destes
jovens intelectuais “progressistas”, estavam envolvidos nos seus países em lutas anti-
apartheid e de apoio aos movimentos de libertação nacional168”, organizando, por exemplo,
campanhas e manifestações anti-Portugal na Europa, de consciencialização nas suas
sociedades e no mundo em geral sobre a necessidade da descolonização urgente e de
angariação de fundos para os movimentos de libertação169.

Com as independências conquistadas, muitos deles decidiram então dedicar parte de


suas vidas na construção do socialismo nessas jovens nações africanas. Um dos primeiros
lugares onde se acreditou poder construir uma nova ordem social alternativa ao capitalismo,
tinha sido a Tanzânia, sob governo de Julius Nyerere. E foi precisamente na universidade de
Dar-es-Salaam170, que grande parte destes africanistas se “entrincheirou”. Professores e
pesquisadores do CEA como Ruth First, Jacques Depelchin, Ana Maria Gentili, Robert
Davies, Dan O´Meara, dentre outros investigadores associados, tinham estado a trabalhar
nesta universidade antes de abraçarem a causa da “revolução moçambicana”.

E havia de fato algo de especial neste lugar, para atrair tantos acadêmicos e
investigadores expatriados. Com a conquista da independência em 1961, o partido dirigente
de Julius Nyerere, procurou adoptar uma estrutura política e sistema de crenças baseados nas
premissas do socialismo democrático, onde ao sistema educacional tinha sido dado um papel
preponderante não só para reverter os efeitos negativos do colonialismo, mas também como

167
De acordo com Tony Gifford, nesses anos de 1960 as guerras de libertação desencadeadas nas três colónias
de Portugal eram escassamente reportadas ou conhecidas. Como afirmou Gifford ,”Portugal era um lugar
para ferias ao sol.” O mesmo autor refere ainda que quando o então presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane
participou em vários encontros em Oxford e Londres, ficou chocado com a ignorância dos “britânicos
progressistas” sobre o seu país. Vide, GIFFORD, Tony. Basil Davidson and the African freedom struggle.
Race & Class, nº32, 1994, pp.85-88.
168
Poderíamos aqui dar o exemplo de intelectuais radicais como Basil Davidson e John Saul que nos anos 1960,
e em momentos distintos, tinham sido convidados pelo presidente Samora Machel para visitar as “zonas
libertadas”, durante a luta de libertação nacional, sob comando da Frelimo no interior de Moçambique. Vide
GIFFORD (1994), e Revista Tempo, Maputo: Tempográfica, 27/08/78, nº412, p.36-42.
169
A criação em 1968, do Comité para a liberdade de Moçambique, mais tarde estendido para Angola e Guine
Bissau (CFMAG), é um exemplo claro deste engajamento político com esses países africanos. Este comité
chegou a frustrar a visita do então chefe de estado de Portugal, Marcelo de Caetano a Inglaterra para
comemorar os 600 anos da aliança anglo - portuguesa. Foram organizadas várias manifestações de repúdio ao
colonialismo português. Vide, GIFFORD, op.cit, 1994, p.88.
170
De acordo com Penina Mlama, até 1984, era a única universidade no país. Vide, MLAMA, Penina. “African
perspectives on programms for North Americans students in Africa: the experience of the University of Dar
es Salaam”. African Issues, vol.28, nº12, 2000, p.24-27.
61

um instrumento privilegiado para a realização dos objectivos nacionais, do desenvolvimento


econômico e o aumento das condições de vida das populações rurais171. Na mesma senda,
desde a sua fundação em 1961, a universidade de Dar-es-Salaam adoptou uma abordagem
aberta em relação ao discurso intelectual com a visão de criar uma atmosfera onde pessoas de
diferentes orientações acadêmicas e ideológicas pudessem contribuir para o debate intelectual.

O primeiro grupo de pesquisadores foi recrutado de várias partes do mundo. Não


obstante, durante o período da construção do socialismo na Tanzânia (que começou em 1967)
o currículo ser claramente de orientação socialista, foram recrutados para a universidade
expatriados tanto com antecedentes acadêmicos socialistas como capitalistas. (por exemplo a
investigadora do CEA, nacionalidade americana, Bridget O’Laughilin). De facto, nos anos
1970 esta mistura criou um debate intelectual muito aceso na universidade, onde acadêmicos
de orientação marxista e capitalista desafiavam-se no debate sobre a validade das suas
posições intelectuais vis a vis o desenvolvimento da sociedade tanzaniana. Este debate
embora tenha sido algumas vezes frustrante para as pessoas com posições rígidas, criou um
ambiente intelectual fértil para professores e estudantes172.

Estava-se, por outro lado, num contexto internacional de grandes mudanças sociais e
políticas. O advento dos movimentos nacionalistas em África, a polarização do mundo
resultante da guerra fria, a guerra do Vietname (1959-1975), mas também a manifestação
estudantil francesa que teria repercussões em países industrializados como os EUA, Japão,
dentre outros. O “Maio de 68”, que tinha emergido a partir de “grupos de esquerda revoltados
“contra a sociedade de consumo”, o ensino tradicional e a insuficiência de saídas
profissionais173” iria ter um grande impacto na mudança das mentalidades na sociedade
francesa.

A abertura à novas ideias tornou num dos motes planetários desta geração de 68,
aumentando a contestação por parte dos intelectuais: o aparecimento e a divulgação de
trabalhos efectuados na área das Ciências Sociais e Humanas tornam-se numa realidade cada

171
Para uma leitura mais atenta sobre a ligação entre processos políticos e a educação na Tanzania pós -
independente, vide, BLOCK, Leslie. National development policy and outcomes at the University of Dar es
Salaam. African Studies Review, vol.27, nº1, March, 1984, p.97-115.
172
Vide, MLAMA, Penina. African perspectives on programms for North Americans students in Africa: the
experience of the University of Dar es Salaam. African Issues, vol.28, nº12, 2000, p.24-27.
173
Maio de 68: Infopédia, Porto: Porto Editora, 2003-2010. Disponível em: www: <URL:
http://www.infopedia.pt/$maio-de-68>. Acesso em 20/10/2008.
62

vez mais forte no mundo científico francês.174. Depois do “Maio de 68”, deu-se uma explosão
do pensamento marxista, com autores como Hebert Marcurse, Jurgen Habermas, Jean-Paul
Sartre Guy Debord, em contraponto, à aquela concepção das Ciências Sociais exclusivamente
empírica, ou mesmo da sociologia dominada pelo funcionalismo americano175.

No que se referia ao estudo de África, até cerca de 1950, este estava, como vimos no
capitulo anterior, hegemonicamente dominado pela disciplina da Antropologia, criada
propositadamente para analisar aqueles considerados como os povos “atrasados”. Era assim
uma disciplina extremamente anti-histórica e eurocêntrica. Os seus seguidores eram
fundamentalmente pesquisadores europeus treinados em universidades, mas também,
missionários e administradores coloniais. Enfim, uma ciência ao serviço do poder colonial e
que a partir de conceitos como “tribo”, “aculturação cultural” procuravam no final legitimar a
presença colonial em África.

De acordo com Immanuel Wallerstein (1983), as mudanças começaram a emergir com


o advento, a partir dos anos 1950, dos nacionalismos africanos na forma de movimentos
políticos. Estes movimentos nacionalistas, segundo Immanuel Wallerstein, defendiam que a
arena primária da acção social e política, em termos de legitimidade e de objecto epistémico
era e deveria ser o Estado colonial ou a ideia de nação, e não a “tribo”. Argumentavam ainda
que a ênfase nas “tribos” e “tribalismo” era um instrumento central das autoridades coloniais
para manter a dominação colonial, e como consequência, eles formalmente deploravam o
estudo das “tribos”176.

Em segundo lugar, os movimentos nacionalistas afirmavam que a relação entre


europeus e africanos não tinha sido no sentido de “contacto cultural”, mas em vez disso, de
uma “situação colonial”, que deveria terminar. É assim que Immanuel Wallerstein afirma que
“num mundo que se estava a descolonizar, os estudos africanos foram drasticamente
redefinidos177”. As colônias africanas – tornando-se Estados independentes – pareciam agora
exibir, processos econômicos sociais e políticos suficientemente similares daqueles do

174
Maio de 68. In: Infopédia, Porto Editora, 2003-2010.
Disponível em: www: <URL: http://www.infopedia.pt/$maio-de-68>.Acesso em 27/10/2008.
175
Para uma leitura mais atenta deste fenómeno, vide, BOTTOMORE , Tom & Laurence, Harris. A Dictionary
of Marxist Thought, Blackwell Publishing, 2nd edition, 1998; ROIZ, Diogo da Silva A ‘crise de paradigmas’
nas Ciências Sociais, uma questão relativa à teoria da história? Topoi, v. 7, nº 12, jan.-jun. 2006, p. 261-266.
176
WALLERSTEIN, Immanuel. The evolving role of the Africa Scholar in African Studies. Canadian Journal of
African Studies, vol. 17, nº 1, 1983, p. 9-16.
177
Ibid, Idem..
63

ocidente, de forma que poderiam ser vistas como um domínio normal de cientistas políticos,
economistas e sociólogos. Como afirmara Immanuel Wallerstein (1983), o “Estado/Nação foi
agora o locus da acção social e a agência africana fornecia o foco dinâmico da análise178”.
Deu-se também uma mudança drástica da composição social dos estudiosos de África. Um
campo que até então se caracterizara, quase exclusivamente, por ser formado por estudiosos
europeus de países coloniais, passava agora a ser transformado por pesquisadores vindos de
outras partes do mundo, como também de um grupo, ainda que reduzido, de pesquisadores
africanos179.

Peter Waterman (1973), propôs o termo genérico de “radical”, para caracterizar a


emergência desta nova tendência na produção científica sobre África, que procurava se
distanciar daquele conhecimento convencional, produto essencialmente da dominação
colonial. Para este autor havia três aspectos desse “radicalismo” nos estudos africanos.
Primeiro, o “radicalismo como um compromisso” (radicalism as a commitment180), onde a
maioria desses africanistas radicais declaravam ou revelavam nos seus escritos um claro
compromisso moral e político. Ainda segundo Peter Waterman, isto era geralmente formulado
em termos de uma oposição ao imperialismo (visto como um sistema social que dominava a
África politicamente e explorava economicamente) e - de uma forma mais positiva – em
termos de uma preocupação pelas massas africanas e uma preferência pela economia
socialista e estratégia política. Daí então a historiadora italiana e pesquisadora do CEA, Ana
Maria Gentili não deixar de enfatizar,

Nós fomos a geração da descolonização. Éramos todos idealistas e


progressistas, no sentido de pensar que o conteúdo das independências
não era só a liberdade política, não era somente de transformar
indivíduos em cidadãos mas era também a justiça social.181

178
WALLERSTEIN, Immanuel. The evolving role of the Africa Scholar in African Studies. Canadian Journal
of African Studies, vol. 17, nº. 1, p. 9-16, 1983.
179
A produção da História Geral da África pela UNESCO em 1963 (tendo sido publicado o 1º volume em 1971)
a pedido da Organização da Unidade Africana (OUA), com o objectivo de substituir os livros até então usados
nas escolas africanas, que estavam carregados de preconceitos, etnocentrismo e que enalteciam os valores da
civilização do colonizador, pode ser considerados como um dos grandes marcos desta mudança radical na
historiografia africana.
180
Vide, WATERMAN, Peter. On Radicalism in African Studies. Politics and Society, nº3, p.261-281, p.266,
1973.
181
Entrevista com Ana Maria Gentili, junho de 2007.
64

E podia ainda ser um compromisso radical ainda mais específico do que esse, quando
por exemplo, Bridget O’Laughilin, antropóloga americana e pesquisadora do CEA afirmou,
“nós estávamos comprometidos sim com o poder, com a estratégia socialista da FRELIMO,
mas isso não significava que tínhamos um mandato do partido, quando íamos ao campo fazer
investigação”.182

O segundo aspecto seria o “ radicalismo como uma abordagem” (radicalism as an


approach), na medida em que esses sujeitos tinham também um grande interesse na teoria e
método nos estudos africanos. Só assim poderemos compreender, por exemplo, a preocupação
no pós-independência da FRELIMO e como também de toda a universidade em rejeitar o
conhecimento colonial produzido sobre África e Moçambique e de alocar todos os seus
esforços intelectuais na reconstrução de uma nova historiografia moçambicana,
“revolucionária”.

O terceiro aspecto, “radicalismo como um interesse”(radicalism as an interest), estava


relacionado com a emergência, durante estes primeiros anos das independências africanas
daquilo a que Peter Waterman chamou de “disciplinas da linha da frente (front-line
disciplines), nos quais eram abordados os problemas considerados politicamente de extrema
importância. A primeira disciplina a tomar a dianteira nos anos 1950, seria como asseverava
Basil Davidson, (que pode ser considerado como um dos epítomes desta geração de
africanistas radicais), a História183. De facto, nos primeiros anos das independências de
África, esta disciplina teve o papel mais importante na reconstrução intelectual da experiência
africana. Enfim, na produção de uma nova historiografia moçambicana a partir dos sujeitos
africanos, com o objectivo subjacente de “manufacturar” os mitos fundadores necessários
para a legitimação do grupo político dominante184. Foi também a partir da disciplina de
história, produzida por estes africanistas radicais, que se deu a inauguração de um campo de
pesquisa, de grande rigor cientifico e fortemente baseada em pesquisas empíricas185.

Moçambique, “um país que ainda estava livre de todas as engrenagens que existiam na

182
Entrevista com a autora, agosto, 2007.
183
Vide, WATERMAN, 1973, op.cit, p.275.
184
Vide, WATERMAN, Peter. On Radicalism in African Studies. In, Politics and Society, Nº3, 1973, pp.261-
281, p.266.
185
Poderíamos aqui dar o exemplo da produção, nos princípios dos anos 1980, dos 8 volumes da Historia Geral
da África organizada pela UNESCO.
65

Europa186”, acabou se tornando, de facto, num dos lugares que iria receber mobilizar grande
parte destes africanistas “pés vermelhos187, na procura de sonhos revolucionários,188 que eles
não podiam realizar nas suas próprias sociedades, ou de gratificações psíquicas de campanhas
de “solidariedade189”. Como afirmou Teresa Cruz e Silva,

Muitos vinham com a curiosidade de ver Moçambique em formação.


Professores como Pierre-Philip Rey, Catherine Coquery-Vidrovitch,
da escola francesa, etc. Também vieram cá os chilenos e os brasileiros
de esquerda. Nós beneficiamos de coisas incríveis do Philip Rey e de
todas as pessoas da escola francesa, americana, inglesa190.

E havia, de facto, todo um contexto social e político favorável: a euforia colectiva


surgida com a conquista da independência nacional em 1975191, através de uma luta armada
sob direcção da FRELIMO192; a sua transformação, vinte meses depois, em Fevereiro de
1977, em um partido marxista-leninista, “engajado na tarefa da construção de uma base
material, técnica, ideológica e política para o desenvolvimento de uma sociedade socialista

186
Jean-Luc Godard, cineasta francês, a quando da sua visita a Moçambique em 1978, para a produção de
“filmes de pesquisa”. Vide, Jornal Noticias, 21/08/78, p.4.
187
Tom Young empresta este termo de Patrick Chabal em People´s war, state formation and revolution in Africa:
a comparative analysis of Mozambique, Guinea-Bissau and Angola. Journal of Commonwealth and
Comparative Politics, nº 21, 1983, p.104-25.
188
E foi mesmo Bridget O’Laughilin quem afirmou durante a entrevista, que durante os anos em que estes
pesquisadores cooperantes viveram em Moçambique, “sentíamos que estávamos a viver uma revolução”.
189
Tradução minha: Writing on post-independence Mozambique remains dominated by “redfeet” in pursuit of
revolutionary dreams that they cannot attain in their own societies or of the psychic rewards of “solidarity”
campaings. Ver, YOUNG, Tom, op.cit.,1990).
190
Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007.
191
Depois de um processo político longo de negociações com o governo português, iniciado com o golpe de
Estado em Portugal em 1974. Vide, MITLEMAN, James, State Power in Mozambique. A Journal of Opinion,
vol.8, nº1, 1978, p.4-11.
192
Frente de Libertação de Moçambique. Foi fundada em 1962 a parti da fusão de 3 outras organizações
nacionalistas anticoloniais constituída por moçambicanos no exílio, nomeadamente a MANU, UDENAMO e
UNAMI. Para uma leitura mais aprofundada do nascimento dos movimentos nacionalistas em Mocambique
vide, .ALPERS, Edward. “Ethnicity, Politics, and History in Mozambique”, Africa Today, Vol. 21, No. 4
(Autumn, 1974), pp. 39-52; OPELLO Jr, Walter C. Pluralism and Elite Conflict in an Independence
Movement: FRELIMO in the 1960s. Journal of Southern African Studies, Vol. 2, nº 1, Outubro, 1975, p. 66-
82; ISAACMAN Allen. e ISAACMAN, Barbara. Mozambique: from colonialism to Revolution, 1900 -1982,
Boulder, Colorado: Westview Press, 1983; NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London : Hurst &
Company, , 1995.
66

em Moçambique193”. Por outro lado, a FRELIMO tinha sabido representar-se


194
internacionalmente, tinha superado os conflitos internos (diferentemente de Angola, que se
“digladiava” internamente). Representava assim uma nova esperança para estes pesquisadores
e activistas políticos na geopolítica da guerra fria rumo à construção do socialismo em
África. Como afirmou Dan O´Meara,

Todo o pesquisador filiado ao CEA via o seu trabalho “acadêmico”


como profundamente politicamente engajado. Nós todos
acreditávamos que tínhamos um compromisso com o socialismo em
Moçambique e com a libertação da África do Sul e Namíbia e tudo o
que nós fizemos foi moldado por isso195.

Foi assim este compromisso com o projecto socialista da FRELIMO que mobilizou
grande parte destes investigadores e, como veremos ao longo deste estudo, deu um contributo
significativo ao desenvolvimento da pesquisa em Ciências Sociais, na formação de
investigadores e quadros do aparelho de Estado sobre métodos e técnicas de pesquisa social
como também na produção de conhecimento socialmente relevante sobre a economia política
de Moçambique.

Pesquisadores e docentes como Ruth First, Marc Wuyts, Bridget O’Laughilin, Jacques
Depelchin, Ana Maria Gentili, Dan O’Meara, Judith Head, Robert Davies, dentre outros iriam
ter um papel crucial no desenvolvimento do ensino e da pesquisa aplicada em Ciências
Sociais, focalizada na actualidade moçambicana e onde se conjugava, investigação de campo
intensiva, análise documental e tratamento dos dados, num processo de pesquisa
fundamentalmente colectivo. Luís de Brito não deixou de referir ao papel deste pesquisadores
cooperantes196 na formação de investigadores nacionais e no próprio fortalecimento da

193
Frelimo, Programa e Estatutos (Maputo: Departamento de Trabalho Ideológico da Frelimo, 1977), p.8.
194
Para uma leitura mais aprofundada sobre estes conflitos (lutas pelo poder, etnicidade, lutas ideológicas) no da
Frelimo, ver por exemplo, ALPERS, Edward. Ethnicity, Politics, and History in Mozambique. Africa Today,
Vol. 21, No. 4 (Autumn, 1974), pp. 39-52; OPELLO Jr, Walter C. “Pluralism and Elite Conflict in an
Independence Movement: FRELIMO in the 1960s. Journal of Southern African Studies, vol. 2, nº. 1,
Outubro, 1975, p. 66-82; CABRITA, João, The Tortourous Road to Democracy, New York:Palgrave, 2000.
195
Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007.
196
Segundo Mário Azevedo, este termo era usado pela Frelimo para designar os nacionais estrangeiros que
simpatizavam com os seus objectivos socialistas e que estavam prontos ajudar e a implementá-los. Vide,
AZEVEDO, Mário. Historical Dictionary of Mozambique, The Scarecrow Press, Inc., 1991.
67

pesquisa no pós-independência,

A pesquisa para o “Mineiro Moçambicano197”, as técnicas de


inquérito, todas aquelas questões sobre as histórias de vida dos
mineiros, empregos, salários; enfim, todo esse realismo da pesquisa,
foi devido a essa interacção, porque nós não estávamos preparados.
Foram eles, sob direcção da Ruth First que nos trouxeram, e como nós
participávamos: aprendemos. É diferente de termos uma cadeira de
Métodos e falar de teoria: é muito abstracto, mas quando a pessoa está
no terreno e tem ali os interlocutores (…) essa foi a grande riqueza.
Por isso, é que as pessoas daquela época têm uma certa solidez que
depois foi-se perdendo. Foi uma formação muito baseada na prática,
não simplesmente em leituras teóricas198.

Na mesma senda, Teresa Cruz e Silva afirma,

Tudo o que sou hoje devo ao que aprendi aqui neste Centro. A Ruth e
o Aquino nos ensinaram duas coisas que para mim foram importantes
para o resto da minha vida: a questionar sempre. A dúvida metódica
era o ponto central. E por outro lado, nós passamos por uma escola
portuguesa, tradicional, etc., para um ensino anglo-saxónico aberto no
Curso de Desenvolvimento. Nas investigações que fazíamos, nós
aprendíamos fazendo. Aprendemos a interrogar, a ir directo aos
assuntos e a nunca ter respostas definitivas; a ter um espírito crítico, a
fazer análises e aprender que estamos sempre a aprender199.

É de ressaltar, que não se pretende com este argumento, caracterizar o trabalho de


pesquisa e ensino do que viria a ser o Centro de Estudos Africanos (CEA) a partir da
nacionalidade dos seus pesquisadores, mas unicamente de enfatizar a sua contribuição no

197
Foi o primeiro grande projecto do CEA sob direcção de Ruth First. Pode ser considerado como o trabalho
mais aprofundando que ao Centro realizou durante o período em análise. A pesquisa era basicamente sobre o
fluxo migratório de moçambicanos para as minas de ouro da África do sul e seu impacto na economia
moçambicano no pós–independência. Esta obra será discutida com mais detalhe no capítulo quatro.
198
Entrevista com Luís de Brito, agosto,2007.
199
Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007.
68

fortalecimento da pesquisa em Ciências Sociais durante a primeira década do pós-


independência. Como ressaltou Yussuf Adam, “no Centro não fazíamos distinção entre
nacionais e estrangeiros.”200 Se o conceito de “nacionalidade” tivesse que ser empregue aqui,
seria mais no sentido da “nacionalidade” da pesquisa do CEA, (e não dos seus
investigadores), uma vez que durante o período da “transição socialista” em Moçambique, o
CEA, como veremos ao longo deste estudo, procurou desenvolver um tipo de pesquisa
(maioritariamente colectiva) com particular enfoque em temas da economia política de
Moçambique (tendo em conta o legado colonial e o contexto da África Austral), como
também na análise da transformação social e socialização do campo na sociedade
moçambicana.

No entanto, não podemos descurar do facto de que estes investigadores cooperantes,


eram aqueles que detinham, parafraseando Pierre Bourdieu (1988), o “maior volume de
capital específico” e neste caso, “capital cultural”201, situando-os, como veremos, no próximo
capítulo, em posições de liderança na pesquisa e ensino. Portanto, eram estes investigadores
cooperantes, que davam “a última palavra”202 na definição das prioridades de pesquisa, na
escolha dos objectos de estudo, como também na organização curricular do ensino através do
seu primeiro curso de pós-graduação em estudos de Desenvolvimento no país.

Esta posição dominante dos cooperantes no campo da pesquisa e ensino, significou


também ocupar uma posição sensível no relacionamento da instituição com as estruturas do
poder político, principalmente quando o Centro produzia estudos que examinavam
criticamente o trabalho ou as políticas do Partido/Estado. Daí então Bridget O’Laughilin
afirmar,

São posições que são arriscadas, principalmente porque éramos um


Centro com muitos estrangeiros dentro e que não tinham legitimidade
(…), Se tivéssemos mais investigadores moçambicanos, já
estabelecidos, formados, se o Centro fosse isso, possivelmente
teríamos mais intervenções de facto de cada grupo.203

200
Entrevista com Yussuf Adam, julho 2007.
201
BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus, California:Stanford, University Press, 1988.
202
Apesar de o CEA ter como principio, o debate de ideias, franco e aberto entre professores e alunos, mesmo
em questões relacionadas com as prioridades de pesquisa e do ensino, como também na definição e
organização dos projectos de pesquisa.
203
Entrevista com Bridget O'Laughilin, agosto, 2007.
69

Esta carência de pesquisadores moçambicanos “já estabelecidos”, bem como o facto


de o CEA congregar “muitos estrangeiros”, iria se tornar numa das grandes preocupações de
Aquino de Bragança. Como afirmou Marc Wuyts, economista belga e investigador do Centro,
para o seu director estava em questão antes de tudo, a própria identidade do CEA204. A
mobilização de jovens historiadores moçambicanos (em torno do que viria a ser conhecido
com ao Oficina de História), na produção de uma pesquisa empírica sobre a história da luta
de libertação nacional, pode também ser lida como um das formas que Aquino de Bragança
encontrou de garantir o protagonismo dos moçambicanos na direcção da pesquisa do CEA.

2.2 Moçambique e a Utopia Socialista: Dinâmicas Internas e Regionais

Na historiografia sobre Moçambique pós-independente, particularmente durante os


primeiros dez anos, deparamos, com duas grandes posições divergentes205. Esta divergência
está intrinsecamente ligada a questão da interpretação histórica do conflito entre a FRELIMO
e a RENAMO. Por um lado, encontrávamos principalmente autores, como John Saul e Joseph
Hanlon, que nutrindo uma certa simpatia pelo projecto ideológico da FRELIMO, olhavam
para o fenómeno do conflito armado apenas na sua dimensão externa: a RENAMO
simplesmente como “fantoches”206, primeiro sob dependência total da Rodésia e mais tarde da
África do Sul. De outro lado, encontrávamos autores como Christian Geffray, Luís de Brito e
Michel Cahen, que realçavam os factores internos do conflito. Quer dizer, o
descontentamento popular e o fracasso do projecto ideológico da FRELIMO, como o factor
preponderante do alastramento do conflito em todo o país, tornando assim numa “guerra
civil” e não mais numa “guerra de desestabilização”. Autores como Michel Cahen e Marina
Ottaway, chegam até a argumentar que a FRELIMO nunca chegou a ser um partido leninista
de vanguarda e nem Moçambique tinha sido um país socialista. Como afirmou Ottaway, tudo
não passou de um “socialismo simbólico207”.

Como foi sublinhado no capítulo introdutório, este trabalho não pretende se deter em

204
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
205
Vide, DINERMAN, Alice. Revolution, Counter-Revolution and Revisionism in Postcolonial Africa: The
Case of Mozambique, 1975-1994, New York: Routledge, 2006.
206
Vide por ex., YOUNG, Tom. The MNR/RENAMO: External and Internal Dynamics. African Affairs, vol.
89, nº. 357, Outubro, 1990, p. 491-509.
207
OTTAWAY, Marina. Mozambique: From simbolic socialism to simbolic reform. The Journal of Modern
African Studies, vol. 26, nº2, Junho, 1988, p.211-226.
70

elucubrações sobre se Moçambique foi ou não um país socialista, mas sim de estabelecer as
conexões entre uma ordem discursiva que se pretendia hegemônica (o projecto socialista da
FRELIMO para toda ao sociedade) e as dinâmicas de pesquisa de uma instituição de produção
de conhecimento, o CEA. Assim, nesta secção iremos traçar em linhas gerais todo o contexto
histórico do período que vai de 1975 a 1990208, que tanto em termos “simbólicos” como o que
ia acontecendo na prática, foi fortemente marcado pela tentativa do poder de constituir uma
sociedade socialista.

É assim quem sem seguida iremos apresentar, de forma esquemática, uma


periodização (quatro grandes fases209) do que foi, para usar um termo de João Mosca (1999) a
“experiência socialista em Moçambique”. O primeiro período (1962-1974) marca o início da
fundação da FRELIMO e posterior desencadeamento da luta armada, e que culminou com as
negociações de paz com o governo português em Abril de 1974, e a independência nacional
em 1975. O segundo (1975-1980), marca o início dos primeiros anos “eufóricos” da
independência, da transformação da Frelimo em um auto-intitulado “partido de vanguarda
marxista-Leninista”. É no entanto também o período do inicio do conflito armado contra a
Renamo e da progressiva crise econômica. O terceiro período (1980-1984) tem como marco
simbólico os acordos de “boa vizinhança” (Acordos de Nkomati), assinados pelo governo
moçambicano e o regime sul-africano. O último período (1984-1990), caracteriza-se pela
introdução de reformas econômicas em Moçambique, com os acordos com as instituições do
Bretton Woods pressionaram o governo a uma maior abertura para a economia de mercado e
investimento privado. Esta fase (que é também o limite cronológico deste trabalho), irá
culminar com a institucionalização da nova constituição de Moçambique, que significaria a
abertura para um sistema de democracia multipartidária.

Escolhemos este recorte cronológico da história contemporânea de Moçambique,


porque põe a ênfase em momentos históricos particulares que de certa forma se interconectam
com a própria história do CEA. Senão vejamos, o segundo período (1975-1980), marca
também uma fase do CEA em que foi produzida a obra, que será oportunamente discutida, “A
Questão Rodesiana”, sem ainda a presença de Ruth First como directora científica do CEA.
Em segundo lugar, esta periodização põe a ênfase nos “acordos de não-agressão” (Nkomati),
assinados entre Moçambique e África do Sul, e que teve um grande impacto na história do
CEA, uma vez uma das cláusulas do acordo era o de a FRELIMO teria que deixar de

208
Como afirmamos na introdução este limites cronológicos não devem ser vistos de forma absoluta.
71

“hospedar” em seu território membros do ANC. Como iremos discutir neste estudo, alguns
investigadores do CEA, pertenciam as hierarquias mais altas desta organização clandestina,
onde, a partir do seu lugar no Centro, produziam conhecimento relevante para a luta política e
armada do ANC contra o regime sul-africano. Após os Acordos de Nkomati, a maioria destes
investigadores abandonou o Centro e Moçambique.

2.2.1 Da Luta de libertação Colonial em Moçambique ao golpe de Estado em Portugal:


1962 – 1974

Não obstante, encontramos no interior de Moçambique uma resistência ao


colonialismo datando do século XIX, através fundamentalmente da imprensa e da
literatura210, foi somente com o desencadear da luta armada me 1964 que o colonialismo
português foi seriamente desafiado. Por outro lado, a pressão externa, nos anos 1950, com o
advento da descolonização na maioria dos países africanos e a entrada de Portugal nas Nações
Unidas, onde este organismo internacional começou insistentemente a pressioná-lo para a
abdicação das suas colônias africanas. Contudo, Portugal não tinha nenhuma intenção de
renunciar ao seu tão almejado “império africano”. Como foi visto no capítulo anterior,
Portugal tentou pode várias formas “suavizar” a sua dominação colonial, encetando mudanças
“cosméticas” de estatuto de Moçambique de “colônia” para “província “. Por outro lado, foi
gradualmente apertando ainda mais o seu poder colonial. Como afirmou Newitt (1995),

Um Estado burocrático centralizado apoiado por uma policia de


segurança efectiva que assegurava que a população, tanto branca
como negra estivesse desintegrada e desorganizada dentro dela
mesma. Reforçada ainda pelo nível baixo de escolaridade da maioria
da população e da falta de quaisquer organizações africanas ou
sindicatos profissionais211.

210
Para uma leitura mais detalhada sobre este tema, vide, HENRIKSON, 1978, op.cit. ISAACMAN, Allen,
Colonial Mozambique an Inside View: The Life History of Raul Honwana. Cahiers d´Études Africaines, vol.
2, Cahier 109, Memoirs, Histoires, Identites, 1988, pp.59-88; PENVENNE, Jeanne Marie. Joao dos Santos
Albasini ( 1876-1922): The contradictions of politics and identity in colonial Mozambique. The Journal of
African History, Vol.37, nº3, 1996, p.419-464; ZAMPARONI,Valdemir. De Escravo a Cozinheiro –
Colonialismo e racismo em Moçambique, Salvador: EdUFBA,, 2007.
211
NEWITT, 1995, op.cit, p.520.
72

No entanto, certos aspectos da evolução histórica de Moçambique iriam seguir outros


contornos. Como sabemos, uma grande parte da população africana em todo o território
nacional tinha sido, de alguma forma, afectada pelo trabalho migratório. Estes moçambicanos
no estrangeiro viriam assim a ser expostos a várias formas de participação política e do
pensamento moderno e, muitos destes, ir-se-iam envolver activamente nas questões políticas
dos países de acolhimento212. Daí então a emergência, nos anos 1960, nesses países dos
primeiros movimentos nacionalistas moçambicanos: a União Democrática Nacional de
Moçambique (UDENAMO) fundada em Bulawayo (atual Zimbabwé), a Mozambique African
National Union (MANU) no Quénia e Tanzânia e a União Nacional Moçambicana
Independente (UNAMI) constituída no Malawi213. Em 1962, por encorajamento do presidente
da Tanzânia Julius Nyerere, do Gana, Kwame Nkrumah, mas também do CONCP214, estes
três movimentos se fundem, tendo como resultado a criação da Frente de Libertação de
Moçambique (FRELIMO), cujo presidente tinha sido escolhido, Eduardo Mondlane,
doutorado em Antropologia pela Northwestern University, professor na universidade de
Syracuse em Nova Yorque e funcionário das Nações Unidas.215.

A insurreição armada foi então desencadeada em 1964, não obstante quando da


fundação da FRELIMO não ter havido consenso sobre se deveriam ou não embarcar num
confronto bélico com os portugueses216. Passados doze anos, a luta armada levada a cabo pela
FRELIMO217 foi abruptamente interrompida, no dia 25 de Abril de 1974 pelo golpe de Estado
em Portugal, resultante das contradições de uma guerra imperial contra os movimentos de
libertação, da insatisfação de jovens oficiais das forcas armadas em relação a maus salários,

212
É preciso referir que para alem destes imigrantes que viviam em países como Malawi, Zâmbia, Zimbabwé,
Tanzânia, havia um pequeno grupo de moçambicanos a estudar em Portugal como também nos EUA.
213
Para mais informações sobre estes grupos nacionalistas, vide, OPELLO, Walter, Jr. Elite Conflict in an
Independence Movement: FRELIMO in the 1960s. Journal of Southern African Studies, Vol. 2, No. 1 (Oct.,
1975), pp. 66-82; MONDLANE, Eduardo, Lutar Por Moçambique, op.cit; SIMANGO, Uria, The Liberation
Struggle in Mozambique'. The African Communist, 32, 1968, pp. 48-61;
214
Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), tendo como Secretário -
Geral, Marcelino dos Santos, que se tornaria vice-presidente da Frelimo nos anos 1970 e no pós-
independência presidente da Assembleia da República.
215
Vide, HENRIKSEN, Thomas, 1978, op.cit, p.171
216
NEWITT, 1997, op.cit, p.523.
217
Em Fevereiro de 1969 Eduardo Mondlane foi assassinado na Tanzânia através de uma carta armadilha. Fortes
suspeitas iriam recair na PIDE mas também no envolvimento de alguns elementos da própria Frelimo. A
partir daí foram expulsos membros seniores da Frelimo, como por exemplo Lazaro Nkavandame e Urias
Simango, acusados de estarem envolvidos na morte do presidente da Frelimo. Samora Machel toma posse nos
anos 1970, como o novo presidente da Frelimo. Vide, HENRIKSEN, 1978, op.cit ; HENRIKSEN, Thomas.
Revolution and counter – Revolution – Mozambique´s war of independence, 1964 – 1974, Greenwood Press,
1983; NEWITT, 1995, op.cit.
73

promoções lentas, e uma guerra colonial fútil. Esta combinação de factores que iria levar ao
colapso do regime fascista, obrigando o primeiro-ministro Marcelo Caetano ao exílio no
Brasil218. No dia sete de setembro do mesmo ano, foram assinados os acordos de paz que
originaram a formação de um governo de transição da FRELIMO. Aquino de Bragança (que
dois anos mais tarde iria tornar num dos membros fundadores e primeiro director do CEA),
devido a sua longa experiência com os movimentos libertação nacional, e desde o principio o
seu apoio a casa da “revolução moçambicana” iria desempenhar um papel chave nestas
negociações. Assim, a liderança da FRELIMO incube-lhe de ir a Portugal, para servir de
intermediário junto do movimento das forças armadas, nos primeiros acertos para o processo
de negociação219.

Em junho de 1975 é então proclamada a independência nacional de Moçambique. A


FRELIMO, saía vitoriosa de todo este processo de descolonização, como a única força
política no pós-independência, não obstante ter sido dilacerada por um passado histórico
prenhe de conflitos internos, lutas pelo poder, cisões, expulsões de dirigentes, traições e
assassinatos220.

2.2.2 Os primeiros anos “eufóricos” sob a sombra da guerra de “desestabilização”:


1975-1980

Nos primeiros anos do pós-independência a FRELIMO acreditou que estava se


movendo de uma vitoria para outra. Como sabemos, com a independência nacional
conquistada em 1975 todo o quadro de referência se alterou. Mais do que administrar algumas
“zonas libertadas”, tratava-se agora de gerir, em todo o país, a herança de um aparelho do
Estado colonial complexo. Esta “captura” do poder do Estado, implicava antes de mais nada,
reconstituir de forma radical, esse mesmo poder.

218
Vide, por eg.. GESHEKTER, Charles L. Independent Mozambique and Its Neighbors: Now What?. Africa
Today, Vol. 22, No. 3, jul. - sep., 1975, p. 21-36.
219
Vide, DAVIDSON, Basil. Aquino de Bragança, 1928-86: An Appreciation. Africa: Journal of the
International African Institute, Vol. 57, No. 2, 1987, p. 260.
220
Para uma leitura mais atenta sobre a “guerra civil em 1968-69” no interior da Frelimo, ver particularmente
Newitt, 1995, op.cit. Para mais infirmações sobre conflitos internos na Frelimo, emergência de facções ,
movimentos políticos anti - Frelimo e morte de Eduardo Mondlane, vide, HENRIKSEN, 1978, op.cit;
VINES, Alex, Renamo – Terrorism in Mozambique, Indiana University Press, 1991; Newitt, 1995,
CABRITA, João, 2000, op.cit.
74

Foi neste período que a política “anti-privatização da FRELIMO se tornou mais


acelerada. Tentou-se eliminar a maior parte das empresas privadas, congelando as suas contas
bancárias221. Um mês depois da independência nacional, o sistema judicial, a medicina, a
educação e os serviços funerários tinham sido nacionalizados222. Apesar de ter herdado a
economia em bancarrota e com um défice crónico na balança de pagamentos, nos primeiros
cinco anos depois da independência nacional, a FRELIMO conseguiu alcançar progressos
significativos na educação, saúde e habitação, tendo sido por exemplo proclamado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1981, que o seu sistema de cuidados de saúde e
prevenção era um modelo para os países do terceiro mundo223.

Politicamente deram-se também grandes mudanças com a transformação da


FRELIMO em “partido de vanguarda marxista-leninista” no seu 3º congresso em 1977. O
partido FRELIMO, a “força dirigente da sociedade e do Estado”, deveria então guiar,
mobilizar e organizar as massas na tarefa de se construir uma democracia popular,224 “rumo
ao socialismo”. Estava-se assim num ambiente político em que a distinção entre partido e
Estado se dava somente a um nível teórico. O partido trabalhou incessantemente para entrar e
controlar todos os sectores da sociedade. Assim, logo nos princípios de 1978, foram-se
estabelecendo os “grupos dinamizadores225”, como também células do partido na
universidade, nas fábricas, “aldeias comunais”, escolas, ministérios, etc, com o objectivo de
garantir a implementação das orientações da FRELIMO, como também de romper com os
métodos de trabalho do Estado colonial capitalista226.

No sector econômico, a fuga maciça dos portugueses que ocorrera a partir do fim do
salazarismo, em 1974, levou ao colapso de sectores vitais da economia, como o comércio e a
produção de culturas alimentares e a rede de distribuição rural e, não somente houve uma fuga

221
Vide, HENRIKSEN, Thomas. Mozambique: A History, Cape Town :Rex Collings, 1978.
222
HANLON, Joseph. Mozambique: The Revolution Under Fire, Zed Books, 1984,p.46.
223
HANLON, 1984, p.82.
224
Teses do 3º Congresso, citado a partir do artigo de Thomas Henriksen, “Marxism and Mozambique”, In:
African Affairs, Vol. 77, nº 309, Outubro, 1978, p.459.
225
Chamaram-se “Grupos Dinamizadores” às organizações de base da sociedade logo depois da independência
nacional. Eram de facto células do partido, dirigidos pelas orientações e por quadros da FRELIMO. Foram
formadas em todas as empresas, repartições públicas, com o objectivo de aumentar a produtividade mas
também como uma forma de se socializar e discutir aspectos ligados a ideologia marxista-leninista. Forma
também criados grupos dinamizadores nos bairros residências com o objecitvo de mobilizar a população para
tarefas colectivas como limpeza das ruas, vigilância popular, e até mesmo alfabetização.
226
Vide por exemplo a análise comparativa de Catherine Scott sobre os Estados pós - coloniais de Moçambique
e Angola: Socialism and the Soft State in Africa: An analysis of Angola and Mozambique. The Journal of
Modern African Studies, Vol. 26, nº1, Março, 1988, p.23-36.
75

de capitais, mas também o que podia ser visto como uma consciente e deliberada sabotagem
foi levada a cabo. Plantações e maquinaria de irrigação foram deliberadamente destruídas,
gado abatido e gêneros alimentícios disponíveis retirados do mercado com o intuito de criar
uma escassez artificial.227 Esta situação obrigou ao Estado moçambicano a ocupar as
empresas e indústrias abandonadas, levando assim na óptica de Sónia Kruks (1987), a criação
de um sector estatal muito mais alargado do que a FRELIMO tinha imaginado.

Começou-se gradualmente a verificar-se o colapso do mercado, particularmente nas


trocas comerciais entre o sector rural e urbano, afectando sobremaneira a produção do
campesinato e o abastecimento em gêneros industriais, uma vez que o Estado, passava agora a
privilegiar mais as machambas228 estatais, representando o “pólo de desenvolvimento”,
acreditando que a transformação rural seria mais efectiva através do sector público229. Para a
FRELIMO, o sector moderno da agricultura era visto através do incremento das machambas
estatais em oposição ao sector familiar, considerados estes primeiros cinco anos após a
independência, como “atrasado”. Daí então, sancionar políticas agrárias que não levavam em
conta o papel do campesinato na produção. Esta questão, como iremos ver posteriormente,
iria constituir num dos grandes pilares das prioridades de pesquisa do CEA.

Um outro grande dilema destes primeiros cinco anos do pós-independência foi


também o de saber o que fazer com a dependência estrutural da economia de Moçambique
(principalmente do sul de Moçambique) em relação ao capital mineiro sul-africano. A questão
resumia-se então em avaliar se se deveria cortar ou não com este fluxo migratório. Uma
questão sensível, para o governo moçambicano, uma vez que a grande maioria do operaraido
mocambicano era constituida pelos cerca de 140.000 mineiros que trabalhavam anualmente
nas minas sul-africanas, sem contar ainda com aqueles que trbalhavam ilegalmente em outros
sectores da economia sul-africana230. Como afirmou Dan O’Meara,

O pagamento diferido desses trabalhadores migrantes foi a base na

227
Vide, KRUKS, Sonia. From Nationalism to Marxism: The Ideological History of Frelimo, 1962-19977.
MARKOVITZ, Irving Leonard (Ed). Studies in Power and Class in Africa, Oxford University Press, 1987.
228
O mesmo que herdade, quinta, horta ou propriedade agrícola.
229
Vide, BOWEN, Merle. The Sate Against Peasantry – Rural Struggles in Colonial and Post - colonial
Mozambique, University Press of Virginia, 2000.
230
O´MEARA, Dan. The Collapse of Mozambican Socialism. Transformation, nº14, 1991, p.82-103.
76

qual a estrutura econômica de todo o sul de Moçambique se apoiava –


sem ainda mencionar uma fonte significativa de moeda estrangeira
para a economia moçambicana231.

É assim que a FRELIMO decidiu manter o fluxo migratório, apesar do fato de que, em
1975, o governo sul-africano ter reduzido drasticamente o número de contratados para 40.000,
concorrendo para o aumento do desemprego no sul de Moçambique. Como forma de
responder a esta crise, a FRELIMO tentou criar políticas agrárias que pudessem integrar
muitos dos desempregados na economia rural, através da construção das aldeias comunais
(obrigando os camponeses a deixarem as suas machambas familiares, seus locais sagrados e
de culto e a irem viver em de forma comunal) os camponeses a viver juntos, cooperativas de
produção e das machambas estatais. O descontentamento e desencantamento popular
começavam a despontar gradualmente no horizonte moçambicano.

Em 1976, Moçambique cortou todas as ligações econômicas com a Rodésia do Sul,


fechando as suas fronteiras, e infringindo custos econômicos consideráveis aos rodesianos (de
acordo com Tom Young (1990), 1/3 do comércio externo da Rodésia entrava por
Moçambique232), mas também fornecendo mais apoio e facilidades a ZANU.

A partir daí o governo rodesiano começou a desenvolver uma estratégia mais


consistente para fazer frente ao governo moçambicano e ao seu apoio aos movimentos de
libertação nacional na Rodésia. De acordo com Margareth Hall (1990), a RENAMO233 foi
assim criada em 1976, por alguns membros das hierarquias militares da Rodésia, dos
portugueses, principalmente de elementos da Policia Internacional de Defesa do Estado
(PIDE), e suplementados por moçambicanos libertados dos campos de re-educação próximo
da fronteira com a Rodésia, alguns deles ex-membros das forças armadas da FRELIMO
(FPLM), que tinham sido encarcerados por actos de corrupção. O objectivo principal desta
organização seria então o de desestabilizar economicamente o país, e de enfraquecer o apoio

231
O'MEARA, 1991, op.cit, p.93.
232
YOUNG, Tom. The MNR/RENAMO: External and Internal Dynamics. African Affairs, Vol. 89, nº. 357,
Outubro, 1990, p. 491-509, p.494.

233
Resistência Nacional Moçambicana. É de referir que este acrónimo é somente usado a parto dos anos 1980,
antes disso o Moimento era comummente conhecido (especialmente no Zimbabwé) como Movimento
NACIONAL DE Resistência (MNR). Vide, YOUNG,1990, op.cit; HALL, (1990) op.cit.
77

da FRELIMO a ZANU234.

Até 1979 a guerra contra a Rodésia tinha deixado Moçambique fragilizado. No


entanto, a FRELIMO não deixaria de apoiar a luta pela libertação do Zimbabwé até a vitória
da ZANU (PF) de Robert Mugabe em 1980 e a rápida formação da Conferência de
Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC,) tendo Moçambique e
Zimbabwé um papel fulcral na sua criação. A saída em cena do regime de Ian Smith, trouxe
de volta ao país a esperança de levar adiante as suas estratégias de desenvolvimento socialista,
sem interferência externa. No entanto, como veremos a seguir, momentos de crise ainda
estavam longe de serem superados.

2.2.3 A Construção do Socialismo…Cada Vez mais Longe: 1980 – 1984

O contexto da recessão do mundo capitalista e da nova guerra fria,235 a guerra não


declarada de desestabilização236”, agora sob comando da África do Sul237 e com a RENAMO
gradualmente a conquistar maior espaço de manobra no interior do país, veio também a
dominar todos os aspectos da sociedade moçambicana. As infra-estruturas econômicas e
sociais acabariam gravemente afectadas por um misto de deficiente gestão estatal, o
estrangulamento do tecido social causado pelas incursões armadas da RENAMO e, não
menos importante, das cheias que assolavam, principalmente a zona sul do país. Estávamos
assim em presença, parafraseando António Gramsci, de uma “crise orgânica” o que
pressupunha uma crise total de suas estruturas. A autoridade do Estado começava
paulatinamente a ser deslegitimizada238, a economia praticamente paralisada239 e onde as

234
Vide, YOUNG,1990, op.cit; HALL, op.cit, 1990.
235
Vide, MUNSLOW, Barry, Rethinking the Revolution in Mozambique. Race & Class, XXVI, 2, 1984, p.15-
31.
236
O´MEARA, op.cit, 1991, p.91.
237
Como afirmou O'Meara, “in 1980 South Africa inherited form the Rhodesian Central Inteligence
Organization (CIO) the ragbag of former Portuguese commandos and colonialists, and former Frelimo
soldiers known as Renamo. Created and controlled by Ken Flower of the CIO, Renamo quickly incorporated
into the Special Forces Commando of the SADF and placed under the direct control of the nº 5 Recce
Commando. Vide, O´MEARA, op.cit.,1991, p.96.
238
Deslegitimização no sentido em que o estado freliminiano era incapaz de resolver as contradições acutilantes
da economia e das contradições sociais, principalmente no meio rural, epicentro da sua política agrária da
socialização do campo e da transformação socialista. Como veremos mais a seguir, quando forem analisados
os Relatórios Científicos produzidos pelo CEA, havia no campo um “descontentamento dos camponeses em
relação a essas políticas agrárias da Frelimo o que segundo os investigadores do CEA iria levar, como
afirmou o CEA num dos seus Relatórios de Investigação, posteriormente discutidos neste capítulo, a uma
78

directrizes da classe dirigente era sustentada pela força.

O 4º congresso da FRELIMO realizado em Abril de 1983 tinha como um dos


principais objectivos tentar então corrigir as lacunas e os erros anteriores e também
prenunciar uma nova ênfase em projectos de pequena escala descentralizados e orientados
para o mercado240. O congresso instruiu ainda as instituições do Estado a darem maior apoio à
cooperativa, sector familiar e sector privado. Foram tomadas novas medidas em relação por
exemplo à questão agrária, onde a FRELIMO acabou reconhecendo que tinha cometido um
erro grave ao subestimar o papel do campesinato e dando todo o apoio ao sector estatal.

A FRELIMO decidiu então que a alocação dos recursos deveria se basear num
pragmatismo econômico em vez de ser pautado exclusivamente pela ideologia241. Por outro
lado, acreditava que ao se virar para uma estratégia mais direcionada para a abertura do
mercado iria corrigir os desequilíbrios econômicos que resultaram dos erros políticos do
passado. No entanto, já havia um grande descontentamento rural agravando ainda pelos
massacres às populações perpetradas pela RENAMO, o êxodo forçado das populações para as
cidades e o aumento do desemprego urbano.

Esta situação de crise iria levar a FRELIMO a se tornar gradualmente numa força
política e dirigente autoritária e contraditória. De um lado começava a ser extremamente
centralizada e comandista, movendo-se lentamente para um culto de personalidade à volta de
Samora Machel. Por outro lado, o poder ia se tornando cada vez mais coercivo na sociedade
através de um maior controlo social, como por exemplo, da “operação produção242”, e formas
de “vigilância popular”. O meio universitário não ficaria incólume a este alastramento das

“desagregação das aldeias comunais”. Assim, poderíamos ver este “descontentamento” como uma das causas
da crise, não descurando no entanto, outros factores como a guerra contra a Renamo, a crescente dívida e
dependência externa de Moçambique, o aumento da repressão urbana, etc.
239
De acordo com Hebert Howe e Mariana Ottaway, o GNP era de 11.9 biliões de Meticais antes da
independência em 1973, desceu drasticamente para 71.1 biliões em 1975 e subiu para 83.7 biliões me 1981.
Em 1984 caiu à pique para 55.6 biliões de Meticais. Vide, KELLER, Edmond & Rothchild, Donald. Afro-
Marxist Regimes – Ideology and Public Policy, Lynne Rienner Publishers,1990.
240
BOWEN, Merle, Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary Mozambique. The
Journal of Modern African Studies, nº30, 1992, p.255-279, p.261.
241
ROESCH, Otto. Economic Reform in Mozambique : Notes on Destabilization War, and Class Formation.
Taamuli, Dar es Salaam, 1989, apud, BOWEN, Merle, op.cit. p.1992.
242
Lançado em 1983, tinha sido uma tentativa de recolocar mais de 50.000 desempregados de Maputo para as
zonas rurais, onde eles iriam supostamente serem mais produtivos. O objecitvo não pronunciado da operação
era também de remover das cidades pelo menos uma parte de um lumpenproletariat deemed potentially
criminal e susceptível de recrutamento pela Renamo. Vide, HOWE, Hebert & OTTAWAY, Marina.State
Power Consolidation in Mozambique, p.23-46: KELLER, Edmond & ROTHCHILD, Donald. Afro-Marxist
Regimes – Ideology and Public Policy, Lynne Rienner Publishers,1990.
79

estruturas do partido a todos os níveis da sociedade. Havia por exemplo, um “Comité do


Partido” na universidade que garantia que a linha política da FRELIMO não deixasse de
assumir o papel dirigente na concepção e exercício das tarefas inerentes à organização política
da universidade243.

Por volta do final de 1983, a guerra tinha reduzido a habilidade da FRELIMO de


implementar as suas políticas do desenvolvimento socialista. A economia moçambicana
mostrava sinais de colapso total, forçando o governo moçambicano a negociar um “pacto de
não-agressão e boa vizinhança” com a África do Sul. Os acordos de Nkomati seria então
firmado em março de 1984, com a intermediação dos EUA, no qual os sul-africanos
comprometeram-se a limitar as actividades da RENAMO e Moçambique, por sua vez, em
impedir o ANC de lançar as suas acções militares a partir do solo moçambicano (no entanto,
foi permitida a presença diplomática do ANC em Maputo)244.

Como iremos discutir no último capítulo, estes seriam tempos difíceis para o CEA,
particularmente o Núcleo da África Austral, composto maioritariamente por pesquisadores
sul-africanos, membros do ANC. Este grupo de pesquisa foi assim proibido de produzir
conhecimento sobre a situação política e econômica da África do Sul, como também de tecer
qualquer manifestação pública sobre os acordos de Nkomati. Na opinião de Dan O´Meara,
pesquisador deste Núcleo, este foi o período em que a pesquisa crítica do CEA tinha chegado
ao fim, levando assim ao seu abandono do CEA e de Moçambique. Como afirmou este autor,
e que vale a pena citar longamente,

No rescaldo dos acordos de Nkomati, o Reitor tinha tentado que todos


os quatro membros do ANC que trabalhavam no Centro fossem
expulsos. Aquino trabalhou arduamente para nos proteger, mas o
preço que ele foi forçado a aceitar, foi que nós não tínhamos
permissão de escrever ou dizer qualquer coisa acerca da África do Sul
e, por um tempo, não fomos autorizados a ler os jornais sul-africanos
que o Centro recebia. Eu via essas condições como intoleráveis e senti
que podia fazer melhor trabalho, por isso, optei por sair.245

243
A própria estrutura hierárquica da universidade estava intimamente ligada ao partido, onde o Reitor da UEM,
veterano da “luta de libertação nacional”, fundador do CEA, era também membro do Comité Central da
Frelimo.
244
Vide, MUNSLOW, Barry. Rethinking the Revolution in Mozambique, Race & Class, XXVI, 2, p.15-31,
1984.
245
Entrevista com o autor, Julho, 2009.
80

Para Barry Munslow (1984), este acordo tinha sido claramente um atraso para a
revolução africana, mas a precariedade social e econômica da população (os massacres
perpetrados pela RENAMO aliado ao impacto das secas no sul de Moçambique) tinha
atingido níveis de crise aterradora. Segundo Munslow, 250 mil pessoas no sul do país viviam
numa situação de fome aguda. Ainda de acordo com este autor, cerca de 100 mil cruzaram a
fronteira para o Zimbabwé à procura de comida. Ao se alcançar um acordo com a África do
Sul, o governo moçambicano esperava reduzir a ameaça militar e por esse meio manter um
canal internacional de ajuda para os mais necessitados246.

Estávamos assim num período marcado por uma crise total da economia, em parte
devido ao recrudescimento da sabotagem econômica e militar levada à cabo pela RENAMO,
e do impacto dos acordos de Nkomati, diante do que a FRELIMO se tornava cada vez mais
autoritária. A política da FRELIMO em relação à África do Sul tinha sofrido uma viragem
radical: de um momento para o outro, Samora Machel estava “apertando a mão do diabo247”.
Como corolário desse “pacto de não agressão e boa vizinhança,” as células clandestinas do
ANC em Moçambique eram já consideradas proibidas e tinham que ser urgentemente
desmanteladas. Por outro lado, não era permitida no meio universitário, qualquer discussão
sobre a validade desta viragem do governo. Os investigadores do CEA não podiam mais
escrever sobre questões ligadas à África do Sul.248 Dan O’Meara, dá-nos uma imagem nítida
do que significaram esses acordos, na vida diária do CEA,

Aquino veio falar connosco, os quatro249, mas deixou absolutamente


claro que nós não éramos permitidos de dizer qualquer palavra, nem
de expressar o mais pequeno desacordo sobre esse assunto250.

Os investigadores do CEA, e particularmente aqueles profundamente comprometidos


com a luta de libertação nacional do ANC, estavam atónitos com a posição do director do
CEA, segundo, Dan O’Meara, “um homem que tinha lutado muito para discussão aberta e
agora ele era o agente que ia fechar todas as discussões e tornando bem claro que todos

246
MUNSLOW op.cit, p.29.
247
Idem.
248
Idem.
249
Alpheus Manghezi , Robert Davies , Sipho Dlamini e Dan O´Meara,.
250
Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007.
81

aqueles que questionassem seriam severamente tratados”.251

O Estado moçambicano tornou-se cada vez dominante na sociedade, através do


exercício do poder coercivo, sem contudo, parafraseando António Gramsci, “liderar”, no
sentido de activar o “consentimento ideológico das massas”. Foi ainda nestes anos, que se
verificou uma intensificação da guerra (mesmo com a assinatura dos acordos de Nkomati), a
agudização da crise econômica, e actos esporádicos de sabotagem no interior da cidade de
Maputo, levaram a um aumento do poder coercitivo da FRELIMO em todos os sectores da
sociedade e uma tendência para uma liderança personalista de Samora Machel.

2.2.4 A Metamorfose Ideológica da FRELIMO: 1984-1990

As directivas saídas do 4º Congresso da FRELIMO, não tiveram o efeito desejado. As


campanhas de desestabilização sul-africanas aliadas aos desastres naturais (cheias e secas)
que periodicamente assolavam o país iriam, de facto, minar os esforços da FRELIMO de
implementar as suas reformas agrárias. A FRELIMO estava confiante que os acordos de
Nkomati iriam acabar de vez com o apoio sul-africano à RENAMO, culminando com o fim
imediato da guerra. No entanto, nada disso ocorreu. Pretória continuou, (contudo não
directamente) a apoiar as forças rebeldes, apesar do pacto de não agressão mútua, assinado
entre os dois países. A RENAMO, neste novo contexto pós-Nkomati, em que o auxílio das
forças armadas sul-africanas se tinha tornado mais limitado, começou a mudar de táctica,
apelando para uma ofensiva diplomática a nível internacional (apresentando o grupo rebelde
como uma movimento politico respeitável252) e começando, pela primeira, vez (no pós-
Nkomati), de acordo com Carrie Manning (1998), a recrutar civis no interior de Moçambique,
com o intuito de fornecer ao movimento, uma maior capacidade administrativa253. É assim,
que Malyn Newitt (2002) observou que,

251
Entrevista com Dan O'Meara, agosto,2007.
252
A nível nacional, a Frelimo sempre concebeu a Renamo como “bandidos armadas” ao serviço primeiro da
Rodésia e posteriormente da África do Sul. Um grupo de terroristas cuja única missão era desestabilizar
economicamente o país, destruindo escolas, fábricas, vias de acesso e dizimando as populações locais.
Segundo Newitt (2002), esta descrição da Renamo tinha o efeito de negar a Renamo qualquer legitimidade e
ao mesmo tempo absolvendo o governo de qualquer culpa no processo de deterioração da economia
moçambicana.
253
MANNING, Carrie. Constructing Opposition in Mozambique: Renamo as a Political Party. Journal of
Southern African Studies, vol. 24, nº1, pp.161-89, 1998.
82

Depois dos acordos de Nkomati, a África do Sul começou a retirar o


controlo directo da RENAMO. As forças rebeldes tiveram então que
operar a partir das suas bases dentro de Moçambique. A RENAMO
agora se tornava menos um grupo de bandidos e começava a interagir
de maneira significativa com as populações locais254.

Como forma de angariar apoio dos países ocidentais e ao mesmo tempo tentar deter o
declínio econômico, Moçambique, (na altura um dos países mais pobres do mundo e
profundamente endividado)255, acabaria filiando-se, em Setembro de 1984, ao Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. A partir daí foram introduzidas reformas
econômicas, favorecidas pelos EUA, incluindo a liberalização do mercado para alguns
produtos agrícolas e dissolução de algumas machambas estatais, ampliando assim o caminho
para um incremento da ajuda humanitária americana.256

Por volta de 1987, o processo que tinha levado aos acordos de Nkomati e à adesão ao
FMI/BM iria dar frutos. Nesse ano um programa de ajustamento estrutural257 foi lançado e
que contemplava modificações em todo o modelo de desenvolvimento moçambicano258. Com
este programa de reabilitação econômica (PRE), o governo pretendia: (a) reverter o declínio
da produção e restaurar um nível mínimo de consumo e de rendimento para toda a população,
particularmente nas zonas rurais; (b) reduzir substancialmente os desequilíbrios financeiros
domésticos e fortalecer as contas externas e reservas; (c) optimizar a eficiência e estabelecer
as condições para um retorno aos níveis altos do crescimento econômico assim que a situação
de segurança e outros constrangimentos exógenos tivessem cessado; (d) reintegrar o mercado

254
NEWITT, Malyn, Mozambique: CHABAL, Patrick (Ed). A History of post – colonial Lusophone Africa,
Indiana University Press, p.215, 2002.
255
Em 1987, segundo dados do Banco Mundial (1989), Moçambique tinha um PIB per capita de 170 US$,
colocando-se na 9º posição no ranking dos países mais pobres. Vide, MOSCA, João. Evolução da Agricultura
Moçambicana no período pós - independência, Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural,
Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, p.1-51,1996.
256
Vide, HOWE & OTTAWAY, op.cit., 1990.
257
Em Moçambique, este programa foi nomeado de PRE – Programa de Reabilitação Econômica – e era uma
dos exercícios de ajustamento estrutural típicos do FMI E BM. Vide, HERMELE, Keneth. Mozambique
Crossroads – Economics and Politics in the era of Structural Adjustment, Report, Chr. Michelsen Institute,
Department of Social Science and Development, Bergen, p.1-47, Maio, 1990.
258
Vide, HERMELE, Keneth. Mozambique Crossroads – Economics and Politics in the era of Structural
Adjustment, Report, Chr. Michelsen Institute, Department of Social Science and Development, Bergen, May,
1990, p.1-47.
83

oficial e paralelo; (e) restabelecer relações financeiras ordeiras com os comerciantes e


credores259.

Os finais dos anos 1980 vão testemunhar o termo dos conflitos em vários países
envolvidos na “guerra fria”. Por outro lado, estávamos perante um processo de declínio
econômico do bloco socialista. É assim que os dois grandes beligerantes, a URSS e os EUA
assinam dois tratados internacionais, colocando um fim à polarização entre estes dois países.
A queda do muro de Berlim em 1991 epitomizava assim o fim de um mundo bipolarizado260.

Com o fim da “guerra fria”, Moçambique começou a perder os seus aliados “naturais”,
principalmente os países do bloco do Leste europeu, fazendo com que a expectativa de um
sucesso total na guerra contra a RENAMO se tornasse cada vez mais remota.
Concomitantemente, nem a adesão as instituições da Bretton Woods, e nem mesmo o Plano de
Reconstrução Económica (PRE) mostravam sinais de que o país se reerguia da crise
econômica. Foram dados passos significativos com a abertura à economia de mercado, a
valorização do papel dos produtores privados e pequenos camponeses, mas estas medidas não
se traduziam na melhoria das condições de vida de toda a população. O país dependia cada
vez mais da ajuda internacional e de créditos financeiros para sobreviver. É assim que o
partido FRELIMO decide então, em 1989 no seu 5º congresso, abandonar a sua ideologia
marxista-leninista, abrindo assim o caminho para a uma nova reforma política, que iria
culminar em 1990 com a nova Constituição da República, e a emergência de um sistema
politico multipartidário. Foram iniciados nesta fase também as primeiras negociações com o
movimento rebelde que culminaria com a assinatura dos acordos gerais de paz e cessar-fogo
entre a FRELIMO e a RENAMO em Outubro de 1994. O acordo de paz garantiu que se
criasse uma plataforma para a realização de eleições multipartidárias, desmobilização e
formação de um novo exército nacional261.

Os anos subsequentes aos acordos de Nkomati podem portanto ser vistos como
constituindo o marco simbólico de uma tentativa de operar grandes mudanças a nível
econômico, social, político e intelectual no país: (a) a abertura para uma economia de
mercado, privilegiando o investimento privado, com a adesão de Moçambique ao FIM e BM;
(b) a morte, em Outubro de 1986, do presidente Samora Machel e alguns dos seus
“camaradas” (dentre os quais o director do CEA, Aquino de Bragança), “num misterioso
259
HERMELE, op.cit,1990, p.12-13.
260
ARMS, S. Thomas. Encyclopedia of the Cold War. New York: Facts on File, 1994.
261
NEWITT, 2002, op.cit, p.222.
84

acidente de avião262”; (c) a sua sucessão (ordeira e consensual)263 pelo ministro dos negócios
estrangeiros, Joaquim Chissano; (d) o fim da ideologia marxista-leninista; (e) a abertura ao
multipartidarismo e a liberdade de expressão com a nova Constituição da República; (f) e por
fim, os cessar-fogo e os acordos gerais de paz entre o governo e a RENAMO.

262
BOWEN, Merle. Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary Mozambique. The
Journal of Modern African Studies, nº30, 1992, p.255-279, p.261.
263
Segundo Marina Ottaway, a morte de Samora serviu para enfatizar a continuidade da liderança da Frelimo,
em vez de significar uma nova viragem. Assim para esta autora as reformas adoptadas no pós -Nkomati foram
feitas sem nenhuma modificação do sistema político ou mesmo de mudança de pessoal. Em suma, para esta
autora, Moçambique passou de um “socialismo simbólico” para uma “reforma simbólica”, uma vez que
estava-se em presença de um “estado fraco (soft state) em paralelo também com uma sociedade civil fraca,
que não permitiu que as mudanças propostas tivessem o efeito desejado. Vide, OTTAWAY, Marina,
Mozambique: from symbolic socialism to symbolic reform. The Journal of Modern African Studies, nº26,
1988, p.211-226.
85

3. AS CONDICÕES SOCIAS E EPISTÉMICAS DA EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO


DO CEA

3. 1 O Ano de 1976 e a Tentativa de Criação de uma “Universidade para o Povo”

Moçambique testemunha, na altura da independência em 1975, o êxodo massivo dos


poucos professores universitários existentes, assim como de estudantes. Os números falam
por si: nos primeiros anos da independência, o número de estudantes tinha-se reduzido de
2.433 para 740, somente no período de 1975 a 1978, enquanto o número de docentes se
reduziu para menos de 10 professores264. Devido a esta falta de professores universitários, a
universidade nos primeiros anos do pós-independência teve que “improvisar” usando “alunos-
monitores” que colaboravam na docência e investigação sob a orientação directa de um
professor.

Em Janeiro de 1976, inicia-se o primeiro ano lectivo da única universidade existente


na altura. Em Maio do mesmo ano, deu-se a mudança do nome de “Universidade de Lourenço
Marques”, para “Universidade Eduardo Mondlane”, em homenagem ao primeiro presidente
da FRELIMO. Esta mudança marcava simbolicamente a tentativa do poder político efectuar
uma “ruptura completa com o passado colonial265” e de impor uma nova concepção de ensino
superior. Uma universidade popular ao serviço da sociedade moçambicana “rumo ao
socialismo”.

O ensino de Ciências Sociais, nestes primeiros anos de independência, não sofreu


grandes mudanças. Os cursos de Ciências Sociais e Humanas ministrados pela Faculdade de
Letras mantiveram por um período relativamente longo, a estrutura anterior do Bacharelato
com a duração de três anos, não obstante terem iniciado transformações curriculares de forma
a adequar os seus objectivos e conteúdos à realidade política, social e econômica do país.
Assim, para o caso concreto do Curso de História foram introduzidas as cadeiras de “História
de Moçambique” e “África”; o conteúdo temático do curso de Filologia Românica, alterou os

264
BEVERWIJK, Jasmin. The Genesis of a System – Coallition Formation in Mozambican Higher Education
(1993-2003), PhD Thesis, UniTwente, 2005,p.102.
265
GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em ciências Sociais. Revista Estudos
Moçambicanos, nº. 4, CEA, Maputo, 1984,p.5-17.
86

seus objectivos e passou a designar-se por curso de Letras Modernas266”. Continuou-se a


oferecer os mesmos cursos do período colonial. No entanto, estava-se num momento de
“euforia” nacional. O ano de 1975 era, segundo as palavras do primeiro presidente de
Moçambique Samora Machel, “o ano em que pela primeira vez, do Rovuma ao Maputo, o
povo moçambicano assume inteiramente a responsabilidade do seu destino histórico”267.

Havia um grande interesse político, por parte da FRELIMO em transformar


radicalmente a universidade e os seus conteúdos de ensino. A disciplina de História tinha
agora um papel particularmente importante. Teria que ser em primeira instância uma história
da opressão colonial nas suas várias formas, como também a História da resistência africana
ao colonialismo. Enfim, uma História que pudesse reafirmar a experiência histórica do sujeito
africano silenciado pela historiografia colonial, restaurando os valores culturais e a dignidade
africana e que também pudesse ajudar nas aspirações da FRELIMO de construir a nação
moçambicana. É assim, que logo depois da independência nacional, se começa a planear a
produção de uma “História de Moçambique”, que seria anos mais tarde, concretizada pelo
Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane. Fernando Ganhão, primeiro
Reitor no pós-independência, e membro sénior do partido FRELIMO, numa entrevista em
Janeiro de 1975 asseverava,

Transformar a Universidade de Lourenço Marques desde sempre ao


serviço do poder colonial numa instituição educativa ao serviço do
poder popular exige orientação, pela vanguarda organizada do povo –
a FRELIMO – e na participação de todos os elementos na sua gestão,
segundo os princípios da democracia popular e ainda na identificação
de todos os universitários com a causa popular (...) A integração dos
estudantes no processo revolucionário da eliminação das classes, se
fará com a mesma atitude com que vencemos a guerra, vamos
procurar vencer na paz, precisamente inspirando-nos nessa
experiência268.

Esta forma de conceber a missão da universidade, dos cientistas sociais e

266
LOFORTE, Ana; MATE, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique. Mimeo, Maio, 1993,p.3.
267
Jornal NOTÍCIAS, 1/1/1975, Mensagem do Ano Novo, p.4.
268
Jornal NOTÍCIAS, Entrevista de Antonio Souto a Fernando Ganhão, 16/01/1975. p.2.
87

investigadores, fazia parte, parafraseando Michel Foucault (1986), do “regime de verdade269”


que a FRELIMO pretendia estabelecer na sociedade moçambicana. Aos quadros da nova
universidade era solicitado que se armassem com a “teoria da mudança social na nossa
região” que permitisse alterar as condições sociais herdadas do colonialismo português, bem
como na sua dependência em relação ao sistema capitalista sul-africano. A teoria da mudança
social proposta pelo poder entrava em conflito com a chamada “teoria da ordem social”,
considerada como “uma das teorias mais reaccionárias da ciência social burguesa270”. Para os
dirigentes da FRELIMO a génese da teoria social, não deveria estar exclusivamente ligada ao
estudo de texto, a sala de aulas, mas também numa “prática e nas lutas sociais”. A
universidade, na óptica do poder, deveria estar voltada,

Para a produção de intelectuais que estivessem decididos a engajar-se


no processo prático de transformação social. No caso de Moçambique,
capazes de construir e consolidar, em aliança com outras classes e
grupos, as bases duma sociedade socialista.271

A realidade no terreno, nos primórdios da independência, mostrou outro cenário longe


dos anseios da “utopia freliminiana”: falta de quadros na universidade, exiguidade de
pesquisadores, a inexistência de trabalhos de pesquisa que abordassem o Moçambique
contemporâneo e os seus desafios para desenvolvimento socialista. Tornava-se assim, cada
vez mais urgente, nesta fase “revolucionária” que Moçambique vivia, desenvolver algo em
torno das Ciências Sociais, para colmatar o vazio deixado pela inglória herança colonial
portuguesa. Foi portanto nesta fase da “transição socialista” que foi ser feita grande pressão
aos cientistas sociais para que demonstrassem a utilidade do seu trabalho. A pesquisa deveria
estar ao serviço da transformação das condições sociais de Moçambique. Foi assim

269
Segundo Foucault, cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua ‘politica geral’ de verdade: isto é, os
tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionarem como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguirem os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. Ver, FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro:Graal, 1981.
270
Ibid.
271
GANHÃO, Fernando. Problemas e Prioridades na Formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos,
nº. 4, CEA, Maputo, p.5-17 1984.
88

privilegiado o paradigma das Ciências Sociais Aplicadas, o que significou uma estreita
ligação com os fazedores de políticas.

3.2 O Nascimento do Centro de Estudos Moçambicanos (CEA)

Estávamos também no período do êxodo de professores e investigadores portugueses e


a consequente paralização da única universidade existente no país. Segundo Fernando
Ganhão,

Não havia moçambicanos para os substituir. Fomos aos países


socialistas com o intuito de encontrar pessoas para preencher essas
lacunas. Primeiro nesses países porque eu próprio vinha de um país
socialista, a Polónia, onde estava a fazer o meu Doutoramento. No
entanto, eu estava consciente das limitações que eles tinham em
Ciências Sociais. Assim, não queria reproduzir esses modelos aqui em
Moçambique; decidi então virar as atenções para a Universidade de
Dar-es-Salaam onde encontrei no Centro de Pós-Graduação em
Estudos de Desenvolvimento, alguns investigadores dentre os quais
Marc Wuyts a quem desafiei para ir trabalhar conosco a fim de se
criar uma área de ensino em Ciências Sociais aqui na UEM272.

A ideia inicial do Reitor Fernando Ganhão não era propriamente de criar um centro de
pesquisa, mas sim de introduzir na nova universidade, um curso de Ciências Sociais e de
disciplinas como Sociologia, Antropologia, Economia etc. Aconteceu porém que esta ideia
nunca se concretizou e então o Reitor da UEM reflectiu sobre a necessidade de se criar algo
em torno da pesquisa em História e assim aproveitar os poucos jovens estudantes
moçambicanos finalistas do Bacharelato em História para promover algo na área da pesquisa.
Segundo Ganhão,

272
Entrevista com Fernando Ganhão, Julho de 2007.
89

Falei com várias pessoas, convidei o Dr. Aquino de Bragança, que era
jornalista da Afrique-Asie e contactei os meus estudantes do
Bacharelato de História. Eu era então professor de História. Convidei
alguns alunos, dentre os quais, o Luís de Brito, o Carlos Serra, a
Teresa Cruz e Silva, a Isabel Casimiro e outros que já não me
recordo273. Enfim, todo aquele grupo de estudantes do Bacharelato.
Foi nessa altura que me lembrei de fazer uma homenagem àquele
Centro de Estudos Africanos, de 1949, que foi criado em Lisboa por
Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e outros que
se encontravam exilados (…) não teve uma vida longa, esse centro em
Portugal, mas a ideia era render uma homenagem, não obstante a sua
curta duração274.

Como se pode notar, o projecto da constituição dentro da Universidade de um Centro


de pesquisa em Ciências Sociais com enfoque nos estudos africanos, não foi algo
premeditado. Esta ideia foi surgindo gradualmente à medida que o contexto local e
internacional (tendo já no CEA pessoas como Aquino de Bragança e Ruth First), foi impondo
essa necessidade histórica. A criação do CEA está assim ligada por um lado, a um contexto
mais global da revitalização das Ciências Sociais nas ex-colônias africanas, onde se procurou
dar um novo rumo ao ensino e à pesquisa e onde estas eram chamadas a desempenhar o seu
papel em prol da emancipação e justiça social, com grande enfoque na bipolarização do
mundo através da “guerra fria”, da emergência das teorias marxistas no ocidente e da
revolução estudantil de “Maio de 68” em Paris.

Por outro lado, surgiu também num contexto mais local de revitalização da nova
universidade sob liderança da FRELIMO que procurava, sob o impacto do grande êxodo de
professores e estudantes, mudar radicalmente a face da universidade salvaguardando alguma
coisa em termos de pesquisa em Ciências Sociais. A disciplina de História teve aqui um papel
central na reescrita da nova história de Moçambique, tendo como ponto de partida a
experiência da luta de libertação nacional contra o domínio colonial português e na
construção da nova nação moçambicana “rumo ao socialismo”. Poderíamos ainda falar de um
contexto regional onde se procurou criar um elo forte entre a pesquisa e a luta de libertação do
ANC, do Zimbabwé e Namíbia em relação ao sistema capitalista do apartheid na África do

273
Na verdade houve aqui um lapso de memória de Fernando Ganhão na altura da entrevista: os investigadores,
Carlos Serra, e Isabel Casimiro não fizeram parte do primeiro grupo de jovens estudantes que fundaram o
CEA. Entrevista realizada com Luís de Brito, Março, 2010.
274
Entrevista com o autor, Março, 2007.
90

Sul.

O Centro de Estudos Africanos (CEA) foi então formalmente criado em Janeiro de


1976, tendo como Director do Centro: Aquino de Bragança, jornalista de renome
internacional, acadêmico, professor na UEM, conselheiro pessoal do Presidente Samora
Machel, e visto no contexto moçambicano, como “um dos homens mais escutados pelo
poder275”. No primeiro ano de existência do CEA, a equipe de investigadores foi constituída
por uma geração de jovens historiadores moçambicanos276, que foram recrutados do
Bacharelato de História na Universidade Eduardo Mondlane. Eram eles, Luís de Brito, Eulália
de Brito, Miguel da Cruz, Ana Loforte, Teresa Cruz e Silva, Salomão Nhantumbo, Amélia
Muge, Nogueira da Costa, João Morais e Ricardo Teixeira. Contudo, estes dois últimos
pertenciam numa primeira fase, à Secção de Arqueologia. Logo a seguir chega mais um
investigador/historiador moçambicano, António Pacheco e o Centro começou a dar os
primeiros sinais de vida na pesquisa em Ciências Sociais.

O CEA estava nessa altura exclusivamente ligado à pesquisa na História colonial de


Moçambique, dividida em secções, cada uma representando diferentes períodos históricos. Os
investigadores Luís de Brito, Eulália de Brito e António Pacheco, incluindo o próprio director
do Centro constituíam o Grupo de pesquisa da África Austral, uma vez que Aquino de
Bragança, pôs logo a necessidade de se olhar Moçambique no seu contexto regional.
Nogueira da Costa e Miguel da Cruz constituíram o Grupo da História do século XIX,
particularmente nas companhias majestáticas; Ana Loforte, Salomão Nhantumbo e Amélia
Muge constituíram o Grupo de Antropologia e os restantes estudantes/pesquisadores ficaram
na Arqueologia. Como podemos depreender, estas áreas de pesquisa do CEA estiveram mais
direccionadas para a pesquisa documental e com muito pouca saída para a pesquisa de terreno
no interior das comunidades.

Esta era portanto a estrutura inicial do Centro, onde no seu primeiro ano de

275
Ibidem, p.55.
276
Esta pode ser considerada como a fase “moçambicana” do CEA, onde o número de investigadores nacionais
era expressivamente maior que dos estrangeiros (vide, figura nº1). Como podemos ver a partir do gráfico, esta
predominância dos “nacionais” começa a decrescer, gradualmente, nos anos 1978, uma vez que estes
investigadores foram alocados em outras instituições de pesquisa e ensino, como o Departamento de
Antropologia e Arqueologia (DAA), mas também alocados em cursos de formação de professores, como
também para preencher as vagas de professores na universidade em consequência da saída maciça dos
portugueses. Em contrapartida, o número de investigadores estrangeiros torna-se predominante a partir de
1979, em grande parte devido a entrada de Ruth First no CEA com directora científica, que começou a
contratar e formar o seu staff de investigadores notoriamente expatriados. A interpretação deste gráfico será
outra vez retomada no capítulo 8.
91

funcionamento, todos os seus investigadores eram moçambicanos (vide, gráfico nº1). No


entanto, foram gradualmente aparecendo investigadores estrangeiros, como Kurt Mandorin,
Barry Munslow, Marc Wuyts e David Wield, que faziam pesquisa sobre a história do novo
Moçambique “rumo ao socialismo”. Algumas destas pessoas tinham sido inicialmente
recrutadas para ensinar no curso de Ciências Sociais, idealizado pelo Reitor Ganhão. Porém,
como este projecto não se materializou, estes investigadores foram gradualmente integrados
no CEA como colaboradores.

Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990)

Segundo Marc Wuyts, economista belga e investigador do CEA, esta foi uma fase
importante do CEA e de grande valor instrutivo para os investigadores estrangeiros que
vinham chegando com um conhecimento limitado sobre a história de Moçambique. Como
afirmou Wuyts,

Foi aqui onde eu aprendi muito sobre Moçambique, indo aos


seminários, apresentações de trabalhos dados por esses jovens
graduados e por vários outros pesquisadores visitantes (Historiadores,
Arqueólogos, Antropólogos) - dentre os quais, mas não somente, um
número de pesquisadores franceses famosos – que trabalharam sobre
92

Moçambique ou de uma forma geral, sobre África277.

3.3 Actualidade, Urgência e Colectivo na Emergência de um Novo Campo de Pesquisa


em Moçambique

3.3.1 A Questão Rodesiana e o Contexto Social da sua Produção

O Director do Centro, Aquino de Bragança, intelectual engajado nas lutas pela justiça
social e emancipação dos povos oprimidos, considerado por muitos como o “nómada da luta
anti-colonialista278”, pôs logo a questão da necessidade do CEA de analisar a realidade
moçambicana tendo em conta as dinâmicas políticas e econômicas da zona austral de África.
Aquino de Bragança era uma pessoa que estava profundamente envolvida nos processos de
descolonização do Zimbabwé como Conselheiro pessoal do Presidente Samora Machel, o que
lhe permitiu envolver-se em múltiplas discussões com elementos da ZANU (PF)279 de Robert
Mugabe, e que viria em Fevereiro de 1980 a ganhar as eleições no novo Zimbabwé
independente.

O apoio de Moçambique à causa da independência do Zimbabwé remota aos primeiros


anos das lutas de libertação, nos anos 60 e 70, quando a FRELIMO e ZANU280 se
constituíram em movimentos de insurgência contra o domínio colonial. Por outro lado, devido
ao facto destes dois países partilharem a mesma fronteira, ambos, o governo da Rodésia e a
autoridade colonial portuguesa, empreenderam considerável energia na cooperação militar

277
Entrevista com Marc Wuyts, Julho de 2009. Tradução nossa: “his is where I learned a lot about Mozambique,
by listening to seminar presentations given by these young graduates and by various visiting scholars
(Historians/ Archeologists/ Anthropologists) – among whom, but not only, a number of famous French
scholars – who worked on Mozambique or, more generally on Africa”
278
Depoimento de Pietro Petrucci, jornalista italiano, In BRAGANÇA, Sílvia. Aquino de Bragança – Batalhas
ganhas, sonhos a continuar. Maputo : Ndijira, 2009, p.55.
279
Segundo Moore, do final dos anos 1975 aos princípios de 1977, a luta de libertação no Zimbabwé foi liderada
por um grupo de jovens comandantes de orientação marxista, comprometidos com a união do Zimbabwé
African National Union (ZANU) e da Zimbabwé African People´s Union (ZAPU) e dos seus exércitos e do
desejo de conquistar a soberania nacional e derrotar o neo-colonialismo. Para uma leitura sobre a história dos
movimentos de libertação do Zimbabwé, ver, MOORE, David. Democracy, Violence and Identity in the
Zimbabwean war of National Liberation: Reflections form the Realms of Dissent. Canadian Journal of
African Studies, Vol. 29, nº.3, 1985, pp.375-402; HENRIQUES, Julian. The Struggles of the Zimbabweans:
Conflicts between the Nationalists and the Rhodesian Regime. African Affairs, Vol.76,nº.305, Outubro,1997,
p. 495-518.
280
Zimbabwé African National Union.
93

contra os respectivos movimentos insurgentes281.

Em Março de 1976, Moçambique fechou as suas fronteiras com a Rodésia (actual


Zimbabwé), cortando assim as relações comerciais e impondo sanções ao governo de minoria
branca de Ian Smith. Esta atitude, segundo Tom Young (1990) e Margareth Hall (1990), fez
com que os rodesianos, como retaliação, acreditassem com mais vigor na necessidade urgente
de criar um grupo insurgente em território moçambicano, tendo como mote principal, a
sabotagem, afectando deste modo as populações e a economia do país. Era assim formada em
1976 a Resistência Nacional Moçambique (RENAMO)282.

Ataques ao território moçambicano iniciaram um ano depois da independência


nacional em fevereiro de 1976, primeiramente nas províncias de Tete, Manica, no centro de
Moçambique e mais tarde em Gaza. O país, um ano após a independência contra o
colonialismo português, vivia momentos de uma crise econômica e social agravada pelo
eclodir de sabotagens militares vindas do exterior. O “Jornal Notícias” de Julho de 1976,
estampou em letras garrafais no seu Editorial, “Estamos em guerra!” Afirmavam ainda os
jornalistas: “Moçambique está em guerra contra o governo racista da colônia britânica da
Rodésia do Sul. Em guerra contra os exploradores do povo irmão do Zimbabwé, em guerra
contra os assassinos do nosso próprio povo”.283

É nesse contexto que a FRELIMO solicitou ao director do Centro, Aquino de


Bragança, que realizasse um estudo sobre a situação sócio-econômica do Zimbabwé, para que
o governo moçambicano pudesse ter um melhor entendimento do tipo de problemáticas,
tensões e contradições que poderiam emergir no processo da negociação da independência do
Zimbabwé284. O CEA realizou, deste modo, em Outubro de 1976, o seu primeiro projecto
colectivo285: “Zimbabwé – A Questão Rodesiana”. Este empreendimento científico do CEA,

281
Para uma discussão sobre as origens da RENAMO, ver, YOUNG, Tom. The MNR/RENAMO: External and
Internal dynamics. African Affairs, Vol. 89, nº 357, p. 491 – 509; HALL, Margaret. The Mozambican
National Resistance Movement (RENAMO): A Study in the Destruction of an African Country. Journal of
International African Institute, Vol. 60, nº. 1, 1990, p.39-68.
282
A “Resistência Nacional Moçambicana” tem sido conhecido pelos seus vários acrónimos, os mais
comummente usados são MNR (especialmente no Zimbabwé) e RENAMO (cunhado em 1983). HALL,
op.cit, 1990, p.39.
283
Jornal NOTÍCIAS, 4/7/76.
284
Idem.
285
Contudo, nem todos os investigadores do CEA participaram neste projecto. O “grupo de Antropologia” e o
“grupo da História do Século XIX”, por exemplo, não estiveram presentes. Somente participaram nesta
investigação o “grupo da África Austral” nomeadamente, Aquino de Bragança, Maria Eulália de Brito, Luís
de Brito, e Antonio Pacheco.
94

deixou de respeitar a antiga divisão orgânica do Centro em áreas temas da história colonial e
juntou todos investigadores disponíveis numa mesma acção colectiva.

Foi ainda durante a preparação deste projecto de pesquisa colectiva, que o economista
Marc Wuyts, docente na Faculdade de Economia da UEM desde Julho de 1976 recebeu o
convite de Aquino de Bragança para integrar a equipe de pesquisadores do CEA. Durante
todo o período de trabalho de Marc Wuyts em Moçambique de Julho de 1976 a Dezembro de
1983, ele continuou a trabalhar tanto no CEA como na Faculdade de Economia que continuou
a ser o seu emprego “oficial” na UEM286.

O estudo produzido pelo CEA em Outubro de 1976 tinha como principal propósito
servir de base aos dirigentes da FRELIMO, como também nos partidos nacionalistas do
Zimbabwé à conferência de Genebra287, convocada pela Grã-Bretanha para esse mesmo ano e
que visava o estabelecimento de um governo de transição o que pressupunha a transferência
de poderes da potência colonizadora, Grã-Bretanha, para o povo zimbabweano288.

Segundo os próprios investigadores do CEA, este Relatório foi assim a primeira


actividade e publicação colectiva do Centro desde a sua constituição após a independência de
Moçambique. O projecto foi elaborado e investigado e o relatório colectivamente escrito num
curto período de três semanas289. Participaram nesta empreitada, oito investigadores do CEA,
nomeadamente Aquino de Bragança, Maria Eulália Brito, Luís de Brito, Kurt Mandorin,
Barry Munslow, António Pacheco, David Wield e Marc Wuyts.

“A Questão Rodesiana”, utilizando a perspectiva de análise marxista, procurou


compreender o desenvolvimento das estruturas coloniais econômicas da Rodésia com o
objectivo de distinguir as diferentes classes sociais e facções de classe que emergiram da base

286
Entrevista a Marc Wuyts, Julho de 2009.
287
Não chegou a cumprir a sua missão uma vez que na altura em que o Relatório fora finalizado já tinha
decorrido a referida conferência.
288
As conversações começaram em Genebra, Suíça em Outubro de 1976 entre o Governo de Ian Smith e os
partidos nacionalistas. Os nacionalistas estavam divididos apesar dos esforços do Presidente os Estados da
“Linha da Frente” para uni-los. Os dois principais líderes nacionalistas, Joshua Nkomo e Robert Mugabe
tinham, no entanto, formado nesse mesmo mês, a aliança política, “Frente Patriótica”. Ndabaningi Sithole e
Abel Muzorewa, líderes dos outros partidos, participaram na conferência separadamente. Ian Smith líder do
governo minoritário branco da Rodésia, insistia que o propósito da Conferência fosse o de implementar as
propostas de Henry Kissinger, então Secretário de Estado dos EUA, que incluíam controlo branco da defesa,
da lei e ordem. Os nacionalistas rejeitaram logo de inicio, essas propostas. Ivor Richard, o embaixador
britânico nas Nações Unidas presidiu à conferência que durou 7 semanas. As conversações foram adiadas
para Dezembro, contudo nunca mais foram recomeçadas. (Ver, WILLIAMS, Gwyneth & HACKLAND,
Brian. The Dictionary of Contemporary Politics of Southern African, London : Routledge, , 1988.
289
CEA, A Questão Rodesiana, Lisboa : Iniciativas Editoriais, 1978.
95

colonial. Pretendiam ainda identificar as prováveis posições de classe que estas poderiam
tomar naquela fase da luta no Zimbabwé290. Neste relatório, os investigadores do CEA
examinaram questões candentes para a fase de transição para a independência do Zimbabwé,
nomeadamente a importância do investimento estrangeiro na Rodésia, a questão da terra, a
dimensão, a composição e o carácter da classe operária e inferências sobre o seu papel
revolucionário na fase de transição para a independência. Traziam ainda alguns dados sobre a
pequena burguesia africana e a população colona, como forma de se empreender uma análise
mais actual sobre a sua heterogeneidade e potencial para o Zimbabwé pós-independente.

3.3.2 A Génese de uma Nova Forma de Fazer Pesquisa

Apesar do Relatório Final saído desta pesquisa não ter sido um estudo em
profundidade sobre o Zimbabwé, uma vez que o material bibliográfico empírico e disponível
em Moçambique foi bastante exíguo nesta área e, por outro lado, de nenhum dos seus
investigadores na altura, ser especialista no Zimbabwé, esta pesquisa teve o condão de mudar
radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro ao introduzir três inovações:

1. Uma abordagem na “actualidade” (sem contudo deixar de levar em


consideração as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história como tal;

2. Uma mudança de uma pesquisa individual para uma pesquisa colectiva


e;

3. A introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a


preocupações imediatas. Este último ponto significava que o tempo para se fazer
pesquisa era restrito e que os resultados desta tinham que se sujeitar a prazos muito
claros.

Assim, com a emergência desta nova prática científica no CEA, a sua antiga divisão
epistémica não fazia mais sentido. O CEA passou então a estar mais focalizado em questões
apegadas aos desafios actuais da reconstrução nacional e da transformação das condições

290
CEA. A Questão Rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978.
96

sociais. Enfim, um tipo de abordagem científica com um carácter mais actual e urgente. Deve-
se, no entanto, salientar que esta ênfase na actualidade, não anulou a preocupação do Centro
de sempre contextualizar historicamente toda a sua pesquisa, trazendo à discussão o impacto
da presença colonial no Moçambique contemporâneo.

É, a partir desta fase, que o CEA também mudou a sua ênfase numa pesquisa
essencialmente individual, que muitas das vezes seguia critérios pessoais dos investigadores,
ligados por exemplo aos seus projectos de fim do curso, para uma pesquisa maioritariamente
colectiva, sem contudo anular de forma absoluta, a primeira291.

O trabalho do CEA acabou assim por aparecer no colectivo. A pesquisa colectiva


reflectiu desta forma, um trabalho de convergência, onde acabou-se por criar um consenso
sobre a interpretação dos factos, mas que podia não ser a ideia de todos os investigadores.
Mesmo aqueles estudos que apareciam assinados individualmente, eram também fruto de
discussões e debate dentro do Centro. Por exemplo, nas entrevistas por mim realizadas, aos
pesquisadores do CEA, estes, na sua maioria, mencionaram esta praxis do Centro, de sempre
discutir entre colectivamente os seus trabalhos de pesquisa, desde a fase do design até a
apresentação dos seus resultados.

Por outro lado, em documentos por mim consultados sobre por exemplo o “Curso de
Pós-graduação em Desenvolvimento” (este projecto é discutido com mais pormenor no
capitulo seis) do CEA292, vários deles, em actas e outros relatórios, mencionavam a
participação colectiva, tanto dos professores, investigadores como dos alunos na análise
crítica e avaliação dos projectos de pesquisa realizados pelo CEA. Este Curso de
Desenvolvimento teve também uma importância extremamente grande para a definição do
trabalho intelectual do Centro bem como na inauguração desta nova forma de fazer pesquisa,
no Moçambique pós-independente.

A escolha de métodos colectivos de trabalho esteve intimamente relacionada com a


“visão de mundo” marxista da FRELIMO do poder colectivo, do “poder como grãos de areia
que não se pode separar”, em oposição ao que era considerado como “individualismo burguês

291
Alguns investigadores do CEA, não deixaram de publicar artigos, Relatórios de Pesquisa individuais. Estes
eram publicados por exemplo, nas Revistas do CEA, Estudos Moçambicanos, e a Revista de História, Não
Vamos Esquecer. Foram também publicados Relatórios de Investigação com assinatura individual, como é o
caso por exemplo do estudo de Marc Wuyts, Camponeses e Economia Rural. Ver, Wuyts, Marc. Camponeses
e economia rural em Moçambique. Maputo: UEM/CEA, 1979.
292
Vide por exemplo, UEM, CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, texto de apresentação do Curso, Mimeo,
1982.
97

e elitista”. Como afirmou Samora Machel em 1976, num discurso por ocasião do dia mundial
do trabalhador, “O saber e a ciência possuem uma dimensão eminentemente e intrinsecamente
colectiva”293. No mesmo diapasão, o CEA assumia como principio, A rejeição da divisão do
trabalho na produção de conhecimento característico da burguesia e o departamentalismo e
carreirismo acadêmico, bem como o isolamento profissional que aquela divisão de trabalho
gera”.294

O sentido de urgência no trabalho do CEA foi também produto desse engajamento


com a estratégia de desenvolvimento socialista em Moçambique e do contexto das lutas de
libertação na África Austral. Erapreciso analisar questões candentes da economia de
Moçambique em “transição para o socialismo,” como também de Moçambique no contexto
da África Austral, especialmente na sua relação com o regime racista sul-africano. Como
afirmou Fernando Ganhão em 1982, na reunião organizada pela UNESCO sobre problemas e
prioridades na formação em Ciências Sociais na África Austral,

Existe a necessidade urgente de investigar e controlar regularmente o


sistema sul-africano, de estudar e prever os desenvolvimentos da sua
economia, na medida em que afecta os restantes Estados da região.
Devemos investigar as questões que, no âmbito da SADCC têm de ser
resolvidas, para que as estratégias específicas de desenvolvimento das
economias possam ter sucesso295.

No prefácio da edição moçambicana296 desta obra, o CEA enfatizou esta nova função
social dos intelectuais, que era de manter um sentido de urgência e de actualidade na pesquisa
ao afirmar que “ no Moçambique pós-colonial,

293
Jornal NOTÍCIAS, 3/5/76.
294
CEA, Estudos Moçambicanos nº. 1 Editorial. Subdesenvolvimento e Trabalho Migratório. Maputo:UEM,
1980.
295
GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos
nº.4 ,Maputo: CEA,1983, p.16.
296
Foi editado pelo Instituto Nacional do Disco (INLD). É de referir que a Questão Rodesiana, foi a obra mais
traduzida do CEA, Houve edições em inglês, francês e italiano. Entrevista com Luís de Brito, Março, 2010.
98

O facto de a obra ter sido preparada especificamente como um


trabalho de base para a conferência Constitucional de Genebra sobre o
Zimbabwé, realizada em Outubro de 1976, realça a sua importância
como documento politicamente orientado, que tem como objectivos
expor o problema fundamental e conduzir as mentalidades para a sua
solução297.

Em suma, foram estas três inovações, actualidade na pesquisa, o colectivo e o sentido


de urgência que deram uma nova dinâmica à pesquisa científica do CEA, impulsionando deste
modo a emergência de um novo campo de investigação no Moçambique pós-independência.
O CEA sob a “batuta” de Aquino de Bragança e Ruth First298 procurou desenvolver uma
pesquisa aplicada e politicamente orientada, mas sempre com uma visão crítica e não
dogmática em relação ao marxismo-leninismo da FRELIMO. (veja aqui a razão pela qual não
creio ser adequado usar a palavra “subordinação” para tratar da relação entre o CEA e a
FRELIMO?).

Aquino de Bragança acreditava que “a função do intelectual mais do que trazer


soluções era de questionar299.” Contudo, esta não era a questão central que o poder político
procurava enfatizar. Segundo o Reitor Fernando Ganhão, a universidade era vista como “uma
estrutura organizada para produzir intelectuais que estivessem decididos a engajar-se no
processo prático de transformação social300. Portanto, mais do que compreender, questionar,
era preciso mudar as condições sociais de Moçambique em “transição para o socialismo”.

297
CEA, A Questão Rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978, p.16.
298
Ruth First tinha estado em Moçambique nos anos 75, no âmbito de um pequeno projecto sobre a força de
trabalho migratório moçambicana para as minas da África do Sul. Regressa a Moçambique em 1977 para a
realização da grande obra do CEA que foi O Mineiro Moçambicano”, tendo sido nomeada depois deste
projecto, Directora Cientifica do CEA. First regressa a Moçambique um ano mais tarde (ficaria em
Moçambique até a sua morte em 1982, através de uma carta-bomba, enviada pelo regime sul africano), com
este “titulo. A partir dai o CEA se reorganiza através principalmente da introdução do Curso de pós-
graduação em Desenvolvimento que de uma forma inovadora em Moçambique aliava o ensino e a
investigação com enfoque nos processos de transformação da produção em moldes socialistas me
Moçambique.
299
Depoimento de José Luís Cabaço, no Colóquio em Homenagem a Aquino de Bragança, Maputo, 28-29,
Julho, 2009.
300
GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos
nº.4 ,Maputo: CEA,1983, p.16.
99

3.3.3. Os processos da produção de “O Mineiro Moçambicano”: consolidando o novo


campo de pesquisa

Estas diferentes concepções do papel e do significado da pesquisa tornaram-se ainda


mais salientes com a preparação em 1977 do segundo projecto colectivo do CEA: um estudo
sobre o fluxo migratório para as minas da África do Sul. Este estudo tinha a particularidade de
ser agora dirigido, por Ruth First, jornalista, acadêmica e activista política anti-apartheid. A
sua entrega à causa das lutas de libertação nacional nos países da África Austral, o seu
compromisso com a luta anti-imperialista e a sua “disciplina férrea301” e rigor na pesquisa
científica iria, de facto, ter um grande impacto na vida do CEA marcando profundamente toda
uma geração de jovens cientistas sociais moçambicanos.

3.2 O Retorno Temporário de Ruth First à África Austral…Cada vez mais perto da
Toca do Lobo

Ruth First já tinha Estado em Moçambique, por algumas semanas em 1975, realizando
uma pesquisa sobre a força de trabalho migrante moçambicana para a África do Sul302. Para
além desta experiência breve com a realidade moçambicana, Ruth First, vivendo no exílio,
esteve profundamente activa pela causa da África Austral. Era membro do “Movimento Anti-
apartheid”, uma organização inglesa solidária com a libertação nacional da África Austral,
porém mais direccionada para a luta política nos países anglófonos, África do Sul, Zimbabwé
e Namíbia303. Houve ainda nesse período, uma outra organização, o Committee for Freedom
in Mozambique, Angola e Guiné-Bissau (CFMAG304), fundado em 1968 na Inglaterra pelo
aclamado intelectual, historiador, africanista e activista político, Basil Davidson, Lord Tony
301
Nas entrevistas realizadas a alguns investigadores do CEA (Teresa Cruz e Silva, Isabel Casimiro por
exemplo), quando lhes foi solicitado que falassem brevemente de Ruth First, apareciam frequentemente
termos como: “personalidade forte” “autodisciplina”, “dama de ferro” “sentido de direcção e
responsabilidade,” como também alusão a sua “disciplina férrea” da direcção dos projectos de pesquisa”.
302
A autora já tinha publicado em 1961 na Revista Africa South in Exile, um artigo sobre a questão do trabalho
mineiro na África do Sul intitulado, The Gold of Migrant Labour, portanto, Aquino de Bragança sabia do
significado de ter esta intelectual de renome na luta anti-apartheid aqui em Moçambique. Para mais detalhes
sobre o legado intelectual de Ruth First veja, African Review of Political Economy (ROAPE), nº.25.1982.
303
Entrevista com Poly Gaster
304
CFMAG foi dissolvido em 1975, tendo sido criado logo a seguir o MAGIC, que agora funcionava em duas
vertentes: como um Centro de Informação sobre Moçambique, Angola e Guiné Bissau, e uma outra vertente
focalizada no fomento de campanhas de emergência a favor de Angola. Em Moçambique, teve um papel
fulcral no fornecimento de um número considerável de cooperantes, especialmente na área da saúde e
educação. É de referir que alguns dos investigadores do CEA vieram através deste Comité.
100

Gifford, advogado e a jornalista Poly Gaster, que tinha trabalhado na época da luta armada em
Moçambique, para o Instituto Moçambicano na Tanzânia305.

De acordo com Tony Gifford, a ideia da constituição deste “comité de solidariedade”


se deve ao então presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, que segundo ele, esteve em
Oxford e Londres para palestras e ficou chocado com a ignorância dos ingleses
“progressistas” em relação a Moçambique. É desta forma, que Eduardo Mondlane teria
sugerido que se desenvolvesse algo para apoiar a luta da FRELIMO e de desmascarar o apoio
dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) a Portugal.

Foi assim criado o Comité, inicialmente direccionado para Moçambique, mas que foi
logo estendido aos outros países africanos de expressão portuguesa.306 Poly Gaster, pode-nos
ajudar a compreender melhor esta organização,

Era um Comité de solidariedade que apoiava a luta armada da


FRELIMO, MPLA e PAIGC. No Reino Unido, o objectivo principal
era de informar e mobilizar apoio político à causa das independências
nacionais, e tentar monitorar a aliança entre Inglaterra e Portugal e de
fazer campanhas contra o apoio que Portugal recebia da NATO307.

Ruth First (antes mesmo de receber o convite para vir trabalhar em Moçambique),
colaborou com o Comité, através de participação em campanhas contra a guerra colonial,
boicotes econômicos (por exemplo, com a realização de uma campanha contra o investimento
britânico no projecto da construção da barragem de Cahora Bassa), como também palestras308
e conferências309, denunciando o colonialismo português310.

305
GIFFORD, Tony. Basil Davidson and the African freedom struggle, Race & Class, nº.36,1994. A versão on
line deste artigo está disponível em: «http://rac.sagepub.com».
306
Ver, GIFFORD, op.cit, 1994.
307
Entrevista com Poly Gaster, maio, 2009.
308
Por exemplo, em Dezembro de 1974, Ruth apresenta na Universidade de Durhan, uma palestra sobre o legado
do colonialismo português em África. African Review of Political Economy (ROAPE), nº.25.1982.
309
Segundo Gaster, Ruth teve um papel importante na Conferência de Roma em 1970, quando os dirigentes dos
movimentos de libertação foram recebidos pelo Papa. Ruth apoiou a MAGIC na criação da delegação
britânica à conferência, como também apoiou na produção de um paper sobre as relações econômicas ente a
Metrópole e Moçambique colonial, apresentado pelo Comité na Conferencia.
101

Não obstante, o seu compromisso primário com a luta política e armada do ANC, esta
intelectual sul-africana tinha consciência de que era inapropriado ver as lutas pela liberdade
na África do Sul e a lutas pela autodeterminação das ex-colônias portuguesas como entidades
separadas. Ann Scott311, por exemplo, lembra-se de em Dezembro de 1974, ter assistido a
uma palestra dada por Ruth First na universidade de Durhan (Inglaterra), sobre o “legado do
colonialismo português em África312”. É ainda esta autora quem afirmou que Ruth First tinha
sido,

Uma das pessoas que entendeu politicamente que era preciso ver a
África Austral como um conjunto e que Moçambique e Angola eram
os pontos mais fracos dos regimes minoritários. Assim, era correcto e
legítimo, segundo ela, dar muita força àqueles movimentos de
libertação313.

Foi então neste ambiente político de luta a favor da libertação nacional da África e em
particular do último reduto do colonialismo e imperialismo nos países africanos sob
dominação do colonialismo português, que Ruth First conheceu e desenvolveu uma amizade
profunda com Aquino de Bragança, também um intelectual de esquerda e jornalista radical.
Aquino de Bragança era na altura, um dos membros fundadores do jornal de esquerda
Afrique-Asie para o qual Ruth First contribuía frequentemente. Foi então num desses
encontros, que Aquino convidou Ruth First a regressar a África Austral para viver e trabalhar
em Moçambique314. Foi de facto uma oportunidade única de Ruth First voltar à África Austral
e continuar a sua luta - agora “de corpo e alma” no solo africano - pela construção do
socialismo num Moçambique já independente e de estar mais perto da luta contra o governo

310
Um outra peça chave neste Comité, foi Basil Davidson, académico de renome, jornalista e activista que
escreveu prolificamente sobre Moçambique, Angola e Guiné-Bissau e que conheceu pessoalmente todos os
lideres dos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas.
311
Historiadora feminista inglesa, que escreveu, em parceria com Ruth First, a biografia de Olive Schreiner.
312
Vide, SHOWALTER, Elaine. Olive Schreiner: A Biography by Ruth First. Tulsa Studies in Women's
Literature, Vol. 1, No. 1 (Spring, 1982), pp. 104-109, University of Tulsa. Disponível em:
«http://www.jstor.org/stable/464101».Acesso em 24/06/2010.
313
Idem.
314
BRAGANÇA, Aquino & O´LAUGHLIN, Bridget. O Trabalho de Ruth First no CEA, Estudos
Moçambicanos, nº. 14, 1996, p.113-126.
102

de minoria branca na sua terra natal.

Como afirmou, o historiador moçambicano, João Paulo Borges Coelho,

Atrevo-me a pensar que ela aceitou o convite para vir para


Moçambique porque aqui estaria mais próximo do seu próprio país e
daqui poderia dirigir muito melhor um trabalho como aquele que veio
a ser desenvolvido pelo núcleo de estudos da África Austral, uma
espécie de observatório da evolução geopolítica e econômica da
região e da África do Sul, em particular. Eventualmente também, um
suporte acadêmico ao ANC315.

Como foi discutido anteriormente, Moçambique nestes primeiros anos do pós-


independência, devido ao compromisso da FRELIMO com a construção do socialismo e do
apoio às lutas de libertação na região austral, atraiu um grande número de intelectuais de
esquerda, viam como uma nova esperança em África na construção de um modelo alternativo
a hegemonia capitalista. Somente então, a partir deste contexto social e político, poderemos
compreender melhor as duas dimensões do trabalho intelectual de Ruth First em
Moçambique: contribuir para a construção do socialismo através do ensino e pesquisa, mas
também, como activista política e membro do ANC, apoiar a luta clandestina deste
movimento.

Ruth First, que estava de licença sabática na Universidade de Durham, veio então a
Moçambique em 1977 por um ano, inicialmente com o “título316” de Directora do Projecto
sobre o “Mineiro Moçambicano”. Após a sua conclusão, foi nomeada em 1979 para o cargo
de “Directora Científica do CEA”. A partir daí, Ruth First iria dirigir a maior parte da
pesquisa científica317, o Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento do CEA, nas suas duas
vertentes de pesquisa e ensino, e o Núcleo de Estudos da África Austral. Este grupo de

315
Entrevista com o autor, Agosto, 2007.
316
Segundo O’Meara, Ruth contou muitas vezes que concordou de boa vontade trabalhar no Centro na condição
de que iriam “dar-lhe um título,” uma vez que “sem um título ninguém nas estruturas iria levar-me a sério”.
Entrevista com o autor, 2007.
317
Segundo Dan O’Meara, apesar da sua “personalidade difícil,” a competência profissional e sentido de
liderança de Ruth no Centro, tinha deixado Aquino de Bragança sem nenhum papel significativo na definição,
organização, administração da pesquisa. Entrevista com o autor, 2007.
103

pesquisa esteve centrado na análise da situação política e econômica na África Austral com
particular destaque para as dinâmicas internas da luta do ANC e da análise política,
econômica e da estratégia sul-africana de desestabilização dos países da região.

3.3 Os Antecedentes da Pesquisa sobre O Mineiro Moçambicano318

Inicialmente, Ruth First tinha em mente realizar este projecto com Marc Wuyts e
David Wield, professor na Faculdade de Engenharia, mas segundo Marc Wuyts, Ruth First
estava aberta a sugestões de envolver mais pessoas. É assim, que David Wield e Marc Wuyts,
tendo já tido a experiência do trabalho colectivo para “A Questão Rodesiana”, aconselharam
Ruth First a tornar a pesquisa numa empreitada colectiva, envolvendo deste modo, grande
parte dos pesquisadores do Centro, como também de estudantes da universidade. Ainda de
acordo com Marc Wuyts,

Ruth aceitou a ideia, porém hesitante no princípio, porque ela estava


mais consciente (do que de mim de certeza, e acredito que também do
David Wield) da quantidade de trabalho organizacional que este
projecto iria envolver. O ponto decisivo para ela, no entanto, foi de
que esta abordagem iria beneficiar os pesquisadores moçambicanos
através de um processo de aprendizagem, fazendo pesquisa
colectivamente319.

“O Mineiro Moçambicano” iria tornar-se no maior projecto colectivo realizado pelo


CEA. No entanto, antes disso, o primeiro grande obstáculo à realização deste projecto, foi de
acordo com Wuyts de “barganhar” espaço para a pesquisa. Ainda de acordo com Marc Wuyts
esta questão não era um assunto menor, pois que implicou diferentes formas de conceber o
que era a pesquisa aplicada em Ciências Sociais. Assim, quando Ruth First foi ter com o
Reitor Fernando Ganhão com o pedido de se levar a cabo a pesquisa, num período de cerca de
sete meses (incluindo um mês de trabalho de campo), a resposta imediata do Reitor foi:

318
No capítulo intitulado, “Nunca Solidariedade antes da crítica”, é apresentado de forma detalhada o conteúdo
deste estudo.
319
Entrevista com o autor, julho 2009.
104

“porquê sete meses? Não pode ser feita mais rápido?”320

A réplica do Reitor, como podemos notar, não apenas significou desacordo em relação
ao tempo preconizado para a pesquisa, mas esteve também profundamente ligado à
concepções diferentes a cerca do tipo de pesquisa que se pretendia ter na Universidade. Em
alguns sectores da universidade, ataviados a uma concepção colonial das Ciências Sociais -
procuraram traçar uma linha muito rígida entre o que era uma pesquisa “pura” da pesquisa
“aplicada”. A pesquisa dita “pura” requereria então uma reflexão teórica profunda e muito
tempo (o qual não era apanágio do Reitor), enquanto a última consistiria principalmente em
colher e interpretar dados com base na aplicação de alguns métodos e técnicas padronizadas,
resumindo-se então numa mera aplicação/implementação de conhecimento em vez da sua
produção.

Enfim, uma tarefa que poderia ser feita rapidamente e rotineiramente, sem qualquer
espaço para a “descoberta”. Uma vez que pressupunha simplesmente a colecta de dados
sustentados por premissas preestabelecidas e uma execução e implementação passiva de
políticas, em vez de uma análise crítica dessas mesmas políticas. Por exemplo, Marc Wuyts
afirmou, que quando esteve a trabalhar na Faculdade de Economia como docente, notou
diferenças gritantes entre as práticas do trabalho acadêmico da Faculdade de Economia e no
CEA, onde o ensino na Economia caracterizava-se por “um estilo muito autoritário com
pouco espaço ou encorajamento activo para o trabalho de pesquisa321.”

Ainda de acordo com este investigador, o ensino na Economia esteve focalizado em


“dizer aos estudantes o que deviam pensar em vez de como pensar; no conteúdo em vez de no
método, deste modo, os estudantes recebiam pouco estímulo – e às vezes até
desencorajamento – para desenvolverem as suas capacidades de pensarem
independentemente322”. Como podemos ver, uma realidade bastante distante da retórica do
reitor, quando afirmava, “temos que aplicar métodos de ensino que ajudem o estudante, não a
memorizar e a copiar, mas a pensar, a enfrentar os problemas que estão em permanente
alteração na nossa sociedade e o nosso mundo em mudança”.323

320
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2007.
321
Idem.
322
Idem.
323
GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação de ciências sociais. Estudos Moçambicanos nº4,
1983, p.5-17.
105

Para Aquino de Bragança e Ruth First, a pesquisa social inevitavelmente envolvia um


acto de descoberta levando a inferências e conclusões que poderiam desafiar assunções e
ideias estabelecidas, e que por isso, poderiam nem sempre ser esperadas ou bem-vindas pela
classe dirigente da FRELIMO. A pesquisa social (“aplicada”) para estes autores, deveria
forçosamente entrar no domínio de visões contestadas acerca de como definir um problema
ou olhar para a sua solução. O CEA assim lutava por um espaço próprio, não somente na
questão da duração temporal da pesquisa, mas também, e mais importante, sobre o papel da
pesquisa (pressupondo uma análise crítica e não dogmatizada da realidade social) num
processo de transição socialista.

Estes impasses na definição da duração da pesquisa levou a que Ruth First usasse todo
o seu poder de persuasão e de fazer valer a sua reputação para superar esta primeira barreira e
de levar o Reitor a aceitar este projecto nos termos da sua abrangência e período de tempo. Na
opinião de Marc Wuyts, o tempo proposto foi de facto ridiculamente irrisório para este tipo de
empreitada, ainda que Ganhão visse isso claramente como “um empreendimento um tanto ou
quanto luxuoso”. Completar este projecto no tempo previsto era, para Ruth First, uma
necessidade, (do projecto como tal), mas também para demonstrar (através de um exemplo
concreto) de como a pesquisa deveria ser, se tivesse que ter um papel significante a tomar
num processo de transição socialista324. Por outro lado, era também uma forma de constituir e
proteger um espaço para um tipo de pesquisa crítica, aplicada e politicamente orientada que o
CEA começava a fazer vincar em Moçambique e que tinha as suas raízes, como vimos
anteriormente na “Questão Rodesiana”.

Este projecto de investigação colectiva começou com alguns meses de delimitação dos
objectivos da pesquisa e formulação das perguntas de partida, onde incluiu também trabalho
de arquivo e estatístico sobre o trabalho mineiro. O trabalho de campo envolveu a selecção de
trinta e cinco estudantes de várias faculdades (como parte das “Actividades de Julho”), que
depois de uma breve preparação de alguns dias, foram directo para o campo em brigadas
dirigidas pelos professores do CEA. Foram também seleccionados 14 pesquisadores, dentre
os quais, pessoal do Centro, pesquisadores associados, e estudantes. Havia ainda uma brigada
móvel formada pela Ruth First e Marc Wuyts (coordenador da pesquisa), que se moviam
freneticamente entre os diferentes lugares das outras brigadas para coordenarem as diferentes

324
Entrevista com Marc Wuyts, julho de 2009.
106

actividades da pesquisa e passar sugestões de uma brigada à outra325.

A fase final combinou análise de dados, redação e revisão do texto por parte dos
professores e investigadores do CEA. A tarefa de agregar contribuições díspares de
praticamente quatro diferentes autores (Marc Wuyts, David Wield, Helena Donly e Ruth
First) com distintas tradições acadêmicas e de um nível bastante variado de conhecimento e
experiência num trabalho coerente e de qualidade, foi de facto um enorme desafio para os
investigadores do CEA, que não teria sido concretizado sem a liderança de Ruth First e a
tomada de dianteira nesta última fase de redacção do relatório final.

O Projecto foi assim finalizado em 1977 e no tempo previsto. Tinha como principal
objectivo, analisar os efeitos do fluxo migratório da força de trabalho moçambicana,
particularmente do sul de Moçambique, para as minas sul-africanas de ouro e carvão. Este
objectivo esteve profundamente ligado a uma questão prática e urgente que o governo
moçambicano enfrentava, nomeadamente, de saber quais seriam as implicações imediatas
para a economia e para o povo moçambicano da decisão do governo sul-africano de cortar
drasticamente o fluxo de trabalhadores moçambicanos para as minas. Seria assim, publicado
primeiro (1977), como um “Relatório de Investigação” voltado para o governo moçambicano
pensar a formulação de políticas. Em 1979, foi então reeditado em livro tendo como com o
título, “O Mineiro Moçambicano - Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra”. Esta obra
iria também ser publicada em 1983, na língua inglesa, com um título deveras sugestivo do
contexto intelectual da análise marxista: The Black Gold: The Mozambican miner,
Proletarian and Peasant.

Não obstante o CEA ter no final conseguido apresentar um texto estruturado e coeso,
uma crítica que sobressaiu na avaliação e discussões do projecto após a sua finalização, e que
foi partilhada por alguns investigadores do Centro, era que os estudantes da UEM tinham sido
marginalmente envolvidos neste empreendimento: uma breve introdução ao tema nos
seminários, trabalho de campo intensivo e nenhum seguimento (uma vez que estes estudantes
regressaram às suas aulas normais depois do trabalho de campo e não foram envolvidos na
análise de dados e redacção).

Esta postura de questionamento crítico e de debate entre os pesquisadores e estudantes


do CEA em relação aos pontos fracos da sua participação no projecto colectivo, acabou sendo
um dos factores impulsionadores que permitiu que o grupo que liderava a pesquisa,

325
Entrevista com Marc Wuyts, julho de 2009.
107

nomeadamente Ruth First e Marc Wuyts, reflectissem sobre a necessidade de fortalecer os


pesquisadores do CEA através de uma formação sólida e de qualidade, em termos de técnicas
de pesquisa, análise de dados, trabalho de campo e redação.

Foi no âmbito deste tipo de debates que se “fermentou” a ideia de se criar o primeiro
Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento alguma vez dado em Moçambique326. No
entanto, antes mesmo que esta ideia tomasse corpo, e logo depois da finalização de “O
Mineiro Moçambicano”, um outro projecto colectivo foi realizado em 1978: o “Projecto sobre
o Desemprego” dirigido pelos investigadores do CEA, com a exceção de Ruth First, que tinha
regressado temporariamente para Inglaterra mas, já com o convite expresso de Aquino de
Bragança de voltar ao Centro, para assumir a posição de directora científica.

326
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
108

4. “A PEDAGOGIA” DO PROJECTO SOBRE O DESEMPREGO E O CONTEXTO DA


SUA PRODUÇÃO

4.1 O Projecto sobre o Desemprego: Uma “encomenda” do Poder

A proposta deste estudo apareceu no CEA em 1978, proposto por Luís de Brito, que
tinha sido convidado a participar num comité governamental criado para lidar com o
fenómeno do desemprego na cidade de Maputo. Nesse encontro, o governo acabou sugerindo
ao CEA que levasse a cabo um estudo para determinar o número exacto de desempregados
presentes na cidade capital. Tal como o primeiro projecto colectivo do CEA, “A Questão
Rodesiana”, este estudo tinha sido também “encomendado” pelo poder, com a finalidade
prática de dar pistas de como solucionar, não mais um problema externo, mas a partir de
agora, questões de âmbito “doméstico”, como era o caso do aumento gradual de
desempregados no espaço urbano.

O “problema”, na óptica do governo, era assumido como conhecido (havia um certo


número de desempregados em Maputo), como também a sua “solução” (abrir um número
igual de empregos nas machambas estatais). O que precisava ser conhecido era então o
número exacto desta categoria. Neste sentido, a posição do governo parecia clara, “dê-nos
uma ideia de quantos desempregados urbanos há em Maputo e nós iremos fazer as provisões
para fornecer o emprego necessário nas machambas estatais no sul.”327

Não havia deste modo, nenhuma noção de que estas assumpções poderiam ser
problemáticas. Existia somente uma preocupação em “atacar” o problema. Quando esta
solicitação do governo foi discutida dentro do CEA, os investigadores decidiram levar a cabo
a pesquisa, contudo reconfigurando a questão de partida, tornando assim uma pesquisa
orientada para o “problema” e não exclusivamente para a sua “solução”. Para os
investigadores a questão chave era dupla: (1) o que importava, não era tanto a questão do
número preciso de desempregados naquela altura, mas em vez disso as dinâmicas do
desemprego e da migração rural para a cidade e (2) o emprego nas machambas colectivas era
mais uma situação precária do que a “solução” proposta fazia crer, tendo em conta que o
fornecimento de mão de obra era tratada como algo residual nas práticas de planeamento das
327
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
109

machambas estatais, normalmente envolvendo somente oportunidades de emprego sazonais.

A problemática do desemprego, na óptica dos investigadores, era muito mais


complexa do que simplesmente canalizar esta força de trabalho desempregada para as
machambas estatais, pois que era preciso primeiro compreender as raízes rurais do fenómeno,
que segundo o CEA, estavam profundamente relacionados com a dependência estrutural da
economia camponesa em relação ao trabalho assalariado nas minas da África do Sul.
Tornava-se assim necessário fazer-se uma análise histórica do fenómeno desde o período
colonial até a actualidade. Este trabalho implicava por outro lado, a realização de pesquisas
documentais e de arquivo, combinada com trabalho de campo nas zonas de origem desta força
de trabalho desempregada, como também na cidade de Maputo, uma vez que constituía o
lugar para onde estes emigravam à procura de emprego.

O projecto foi assim realizado em colaboração com o partido FRELIMO e o


Ministério do Trabalho. Participaram no estudo os seguintes investigadores: Luís de Brito,
Maria Eulália de Brito, Kurt Mandoerin, Martha Mandoerin, Pauline Ong Bie Nio, Guido Van
Hecken, David Wield e Marc Wuyts328. Destes oito investigadores, cinco pertenciam ao CEA.
O resultado final desta pesquisa seria publicado em 1978 com o título: “Relatório Provisório
sobre o Desemprego no Maputo”. Este relatório estava estruturado em 11 capítulos,
abordando temas diversos, desde as características gerais dos desempregados na cidade de
Maputo, experiência de trabalho, período de desemprego, o fluxo para cidades como também
a questão da crise da economia colonial.

O estudo esteve alicerçado em três objectivos principais de pesquisa. Em primeiro


lugar, o CEA pretendia definir as características que identificavam as pessoas que procuram
trabalho, a partir de indicadores como a idade, sexo, período de trabalho assalariado, principal
trabalho assalariado, período de tempo em Maputo, como também a partir de informações
biográficas como a sua experiência de trabalho, qualificações, estrutura e situação familiar
etc. Para o efeito, foram realizadas pesquisas de campo no Ministério do Trabalho e
administrados inquéritos e entrevistas em dois bairros periféricos da cidade de Maputo, como
também numa zona rural (no distrito de Moamba).

Em segundo lugar, o CEA examinou o desemprego como um fenómeno integrado,


procurando deste modo olhar para a questão do sub-emprego na cidade e no campo e a sua
interligação predominantemente manifestada no fluxo para as cidades. Aqui, os

328
Cinco destes investigadores pertenciam ao CEA.
110

investigadores deram maior ênfase à sua vertente urbana, procurando ver como este operava e
qual eram os sectores mais afectados. Por último, os investigadores do CEA, procuraram
analisar o desemprego como um problema rural e como este, no final, iria significar também
num maior fluxo para as cidades.

Encontramos neste Relatório o mesmo arcaboiço teórico presente no artigo do


investigador do CEA, Marc Wuyts, intitulado “A Economia Política do Colonialismo”,
publicado em 1978 e que, de facto, iria fornecer a estrutura de análise do capitalismo colonial
em Moçambique, de toda a produção científica do CEA. Neste artigo, Wuyts, caracterizava
Moçambique colonial como estando politicamente dependente de Portugal e economicamente
subordinada ao capital estrangeiro não-português, fundamentalmente da África do Sul. Esta
dependência implicou a integração de Moçambique no subsistema econômico da África
Austral, no qual a África do Sul assumia uma posição dominante.

O desemprego para o CEA seria assim uma característica particular do


desenvolvimento capitalista329, onde este problema, no pós-independência, estaria
indissociavelmente ligado a dois momentos principais. Num primeiro momento, estava
conectado com a questão da estrutura econômica colonial portuguesa herdada no pós-
independência. O estudo deu assim grande ênfase à forma como Moçambique colonial foi
transformado em fornecedor de matérias-primas e mão-de-obra migrante para servir as
necessidades de acumulação das “burguesias imperialistas”.

A partir de uma análise marxista, os investigadores do CEA argumentaram que no


caso moçambicano nunca deixou de haver uma “subjugação das formas pré-capitalistas e
semi-capitalistas de produção à dominação do modo capitalista”, o que significou a
emergência de um campesinato produtor de culturas para o mercado (mas que no entanto
também continuava a produzir uma grande parte para a sua própria subsistência), de
trabalhadores migrantes para as plantações e minas (um trabalho migratório que mantém a
ligação com o campo), assim como a criação de uma classe operária para o sector da indústria
e o sector dos transportes nas cidades, etc.

Segundo o documento do CEA, a burguesia e pequena burguesia coloniais entraram


em crise com o fim do colonialismo em Moçambique, onde nas zonas rurais essa crise
resultou numa “quebra das redes de comercialização, bem como no abandono das machambas

329
CEA/UEM/IICM. Relatório Provisório sobre o Desemprego no Maputo, Maputo:UEM/CEA, 1978.
111

pelos colonos, combinadas com actos de sabotagem330.” Por outro lado, esta crise teve
também grandes implicações nas cidades onde se deu o encerramento das empresas, da
paralisação dos sectores de serviços, restaurantes, hotéis, etc., causadas por uma queda no
movimento turístico331.”

O segundo momento esteve ligado ao impacto da crise da economia sul-africana sobre


Moçambique, que se reflectiu com maior insistência na grande quebra no recrutamento de
trabalhadores moçambicanos para as minas a partir do inicio de 1976, uma vez que como
forma de gerir a crise o governo sul-africano decidiu substituir a mão-de-obra estrangeira por
mão-de-obra nacional332. Esta resolução concorreu, na óptica dos Relatores do projecto para o
aumento do desemprego na cidade de Maputo, uma vez que aqueles trabalhadores mineiros
sem possibilidades de trabalhar nas minas se concentraram na cidade de Maputo à procura de
emprego alternativo.

Esta prática do CEA de tentar compreender o processo de transição e de mudança no


período pós-independência a partir de uma análise da implantação e do impacto do
capitalismo colonial português em Moçambique nunca foi consensual. Houve ainda sectores
tanto no meio universitário, como também nas estruturas do poder, que defenderam, por
exemplo, que a mudança para uma “nova economia” em Moçambique implicaria somente
uma grande planificação socialista, através de grandes investimentos e sem nenhuma
necessidade de entender os processos estruturais e históricos que permitiram a emergência da
economia e sociedade moçambicana. Daí os dirigentes do Partido/Estado afirmarem ser
urgente “o escangalhamento das estruturas coloniais e a criação de novas estruturas”.333

A propósito, Marc Wuyts recordou-se de que quando chegou à Moçambique em 1976


para trabalhar inicialmente na Faculdade de Economia, “ um moçambicano, membro da
Faculdade”, ter-lhe dito certa vez, que “a solução para o problema do desenvolvimento
industrial em Moçambique era o de “escangalhar” tudo e começar de novo334. No entanto, é
preciso frisar que apesar do CEA enfatizar uma análise estrutural do fenómeno do
desemprego, não encontramos neste relatório, nenhuma discussão sobre como as políticas de
desenvolvimento socialista propostas pela FRELIMO no pós-independência, como por

330
CEA/UEM/IICM. Relatório Provisório sobre o Desemprego no Maputo:UEM/CEA, 1978.p.27.
331
Ibidem, p.28.
332
Ibidem, p.29.
333
Directivas Econômicas e Sociais ao III Congresso da Frelimo, Jornal Noticias, 12/09/78, p.3.
334
Entrevista com Marc Wuyts, Julho 2009.
112

exemplo, a transformação das empresas privadas em empresas estatais, a cooperativização, a


organização dos camponeses em aldeias comunais e o privilégio dos grandes projectos em
detrimento do incentivo do sector de produção familiar, tiveram o seu impacto no
recrudescimento ou não deste fenómeno. Mais do que fazer uma análise crítica do papel do
Estado pós-independente no aumento dos níveis de desemprego, este relatório, com o seu
carácter mais prescritivo do que analítico, tencionava simplesmente responder aos interesses
do governo em poder saber quantos desempregados havia na cidade, com o objectivo prático
de se encontrarem soluções adequadas para se agir face ao problema do desemprego.

Os relatores do projecto partiram da premissa de que a estratégia socialista da


FRELIMO estava certa e que era preciso então ajudar a encontrar o melhor caminho. No
entanto, havia alguns pontos em que tentava-se mostrar que a solução para o problema não era
tão linear, como queria fazer entender o governo. Havia alguns sectores do Estado que
defendiam que a solução do problema do desemprego estava no corte do fluxo de camponeses
proletarizados para as cidades e na posterior alocação dessa força de trabalho para as
machambas estatais e outros sectores de produção.

Os autores do Projecto, apesar de concordarem que o corte da migração do campo


para a cidade deveria ser uma das prioridades, argumentavam que o fenómeno do desemprego
em Maputo, era uma questão que estava essencialmente ligada ao desenvolvimento rural.
Tendo sempre como interlocutor os fazedores de políticas (Policy-makers), os investigadores
advertiram que os investimentos nas áreas rurais deveriam ser capazes de absorver mão-de-
obra, o que significava “serem aplicados tão extensivamente quanto possível e com reduzido
custo por pessoa, em vez de serem concentrados sob uma forma de capital intensivo”, como
vinha sendo feito de uma forma dispersa pelo Estado335.

Informaram ainda no relatório que muitos destes “operários e camponeses” terem já


obtido especializações e experiência de trabalho industrial durante a sua vida de trabalho nas
minas. O que significava, segundo eles, uma grande oportunidade para as estruturas
competentes aproveitarem estas qualificações e a partir daí, elaborarem uma “politica de
industrialização rural336”. De acordo com os autores do estudo, esta nova política deveria ser
iniciada com a “criação de pequenas oficinas (por exemplo de reparações) que exigiriam
baixo custo de investimento por pessoa, e que seriam uma solução desejável que,

335
CEA/UEM/IICM. Relatório Provisório sobre o Desemprego no Maputo, Maputo: UEM/CEA, 1978, p.41.
336
Ibidem, p.41.
113

simultaneamente, contribuiria para estabilizar os operários -camponeses nas áreas rurais.337”

A principal fraqueza deste estudo é que os seus autores procuraram cobrir temas
bastante distintos (desemprego rural, desemprego urbano, fluxo para as cidades, o sub-
emprego, a questão do gênero no desemprego urbano etc), num pequeno estudo que logo a
partida foi definido como “provisório”. Adicionando ainda o facto de que em algumas
situações, estes objectivos estavam fracamente conectados com a principal questão que era o
fenómeno do desemprego na cidade de Maputo. Por exemplo, há uma discussão detalhada
sobre os efeitos da crise da economia colonial e da restrição do fluxo mineiro para a África do
Sul com factores do aumento do desemprego que originou um fluxo maior de desempregados,
para a cidade de Maputo; no entanto, não se estabelece nenhuma conexão com o pós-
independência e o projecto de desenvolvimento socialista da FRELIMO. As causas do
desemprego continuam deste modo a serem vistas como ligadas a causas “externas” e não
também advindas dos efeitos das políticas “domésticas” do governo pós-colonial. E é Marc
Wuyts, um dos principais investigadores deste projecto, quem acaba confessando que, “ o
projecto sobre o Desemprego, em contraste com “O Mineiro Moçambicano”, deu uma
ilustração clara do que acontece na ausência de uma forte coordenação da pesquisa e do
controlo de qualidade baseada numa bem definida pergunta de partida”.338

O processo de pesquisa, ainda de acordo com este autor, tinha sido de facto mais
“democrático”, mas que também significou que diferentes grupos fizessem coisas bastante
distintas, com pouco ou mesmo nenhum controle de qualidade. De facto, algumas dessas
notas só seriam agrupadas e sistematizadas num relatório de pesquisa depois do retorno de
Ruth First ao CEA em 1979 quando “ela insistiu que a pesquisa que tinha sido feita não
deveria ser deixada inacabada339.”

4.2 Os Anos de Alvoroço na Universidade e no CEA: 1979 – 1984

Uma análise crítica deste relatório não pode deixar, no entanto, de procurar
compreender o contexto social e político no qual este conhecimento foi produzido. Como
podemos notar, no período da realização do projecto sobre o desemprego, em 1978, o CEA

337
Ibidem, p.42.
338
Entrevista, julho, 2009.
339
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
114

começou a experimentar momentos de grandes incertezas, e posições divergentes sobre que


direcção tomar, que tipo de pesquisa realizar, prioridades de investigação, quem incluir, etc.;
mas também devido a uma mais ampla política universitária preconizada pelo partido/Estado,
particularmente ligadas também a discussões à volta de introdução de um novo programa de
ensino nas Ciências Sociais em geral e na História em particular. Estas mudanças foram o
corolário da transformação da FRELIMO em 1977, num auto-proclamado “partido marxista-
leninista”, o que se reflectiu numa maior radicalização da política em todos sectores da
sociedade.

O partido/Estado procurou assim, ser um “instrumento forte, que orientasse o povo na


construção da nova sociedade.340” Segundo, Samora Machel, o Estado foi visto como um
instrumento do partido. Um partido que tinha por função “dirigir o conjunto da sociedade,
estabelecer as grandes linhas de orientação e definir as prioridades e pronunciar-se sobre as
principais tarefas341”. No âmbito da “estruturação” do Partido, foi criada em 1980 o “Comité
do Circulo do Partido” da UEM, que aspirou “criar as bases para a implementação do partido
naquele centro educacional e assim garantir que a linha política da FRELIMO assumisse o
papel dirigente na concepção e execução das tarefas assumidas pela Universidade”342. Como
referiu, Jorge Rebelo, o secretário do Comité Central para o Trabalho Ideológico, “a nossa
universidade ainda está muito longe de ser aquilo que queremos (…) apenas uma pequena
percentagem dos seus alunos serem operários e camponeses ou seus filhos”343.

Logo cedo, o partido vincou a necessidade de uma ligação mais directa da


universidade com os problemas reais do país. Moçambique vivia na altura também o
recrudescimento da guerra contra a RENAMO, as agressões militares perpetradas pelo regime
de Ian Smith, com ataques bombistas em plena cidade de Maputo344 aliada a uma progressiva
crise econômica e social em todos sectores produtivos da sociedade. Estava-se assim num
contexto de também grande crise de legitimação do poder político.

Isto levou a uma maior radicalização da FRELIMO, na medida em que se tornava

340
Jornal NOTÍCIAS, 10/05/78.
341
Jornal NOTÍCIAS, Samora Machel em Entrevista a Informação Moçambicana, 2/1/79.
342
Intervenção do Reitor da UEM, Fernando Ganhão numa Reunião na Universidade com professores e
estudantes sobre “o ano da estruturação do Partido” e da criação do Comité do Partido na Universidade,
NOTÍCIAS, 17/04/78, p.4.
343
Jornal Noticias, 27/12/80.
344
O Jornal NOTÍCIAS, referia no dia 27/7/78, uma explosão na cidade de Maputo ferindo 50 pessoas, alegando
tratar-se de um “acto de subversão rodesiana e sul-africana”.
115

cada vez mais dominante ideologicamente e coerciva no sentido de “disciplinar” as vozes


discordantes e de tentar dar um novo impulso na economia do país. Nota-se um aumento de
formas coercitivas, como a introdução da “operação produção345”, dos campos de
“reeducação” na província do Niassa, a instituição da lei dos crimes contra a “segurança do
povo e do Estado Popular346”, a partir da qual foi constituído o “Tribunal Militar
Revolucionário347”.

Nota-se nesta fase também um incremento da “vigilância popular”, nos bairros


residências, aldeias comunais, centro de produção, escolas, etc., contra as agressões militares
da Rodésia e África do Sul, mas também contra os “inimigos internos da revolução
moçambicana”. Estávamos assim em presença, parafraseando Michel Foucault, da produção
de “mecanismos de segurança”, para o controle da população. Para este autor, a primeira
dessas tecnologias disciplinares seria a “vigilância”, quer dizer, a constante observação
através da ordenação de “corpos” no espaço e tempo.

A outra forma de “vigilância” esteve ligada aos procedimentos classificatórios, como a


recolha sistemática de informação sobre os indivíduos, como por exemplo a realização de
censos populacionais.348 Assim para Michel Foucault, a política não estaria preocupada
meramente em apresentar questões sobre a guerra ou paz ou de organizar o enriquecimento
material da sociedade; ela iria adicionalmente levar em conta o bem-estar físico, saúde e
longevidade da população349. Podemos surpreender no discurso do Ministro da Segurança de
então (valendo a pena citá-lo demoradamente), ecos da teoria analítica deste pensador francês,

345
Segundo Lavínia Gasperini, “foi concebida para livrar as cidades dos chamados improdutivos, que eram
apresentados como marginais e delinquentes”. Nesta categoria, segundo a autora, “foram incluídos todos os
que não puderam demonstrar, através de um documento ou contracto de trabalho, que tinham um emprego”.
Afirma ainda Gasperini, “depois de um breve período em que a população improdutiva foi convidada a
apresentar-se de livre vontade, de modo a ser transferida para as zonas rurais, começou a fase compulsiva.
Foram feitas rusgas nas ruas e perseguições sistemáticas nas casas, sobretudo a noite. Ver, GASPERINI,
Lavínia. Educação e Desenvolvimento Rural, Roma : Lavoro/ISCOS, 1989, p.77.
346
Todo este cenário de crise levou a que se fizessem grandes discussões dentro do CEA, nem sempre
consensuais, como tinha sido por exemplo a questão dos fuzilamentos. Alguns eram a favor de uma maior
radicalização do poder, enquanto uma maioria estava contra.
347
Somente no mês de Abril de 1979, foram executados por fuzilamento 20 pessoas acusadas de crimes de “alta
traição, mercenarismo, espionagem, atentado e terrorismo”. Ver Jornal NOTÍCIAS de 1/4/79 e de 14/4/79.
348
Moçambique inicia em 1980 o seu primeiro Censo nacional da população no pós -independência.
349
FOUCAULT, Michel. Lecture 17 March 1976”, Society Must Be Defended: Lectures at the Collège de
France, 1975–76 , New York: Picador, 2003, p. 239–40.
116

Há uma certa semelhança entre o nosso trabalho e a medicina. A


medicina actua sobre as doenças do corpo; nós actuamos sobre as
doenças que o inimigo introduz na nossa sociedade. Como a medicina,
há um trabalho preventivo, profiláctico, curativo; há também por
vezes necessidade de operar um órgão doente, irremediavelmente
doente, perdido, e que não deve ficar em contacto com as partes sãs do
corpo.350

A crise atingia também de forma profunda o sector da educação. Houve falta de


recursos humanos qualificados, apesar de na altura muitas destas dificuldades terem sido
minimizadas com a vinda de professores cooperantes. Moçambique ressentia-se, no sector da
educação, do seu legado colonial. Foi preciso então, na óptica do poder, medidas austeras para
reverter essa situação. Para justificar a existência da universidade, o governo adoptou uma
abordagem utilitária351.

Os estudantes foram formados naquilo que o governo considerava serem as


necessidades prementes do país e as áreas cruciais para o desenvolvimento econômico
socialista. Cursos que eram considerados de menor prioridade e que tinham poucos alunos
foram fechados tais como, Biologia, Química, Física, Geologia, Matemática, Geografia,
Línguas Modernas, Direito352, etc. Estava-se num contexto, em que “as carreiras e interesses
individuais estavam completamente subordinados aos interesses nacionais353.” Esta crise teve
o seu efeito na interrupção de todos os cursos da área de Ciências Sociais e Humanas durante
um período de cerca de 10 anos354.” Segundo o Reitor, Fernando Ganhão,

Encerrei a Faculdade de Letras e Ciências, por volta do não 1978, para os


seus recursos irem formar a Faculdade de Educação, para formação de
professores em vários escalões. Havia o curso de formação de

350
Jacinto Veloso, Ex-Ministro da Segurança em entrevista por ocasião do 5º aniversário da SNASP, Jornal
NOTÍCIAS, 11/10/80.
351
BEVERWIJK, Jasmin. 2005, op.cit.
352
Foi encerrada em 1983, Segundo Samora Machel, “até que a qualidade de formação aí ministrada possa ser
substancialmente melhorada. Samora questionou ainda, “a formação aí dada, e o nível político e profissional
de um grande número de quadros saídos da UEM. Ver, Jornal NOTÍCIAS, 23/3/83.
353
MÁRIO, M; FRY, P.; Chilundo, A. Higher Education in Mozambique, Oxford: James Curry, 2003.
354
LOFORTE, Ana; MATE, Alexandre. “As Ciências Sociais em Moçambique”. Mimeo. Maio,p.3, 1993.
117

professores de Historia na faculdade de educação.355.

Alguns dos pesquisadores tiveram que abandonar o seu trabalho no CEA356 para
ocupar cargos de docência na Faculdade de Educação, como também na Faculdade de
Marxismo-Leninismo, criada em 1981 pelo partido FRELIMO, que tinha como objectivo
“assegurar a formação ideológica dos estudantes357. Na altura, havia uma disciplina intitulada
“Materialismo Histórico e Dialéctico (MHD)358” que também era obrigatória para os alunos
de todas as faculdades da UEM e que eram ministradas por professores vindos da Europa do
Leste e maioritariamente da então “Republica Democrática Alemã” (RDA). Muito cedo,
começaram a surgir conflitos entre estes docentes e estudantes. Na óptica dos estudantes, os
docentes, na sua maioria cooperantes vindo dos países do Leste, ensinavam um “marxismo
dogmático e catecista” onde não era permitido nenhum tipo de debate aberto. E de facto,
podemos também encontrar este tipo de “animosidades” com “essa gente da RDA359” com os
pesquisadores do CEA.

Os estudantes de MHD reivindicaram um marxismo que levasse em conta as


dinâmicas do contexto moçambicano e não algo estanque, “congelado” e pré-estabelecido
como afirmavam ser os conteúdos programáticos das disciplinas do curso, acabando por
“baptizar” esta disciplina de “materialismo histérico e diabólico”360. Em Outubro do mesmo
ano, o director da Faculdade de Marxismo-Leninismo, Luís de Brito (um dos investigadores-
fundadores do CEA, e o interlocutor do CEA com o governo na altura da preparação do
“projecto sobre o Desemprego) pediu demissão por impossibilidade de enfrentar a resistência
que foi oposta, sobretudo por parte dos membros da FRELIMO na Universidade e pelos

355
Entrevista com Fernando Ganhão.
356
Muitos desses quadros só seriam resgatados ao Centro com a fundação no CEA em 1980, pelo Aquino de
Bragança e Jacques Depelchin da Oficina de História, do CEA.
357
MENESES, Paula. “A Questão da Universidade Pública em Moçambique e o desafio da pluralidade de
saberes”. In Lusofonia em África – História, Democracia e Integração Africana, CODESRIA,pp.44-66, 2005.
358
Em Cuba, a importância do Marxismo-leninismo também esteve reflectida na introdução num Currículo
reorganizado da Universidade de Havana (e outras), onde cada estudante deveria fazer 1 ano de um curso
intitulado “Materialismo Dialéctico”, independentemente do que ele estava estudando. Vide, HOLLANDER,
Paul. Research on Marxist Societies: The relationship between Theory and Practice. Annual Review of
Sociology, 1982, p.319-351.
359
Entrevista com Valdemir Zamparoni, setembro, 2011.
360
Entrevistas realizadas aos seguintes investigadores: Isabel Casimiro, João Paulo Borges Coelho e Teresa Cruz
e Silva.
118

cooperantes dos países socialistas na tentativa de levar o ensino do marxismo-leninismo á


especificidade do desenvolvimento da sociedade moçambicana.

A demissão do director da faculdade, a falta de clareza e de unidade em relação à linha


a ser adoptada neste ensino e a sua impopularidade no seio dos estudantes levou a FRELIMO
a suspender e a extinguir a Faculdade de Marxismo-Leninismo em Fevereiro de 1983361.
Segundo Lavínia Gasperini, o director da faculdade, que tinha criticado o ensino de um
marxismo “congelado”, foi em primeiro lugar designado para frequentar um curso de
formação sobre os temas do marxismo. O curso foi realizado pelos docentes vindo dos países
do leste, que anteriormente o director de faculdade tinha criticado.

Na sequência da sua recusa em seguir o curso, que devia ter um carácter de


“reeducação ideológica”, a “Comissão de Controlo do Comité do Círculo da FRELIMO na
Universidade” levantou um processo disciplinar contra o director da faculdade a 9 de Julho de
1983. Ainda segundo as palavras de Gasperini, a 17 de Julho, o Ministério do Interior foi
buscá-lo a casa e, sob a cobertura da ilegalidade permitida pela “Operação Produção”, foi
deportado para o Niassa para trabalhar no campo de uma empresa agrícola estatal362.

No mesmo período houve também um debate intenso em relação à questão “se a


Antropologia poderia libertar-se do seu passado colonial ou não”363, como também ao seu
papel no desenvolvimento socialista de Moçambique. Esta discussão ganha corpo com a
realização em Março de 1982 do “1º Seminário Interdisciplinar de Antropologia”, organizado
pelo Departamento de Arqueologia e Antropologia da UEM, onde Jacques Depelchin,
investigador do CEA e um dos fundadores da Oficina de História, tece grande críticas à
disciplina de Antropologia, como também da Antropologia Marxista então em voga,
principalmente em França. Para Depelchin, a disciplina não conseguiu superar a sua herança
colonial, daí que seria inadequada para reflectir sobre a mudança social, principalmente
daquele fruto da experiência da luta armada levada a cabo pela FRELIMO. Como afirmou
esse autor,

Para alguns, uma Antropologia marxista, engajada politicamente seria

361
GASPERINI, Lavínia. Educação e Desenvolvimento Rural, Roma: Lavoro/ISCOS, 1989, p77.
362
GASPERINI, op.cit, 1989, p78.
363
Depoimento de João Paulo Borges Coelho na Conferência em memória de Ruth First, Maputo, 17/08/2007.
119

uma alternativa. Existem fortes razões para duvidar disso, quando se


coloca a questão de saber se esta Antropologia marxista seria capaz de
frutificar a herança metodológica da luta armada, […] o que dá uma
aparência de aceitabilidade à Antropologia marxista como método e
técnica de investigação científica não vem do que é herdado da
Antropologia, mas do que é herdado do marxismo364.

E a sentença de Jacques Depelchin (1987), em relação à Antropologia foi peremptória:


“proceder à sua destruição ao mesmo tempo que se constrói uma nova ciência de investigação
que tira os princípios metodológicos do marxismo temperado na forja da revolução
moçambicana”365. Ana Loforte do Departamento de Antropologia, nesse “1º seminário
interdisciplinar de Antropologia”, contra-argumentava, que no caso moçambicano,

A política de assimilação adoptada pelo colonialismo português,


tornou desnecessária a utilização da Antropologia nas tarefas
administrativas366 e que por outro lado, o colonialismo português
nunca encorajou a vinda de antropólogos portugueses para estudar os
usos e costumes dos povos dominados367.

Esta rejeição do papel da Antropologia no processo do desenvolvimento socialista de


Moçambique poderia estar ligada, na visão de João Paulo Borges Coelho, a uma questão de
diferentes escolas de pensamento. Como afirmou este investigador,

Havia uma hostilidade acadêmica entre o pessoal do CEA –


364
DEPELCHIN, Jacques, Antropologia e História Africana à luz da História da Frelimo, 1º SEMINÁRIO
INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA, Maputo: Departamento de Antropologia/UE, Março de 1987,
p.49.
365
DEPELCHIN, 1987, op.cit, p.52.
366
Loforte, Ana, “Trabalhos realizados no âmbito da Antropologia em Moçambique”, 1º SEMINÁRIO
INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA, Maputo: Departamento de Antropologia/UEM, Março de 1987,
pp.61
367
LOFORTE, 1987, op.cit, p.62.
120

maioritariamente anglo-saxónico, sul-africanos, ingleses, um outro


canadiano e americano, mas sobretudo nenhum francês. No fundo eles
estavam preocupados em localizar elementos de colonialidade neste
debate. Era o período da Antropologia marxista de Claude
Meillassoux, Pierre-Philipe Rey, etc.368

No entanto, Luís de Brito defendeu que todo o debate à volta da questão da


Antropologia marxista francesa, “não era uma questão disciplinar, mas uma questão de
comunicação entre duas culturas, a francesa e a inglesa369”. Ainda segundo Brito,

O Geffray quando chega ao Departamento de Antropologia da UEM,


tenta uma aproximação com o CEA e é muito mal recebido. E não é
por ter um “background” de Antropologia, é simplesmente uma
diferença de cultura. É que o Centro está dominado pelos anglófonos e
não se entendem. A comunicação é muito difícil e é mais fácil
repelir370.

Houve de facto um problema de “comunicação”, como Luís de Brito refere, contudo


não podemos deixar de surpreender divergências também em relação aos métodos analíticos a
serem usados para olhar a realidade social moçambicana. Encontrávamos, por exemplo, no
CEA, uma ênfase na economia política e nos processos de transformação da produção, onde a
problemática era construída a partir de uma análise materialista da sociedade, dando pouca
atenção aos estudos culturais e antropológicos das institucionais locais no contexto
moçambicano.

Uma abordagem que de certa forma esteve mais presente nos antropólogos franceses
como Christian Geffray e sua análise das dinâmicas internas (fundamentalmente culturais) da
guerra civil em Moçambique. Um foco de análise, que tinha sido subestimado na pesquisa do
CEA. Marc Wuyts corrobora este argumento, “nós não demos muita atenção às questões da
autoridade tradicional ou relações de parentesco que talvez nos deveríamos ter dado”371.

368
Entrevista com o autor, agosto, 2007.
369
Entrevista com o autor, agosto, 2007.
370
Entrevista com Luís de Brito, agosto, 2007.
371
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
121

Na mesma senda a investigadora do CEA, Judith Head, afirmou, “achávamos que era
uma espécie de luxo querer fazer tudo e também focalizar nos aspectos culturais. O nosso
foco era grandemente na produção e não na cultura. Foi uma questão de escolha”372. Este foco
do CEA na “produção” e na economia política de Moçambique, acabou tornando-se no
principal elemento da crítica por parte de outros investigadores não pertencentes ao Centro373.
Segundo Aurélio Rocha, na altura professor e investigador do Departamento de História da
UEM,

Uma coisa de facto levou a que as relações não fossem as melhores.


Não porque estivéssemos em conflito, mas de facto estávamos um
bocadinho de costas voltadas. Por uma razão que tem a ver com o
facto de que apesar de acharmos, por um lado, que o CEA
desempenhava esse papel importante nos estudos de desenvolvimento;
por outro lado, achávamos que os estudos desenvolvidos pelo CEA,
tinham uma carga ideológica muito forte, por influência do partido e
naturalmente do governo. Aqueles estudos apareciam muitas vezes
como estudos de encomenda e nem sempre reflectiam aquilo que era a
realidade374.

Foi assim neste contexto de intensificação da crise em todos os sectores da sociedade


moçambicana e da introdução de novas políticas universitárias, que grande parte dos projectos
de pesquisa do Centro se desenvolveu, começando pelo “Mineiro Moçambicano”, passando
pelo “Projecto sobre o Desemprego”, até a criação do “Curso de Pós-Graduação em
Desenvolvimento”, com o regresso definitivo de Ruth First ao Centro. Neste intervalo de
tempo, o CEA desempenhou um papel fulcral na criação e preservação de um espaço de
ensino e investigação em Ciências Sociais. De facto, durante o período de 1978 -82, o CEA

372
Entrevista com Judith Head, agosto, 2007.
373
Como veremos posteriormente, nos finais dos anos 1980, o antropólogo francês, Christian Geffray, iria
publicar um artigo onde tecia duras criticas ao trabalho do CEA, acusando-o de ser uma espécie de braço
intelectual do poder, resumindo-se em “caucionar” cientificamente a ideologia do partido. Vide, GEFFRAY,
Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d’une meconnaissance
scientifique. Politique Africaine nº29, 1988.
374
Entrevista com Aurélio Rocha, Setembro, 2007. Esta posição crítica de Rocha em relação ao trabalho
científico do CEA será discutida posteriormente.
122

tinha se tornado na única instituição de pesquisa e ensino em Ciências Sociais375.

375
Vide, LOFORTE, Ana; Mate, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique. Mimeo. Maio, p.3, 1993.
123

5. A DUPLA CONTRIBUIÇÃO DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO: PRODUÇÃO DE


CONHECIMENTO POLITICAMENTE ENGAJADO

5.1 O ensino como um acto de investigação

Ruth First regressou definitivamente a Moçambique em 1979 para dirigir o trabalho


científico do CEA e se deparou com a ausência quase total de um sistema de ensino em
Ciências Sociais. O único curso que oferecia o nível de licenciatura na UEM era o de
Economia. Mais uma vez o país ressentia-se das condições estruturais herdadas do
colonialismo português. Um sistema de ensino bastante fraco e onde a componente de
pesquisa era praticamente inexistente ou concebido como algo externo à universidade. Este
cenário já tinha sido testemunhado por Ruth First quando da sua primeira visita ao país, em
1977, para dirigir “O Mineiro Moçambicano”.

No final deste projecto tinha ficado evidentes as limitações em termos de experiencia


de pesquisa empírica e na colecta e análise de dados nos poucos estudantes moçambicanos
universitários. De facto, estes tinham tido um papel secundário no projecto, nomeadamente na
análise e redacção do texto. A pesquisa para “O Mineiro Moçambicano” mostrou, por outro
lado, que o factor chave para a libertação econômica de Moçambique em relação ao capital
sul-africano residia também numa reflexão crítica - através de uma relação orgânica entre
ensino e pesquisa - sobre as estratégicas de desenvolvimento socialista da FRELIMO
(particularmente na questão do desenvolvimento rural e da socialização do campo), no seu
propósito mais amplo de quebrar com a dependência econômica sul-africana. Marc Wuyts
sintetizou estes dois aspectos quando afirmou que,

A inspiração para o CD - e particularmente, para a sua dimensão de


pesquisa – veio principalmente daquilo que nós aprendemos com a
experiência do Mineiro Moçambicano – não somente acerca do
conteúdo, mas também do método376.

376
Entrevista com Marc Wuyts, julho 2009.
124

Podemos então encontrar dois grandes leitmotivs para a criação deste curso. Um
primeiro ligado à tentativa de colmatar uma lacuna estrutural ligada à questão das deficiências
do sistema de ensino do período colonial, que em nada tinha contribuído para a educação dos
moçambicanos, e por outra, contribuir através da introdução de uma pesquisa empírica
intimamente ligada ao ensino e que procurava contribuir na solução dos problemas candentes
para o desenvolvimento socialista de Moçambique.

O primeiro esboço do projecto foi desenhado por Ruth First, Marc Wuyts e David
Wield (em consulta com Aquino de Bragança), logo depois da finalização do Mineiro
Moçambicano. O curso foi inicialmente concebido para auferir o grau de Licenciatura,
todavia se verificou que não havia candidatos suficientes, com o nível de bacharelato para
preencher as vagas disponíveis. Na óptica de Marc Wuyts esta fraca aderência se deveu à
herança colonial que tinha sido extremamente limitada para os moçambicanos negros.

Luís de Brito traz-nos uma outra leitura para a fraca aderência de candidatos, por
exemplo, da Faculdade de Letras, que nessa altura tinha apenas três cursos com o nível de
bacharelato: Linguística; Geografia e História. Uma vez que inicialmente o Curso de
Desenvolvimento (com 2 anos de duração) tinha sido concebido fundamentalmente para servir
como licenciatura para os graduados do bacharelato de História, foi então preciso que fosse
reconhecido pelos docentes do Departamento de História. Porém não foi o que aconteceu no
terreno. Segundo Luís de Brito, os docentes desta faculdade, “não viam com bons olhos” este
novo curso, uma vez que prevalecia na altura, a ideia de que o CEA possuía uma abordagem
demasiado economicista377. Previsivelmente a maioria destes docentes não participou no
Curso, com a única excepção do Carlos Serra que frequentou o primeiro (dois anos).

O que é certo é que o CEA também percebeu, não obstante todos estes obstáculos no
preenchimento das vagas, que havia no país muitos quadros que ocupavam posições
importantes nos vários sectores do governo ministeriais, bancos etc., e que não possuíam
formação universitária, mas estavam, no entanto, profundamente envolvidos na prática de
elaboração de políticas, incluindo também uma prática de reflexão acerca dessas políticas. O
CEA se viu na contingência de pensar então um novo modelo de ensino.

O “Curso de pós-graduação em Estudos de Desenvolvimento” deveria assim


congregar alunos de todos os sectores chaves do aparelho do Estado, quadros da
Universidade, ou exteriores a esta, seleccionados pela sua experiência e contribuição, quer

377
Entrevista com Luís de Brito, março 2010.
125

real ou potencial, para a planificação do desenvolvimento e sem restrição em relação ao grau


de escolaridade. Os estudantes do Curso foram recrutados em vários sectores da sociedade,
desde os ministérios, governos provinciais, forças armadas, no partido FRELIMO, órgãos de
imprensa, repartições públicas, universidade, como também pesquisadores do próprio CEA. O
foco passou a ser então o de treinar quadros directamente envolvidos nas tarefas da
construção do socialismo em Moçambique.

Paralelamente a esta componente de ensino, que compreendeu a aquisição de


conhecimento sobre economia política, o curso tinha uma componente de pesquisa muito
forte. A pesquisa para o CEA não foi vista como uma empreendimento acadêmico, tendo
lugar somente em laboratórios, em círculos exclusivos da pesquisa. Pesquisa social, para os
membros do Centro, significava o estudo e análise da realidade social do país. Pesquisa
significou o estudo das condições da produção das machambas estatais mas também
familiares, nas cooperativas, dentro de unidades de produção industriais. Foi assim, uma
pesquisa orientada para a prática e análise marxista. Como afirmou Wuyts,

De uma forma geral, nós partilhamos uma simpatia básica com o


projecto socialista da FRELIMO, mas nós também estávamos cépticos
e profundamente preocupados em relação à estratégia e táctica que a
FRELIMO estava seguindo para transformar a produção e trabalho no
contexto da transição, particularmente (mas não somente) dentro da
economia rural e sociedade. Nós sentimos que isso era importante,
dada a ausência em qualquer lugar de esforços na pesquisa que
procurassem questionar a natureza dessas políticas, uma vez que a
pesquisa aplicada era definida como simplesmente de preencher os
detalhes de algo já pré-estabelecido378.

Ruth First, considerava que a tarefa na luta de Moçambique – a construção de uma


“nova sociedade socialista” – requeria um programa e sistema educacional flexível e
“urgente”. Argumentava ainda que não havia tempo para se esperar 3 ou 5 anos para se
completar um grau acadêmico. Era necessário então que se proporcionasse novas formas de
entradas aceleradas para os níveis superiores de ensino e pesquisa. Este argumento estava

378
Entrevista com o autor, julho 2009.
126

fortemente conectado com um outro desígnio da “educação revolucionária” da FRELIMO,


que era o de quebrar as velhas barreiras elitistas da educação herdada do período colonial.

Por outras palavras, mais do que um diploma acadêmico, este curso estava preocupado
em ter estudantes de várias disciplinas científicas e sectores profissionais, com grande
motivação política e aplicação “revolucionária” nos desafios da construção de uma sociedade
socialista. Era assim um curso que se propôs logo de inicio, interdisciplinar estruturado em
cada ano através de uma problemática colectivamente orientada, politicamente inspirada e
com um projecto de pesquisa altamente focalizado.

Assim, sob liderança de Ruth First379, o primeiro Curso de Desenvolvimento, com


duração de dois anos380, deu início nos princípios de 1979. No final do curso os estudantes
receberam um “Diploma de Graduação Superior em Estudos de Desenvolvimento”, que era
equivalente ao Grau de Licenciatura. Foi assim uma qualificação especializada, mais alta que
uma qualificação pré-universitária, que segundo o CEA, “em condições não-revolucionárias,
iria requerer o grau de Bacharelato381”.

O Curso foi ministrado em tempo parcial (cerca de 12 horas por semana durante e um
mês de trabalho de campo a tempo inteiro), com vista a permitir que os estudantes –
trabalhadores pudessem não só manter a sua actividade normal, como também melhorá-la
através dos conhecimentos adquiridos382.

5.2 Logo de inicio…Algumas Vozes Discordantes

Esta iniciativa do CEA, de certa forma arriscada, mas também controversa, não foi
totalmente consensual, criando assim grandes tensões, principalmente à volta da natureza do
diploma que se haveria de outorgar aos estudantes. De acordo com Marc Wuyts, “ o Reitor
queria um sistema de certificação a dois níveis: dando um grau de pós-graduação aos alunos
de nível de bacharelato enquanto os outros (sem nível superior) iriam somente receber um

379
Ruth First foi de facto “a máquina” deste projecto. Ela viria a dedicar toda a sua vida ao curso, desde a
coordenação de aspectos ligados a logística (garantir que houvesse cadeiras, carteiras, salas etc.) como
também aos conteúdos curriculares do curso e direcção, análise e redacção dos relatórios de pesquisa.
380
Os cursos que se seguiram tiveram no entanto a duração de 1 ano, considerados mais intensivos.
381
Notes for the Rector of UEM concerning the Graduation Ceremony of the CEA and the meeting with students
enrolled for the 1981 Development Course. 28/03/81, 3pags. Mimeo, 1981.
382
UEM,CEA, Curso de Desenvolvimento, 1981., Maputo: CEA, Mimeo 1982.
127

certificado de participação”.383 A ideia era assim que diferentes estudantes tivessem diplomas,
distintos de acordo com os seus antecedentes acadêmicos. Ruth First veementemente se opôs
a esta solução, argumentado que todos os estudantes teriam feito o mesmo curso e assim
deveriam ser tratados igualitariamente384.

Alguns pesquisadores, professores, estudantes e trabalhadores da universidade que não


concordavam com a ideia de um curso universitário onde se aceitava por exemplo, estudantes
com a 9ª classe. Consta também alguns estudantes universitários, se sentiam incomodados
com a presença desses estudantes. Como afirmou Yussuf Adam,

O Curso de Desenvolvimento era inovador no sentido de ir contra a


mentalidade colonial portuguesa, que ainda hoje se manifesta aqui, de
que só pode entrar para a universidade quem tem o sétimo ano. Os que
tinham diploma naquela altura andaram zangadíssimos, diziam que
havia pessoas com a quarta classe e que podiam ter um grau de
mestrado. Havia já muitos estudantes da Universidade que tinham a
Licenciatura, eles tinham essa visão de grau na formação385.

Devido a estas objecções, o “Curso” nunca foi integrado na estrutura de graus


acadêmicos da universidade. Segundo Manuel de Araújo, que na altura era director da
Faculdade de Letras falando sobre o relacionamento entre a sua faculdade e o CEA afirma,
(...)

Mas não pense que não houve discussões, zangas. Houve. Por
exemplo, o Curso de Desenvolvimento não foi uma coisa pacífica,
porque a faculdade de uma forma geral não concordavam com as
metodologias (mais interactiva e participativa), que eram feitas. E
como o CEA não podia conferir graus, achávamos que isso era uma
estupidez, que devia estar ligada a faculdade para poder conferir
graus. Essas discussões, no entanto, serviam para limar as arrestas,

383
Entrevista com o autor, Julho, 2009.
384
Entrevista com Marc Wuyts, Julho, 2009.
385
Entrevista a Yussuf Adam, Agosto de 2007.
128

estudar as formas de avançar e, foi assim que se decidiu avançar com


o projecto.386

E ainda Carlos Serra afirmou,

O grande problema deste certificado é que era um certificado de


mérito, simbólico, era a ausência naquela altura de equivalência entre
o que se fazia e a formação acadêmica, o que não era possível, porque
as pessoas tinham diferentes graus acadêmicos; havia pessoas com o
quinto ano, com a nona classe e pessoas com formação
universitária387.

No final, esta questão da natureza do diploma a ser conferido aos estudantes, nunca
chegou a ser resolvido: os estudantes recebiam um diploma, em que o seu estatuto foi deixado
indefinido pelo sistema educacional moçambicano388.

5.3 Os Objectivos do Curso de Desenvolvimento

O Curso de Desenvolvimento esteve organizado à volta de problemas chaves da


economia e tinha três objectivos principais: (1) Formação e preparação dos estudantes para o
estudo e análise da realidade sócio-econômica de Moçambique; (2) Permitir aos estudantes
uma melhor e mais profunda ligação entre a teoria e a pratica. Com este propósito, os
estudantes foram afectos, em conjunto com as estruturas competentes a projectos concretos de
investigação, seleccionados pela sua importância para a planificação do desenvolvimento do

386
Entrevista com Manuel de Araújo, setembro, 2007.
387
Entrevista com Carlos Serra, setembro, 2007.
388
Apesar desta situação de “indefinição” na educação moçambicana, este curso, devido a sua alta qualidade, foi
reconhecido internacionalmente, havendo até casos de estudantes, que tinham o nível de Bacharelato
(diferentemente do caso brasileiro, em Moçambique, este grau é inferior a Licenciatura) e que
subsequentemente usaram o diploma do CEA, para conseguirem lugar nos cursos de Mestrado e
Doutoramento, no exterior.
129

país; (3) Permitir um reforço da relação existente entre as actividades da Universidade e as


necessidades das estruturas do Partido e do Governo389.

Para além destes objectivos gerais do Curso, o CEA tinha quatro outros objectivos de
formação que consistiam em colocar a Universidade ao serviço da sociedade como também
das estruturas do Partido e do Governo. Visava assim:

(a) Treinar quadros seleccionados por aquelas estruturas para trabalharem em


problemas relacionados com o desenvolvimento social e econômico de Moçambique;

(b) Organizar projectos de investigação sobre questões relevantes para a estratégia do


desenvolvimento, com particular destaque para a produção;

(c) Aprofundar e pormenorizar o estudo sobre as investigações referidas no ponto


anterior, de modo a possibilitar a sua utilização pelas estruturas do Partido e do Governo, em
particular as instituições nacionais para a educação e formação de quadros incluindo a
Universidade;

(d) Em cooperação com estas estruturas, divulgar os resultados da investigação, de


modo a permitir uma consciência política sobre a realidade social moçambicana, bem como
das perspectivas de desenvolvimento durante a transição para o socialismo.

O “Curso” teve por outro lado, como um dos grandes propósitos epistémicos,
contrabalançar a quase completa falta de conhecimento e interesse na pesquisa teórica e
empírica sobre África em geral e a África Austral em particular, que prevalecia naquele
tempo na universidade e de uma forma geral, entre os intelectuais moçambicanos.
Moçambique era tratado como uma “ilha” em África. Como observou Marc Wuyts,

A maioria dos intelectuais estavam bem familiarizados com o trabalho


de marxistas franceses (Althusser e Poulantzas eram particularmente
os favoritos), mas não tinham lido quase nada de trabalhos
acadêmicos sobre África (Austral) - tanto de dentro de África como
também na literatura em geral. A maior parte do trabalho do “Curso”
do CEA procurava corrigir este hiato – politicamente,
economicamente e culturalmente390.

389
Ibid.
390
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
130

Este projecto de ensino e pesquisa consistiu basicamente em aulas e seminários,


trabalhos práticos e projectos de investigação que constituíam a formação principal dos
estudantes. Era realizado em tempo parcial como forma de assegurar aos estudantes que
continuassem com as suas actividades profissionais e, desta forma, garantir-se a sua ligação
com os seus locais de trabalho. Ainda segundo a direcção do CEA, este não deveria exceder o
número de 35 estudantes391. A selecção destes estava a cargo do director do Centro, da
Directora de Investigação do Centro, de dois elementos do corpo docente e de um elemento
das estruturas do partido na UEM. O Comité de selecção enviava posteriormente a lista dos
candidatos propostos para aprovação do Reitor da Universidade.

5.4 Os Métodos do Curso de Desenvolvimento

No que se refere aos métodos de trabalho do Curso, o CEA propôs conduzi-lo em


primeiro lugar, dentro de uma perspectiva de análise marxista e em segundo lugar através de
métodos colectivos de trabalho. Esta análise marxista da realidade social teve três
implicações:

1 - Pautou-se por uma “concepção materialista da sociedade” e, assim, se afastou da


“tradicional divisão burguesa das Ciências Sociais”. Esta posição significava que a teoria e a
análise social eram instrumentos de contestação no espaço da academia na Universidade. E é
neste espaço de conflito de posições teóricas que o CDse constituiu como um curso
pluridisciplinar onde se mesclavam disciplinas como Economia Politica, História, Estatística,
Sociologia, etc.

No Curso de Desenvolvimento de 1981 encontrávamos disciplinas como, “Economia


Politica de Moçambique”, “Economia Mundial”, “Métodos Empíricos I”, e “Métodos
Empíricos II”. No segundo semestre, “A transição para o socialismo”, “Classe e Estado em
África”, “África Austral” e “Métodos Quantitativos III”. Duas das seis disciplinas abordavam
a situação moçambicana, no período colonial (Economia Política de Moçambique) e nos
desafios do pós-independência (A transição para o socialismo). Esta última disciplina dava
mais ênfase ao problema da transformação, as estratégias de desenvolvimento socialista

391
UEM,CEA, Curso de Desenvolvimento, 1981. Maputo: CEA, Mimeo, 1981, p.5
131

particularmente nas relações entre a agricultura a indústria pesada e a indústria ligeira. Eram
também discutidos os problemas de investimento e planificação. Neste sentido, era um curso
que pretendia responder aos anseios do Estado Moçambique dirigido pelo partido FRELIMO
na consolidação do desenvolvimento socialista em Moçambique.

2 – O segundo método de trabalho estava relacionado com a ênfase na pesquisa


colectiva, mais do que em projectos individuais. O ensino e formação dos estudantes eram
realizados através da execução dos projectos colectivos discutidos na sala de aula e que
serviam como base para a teorização dos problemas gerais do desenvolvimento do país. Esta
forma de organização era materializada através de um “regime de seminários de estudo” que
incentivava a participação activa dos estudantes na preparação e execução dos projectos de
investigação. Incluiu um mês, a tempo inteiro, de trabalho de campo, que era complementado
com aulas e seminários durante um período do dia. O primeiro semestre foi preenchido com
aulas e seminários, onde os estudantes preparavam o projecto de pesquisa que iria ter lugar
nas “actividades de Julho392”, onde todos os estudantes da Universidade estavam envolvidos.
O segundo semestre era passado a analisar os dados da pesquisa com os estudantes e a
elaboração do Relatório.

O terceiro e último método do Curso de Desenvolvimento pressupunha que “a


selecção das áreas de investigação teria que obedecer às prioridades da planificação do
desenvolvimento moçambicano definida pelo Partido FRELIMO393”. Como afirmou o CEA,
“será dado especial ênfase aos problemas da transformação rural e industrial e as necessárias
ligações entre agricultura e a indústria na presente fase de transição socialista em
Moçambique394” Como se pode depreender, as prioridades da pesquisa social em
Moçambique e mais particularmente as prioridades do Curso de Desenvolvimento estavam
intimamente ligadas ou por outra eram desenhadas a partir das prioridades definidas a nível
político395.

392
Era uma jornada nacional de produção onde estudantes e trabalhadores da universidade, durante todo o mês
de Julho, iam trabalhar em vários domínios da sociedade como forma de proporcionar um melhor
conhecimento das realidades e necessidades do país, naquela fase de reconstrução nacional. Por outro lado,
estas atividades pretendiam, de acordo com a Frelimo, combater o espírito elitista e alheamento da
universidade em relação aos diversos tipos de trabalho prático.
393
UEM,CEA, Curso de Desenvolvimento, 1981. Documento de apresentação do Curso, Maputo: CEA, Mimeo,
1981, p.4.
394
Ibidem,p..4.
395
Este tema será discutido em pormenor no tema sobre o “engajamento crítico do trabalho intelectual do CEA”.
132

5.5 A Crítica e Auto-Crítica no Curso de Desenvolvimento

Neste Curso foi sempre assegurado um espaço de crítica e debate colectivo, onde se
discutiam de forma aberta aspectos relacionados com a conceitualização do curso, conteúdos,
disciplinas, horários, avaliações, etc. Estes encontros regulares serviram como um momento
de avaliação crítica do Curso,” onde o pessoal docente era solicitado a participar na discussão
e responder aos pontos levantados pelos estudantes. Como afirmou o economista
moçambicano, Dipac Jaiantilal, estudante do Curso de Desenvolvimento de 1982,

Era dos pouco cursos multidisciplinares. Nós discutíamos os temas


todos em conjunto, de uma forma aberta e crítica, com professores,
alunos e outras pessoas interessadas. Eram pessoas das mais diversas
origens, havia antropólogos, economistas, sociólogos, cientistas
políticos, jornalistas, juristas, enfim uma grande diversidade e
discutíamos abertamente, colectivamente396.

Por exemplo, na “sessão de crítica e autocrítica397” de 5 de Junho de 1981, os


estudantes levantaram vários pontos críticos do curso, dos quais destacamos: (1)“contradição
entre o tempo disponível e o volume de matéria dada” e afirmavam na mesma senda que o
curso era “bastante intensivo”; (2)“a não uniformização dos conceitos”; (3)“atraso na
distribuição dos textos”; (4)“falta de ligação entre o curso e os projectos de investigação398”.

Em relação ao ponto (1), o CEA replicou que se “tratava de um curso intensivo,


destinado ao nível de pós-graduação” e que assim, requeria “uma aplicação considerável por
parte do aluno, bem como uma prévia e contínua preparação fora da “sala de aula”. No que
concerne ao ponto (2), O CEA, responde ipsis verbis: “esta crítica não cita exemplos, o que
torna impossível confrontá-la. A base da nossa preparação e ensino colectivo é a utilização de
análises comuns do trabalho, o que define os conceitos que utilizamos.399” Em relação ao

396
Entrevista com Jaiantilal Dipac, agosto, 2007.
397
UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, op.cit.
398
UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, op.ci..
399
Ibidem,pp.3.
133

ponto (4), os mentores do Curso contra-argumentaram: “não se pode fazer investigação sem
conceitualizações teóricas e esta base teórica deverá ser dada inicialmente. Tanto as aulas
como os textos foram seleccionados pela sua relevância para elaboração da investigação.400”

Houve, no entanto, um tema que acabou tendo grande destaque no debate e que estava
intimamente relacionado com a abordagem teórico-metodológica que o Curso de
Desenvolvimento deveria privilegiar. Esta questão viria a ser enfatizada neste encontro, como
consequência de duas grandes críticas feitas pelos estudantes de que o Curso tinha “a
tendência para sobrevalorizar aspectos econômicos” como também a “ ausência de aspectos
culturais401”. Este era um tema que tinha sido também aludido por outros investigadores na
universidade e que não estavam envolvidos no curso, como por exemplo, António Sopa, Ana
Loforte, durante as sessões de entrevistas por mim realizados; mas também iria ser a grande
crítica de Christian Geffray (1988) no seu artigo sobre o trabalho científico do CEA402.

Os estudantes tinham de facto tocado num ponto sensível que estava ligado a um dos
principais objectivos do Curso de Desenvolvimento, que era o de contribuir para a estratégia
de desenvolvimento socialista da FRELIMO. É assim que o CEA logo de seguida contestou,
afirmando que se tratava, “apesar de tudo, duma crítica burguesa ao Marxismo de que o
mesmo sobrevaloriza a economia403.” Todavia, em relação à questão da provável exclusão da
cultura nos programas, o CEA não poderia ter sido mais evasivo: “Gostaríamos de ter mais
especificações quanto a “aspectos culturais404”

Para os professores do Curso de Desenvolvimento, como podemos notar, “questões


culturais” pareciam ser algo “luxuoso405” face aos desafios do presente, que seguindo estes,
implicava a escolha de um modelo teórico que privilegiasse questões ligadas à transformação
socialista da economia, à análise das condições de produção, vistas aqui como centrais para o
desenvolvimento. Antes que tudo, na visão do CEA houve uma urgência em formar quadros

400
Ibidem, pp.8.
401
De acordo com um documento dactilografado do CEA, onde se reproduz na íntegra os comentários dos
quatro grupos de supervisão do Curso, que foram na altura apresentados na sessão de crítica e autocrítica de 5
de Junho de 1981, alguns estudantes referiam ao conteúdo do Curso como tendo a “tendência para
sobrevalorizar aspectos econômicos”, como também a “ausência de aspectos culturais”. Ver, UEM/CEA,
Curso de Desenvolvimento de 1981, 27/8/81, 12pags, Mimeo.
402
GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d´une
meconnaissance scientifique. Politique Africaine nº 29, 1988.
403
Ibid.
404
UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, 27/8/81, Maputo: CEA, Mimeo, 1982.
405
Entrevista com Judith Head, agosto, 2007.
134

nacionais aptos para o trabalho de reconstrução nacional e, por outro lado, era preciso
conceber uma teoria e método focalizado nos problemas da transformação da economia
herdada do período colonial para uma economia de carácter socialista, livre da dependência
econômica, que ainda persistia, em relação a África do Sul. Daí a necessidade também de se
analisar Moçambique no contexto da região. Como afirmaram os investigadores do CEA,
“uma estratégia para o desenvolvimento, ou seja, para a transformação socialista, tendo em
conta a realidade social de Moçambique no âmbito da região da África Austral406.” Assim, o
único método capaz de permitir esta transformação das condições sociais dos moçambicanos
teria necessariamente que passar, pela abordagem da “economia política marxista”. Esta
perspectiva, diferentemente por exemplo da economia política liberal, que enfatizou a
importância do chamado “mercado livre”, focalizou no domínio da produção como a última
realidade407.

Os professores do Curso de Desenvolvimento argumentaram, que esta ênfase nos


aspectos econômicos na análise da sociedade moçambicana estava assim ligada a toda uma
concepção do que deveria ser a missão das ciências sociais num país engajado na
transformação das condições sociais das suas populações, como também inserido num
contexto regional de luta de libertação contra a economia capitalista da África do Sul. Ainda
reagindo a crítica de ser “demasiado economicista”, Judith Head, investigadora do CEA e
professora no Curso de Desenvolvimento afirmou,

Isso foi deliberado, porque nós sentimos que o motor da


transformação era a economia, e era imperativo conseguir transformar
as relações de produção, por isso, nós tínhamos que investigar. Mas
isso não significa que achássemos que outros aspectos não eram
importantes, simplesmente sentimos que aquilo era o mais importante.
Era preciso focalizar o nosso trabalho. Se olharmos para o material do
Curso de Desenvolvimento, veremos que às vezes é somente a
economia mas algumas vezes tem um carácter mais amplo, num
sentido de entender a natureza da luta política nos Estados da África
Austral. Não se podia ser reducionista e reduzir tudo a relações
econômicas, e havia um debate sobre isso dentro do CEA. 408

406
UEM/CEA, Curso de Desenvolvimento de 1981, op.cit.
407
Vide, DALY, Glyn. Radical(ly) Political Economoy:. Luhmann, Postmarxism and Globalization. Review of
Internarional Political Economy, 11:1, Fevereiro, 2004, p.1-32.
408
Entrevista a Judith Head, agosto, 2007.
135

Na óptica dos proponentes do Curso de Desenvolvimento, fundamentalmente Ruth


First/Marc Wuyts/Bridget O'Laughilin/Judith Head, “desenvolvimento” era conceptualizado
numa perspectiva da análise marxista, como “estudo da transformação das relações de
produção” e isto significava não só uma abordagem que privilegiasse o aumento da produção
e produtividade como também da emergência de novas relações sociais de produção (relações
de classe), que quebrassem com a estrutura de classes do período colonial.” É assim que
Judith Head vai afirmar que “a definição e concepção de desenvolvimento constituiam um
objectivo inseparável da estratégia sócio-econômica e política da FRELIMO para a
transformação socialista da sociedade moçambicana”409.

Era um estudo da realidade de Moçambique, com vista a analisar as questões da


transformação social naquele momento de transição para o socialismo. Havia uma
necessidade de focalizar os projectos de investigação, de acordo com a sua relevância para os
problemas da transformação da produção. E, como afirmou Judith Head, “a produção não é
uma questão exclusivamente econômica, porque a produção, em termos marxistas, implica
relações sociais, ou política; é as três simultaneamente”410”E reafirmou ainda Judith Head,
“mais do que entender, transformar. O nosso foco estava na produção e não na cultura e era
um pouco luxuoso querer fazer tudo”411

Em suma, a ênfase que o CEA pôs, logo no inicio, na produção e força de trabalho
(particularmente na economia rural) surgiu da convicção da sua importância e da sua urgência
para os desafios que Moçambique enfrentava. A expectativa do CEA era de que as políticas
econômicas – e, em particular, as políticas dirigidas para produção e mão-de-obra – deveriam
procurar seguir um processo de transformação ao expandirem recursos de investimentos para
preservar e fortalecer as capacidades de produção a todos os níveis e para salvaguardar o
consumo básico (fazendo com que os investimentos fossem para o consumo), em vez de
engajar num programa de investimento massivo centralizado no sector estatal, deixando o
consumo e a produção camponesa, como também a troca, suportarem o peso do inevitável
processo de ajustamento que viria do grande aperto financeiro.

A principal meta do Curso de Desenvolvimento foi assim o de criar um espaço para


um tipo diferente de pesquisa, mais ligada a uma concepção de “ciência social aplicada”,
409
Entrevista a Judith Head, agosto, 2007.
410
Ibid.
411
Entrevista com Judith Head, agosto, 2007.
136

virada para a transformação das condições sociais. Por outro lado, o curso pretendia também
formar pesquisadores moçambicanos, e não simplesmente acadêmicos que de forma acrítica
aplicassem modelos pré-existentes. Pelo contrário, um dos objectivos primordiais era de que
os alunos pudessem exercitar a sua capacidade de desafiar/questionar as assumpções de
políticas, para engajar em análises concretas e de explorar alternativas, mesmo se isso
significava levantar questões incómodas: em suma, de ser capaz, como afirmou Marc Wuyts
“de pensar de uma forma independente”412.

E o facto de se escolher um curso sobre “desenvolvimento” é elucidativo da intenção


do CEA em aliar o seu programa de pesquisa e ensino à estratégia política da FRELIMO para
a “revolução” moçambicana. O Curso de Desenvolvimento iria assim traduzir nos seus
objectivos principais uma ligação muito forte com o partido FRELIMO, procurando desde o
seu início manter e aumentar a participação do partido nos projectos de investigação e, deste
modo, fazer com que as estratégias socioeconômicas e política da FRELIMO para a
transformação socialista de Moçambique servissem de orientação à direcção da investigação.

5.6 Os Conteúdos Teóricos do Curso de Desenvolvimento

Como foi mencionado na secção anterior, o CEA ao conceber este Curso de


Desenvolvimento procurou focalizar a sua abordagem na questão da produção, pois que,
segundo os seus investigadores, o contexto político de Moçambique - liberto de uma
dependência política de Portugal, mas ainda economicamente dependente da África do Sul -
exigia urgentemente uma solução. De acordo ainda com estes investigadores, essa solução
passava por uma análise profunda, principalmente da estrutura econômica herdada do
colonialismo, enfim uma estudo da economia política de Moçambique desde o período
colonial até aos desafios da “transição socialista”. Podemos encontrar este tipo de raciciocinio
se olharmos mais atentamente para o curriculo oferecido. Por exemplo, a disciplina de
“Economia Política de Moçambique”, procurou aliar uma análise do econômico com o
político, procurando deste modo, fazer uma análise do carácter do capitalismo colonial em
Moçambique, as formas de impacto econômico, impacto das companhias concessionárias, a
análise sectorial da economia rural, como também a questão da crise do capitalismo colonial
412
Entrevista com o autor, julho, 2009.
137

na altura da independência. Em relação aos aspectos políticos, esta disciplina olhou


exclusivamente para a história da FRELIMO, origens, luta armada e “luta de classes”.

Encontramos também a mesma lógica nas disciplinas do 2º semestre (“Transição para


o Socialismo”, “Classe e Estado em África”, “Métodos Empíricos” e “África Austral”), que
também focalizam na análise da produção e da criação de novas relações sociais em moldes
socialistas. Tendo em conta que todo o curso teve como substrato a análise marxista a
disciplina “Classe e Estado em África” faz jus a esta escolha. Nesta disciplina, foram
discutidos a tipologia e a formação de classes em Moçambique incidindo na questão da
diferenciação classista no seio dos camponeses, semi-proletários e proletários (e, neste caso,
uma das bibliografias fundamentais era a obra “O Mineiro Moçambicano”), como também
nas características da pequena burguesia.

A disciplina “Métodos Empíricos” também esteve directamente ligada aos aspectos


econômicos. Procurou ensinar aos estudantes métodos de análise de estatísticas
macroeconômicas sobre a economia moçambicana desde o período colonial até a actualidade,
como também noções sobre o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB), Balança de
Pagamentos, taxas de crescimento, etc. Foi dada também especial ênfase à análise de
produção a partir de casos de estudo desenvolvidos a partir dos resultados dos projectos de
investigação realizados pelo CEA no âmbito deste curso. Foram analisados concretamente as
unidades de produção em algumas fábricas, machambas estatais, cooperativas agrícolas, etc.

Podemos também identificar o privilégio de uma abordagem da economia política


marxista no curso, olhando para a bibliografia escolhida. No que se refere por exemplo, aos
cursos de 1981 e 1982,413 particularmente na disciplina “A Transição para o Socialismo414”,
nota-se também uma ênfase em autores marxistas e da área da economia. Encontramos assim
textos de Lenine, Mao Tsé Tung, dos economistas marxistas não-ortodoxos, Maurice Dobb e
Michal Kalecki, , que tal como o economista liberal britânico, John Keynes defendiam um
papel mais activo do Estado na economia. Houve também textos de Charles Bettelheim,
economista e historiador francês, conhecido pelo seu pensamento marxista heterodoxo415.

413
Fica em dívida uma análise do material bibliográfico do Curso de Desenvolvimento de 1979, que até ao
presente momento não foi possível encontrar.
414
Não foi possível encontrar também material sobre a bibliografia de outras disciplinas. No entanto, segundo
Luís de Brito, eram também oferecidos textos de antropólogos marxistas franceses como Claude Meillassoux,
Pierre-Philipe Rey, Catherine Coquery-Vidrovitch dentre outros. Entrevista realizada em Março de 2010.
415
Vide, HABIB, Irfan. Problems of Marxist Historiography. Social Scientist, Vol. 16, nº 12, Dezembro, 1988,
p. 3-13.
138

É preciso frisar no entanto, que a grande parte do material de ensino foi baseado na
própria produção científica do CEA, nomeadamente nos seus artigos publicados na revista
Estudos Moçambicanos, Como também nos vários Relatórios de Investigação416
desenvolvidos pelos professores e alunos no âmbito deste curso. Foram escolhidos para
investigar àqueles problemas consideradas chaves para o desenvolvimento socialista de
Moçambique. O foco central foi assim o estudo de uma fábrica, machamba estatal,
cooperativa, aldeia comunal, ou de áreas que combinavam várias formas de produção. O que
reflectiu nitidamente esta abordagem da economia política marxista que tendia a focalizar em
processos macro-sociais, para explicar os fenómenos sociais417, empregando deste modo,
termos como “ o Estado”, “classe”, “produção colectiva”, etc.

5.7 Ênfase na economia? Ausência de aspectos culturais?

A opção teórica e metodológica do Curso de Desenvolvimento não pode ser abstraída


do contexto social e político da sua origem. Como sabemos, o Curso tinha como outra das
tarefas importantes, estabelecer uma ligação estreita com o partido FRELIMO e o Estado na
sua luta pela construção do socialismo. Como afirmou Marc Wuyts, “de uma forma geral, os
investigadores do CEA, tinham uma simpatia básica em relação ao projecto socialista da
FRELIMO.”418

A pesquisa do CEA estava focalizada na produção e condições de trabalho que


obviamente, eram temas integrantes da disciplina de Economia. No entanto, houve muitos
outros aspectos inerentes a esta disciplina, que dificilmente eram abordados no Curso, como
por exemplo, questões ligadas ao “dinheiro” e “finanças”. Assim, a crítica dos estudantes do
Curso de Desenvolvimento no concernente à “ênfase nos aspectos econômicos”, subentendia a
ausência, no Curso, de uma abordagem cultural ou antropológica, ou seja, daqueles aspectos
fundamentalmente “não-econômicos”. De outro modo, este ponto levantado pelos estudantes,
daria assim a impressão de que o Curso de Desenvolvimento estava mais preocupado com a

416
Os conteúdos destes Relatórios serão discutidos com mais atenção no próximo capítulo.
417
Uma perspectiva mais radical, desta abordagem da economia política que enfatizava os aspectos marco, seria
a teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallterstein.Vide, por exemplo, WALLERSTEIN, Immanuel,
“Southern Africa and the World-Economy”, Research Bulletin, Fernand Braudel Center for study of
Economics, Historical Systems, and Civilizations, State University of New York, Binghamton, New York,
USA, Junho, 1987.
418
Entrevista com Marc Wuyts, julho, 2009.
139

disciplina de Economia (Economics) em vez da “Economy” (Economy), no sentido das


relações básicas ou complexas elementos na procura, oferta, distribuição e produção, e que
envolvem actores como, como vendedores, compradores, governos, investidores etc.

De facto, os projectos colectivos de pesquisa do Curso de Desenvolvimento, puseram a


ênfase, de uma forma “conservadora”, na organização social da produção e do trabalho,
portanto, num importante aspecto da economia como também da sociedade, tentando fazer
isso dentro de uma perspectiva que o CEA considerava interdisciplinar, mas que estava
somente concentrada no paradigma da economia política marxista. Ou seja, essa
“interdisciplinaridade” significou não tão-somente ir para além dos ditames da disciplina da
economia (e neste caso não se resumir apenas a pesquisa essencialmente econômica), mas
para acrescentar também aspectos sociais e políticos. Daí então o CEA insistir nas suas
discussões com os estudantes da centralidade da abordagem da “economia política marxista”
no Curso de Desenvolvimento.

Esta escolha teórica acabou relegando para segundo plano, todas aquelas questões não
necessariamente ligadas à produção, mas que poderiam também contribuir para uma visão
mais integrada da realidade social. Por exemplo, a inclusão de estudos e reflexões teóricas
sobre a construção cultural das inter-relações entre as unidades de produção e as formas de
organização social dessas populações, tentando explicar os fenómenos a partir de categorias
locais construídas pelas próprias comunidades. Pois que, na óptica de Akos Ostor (1987), a
economia pode também ser conceptualizada como algo que está profundamente incrustada em
ideias e práticas culturais419.

Diferentemente desta última posição, os investigadores do CEA, parafraseando Marx,


acreditaram que uma “revolução” da economia moçambicana iria significar igualmente uma
“revolução” em todas outras fases da vida social. Assim, para o CEA, a escolha de um foco de
análise ligada aos “problemas da transformação da produção420” era também uma questão de
“urgência” em termos dos desafios que Moçambique naquele contexto histórico enfrentava,
da transformação da economia colonial em moldes socialistas e do aumento da produção e
produtividade. Um exemplo paradigmático desta escolha teórica mas que também envolvia
um compromisso ideológico seria então a resposta dada pela direcção do CEA à crítica dos

419
OSTOR, Akos, Anthropology or Marxist Strait-Jacket?. Economic and Political Weekly, Vol.22 nº 23, Jun.
6/1987, p.909-910.
420
CEA, Strategies os social research in Mozambique. Review of African Political Economy, no. 25, set. -
Decz, 1982, p. 29-39.
140

estudantes de o Curso de Desenvolvimento ter uma “tendência de sobrevalorizar aspectos


econômicos”. Segundo eles, “trata-se, apesar de tudo, duma crítica burguesa ao marxismo421”.

5.8 A Contribuição do Curso de Desenvolvimento no Ensino/Pesquisa em Ciências


Sociais

Muito embora a equivalência do “Curso de pós-graduação em Desenvolvimento” não


tenha sido oficialmente reconhecida pela Universidade e de existirem alguns acadêmicos que
não concordaram com os seus métodos de ensino, a empreitada não deixou de se converter,
durante a sua vigência, no mais importante locus de debate, pesquisa e ensino em Ciências
Sociais durante a primeira década do pós-independência.

É de sublinhar ainda que mesmo não tendo um grau acadêmico reconhecido, e no


final, os estudantes serem simplesmente premiados com um “Certificado de Participação”, o
CEA, no período da selecção das candidaturas se confrontou anualmente, com a presença
maciça de candidatos, sempre maiores do que as vagas oferecidas. E não podemos descurar
do facto de que Moçambique tinha herdado do período colonial, um sistema de educação
bastante fraco e com grandes limitações em termos de conhecimento especializado e
experiencia de pesquisa.

Judith Head chamou a atenção para o facto de que apesar de se encontrarem


estudantes com vários e díspares graus acadêmicos, havia um ponto em comum que os ligava
e que estava necessariamente ligado à estrutura do ensino e pesquisa que Moçambique
herdara do colonialismo português. Como afirmou esta pesquisadora do Centro, “o Curso teve
sucesso, apesar de diferentes backgrounds porque nenhum daqueles estudantes tinha sido
exposto a esse debate e metodologia de ensino. O sistema de educação colonial português era
fraco”.422

No mesmo diapasão, Teresa Cruz e Silva, então estudante do Curso, enfatizou esta
questão das limitações do ensino e pesquisa no pós-independência,

421
UEM/CEA. Curso de Desenvolvimento de 1981, s/ed, Documento datilografado de 27/8/81.
422
Entrevista com Judith Head, agosto,2007.
141

Eu me lembro que o primeiro choque que eu apanhei quando entrei


para o Curso, é que havia lá pessoas sem graduação, pessoas com
graduação, pessoas que leccionavam, pessoas dos ministérios, pessoas
que eram directores do banco, do partido, etc. Uma coisa que nós
aprendíamos era aprender a ler. E eu dizia, mas que coisa, eu dou
aulas e vou agora aprender a ler?! Aprender a ler era aprender a fazer
uma análise critica e depois que eu fiz esse curso da Ruth, aí todos os
cursos que eu dou aos primeiros anos, principalmente aos que são dos
primeiros anos, ou cursos de metodologia e pesquisa, como ler um
texto, ou seja, como interrogar o próprio texto, questionar, fazer
leituras criticas, para aprender a escrever um “paper”, um ensaio, uma
série de coisas que os cursos que nós tínhamos feito não ensinavam
isso423.

E ainda encontramos a contribuição deste curso no exterior das fronteiras


moçambicanas. Como observou Wuyts, “na África do Sul, as pessoas envolvidas na luta
política usaram o material do curso em círculos de estudo político, assim num certo sentido o
CEA chegou a ser um pouco conhecido e normalmente através de pessoas singulares”424.

Foi de facto um curso criado sob condições difíceis dada a escassez de pesquisa
científica sobre Moçambique e a ausência de uma cultura genuína de prática de investigação.
Isto significou que havia muita carência de materiais de ensino. Como observou Marc Wuyts
“houve muito de improvisação nestes cursos”. Muitas das pesquisas realizadas pelos
estudantes, serviriam como material de ensino para as aulas do Curso de Desenvolvimento,
enriquecendo, desta forma, os seus conteúdos programáticos. Estes pequenos projectos
altamente focalizados que cada curso envolveu, tinham como finalidade fornecer uma
plataforma onde estudantes pudessem adquirir e desenvolver habilidades de pesquisa.

423
Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007.
424
Entrevista com o autor, julho, 2009.
142

6. A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO

6.1 As Principais Linhas de Investigação

Durante a vigência do Curso de Desenvolvimento (1979-1982), foram produzidos


trinta e cinco “Relatórios de Investigação”425. Estes trabalhos reflectiram de um lado, uma
dinâmica curricular própria, e por outro lado, se caracterizavam também por pesquisas
“encomendadas” por instituições fora da universidade, como Ministérios, Direcções
Provinciais, Empresas Estatais, Cooperativas, etc. Na sua maioria esses “Relatórios de
Investigação” foram publicados e vendidos ao público. Havia no entanto, alguns que devido
ao tema abordado, como também aos objectivos do “solicitante”, acabavam tendo a definição
de “restrito”.

Como forma de responder a um dos objectivos principais deste estudo que é o de


analisar a relação entre prioridades de pesquisa do CEA e prioridades políticas do partido no
poder, foi feita uma classificação geral de todos os “Relatórios de Investigação” produzidos
durante os quatro anos do Curso de Desenvolvimento. De seguida, foram escolhidos, de forma
aleatória, seis “Relatórios”. A classificação temática dos estudos esteve baseada por um lado
nas escolhas dos objectos de pesquisa do CEA e por outro lado, nas linhas mestras da
estratégia política da FRELIMO para o desenvolvimento socialista de Moçambique. Como
sabemos, neste período de 1979-1982 a FRELIMO definiu alguns temas chaves como:

(1) a ruptura com a dependência econômica de Moçambique em relação ao capital


mineiro sul-africano e as estratégias de absorção de mão-de-obra;

(2) a transformação da economia colonial camponesa;

(3) a produção agrária colectiva (e.g., o algodão);

(4) as aldeias comunais como a “coluna vertebral” do desenvolvimento no campo;

(5) a socialização do campo;

(6) e a questão da comercialização agrária.

425
Vide Quadro nº2.
143

Quadro 3 – Principais Linhas de Investigação


do CEA (1979-1982)

Linhas de Investigação Relatórios

Aldeias Comunais 2

Comercialização Agrária 3

Cooperativas 4

Produção algodoeira 7

Trabalho Migratório 2

Transformação Rural 9

Transportes 4

Total 31

Estas linhas de investigação não foram de forma nenhuma estanques. Muitos dos
projetos de pesquisa levados a cabo pelo CEA, no âmbito do Curso de Desenvolvimento,
poderiam estar inseridos em mais de uma linha de investigação. O caso mais eloqüente foi, de
fato, os projetos sobre o Algodão levados a cabo de 1979 a 1980. Foram produzidos 11
estudos sobre a produção algodoeira, que tinham objetivos e foco de análise assaz distintos.
Como foi mencionado ao longo deste estudo, os investigadores do CEA argumentaram que a
destruição do sistema colonial teve como uma das conseqüências uma profunda crise na
produção de algodão. Assim, o grande objetivo do CEA tinha sido o de “estudar as raízes
desta crise e as formas de ultrapassar426”.

Foi então a partir desta premissa que o CEA produziu os referidos onze Relatórios de
Investigação, ligados de forma geral a questão do Algodão, mas que também alguns destes
focalizavam em questões como, transformação rural, a agricultura familiar, as cooperativas,
ao sector estatal como também a questão dos transportes. Sublinhe-se que neste quadro, foram
apenas contabilizados sete estudos estritamente ligados a produção de algodão.

É objectivo desta secção demonstrar então que tanto os Relatórios que surgiam das
dinâmicas internas do Curso de Desenvolvimento, como os que eram “encomendados” pelo
poder, estavam todos - emprestando um termo de Jean Francois Lyotard (1989) - dentro de

426
Vide por exemplo, O Descaroçamento de algodão… op.cit,, 1979.
144

uma “meta-narrativa427” comum: produzir conhecimento socialmente e politicamente


relevante para o projecto do desenvolvimento socialista de Moçambique. Como veremos, a
própria concepção de “desenvolvimento” para o CEA, constituiu “um objectivo inseparável
da estratégia sócio-econômica e política da FRELIMO para a transformação socialista da
sociedade moçambicana428.” Daí então o CEA afirmar, que um dos objectivos principais do
Curso de Desenvolvimento seria o de, “organizar projectos de investigação sobre questões
relevantes para a estratégia do desenvolvimento, com particular destaque para a produção, de
modo a possibilitar a sua utilização pelas estruturas do Partido e do Governo”429

Com o Curso de Desenvolvimento, as escolhas dos problemas a investigar, passaram a


ser definidas a partir das estratégias de “transição socialista” da FRELIMO, onde um dos seus
grandes pilares era a transformação dos sistemas de produção capitalista herdados da
economia colonial portuguesa. Foi a FRELIMO quem afirmou no seu III Congresso em 1977,
que “construir as fundações do socialismo requer a transformação radical nas relações sociais
e do desenvolvimento da nossa economia430.”

A estratégia agrária que FRELIMO seguiu nesta primeira década do pós-


independência, tinha como principais objectivos a abolição das grandes companhias privadas,
a eliminação das autoridades “tradicionais” e a redução do papel do sector familiar431. As
novas políticas enfatizaram o controlo estatal das redes de comércio e da produção colectiva
através por exemplo, da implementação de aldeias comunais e cooperativas. O governo tentou
assim transformar as relações de produção herdadas do período colonial, através da
intervenção estatal em todos os sectores da produção e organização e da institucionalização de
formas comunais de vida.

É então a partir destas linhas gerais da política agrária da FRELIMO, que o CEA iria
direccionar o seu foco de atenção, logo depois da realização d´”A questão Rodesiana”, para os
problemas relacionados com a transformação da produção. É assim, que logo em 1979, no
ano em que se iniciou, pela primeira vez, o Curso de Desenvolvimento, é produzido o

427
Vide, LYOTARD, Jean - Francois. A Condição Pós – Moderna, Lisboa : Gradiva, 1989.
428
Ibid.
429
UEM, CEA. Curso de Desenvolvimento de 1981, Maputo: CEA, Mimeo,19821
430
FRELIMO, Relatório do Comité Central, III Congresso, 1977,p.35,
431
Para uma leitura mais aprofundada sobre as politicas agrárias da Frelimo durante o período da tentativa da
construção do socialismo ver, PITCHER, Anne, Disruption without Transformation: Agrarian Relations and
Livelihoods in Nampula Province, Mozambique (1975-1995). Journal of Southern African Studies, Vol. 24,
nº. 1, Março,1998, p.115-140.
145

Relatório de Investigação, “O Mineiro Moçambicano – um estudo sobre a exportação de mão-


de-obra”.

Como podemos notar, a partir do quadro nº2, o tema da “transformação” teve grande
centralidade nos relatórios de investigação do CEA. Assim, dos cerca de trinta e um
Relatórios produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento, nove432 deles incluíam nos
seus títulos o termo “transformação”. Na sua maioria, estas pesquisas, de alguma forma,
discutiram a questão da transformação das antigas formas de produção inerentes à economia
colonial para novas formas baseadas em modelos de produção socialista, através por exemplo,
da introdução das machambas estatais e da dinamização do movimento cooperativo no
campo. Não podemos deixar de lembrar que a FRELIMO, no seu III Congresso (1977), tinha
definido a “agricultura como a base e a indústria como o factor dinamizador para o
desenvolvimento da economia moçambicana433”.

Este processo de transformação das relações de produção implicou responder a vários


objectivos e que como veremos, foram também tidos como prioridades de pesquisa no CEA: a
colectivização da produção através da transformação do sector familiar num sector
cooperativo e a expansão do sector das machambas estatais; a reorganização espacial das
unidades de produção e de formas de assentamento através da organização de aldeias
comunais; melhoria das condições de vida da população, organizando cuidados e serviços de
saúde, melhoria da habitação, fornecimento de água, de electricidade, etc.

É assim, que no segundo Curso de Desenvolvimento de 1980, o CEA começou a


produzir uma série de estudos directamente ligados aos problemas da socialização do campo e
transformação rural no sul de Moçambique434. Alguns destes estudos, como veremos já a
seguir, procuraram mostrar, por exemplo, como as machambas estatais e o movimento
cooperativo poderiam se tornar, efectivamente, na base para a transformação socialista da
agricultura familiar, e na rápida proletarização, tanto do campo como das cidades.435 Foram

432
“A Transformação da Agricultura Familiar na Província de Nampula”, “Problemas de Transformação Rural
na Província de Gaza”, “Já Não Batem – a Transformação da Produção Algodoeira”, “O papel dinamizador
da Emochá na transformação socialista da Alta Zambézia” e por ultimo, “Porto de Maputo – Zona de
Contentores: Informação, Trabalho Administrativo e a Transformação do Trabalho Produtivo”.
433
FRELIMO. III Congresso do Partido Frelimo, Fev. 1977, Directivas Econômicas Sociais. Maputo:FRELIMO,
1977.
434
Vide, Anexo nº onde se apresenta a relação de todos os Relatórios de Investigação produzidos no âmbito do
Curso de Desenvolvimento ( 1979-1982).
435
Para uma discussão mais aprofundada sobre a questão do campesinato versus proletários nas politicas agrárias
da Frelimo nos anos 80, ver, O’LAUGHLIN, Bridget. Past and Present Options: Land Reform in
Mozambique. Review of African Political Economy, Vol.22, nº63, 1995,p.99-106.
146

ainda estudos que propuseram uma visão integrada do desenvolvimento rural, onde não só
deveria dar lugar os grandes projectos das machambas estatais (como era apanágio da
FRELIMO) mas também de se olhar para o papel da agricultura familiar no processo de
ruptura com padrões da economia colonial e da acumulação socialista.

Esta ênfase do CEA sobre a importância da pequena produção camponesa, e sobre o


papel do sector familiar na transformação socialista, tinha já sido dada em 1979 por Marc
Wuyts, no seu artigo, “Camponeses e economia rural em Moçambique”. Com o crescente
colapso da economia, descontentamento popular e intensificação da guerra contra a
RENAMO, o governo começou a tomar consciência da inoperância de muitas das suas
políticas para o desenvolvimento socialista. Foi assim, que no seu IV Congresso em 1984, a
FRELIMO acabou reconhecendo que o sector familiar não tinha sido levado em conta. Nos
seus novos documentos, o campesinato já era considerado como “ a principal força da
revolução” e prometiam dar mais apoio a esse sector, não obstante, continuarem ainda a
reivindicar que o campesinato precisava se libertar da “estreiteza da produção tradicional” e
engajar-se em formas superiores – a produção colectiva.

Seguindo ainda os objectivos preconizados pela FRELIMO para a socialização do


campo, o CEA iria produzir também vários “Relatórios de Investigação” sobre as novas
formas de organização da produção, tendo como tema dominante a questão da “produção de
algodão”. Como podemos notar, a partir do quadro nº2, dos cerca de 31 Relatórios de
Investigação, encontramos 7 que abordam especificamente esta cultura.

Moçambique, durante o período colonial, foi um dos maiores produtores de algodão,


onde de acordo com os investigadores do CEA, a sua produção, devido ao carácter retrógrado
da economia colonial portuguesa, estava baseada em formas de exploração da mão-de-obra e
trabalho forçado. Os desafios do pós-independência, no entanto, implicavam a constituição de
novas formas de produção colectiva em todas as unidades de produção.

Por último, e ainda nesta fase de mudanças nas políticas do desenvolvimento socialista
em Moçambique (1984), o CEA concentrou-se em estudos que procuraram analisar o papel
do Estado numa estratégia agrária marcadamente orientada para o mercado. Estas pesquisas
tinham a particularidade de já não se privilegiarem as grandes estratégias de colectivização
socialista, mas de procurarem resultados a partir de novas formas de intervenção estatal.

Eram analisadas as formas de comercialização agrária, a necessidade da formulação de


políticas comerciais viradas para o mercado, a rentabilidade e eficiência das empresas estatais,
147

o papel dos transportes, etc. Foi nesta fase, por exemplo, que apareceram estudos sobre “a
comercialização agrária e os métodos de planificação” sobre o “Porto de Maputo e a
transformação do trabalho produtivo”, “ a formação do professor primário e a sua actuação no
meio social”, as plantações de Chá e economia camponesa, etc.

Como podemos depreender a parir do exposto acima, a produção científica do CEA


saída principalmente do Curso de Desenvolvimento, esteve profundamente conectada com o
contexto nacional da construção do socialismo, como também num contexto mais alargado da
integração econômica de Moçambique na economia regional, tendo como poder hegemónico,
a vizinha África do Sul.

Um dos grandes desafios da nova liderança, logo após a independência nacional, tinha
sido o de se compreender profundamente as características da dependência econômica e as
suas formas de superação, uma vez que a África do Sul se constituía num opositor político ao
projecto socialista da FRELIMO. Como foi discutido no capítulo sobre o “Mineiro
Moçambicano” tornava-se assim “urgente” para o governo moçambicano, conhecer o real
impacto de um corte radical do fluxo migratório de mão-de-obra moçambicana para as minas
sul-africanas. Tanto a FRELIMO como o CEA, acreditavam que “o termo desse escoamento
de homens era um dos elementos necessários para a criação das condições materiais de
construção do socialismo436.”

Na secção seguinte iremos, de forma mais localizada, abordar alguns dos Relatórios de
Investigação produzidos pelo CEA e que estavam mais directamente ligados às prioridades
políticas da FRELIMO para a “transição socialista”, como forma de demonstrar esta ligação
estreita que houve entre prioridades de pesquisa do Centro e as prioridades políticas da
FRELIMO para o desenvolvimento socialista. Ao expormos de forma mais localizados
algumas das publicações científicas do CEA pretendemos também mostrar como o CEA
procurou sempre manter um espaço de distanciamento ideológico, procurando analisar
criticamente a eficácia das políticas agrárias do governo nomeadamente na socialização do
campo, construção das aldeias comunais dente outros.

O primeiro Relatório será “O Mineiro Moçambicano”, que se enquadra dentro da


perspectiva da “transformação” estratégia Freliminiana para o desenvolvimento de novas
formas de produção no novo Moçambique. O segundo escolhido é de Marc Wuyts,
“Camponeses e economia rural em Moçambique”, uma vez que inaugurou um novo debate

436
O Mineiro Moçambicano, op.cit, p.2.
148

sobre as estratégias agrárias para o desenvolvimento socialista de Moçambique, ao enfatizar


por exemplo o papel da agricultura familiar. Por outro lado, também pelo facto de ter trazido
uma primeira reflexão sobre o impacto da estrutura da economia colonial no pós-
independência e os desafios para a transformação social em moldes socialistas.

O terceiro, “Problemas da transformação rural na província de Gaza”, está


directamente ligado à questão agrária, considerada pela FRELIMO como a base do
desenvolvimento socialista de Moçambique. O quarto está relacionado com a problemática da
produção de algodão, considerada como uma das principais culturas de rendimento a nível
nacional. O quinto Relatório, “Comercialização agrária ao nível distrital”, mostra já uma
tentativa de mudança na estratégia da FRELIMO em relação a agricultura, com onde se
começa a dar valor ao papel da planificação estatal e do sector privado na comercialização
agrária.

E por último, um Relatório de Investigação realizado e produzido pela Oficina de


História e que analisa um tema sensível aos dirigentes da FRELIMO: sobre a “desagregação “
das aldeias comunais no Norte de Moçambique, em Mueda, Cabo Delgado, considerado
outrora como o bastião da FRELIMO durante a luta armada contra o colonialismo português.

6.2 O Projecto sobre o Trabalho Mineiro na África do Sul

Durante o ano acadêmico de 1976-1977, o CEA levou a cabo um estudo pioneiro,437


sob direcção de Ruth First, sobre o trabalho mineiro para as minas da África do Sul. O seu
objectivo principal era então o de, através de uma pesquisa intensiva, produzir conhecimento
politicamente relevante, que pudesse ajudar ao partido/Estado, na formulação de políticas. Os
seus resultados foram primeiramente produzidos como um “Relatório de Investigação,
intitulado, “O Mineiro Moçambicano – Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra” e seis
anos mais tarde em 1983 publicado em livro, onde incluía nos seus anexos, canções,
fotografias e entrevistas realizadas por Alpheus Manghezi. O trabalho de campo abarcou três
províncias do sul de Moçambique, nomeadamente, a província de Inhambane, Gaza e
Maputo.

437
Foi a pesquisa do CEA que envolveu o maior número de investigadores na história do CEA. O grupo de
pesquisa era composto de cerca de 40 pessoas, dentre membros e associados do Centro, como também de
colaboradores do CEA. Foi também considerada a mais aprofundada alguma vez realizada pelo Centro. Este
estudo teve a duração de 6 meses.
149

Este estudo, organizado em 3 partes, pretendia não somente traçar o perfil do mineiros
moçambicanos, como também produzir uma análise da estratificação rural das três regiões no
sul de Moçambique, consideradas como o grande reservatório de mão-de-obra mineira. O
primeiro capítulo, intitulado, “ a exportação de mão-de-obra”; o segundo, “a força de trabalho
mineira” e o terceiro “a base camponesa: a província de Inhambane”.

É logo no primeiro capítulo onde nos é apresentado o pressuposto teórico-


metodológico deste estudo, (como também de grande parte da produção científica do CEA): o
de que Moçambique já não se encontrava sob dominação política de Portugal, mas sujeito à
dominação econômica da África do Sul. O CEA argumentava, que dada a fragilidade da
economia portuguesa, o poder colonial viu-se na iminência, por exemplo, de alugar a força de
trabalho existente no sul de Moçambique ao capital estrangeiro (sul-africano). Assim, desde a
época colonial, que o sul de Moçambique tinha sido utilizado como reserva de mão-de-obra
para o capital estrangeiro, onde alimentava os centros sul-africanos de acumulação de capital.

O segundo capítulo apresenta um panorama geral dos índices de recrutamento dos


trabalhadores moçambicanos para a África do Sul, depois de 1974. São fornecidos dados
precisos sobre os períodos de grande recrutamento, como aconteceu em 1975 e também dos
anos de crise (1976 e 1977), devido a introdução, por parte da Chamber of Mines (Câmara das
Minas), de novas formas de controlo de emigração que resultaram na redução de vinte e um
para quatro campos de recrutamento em Moçambique. Estas medidas iriam ter grandes
repercussões em Moçambique. Daí então podermos entender melhor, por exemplo, o elevado
índice de desemprego que o governo moçambicano enfrentou neste período e que viria a
estimular a produção do relatório do desemprego, mencionado em capítulos anteriores.

É ainda exposto neste capítulo, o esboço da caracterização da força de trabalho


mineira moçambicana. Para isso, são apresentados dados (colectados a partir da realização de
368 entrevistas aos mineiros) sobre o número médio dos contractos realizados, a duração
média dos contractos e o período de vida de trabalho passados nas minas. A partir, por
exemplo, das informações sobre a duração média dos contractos (segundo o CEA, os
trabalhadores moçambicanos passavam cerca de 16 meses nas minas). O CEA vai argumentar
que o trabalho migratório estava profundamente enraizado (tendo inicio no período colonial)
na economia camponesa.

São ainda discutidos neste capítulo dois pontos. Os salários dos mineiros
moçambicanos os quais, segundo o CEA, se situavam, comparativamente aos trabalhadores
150

mineiros dos países vizinhos, nos níveis mais baixos438. Em segundo, a questão da experiência
de trabalho e qualificações. Segundo o CEA, a grande limitação dos trabalhadores
moçambicanos estava na sua falta de instrução escolar formal, apesar de terem algum tipo de
especialização e de experiência de trabalho. Neste âmbito, o CEA, recomenda ao poder que
“alguns mineiros, por exemplo ajudantes de electricista, ajudante de mecânico e condutores
de máquinas pesadas poderiam ser integrados nas fábricas ou outras empresas.439.

O terceiro capítulo pode ser considerado como o mais ambicioso, uma vez que procura
analisar os efeitos do fluxo migratório na base camponesa. É assim abordada a questão da
estratificação rural nos três maiores distritos da província de Inhambane (Pembe, Homoíne e
Sitila) e, a partir daí, Ruth First e o colectivo de investigadores do CEA, procuram avaliar o
real impacto deste fluxo migratório na economia rural moçambicana.

Os investigadores argumentam que a integração da economia camponesa no mercado


nacional e internacional iria ter repercussões na emergência de diferenciações sociais no
campesinato moçambicano, nomeadamente de uma classe de camponeses ricos, médios e
pobres. Os “camponeses ricos” (grupo reduzido) caracterizavam-se essencialmente pela
utilização de mão-de-obra assalariada, embora numa base extremamente limitada e por vezes
em tempo parcial. Os “camponeses médios”, considerados como “a espinha dorsal da
produção agrícola na economia camponesa”, definiam-se pela propriedade e utilização dos
instrumentos de produção, especialmente charruas e gado, como também eram proprietários
de um número relativamente grande de culturas permanentes.

Ainda segundo o colectivo de investigadores do CEA, esta classe era a que dependia
menos do trabalho migratório. É então a partir desta explanação da base camponesa nos 3
distritos, que o CEA vai avisar às estruturas do governo para a necessidade de se “ preparar
directrizes bem explícitas se se quiser conquistar os camponeses médios para a revolução
rural440.” Ainda segundo o CEA, estes sentem-se inquietos com o que consideram uma
“orientação para camponeses pobres” da qual receiam que irá fazer descer o seu nível de vida.
Havia ainda os “camponeses pobres”, que só eram ocasionalmente proprietários de
instrumentos de produção, sendo a sua base agrícola incerta e instável. Trabalhavam em terras

438
CEA, O Mineiro Moçambicano – Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra, 1979, reedição, 220 p.
439
Ibidem, p.77.
440
O Mineiro Moçambicano, op.cit,p.168.
151

pequenas e muitas vezes de inferior qualidade.”441.

Encontrávamos por outro lado, aquilo a que os autores designaram de “burguesia


comercial” que eram os cantineiros, comerciantes e proprietários de transportes, que
constituíam contudo uma classe instável.

Uma das conclusões mais interessantes a que o CEA chegou através deste estudo foi
de que embora a maioria da população masculina do sul de Moçambique passasse de grande
parte de suas vidas nas minas da África do Sul e estando lá na condição de “proletários”, eles
ainda mantinham a sua “base camponesa”. Faziam assim parte de um sistema que tornava-os
mão-de-obra migrante e barata. Enfim, uma classe sui generis de operários-camponeses, “que
nem se encontravam completamente divorciados dos seus meios de produção, nem eram
produtores independentes, contando unicamente com os seus meios de produção442.”

A última secção deste estudo - “Conclusões e Comentários” - reflecte nitidamente o


carácter de pesquisa social aplicada que o CEA vinha realizando a partir do Curso de
Desenvolvimento. Neste caso particular, a preocupação de que a pesquisa pudesse servir para
auxiliar o governo na formulação de políticas para fazer face a dependência estrutural dos
trabalhadores moçambicanos ao trabalho mineiro na África do Sul e que pudesse também
auxiliar a FRELIMO na sua estratégia da socialização do campo e organização da produção
colectiva. Poderíamos aqui olhar, por exemplo, para o projecto político frelimista da
construção das “aldeias comunais”.

O CEA apoiou esta política, reiterando neste estudo, que “a transformação da


agricultura teria obviamente lugar através da construção das aldeias comunais443”. O CEA
recomendava ainda, que era necessário consciencializar as populações sobre a importância de
viverem em aldeias comunais. Vale a pena citar longamente esta recomendação,

Notamos existir considerável dose de ignorância e de dúvida quanto


aos efeitos das aldeias comunais e formas como funcionarão. O que
não quer dizer que exista hostilidade para com as aldeias comunais.
De um modo geral, há uma enorme confiança na FRELIMO, mas são
poucos os dados sob a forma como funcionarão as aldeias comunais e
como irão afetar os diferentes estratos do campesinato. Sugeríamos a
elaboração de linhas de orientação sobre determinadas questões que
seriam divulgadas entre a população do campo.444

441
O Mineiro Moçambicano, op.cit. p.129.
442
Ibidem,pp.170.
443
Ibidem, p.166.
444
Ibidem, p.167.
152

6.3 Analisando os Camponeses e a Economia Rural em Moçambique

Depois da realização do “Mineiro Moçambicano” e do projecto sobre o desemprego,


Marc Wuyts445 produziu, a título individual em 1978, um Relatório de Investigação intitulado,
“Camponeses e economia rural em Moçambique”. Este texto, diferentemente dos estudos
anteriores do CEA que tinha um foco mais localizado, pretendia fazer uma reflexão sobre
toda a estrutura econômica camponesa de Moçambique no fim do período colonial. Apesar de
ser uma reflexão concentrada na sua maioria no passado colonial (apenas o último capítulo
aborda o período pós-independência), Wuyts não deixa, no entanto, de enfatizar que o
propósito final é que o texto “possa contribuir para uma compreensão dos problemas da
transição para o socialismo”, uma vez que na opinião deste autor, “o seu ponto de partida
reside na transformação das estruturas econômicas herdadas do colonialismo446.”

Neste texto, Marc Wuyts começa primeiro por dar “um breve e incompleto panorama
do processo histórico da criação da estrutura econômica colonial no campo”. Apresenta os
diferentes elementos constituintes da estrutura social da produção agrícola nomeadamente, as
plantações, latifúndios, médias e pequenas machambas dos colonos, burguesia e pequena
burguesia comercial e o campesinato. Segundo Wuyts, estes elementos constituintes da
estrutura social da produção na agricultura moçambicana, iriam ter características distintas
nas três regiões do país, uma vez que o sul, centro e norte do país tinham se integrado na
economia colonial de forma desigual.

Este argumento iria se tornar, como veremos ao longo deste texto, num dos
pressupostos teóricos de toda a produção científica do CEA. De facto, Marc Wuyts neste
texto, como também a maioria dos trabalhos produzidos pelo colectivo de investigadores
CEA, viam o capitalismo colonial português como “retrógrado tanto politicamente como
economicamente”, determinando deste modo, a forma diferenciada como estas regiões se
integraram na economia colonial. O sul tinha-se transformado essencialmente numa reserva
de mão-de-obra para o capital mineiro sul-africano; o centro onde a principal característica da
produção agrícola consistia na economia de plantação, correspondendo a cerca de 57% de
toda a produção, e o norte, maioritariamente ligado à produção de mercadorias, onde por
exemplo, 65% da produção mercantil era realizada pelo campesinato.

445
Foi dos poucos Relatórios do CEA que saiu com assinatura individual.
446
WUYTS, Marc. Camponeses e economia rural em Moçambique. Maputo: UEM/CEA,1979.
153

Marc Wuyts, nesta análise da estrutura da economia colonial no Moçambique rural,


deu maior destaque à integração da pequena produção camponesa na economia colonial,
mostrando assim que os camponeses tinham jogado um papel importante no desenvolvimento
da agricultura, como também para a produção mercantil do país. Era ainda o campesinato
quem fornecia a sua força de trabalho para as plantações, minas e outras actividades447. Wuyts
argumenta, que o sistema colonial tinha actuado no campo segundo dois padrões principais:
por um lado, um processo de institucionalização de um sistema de trabalho migratório interno
e externo; por outro lado, um processo de campesinatização que implicou a transformação dos
cultivadores africanos em produtores para o mercado448.

Alicerçado nos trabalhos estatísticos sobre produção agrícola em Moçambique, de


Fernanda Amaral e Pereira de Moura, Wuyts faz uma triangulação entre os dados destes
autores, com fontes estatísticas da economia colonial, e com os trabalhos anteriores do CEA.
A partir daí Wuyts, esboça um panorama geral sobre o sector da agricultura em Moçambique,
enfatizando sempre a importância da agricultura familiar. Um sector concebido não apenas a
partir da sua produção para a subsistência, mas também como um grupo (não homogéneo) de
proletários rurais, profundamente integrados e dependentes da economia monetária.

A ênfase no papel do sector familiar para o processo de transformação socialista,


pretendia trazer para o debate sobre a política agrária, um aspecto que até então não tinha sido
dada a devida atenção pela FRELIMO. Como se sabe, até ao IV congresso da FRELIMO, o
processo de transformação socialista tinha como um dos objectivos a colectivização da
produção através da transformação do sector familiar num sector cooperativo como também
na expansão do sector das machambas estatais449.

Este artigo pode então ser visto como um dos primeiros (produzidos pelo CEA) a
enfatizar o papel da pequena produção camponesa no processo de transformação socialista,
demonstrando que as políticas agrárias deveriam “atacar” as vulnerabilidades do campesinato
em vez de as ignorar, como vinha sendo feita pelo poder político. Podemos também olhar
para este texto como uma chamada de atenção à política agrária da FRELIMO, que naquela
primeira década após independência, subestimava o papel do campesinato como um factor
decisivo para a transformação socialista, optando, em contrapartida, por uma rápida

447
Vide, WUYTS, Marc. Camponeses e Economia Rural em Moçambique, Maputo: UEM/CEA, 1979, p.23.
448
Ibidem, p.24.
449
Ver documento da “Oitava Sessão do Comité Central da Frelimo e do III Congresso. Jornal NOTÍCIAS, 7, 8
e 12 de Outubro,1981.
154

socialização do campo com enfoque nas machambas estatais; enfim, pelos grandes projectos
estatais relegando assim o campesinato para um lugar marginal no processo político.

6.4 Problemas da Transformação Rural na Província de Gaza

Ainda em 1979, uma equipe de onze elementos que incluía professores e estudantes do
Curso de Desenvolvimento produziu um Relatório de Investigação450, de “difusão restrita”,
sobre os problemas da transformação rural na província de Gaza, no sul de Moçambique. O
seu objectivo principal era o de descrever e analisar, de forma crítica, a situação produtiva no
Vale do Limpopo (considerada como uma das regiões mais férteis do país), a partir da
selecção de algumas aldeias comunais nesta região. Tinha, deste modo, uma abordagem mais
localizada, distinta por exemplo do estudo anterior de Marc Wuyts. Encontramos, no entanto,
um ponto em comum nestes dois estudos e que iria também constituir uma característica
presente em outros trabalhos de investigação do CEA: textos que procuravam reflectir sobre
as transformações da economia colonial no sul de Moçambique - baseada essencialmente na
agricultura dos colonos e na migração de mão-de-obra para a África do Sul e de uma
agricultura familiar extremamente dependente destas duas características – para uma
economia em moldes socialistas.

Os problemas da transformação rural no sul de Moçambique, na óptica dos autores do


Relatório, estavam intimamente ligados a dois contextos históricos: o período colonial e do
pós-independência. Esta região do vale do Limpopo tinha sido profundamente afectada pela
crise da economia colonial. Com a independência nacional, a grande maioria dos portugueses
abandonaram o país dando assim lugar a uma ruptura do sector empresarial de
comercialização, com a agravante de perpetrarem actos de sabotagem, transferência de
capitais e destruição de infra-estrutura.

Em segundo lugar, havia a questão da dependência histórica de todo o sul de


Moçambique ao trabalho mineiro na África do Sul. De acordo com o colectivo de
pesquisadores, a sua redução drástica em 1976, iria ter grande impacto na produtividade de
toda esta região do Baixo Limpopo. Segundo o Relatório, A agricultura familiar, e não as
machambas estatais, ou mesmo as cooperativas de produção, é que constituía a verdadeira
base da produção da grande maioria das famílias camponesas e continuava sendo dependente
450
Problemas de transformação rural na província de Gaza. Maputo:UEM,CEA, 1979.
155

tanto do Estado colonial como também das receitas dos mineiros na África do sul, acabaria
sendo a mais afectada. Daí então o CEA argumentar que nesta fase tinha-se verificado uma
diminuição no nível de vida das famílias do distrito de Gaza, que podia ser observado, por
exemplo, na diminuição ao acesso aos bens de consumo e às alfaias agrícolas.

De acordo com este estudo a situação no pós-independência estaria intimamente


ligada ao seu legado colonial. No entanto, os investigadores, não se limitam apenas a
descrever os problemas da transformação rural a partir das suas causas coloniais. O estudo
acaba fazendo também uma reflexão crítica sobre o papel do Partido/Estado, na emergência
de outros tipos de problemas nas três aldeias comunais. Para estes, era “incorrecto continuar a
atribuir os problemas de produção no Baixo Limpopo exclusivamente às consequências das
cheias451”. Afirmavam ainda, que a crise da comercialização, era também uma crise de
produção e que esta tinha como factor, o “fraco apoio estatal tanto ao sector colectivo, como
ao sector familiar452”.

Para os relatores do estudo, o aspecto mais importante do problema de produção no


Baixo Limpopo esteve relacionado com “os conflitos entre os diferentes sectores da produção
agrícola: estatal, campesinato e familiar453”. Havia conflitos diretos entre o Estado e o
campesinato sobre a posse de terra, e também conflitos entre o desenvolvimento do setor
cooperativo e a produção familiar. Por exemplo, os investigadores do Centro argumentaram,
que o sector cooperativo ainda era muito fraco nas aldeias comunais estudadas e que a
participação marginal do campesinato indicava que as cooperativas não eram encaradas com
confiança, como uma alternativa à produção familiar para assegurar a subsistência. Na mesma
senda, afirmavam que a própria Unidade de Produção do Baixo Limpopo (UPBL), a empresa
agrícola estatal do distrito de Gaza “ainda não era suficientemente forte para servir como a
principal base produtiva das aldeias comunais sob seu controle454”.

Toda esta discussão esteve alicerçada no que ficou conhecido como o “Plano do
Limpopo”, desenvolvido pelas autoridades provinciais, e que pretendia implementar as
directivas saídas da 8ª sessão do Comitê Central da FRELIMO. O referido plano procurava
abordar o problema da relação entre a machambas estatais, agricultura camponesa e as vias da
transformação da agricultura familiar por meio da cooperativização. O plano procurou

451
Problemas de transformação rural na província de Gaza, Maouto: UEM/CEA, Maputo, 1979, p.6.
452
Ibid, p.6
453
Ibid., p.79.
454
Ibid., p.70.
156

também expandir o sector colectivo como base produtiva das aldeias comunais e
consequentemente restringir a propriedade no sector familiar. Daí então encontrarmos neste
relatório uma secção onde se aborda de forma particular as duas principais formas de
produção colectiva e que eram vistas tanto pelo governo como pelo investigadores, como a
base produtiva das aldeias comunais do Baixo Limpopo: o sector cooperativo e a empresa
estatal (UPBL).

A partir das directivas saídas do “Plano do Limpopo”, os investigadores do CEA


advertiram às estruturas políticas de que “ no momento presente qualquer política visando
limitar a agricultura familiar – antes que a machamba estatal ou o sector cooperativo estejam
preparadas para absorver mão-de-obra suficiente e, portanto, para oferecer uma base
produtiva segura ao campesinato – seria desastrosa455.” Uma tal política, “ameaçaria a própria
base de subsistência do campesinato e acentuaria por conseguinte antagonismo já existente
entre o campesinato e a machamba estatal456.”

Era preciso primeiro criar-se uma base material no sector colectivo, capaz de absorver
aquela força de trabalho que tinha sido afectada pelo impacto da redução do fluxo migratório.
Afastando-se da historiografia colonial, mas também da visão de alguns sectores do Estado
moçambicano que olhavam para a família camponesa como exclusivamente ligada à produção
de subsistência, o CEA vai dar realce ao papel do campesinato na produção de bens
excedentes para o mercado. Na óptica destes pesquisadores, a marginalização do sector
familiar, tinha se tornado num dos mais perniciosos aspectos da política agrícola da
FRELIMO (pelo menos até finais de 1983 quando por intermédio do seu 4º Congresso os
dirigentes políticos começaram a admitir, publicamente, os seus erros e assumpções erradas457
em relação ao papel da produção familiar no desenvolvimento da agricultura). Como
podemos ver, os pesquisadores do “Mineiro Moçambicano”, não se coibiam de produzir uma
análise crítica sobre a ineficácia de algumas das políticas agrárias do governo, mostrando em
casos como estes, que o poder estava errado, e procurando no final providenciar inputs de
como tornar mais efectiva a grande “meta-narrativa” do desenvolvimento agrário em moldes
455
Ibid., ,p.17.
456
Ibidem, Idem.
457
No sentido em que pressupunham que a produção camponesa estava completamente virada para a
subsistência em vez de por exemplo, para a comercialização, juntando ainda o facto de sobrestimarem os
recursos técnicos, organizativos e financeiros disponíveis para gerirem machambas estatais grandes e
ambiciosas. Em relação a auto-crítica da Frelimo, ver, Relatório do 4º Congresso, publicado no Jornal
Noticias, 27 de Abril, 1983. Para além do trabalho do CEA, Barry Munslow, também aborda esta questão da
intervenção do Estado na agricultura. Ver MUNSLOW, Barry. State intervention in Agriculture: The
Mozambican experience. Journal of Modern African Studies, Vol. 22, nº. 2, 1984,p. 199 - 221.
157

socialistas da FRELIMO.

6.5 O (s) Projecto (s ) Sobre o Algodão

Durante o período de 1979 a 1980, o CEA levou a cabo uma série de pesquisas nas
províncias de Nampula e Zambézia sobre as dinâmicas da produção de algodão e o seu
contributo para o desenvolvimento socialista de Moçambique. Estas pesquisas resultaram
mais tarde na produção de onze Relatórios de Investigação458, dos quais quatro eram de
difusão restrita459.

Um dos principais objectivos destas pesquisas foi o de examinar o relacionamento


entre a planificação econômica a nível distrital, com o processo de cooperativização do campo
e a recuperação da produção algodoeira que tinha reduzido drasticamente após a
independência nacional. O CEA esteve preocupado em olhar para a questão da produção
algodoeira tendo em conta o contexto regional moçambicano, identificando os pólos de
desenvolvimento e núcleos de concentração de investimento. Foram assim levados a cabo
várias pesquisas sobre, por exemplo, a introdução de uma nova fábrica têxtil no distrito de
Mocuba, no norte do país, e a transformação e cooperativização do campo.

A grande expectativa do CEA era de que estes “Relatórios de Investigação” (pese


embora tratarem apenas de um caso específico: o distrito de Lugela) pudessem “servir de guia
de recolha de informação necessária para uma correcta planificação do desenvolvimento
socialista noutros distritos do país460”. Indo para além de uma análise do algodão em si, estes
estudos tentavam ligar esta questão a uma problemática mais alargada da socialização do
campo, da cooperativização, como também no desenvolvimento do sector industrial têxtil.
Daí então os investigadores reiterarem que a cooperativização do campo não era unicamente
um processo econômico, mas também uma revolução política, social e ideológica461”.

458
Para a lista destes relatórios, vide, Cotton production in Mozambique: a survey, 1936-1979, Maputo:CEA/
UEM, Rel. 81/4,1981.
459
Vide, CEA. O Descorçoamento de Algodão na Província de Nampula, Maputo: UEM/CEA, 1979,Maputo;
CEA. O Sector Estatal do Algodão: Força de Trabalho e Produtividade, um Estudo da UP II Metocheria,
CEA, Maputo, 1979; CEA. Cotton Production in Mozambique: A Survey 1936-1979. Maputo: CEA, 1981;
CEA. Cotton Production in Mozambique: A Survey 1936-1979, Maputo: CEA, 1981.; CEA. Actuação do
Estado ao Nível do Distrito: O Caso de Lugela, Maputo: CEA, 1981.
460
CEA. Já não batem – A Transformação da Produção Algodoeira, Maputo: CEA, 1981.
461
Ibidem, p.1.
158

Encontramos este tipo de preocupação com a importância do algodão na economia


regional, por exemplo, no Relatório “Já não batem – a transformação da produção
algodoeira”. O seu objectivo principal era então o de analisar, especificamente no distrito de
Lugela, as condições de reactivação, crescimento e transformação da produção algodoeira nos
sectores familiar e cooperativo. Para o CEA, estes dois sectores não constituíam uma esfera
fechada de produção, uma vez que estavam ligados ao mercado pela procura da força de
trabalho e pelo padrão de investimento estatal no desenvolvimento regional das machambas
estatais e indústria.

Assim, para o CEA, toda a planificação do fomento algodoeiro (“até a escolha de


manter ou não a produção de algodão num determinado distrito462”), teria que ser feita em
função dos planos de desenvolvimento regional. Em relação ao distrito de Lugela, que era o
foco de análise do Relatório, a sua transformação algodoeira teria necessariamente que ser
vista, na óptica do CEA, a partir da evolução da economia da Média - Zambézia, que tinha
como centro econômico a cidade de Mocuba.

Neste Relatório, os investigadores não deixaram também de fazer uma reflexão sobre
a evolução histórica da produção de algodão no distrito. Como afirmaram os investigadores,
“é particularmente importante tomar em conta a história da produção algodoeira no distrito na
formulação duma nova política de fomento463”. Com esta contextualização histórica, os
investigadores do CEA estavam principalmente preocupados em saber quem produzia, quais
os mecanismos de controlo, qual era o significado da abolição formal da cultura forçada, qual
era a importância do sector colono e qual era a experiência das cooperativas que estavam no
momento produzindo algodão. Pois que, na visão destes investigadores, a organização da
agricultura familiar em Lugela tinha sido estruturada a partir da história da presença colonial,
onde grande número de produtores, sobretudo mulheres, lutava para equilibrar a sua produção
entre a subsistência da família e a pequena machamba de algodão e mandioca (para venda e
alimentação da família), na ausência do esposo, trabalhador migratório.

O Relatório descreve, por outro lado, um sistema de baixa produtividade de trabalho


que não fornecia nem uma produção segura de algodão e nem uma base para a acumulação no
distrito. Daí então o CEA reiterar que somente através da integração de Lugela na economia
regional se poderia operar as transformações necessárias da cultura do algodão. No entanto, o

462
Já não batem , op.cit, p.2.
463
Ibid. p.5.
159

CEA adverte, que não se podia explicar a baixa produção de algodão no distrito somente a
partir da estrutura dos preços; comparados, por exemplo, com a comercialização de outras
culturas como a do arroz, milho, girassol, mandioca, etc. De acordo com o estudo, mais
importante do que a tabela de preços na escolha da cultura era a segurança do rendimento que
tinha maior peso nas escolhas dos camponeses. O algodão, diferentemente da mandioca,
estava mais vulnerável às secas, pragas e chuvas inoportunas464.

Os investigadores terminam o Relatório, fazendo uma série de propostas às estruturas


competentes do Ministério da Agricultura, no sentido de repensarem as suas prioridades para
o aumento da produção e produtividade do algodão, dentro daquilo que era o plano de
desenvolvimento socialista de Moçambique. Sugerem, por exemplo, a reparação das
principais vias comerciais465, recomendam também “o corte do algodão dos programas para o
desenvolvimento das cooperativas naqueles distritos onde tanto as condições climáticas como
as de escoamento, não permitiam que o algodão se tornasse numa cultura rentável466”. Esta
proposta era assim uma reacção à pressão administrativa ao nível provincial de incluir nos
seus planos, cooperativas para o algodão que não tinham condições mínimas para o seu
desenvolvimento. Em terceiro lugar, os investigadores propõem uma “melhoria das técnicas
algodoeiras no quadro do desenvolvimento de cooperativas e produção467”.

Afirmaram ainda estes investigadores que os órgãos competentes do Ministério da


Agricultura como por exemplo a Direcção Provincial de Agricultura, deveria escolher certas
cooperativas onde se prestaria atenção especial aos condicionalismos de produção de algodão
e a sua integração com culturas alimentares. Para os autores deste Relatório, Instituo Nacional
de Agricultura (INA), deveria prestar um apoio técnico-cientifico mais do que financeiro. Daí
então proporem, por último, que esses organismos fizessem uma “reciclagem dos auxiliares
ligados à cultura algodoeira”. Esta reciclagem segundo os relatores envolveria três passos: o
estudo e reorganização pelo INA da informação básica que deveria ser recolhida no campo e a
preparação de novas fichas de controlo. Em segundo, o INA deveria também fazer um estudo
da informação básica sobre a cultura do algodão em relação às outras culturas. Deveriam
ainda serem preparados novos manuais que permitissem aos agentes a aplicação de
informação científica às condições concretas dos vários distritos, bem como a participação em

464
Ibid.., p. 11.
465
Ibid., p.15.
466
Ibidem, p.16.
467
Ibidem, Idem.
160

estágios de campo para a reciclagem dos auxiliares. Como podemos depreender, estávamos
mais uma vez em presença de um tipo de pesquisa social orientada para o fornecimento de
recomendações políticas que pudessem ser utilizadas pelo governo e pela FRELIMO.

6.6 A Comercialização Agrária: Estado, Sector Familiar e Privado

Nos meses de Julho de 1981 e Janeiro de 1982, o CEA, a partir de uma solicitação do
Ministério do Comércio Interno, produziu um estudo detalhado de um dos principais distritos
produtores de excedentes de milho da província da Zambézia (Alto Molócue), com o
propósito de compreender, naquele momento, o processo de comercialização de culturas
alimentares a nível distrital e em segundo lugar, propor uma série de melhoramentos da
planificação pelo Estado desse processo de comercialização. Pretendia-se que os resultados
dessas investigações pudessem ajudar o governo na formulação de políticas estatais
respeitantes à comercialização das culturas alimentares.

Este empreendimento culminou com a produção de dois Relatórios de Investigação,


ambos de difusão “restrita”: “Comercialização Agrária ao Nível Distrital: um estudo sobre o
Alto Molocué468” e “Comercialização Agrária: Métodos de Planificação”. Estes relatórios
defendiam a necessidade de uma análise do mercado privado na planificação da actividade de
comercialização do Estado, apontando ainda alguns dos perigos de não o fazer.
Argumentavam, por outro lado, que o processo agrário nestes distritos não era, no momento,
planificado na íntegra pelo Estado. Pelo contrário, segundo o CEA, ele era fortemente
influenciado pelas decisões dos produtores familiares, dos agricultores privados, dos
comerciantes privados e dos proprietários das moagens. Por exemplo, o sector familiar
acabava vendendo mais milho que ambos, o sector estatal e cooperativo.

É assim que o CEA, nestes relatórios vai enfatizar a importância do sector familiar na
comercialização agrária, criticando a forma como os dados oficiais subestimavam a sua
importância. Os investigadores argumentavam que a política de comercialização vigente, não
estava a conseguir atingir os seus objectivos, onde “em alguns aspectos os resultados obtidos
eram mesmo opostos aos desejados469”. Os Relatórios acabam assim recomendando às
estruturas políticas de que “para corrigir esta situação, era necessário introduzir alterações,

468
Este projecto teve também uma versão em inglês: Agricultural Marketing in the District of Alto Molócue.
469
CEA, Comercialização Agrária ao nível distrital, Maputo: UEM/CEA, 1982. p.1.
161

não só na política de comercialização ao nível distrital, mas também nos métodos de


planificação aos níveis provincial e nacional470”. Por exemplo, uma maior intervenção do
Estado na comercialização agrária, como forma de eliminar a competição no seu seio, pelo
fornecimento de produtos alimentares, como também de reduzir o peso do capital privado no
circuito comercial, que segundo o CEA estaria a fomentar o aparecimento do mercado
paralelo.

Olhando por exemplo para o estudo, “Comercialização Agrária: Métodos de


Planificação”, podemos então surpreender de forma mais localizada algumas dessas
recomendações do CEA ao Ministério da Agricultura. Os investigadores do CEA tomam
como ponto de partida a constatação por parte do governo de que, apesar de Alto Molocué ser
considerado como um dos principais produtores excedentes de milho da província, a política
de comercialização não estava a atingir os seus objectivos. Um desses objectivos estava
directamente ligado ao papel do Estado em ampliar a sua capacidade de planificar a
distribuição de produtos alimentares, como também de aumentar a intervenção da empresa
estatal ligada a agricultura (AGRICOM) no mercado grossista de produtos alimentares.
Permitindo assim, que a Agricom pudesse distribuir directamente a maior parte dos
excedentes comercializados as populações.

Os investigadores deste Relatório constatam ainda neste estudo que a comercialização


agrária era extremamente lucrativa no distrito de Alto Molocué e que a rede privada estava a
expandir-se de forma exponencial, fazendo com que a Agricom ficasse cada vez mais afastada
do mercado grossista de milho. Esta situação, na óptica dos investigadores, estava ocorrendo
devido a política de preços que a Agricom praticava, facilitando assim a emergência de um
mercado paralelo de culturas alimentares (que somente beneficiava os comerciantes
privados). Os pesquisadores propõem então ao Ministério do Comercio Interno uma série de
medidas para melhor controlar a comercialização agrária no distrito, uma vez que “a
actividade estatal é muito mal planificada e coordenada471”.

Sugerem em primeiro lugar que se introduza “um sistema melhorado de recolha de


informações sobre as compras e vendas dos comerciantes privados. Para além disso, estes
investigadores propõem que a “Comissão Coordenadora Distrital da Comercialização Agrária
(CCDA) tome certas iniciativas no sentido de melhorar a coordenação entre os compradores

470
Ibibem.
471
CEA, Comercialização Agrária ao nível Distrital, Maputo: UEM/CEA, p.57.
162

estatais e entre os vendedores estatais no que respeita as suas actividades no mercado de


milho do distrito. Com este tipo de recomendação, os investigadores pretendiam então
“solucionar”, por exemplo, o problema da competição entre as estruturas do Estado, que
estava a gerar o mercado paralelo. Em segundo lugar, recomendam que o distrito advogue a
necessidade de se introduzir uma estrutura de preços que permita a Agricom pagar preços
idênticos aos das moagens e de outros compradores grossistas de milho. Por último, e tendo
em conta que a comercialização agrária no distrito era rentável, os investigadores sugerem
que a administração estatal poderia tentar estimular e apoiar a actividade das cooperativas na
comercialização das culturas do sector familiar.

6.7 Examinando o Falhanço das Aldeias Comunais

O sexto e último Relatório a ser apresentado nesta secção, intitula-se: “Poder Popular
e Desagregação nas Aldeias Comunais do Planalto de Mueda”472. Tal como os anteriores,
enquadra-se perfeitamente nas prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento
socialista, que o Centro e o Curso de Desenvolvimento procuraram ter como ponto de partida
para a definição dos objectos de pesquisa. É de referir, que este “Relatório de Investigação”
diferentemente dos até aqui apresentados tinha sido produzido maioritariamente pelos
investigadores da Oficina de História em Dezembro de 1985 e publicado em no ano seguinte.

Esta pesquisa abordou um tema duplamente sensível para o poder: primeiro, pelo facto
de analisar criticamente a ineficácia do projecto “Frelimista” da construção das aldeias
comunais nas zonas rurais, mas também pelo facto do falhanço deste projecto se ter dado
precisamente no distrito de Mueda, um lugar com um grande significado simbólico para a
FRELIMO. Como sabemos, tinha sido aí onde se dera o inicio da luta armada e onde tinham
sido construídas as primeiras “zonas libertadas” “governadas” pela FRELIMO.

A partir de uma análise focalizada em três aldeias comunais pertencentes à localidade


de Ngapa, os investigadores da “Oficina” examinaram criticamente os factores da
“desagregação” das aldeias comunais, não se coibindo de enfatizar a fragilidade da
FRELIMO e do Estado moçambicano como um dos factores principais neste processo de

472
O trabalho de campo foi realizado concretamente na localidade de Ngapa, província de Cabo delgado,
situado junto a fronteira entre Moçambique e Tanzânia. Estavam sob jurisdição desta localidade 13 aldeias
comunais que serviriam de objecto de análise da pesquisa.
163

desarticulação das novas formas de organização colectiva dos camponeses, erigida como uma
das grandes políticas na construção do socialismo em Moçambique. Os relatores do estudo
utilizaram aqui o termo “desagregação” para indicar o regresso ou mesmo a fuga das
populações das aldeias comunais para locais dispersos de povoamento, um processo que
segundo os investigadores, o Estado tinha sido incapaz de reverter.

Segundo os investigadores do CEA, apesar de estas aldeias terem origens distintas, os


problemas e contradições que elas encerravam na altura da investigação, eram similares.
Todas elas, caracterizaram-se pelo “não funcionamento das estruturas políticas, crise de
abastecimento, crise de produção agrícola, má localização e fraco apoio ao sector familiar473”;
enfim, elementos que na óptica deste investigadores, estavam na base da maior incidência, a
partir dos anos 1980 do fenómeno da “desagregação das aldeias comunais474.”

De acordo com estes investigadores, os factores da “desagregação”, estavam


intimamente ligados à actuação do partido e do governo local, pela sua “falta de direcção
sólida” e “fraqueza da acção política da FRELIMO475”. Agravado ainda pelo aparecimento de
uma de crise de alimentação e de roupa, como também a “inexistência quase total de
diversões ou de organizações de lazer”476, o que teria levado ao exacerbamento do
descontentamento entre os camponeses, interpretados pelas estruturas políticas, como “actos
de rebeldia477”. Afirmam ainda os investigadores, que nesses casos foram utilizados métodos
de coação e de punição (aos considerados “cabecilhas da desagregação”), para fazer os
camponeses voltarem para as aldeias comunais pertencentes à localidade de Ngapa. Foram
também os considerados infractores, em outros casos, objecto de punição.

Perante este cenário de crise de produção, de comercialização e de legitimação das


políticas do governo em relação ao desenvolvimento rural, os investigadores acabaram
questionando a própria existência do “poder popular”, ou de “ participação popular”, slogans
tão comummente propalados pelos discursos oficiais. Como afirmaram os investigadores, “o
facto de se ter conseguido fazer funcionar o poder popular nas antigas zonas libertadas não
podia de maneira nenhuma significar que a continuação do poder popular ia automaticamente

473
CEA. Poder Popular e Desagregação nas Aldeias Comunais do Planalto de Mueda. Maputo: UEM/ CEA,
1986, p.13.
474
Ibid., , p.18.
475
Ibidem, p.19.
476
Ibidem, p.52.
477
Ibidem, p.39.
164

ser assegurada”478.

É assim, que o estudo vai argumentar que formas de “poder popular” em Cabo
Delgado e, mais concretamente na localidade de Ngapa, tinham sido “impostas” pelo partido
e Estado, e não algo que tinha surgido, espontaneamente, a nível da base. O problema,
segundo o colectivo de investigadores, residia no tipo de relações que existia entre a direcção
política e a população. Os resultados da pesquisa iriam mostrar, que essa relação não era
horizontal ou democrática. Devido a esses “formalismos do Estado”, os funcionários do
aparelho estatal e membros do partido com a sua “atitude de superioridade”, contribuíam para
que a população desenvolvesse uma atitude mais passiva sobre as formas de “ poder popular”,
como “coisas que o governo vai trazer”. O “poder popular” vai, deste modo, aparecer como
uma coisa pré-fabricada, quase uma mercadoria479.” Daí então os autores do estudo,
argumentarem, que era legítimo ver a desagregação das aldeias comunais como uma
desagregação do poder popular.

Com este argumento, os investigadores pretendia rebater a interpretação do governo


de que a “desagregação” era um fenómeno ligado simplesmente às aldeias comunais e às
“práticas rebeldes”, “tradicionais” ou até de “feitiçaria” de alguns camponeses, que
supostamente estavam contra a política da FRELIMO. Como afirmaram os investigadores,
“seria errado reduzir a desagregação das aldeias a manifestações de forças antagonicamente
opostas à FRELIMO”. Não obstante advertirem que “embora numa fase ulterior tais forças
podem, na situação actual, encontrar o meio ambiente para eclodir480.”

Como podemos notar, este último argumento avançava, timidamente, hipóteses sobre
as origens do conflito armado no pós-independência, que seriam exploradas, nesse mesmo
ano, por Christian Geffray, na sua análise da base social da guerra civil em Moçambique. É
importante no entanto referir, que o exemplo de Cabo Delgado era fraco para demonstrar essa
ligação entre ressentimento, insatisfação, desagregação dos camponeses em relação às
políticas agrárias da FRELIMO e a natureza da guerra da RENAMO. Como afirmou mais
tarde Colin Darch (1989), investigador e documentalista do CEA, “o caso de Cabo Delgado,
não teve nenhuma ligação orgânica com a emergência do banditismo481”.

478
Ibid., p.1.
479
Ibidem, p.60.
480
Ibidem, p.61
481
Ver, DARCH, Colin. Are there Warlods in Provincial Mozambique? Questions of the Social Base of MNR
Banditry. ROAPE,nº 45/45,1989, p.34-49.
165

7. A OFICINA DE HISTÓRIA: O “HOMEM NOVO” E A NOVA HISTÓRIA

7.1 História e Memória

Um dos grandes anseios da FRELIMO logo após a independência nacional foi sempre
o de criar condições para a construção de uma narrativa histórica nacional, que pudesse
manter viva a memória da experiência da luta de libertação nacional, como também, e agora
num âmbito mais alargado, de restituir a dignidade do povo moçambicano que tinha sido
“silenciada” pela historiografia colonial. E foi de facto no CEA que a tarefa de reescrever a
história de Moçambique foi levada a cabo de uma maneira mais sistemática482. A presença da
figura de Aquino de Bragança como director do Centro foi, de facto, preponderante para esta
tomada de dianteira do Centro na produção da história da luta armada. Como afirmou
Depelchin,

Nós estávamos a fazer a história das zonas libertadas. A história das


zonas libertadas é uma história bastante controversa. Controversa no
sentido em que quem conta, como se conta e há uma história oficial
que tem que ficar uma história oficial…e havia uma apreensão por
parte dos dirigentes de que esta coisa poderia sair do caminho483.

Ambos os dirigentes do CEA, Aquino de Bragança e Ruth First tiveram ligações


muito fortes com membros séniores da FRELIMO, como Samora Machel, Marcelino dos
Santos dentre outros. Aquino de Bragança e Ruth First nutriam uma grande amizade com
Samora Machel antes mesmo da independência nacional. Foi então devido a esta confiança e
reconhecimento das suas capacidades diplomáticas que Aquino foi escolhido para servir de

482
Apesar de encontrarmos também este tipo de empreitada no departamento de história da UEM, com a
elaboração e publicação nos anos 1980 e 1983 dos dois volumes da História de Moçambique, foi a Oficina,
que de uma forma sistemática procurou reelaborar a história tendo como particular enfoque na construção
histórica da experiência da luta armada.
483
Entrevista com Jacques Depelchin, março, 2007.
166

intermediário nas negociações do governo de transição em 1974, tendo permanecido,


“conselheiro pessoal” do presidente Samora, até a morte de ambos. Já José Luís Cabaço484,
advertia que, “O Aquino de Bragança por razões históricas tinha uma influência pessoal
grande sobre o poder485”.

Como se pode depreender, não havia espaço para se criar polémicas à volta da história
recente de Moçambique. A FRELIMO, requereu aos historiadores que praticassem aquilo a
que Terence Ranger (apud Jewsiewicki, 1989) denominou de “passado usável486”, quer dizer
a produção da história relevante para as preocupações nacionais da construção de uma
sociedade socialista sob liderança do partido marxista-leninista da FRELIMO. Samora
defendeu que o marxismo em Moçambique deveria vir da prática, do contexto moçambicano,
enfim da própria história moçambicana. E, na mesma senda, o presidente também sabia que
Aquino de Bragança era um intelectual crítico, não dogmático e que não aceitaria a produção
de uma história “oficial”, com o único objectivo de legitimar a ideologia dominante.

Foi assim que Aquino de Bragança, com o apoio do historiador congolês Jacques
Depelchin487, funda em 1980 no Centro, a Oficina de História, um colectivo de jovens
historiadores moçambicanos, como Luís de Brito, Alexandrino José, Yussuf Adam, Isabel
Casimiro, como também de historiadores estrangeiros como Ana Maria Gentil, Valdemir
Zamparoni488 e Gary LittleJohn. Este colectivo pretendia trazer uma nova abordagem no
trabalho do CEA, introduzindo uma pesquisa fundamentalmente histórica, distinguindo assim
do que até então era o foco de análise do Centro: a análise da economia política de
Moçambique, com enfoque na transformação social e condições de produção. Como afirmou
Depelchin, a Oficina de História, “procurava fazer uma recuperação da história nacional e de
resgatar uma história que tinha sido manipulada, esquecida pelo poder colonial em

484
Sociólogo moçambicano, foi durante os anos da “transição socialista”, ministro dos transportes como também
da informação.
485
Entrevista com o autor, Setembro, 2007.
486
JEWSIEWICKI , Bogumil. African Historical Studies Academic Knowledge as 'Usable Past' and Radical
Scholarship. African Studies Review, Vol. 32, nº 3, Dezembro, 1989, p. 1-76.
487
Jacques Depelchin acabara de chegar da Universidade Dar es Salaam onde estivera como docente no período
de 1975 a 1979.
488
Valdemir Zamparoni, na altura ainda um jovem recém graduado em História na Universidade de São Paulo, e
já com um grande interesse pelos estudos africanos, foi então convidado em 1979, (um ano antes da fundação
da Oficina de História) por Aquino de Bragança, que estava de passagem pelo Brasil, a se integrar no CEA
por seis meses. Chegou a Moçambique em Setembro de 1981 e começou a trabalhar na Oficina de História,
onde ficou até 1984. Entrevista com o autor, Agosto, 2007.
167

Moçambique”489.

No mesmo diapasão, Teresa Cruz e Silva também alude a esta preocupação com a
reconstrução da nova historiografia nacional,

A Oficina de História tentou principalmente recuperar essa parte da


história que tinha sido riscada, esquecida, portanto, trazer a história de
Moçambique que ninguém conhece. Fazer conhecer aos jovens a
história de Moçambique, a luta armada de libertação nacional, o que
eram as zonas libertadas, etc. E foi uma nova experiência para os
pesquisadores: o contacto, por exemplo, com as zonas libertadas490.

Esta nova história de Moçambique iria ser construída principalmente a partir do


método da história oral, através da produção de “histórias de vida”, narrativas orais e
narrativas biográficas, de ex -combatentes na luta de libertação nacional, dos operários e
camponeses491. A introdução do método da história oral estava, segundo a Oficina de
História, directamente ligada a uma tentativa de "democratizar e popularizar” uma nova
forma de se fazer a história, dando “voz” aos moçambicanos que tinham sido “silenciados” no
período colonial, como também a uma forma de ir “contra a pesquisa histórica e acadêmica
(burguesa)”. Como afirmaram estes historiadores,

A fonte oral constituía uma oportunidade excepcional de dar à voz ao


povo. Mas esta palavra tem que ser dada não num espírito acadêmico
ou paternalista, que deixe a palavra final aos especialistas acadêmicos,
historiadores profissionais, mas num espírito revolucionário visando
respeitar, promover a criatividade dos actores e portadores principais

489
Entrevista com Jacques Depelchin, março, 2007..
490
Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto de 2007.
491
A Frelimo não fez menção de forma insistente ao passado pré-colonial, diferentemente por exemplo de alguns
líderes africanos, como Senghor, Nyerere que glorificavam uma África, “tradicional”, comunitária, solidária,
onde não existiriam conflitos de qualquer ordem. O novo poder político em Moçambique apelou mais por um
projeto modernizante, que procuraria construir o “homem novo” e uma sociedade “socialista sem exploração
do homem pelo homem” sem classes.
168

da História492.

Entretanto, era também uma pesquisa que envolveu trabalho de arquivo sistemático,
análise documental e estatística. Como afirmou Yussuf Adam um dos membros fundadores
deste colectivo de pesquisa histórica,

Chamar o nosso projecto, de “projecto de história oral” também é uma


brincadeira porque envolvia todo um trabalho de consulta documental
profunda. Tínhamos dois objectivos, um era de conhecer a realidade
que estava lá e outra de manter a memória493.

Os historiadores do CEA estavam profundamente conscientes das “distorções”


produzidas pela historiografia colonial, baseada essencialmente em fontes escritas,
nomeadamente em escritos de viagens de exploradores, discursos etnográficos, etnológicos,
etc. Argumentavam ainda, que a introdução de fontes orais na produção da nova história de
Moçambique, significaria um corte radical com a pesquisa colonial, eurocêntrica. Era preciso
então escrever a nova história de Moçambique com novos instrumentos teóricos e práticos.
Não bastava pôr fim ao sistema colonial português. Era preciso fazê-lo partindo de uma teoria
e de uma prática que não seguisse os métodos e modelos do inimigo494. Fazendo alusão a essa
historiografia colonial, a Oficina de História observa,

Nessas fontes escritas, cheias de mistificações, onde o verdadeiro é


misturado com o falso, encontramos mais uma razão para encorajar a
produção duma historia oral vinda directamente do povo, porque é
nesta história que se encontrarão as peneiras para começar a separar os
mitos e suposições dos factos495.

492
,NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, Boletim Informativo da Oficina de História, Maputo, Fevereiro,1983, p.38.
493
Entrevista com o autor, Julho, 2007.
494
NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, Boletim Informativo da Oficina de História, Maputo, Fevereiro,1983, p.4.
495
NÃO VAMOS ESQUECER!,, nº.1, Ano I, Fevereiro, 1983, p.39.
169

No entanto, é preciso referir que a Oficina de História, tinha consciência dos riscos
que uma abordagem exclusivamente biográfica poderia ter na pesquisa como um todo.
Segundo estes, “o método de utilizar a história biográfica do operário, como maneira de entrar
no mundo do trabalhador, contém o risco de dar uma ideia errada das características centrais
da vida do trabalhador”496.”

O historiador, e africanista inglês, Allen Isaacman (1990), foi um dos autores que
também reflectiu sobre a problemática das fontes orais. Segundo ele, uso de biografias e
narrativas orais na historiografia dos estudos africanos, desafiavam o cânone da historiografia
ocidental e o pressuposto de que somente se podia produzir narrativas biográficas dos
“homens de letras”, de personagens ilustres, instruídas, etc., e jamais por exemplo da classe
trabalhadora ou camponesa497. É portanto, no caso particular de Moçambique, que o CEA
vem desafiar esta perspectiva, trazendo através da Oficina de História, relatos do “outro”
excluído da historiografia convencional e no caso de Moçambique colonial. Uma outra forma
de desafiar a historiografia colonial, na óptica da Oficina de História, era de conceptualizar o
grupo dos operários e dos camponeses como “classes produtivas”. Segundo a Oficina de
História, “em Moçambique as classes produtivas devem ser entendidas não somente como
produtores de riqueza material, mas mais importante, como produtoras das zonas libertadas, o
que quer dizer, produtores de um contra-Estado”.498

Esta abordagem em termos de “classe”, significou também na visão da Oficina de


História, “uma rejeição da sua antropologização, que se reflectia na tendência da disciplina
relegar os camponeses para o seu aspecto tribal”499. A Oficina de História concentrou
inicialmente os seus esforços na produção da história da luta armada de libertação nacional a
partir da experiência das “zonas libertadas”, consideradas como o “laboratório da

496
NÃO VAMOS ESQUECER!,, nº2/3, Dezembro, 1983, p.5.
497
Vide, por exemplo, ISAACMAN, Allen. Peasants and Rural Social Protest in Africa. African Studies Review,
Vol. 33, nº 2, Setembro, 1990, p. 1-120.
498
OFICINA DE HISTÓRIA., CEA. Towards a History of the National Liberation Struggles in Mozambique;
Problematics, methodologies, analysis. Reunião de especialistas sobre problemas e prioridades na formação
em Ciências Sociais na África Austral, Maputo, 9-13, de Agosto, 1982.
499
Idem,p.3.
170

revolução500”, por terem sido uma espécie de primeiro ensaio (antes da conquista do poder do
Estado) da FRELIMO, em “governar” as suas populações.

A Oficina de História sustentava, que a problematização da nova história de


Moçambique deveria vir de referências locais e não de aproximações ou associações com
outros contextos ou modelos. Daí a necessidade, segundo os historiadores do CEA, de se
focalizar na experiência concreta e ainda viva dos moçambicanos, que tinham participado
directamente na luta de libertação nacional. No entanto, a Oficina de História estava também
ciente do perigo que poderia significar na produção da historia nacional, uma ênfase excessiva
na experiencia da luta armada e das “zonas libertadas”. Para a Oficina de História, “ uma
compreensão total dessa história significava também olhar para as “zonas não libertadas” e o
contexto geral da luta no continente africano501.

A interacção com as populações rurais (camponeses, ex-combatentes da luta armada,


trabalhadores migrantes, etc.), e a preocupação em torná-los desta vez sujeitos da história, em
clara antítese a sua “invisibilidade” na historiografia colonial, traduziu de facto num novo
desafio para a maior parte dos pesquisadores do CEA, principalmente dos “jovens
historiadores moçambicanos que, de uma forma geral, tinham tido pouca experiencia de
trabalho empírico nas comunidades. Segundo Bridget O'Laughilin,

Os historiadores não faziam nenhuma formação, porque não sabiam


investigação de campo. A experiência de investigador normalmente
era fazer documentação, mas quando chegou o Jacques e depois a Ana
Maria Gentili, formaram a Oficina e começaram a fazer investigação
de campo, aquela em Cabo Delgado502.

Ana Maria Gentili, historiadora italiana, que tinha estado também a leccionar na
Universidade de Dar-es-Salaam e que em 1981 juntava-se à equipe da Oficina de História, é
quem afirma,

500
OFICINA DE HISTÓRIA. Towards a History of the National Liberation Struggles in Mozambique;
Problematics, methodologies, analysis. Reunião de especialistas sobre problemas e prioridades na formação
em Ciências Sociais na África Austral, Maputo, 9-13, de Agosto, 1982.
501
Idem.
502
Entrevista com Bridget O´Laughilin, agosto, 2007.
171

Para mim foi uma experiência muito dura. Eu não estava habituada a
trabalhar assim. Era uma acadêmica, antes de vir para Moçambique.
Estava mergulhada nos livros, lia todos os livros, tinha uma posição
muito intelectual. Comecei a ter dúvidas na Tanzânia, mas aqui tive
muito mais, porque aqui, na investigação, nós os investigadores,
confrontávamos com as nossas ambiguidades, os nossos problemas, os
nossos privilégios503.

7.2 “Tensões Criativas504” no Nascimento da Oficina de História

Na secção anterior procurou-se mostrar que um dos propósitos principais na criação da


Oficina de História tinha sido a necessidade premente de construir uma nova história de
Moçambique, livre dos preconceitos da ciência colonial e em consonância com os desígnios
da reconstrução nacional e do futuro socialista. No entanto, houve também outros factores que
impulsionaram a sua emergência. Por exemplo, podemos olhar para a fundação da Oficina de
História, como uma forma do director do CEA, Aquino de Bragança, tomar também parte
activa na pesquisa e de certa maneira, contrabalançar, a partir de uma abordagem do campo
da História, as análises “economicistas” lideradas por Ruth First, Marc Wuyts e Bridget
O´Laughilin505. Como afirmou Isabel Casimiro,

Eu penso também que o Aquino queria ter um grupo de


moçambicanos que pudessem fazer uma reflexão, um grupo onde se
sentisse mais integrado, é a minha interpretação, porque todos os
outros sectores, a Ruth First, como directora de investigação,
controlava muito mais, e o Aquino achava que era fundamental que a
gente fizesse a tal reflexão crítica sobre a luta armada.506

Uma outra razão para criação da Oficina de História esteve ligada às críticas por parte
503
Entrevista com Ana Maria Gentili, junho, 2007.
504
Esta foi uma das frases que João Paulo usou para descrever os conflitos internos do CEA, como também na
sua interacção com outros departamentos da universidade naquele contexto histórico, a quando da conferência
sobre Ruth First realizada em Maputo em Agosto de 2007.
505
Esta questão dos diferentes programas de pesquisa do CEA, como também das “tensões “ entres os vários
investigadores do Centro, serão discutidos com mais detalhe no capítulo nº10.
506
Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007.
172

de outros investigadores da universidade de que o CEA estava demasiadamente circunscrito a


pesquisa sobre a economia política de Moçambique e questões geo-estratégicas da África
Austral, sem nenhum aporte de pesquisa histórica. É assim, que Aurélio Rocha, historiador,
professor e investigador no departamento de história da UEM afirma que,

Quase como respondendo à nossa crítica de que era preciso introduzir


uma perspectiva mais da História, o Aquino acabou por ser
determinante na criação da Oficina de História. Foi criada já numa
fase tarde do CEA, e ai começaram-se a desenvolver alguns estudos
de História interessantes, com a coordenação de Jacques, Ana
Maria507.

É ainda Carlos Serra quem partilha da mesma opinião,

O CEA na altura era criticado, por exemplo, pelo Departamento de


História da UEM de se dar muita ênfase numa abordagem da
economia política. Isto, vai contribuir para o surgimento da Oficina de
História sob a direcção de Jacques Depelchin508”.

Não obstante encontrarmos aqui diferentes leituras sobre a fundação da Oficina de


História, um factor que não pode ser descurado é segundo as palavras do sociólogo, José Luís
Cabaço, o “sentido apurado da história em Aquino de Bragança.509” De facto, só poderemos
compreender a existência de um colectivo de pesquisa histórica no CEA, idealizado e
concretizado por Aquino de Bragança, se levarmos em conta o percurso intelectual e o
contexto em que este personagem viveu. Como observou Immanuel Wallerstein (1987),
Aquino de Bragança jogou três diferentes papéis na sua vida. O de militante, quando ainda

507
Entrevista com Aurélio Rocha, setembro, 2007.
508
Entrevista com Carlos Serra, agosto,2007.
509
Entrevista com o autor, setembro, 2007.
173

jovem em Goa (Índia) e mais tarde em Lisboa, Paris, Rabat e Argel, mergulhou
profundamente no activismo anti-colonial a favor dos países africanos de expressão
portuguesa.

Como jornalista radical510 e também como um elemento chave na criação (juntamente


com nacionalistas africanos como, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos)
da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP). Aquino
de Bragança jogou um papel preponderante na emergência dos movimentos de libertação
nacional nessas colônias, como também no sucesso das independências africanas. Marcelino
dos Santos afirmara a propósito que, “os primeiros fornecimentos de armas aos movimentos
de libertação fizeram-se por intermédio de Aquino de Bragança, que organiza igualmente o
apoio logístico aos movimentos de libertação”511.

Em 1974 com o fim do colonialismo, Aquino teve um papel central nas negociações
que levariam aos acordos de Lusaka, onde Portugal reconheceu a independência de
Moçambique governado pela FRELIMO. Estávamos então em presença, do segundo papel de
Aquino de Bragança, o de diplomata. Devido à sua integridade e compromisso com a luta
anti-colonial, Aquino tinha conquistado a confiança dos líderes da FRELIMO e especialmente
do presidente Samora, tendo sido em outras ocasiões, chamado para missões diplomáticas em
várias partes do mundo. Depois da independência em 1975, com a FRELIMO no poder,

Samora logicamente disse: Aquino vamos para casa e ele


naturalmente veio para casa. E ele me disse uma vez que nunca na
vida, ele sentiu que não estivesse em casa dele aqui512. Sentiu-se
sempre parte desta comunidade, da comunidade da FRELIMO e
também da própria comunidade aqui, porque já tinha cá estado no
período colonial e tinha também amigos que não eram da
FRELIMO513.

510
Escreveu sob temas relacionados com os países africanos então colónias portuguesas nos jornais radicais,
“Revolution Africaine” e “Afrique-Asie” e que viria a ter um grande impacto, numa primeira fase, na
formação dos movimentos de libertação e mais tarde numa maior consciencialização do mundo sobre a
legitimidade da luta armada desses movimentos e das atrocidades do colonialismo português.
511
Elogio fúnebre de Aquino de Bragança, por Marcelino dos Santos, In: Research Bulletin – Southern Africa
and the World- Economy, Fernand Braudel Center for study of Economics, historical systems, and
civilizations, State University of New York, Binghamton, New York, USA, Junho, 1987.
512
Aquino de Bragança nasceu em 1928 em Goa, Índia.
513
Entrevista com José Luís Cabaço, setembro, 2009.
174

Aquino de Bragança muda-se então definitivamente para Moçambique, “onde Samora


Machel deu-lhe muitas posições e ele apenas requereu uma: a criação do CEA514”. Quatros
anos, é fundada a Oficina de História. A sua linha de trabalho com a Oficina de História a
não era de simplesmente fazer a história dos movimentos de libertação, mas sim transformar
as mentalidades e as condições de produção do país. Como afirmou Isabel Casimiro,

O Aquino considerava que era muito importante que a FRELIMO se


pensasse, que a FRELIMO se reflectisse para que não acontecesse
com este movimento de libertação o mesmo que tinha acontecido com
outros movimentos de libertação que não criaram essa capacidade de
se criticar e a história passou a ser feita por outros. E foi na Oficina de
História, que nós começamos de facto a pensar no poder popular nas
antigas zonas libertadas, que se começa a fazer estudos sobre a
produção nas antigas zonas libertadas e aí surge também o estudo
sobre a participação da mulher na luta armada515.

É então a partir do seu compromisso com a transformação das condições sociais


através da liderança de uma pesquisa crítica e honesta, que se nos revela, na óptica de
Wallerstein o terceiro papel de Aquino de Bragança: o de “revolucionário”. Para este autor,
Aquino preferiu criar um centro de pesquisa não porque estivesse “enamorado com a pesquisa
ou os arquivos”, ou mesmo que almejasse alcançar a “torre de marfim”. Pelo contrário, na
opinião de Wallerstein, Aquino teria feito essa escolha porque,

Queria ser mais do que um militante afrontando o inimigo ou um


diplomata defronte do interlocutor. Ele queria ser um revolucionário e
ele sabia que revolucionários enfrentam os seus camaradas, lutando
com eles na busca de como realmente transformar o mundo516.

514
WALLERSTEIN, Immanuel, Southern Africa and the World- Economy. Research Bulletin, Fernand Braudel
Center for study of Economics, Historical Systems, and Civilizations, Binghamton: State University of New
York Press, Junho, 1987.
515
Isabel Casimiro na Conferencia sobre Ruth First, organizada pelo CEA/UEM, Maputo, Agosto, 2007.
516
WALLERSTEIN, Immanuel, op.cit, 1987.
175

7.3 Produzir uma História Crítica ao Cânone

O que significava pesquisa histórica objectiva e crítica, num contexto de partido único
e da agravação das condições sociais e econômicas? Quais eram as possibilidades e limites
dessa isenção na pesquisa? Quais os limites da critica aberta, isenta e imparcial em relação a
FRELIMO? Como fazer a crítica da crítica?

Uma das chaves que poderá responder a algumas destas questões pode ser encontrada,
no artigo, “Da idealização da FRELIMO à compreensão da História de Moçambique,517
escrito em 1986, pelos fundadores da Oficina de História, Aquino de Bragança e Jacques
Depelchin. Este artigo é basilar para se compreender os limites do engajamento crítico da
Oficina de História, na análise da realidade moçambicana a partir das prioridades políticas do
Partido/Estado.

O texto, apresentado num seminário organizado pelo CEA em fevereiro de 1986,


pretendia reflectir sobre as possibilidades de uma re-escrita da história da FRELIMO e de
Moçambique a partir das contradições que o país vivia na altura. Seria assim, um convite à
produção de uma pesquisa objectiva e iconoclasta sobre o percurso da FRELIMO desde a luta
de libertação nacional até a situação presente do controle do poder do Estado. Esta reflexão é
realizada a partir de uma análise critica das obras de John Saul A difficult road – the transition
to socialism in Mozambique publicado em 1984, e de Joseph Hanlon, Mozambique - The
revolution under fire de 1985518. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin519 (1986), ao
fazerem a resenha crítica das duas obras, trazem também dados que nos permitem reflectir
sobre a visão do CEA em relação à metodologia da investigação histórica, como também a
sua concepção de como deve ser abordada a história de Moçambique.

Bragança e Depelchin (1986), argumentaram que estes “autores não são neutros e que

517
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 5/6, Maputo: CEA, 1986.
518
Dois autores com grande interesse de pesquisa sobre Moçambique pós-colonial. John Saul, sociólogo
canadiano, tinha estabelecido contacto com a Frelimo, antes da independência, quando este foi convidado por
Samora Machel a visitar as “zonas libertadas” da Frelimo. Nos anos subsequentes à independência nacional,
veio trabalhar em Moçambique como professor, tanto na escola do partido, como também na Faculdade de
Marxismo-Leninismo. Joseph Hanlon, jornalista britânico. James Cobbe, sucintamente descreveu estes dois
autores como red and expert, quer dizer, ambos pesquisadores, tinham conhecimento profundo sobre a
história pós-colonial mocambicana e estavam comprometidos com os objectivos da Frelimo de construir uma
“nação socialista” em Moçambique.
519
Tendo em conta que estes foram os fundadores da Oficina de História do CEA.
176

concordam inteiramente com as opções da FRELIMO”520, sendo esse facto, que na óptica de
Bragança/Depelchin constitui um dos problemas centrais das suas obras. É então este
engajamento (a-crítico) à ideologia da FRELIMO que leva John Saul e Joseph Hanlon a
produzirem uma “crónica de uma historiografia vitoriosa521”, onde são somente abordados os
aspectos positivos da FRELIMO e sempre de uma forma inquestionável, não se detendo no
mais importante, segundo a Oficina de História, que seria a análise das contradições que
levaram a FRELIMO vitoriosa à situação actual522.”

Para Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (1986), era preciso formular novas
perguntas, escrevendo deste modo, a história da FRELIMO à luz das contradições que
existem no seio da sociedade moçambicana contemporânea. A análise histórica deveria ir
deste modo, para além da história “oficial”, do “texto inalterável”, aprofundando a crítica e
analisando a “realidade tal como ela é523” e não procurando dar respostas que simplesmente
reforçam a ideologia dominante e não baseadas numa crítica objectiva dessas mesmas
ideologias. Para estes autores, a história oficial tem a “tendência a ser uma história teleológica
e auto-justificativa524”.

Na óptica dos fundadores da Oficina de História, “ nenhum dos autores tenta


problematizar as fontes oficiais525”, utilizando por exemplo acontecimentos chaves na história
da FRELIMO, como os congressos, os discursos oficiais do presidente Samora, como se não
necessitassem de serem postos à prova na pesquisa empírica. Aquino de Bragança e Jacques
Depelchin (1986), tocaram ainda num ponto crítico das ciências política, quando afirmam que
John Saul e Joseph Hanlon não conseguiram discernir que em alguns casos “as intenções
demonstram a existência formal de estabelecer o poder popular, mas que estas não são
concretizadas526”. Para os dirigentes da Oficina de História, se a investigação não souber
colocar a questão do, “porquê” da não coincidência entre as intenções e a realidade, “o campo
ficará totalmente aberto para as respostas do inimigo527.”

520
BRAGANÇA, Aquino; DEPELCHIN, Jacques. Da idealização da Frelimo a compreensão da História de
Moçambique. Estudos Moçambicanos, nº.5/6, Maputo: CEA/UEM, 1986, p.30-52.
521
BRAGANÇA, Aquino; DEPELCHIN, Jacques, op.cit, p.31.
522
Ibid.
523
Ibidem,p.33.
524
Idem.Ibid.
525
Ibidem,p.38.
526
Idem.Ibid.
527
Ibidem, p39.
177

Há ainda uma crítica dirigida à John Saul, pelo facto deste autor, na óptica de Aquino
de Bragança e Jacques Depelchin, reduzir a relação entre ideologia, partido e Estado a um
problema técnico e pedagógico de escolha do melhor método de ensino do marxismo-
leninismo528. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin dão o exemplo do enceramento da
Faculdade de Marxismo-Leninismo: para Saul a razão do seu encerramento se devia ao facto
de a referida disciplina ser ensinada de uma “forma abstracta, e desligada das condições
materiais de Moçambique”. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, concordaram
parcialmente com este argumento, porém afirmam que o problema é ainda mais complexo e
tem que ser analisado tendo em conta as contradições e as lutas a nível de toda a sociedade,
pois que a alusão a uma “abstracção ao nível do ensino do marxismo-leninismo” era reflexo
duma divergência mais profunda entre a teoria e prática. Segundo Aquino de Bragança e
Jacques Depelchin, o processo de abstracção do marxismo-leninismo começava primeiro pelo
“afastamento do partido das massas”, onde esta causa principal tem depois efeitos no
ensino529.”

É então a partir desta análise que estes autores fazem aos livros de Saul e Hanlon, que
poderemos surpreender a proposta (teórica e prática) de um ethos científico em relação ao que
deveria ser a postura crítica do trabalho do CEA e, neste caso particular, da Oficina de
História. Em suma, de acordo com o director do CEA, na produção da nova história de
Moçambique pós-colonial, era preciso primeiro começar por uma reanálise da história da
FRELIMO a partir das suas contradições e não de se focalizar exclusivamente nas suas
vitórias, políticas e liderança. Em segundo lugar, esta análise das contradições deveria ser
feita separando aquilo que era a história da FRELIMO como movimento que desencadeou a
luta armada e conquistou a independência, da própria história de Moçambique. Em terceiro,
era preciso sempre ter em conta a análise crítica das relações entre as intenções e a realidade
concreta, desconfiando sempre da “história oficial”, “teleológica e auto-justificativa530”.

Fica no entanto uma questão a ser avaliada: até que ponto estes postulados que
Bragança e Depelchin, propõem na investigação crítica da história de Moçambique, foram, de
facto, inerentes à praxis científica da Oficina de História? Já de seguida iremos apresentar
alguns dos trabalhos históricos realizados pela Oficina e publicados na sua revista, Não

528
Ibidem,p.45-46.
529
BRAGANÇA, Aquino; DEPELCHIN, Jacques, op.cit, 1986.
530
Ibidem, p,33.
178

Vamos Esquecer! e, por último, na secção seguinte531, esses artigos serão criticamente
analisados, tendo como pano de fundo a questão acima delineada.

7.4 Não vamos Esquecer!: História Social Contada pelos “de baixo”

Em 1983 nasce a revista teórica de história da Oficina de História intitulada, Não


vamos Esquecer!, onde eram publicadas os trabalhos dos historiadores do CEA, como
também de outros departamentos de pesquisa da universidade. Esta revista, de periodicidade
irregular, teve somente 4 edições, onde o primeiro número saiu em Fevereiro de 1983, o
segundo e terceiro em Dezembro do mesmo ano e finalmente o quarto número, em Julho de
1987.

Era uma revista que pretendia chegar a toda a comunidade (diferentemente por
exemplo dos Relatórios de Investigação do CEA, que tinha um público alvo, restrito, ligado
ao aparelho do Estado e membros do governo. Por outro lado, havia também a revista Estudos
Moçambicanos, mais virada para um publico fundamentalmente acadêmico. A Não vamos
Esquecer!, reivindicou uma postura “anti-intelectualista”, dai também ter como um dos seus
objectivos essenciais, encorajar, por exemplo, a produção da história da luta armada, pelas
pessoas que nela participaram. Como observou Ana Maria Gentili, “a revista Não Vamos
Esquecer!, era para os camponeses lerem. A ideia era levar lá e depois vender”532.

É a partir da publicação desta revista que se vai materializar o desiderato do CEA e


dos dirigentes da FRELIMO, de se estabelecer uma ligação primária entre “história e
memória colectiva”, na construção de uma nova “pedagogia” da existência da nação533. Como
veremos a seguir, através da análise dos trabalhos publicados nesta revista, houve sempre uma
grande preocupação da Oficina de História, de recolher, documentar e construir a história de
toda a resistência colonial que culminaria com a luta armada, através da memória dos seus
intervenientes, desde os ex-combatentes, até aos simples camponeses, operários ou
trabalhadores migrantes, etc. Daí encontrarmos em todas as edições da revista, uma “secção
sobre a luta armada”, onde eram apresentados textos diversos como análises históricas,

531
Intitulado: OFICINA DE HISTÓRIA. O colectivo de artesãos da Oficina: Historiadores como activistas?
Maputo: CEA/OFICINA DE HISTÓRIA, 1983.
532
Entrevista com Ana Maria Gentili, julho, 2007.
533
BALIBAR, Etienne. A forma nação: historia e ideologia: WALLERSTEIN, Immanuel & Balibar, Etienne.
Race, Nation, Class: Ambiguous Identities. London & New York, 1991.
179

narrativas biográficas, entrevistas com antigos combatentes e outros actores que tinham
participado directamente na luta anti-colonial. Para isso, a Oficina de História não deixa
qualquer dúvida sobre a centralidade da luta armada na revista,

Esta secção será uma das partes principais do Boletim, porque


constitui de facto uma das suas razões de ser: Fazer ouvir
directamente e com um mínimo de intermediários a voz dos
participantes e porque (…) a história vive no seio do povo e é aí que
está a fonte principal, não só de inspiração mas também de
produção534.

Encontramos nesta revista, uma tendência de se privilegiar aqueles aspectos da


história da luta de libertação nacional que poderiam servir de ensinamento à fase em que o
país vivia da “transição socialista”. Daí por exemplo, a ênfase na experiência das “zonas
libertadas”, abordadas tanto em termos do seu legado na constituição, do que os historiadores
do CEA, denominavam de um “contra-Estado” (quer dizer, a emergência ainda no período
colonial das primeiras formas de “governo” das populações, que viviam nestes territórios
livres da dominação colonial) como também na introdução, pela primeira vez, da “produção
colectiva”, da “cooperativização” e da “unidade ideológica”.

Uma outra questão, ainda neste tópico da luta armada, que vai ter particular ênfase na
revista era o tema das “contradições da FRELIMO durante a luta” e que se reflectiam na
polarização de dois grupos antagónicos. Um grupo que pretendia, na visão da Oficina de
História (como também da FRELIMO), reproduzir o sistema capitalista colonial, através da
iniciativa privada, eram rotulados de os “novos exploradores”. De outro lado, encontrávamos
a ala dos “revolucionários”, que pretendiam romper com as formas de acumulação capitalista
e criar uma sociedade socialista. Este tema procurou também servir de ensinamento sobre os
desafios do presente na constituição de novas formas de produção colectiva, da socialização
do campo e cooperativização da produção.

Estas histórias são então contadas a partir da recolha de depoimentos de camponeses,


operários, heróis da luta, seus familiares etc., e, na maior parte das vezes publicadas, ainda na

534
NÃOVAMOS ESQUECER nº1 op.cit , p.5.
180

forma de entrevistas, trazendo assim ao público, material em primeira mão sobre a


experiência histórica do moçambicano comum. Como vimos anteriormente, a prioridade que
a Oficina de História deu aos “dados orais” na reconstituição da memória colectiva da luta
armada, e por exemplo na produção de pequenos extractos biográficos dos participantes na
luta, esteve ligada a três razões: primeiro, porque era um método que permitiu romper com o
passado colonial e da ”história imperial”; segundo, “porque a luta armada vitoriosa contra o
sistema colonial português deu ao povo moçambicano uma consciência popular e
revolucionária da sua forma535.” E por último, porque na óptica da Oficina de História “a
forma como foram conquistadas essas vitórias536” permanecia ainda desconhecida da maior
parte dos moçambicanos.

É assim, que o primeiro número vai estar exclusivamente focalizado na história da luta
de libertação nacional, desde o período anterior à formação da FRELIMO. É nele discutido o
contexto no qual surgiram as primeiras formas de mobilização política que culminariam com
a formação dos partidos nacionalistas moçambicanos no exílio, que iriam mais tarde se fundir
na FRELIMO. O segundo e terceiro número, são inteiramente dedicados à “classe
trabalhadora moçambicana”. Há aqui uma tentativa de elaboração da história do proletariado
moçambicano, que surgira segundo a Oficina de História com a presença do capitalismo
colonial estrangeiro. O quarto e último número retomam ao tema clássico da revista, que é a
história da FRELIMO e da luta armada de libertação nacional. Este número é assim dedicado
a questão da produção nas “zonas libertadas” criadas pela FRELIMO durante a luta colonial.
Como podemos depreender estes quatros números estão todos interligados a esta questão da
experiência da luta armada como um dos pontos de referência mais importante para os
desafios do pós-independência. A edição sobre as classes trabalhadoras de certa forma se
relaciona com esta tema, uma vez que de acordo com a Oficina de História,

Em Moçambique as classes trabalhadoras devem ser compreendidas


não apenas como produzindo bens materiais, mas, e o que é mais
importante, como tendo produzido as zonas libertadas, ou seja, tendo
produzido um Estado alternativo que, no contexto da luta armada,
nasceu do esforço consciente da direcção da FRELIMO no sentido de
criar uma alternativa democrática, popular e revolucionaria ao Estado
colonial537.

535
NÃOVAMOS ESQUECER nº1 op.cit, p.23.
536
Idem, Ibid.
537
NÃOVAMOS ESQUECER nº1, op.cit, p.7.
181

7.5 Não Vamos Esquecer! nº1: Resistência Africana e Luta armada

O primeiro número da Revista, Não Vamos Esquecer!, traz quatro temas: primeiro, um
artigo sobre as “cooperativas Ligualanilu no planalto de Mueda”; segundo, “Os novos
exploradores”, que são excertos do discurso do presidente Samora Machel em 1974, onde este
faz uma crítica aberta à iniciativa privada, aos comerciantes que, segundo Samora Machel,
praticavam a usura e contrabando de produtos. Ainda segundo o presidente da FRELIMO e
do país, eram estes que “tinham preenchido os lugares dos comerciantes portugueses e tinham
ficado nos lugares dos verdadeiros colonialistas”538. Lazaro Nkavandame, e-xmembro
(sénior) da FRELIMO, e também comerciante, encarnava eloquentemente este perfil do
“novo explorador” do “reaccionário”.

O terceiro tema se insere no projecto de apresentar narrativas biográficas dos heróis da


luta armada. Estas entrevistas tinham como objectivo fazer conhecer as formas como a
FRELIMO, segundo a Oficina de História, ultrapassou os obstáculos encontrados e como esta
ainda mesmo antes da conquista da independência nacional, experimentou através das “zonas
libertadas”, novas formas de “exercício do poder popular”. E, por outro lado, este projecto da
“luta armada através de biografias”, pretendia também mostrar as formas de opressão e
exploração colonial que os moçambicanos sofreram e, sobretudo, de mostrar as formas de
resistência e de recuperação da dignidade do “povo moçambicano”.

É assim que encontramos nesta primeira publicação, um texto escrito por Eduardo
Mondlane, intitulado, “Notas posteriores sobre a morte de Paulo Samuel Kankhomba”, onde o
fundador da FRELIMO começa por descrever sucintamente alguns aspectos biográficos da
vida de Kankhomba, sua integração na FRELIMO e participação na luta armada. De seguida,
Mondlane discorre sobre os motivos do assassinato de Kankhomba relacionado directamente
com a “ambição pessoal de Lázaro Nkavandame, que queria ter poder absoluto para controlar
toda a província de Cabo Delgado”539. São ainda apresentadas entrevistas com pessoas que
estiveram directamente ligadas ao ex-combatente, como a sua sogra, o presidente da aldeia de
Mtamba, o secretário da Célula da FRELIMO na aldeia de Mpeme e por último dois
participantes da luta armada.

538
Ibidem, p.20.
539
NÃOVAMOS ESQUECER nº1, op.cit, p.27.
182

Quadro 4 - Não Vamos Esquecer! nº1 (Fevereiro, 1983)

Autor Artigo Pags.

Oficina de Historia As Cooperativas Ligualanilu 7-19

Samora Machel Os Novos Exploradores 20-22

Oficina de História A Luta Armada através de Biografias 23-25

Eduardo Mondlane Notas Posteriores sobre a Morte de P. S 26-29


Kankhomba
Jacques Depelchin, Entrevistas 30-37
Isabel Casimiro,
Maria João Homem
e Benigna Zimba
Oficina de História Cabo Delgado: Fontes para uma História 38-42

Encontramos por fim, neste número, mais um artigo540, que vem enfatizar a
centralidade das fontes orais na reconstrução histórica da luta armada na província de Cabo
Delgado e da análise da economia política daquela região, onde se tinha iniciado, pela
primeira vez, o confronto bélico contra o colonialismo português. Para estes historiadores, a
fonte oral constituía “uma oportunidade excepcional de dar a palavra ao povo” e de assim
romper com uma historiografia colonial eurocêntrica, imbuída de distinções e mistificações
sobre Moçambique e seus povos. No caso particular de Cabo Delgado, os historiadores do
CEA afirmavam que existia “muito pouco de útil na maior parte dos casos, nestes livros e
artigos que ilustram a incapacidade do Estado colonial português em penetrar e controlar
efectivamente. Os autores dão o exemplo da caracterização dos Macondes como guerreiros
ferozes, vivendo isolados no Planalto de Mueda com uma forma específica de organização
(sem chefes). Os historiadores reiteram ainda, que é então a partir da revista Não Vamos
Esquecer!, que estas visões distorcidas são postas em questão, a partir da reconstrução da
história a partir dos actores moçambicanos que nela participaram.

O estudo discute ainda as “fontes não publicadas” sobre Cabo Delgado, onde se
incluem quatro grupos principais de entrevistas, nomeadamente os resultados de um projecto
de pesquisa colectiva sob direcção de Aquino de Bragança e Allen Isaacman, sobre a

540
Cabo Delgado: Fontes para uma história da luta armada e para uma economia política do planalto de Mueda”.
183

“resistência popular em Moçambique”, uma colectânea de histórias da luta armada coligidas


pelo cineasta brasileiro, Licínio de Azevedo, um manuscritos de vinte e duas páginas
contendo notas de uma entrevista com um dos intervenientes principais do movimento
cooperativo de algodão do planalto de Mueda. Os historiadores referem ainda as “fontes
primárias impressas” sobre a luta armada, consistindo fundamentalmente em documentos
oficiais da FRELIMO, comunicados de guerra, jornal do movimento, como também de fontes
impressas estrangeiras como, periódicos, boletins e revistas.

7.6 Não Vamos Esquecer! nº2/3: Reconstituindo a História da “Classe Operária


Moçambicana”

O segundo e terceiro número, foram exclusivamente dedicados às “classes


trabalhadoras moçambicanas”. Na óptica dos historiadores, esta necessidade de se escrever a
história dos operários moçambicanos “se tornou mais premente após a vitória do poder da
aliança operária -camponesa no nosso país541”. A Oficina de História pretendia assim,
“elaborar a história do proletariado moçambicano, desde a sua emergência, no período da
implantação do capitalismo colonial, até à fase do pós-independência”. Acreditavam ainda
que este projecto iria contribuir para “os desafios do presente” e que seria também “uma
modesta contribuição (da Oficina de História), para o seu conhecimento de modo a poder
transformar-se, construindo o socialismo542.”

A escolha deste tema - que não estava directamente ligado ao principal leitmotiv
destes dois números, que era “a produção da história da luta armada” – deveu-se, por outro
lado, às críticas apresentadas pelos leitores da revista, à excessiva ênfase, do primeiro
número, ao estudo da luta armada e, em particular, das “zonas libertadas”, o que demonstrava,
segundo os leitores, uma ”estreiteza do objecto de estudo que excluía, logo à partida, as zonas
sob controlo do governo colonial durante o processo da luta armada543.”

A forma como a Oficina de História abordou nestes dois números a história do


proletariado moçambicano, rompia definitivamente com a historiografia colonial no sentido

541
NÃOVAMOS ESQUECER nº2/3, Boletim Informativo da Oficina de História, Dezembro, 1983,p.4.
542
Idem, Ibid.
543
NÃOVAMOS ESQUECER, nº 1, Fevereiro,1983, p.3.
184

em que alguns do seus artigos tinham sido produzidos com a “participação activa dos
operários544”. Estes operários tinham, de facto participado como entrevistadores em
colaboração com a equipe da Oficina de História, na definição dos métodos de trabalho e na
recolha de informação nos seus locais de trabalho. Os historiadores do CEA argumentavam,
numa linguagem quase que gramsciniana, que embora embrionária, a experiência tinha
provado, claramente, que os operários eram capazes de realizar trabalhos de carácter
intelectual545, e que este empreendimento científico tinha sido, apesar de tudo, uma pequena
contribuição para a luta contra a divisão de trabalho manual e intelectual, herdada do
colonialismo546.

Há então nestas duas edições da Não Vamos Esquecer! cinco temas centrais: primeiro,
uma introdução que reflectia sobre questões metodológicas e políticas em relação à produção
de uma história da classe operária moçambicana; Segundo, um bloco de entrevistas com
operários de fábricas, como também de trabalhadores migrantes. É nesta secção onde alguns
dos operários tinham também participado como “entrevistadores”. Um terceiro, que abordava
a questão da “classe operária na África do Sul”, seu papel na luta de libertação nacional, como
também do processo de sindicalização, das lutas sindicais e mobilização política do
proletariado e os sectores onde o movimento sindical enfrenta problemas. O quarto tema,
ligado ao período colonial, examinava a problemática do trabalho forçado, as formas de
opressão colonial, como também as formas de resistência e luta dos trabalhadores
moçambicanos face ao sistema colonial-capitalista. O quinto consistia basicamente numa
compilação de canções de trabalho dos estivadores do porto de Maputo

Esta revista inicia com uma pequena introdução à problemática das classes
trabalhadoras moçambicanas. Com o título “Por uma História da classe operária”, este artigo
é o resultado - síntese de um projecto levado a cabo pelo CEA no primeiro semestre de 1980,
onde seguindo as directivas saídas do III congresso da FRELIMO, a Oficina pretendia
alcançar três grandes objectivos de pesquisa: (1), orientar os trabalhadores na recolha de
dados orais numa perspectiva histórica; (2), iniciar os trabalhos no processo de análise
científica dos dados recolhidos e, por último, criar as condições para os trabalhadores
assumirem, dentro das dificuldades existentes, o papel dinâmico não só na recolha como

544
NÃOVAMOS ESQUECER, nº2/3, Dezembro,1983
545
Idem,p.4
546
Idem,Ibid.
185

também na elaboração de textos”547. Estes objectivos estavam, com podemos notar, dentro de
um princípio geral que era o de, “destruir a tradição herdada do sistema colonial-capitalista,
que defendia a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, que afinal só servia
para encorajar o elitismo e arrogância”548.

Quadro 5 - Não Vamos Esquecer !nº2/3 (Dezembro, 1983)

Autor Artigo Pags.

Oficina de História Por uma História da Classe Operaria 5-6

Rafael Babane, José Companhia de Cimentos da Matola


Munguambe, Alexandrino (Entrevista) 7-13
José, Jacques Depelchin e
Cláudio Gentili
Oficina de História Fabrica Facobol – Maputo 14-21
(Entrevista)
Anónimo Canção de Trabalho dos Estivadores 22- 26

Núcleo da África Papel da Classe Operaria na Luta de


Austral/Oficina de História Libertação da Africa do Sul 27 - 31
South African Labour O 1º de Maio na Africa do Sul 32 - 33
Bulletin
Alpheus Manghezi A Primeira Viagem ao Rand 34 - 38
(Entrevista)
Judith Head Opressão Colonial e Formas de Luta
dos Trabalhadores; O caso da Sena 39 - 44
Sugar States
Valdemir Zamparoni Aspectos do Trabalho Forçado em
Moçambique nas Décadas de 45 - 52
1910/1920
Oficina de História Trabalho Forçado no Norte do País 53 - 55
(Entrevista)

Foi então a partir deste “megaprojecto” inovador, que foram envolvidas várias
instituições tais como o Arquivo Histórico de Moçambique, o Departamento de História da

547
NÃOVAMOS ESQUECER nº2/3, op.cit, p.5.
548
Idem, Ibid.
186

UEM e o próprio CEA, que se realizaram várias pesquisas de campo em fábricas e locais de
recrutamento de mão-de-obra para as minas sul-africanas, procurando sempre integrar os
operários e camponeses, na organização, recolha de dados e elaboração do relatório da
pesquisa.

As quatros entrevistas apresentadas neste número (realizadas na “Companhia de


Cimentos” e na fábrica de calçado, “Facobol”) e que compõem as histórias biográficas dos
operários, são deste modo, o resultado desses objectivos. Nestas entrevistas são abordados
temas: condições de trabalho no tempo colonial, o sistema repressivo colonial, o contexto
internacional e regional das lutas de independências e, por último, a luta armada e as formas
como estes operários seguiam a luta a partir da cidade de Maputo. Há também dois artigos
relacionados com o contexto sul-africano (“Papel da classe operária na luta de libertação da
África do Sul” e “ O 1º de Maio na África do Sul), elaborados pelo “Núcleo de Estudos da
África Austral” do CEA.

Os últimos dois artigos abordaram a questão do operariado no período colonial,


focalizando na questão do trabalho forçado (Chibalo) em Moçambique nos anos 1910/1920.
No artigo intitulado, “Aspectos do trabalho forçado em Moçambique nas décadas de
1910/1920”, Valdemir Zamparoni selecciona alguns textos do jornal ”O Africano” e “O
Brado Africano” para mostrar as diversas facetas do sistema opressivo e de discriminação
colonial em relação aos negros moçambicanos. São também apresentados as variadas formas
de resistência dos “colonizados,” onde através destes periódicos, um pequeno grupo de
“mulatos”, colonos progressistas e “indígenas”, instruídos, criticavam, de forma acutilante, as
formas de opressão colonial, como o trabalho forçado, o imposto de palhota, etc.,
reivindicando assim melhores condições vida e de trabalho para a maioria negra.

E, finalmente foi publicado um texto de Judith Head (1983), investigadora do CEA


(porém não da Oficina de História), intitulado, “Opressão colonial e forma de luta dos
trabalhadores”. O estudo cinge-se às plantações de açúcar do Sena Sugar Estates, no Luabo,
província da Zambézia. O argumento central da autora é de que, apesar de os trabalhadores
moçambicanos, das plantações de açúcar do Luabo, estarem sob um domínio colonial
hegemónico e baseado na exploração e opressão da força de trabalho, estes utilizaram formas
organizadas de resistência, que se caracterizava por acções como a não comparência ao
trabalho, a fuga, greves de grande números de trabalhadores.

Estas dinâmicas mostravam, na óptica de Head, que havia indícios de um trabalho


prévio de discussão, persuasão e mobilização destes trabalhadores, mostrando deste modo que
187

estes já começavam a organizar-se no sentido “clássico”: dando voz às suas reivindicações de


uma maneira aberta e unida. Judith Head (1983), neste artigo pretendia ainda mostrar, através
do exemplo da Sena Sugar States, que também549 os “trabalhadores das plantações, migrantes,
ainda com um pé no campo, estiveram também sempre conscientes da sua exploração e
lutaram contra ela.

Este é assim mais um estudo levado a cabo pelos investigadores do CEA, que dá
centralidade ao conceito de “resistência” africana, mostrando assim, que apesar do Estado e
burguesia colonial, através do trabalho forçado nas plantações e formas de exploração nas
fábricas e outros lugares, coibirem o “desenvolvimento de formas clássicas de luta”, isto por
si só não implicou uma atitude passiva dos trabalhadores moçambicanos. Pelo contrário, estes
sempre encontraram “formas de oposição ao capital, formas disfarçadas, não dramáticas,
modestas, mas cujos efeitos limitavam a produção de lucros dos capitalistas.550”

7.7 Não Vamos Esquecer! nº4: Persistindo na Reconstituição Histórica da Experiencia


da Luta de Libertação Nacional

O quarto e último número da Não Vamos Esquecer! reapareceu em 1987, quatros anos
depois do seu anterior número e pela primeira vez agora, sem o seu principal impulsionador,
Aquino de Bragança, morto um ano antes juntamente com o presidente Samora Machel, num
misterioso acidente de viação, supostamente com envolvimento do regime sul-africano do
apartheid. A morte de Aquino de Bragança iria ter um grande impacto na Oficina de História,
tanto mais que nenhum outro número da revista iria aparecer. Como afirmaram o colectivo de
historiadores da Oficina de História,

Ele era uma fonte inesgotável de informação sobre a luta armada de


libertação nacional (…) continuar o trabalho iniciado por Aquino de
Bragança é, para nós, na Oficina de História, a única forma de honrar

549
Pois que segundo Head, na “historiografia de Moçambique, sobre os últimos 15 anos antes da independência,
havia uma tendência implícita para pensar que os únicos trabalhadores que se organizaram de uma maneira
clássica, contra as condições da sua opressão, tivessem sido o proletariado das cidades, exemplo, os
trabalhadores portuários”. Vide, HEAD, Judith, “Opressão colonial e formas de luta dos trabalhadores – O
caso da Sena Sugar Estates”, Não Vamos Esquecer!, nº 2/3, Dezembro, 1983,pp.39-44.
550
HEAD, Judith. Opressão colonial e formas de luta dos trabalhadores – O caso da Sena Sugar Estates,
NÃOVAMOS ESQUECER nº2/3 op.cit, p.39-44.
188

a sua memória e o seu exemplo551.

No intervalo de tempo entre o lançamento da edição nº2/3 de 1983 e este último


número da revista (1987), Moçambique vivia um novo contexto social, econômico e político.
Nesses últimos 4 anos, desde a assinatura dos Acordos de Nkomati com a África do Sul, o
país tinha iniciado um processo de reformas políticas, decorrente de uma grande crise causada
pela guerra contra a RENAMO e por uma má gestão econômica552. O governo moçambicano
tinha, aparentemente, abandonado o seu ambicioso plano da transformação socialista através
da criação das empresas estatais e o lançamento de grandes projectos, adoptando em vez
disso, um pacto de reformas econômicas orientadas para o mercado.

Um ano depois do lançamento da revista nº2/3, Moçambique filiou-se às instituições


de Bretton Woods (BM/FMI), como também a agência de ajuda para o desenvolvimento do
governo americano (USAID), que pressionaram o governo moçambicano a fazer reformas
políticas em particular na ajuda às formas de comércio privado. Na óptica de Ottaway, estas
reformas não significaram, no entanto, que o sector econômico socialista tinha sido
desmantelado. Moçambique, como observou, continuava ainda comprometida com o
socialismo, pelo menos em teoria.553

Nesta linha de pensamento, a morte do presidente Samora Machel esteve já dentro de


todo um cenário de reformas políticas principalmente no sector econômico, pois que a
sucessão de Samora Machel por Joaquim Chissano, Ministro dos Negócios Estrangeiro e
membro pleno da Nomenklatura (os funcionários de alto nível do partido), não significou
modificações no sistema político moçambicano. Segundo Marina Ottaway, a morte de
Samora Machel em 1986, serviu apenas para enfatizar a continuidade na liderança da
FRELIMO, em vez de fazer uma nova viagem do cenário político moçambicano.554

Este número nº4 da Não Vamos Esquecer! continuou abordando o mesmo tema
“clássico” da Oficina: escrever a história da luta armada de libertação de Moçambique levada
a cabo pela FRELIMO, dando especial ênfase na história das “zonas libertadas”. Desta vez, o

551
NÃO VAMOS ESQUECER nº4, Julho, 1987.
552
Vide, OTTAWAY, Marina. Mozambique: From simbolic socialism to simbolic reform. The Journal of
Modern African Studies,Vol. 26, nº2, junho, 1988, p.211-226.
553
Vide, OTTAWAY, Marina. Mozambique: From simbolic socialism to simbolic reform. The Journal of
Modern African Studies,Vol. 26, nº2, Junho, 1988, p.211-226.
554
Idem.
189

foco central de análise é sobre a “produção, durante a luta armada”. Podemos notar que houve
um fio condutor nas escolhas dos temas de pesquisa: o primeiro, como vimos, tinha se
debruçado sobre o papel das “zonas libertadas” no “experimento” de formas de governação de
“participado popular”. O segundo e terceiro número pretendiam reconstituir a história das
“classes trabalhadoras” em Moçambique, dando particular destaque, ao seu papel na luta
armada, de resistência e luta laboral, como também na organização da produção colectiva no
interior das “zonas libertadas”.

Quadro 6 - Não Vamos Esquecer! nº4 (Julho, 1987)

Autor Artigo Pags.

Oficina de História Para uma Historia da Luta de 6- 12


(dir. Aquino de Libertação de Moçambique
Bragança)
Oficina de Resenha Histórica sobre as Zonas 13 - 18
História/TBARN Libertadas (Entrevistas)
Oficina de História Algumas Lições da Luta Armada 19 - 23

Oficina de História A produção nas Zonas Libertadas 24 - 28

Oficina de Trabalhar para Quem? (Entrevista) 29 - 31


História/TBARN

Com o foco principal na produção durante o período da luta armada, este último
número, trouxe ao debate cinco artigos, que pretenderam reflectir sobre as dinâmicas de
produção viradas fundamentalmente para a alimentação dos guerrilheiros nas “zonas
libertadas”. São apresentados dados (principalmente através das entrevistas com actores que
participaram directamente na luta) que tencionavam demonstrar que as formas de poder
popular, as estratégias da produção colectiva e socialização do campo, não tinham sido
realidades “externas” ao contexto moçambicano, mas que tinham surgido no interior do
próprio processo da luta armada.

O primeiro artigo, “Para uma História da luta de libertação de Moçambique” foi um


texto fundador da Oficina de História, na medida em que pretende decidir sobre os elementos
determinantes (metodologias, quadro teórico, análises etc) na constituição de uma
problemática geral sobre a história da luta armada em Moçambique. Assim de acordo com a
Oficina de História, haveria três pontos importantes a se considerar para a elaboração de um
190

quadro teórico. Primeiro, elaborar a história das “zonas libertadas” a partir do conceito de
“classes produtoras” na medida em que, segundo este autores, os operário e camponeses de
Moçambique, não somente produziam bens materiais, como também produziram as espaços
livre do domínio colonial e “governados” pela FRELIMO.

Em segundo lugar, esta conceptualização em termos de “classes” iria permitir romper


com uma historiografia colonial, que tendia através principalmente, da Antropologia “a
caracterizar os camponeses pelos seus aspectos tribais555.” E, por último, teria que ser uma
abordagem “não-exclusivista”, no sentido em que não deveria centralizar-se unicamente nas
“zonas libertadas”, ou mesmo no período da luta armada, reflectindo também em temas
diversos como “a classe operária”, as “formas de resistência urbana ao colonialismo etc.

Os historiadores do CEA reiteravam ainda neste artigo, que deveria ser privilegiado o
método da história oral, pois que não só resgataria as “vozes silenciadas”, dos guerrilheiros e
operários e camponeses que participaram directamente na luta como também permitiria
romper, como acreditava a Oficina de História com “as práticas anti-democráticas da
pesquisa histórica e acadêmica (burguesa).556” E este tema levou, incontornavelmente a uma
reflexão sobre a utilização, a selecção e limites das fontes históricas. A Oficina de História
apelou para uma análise crítica das fontes escritas, tanto no sentido da tendência para a
“dominação do documento escrito”, como também para se olhar para o seu contexto
ideológico. Umas das fontes privilegiadas por estes historiadores eram as chamadas “fontes
de vanguarda da luta”, que era constituída por elementos da direcção político-militar da
FRELIMO e soldados das forças armadas. Incluíam também as “fontes do lado do inimigo” e
daqueles actores “exteriores à vanguarda da luta” e que eram solidários com a luta de
libertação nacional.

O segundo artigo, “Resenha histórica sobre as zonas libertadas”, também se insere na


abordagem da história oral, onde se conjuga análise histórica com depoimentos, na primeira
pessoa, de homens e mulheres que vivenciaram os problemas e contradições das “zonas
libertadas”. Foram apresentados testemunhos de dois participantes na luta armada que falam
sobre a ligação entre os produtores alimentares e os combatentes, descrevendo o processo de
engajamento dos camponeses na luta, através do fornecimento de produtos alimentares aos
combatentes e do transporte de material bélico. Foram também apresentados dados sobre a

555
Para uma História da luta de libertação de Moçambique, NÃO VAMOS ESQUECER nº4, Julho, 1987.p.7.
556
Ibidem, p.8.
191

evolução da participação camponesa, na luta armada, para níveis mais organizados de


produção, através por exemplo, das machambas colectivas e, numa fase posterior, da
comercialização dos produtos através das cooperativas de consumo nas “zonas libertadas”.
Como afirmara um dos entrevistados,

Os produtos da machamba colectiva, não eram mexidos, eram


reservados para os tempos mais difíceis, em que a população não
conseguia abastecer os guerrilheiros (…) outra parte dos produtos era
vendida e usada para os participantes da machamba colectiva
comprarem aquilo de que necessitavam557.

O terceiro artigo, “Algumas lições da luta armada”, fez uma reflexão sobre os
ensinamentos da história da luta armada para os desafios do pós-independência,
argumentando que era preciso olhar para este passado de uma forma crítica, focalizando
também nos seus aspectos contraditórios, pois só assim, segundo a Oficina de História se
poderia avaliar a sua real contribuição para os desafios do presente. Daí então a Oficina de
História afirmar, que as próprias “zonas libertadas” tinham sido palco de “interesses de classe
antagónicos aos do proletariado e campesinato”. Existia, ainda segundo a Oficina de História,
uma “pequena burguesia”, que tinha uma visão divergente de como levar a cabo a luta armada
e a organização e planificação da produção.

A independência nacional e a conquista do aparelho de Estado colonial, na óptica


destes historiadores, não tinham significado o fim imediato destas contradições de classe, pois
que o país ainda encarava problemas como a corrupção, uso indevido de bens do Estado,
contrabando etc. A Oficina de História, enfatizou assim a necessidade de se olhar para o
contexto ao se fazer uma reflexão crítica sobre as lições da luta armada, evitando assim o erro
de querer, de uma forma mecânica, replicar os sucessos dessa experiência histórica. Os
historiadores do CEA defenderam ainda a elaboração de uma reflexão crítica a cerca da
escolha da ideologia e da utilização do marxismo-leninismo. Segundo a Oficina de História,
“o conhecimento teórico do marxismo-leninismo se torna estéril se não é posto em prática no

557
Para uma História da luta de libertação de Moçambique, op.cit, ,p.15.
192

dia-a-dia, em todos os aspectos da vida558.”. Como podemos notar, a Oficina de História


propôs aqui, mais uma vez, a partir de postura crítica, uma ligação estreita entre a experiência
histórica da luta armada, as suas “lições”, com os desafios do pós-independência.

O quarto artigo “A produção das zonas libertadas”, discutia de uma forma detalhada o
contexto do aparecimento das “zonas libertadas” em Moçambique, durante a luta armada, em
três diferentes províncias de Moçambique (Cabo Delgado, Niassa e Tete). É dada particular
ênfase na questão das campanhas de produção, das formas de organização da produção e das
contradições de “classe”, com o surgimento por exemplo, nas primeiras “zonas libertadas”,
em Cabo Delgado, dos “novos exploradores”, que emergiram nas próprias dinâmicas do
aumento da produção e organização em moldes colectivos. Segundo a Oficina de História,
estes “novos exploradores”, liderados por Lázaro Nkavandame, estavam mais preocupados
com o seu enriquecimento pessoal do que para o benefício colectivo da comunidade. É a
partir daí que o “ embate entre duas linhas ideológicas” na FRELIMO se agudizam, no II
Congresso deste partido, realizado em 1968. Nas próprias palavras dos historiadores do CEA,

Uma linha que exigia o engajamento completo das massas populares,


e outra linha, oportunista e confusionista, incapaz de definir
claramente os seus fins por pensar numa formulação abstracta do
nacionalismo e dos objectivos a atingir559.

De acordo com a “Oficina”, havia nestas províncias três principais formas de


organização da produção: as machambas da FRELIMO, onde eram trabalhados por elementos
das forças armadas, do destacamento feminino, das escolas, hospitais e outros organismos da
FRELIMO. O seu principal objectivo era o de resolver os problemas de alimentação dos
integrantes destes sectores. A segunda forma de organização estava ligada ao sistema de ajuda
mútua entre os camponeses, onde esta se desenvolvia através de machambas colectivas
organizadas e trabalhadas pelos camponeses. A terceira e última forma, era a produção
individual ou familiar, onde em última instância, se pretendia que se transformasse em moldes
colectivos e politicamente mobilizados.
558
“Ibid., p.23.
559
A produção nas zonas libertadas, NÃO VAMOS ESQUECER nº4, Julho, 1987,p.26.
193

Encontramos, por ultimo, o artigo “Trabalhar para quem?”, que trouxe à discussão a
questão da integração do campesinato na economia do trabalho forçado durante o período
colonial. O texto apresentou, a partir de depoimentos orais de alguns dos intervenientes, as
condições de trabalho durante o período colonial, as razões que levavam este camponeses a
emigrarem para os países fronteiriços, como também os conflitos de integração destes
trabalhadores nos países vizinhos. O texto mostrou também como se tinha dado a evolução da
consciência de luta destes trabalhadores moçambicanos em relação as distintas formas de
exploração que vinham sofrendo, mostrando assim que a criação das cooperativas esteve
intimamente ligada a uma forma de consciência de luta.

Este artigo, como muitos outros publicados na Não Vamos Esquecer!, não restringiu a
discussão sobre o conceito de ”exploração” unicamente para o contexto colonial,
conceptualizando também esta questão na própria história da luta armada e das contradições
internas no seio da FRELIMO. O objectivo final foi então, “pedagógico”, no sentido de
mostrar os perigos da sua continuidade no pós-independência e na construção do socialismo
em Moçambique. Foi assim que a questão dos “conflitos de interesse de classe”, entre a linha
representada pelos “novos exploradores” e a linha “revolucionária” engajada com as massas
se tornou num tema recorrente em todos os números da revista. E, neste caso, a questão de
“trabalhar para quem?” se punha novamente no pós-independência, uma vez que ainda
encontrávamos vestígios da estrutura de classes herdadas do aparelho colonial. Neste sentido,
para a FRELIMO, o pós-independência significou também uma maior atenção ao “inimigo”
representado pelos “ novos exploradores”, “que se aproveitavam das formas de organização
cooperativa e da produção do campesinato para enriquecer.560”

7.8 O Colectivo de Artesãos da Oficina de História: Historiadores como Activistas?

A Oficina de História vincou ab initio, que o seu trabalho de investigação e difusão da


história das experiências da luta armada seria efectuado através de um “processo semelhante a
de um colectivo de “artesãos”561”, significando não só uma prática de investigação que era já
peculiar ao trabalho do CEA, mas também de uma nova abordagem na pesquisa histórica, que

560
Ibidem, p.30.
561
NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, Boletim Informativo da Oficina de História, Maputo, Fevereiro,1983, p.6
194

ao romper com a historiografia colonial, construía uma história social “dos debaixo”562, dando
assim centralidade às “vozes subalternas” - os camponeses, operários, mulheres e
combatentes da luta de libertação – e assim descobrir, desvendar, compreender e interpretar as
experiências dos moçambicanos que viveram sob dominação colonial.

O uso de dados orais tornou-se um dos meios fundamentais para colocar os actores
históricos moçambicanos no “palco da história”. Os depoimentos destes camponeses,
operários e guerrilheiros, que como vimos, foram publicados em todas as edições da Não
vamos Esquecer!, ajudaram a reescrever e a reflectir sobre a história de Moçambique a partir
de uma perspectiva africana, quer dizer, “uma história contada por aqueles que a viveram563”.
O uso, por exemplo, de testemunhos em forma de “canções”, com foi apresentado na edição
nº1 de 1983 (“Canção de trabalho de Estivadores”), não só foi uma forma de mostrar as
condições de trabalho dos migrantes, suas preocupações, sofrimentos, estratégias e formas de
resistência, como também, colocado num campo mais geral da historiografia pós-colonial,
como um contraponto crucial em relação às narrativas dominantes564.

Nestes artigos publicados na revista da Oficina de História, a tónica foi sempre posta a
partir da fundação da FRELIMO. Os artigos começavam por fazer uma reflexão a partir do
nascimento da FRELIMO e da sua liderança no processo da luta armada, como também, por
volta do ano 1968, na edificação das “zonas libertadas”, numa primeira fase, em duas
províncias do país, Cabo Delgado e Niassa (daí se tornarem os lugares privilegiados da
pesquisa empírica da Oficina de História).

Foi então a partir deste contexto, que a Oficina de História aborda a questão das
“contradições” da história da FRELIMO. Segundo os historiadores do CEA, à medida que se
iam organizando as “zonas libertadas”, conflitos ideológicos no interior da FRELIMO, acerca
não só da organização das “zonas libertadas”, como também do próprio movimento e da sua

562
A Historiografia de África a partir dos anos 60 e 70 esteve dominado pelos estudos sobre a resistência ao
domínio colonial onde emergiram pesquisas que tinham como ponto de partida os africanos, que tinham sido
marginalizados pela “História Imperial”. É neste contexto que começa a emergir a necessidade de escrever a
história africana a partir “dos de baixo”, que dizer, resgatar estas vozes africanas de camponeses, operários,
que tinham sido “silenciados” no período colonial. Vide, COOPER ,Frederick. Conflict and Connection:
Rethinking Colonial African History. The American Historical Review, vol. 99, No. 5, Dezembro, 1994, p.
1516-1545. ISAACMAN, Allen. Peasants and Rural Social Protest in Africa. African Studies Review, vol.
33, nº. 2, Setembro. 1990, p. 1-120; VAIL ,Leroy, White ,Landeg. Forms of Resistance: Songs and
Perceptions of Power in Colonial Mozambique. The American Historical Review, vol. 88, nº. 4, Outubro,
1983, p. 883-919.
563
Ibidem, p.23
564
Vide, ALINA - PISANO, Eric. Resistance and the Social History of Africa. Journal of Social History, vol.
34, nº 1, 2003, p.187-198.
195

estratégia para o pós-independência foram emergindo. Esta “crise” interna na FRELIMO,


viria a culminar com a morte do seu presidente, Eduardo Mondlane e da expulsão de
membros séniores da FRELIMO como Lazaro Nkavandame e o vice-presidente, Uria
Simango, saindo vitoriosa a “linha revolucionária” da FRELIMO.

Estas seriam então as “contradições” na história da FRELIMO e neste caso, da luta


armada e que vão estar presentes na maioria dos artigos da Oficina de História publicados na
sua revista. Na óptica dos historiadores do CEA, aprofundar a crítica em relação aos
processos contraditórios da luta nacionalista e social de Moçambique serviriam também como
uma espécie de “pedagogia” nacional para a construção do Estado nacional pós-independente,
como também para realçar o carácter de classe na sociedade moçambicana, que era preciso
combater, herdado do período colonial.

Podemos então aqui encontrar várias similaridades ente o trabalho da Oficina de


História e as obras de John Saul565, A Difficult Road e de Joseph Hanlon, Revolution Under
Fire ironicamente dois autores severamente criticados por Aquino de Bragança e Jacques
Depelchin566. O primeiro ponto em comum estaria ligado à questão do “engajamento crítico”
de todos estes autores. Todos eles, sem excepção, apoiavam (de uma forma geral), a estratégia
da FRELIMO em relação à construção do socialismo em Moçambique. Este compromisso
não significou, no entanto, uma aderência cega e acrítica aos desígnios da FRELIMO. Pelo
contrário, todos estes investigadores, dentro do paradigma da análise marxista, procuram ter
uma postura crítica em relação ao que escrevem e continuavam acreditando na possibilidade e
nos méritos da construção do socialismo em Moçambique.

Este “engajamento crítico” teve, no entanto, diferentes rumos nestes autores, se


olharmos especificamente para a produção científica aqui em escrutínio. Enquanto Saul e
Hanlon estavam preocupados em analisar a sociedade moçambicana pós-colonial em todos os
seus sectores (agricultura, indústria, saúde…), com o intuito não só de problematizar os
“erros” da FRELIMO e os seus pontos fortes, mas também de realçar a confiança num futuro
socialista para Moçambique, os historiadores da Oficina de História, estavam mais
preocupados em resgatar a memória colectiva da luta armada que pudesse servir como

565
É de referir que esta obra não é inteiramente de John Saul. Este autor foi o editor e escreveu a primeira parte
do livro (The context: colonialism and Rrevolution)e a ultima parte, o posfácio, sobre os Acordos de Nkomati
e suas repercussões. A segunda parte do livro contém 6 casos de estudos de outros autores, basicamente
cooperantes que trabalharam durante vários anos em Moçambique e particularmente nos sectores onde
baseiam seus estudos.
566
Vide, BRAGANÇA & DEPELCHIN. Da Idealização da Frelimo a compreensão Da Historia de Moçambique,
Estudos Moçambicanos nº 5/6, Maputo: CEA, UEM,1986, p.29-52.
196

ensinamento para os desafios do pós-independência. Daí a Oficina de História ter enfatizado


no primeiro número da sua revista, que “o passado não pode ser analisado e compreendido
senão em função das exigências do presente e dos objectivos do futuro567”.

Olhando atentamente para os artigos publicados nos quatros números desta revista,
podemos então descortinar uma tendência do colectivo de História (como também de Saul e
Hanlon) em contribuir - ainda que em alguns momentos a partir de uma abordagem critica e
iconoclasta da experiência moçambicana - para o estabelecimento das “narrativas estatais”
sobre a história de Moçambique568 e, neste caso particular, sobre a história da luta armada.
Encontramos tanto nos trabalhos da Oficina de História, como também nas obras em
discussão de Saul e Hanlon, uma análise da história de Moçambique a partir de uma lógica
que começa primeiro por abordar a questão da opressão e exploração colonial passando pela
fundação da FRELIMO, do desencadeamento da luta armada, das diferentes formas de
resistência, de rebelião (“o massacre de Mueda”, por exemplo) e que tem como clímax, a
independência nacional e dos desafios da “transição socialista”.

Olhando para as três edições desta revista, encontramos uma maior ênfase nos
“grandes heróis” da “revolução” moçambicana, pese embora encontramos também nestas
edições, entrevistas com pessoas comuns – operários e camponeses que tinham resistido ao
colonialismo. Mas foi de facto o privilégio de figuras singulares na descrição da experiência
da luta armada que predominava. Encontramos, por exemplo, na revista nº1 e nº 3 a biografia
do ex-combatente, membro da FRELIMO e chefe provincial das operações, Paulo Samuel
Kankhomba, mostrando como o seu engajamento revolucionário e intrepidez de carácter
seriam um exemplo a seguir no pós-independência.

O terceiro ponto esteve relacionado com o uso do paradigma da “resistência569” na


análise histórica de Moçambique. Como podemos notar, a partir dos artigos da Oficina de
História, como “opressão colonial e formas de luta”, “Aspectos do trabalho forçado em
Moçambique nas décadas de 1910/20”, e “Trabalho forçado no norte do país”, todos estes
artigos, a partir do binómio dominação – resistência, mostravam as diferentes formas de

567
NÃO VAMOS ESQUECER! nº 1, 1983,op.cit.
568
A produção dos volumes, História de Moçambique pelo Departamento de Historia é sintomático desta
necessidade de construir narrativas oficiais, estatais, enfim de um discurso hegemónico sobre a história de
Moçambique.
569
O artigo de Allen Isaacman, “Peasants and Rural Social Protest in Africa”, é uma das grandes referências na
literatura sobre “Resistência. Vide também, KLAAS van Walraven/ John Abbink. Rethinking Resistance in
African History: An introduction. ABBINK, Jon, de BRUIJN, Mirjam & WALRAVEN, Klaas ( eds).
Rethinking Resistance: Revolt and violence in African History, Leiden: ed. Koniklijike, 2003.
197

exploração e resistência do sistema, em que os moçambicanos, tanto no campo como na


cidade, estiveram envolvidos.

Podemos vislumbrar na pesquisa histórica da Oficina de História, a tendência para


estabelecer uma conexão primária entre o começo e o final do colonialismo, onde o
movimento de libertação, a FRELIMO, encarnaria o elemento primordial em relação àqueles
que resistiam à conquista colonial e a vitória através da independência nacional. Encontramos
indícios desta lógica, por exemplo, na “secção de entrevistas” da revista, onde foi enfatizada a
ligação entre as diferentes estratégias individuais dos trabalhadores em relação as formas de
exploração colonial do trabalho e a uma possível luta anti-colonial. Pode-se notar, a partir do
teor das questões dirigidas aos “trabalhadores da classe operária” (Fábrica “Facobol”/
Companhia de Cimentos da Matola), a intenção de estabelecer este tipo de conexão. São
assim, repetidamente, colocadas questões sobre a ligação destes trabalhadores, suas formas de
luta no interior das fábricas e o desenvolvimento da luta da FRELIMO.

Houve assim uma tendência de olhar para as acções dos camponeses e operários
inseridos no mundo colonial, como que representando formas coesas e monolíticas de luta ou
e resistência à dominação colonial. Deixando também de explorar, as próprias estratégias
individuais destes actores em termos de acumulação de capital, sustento familiar etc. É certo,
que em alguns momentos estas pessoas resistiam ou colaboravam (como muito bem mostrou
a Oficina de História no seu artigo “Os novos exploradores). Todavia, estavam também
presentes, um complexo muito vasto de actividades humanas, como por exemplo, “actos de
negociação570”, ou mesmo de “estratégias de sobrevivência” que nem sempre caíam em
categorias de “dominação”, “resistência” ou “colaboração” e que poderiam ajudar a produzir
uma paisagem cognitiva mais completa da realidade. Por exemplo, numa das entrevistas
efectuadas pela Oficina de História a um dos trabalhadores migrantes moçambicanos, o
entrevistado contou como um dos seus companheiros, refreia a sua a curiosidade de querer
saber como funcionavam os elevadores no interior das minas afirmando: “fazes muitas
perguntas. Lembra-te que vieste aqui por dinheiro e nada mais”571.

É então provável, queestaríamos aqui em presença de estratégias individuais destes


trabalhadores, no sentido de acumular algum capital para seu sustento próprio ou do agregado
familiar.

570
Vide, ALINA - PISANO, Eric. Resistance and the Social History of Africa. Journal of Social History, vol.
34, nº 1, Special Issue, 2003, p.187-198.
571
“A Primeira Viagem ao Rand”, NÃO VAMOS ESQUECER, nº2/3, Dezembro, 1983, p.37.
198

Uma outra limitante desta abordagem sobre a resistência” dos actores africanos, com
particular enfoque nos seus “heróis”, é o de dar pouca atenção à questões de gênero, como por
exemplo, análises sobre o papel da mulher na luta de libertação nacional572 etc. O historiador
e africanista, Frederick Cooper, foi um dos autores que reflectiu sobre esta exclusão de
abordagens sobre a mulher nos primeiros anos da historiografia pós-colonial, onde reiterava
que “ as meta narrativas das vitórias nacionalistas – e muitas das histórias de “resistência” têm
sido freqüentemente contadas como histórias de homens, impregnada, muitas das vezes, com
um “ar machista” nessas narrativas de confrontação573.

É no entanto Eric Alina-Pisano, quem nos mostra de forma mais elaborada a ineficácia
do uso exclusivo do paradigma da “resistência, colaboração, dominação” para capturar toda a
gama de intenções e acções dos actores africanos. Como observou este autor,

As identidades das pessoas não eram somente constituídas pelos seus


estatutos como sujeitos coloniais: eles eram simultaneamente
mulheres, homens, velhos, jovens, membros de linhagens ou grupos
étnicos, produtores e consumidores de bens materiais, donos de terra,
portadores de crenças espirituais e mais. As suas identidades eram
sobre-determinadas por esses interesses e preocupações574.

Os historiadores do CEA estavam bastante conscientes sobre os perigos de uma


abstracção teórica marxista, que não tivesse em conta o contexto particular da sociedade
moçambicana. Como sabemos, umas das razões da criação da Oficina de História, segundo
Aquino de Bragança, tinha sido precisamente o de evitar que a história marxista de
Moçambique fosse escrita como o estudo, da “patagónia575”. A perspectiva sobre a
“resistência”, estava dentro de numa concepção materialista da sociedade e da luta de classes,
onde a produção era vista como o pilar de toda a ordem social. Como afirmou Ana Maria
Gentili,

572
Houve, no entanto, um pequeno artigo da Oficina sobre a “Participação da Mulher na Luta Armada”, que foi
apresentado numa reunião da UNESCO, sobre “mulher no desenvolvimento”, ocorrida em Bissau nos anos
80. (Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007).
573
COOPER, Frederick. Conflict and Connection : Rethinking Colonial African History. The American
Historical Review, vol. 99, nº5, Dezembro, 1994, p.1516-1545, p.1523.
574
ALINA - PISANO, Eric, op.cit, 2003.
575
Vide, JEWSIEWICKI, Bogumil. African historical studies – Academic knowledge as “usable past” and
radical scholarship. Afriican Studies Review, Vol.32, nº3, 1989, p.1-76.
199

Para nós historiadores não tinha muita necessidade de falar de


Poulantzas, Althusser, as referências eram mais de ver como
desenvolver a historiografia africana, historiografia pós-colonial,
sobretudo tentar analisar as iniciativas africanas e depois a
historiografia mais marxista, claro, que tinha a ver com toda a
complexidade de relações de classe576.

Os artigos “Os novos exploradores”, “ Para uma história da classe operária em


Moçambique”, “As cooperativas Lingualanilu”, utilizando a análise marxista de classes,
argumentaram que o operário moçambicano, diferia largamente da sua contraparte
metropolitana porque ele não estava divorciado dos meios de subsistência. Daí então os
investigadores do CEA falarem do operário-camponês, como um grupo social sui generis no
contexto moçambicano, que ainda continuava ligado à terra. O argumento central do CEA era
de que a história do operariado moçambicano estava intimamente ligada à natureza e
peculiaridades do capitalismo colonial português, que tinha como estratégia a perpetuação da
dependência dos operários aos meios de subsistência no campo.

Não se pretende aqui, a partir de este argumento, discutir o problema da “exportação”


de quadros conceptuais do ocidente (onde eles foram concebidos) para o contexto
moçambicano, como foi por exemplo, o uso por parte do CEA da análise marxista de
classes577. Não se aspira, na mesma senda, discutir a existência ou não de uma ”classe
operária” africana578. Nossa intenção é de somente chamar a atenção para aquilo a que

576
Entrevista com a autora, junho, 2007.
577
Jean Copans foi um dos autores que se debruçou sobre as implicações teóricas e políticas do uso do conceito
de classes em África. Na óptica deste autor, classe continua sendo a importação de um item “luxuoso”. Vide,
COPANS, Jean. The Marxist Conception of Class: Political and Theoretical elaboration in the African and
Africanist Context. Review of African Political Economy, nº32, Abril, 1985, p.25-38.
578
Vide, PENVENNE ,Jeanne Marie. African Workers and Colonial Racism: Mozambican Strategies and
Struggles in Lourenco Marques, 1877-1962. The International Journal of African Historical Studies, vol. 29,
No. 1 (1996), pp. 173- 175; SANDBROOK, Richard & COHEN, Robin, (Eds.). The Development of an
African Working Class: Studies in Class Formation and Action. Toronto: University of Toronto Press 1975;
NZUKA, A.T, POTEKHIN, LI., ZUSMANOVICH, A.Z.. Forced Labour in Colonial Africa, London: Zed
Press 1979. COHEN, Robin, GUTKIND, Peter, BRAZIER, Phyllis, (eds.), Peasants and Proletarians: The
Struggles of Third World Workers, New York: Monthly Review 1979. GUTKIND, Peter, COHEN, Robin,
COPANS, Jean, (eds.), African Labor History , Beverly Hills: Sage 1978. PERRINGS, Charles, Black
Mineworkers in Central Africa , London: Heineman, 1979.
200

Richards Roberts579, no seu texto sobre “as “peculiaridades da história do operariado


africano” afirma da assumpção fácil, de que os operários tinham interesses e objectivos
comuns e universais.

Na óptica deste autor, as divisões de classe dentro da população africana, previamente


existentes e muitas vezes intensificadas durante os anos da dominação colonial, moldaram
respostas distintas entre os diferentes grupos em relação a exploração do capitalismo colonial.
A Oficina de História não levou em consideração estas várias nuances existentes nos
diferentes grupos sociais. Por exemplo, o tema sobre os “colaboradores” africanos do
colonialismo (Nkavandame, Simango, dentre outros), é analisado a partir de uma oposição
binária entre os “ bons” e os “maus” revolucionários, ou por outra, entre os “colaboradores” e
“revolucionários”, ou mesmo a questão já referida entre “resistência” e “dominação”.

A Oficina de História olhou para esta questão a partir das “lentes” da FRELIMO,
onde este grupo de “colaboradores” era simplesmente visto, como “reaccionário,” “inimigo
do povo”, e “anti-revolucionário”. Não houve assim, uma tentativa de conceptualizá-los como
estando inseridos num espaço mais alargado e dinâmico que envolvia, estratégias individuais,
actos de negociação580 e de sobrevivência, não necessariamente ligados a uma oposição
política ao partido no poder. A preocupação do CEA, na interpretação histórica e explicação
dessa “colaboração” esteve, deste modo, ligada a uma tentativa de se aliar ao poder do Estado
e do que este considerava como a narrativa histórica “oficial”. A esse propósito, Richard
Roberts, já argumentava que “as narrativas estatais servem para promover um sentido de
poder de Estado e legitimação e como consequência, silenciar leituras alternativas e narrativas
do passado.”581

Daí então podemos compreender aquele contexto histórico da “euforia “ pós-


independência, onde a Oficina de História, logo depois da sua fundação, desenvolveu grandes
projectos de pesquisa histórica sobre a luta armada, sobre as “zonas libertadas” e sobre a
construção dos heróis nacionais. Mais do que a construção de uma história da FRELIMO
problematizada, e despolitizada, a Oficina de História, tal como Saul e Hanlon, procuraram

579
ROBERTS, Richard. The Peculiarities of African Labour and Working-Class History. Labour / Le Travail,
Vol. 8/9, 1981 - 1982, p. 317-333.
580
ALINA - PISANO, Eric, op.cit, 2003.
581
ROBERTS, Richard. History and Memory: The power of statist narratives. The International Journal of
African Historical Studies, vol.33, nº 3, 200, p.513-522.
201

estar sempre ligados à “narrativa estatal582”.

Houve no entanto alguns temas “tabus” na Oficina de História, que nem por isso
deixaram de ser perscrutados pelos autores de A Difficult Road e Revolution Under Fire. Os
dois autores apresentam de forma detalhada, os “erros” da actuação da FRELIMO, no que
concerne à questão da centralização excessiva do partido e governo, os abusos de poder,
autoritarismo da FRELIMO, evacuação forçada de desempregados da capital, açoitamentos
públicos como também a introdução da reintrodução da pena de morte em Moçambique583.

E, por último, encontramos nestes autores uma discussão sobre a natureza do


movimento rebelde, a RENAMO e as dinâmicas internas e externas da guerra no pós-
independência. Como sabemos, um tema que Bragança e Depelchin, em pleno ano de 1986,
ainda se mostravam relutantes em reconhecer indícios de uma possível base social deste
movimento armado. Segundo estes, a RENAMO continuava sendo um grupo “a-social”. No
entanto, Saul e Hanlon argumentavam que o crescimento deste movimento repousava em
parte, nos “erros”governamentais que levaram a um desastre econômico.

A Oficina de História não esteve, de facto, preocupada em reflectir e questionar sobre


as contradições do presente e da sua relação com a eficácia ou não da estratégia socialista
adoptada pela FRELIMO, nem mesmo em perscrutar as dinâmicas internas, que tinham
levado o país a uma guerra civil. O seu leitmotiv era distinto. Mais do que questionar o status
quo, os “artesãos” da Oficina de História estavam profundamente ocupados em “não
esquecer” o passado, especialmente a experiência da luta armada de libertação nacional, os
seus heróis, as suas vitórias, contradições, e ao mesmo tempo construir, a partir de uma
historiografia que desafiasse o modelo colonial, um futuro radicalmente novo.

582
Vide, ROBERTS, 2000, op.cit.
583
Segundo clarence-Smith, a pena de morte tinha sido abolida pelo colonialismo português já no século
XIV.Vide, CLARENCE - SMITH, Gervase. The third Portuguese empire, 1825-1975 – A study of economic
imperialism. Manchester, Manchester University Press, 1988.
202

8. ESTUDOS MOÇAMBICANOS: PENSAR MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO DA


ÁFRICA AUSTRAL

8.1 A fundação da revista e a sua linha teórica

A divulgação dos trabalhos científicos do CEA foi realizada de quatro modos. Havia
os “Relatórios de Investigação” saídos do Curso de Desenvolvimento e na sua maioria
“encomendados” pelos órgãos do governo, como ministérios, empresas estatais, direcções
províncias, etc., e que eram vendidos ao público. No entanto, havia dentro destes, alguns de
difusão mais “restrita” que iam directamente para “às mãos” dos tecnocratas e dirigentes do
partido. Em segundo lugar, havia pequenos ensaios, resenhas ou artigos, de “circulação
interna,” (no CEA e em outras faculdades) também produzidos pelo CEA, sobre temas
directamente ligados aos conteúdos do Curso de Desenvolvimento e que eram usados pelos
seus estudantes. Uma terceira forma de divulgação científica do Centro era como vimos
anteriormente a revista Não Vamos Esquecer! que pretendia chegar a uma audiência mais
alargada, incluindo a população não universitária.

A quarta e última forma de divulgação científica do CEA foi a sua revista semestral584
Estudos Moçambicanos, fundada em 1980. Esta publicação tinha como grupo alvo, estudantes
do ensino médio, universitário, professores, funcionários públicos, mas também uma
audiência internacional585. Acabou sendo de facto, uma das formas mais profícuas que o
Centro encontrou de expor as suas pesquisas e permitir que se abrisse um espaço de debate de
ideias, tanto a nível local como internacional sobre a realidade moçambicana, tendo sido
considerada como “a maior expressão organizada de contribuição para o debate histórico e
sociológico em Moçambique.586”.

A Estudos Moçambicanos pretendia ser um veículo de divulgação científica que


levasse em conta um dos objectivos primordiais do Centro, que era o de reflectir criticamente
sobre Moçambique contemporâneo “rumo ao socialismo”, tendo em conta o contexto regional

584
A revista nem sempre conseguiu publicar os seus números duas vezes por ano. Com o assassinato de Ruth
First em 1982, a publicação nº5/6 só viria a sair em 1986 e o número a seguir 4 anos depois (1990).
585
Era intenção do CEA publicar também em língua inglesa, contudo somente foi publicada a nº 2, de 1981.
586
BUSSOTI, Luca. Saber, Cidadania e Dependência – Estudos sobre a sociedade moçambicana
contemporânea. Torino : L´Harmattan, 2008, p.14,
203

das lutas de libertação contra a África do Sul. Esta reflexão sobre a actualidade moçambicana
pressupunha examinar as peculiaridades do colonialismo português em Moçambique e os
processos de integração da economia moçambicana no subsistema da África Austral,
dominado pelo capitalismo sul-africano. Neste sentido, não era propriamente uma revista de
análise histórica, apesar de encontrarmos em todos os textos uma preocupação com os
métodos da história, como também de vários artigos escritos por jovens historiadores
moçambicanos. Mais do que uma revista acadêmica, a Estudos Moçambicanos pretendia ter
um enfoque de intervenção na realidade social, tentando assim contribuir, através da análise
crítica das políticas de desenvolvimento socialista da FRELIMO. Daí a revista enfatizar no
seu primeiro número que os diversos artigos publicados, reflectiam uma preocupação em
tentar confrontar,

Aspectos do que consideramos ser tarefa principal de uma revista de


Ciências Sociais neste país: como analisar o funcionamento do
colonial-capitalismo, não como simples curiosidade de um passado
morto e enterrado, mas sim ao serviço da transformação da sociedade
pela revolução moçambicana (…) e isto não só no interior de
Moçambique, mas na África Austral como um todo587.

E é ainda no primeiro número da revista, que o CEA explicitou o seu modelo teórico,

O estudo de Moçambique tem que ser efectuado, na nossa opinião,


através do método da economia política aplicada, não só nas
condições específicas do Moçambique de hoje, como as de uma
sociedade surgida das lutas do passado588.

Este “método da economia aplicada”, no concernente, por exemplo, à análise da


587
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1, Revista Semestral de Ciências Sociais, 1980,UEM,CEA,Maputo.
588
. ESTUDOS MOÇAMBICANOS ,op.cit, “Subdesenvolvimento e Trabalho Migratório” (Editorial), 1980,p.2-
9.
204

economia colonial-capitalista, implicava não só olhar para os processos econômicos ligados à


produção, distribuição e consumo de bens, mas também de examinar quem se beneficiava,
controlava e influenciava esses mesmos processos. Para o CEA, o método da economia
política assentava, por outro lado, numa “insistência de que era artificial e arbitrária a
separação entre os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais de um mesmo todo589”.
Daí então a presença de vários artigos que enfatizavam a questão da dependência política de
Moçambique em relação a Portugal e a dependência econômica ao capital estrangeiro não
português, principalmente do capital mineiro sul-africano.

No que se referia ao pós-independência, este método dava particular ênfase à análise


dos conflitos e interesses de classes herdados do passado colonial, particularmente nas
estratégias de acumulação de uma “burguesia” emergente interna (“os novos
exploradores590”), como também as estratégias de dominação do capital sul-africano, através
por exemplo do controle da rede de transportes de carga na região austral como também no
fluxo migratório para as minas de ouro na África do Sul. Havia ainda a preocupação em
reflectir criticamente sobre as políticas do desenvolvimento socialista da FRELIMO,
principalmente no sector da agricultura e indústria.

8.2 A Hierarquia dos Objectos de Pesquisa

Podemos surpreender três grandes temas presentes em todos os números da revista nos
primeiros dez anos da sua história. Em primeiro lugar nos deparamos com a questão da
transformação socialista de Moçambique com particular enfoque na estratégia de
transformação rural de “rumo ao socialismo”. Este tema se desdobrava em questões mais
práticas ligadas às formas de tornar bem sucedidas a socialização do campo. Por exemplo, no
estudo sobre a diferenciação social e interesses do campesinato, no âmbito da construção das
aldeias comunais e cooperativização do sector familiar. Encontrávamos também estudos
empíricos sobre o processo de construção das aldeias comunais, das machambas estatais, da
agricultura familiar, do desenvolvimento de novas formas de produção, como por exemplo as
aldeias comunais em Mueda, Chokwé, etc. A pesquisa sobre estas políticas de
desenvolvimento da FRELIMO implicou por outro lado, uma ênfase também na publicação

589
Revista Estudos Moçambicanos, nº,1981,UEM,CEA,Maputo.
590
Repetidamente aludidos por exemplo pela revista de história do CEA, Não Vamos Esquecer.
205

de artigos sobre a economia política do colonialismo português em Moçambique, pois que


como vimos anteriomente, os investigadores do CEA defendiam que para se empreender as
necessarias tranformações sociais rumo ao socialismo era imperiso, primeiro, examinar a
“maquinaria” colonial-capitalista que Mocambique tinha herdado do período histórico
anteiror.

Encontramos em segundo lugar, a omnipresença do tema sobre Moçambique colonial.


Eram basicamente estudos ligados à economia política do colonialismo português e que
procuravam olhar para as especificidades do capitalismo colonial, nomeadamente na
dependência política da colônia em relação a Portugal como também da dependência
econômica em relação ao capital sul-africano, principalmente na sua característica dominante
que foi o trabalho migratório para as minas da África do Sul. O terceiro e último tema que
teve grande destaque na Estudos Moçambicanos, estava relacionado com os trabalhos na área
da pesquisa oral, levadas a cabo pelo sociólogo sul-africano, membro do ANC e investigador
do CEA, Alpheus Manghezi591.

Com a presença deste pesquisador no CEA, novos horizontes de pesquisa se abriram,


principalmente na recolha de dados orais nas comunidades rurais de Moçambique. Um dos
grandes projectos que se beneficiou da qualidade cientifica deste pesquisador foi de facto a
obra o “Mineiro Moçambicano”, que tinha sido enriquecida com documentos orais sobre a
experiência do trabalho mineiro dos operários-camponeses moçambicanos. Manghezi tinha
estudado sociologia na Costa do Marfim tendo concluído nos anos 1960, o doutoramento na
Suécia592.

No CEA, Manghezi iria estabelecer, logo depois da sua chegada, uma “secção
especial593” que lidava com o tema da metodologia da história oral. Esta pesquisa oral

591
Manghezi tinha sido convidado pela MAGIC - tal como muitos outros investigadores estrangeiros do CEA –
para vir trabalhar no novo Moçambique pós - independente. Chega ao país em 1976 tendo sido inicialmente
colocado no departamento de história da UEM. Por sugestão de Ruth First, Manghezi iria em 1979, transferir-
se para o CEA.
592
A sua tese de doutoramento foi publicada em livro, em 1976, como o título, Class, Elite and Community in
African Development. Seu argumento principal nesta obra era de que os modelos convencionais da análise
social ocidental não somente não tinham relevância para as sociedades africanas mas que de facto
intensificavam os problemas que eles propunham resolver nessas sociedades. Como forma de sair desse
impasse, Manghezi defendia a introdução de abordagens teóricas radicais para análise social e superação do
subdesenvolvimento. Um tema, é preciso frisar, que vinha fazendo parte da retórica frelimista em relação ao
corte radical com os métodos da historiografia colonial e que através da aliança entre teoria e prática (no
sentido de olhar a especificidade do contexto moçambicano) se pudesse construir um novo conhecimento
social sobre Moçambique e que pudesse também contribuir para a transformação socialista.
593
Entrevista com o autor, 28/05/2010.
206

consistia na análise das formas de exploração colonial da força de trabalho, e do trabalho


migratório para as minas sul-africanas através da recolha de informação, experiências vividas
pelos seus participantes directos, através de entrevistas e recolha de canções da população
rural moçambicana594 e, mais particularmente, daqueles que tinham vivido as experiências do
trabalho forçado colonial (Chibalo) nas plantações de algodão, cana de açúcar, arroz, na
construção de estradas como também com os mineiros moçambicanos.

Desde o lançamento do primeiro número em 1980, até a publicação do número 5/6,


(último número sob direcção de Aquino de Bragança), a revista ininterruptamente publicou
textos deste autor, nomeadamente entrevistas e canções sobre os mineiros moçambicanos,595
sobre o trabalho forçado,596 como também pela primeira vez na revista, um estudo de
gênero597e por último um estudo sobre as estratégias de sobrevivência contra a fome no sul de
Moçambique.598 Este facto vem, por outro lado, refutar as críticas de autores como Christian
Geffray, que afirmaram que o CEA não olhava para as questões culturais, ou mesmo que o
trabalho de Manghezi no CEA tinha sido marginalizado pela “facção” da Ruth First.599 A
publicação dos estudos de Manghezi em todos os números da revista durante a fase
Aquino/Ruth, é pois, um exemplo eloquente de que a liderança do CEA, acreditava também
na relevância da história oral e da análise cultural para os desafios do pós-independência.

Estes autores tinham de facto lido e interiorizado o pensamento de Amílcar Cabral


sobre o papel da cultura na construção da história de um povo e do seu valor como um
elemento de resistência ao domínio estrangeiro600. Por exemplo, o texto , “A mulher e o
trabalho601” de Alpheus Manghezi, que consistiu em entrevistas e canções colhidas por ele em
Gaza, Maputo e Inhambane, mostra como essas mulheres “recordavam com um misto de

594
É de referir o facto de que Manghezi era dos poucos investigadores do CEA que falava e escrevia
fluentemente a língua Shangana, dai a sua mais valia na recolha de informação com o campesinato
moçambicano que na sua maioria não falava português.
595
Vide, “A voz do Mineiro”, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 1, 1980.
596
Vide, “O Trabalho forçado por quem o vivei”, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 2, 1981.
597
Vide, “A Mulher e o Trabalho”, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 3, 1981.
598
Vide ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº4, 1983.
599
Dan O’Meara, e João Paulo Borges Coelho por exemplo, afirmaram que o trabalho de Manghezi era de certa
forma marginalizado pelo grupo da Ruth First.
600
Para uma leitura mais atenta sobre o pensamento de Cabral, Vide, CABRAL, Amilcar. National Liberation
and Culture. Transition, nº. 45, 1974, p. 12-17; CHILCOTE, Ronald H. The Political Thought of Amilcar
Cabral. The Journal of Modern African Studies, vol. 6, nº. 3, Outubro, 1968, p. 373-388; KARIAMU, Welsh
– Asante. Philosophy and Dance in Africa: The views of Cabral and Fanon. Journal of Black Studies, vol.21,
nº 2, Dezembro, 1990, p.224-232.
601
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº3, 1981, p.45-56
207

orgulho, amargura e desabafo as experiencias vividas durante o domínio colonial.”

Como forma de melhor compreender o papel e o lugar desta revista no contexto


histórico moçambicano da “transição para o socialismo”, iremos de seguida olhar atentamente
para cada um dos números publicados, desde a sua fundação em 1980 até a sua publicação nº
8 de 1990, exactamente no limite do período de análise deste estudo. Esta revista publicava
em cada uma das suas edições quatro a seis artigos. Uma vez que se tornaria inviável
apresentar nesta tese, todos os artigos produzidos pela revista, por uma questão metodológica
forma seleccionados, de forma aleatória, até três artigos de cada uma das edições da revista,
que nos permitirão primeiro conhecer os objectivos de pesquisa escolhidos pelo CEA, a sua
linha teórica, análise crítica, limitações e relação com o contexto político e social da
“transição socialista” em Moçambique.

8.2.1 Estudos Moçambicanos nº 1: Uma análise sobre como o colonialismo português


empobreceu Moçambique

O primeiro número da revista saiu em 1980 e seguindo a linha teórica do CEA, vai ter
como tema central a economia colonial portuguesa e seu impacto em Moçambique, tanto em
termos de como Portugal “subdesenvolveu” Moçambique a la Walter Rodney; como também
na dependência econômica de Moçambique à economia capitalista sul-africana.

Nesta edição encontramos dois artigos, “a economia política do colonialismo” de


Marc Wuyts (1980) e o artigo de Luís de Brito (1980), “ A dependência colonial e integração
regional, que podem ser considerados como os marcos teóricos da pesquisa do CEA sobre a
economia política de Moçambique colonial.

O artigo de Marc Wuyts apresentou uma nova periodização da história colonial de


Moçambique, tendo em conta o contexto da integração regional e da dependência em relação
ao capital sul-africano. Esta periodização, produzida a partir da análise marxista, baseava-se
na fase da luta de classes dentro da colônia, onde estava subjacente o pressuposto teórico de
que o colonialismo em Moçambique não poderia ser compreendido a partir unicamente de
Portugal, uma vez que “a burguesia portuguesa nunca conseguiu moldar a colônia
exclusivamente em função das suas próprias necessidades de acumulação de capital602”. Na
visão de Marc Wuyts era preciso então levar em consideração a dominação do capital

602
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº.1,1980,p.23.
208

imperialista (não português)603.

Quadro 7 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº1 (1980)

Autor Artigo Pags.

Marc Wuyts Economia política do colonialismo 9 – 22


em Moçambique
Luís de Brito Dependência colonial e integração 23 – 32
regional
Carlos Serra Capitalismo na Zambézia 33 – 52

Judith Head A Sena Sugar States e o trabalho 53 – 72


migratório
Conferencia sobre Documento: carta aos direitos dos
Trabalho Migratório trabalhadores emigrantes na África 73 - 76
na África Austral Austral
CEA Entrevistas e canções: A voz do
mineiro 77 - 90
Miguéis Lopes Processo de acumulação da RSA e a 91 – 110
Júnior situação actual no sul do Save
Colin Darch Análise bibliográfica: Escritos e
investigação sobre Moçambique, 11 - 120
1975/1980

Assim, para Marc Wuyts o primeiro período que ia de 1885-1926 estaria dominado
pelo capital estrangeiro (não-português); o segundo de 1926-1960 era caracterizado como a
fase do nacionalismo econômico português sob liderança do ditador António Salazar; o
terceiro, de 1960 - (1963/64) 1973 seria a fase da crise do Salazarismo e da reestruturação do
capital. É a partir desta periodização histórica da presença colonial portuguesa em
Moçambique, que todos os trabalhos sobre a economia política do colonialismo português
levados a cabo pelo CEA se vão basear. Como podemos depreender, este artigo de Wuyts,
mais do que descrever um contexto histórico específico de Moçambique, pretendia fornecer
um quadro teórico que pudesse analisar e interpretar o impacto da estrutura colonial-
capitalista em Moçambique.

O segundo artigo, “Dependência colonial e Integração Regional” de Luís de Brito

603
Idem, Ibid..
209

(1980), foi uma das primeiras análises históricas sobre Moçambique colonial, produzidas no
pós -independência, que mudava a ênfase no impacto de Portugal na colônia, para uma maior
focalização na integração de Moçambique no subsistema regional dominado pelo capital sul-
africano. Segundo Luís de Brito, o erro de muitos estudos anteriores se devia ao facto de se
circunscreverem simplesmente à análise das políticas coloniais e de não procurarem estudar
previamente a sociedade colonial em termos de dominação capitalista, das formas que esta
assume e dos mecanismos que lhe asseguram a sua reprodução604. Para Luís de Brito, a
debilidade da industrialização portuguesa e a dependência em relação a Inglaterra iria ter
efeitos profundos na gestão colonial de Moçambique. Não dispondo de capital para investir
nas suas colônias, Portugal tornou incapaz de explorá-las de forma efectiva, acabando por ter
um papel de “arrendatário”, submetido aos interesses do capital estrangeiro605.

Neste artigo, Luís de Brito apresenta aquilo que seria os principais aspectos da
estrutura da economia colonial de Moçambique: uma importante penetração de capital
estrangeiro não-português com grande margem de manobra em relação ao poder colonial;
uma importante “exportação de mão-de-obra; uma rede ferroportuária destinada
fundamentalmente a servir o exterior606. São estes aspectos que na visão deste autor, iriam se
traduzir numa “radical integração e dependência de Moçambique em relação ao complexo da
África Austral e particularmente ao seu principal centro de acumulação capitalista, a África
do Sul607”.

O artigo de Luís de Brito discute em seguida a questão do impacto do fascismo no


Moçambique colonial. Para este autor, o advento do “Estado Novo” em Portugal nos anos
1926, não implicou mudanças significativas na estrutura econômica de Moçambique, pois que
a colônia continuava ainda dependente de capital não-português. Uma tese, é preciso frisar,
que contrariava a visão de muitos outros autores, que olham para a chegada do novo regime
político em Portugal como um marco histórico importante na periodização de Moçambique.
Como asseverou este investigador do CEA, até aos anos 1960, os colonos “não dispunham de
capital que lhes permitia competir com o poderoso capital mineiro”. Ainda segundo este
investigador, Portugal continuava tirando vantagens da “exportação da força de trabalho

604
Idem,p.24.
605
Vide, BRITO, Luís de. Dependência colonial e integração regional. Estudos Moçambicanos nº 1, 1980,
Maputo : CEA,UEM, , p.23-32.
606
BRITO, 1980, op.cit, p.26.
607
BRITO 1980, op.cit. p.27.
210

migrante, tanto para o financiamento da sua colônia, como também em esquemas de


corrupção envolvendo altos funcionários do Estado, como também administradores coloniais
passando até pelos régulos. Enfim, uma situação da qual o Estado português não podia
controlar - e mais importante ainda - da qual “se beneficiava, ainda que em prejuízo de um
sector da burguesia colonial.608”

Este artigo fazia parte de todo um contexto político, onde a nível governamental,
Moçambique discutia a questão da sua dependência econômica em relação ao capital sul-
africano. A questão por exemplo, da necessidade ou não, de se efectuar um corte radical com
fluxo de mão-de-obra migrante para as minas da África do sul, era de facto um tema actual do
debate. Daí então Luís de Brito advertir, que com a conquista da independência nacional se
tenha tornado mais difícil quebrar os laços de dependência regional (daí então o grande
desafio que seria quebrar essa dependência estrutural) do que os que ligavam Moçambique a
Portugal609”.

8.2.2 Estudos Moçambicanos nº 2: Olhando para as Formas de Exploração Colonial do


Trabalho e Lutas de Liberação na África Austral

A Estudos Moçambicanos nº 2 continua, tal como o número anterior, dando ênfase na


análise de Moçambique colonial. São publicados ao todo oito textos que abordam assuntos
diversos como a questão do trabalho forçado (Chibalo) na colônia (urbano e rural), como
também alguns artigos sobre a região austral, com especial enfoque na questão do trabalho
migratório para a Rodésia. Há ainda um texto de Aquino de Bragança sobre a UNITA, de
Jonas Savimbi, que reduz toda complexidade da guerra civil em Angola, aos factores externos
do conflito armado. O texto olha para Savimbi, como um “contra-revolucionário” ao serviço
das forças armadas sul-africanas. Na visão de Aquino de Bragança, o conflito armado que
estava tendo lugar em Angola e Moçambique caracterizava-se apenas por “ exércitos de
soldados negros, dirigidos e instruídos por altos comandados de oficias sul-africanos brancos,
peritos em contra insurreição610.

Ainda nesta edição, Colin Darch, investigador e documentalista do CEA, apresenta

608
BRITO, 1980, op.cit. p.32.
609
Ibidem, p.27.
610
BRAGANÇA Aquino de. Savimbi – Itinerário de uma contra-revolução. Estudos Moçambicanos nº2, 1981,
p.87-104., p.89.
211

também uma análise bibliográfica sobre documentos do partido FRELIMO. Por fim, são
incluídas também neste número, uma série de entrevistas com as vítimas do trabalho forçado.

“Chibalo e Classe Operária, Lourenço Marques, 1870-1962”, de Jeanne Penvenne


(1981), é mais um artigo publicado nesta revista que põe a tónica na debilidade do capitalismo
português e o seu impacto na gestão colonial de Moçambique. Este “capitalismo barato” de
Portugal iria assim, de acordo com Penvenne, concorrer para a emergência de dois principais
sistemas de exploração colonial da força de trabalho: a exportação de mão-de-obra para as
minas da África do sul e aquilo que Penvenne chama de “sistema nacional de coerção de mão-
de-obra, ou Chibalo, para a então cidade de Lourenço Marques. É neste segundo ponto, que a
autora se detém com mais pormenor, discutindo as suas características, as estratégias de
resistência usadas pelos trabalhadores negros moçambicanos, como também as repercussões
do Chibalo no desenvolvimento de uma classe operária na então cidade-capital de Lourenço
Marques.

Quadro 8 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº2 (1981)

Autor Artigo Pags.

Aquino de Editorial: Do Chibalo à libertação 2- 8


Bragança/Ruth First da África Austral
Jeanne Penvenne Chibalo e classe operaria: Lourenço 9 - 26
Marques, 1870/1962
CEA Entrevistas: O trabalho forçado por
quem o viveu 27 - 36
Kurt Habermier Algodão: Das concentrações à 37 - 58
produção colectiva
Robert Davies Comité Luso-Rodesiano para 73 - 78
assuntos econômicos e comerciais,
1965/1970
SADCC Documento: África Austral pela
libertação económica 79 - 86
Aquino de Bragança Savimbi: Itinerário de uma contra- 87 - 104
revolução
Colin Darch Analise bibliográfica: As 105 - 120
publicações da FRELIMO: Um
estudo preliminar

Para esta autora a existência destas duas formas específicas de exploração da força de
212

trabalho estavam directamente ligadas à debilidade do capital português no interior de


Moçambique, como também no sector de serviços, da indústria e construção nas cidades.
Tanto o sector estatal como privado, não conseguiam competir com o capital sul-africano,
nem mesmo também de garantir uma força de trabalho voluntária com níveis de salários
competitivos. O Chibalo acabava assim tendo a função de fornecer, de forma segura, força de
trabalho a níveis salariais mínimos. Esta forma de exploração da força de trabalho iria
perdurar até aos anos 1960, constituindo assim na “espinha dorsal da indústria de construção
da cidade611.” De acordo com Penvenne, apesar de os portugueses terem legalmente abolido o
Chibalo nos anos 1960, este ainda era largamente utilizado nas zonas rurais e na cidade.

Este artigo, como muitos outros produzidos pelo CEA, no pós-independência, dava
também ênfase às estratégias de resistência dos trabalhadores negros moçambicanos contra o
Chibalo. A autora alude, por exemplo, as deserções de trabalhadores para os países vizinhos à
procura de melhores condições salariais, como também a outras formas de estratégias
empregues por estes trabalhadores, como “biscates”, “sistema de gorjeta” etc. Por fim, a
autora discute a questão da repercussão que esta forma de exploração do trabalho teve no
desenvolvimento de uma classe operária moçambicana. Para Penvenne, este sistema tinha
impedido o desenvolvimento de operários negros especializados. Tinha sido assim um sistema
“utilizado para manter a classe operária marginal e sem força.” Para esta autora, mais do que
criar uma “classe operária”, o Chibalo tinha mantido os trabalhadores negros moçambicanos
na condição de “operários-camponeses612”.

Encontramos de seguida o artigo de autoria de Kurt Habermeier (1981), investigador


do CEA intitulado, “Algodão: das concentrações a produção colectiva”. Este texto tinha sido
baseado num projecto de investigação levado a cabo por uma brigada do CEA na província de
Nampula nos meses de Julho e Agosto de 1979. Habermeier neste artigo, discute a questão da
transformação das novas formas de produção socialista a partir da história da machamba de
um colono português abandonada anos após a independência nacional e que fora transformada
por um grupo de 80 camponeses na província de Cabo Delgado numa machamba colectiva. A
partir deste caso particular, o autor descreve a forma como estava estruturado o sistema de
exploração colonial na produção de algodão, tendo tido o seu apogeu “com a chegada da
FRELIMO que significou fundamentalmente o fim da cultura obrigatória do algodão, o fim

611
PENVENNE, Jeanne. Chibalo e Classe Operária, 1870-1962. Estudos Moçambicanos, nº2, Maputo:
UEM/CEA,1981.
612
PENVENNE, 1981, op.cit, p.26.
213

do odiado sistema das concentrações algodoeiras613.”

Habermeier não deixa no entanto de analisar, de forma crítica, a relação ente Estado e
camponeses cooperativistas, afirmando que a falta de experiência e formação técnica e
organizacional (dos camponeses), deu lugar a um apoio (do Partido/Estado) “um tanto ou
quanto paternalista614” Ainda segundo este autor, “em vez de capacitar os camponeses a gerir
e planificar eles próprios a sua produção colectiva, a actuação do Estado tendeu a perpetuar a
dependência”.615 Enfim, para este autor, um dos principais travões para um desenvolvimento
mais rápido do movimento cooperativo era devido à “capacidade de apoio limitada e mal
dirigida do aparelho do Estado616.” Habermeier termina o artigo, dando recomendações ao
poder de como contornar a fraca aderência dos camponeses à produção colectiva. Nas
palavras de Habermeier, a solução “exige antes de tudo um esforço gigantesco de
mobilização, formação, organização e planificação por parte do Partido e do Estado617.”

8.2.3 Estudos Moçambicanos n º 3: Contribuindo na Reflexão sobre a Socialização do


Campo

É então com a publicação da Estudos Moçambicanos nº 3 em 1981, que se vai colocar


a ênfase na análise contemporânea de Moçambique. O governo tinha acabado de aprovar o
“plano prospectivo indicativo618”. Como corolário, foi dada grande prioridade à socialização
do campo, que seria concretizada, na visão da FRELIMO, através do desenvolvimento de
cooperativas e machambas estatais. Estas eram, de facto, questões chaves da estratégia

613
HABERMEIER, Kurt. Algodão: Das concentrações a produção colectiva. Estudos Moçambicanos, nº.2,
Maputo: UEM/CEA,1981,p.42.
614
HABERMEIER, 1981, op.cit, p.56.
615
Idem, p.55.
616
Idem, p.57.
617
Ibid.Idem.
618
De acordo com Brazão Mazula, cumprindo a orientação do III Congresso, o Partido divulgou, em 1980, o
Plano Prospectivo Indicativo (PPI). O PPI apresentou-se como um plano de ajuste da situação econômica e de
modernização da sociedade. Definia metas e idealizava grandes projectos econômicos pela indústria pesada
que aceleraria a socialização do campo, criaria bases para a eliminação do subdesenvolvimento em dez anos,
e, assim, situaria o país ao nível dos países desenvolvidos. Ainda segundo este autor, o PPI reproduzia, na
prática, o modelo de desenvolvimento dos países socialistas. A Frelimo pretendia dar «o grande salto» para o
socialismo. Criava-se a ilusão, como possibilidade racional" de o subdesenvolvimento ser vencido numa
década e o sucesso da educação resultar do rápido desenvolvimento econômico. Essa ilusão enquadrava-se,
também, no espírito triunfalista que ainda predominava na Frelimo. Vide, MAZULA, Brazão. Educação,
Cultura e Ideologia em Moçambique: 1975-1985, ed. Afrontamento, Lisboa 2004.
214

política da FRELIMO para a transformação da agricultura como também para o seu objectivo
maior da “transição socialista”. Daí então encontrarmos como tema central deste terceiro
número: a socialização do campo e planificação”. Aquino de Bragança e Ruth First na
redacção do editorial tornam ainda mais nítido o carácter aplicado da pesquisa social do CEA
e a sua articulação com as prioridades políticas do desenvolvimento da sociedade, e que vale
apenas citar demoradamente,

O III congresso da FRELIMO (1977) estabeleceu a linha estratégica


do desenvolvimento de Moçambique. Nesta estratégia a agricultura é
a base e a industria o factor dinamizador e decisivo. Isto implica que
numa primeira fase a agricultura constitua a principal fonte de
acumulação para o desenvolvimento econômico. Isto significa que a
socialização – a extensão e consolidação do sector estatal e a
cooperativização de produção familiar – é uma tarefa imediata e
imperativa.619

Encontramos assim neste número dois artigos que abordam esta questão da
transformação social da agricultura, mas são também publicados artigos sobre variados temas.

Encontramos por exemplo, temas como o trabalho migratório na África austral, a


relação entre gênero e trabalho, como também um artigo produzido pelo grupo de pesquisa da
África Austral do CEA. Neste texto, os pesquisadores do CEA trazem à discussão duas
estratégias regionais diametralmente opostas, onde cada uma delas tinha como objectivo
integrar vários países no interior de uma associação econômica e política. Por um lado,
tínhamos a CONSAS620, dirigida pelo regime sul-africano, por outro lado, a SADCC621,
abordada como uma contra-estratégia dos países africanos (os “paises da linha da Frente”)
para fazer face ao poderio econômico da África do Sul. Há também uma secção de entrevistas
e canções recolhidas por Alpheus Manghezi e uma análise bibliográfica do documentalista do
CEA, Colin Darch, sobre o trabalho migratório na África Austral.

Um dos principais artigos neste número é sem dúvida, “ A Questão agrária em

619
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº.2,UEM,CEA,1981,p.2
620
“Constelação de Estados da África Austral”.
621
“Conferência de Coordenação do Desenvolvimento da África Austral”.
215

Moçambique” de Bridget O’Laughilin622 (1981). Este é mais um texto que traduz claramente
a postura de “engajamento crítico” do CEA (que será discutido mais detalhadamente no
último capítulo). Neste artigo, a autora reflecte sobre uma das grandes preocupações do
governo na altura, que era de aferir os motivos do fracasso da edificação das aldeias comunais
em algumas regiões, da fraca participação camponesa, como também do persistente domínio
da produção individual familiar em detrimento da política da produção colectiva e
cooperativa. Para esta autora, as suas causas estavam relacionadas com a natureza da estrutura
de classe rural deixada pela dominação do capitalismo colonial em Moçambique, mas
também “ com a falta de tomada de consciência do carácter urgente da cooperativização,
como tarefa imediata da revolução, por alguns sectores do próprio aparelho do Estado623.”

Quadro 9 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº3 (1982)


Autor Artigo Pags.

Aquino de Editorial: Socialização do campo e 2- 8


Bragança/Ruth First planificação
Bridget O’Laughilin A questão agrária em Moçambique 9 – 32

Marc Wuyts Sul do Save: Estabilização e 33 – 44


transformação de força de trabalho
Alpheus Manghezi A mulher e o trabalho 45 – 56

Alexandrino José Chamavam-me terrorista 57 – 64

Yussuf Adam, Robert A luta pelo futuro da África Austral: 65 – 80


Davies, Sipho Dlamini As estratégias dos CONSAS e
SADCC
Colin Darch Análise bibliográfica: Trabalho
migratório na África Austral: Um 81 – 96
apontamento crítico sobre a
literatura existente

O’Laughilin inicia a discussão a partir da constatação do governo de que ao longo dos


seis anos de independência e do processo de socialização do campo, havia uma grande

622
Pesquisadora do CEA e docente do Curso de Desenvolvimento.
623
O’LAUGHLIN, Bridget, A Questão agrária em Moçambique, Estudos Mocambicanos, nº.3,UEM,CEA,1981,
p.27.
216

debilidade no funcionamento das aldeias comunais e do movimento cooperativo. O artigo vai


ser assim principalmente uma tentativa de responder à questão do fraco crescimento da
produção cooperativa nas aldeias comunais, como também da persistência de formas de
produção individual familiar. Como podemos notar, estávamos assim em presença de mais
um estudo que tinha como objectivo principal apresentar “soluções” para os problemas sobre
a implementação das políticas agrárias da FRELIMO em Moçambique. Para esta
investigadora parte do problema da cooperativização do campesinato estava ligada à estrutura
de classes rural deixada pela dominação do capitalismo colonial em Moçambique. E, segundo
esta autora, umas das primeiras medidas a empreender na análise da estrutura de classes no
campo era de se primeiro “romper abertamente com todas as formas de análise dualista, que
consideram o campesinato como “pré-capitalista” e assente na produção de “subsistência.624”
Como alternativa à “análise dualista”, era preciso então olhar mais de perto as formas de
exploração colonial e como estas, através do trabalho forçado e do trabalho migratório
(assalariado), tinham destruído aquilo que ainda existia de “economia de subsistência”. Pois
que, como observou Bridget O'Laughilin, os camponeses continuavam a produzir nas suas
machambas não só para a sua sobrevivência, mas também para o mercado.

Daí então Bridget O'Laughilin argumentar, que o facto de os camponeses não


cooperarem na edificação do movimento cooperativo, não significava que eles fossem
“atrasados”, ou mesmo “ancorados” numa agricultura de subsistência. Pelo contrário, havia
condições estruturais resultantes da herança colonial, mas também na visão desta autora, de
“erros” do Partido/Estado no pós-independência. Bridget O’Laughilin, aponta ainda a questão
da carência de investimento estatal, de organização interna do campesinato, aliada à falta de
novas formas de planificação, de contabilidade e um índice elevado de analfabetismo, como
os factores principais na baixa produtividade das aldeias comunais e do sistema cooperativo
de produção colectiva.

O artigo de Bridget O’Laughilin não deixa assim, de ser também uma crítica ao
desempenho do partido/Estado onde, segundo esta autora, em alguns sectores da estrutura do
Estado estavam ainda influenciados por essa “visão dualista” da estrutura de classes no
campo, tendo assim impacto na produtividade dos movimentos cooperativos. A crítica desta
investigadora do CEA, é incisiva neste aspecto,

A falta de tomada de consciência do carácter urgente da


cooperativização como tarefa imediata da revolução, por alguns
624
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº.3,UEM,CEA,1981, p.9
217

sectores do próprio aparelho de Estado, também contribuiu para a


estagnação do movimento. Alguns dos elementos que participam na
implementação da política agrária continuam a encarar o campesinato
basicamente como produtor de subsistência. Desta forma subestimam
tanto a necessidade imediata como a possibilidade de construção de
um forte movimento cooperativo.625

Segundo Bridget O’Laughilin, esta postura do partido/Estado levou também a um


“dualismo político que mobilizava o campesinato e alimentava o cinismo;”. Quer dizer, o
governo reiterava nos seus discursos oficiais sobre a importância estratégica das aldeias
comunais e das cooperativas. No entanto, na prática, grande parte dos recursos tinham sido
direccionados para as necessidades das machambas estatais. Tendo em conta as duras críticas
endereçadas ao poder, a autora adverte, que o artigo não estava contra as machambas estatais,
pois que esta constituía o outro elemento fundamental para a transformação socialista da
agricultura626.

No final, Bridget O’Laughilin acaba apoiando a linha política da FRELIMO, que via o
sector agrícola estatal como o instrumento por excelência, que poderia transformar a
economia rural. Daí a autora afirmar, que só poderia haver transformação da economia
política rural, quando se privilegiasse a cooperativização da agricultura e o alargamento do
sector estatal agrário; uma vez que ambas eram parte intrínseca do mesmo processo de
superação das condições de produtividade e estrutura de classe herdadas do colonialismo
português. O artigo, termina deste modo, defendendo a “necessidade histórica da
cooperativização do campo e a sua posição numa estratégia total de transformação socialista”.

8.2.4 Estudos Moçambicanos nº 4, 1983: Enfatizando a Participação do CEA na


“Reflexão de Problemas Nacionais627”

A Estudos Moçambicanos nº 4, que deveria ter saído ainda no segundo semestre do

625
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº3,UEM,CEA,1981, p.27.
626
A questão da importância do sector estatal, será também assunto de um outro artigo de autoria de Marc Wuyts
publicado no mesmo número: “Sul do Save: estabilização e transformação de força de trabalho” fala-nos da
importância do sector das machambas estatais e da formação de um forte proletariado agrário como base da
construção do socialismo em Moçambique.
627
Segundo Aquino de Bragança no Editorial deste número.
218

ano de 1981, é somente publicada dois anos depois, em 1983 e com a particularidade de ser o
primeiro número sem a presença de Ruth First. Como sabemos, assassinada em Agosto de
1982 nos escritórios do CEA, através de uma encomenda armadilhada enviado pelo regime
sul-africano do apartheid. O CEA ressente-se profundamente desta perda. E é pela mão de
Aquino de Bragança, no Editorial deste número, que notamos este facto,

Pela primeira vez, o nome de Ruth First não figura na nossa ficha
editorial. O seu assassinato, através de uma bomba armadilhada, deve
ser interpretado também como um atentado contra o CEA. Um vazio
imenso foi criado dentro de nós, que com ela diariamente convivíamos
e trabalhávamos.628

Quadro 10 - Índice Temático da “Estudos Moçambicanos nº4 (1983)

Autor Artigo Pags.

Aquino de Bragança Editorial: Relançamo-nos 1 -4

Fernando Ganhão Problemas e prioridades na 5 - 17


formação em Ciências Sociais
Alpheus Manghezi Kuthekela: Estratégia de 19 - 40
sobrevivência contra a fome no sul
de Moçambique
Yussuf Adam e Ana Movimento dos Lingulanilu no 41 – 75
M. Gentilli planalto de Mueda, 1957/1962
Maureen Comercio e acumulação: A 77 – 102
Mackintosh comercialização de milho na alta
Zambézia
Colin Darch Análise bibliográfica: Notas sobre 103 – 125
fontes estatísticas oficiais referentes
a economia colonial Moçambicana:
Uma crítica geral
Judith Head/ David Crítica e Comentário: Problemas da 127 – 139
Hedges História da Zambézia

628
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4, 1983.
219

Esta edição de 1983, continuou pondo a ênfase em temas ligados aos desafios do
presente. Encontramos por exemplo, artigos que discutem as estratégias de sobrevivência
contra a fome no sul de Moçambique, como também a questão da comercialização de milho
na Zambézia. Não deixa no entanto de também publicar artigos sobre a economia política do
colonialismo em Moçambique, como foi o caso por exemplo do artigo de Yussuf Adam e Ana
Maria Gentili intitulado “O Movimento dos Liguilanilu no Planalto de Mueda, 1957-1962”629,
que mostra como a base do nacionalismo em Moçambique não era algo endógeno ou elitista,
mas que pelo contrário, estava profundamente ligada a actividade dos camponeses. O artigo
argumenta ainda que os camponeses do planalto de Mueda, no norte de Moçambique tinham
já um tipo de associação política tendo se tornado num terreno fértil na emergência da
FRELIMO como movimento de libertação nacional.

Aparece neste número uma nova rubrica, “Critica e Comentário”, que pretendia,
segundo o CEA, “tornar a Estudos Moçambicanos um palco de debate e critica630”. Este
espaço começa assim com uma resenha crítica de Judith Head e David Hedges, sobre o livro
“Capitalism and Colonialism, de Leroy Vail e Langed White. A principal crítica a obra refere-
se ao facto de os autores não terem usado o conceito de “exploração” e de “lutas de classes”,
para explicar o papel do Estado colonial como também de aclarar a sua derrota pela
FRELIMO. Colin Darch apresenta mais uma vez neste revista, uma análise bibliográfica,
desta vez, apelando a necessidade de se examinar de forma crítica, as fontes oficiais e
estatísticas coloniais, quando se aborda a história colonial em Moçambique.

Há ainda neste número dois textos fulcrais para se entender melhor esta questão do
engajamento crítico do CEA e da submissão das prioridades de pesquisa às prioridades
políticas. Um dos artigos é o discurso inaugural do reitor Ganhão na reunião de peritos sobre
Ciências Sociais intitulado “Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais.” O
segundo artigo é de autoria de Maureen Mackintosh, investigadora associada ao CEA,
chamado, “Comércio e acumulação: a comercialização do milho na Alta Zambézia." Estes
dois artigos inserem-se na nova dinâmica de pesquisa do CEA de abordar temas actuais e
urgentes no debate sobre os grandes desafios da transição socialista me Moçambique.

No primeiro, Fernando Ganhão (1983), reflecte sobre os problemas do ensino e

629
Este texto é discutido de forma mais pormenorizada na secção sobre a Oficina de História.
630
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA, “Editorial”.
220

investigação que os países da África austral e em particular de Moçambique têm enfrentado


na sua luta pela emancipação regional contra o domínio capitalista sul-africano, bem como
contra os desafios locais da construção do socialismo. Para Ganhão, a tarefa dos cientistas
sociais da região não levanta ambiguidades: “compreender as formas que permitem alterar as
condições sociais631.” E, para levar a cabo esta empreitada, nada melhor do que a “teoria da
mudança social”, em oposição à “teoria da ordem social”, considerada pelo autor como “uma
das mais reaccionárias da ciência social burguesa632”.

O Reitor apela aos cientistas sociais a usarem a análise de classes e da contradição


social, pois só assim estariam engajados no processo de transformação social. Na óptica de
Ganhão, não deveria haver distinção entre as ciências sociais e o marxismo-leninismo. Toda a
discussão e análise da realidade moçambicana devia, segundo o Reitor, estar necessariamente
ligada à teoria marxista. Na perspectiva deste autor, a escolha da “ciência do marxismo-
leninismo633”, significava também uma investigação social engajada na mudança social.

Como forma de ilustrar melhor a conexão entre e a teoria e prática, Ganhão discorre
sobre o percurso biográfico de Eduardo Mondlane e os vários constrangimentos que este
encontrou na busca de uma educação formal condigna. Foi a partir daí então que começou a
surgir, gradualmente, uma maior consciencialização da necessidade de lutar contra o domínio
colonial, tendo culminado com a fundação da FRELIMO e o desencadeamento da luta
armada. É a partir deste exemplo, que Fernando Ganhão argumenta que a génese da teoria
deve também ser parte das lutas sociais e políticas e não algo exclusivamente ligado ao meio
acadêmico e ao ensino formal. Neste sentido, na óptica de Fernando Ganhão, deveria haver
sempre uma teorização a partir da prática. Este vai-se tornar num dos pressupostos do
trabalho do CEA de pesquisa em Moçambique, com especial destaque paras o seu “Curso de
pós-graduação em Desenvolvimento”, que, como vimos, sempre procurou aliar a teoria à
prática, onde o trabalho de campo colectivo e sistemático se tornou no símbolo ex-líbris do
CEA.

Por fim, Fernando Ganhão discute a questão das escolhas das prioridades da pesquisa,
insistindo na necessidade de abordar problemáticas de carácter imediato, muitas das quais
relacionadas com o desafio das lutas de libertação dos países da África Austral em relação ao
sistema do apartheid sul-africano. Segundo o Reitor da UEM, “existe a necessidade urgente
631
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA,p. 5.
632
Ibidem,p.7.
633
Ver, ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA, p.7.
221

de investigar e controlar regularmente o sistema sul-africano, de estudar e prever os


desenvolvimentos da sua economia, na medida em que afecta os restantes Estados da
região”.634

O CEA não vai ficar alheio a estas propostas apresentadas pelo Reitor, principalmente
o grupo de pesquisa sobre a Africa Austral, que de facto tinha como pressuposto teórico
básico a análise de Moçambique (em “transição para o socialismo), da África do Sul e da
Namíbia no contexto das dinâmicas sociais, políticas e econômicas que se vivia em toga a
região austral, dando primazia àqueles tópicos de carácter “urgente” para os desafios da
construção do socialismo em Moçambique, como também na luta de libertação nacional dos
países vizinhos. É preciso no entanto referir que havia excepções, como por exemplo, as
pesquisas levadas a cabo pelo “Oficina de Historia” (particularmente sobre a experiência da
luta armada nacional, protesto social, resistência etc), alguns trabalhos realizados no âmbito
do Curso de Desenvolvimento que abordavam questões pontuais da realidade moçambicana,
como por exemplo, a “socialização do campo”, “transformação rural” ou mesmo a
“desagregação” das aldeias comunais.

Voltando a análise da Estudos Moçambicanos nº4: há ainda um segundo artigo,


“Comércio e Acumulação: a Comercialização do Milho na Alta Zambézia635,” escrito pela
economista Maureen Mackintosh. A autora analisa criticamente alguns dos problemas
surgidos na planificação estatal do comércio privado, no pós-independência, a partir de um
distrito da província de Nampula, no norte de Moçambique: Alto-Molocué. Maureen
Mackintosh argumenta que estes problemas se deviam primeiro à herança colonial (por
exemplo, o “fracasso” do Estado colonial em controlar o mercado privado); e segundo - já no
contexto do pós-independência - a própria fragilidade do Estado moçambicano (na sua
estratégia da transformação socialista), em criar políticas activas para o mercado privado e de
assim superar as formas coloniais de organização do comércio agrário.

E foi esta “falta de uma política activa” em relação ao comércio privado, que originou
uma renovação da acumulação em mãos privadas. Como afirmou Maureen Mackintosh,
“constatamos em 1981, que se estava a processar uma reintegração entre o comércio e a
agricultura privada.”636 Realça ainda a autora, “os comerciantes deste distrito estão a
consolidar-se, enquanto nova classe empregadora, expandindo a agricultura privada,
634
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 4,1983,UEM,CEA, p.16.
635
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 4, 1983.
636
MACKINTOSH, op.cit, 1983, p.92.
222

controlando uma parte cada vez maior do sector de processamento.”637

A autora afirma que o Estado pós-colonial deveria ter uma política mais activa de
comercialização para não criar condições próprias à especulação de preços e ao
desenvolvimento do mercado paralelo, que somente beneficiava o comércio privado em
detrimento do sector estatal. Argumenta ainda, que a política comercial da FRELIMO teve o
efeito - não desejado - de aumentar as dificuldades da empresa estatal de comércio e
contribuir para colocar nas mãos dos comerciantes privados mais fundos, à custa tanto do
sector familiar de produtores, como dos consumidores.638

Maureen Mackintosh (1983), através de uma abordagem de “crítica responsável639” e


de esclarecimento ao poder das “estratégias correctas”, não deixa de advertir de que apesar de
ser importante que a FRELIMO tenha uma política mais activa em relação ao comércio, nem
tudo poderia ser transformado apenas por mudanças ao nível de políticas. A autora dá o
exemplo do controlo dos meios comerciais (armazéns, camiões, moagens, etc) e sua relação
com a estrutura de produção agrícola em si. O que acontece, segundo esta autora, é que os
produtores familiares não tinham capacidade financeira de investir por exemplo em camiões
individuais. E, por outro lado, o Estado moçambicano dificilmente conseguiria operar como
retalhista, onde os comerciantes privados eram mais fortes. Daí então a autora sugerir uma via
alternativa (o que não deixava de ser também um dos objectivos principais da estratégia da
socialização do campo da FRELIMO), “ o controlo sobre o comércio apenas pode ser retirado
das mãos dos privados através do desenvolvimento de um movimento cooperativo e através
da integração da política comercial com a política de socialização do campo”.640

Defendia ainda, que apenas as cooperativas em contraste com os produtores familiares


individuais, poderiam utilizar os rendimentos gerados pela produção comercializada para
controlar os meios de comércio: mas neste caso para fins socialistas e não para renovar a
dominação dos comerciantes/agricultores privados”641. O artigo termina elucidando ao
governo sobre os factores a ter em conta na elaboração de uma “política comercial socialista”.
O mercado, na visão de Maureen Mackintosh, não podia ser abolido rapidamente, ou
controlado, devido a inexistência de recursos estatais que permitiriam tal tipo de acção.

637
Ibidem, p.93.
638
Ibidem, p.94.
639
Este tema será elaborado com mais detalhe, no último capítulo.
640
MACKINTOSH, 1983, op.cit. p.100
641
Ibidem, Idem.
223

Advertia ainda Maureen Mackintosh que uma política comercial inerente à “transformação
socialista” deveria envolver incentivos para o aumento da produção do sector familiar e
permitir que o excedente investível gerado fosse colocado ao serviço do sector cooperativo
em termos de meios de produção, comércio e processamento642. Esta seria a única forma, de
acordo com a autora, de se poder controlar o mercado agrário, permitindo que o sector
familiar e cooperativo se beneficiasse mais do que o sector privado, criando assim uma
estrutura de comércio em moldes socialistas.

8.2.5 Estudos Moçambicanos nº 5/6: A Importância da Investigação Histórica

A Estudos Moçambicanos nº 5/6 só sairia ao público em 1986, três anos depois do


número anterior, publicado, como vimos, em 1983. O aparecimento desta edição, tem um
significado particular, pois que, de acordo com os seus editores,

Foi o último que foi preparado sob direcção de Aquino de Bragança,


fundador e director do CEA. Por razões diversas este número é
publicado cerca de 1 ano depois da sua morte, em Outubro de 1986,
quando regressava com o presidente Samora Machel de uma reunião
em que foram analisados aspectos da resposta dos Estados da Linha da
Frente a agressão política e militar sul-africana na região da África
Austral643.

Neste interregno (1983-1986), o país experimentava algumas mudanças econômicas e


políticas que teriam grande impacto no que era antes considerada como a grande “meta-
narrativa” da FRELIMO: a construção do socialismo em Moçambique. Podemos aqui
referenciar dois grandes acontecimentos: os acordos de Nkomati em 1984 e a adesão de
Moçambique em 1984 ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). O
país estava assim num lento mas longo processo de reformas das suas políticas. Tendo em
mãos uma crise econômica aguda e por outro lado, o agravamento da guerra contra a
RENAMO, a FRELIMO começava a repensar nas suas estratégias políticas da transformação

642
MACKINTOSH, 1983, op.cit. p.101.
643
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 5/6, 1986,”Editorial”.
224

socialista, particularmente no privilégio dos grandes projectos estatais, adoptando em vez


disso programas de reformas econômicas mais direccionados para o mercado, o que
significou uma maior ênfase na importância do campesinato e do investimento privado e da
necessidade fornecer mais apoio a estes actores644.

Encontramos neste número uma dominância de temas ligados ao campo da história,


em detrimento da abordagem da economia política marcadamente presente nas edições
anteriores da revista. Traz dois artigos escritos por Aquino de Bragança (1986), tendo um
deles, “Da idealização da FRELIMO a compreensão da história de Moçambique645” sido
elaborado em parceria com o historiador e também membro fundador da Oficina, Jacques
Depelchin (1986). Este artigo (que como vimos, foi discutido no capitulo oito) pode ser
considerado como um dos textos mais elucidativos do engajamento crítico, que de facto
caracterizou o trabalho científico do CEA durante a primeira década do pós-independência e
da “transição para o socialismo.

O segundo artigo, “Independência sem descolonização, a transferência do poder em


Moçambique, 1974-1975,” foi escrito por Aquino de Bragança, e tinha sido originalmente
concebido para ser apresentado na conferência sobre “ Transferência do poder em África”,
decorrida em Harare no ano de 1985. Este texto apresenta a forma vitoriosa como a
FRELIMO conseguiu em suas negociações com o Estado colonial português de Spínola,
concretizar a transferência do poder, sem pôr em causa o princípio da independência nacional
objectivo primordial da luta armada. Muita informação contida neste texto pode ser
considerada como sendo de “primeira mão”, uma vez que Aquino de Bragança tinha jogado
um papel central no processo de negociação da “transferência do poder”, entre a FRELIMO e
o governo português.

Encontramos ainda nesta edição, um artigo do economista, Kenneth Hermele (1986),


“Lutas contemporâneas pela terra no Vale do Limpopo”, que analisa o surgimento e a queda
da “mais famosa de todas as empresas estatais no pós-independência: o Complexo Agro-
Industrial do Limpopo (CAIL)”. O complexo tinha as suas raízes no período colonial, quando
o Estado colonial português decidiu nos anos 50, implantar um sistema de regadio no vale do
Limpopo (Colonato do Limpopo) e que se tornaria numa das mais importantes regiões

644
Para uma discussão mais atenta sobre esta questão das reformas políticas em Moçambique, Vide,
OTTAWAY, Marina. Mozambique: from symbolic socialism to symbolic reform. The Journal of Modern
African Studies, vol. 26, nº2, June, 1988, pp.211-226; PITCHER, Anne. Transforming Mozambique: the
politics of privatization, 1975-2000, Cambridge University Press, 2002.
645
Este texto, como vimos, foi discutido na secção sobre a Oficina de História.
225

agrícolas do país. Segundo Hermele, “esta iniciativa foi resultado de uma política colonial
consciente para fixar agricultores brancos a terra, de modo a salvaguardar a presença no poder
colonial da colônia numa área tão vasta quanto possível646.” E é precisamente no período
colonial que o autor situa a emergência das contradições sociais e das lutas pela terra no vale,
contradições estas advindas da natureza e organização social do colonato, que se caracterizava
pela “divisão racista” entre colonos brancos, que detinham as melhores terras e a maior parte
dos instrumentos de produção e os “colonos negros”, com menos terras e poucos instrumentos
de produção.

Quadro 11 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº5/6 (1986)

Autor Artigo Pags.

S/Ref. Editorial: Na linha da frente 3-5

Aquino de Bragança Independência sem descolonização: A


transferência do poder em Moçambique 7 – 28
Aquino de Bragança/ Da idealização da FRELIMO à
Jacques Depelchin compreensão da história de Moçambique 29 – 52
Keneth Hermele Lutas contemporâneas pela terra do vale do
Limpopo. Estudo do caso de Chokwé, 53 – 81
Moçambique, 1950/1985
Maureen Mackintosh Capital privado e o Estado no sistema de
transportes da África Austral: As 83 – 128
implicações da actual organização do
transporte de carga na planificação de
Moçambique
Jeanne Stephen Baixa de preços e preservação da
dependência: A resposta sul-africana às 129 – 171
iniciativas do sector de transportes em
Moçambique e na SADCC
Robert Davies Apartheid em fúria: Uma análise das acções 173 – 183
do regime de Botha na conjuntura actual

Com a independência e o fim dos colonatos, deu-se o êxodo de grande parte dos
colonos portugueses do Vale do Limpopo e onde muitos dos colonos negros e outras

646
HERMELE, Kenneth. Lutas contemporâneas pela terra no Vale do Limpopo – Estudo de caso do Chokwé,
Moçambique (1950-1985). Estudos Moçambicanos, nº 5/6, UEM, CEA, 1986, Maputo.
226

populações circunvizinhas se fixaram nas melhores terras, com o intuito de se tornarem, nas
palavras de Hermele, nos “verdadeiros colonos”. Esta situação, segundo Hermele, iria mais
tarde criar tensões com o Estado Freliminiano e a sua politica das machambas estatais e
produção colectiva.

Como afirmou Hermele, a FRELIMO em 1977, no seu III Congresso, decide criar o
CAIL, transformando o antigo colonato do Limpopo, numa “empresa estatal”. Hermele
aponta precisamente este ano de 1977 como significando um ponto de mudança decisiva.
Primeiro porque foi o ano em que seguindo as directivas do III congresso a FRELIMO
“apontava inequivocamente para as machambas estatais e cooperativas e a constituição das
aldeias comunais como fundamentais para o desenvolvimento agrícola647.” Segundo, porque
nesse ano, o Vale do Limpopo tinha sido considerado como o “celeiro da nação”, e a grande
esperança no aumento da produção agrícola. Em terceiro lugar, 1977 foi o ano em que o país
foi assolado pelas cheias onde grandes áreas do vale ficaram inundadas.

De acordo com o investigador do CEA, esta situação iria também forçar as populações
a serem realojadas nas terras altas, onde estariam as aldeias comunais. As machambas estatais
e cooperativas passaram assim a ter prioridade em termos das melhores terras do vale, e todas
aquelas terras subaproveitadas (na maioria nas mãos dos camponeses), seriam transferidas
para as machambas estatais ou cooperativas. Na mesma senda, as populações que se
recusassem a aderir poderiam, segundo directiva da FRELIMO, ser sujeitas a “medidas
administrativas (ou seja a força)648” É assim que Hermele acaba argumentado que o conflito
entre os camponeses e o Estado acabou sendo também um conflito entre a agricultura
individual e a agricultura colectiva.

A “severidade da linha de acção da FRELIMO649” segundo Hermele acabaria criando


resistência e contradições antagónicas com os camponeses, tornando-se assim “numa das
razões básicas para os problemas enfrentados pelo CAIL e pela agricultura colectiva em
geral650.” Estas contradições iriam levar ao fracasso do CAIL, na medida em que as
cooperativas e empresas estatais dependiam do trabalho dos camponeses651. Keneth Hermele
tenta explicar as razões deste falhanço a partir das contradições sociais pela posse de terra,

647
HERMELE, 1986, op.cit. p.63.
648
Ibidem, p.65.
649
Ibidem, p.63.
650
Ibidem, Idem.
651
Ibidem, p.,66.
227

que tiveram as suas origens no período colonial e que teriam sido agravadas pela política da
FRELIMO no pós-independência, que dava prioridade às machambas estatais e cooperativas.

Keneth Hermele defende, que a sua ênfase nos factores sociais e políticos para
explicar o fracasso do CAIL, procurava se distanciar de autores que olhavam para a questão
do grau de mecanização da agricultura no pós-independência, como a causa principal da crise
de produção. Sem contudo pôr de lado o problema da mecanização, Keneth Hermele defende
que esta posição tendia a sobrevalorizar as limitantes técnicas em detrimento dos factores
socioeconômicos e políticos652.” Uma posição aliás, que tinha também sido defendida em
1979, por Marc Wuyts,653 que argumentara que a produtividade era mais do que tudo,
socialmente e não tecnicamente determinada. Estes autores salientavam que o grau de
mecanização, em alguns aspectos, não tinha ultrapassado o existente no período colonial.

O que realmente se modificou na óptica deste investigador foi que com a


independência nacional, se deu uma maior concentração da propriedade nas mãos do Estado,
onde a responsabilidade tinha sido transferida de uma camada disseminada para umas poucas
unidades. O autor dá o exemplo do Ministério da Agricultura, que tinha aumentado a sua
posse de tractores em 100% e onde esta concentração continuava até o momento da produção
do texto.654 Assim, segundo este investigador, não foi a mecanização per se que criou as
dificuldades, mas a concentração (que não existia anteriormente), desses tractores nas mãos
de uma “estrutura do Estado incapaz de os cuidar.655”

Sem no entanto pôr de lado a questão da mecanização como um dos factores para o
falhanço do CAIL, Hermele defende que para se ter um entendimento mais completo do
fenómeno é preciso tomar em consideração as contradições políticas e sociais que estas
empresas estatais projectadas pela FRELIMO encerravam. Segundo Hermele, “os
camponeses do Limpopo não estavam interessados em trabalhar na machamba estatal, nem
em viverem nas aldeias comunais. Nem mesmo após as cheias registadas em 1977, eles
tinham vontade de serem removidos para as áreas seguras656.” A transferência dos
camponeses para as aldeias comunais, depois das cheias de 1977, também, segundo Hermele,

652
Ibidem, idem.
653
Vide, WUYTS, Marc. On the question of mechanization of Mozambican agriculture today: some theoretical
comments, Maputo: UEM/IICM/CEA, 1979.
654
Ibidem, idem.
655
HERMELE, 1986, op.cit, p.67.
656
HERMELE, 1986, op.cit, p.67.
228

não melhorou a sua situação, pelo contrário, piorou ainda mais, uma vez que estas aldeias
“caracterizavam-se por uma escassez geral, uma falta de orientação e organização e,
finalmente, por um estado generalizado de fome657.”

O autor critica também um estudo produzido pelos dirigentes da empresa estatal,


CAIL, sobre o grande fracasso da colheita de 1981, onde das 52.000 toneladas de arroz que
constavam no Plano, tinham sido colhidos somente 26.000 toneladas. Na óptica de Hermele,
as conclusões deste estudo tinham saído “parcialmente contraditórias”, uma vez que os seus
autores, “por um lado propunham uma revisão total de toda a estrutura operacional do CAIL
e, por outro lado, enfatizavam que as elevadas taxas de crescimento propostas pelo plano
decenal (PPI) tinham que ser atingidas e que o CAIL em particular estava sob obrigação de
realizar as altíssimas taxas de crescimento estipuladas pelo Plano658”.

Kenneth Hermele critica ainda a forma como o estudo explicava as causas do fracasso
do CAIL. Como afirmou o autor, “os problemas enfrentados eram explicados pela falta – ou
chegada tardia – de sementes, pesticidas, adubos, ou mesmo da falta de equipamento
operacional, de trabalhadores sazonais para a ceifa etc.659 Para Hermele ainda que todas estas
razões arroladas pelo estudo do CAIL contenham elementos que deviam ser considerados na
análise do falhanço desta empresa estatal, “a razão básica, no entanto, deveria ser procurada
no processo de criação e nas raízes do CAIL”.

É aqui onde o argumento central de Hermele se encontra com toda uma perspectiva
teórica do CEA, durante esta fase de “transição para o socialismo”: investigar primeiramente
a estrutura concreta da economia rural herdada, como também a natureza da crise da
economia capitalista colonial depois da independência660. Daí então Hermele argumentar que
as razões do “fracasso do CAIL” deveriam ser procuradas, tendo em conta três factores.
Primeiro, as “contradições implantadas na área – sobrepostas numa velha estrutura social
diferenciada – com a instalação do Colonato; segundo, as forças representadas pelos colonos
moçambicanos e camponeses em regime de fruição; terceiro, a expulsão subsequente destes
agricultores e a sua reinstalação após as cheias de 1977. No final, o autor acaba enfatizando
que “todos estes factores considerados em conjunto seriam suficientes para explicar a razão

657
Ibidem, p.68.
658
Ibidem, Idem.
659
HERMELE, 1986, op.cit, p.67.
660
Vide, WUYTS, Marc. On the question of mechanization of mozambican agriculture today: some theoretical
comments, Maputo: UEM/ IICM/CEA, 1979.
229

dos camponeses não se tornarem “diligentes, disciplinados, dedicados e conscientes no seu


novo papel de trabalhadores assalariados no CAIL661.”

Apesar de Keneth Hermele apresentar de forma honesta e crítica alguns aspectos da


estratégia agrária da FRELIMO, o artigo não chega a questionar, por exemplo, os efeitos de
uma política agrária que dava prioridade às empresas estatais e cooperativas em Moçambique.
Por exemplo, não explora, com profundidade, o papel do sector privado, como também do
sector familiar na direcção da produção e comercialização no Vale. Enfim, este autor continua
concebendo o sector estatal, tal como os dirigentes da FRELIMO, como “essencial para a
estratégia moçambicana de desenvolvimento agrícola662” e as “machambas estatais como a
espinha dorsal de todo o empreendimento estrutural663”.

Encontramos por último um artigo do investigador do CEA e membro do ANC,


Robert Davies, intitulado, “O Apartheid em fúria: Uma análise das acções do regime de Botha
na conjuntura actual.664” O texto analisa a evolução da luta do ANC e a crise que provocou no
sistema do apartheid e na sua “estratégia total”, instituída pelo governo de Botha em 1978,
que visava aliar a repressão a uma serie de medidas sociais e econômicas para um maior
controlo do poder. O autor descreve deste modo, o processo que levou o governo sul-africano
a intensificar a guerra contra o ANC e alguns países da África austral.

Para Robert Davies, o estado de emergência decretado pelo regime do apartheid e a


intensificação de actos de agressão contra os Estados vizinhos faziam parte “de uma tentativa
desesperada dum regime que não encontra solução para a crise que se acentua, para se manter
no poder665.” A nível regional, afirma Robert Davies, o regime lançou a sua estratégia da
“constelação de Estados” com o objectivo de criar uma firme aliança de Estados regionais,
cooperando a nível econômico, militar e politico com a autoproclamada “potência regional” –
a África do Sul.

Robert Davies termina o seu artigo discutindo o futuro da África do Sul, prevendo em
primeiro lugar que a curto prazo o regime ainda teria capacidade de mobilizar repressão
suficiente para impedir certas forças de acção e organização de massas. O autor conclui com
661
HERMELE, 1986, op.cit. p.69.
662
HERMELE, 1986, op.cit.p.74.
663
Ibidem, Idem.
664
Este texto tinha sido primeiramente apresentado no “Seminário Internacional sobre a paz”, em Maputo, de 9
a 11 de Julho de 1985.
665
DAVIES, Robert. O Apartheid em fúria: Uma análise das acções o regime de Botha na conjuntura actual.
Estudos Moçambicanos, nº 5/6, 1986.
230

um vaticínio que se ia concretizar anos mais tarde: “ele poderá indubitavelmente cometer
mais atrocidades contra os povos não só da África do Sul como da África Austral. Porém, no
fim será impotente para resistir à entrega do poder666.”

8.2.6 Estudos Moçambicanos nº 7: As Dinâmicas da Política Externa na Região Austral

Desde a sua fundação em 1980 que a Estudos Moçambicanos apenas conseguiu


manter a sua periodicidade semestral durante dois anos. Tinha sido primeiramente muito
afectada com a morte de Ruth First em 1982. A partir daí, a revista nunca conseguiria manter
a sua regularidade, tendo tido o seu grande interregno com a morte de Aquino de Bragança.
Depois da edição de 1986, a Estudos Moçambicanos nº 7 e nº 8, só seriam publicadas quatro
anos depois, em 1990.

Quadro 12- Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº7 (1990)

Autor Artigo Pags.

Sergio Vieira Editorial 5-6

Mario Pinto de As ordens do discurso do “Clamor


Andrade Africano”: Continuidade e ruptura na 7 - 28
ideologia do Nacionalismo Unitário.
Sergio Vieira Vectores da política externa da Frente
de Libertação de Moçambique (1962- 29 - 56
1975)
Peter Vale A inevitabilidade dos Generais: A
anatomia do poder branco na Africa do 57 - 94
Sul
Mac Maharaj Determinantes internos da política 95 - 118
externa de Pretoria
Calisto Pachaleque Bibliografia (1977-1989) 119 - 136

Estas duas edições, publicadas dez anos depois do seu primeiro número, continuariam
fiéis à filosofia do CEA de olhar para a realidade moçambicana no contexto da África Austral
e das lutas de libertação nacional contra o regime sul-africano. No entanto, pode-se notar,

666
DAVIES, Robert, 1986, op.cit, p. 182.
231

nesta primeira edição pós-Aquino, uma maior preocupação com temas ligados à política
externa de Moçambique, às questões estratégicas em relação a África do Sul como também,
pela primeira vez, a estudos da área militar. A predominância deste tipo de abordagens nesta
nova fase da história da Estudos Moçambicanos, deve ser entendida tendo em conta as
mudanças que se operaram dentro e fora do Centro. Com o desaparecimento físico de Aquino
de Bragança, a FRELIMO nomeia como director do CEA, Sérgio Vieira, um Coronel (na
reserva) e membro do Comité Central da FRELIMO.

Nota-se nesta nova fase da revista o prenúncio de novos desafios para um futuro ainda
incerto, tanto a nível interno, no CEA, como também no contexto social e político do país. E
começa logo, pelo punho do novo director, no editorial do nº7, arrolando uma série de
factores, como reorganização do Centro e a escassez de meios financeiros, que determinaram
o não aparecimento regular da revista. Encontramos já algumas mudanças significativas nas
duas edições “pós-Aquino”: o desaparecimento de termos com uma forte conotação marxista
presente em quase todos os editoriais da revista, como estratégia de cooperativização do
campo667” “transformação socialista668” “conquista do poder pelos operários-camponeses669”,
“aliança de classes” “luta de classes670” etc.

A lógica do discurso parece agora estar mais ligada aos desafios do presente e não
mais numa “utopia” a fazer advir. Parafraseando Jean-François Lyotard (1990), diríamos que
estávamos em presença do fim da “meta-narrativa671,” de um grande projecto, que era o da
construção do socialismo em Moçambique. É assim, que Sérgio Vieira, afirmava, no editorial
da sétima edição, “ amiséria quase impossibilita a definição de prioridades reais e assim,
muitas vezes, a ciência e cultura embora indispensáveis, são relegadas a segundo e terceiro
planos em nome da sobrevivência imediata”672.

Este período pós-Aquino, vai assim ser palco de mudanças significativas tanto a nível

667
ESTUDOS MOÇAMBICANOS (EM), nº2
668
Ibidem, EM nº 3
669
Ibidem, EM nº4
670
Ibidem, EM nº3
671
Vide, LYOTARD, Jean – Francois Lyotard. A Condição Pós – Moderna. Lisboa : Gradiva, 1989.
672
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 7, 1990.
232

político como também econômico. Começava-se gradualmente a estabelecer os primeiros


encontros entre o governo e os representantes da RENAMO, sem contudo se vislumbrar ainda
uma saída para a guerra de destabilização” que ainda assolava o país. A RENAMO até esta
altura continuava sendo abordada a partir das suas dinâmicas externas e em estreita ligação
com as “acções desestabilizadoras das forças de defesa sul-africana, como afirmou o director
do CEA, que continuava sustendo a sua “frankensteiniana criatura673”.

Num contexto mais geral, o país começava a manifestar as primeiras mudanças


políticas que acabariam com o fim do compromisso formal com o marxismo-leninismo e da
tentativa da transformação socialista. É ainda em Julho de 1990, que a FRELIMO anuncia a
abertura às eleições multi-partidárias, introduzindo deste modo, uma nova Constituição da
República. Por outro lado, como corolário da entrada de Moçambique nas instituições de
Brettons Woods, os anos 1990, vão testemunhar também um maior incremento e aceleração
dos programas de privatização, com grande enfoque naquelas grandes empresas que
anteriormente pertenciam ao Estado674. Um programa que era consequência da mudança de
uma economia planificada pelo Estado por uma economia de mercado.

Apesar destas mudanças no contexto político moçambicano, não vislumbramos ainda


nestes dois números de 1990, o início de um novo debate sobre os temas da actualidade.
Como podemos notar, permanecia ainda a questão da luta política do ANC na África do sul
que ainda constituía um dos temas chaves nas publicações da Estudos Moçambicanos. Os
artigos que vão aparecer nestes dois números, abordam temas ligados às políticas externas de
Moçambique e da África do Sul. Como também às formas de integração regional para fazer
face ao avanço das estratégias desestabilizadoras do regime do apartheid. São também
publicados estudos sobre a estratégia política e econômica da África do Sul e o seu impacto
em Moçambique.675

A edição nº 7, por exemplo, apresenta um total de cinco textos, maioritariamente


dominado por questões relacionadas com a política externa de Moçambique e da África do
Sul. Há no entanto duas únicas excepções. Um texto de Colin Darch (1990), que faz um
levantamento bibliográfico de todos os trabalhos produzidos e publicados pelo e no CEA

673
Vide, Editorial da ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 8, 1990.
674
Para uma leitura mais atenta sobre a privatização em Moçambique, vide, CRAMER, Christopher.
Privatization and Adjustment: A hospital pass?. Journal of Southern African Studies, Vol. 27, nº1, 2001, 79-
103. PITCHER, Anne, op.cit, 2002.
675
Curiosamente é na fase “pós Ruth”, que temas ligados a África do Sul tiveram maior destaque na revista.
233

(1977-1989); e o artigo de Mário Pinto de Andrade (1990), “veterano das lutas de libertação
das ex-colônias portuguesas676”, escritor, sociólogo e investigador associado do CEA. Este
intelectual angolano, já tinha colaborado com Centro na altura do Curso de Desenvolvimento,
dando um curso sobre os movimentos de libertação nas ex-colônias portuguesas.

O artigo de Mario Pinto de Andrade677 vai então discutir o processo da constituição do


proto-nacionalismo nas ex-colônias portuguesas. Este esteve segundo Mario Pinto de
Andrade, baseado inicialmente num movimento unitário formado por uma elite africana a
residir em Portugal. São mencionados nomes como Agostinho Neto, Marcelino dos Santos,
Viriato da Cruz, Noémia de Sousa e outros. Afirma Mario Pinto de Andrade, que a praxis
nacionalista desta nova elite africana se deu nas associações legais, nas igrejas e nos
agrupamentos literários.678 O tema da raça e da africanidade dominava os seus discursos até
ao final da segunda guerra mundial. A partir daí, surge um discurso nacionalista, mais
localizado, com pretensões de conquista da independência nacional dos países africanos
colonizados por Portugal.

Há ainda um artigo, escrito por Mac Maharaj (1990), cientista político, economista,
membro do ANC679 e investigador associado do CEA, intitulado, “Determinantes Internos da
Política Externa de Pretoria de 1977 a 1989.” Mac Maharaj neste artigo, apresentado num
seminário em Maputo, realizado em homenagem a Aquino de Bragança e Ruth First, examina
alguns dos factores internos que estavam por detrás da guerra não declarada do regime do
apartheid aos países da região. A audiência pretendida do texto de Maharaj também não
permite ambiguidades: “nós que estamos engajados na luta para eliminar o apartheid, total e
completamente.680“

O autor traça o percurso histórico da política interna do regime do apartheid, que tinha
procurado, ainda no período colonial, manter alianças com as potências coloniais como forma
de expandir e assegurar a sua dominação política e econômica da região austral. O seu
objectivo era assim o de criar uma constelação de Estados regionais sob tutela da África do
Sul. Mac Maharaj discute ainda as mudanças de estratégia do regime de Botha, a utilização de

676
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 8, 1990.
677
As ordens do discurso do “Clamor Africano”: continuidade e ruptura na ideologia do nacionalismo.
678
Ver, As ordens do discurso do “Clamor Africano”: continuidade e ruptura na ideologia do nacionalismo,
Revista Estudos Moçambicanos, nº 7,1990,UEM,CEA,Maputo, p.9-27.
679
Em 1994, na nova África do Sul do governo de unidade nacional, Maharaj foi nomeado ministro dos
transportes.
680
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 7,1990,UEM,CEA,Maputo. p.98.
234

novos instrumentos de desestabilização, como a criação de comandos mercenários e batalhões


étnicos.

Um outro instrumento utilizado pela África do Sul para desestabilizar o país e


perpetuar os laços de dependência em relação ao poder sul-africano foi, segundo Maharaj, as
“formas de substituição”, que no caso moçambicano seria a criação e financiamento do então
Movimento Nacional de Resistência (MNR) actual RENAMO. O autor refere ainda às
“técnicas econômicas de coação”, como por exemplo, restrições de importação de mercadoria,
diminuição de provisão de assessoria técnica e limitação da importação da mão-de-obra
migrante, usadas também pelo regime do apartheid para desestabilizar economicamente os
países da região.

Enfim, estamos em presença aqui de mais um texto “politicamente engajado”, escrito


por um investigador, que participou directamente na luta de libertação nacional do ANC. A
forma discursiva do texto tem esse cunho pessoal e partidário. Podemos assim surpreender
esse “comprometimento” quando no final do texto, Mac Maharaj afirma,

A aliança revolucionária liderada pelo ANC nunca teve a ilusão de


que a nossa libertação (grifo meu) resolveria automaticamente todos
os profundos problemas do desenvolvimento econômico e do
progresso social na África Austral. Mas reafirmamos que é uma pré-
condição necessária. Só através do estabelecimento de uma África do
Sul livre e democrática serão criadas as condições para a paz na
região681.

8.2.7 Estudos Moçambicanos nº 8: Moçambique no contexto da África Austral: conflitos,


estratégias e perspectivas pós-apartheid

A Estudos Moçambicanos nº 8, publicada em Novembro de 1990 e ainda sob direcção


de Sérgio Vieira, continua analisando questões fulcrais da dependência histórica dos países da
África Austral em relação ao capitalismo sul-africano. São publicadas nesta edição dois
artigos, “ África Austral: Conflitos, percepções e perspectivas na arena internacional”, do

681
MAHARAJ, Mac. Determinantes Internas da Política Externa de Pretoria. Estudos Moçambicanos nº 7,
1990, p.117, Maputo: CEA, p.95-118.
235

director do CEA, Sérgio Vieira, como também “África do Sul e seus vizinhos. Estratégias
regionais em confrontação”, de Thomas Ohlson, investigador sueco, perito na área de “paz e
conflito” e recentemente admitido no CEA. Robert Davies (1990), investigador do “Núcleo da
África Austral”, assina mais um texto sobre os possíveis cenários pós-apartheid na região
austral. Encontramos, no entanto, dois artigos mais direccionados para o contexto
moçambicano. Um estudo de Marc Wuyts que reflecte sobre os constrangimentos e as
alternativas políticas face ao programa de reajustamento estrutural iniciado após as
negociações com as instituições do Bretton Woods682. E, por fim, o artigo de Teresa Cruz e
Silva sobre a história da FRELIMO, com particular enfoque no papel da rede clandestina em
Lourenço Marques nos anos 1964-65.

Quadro 13 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº8 (1990)

Autor Artigo Pags.

União dos Escritores Declaração da União dos Escritores na 11 - 14


Angolanos morte de Mario Pinto de Andrade
Africa do Sul e seus vizinhos - 15 - 62
Estratégias regionais em confrontação
Thomas Olson
Africa Austral: Conflitos, percepções e 63 - 93
perspectivas na arena internacional
Sergio Vieira
Gestão econômica e política de 97 - 124
reajustamento em Moçambique
Marc Wuyts
A “IV Região” da FRELIMO no sul de
Moçambique: Lourenço Marques, 125 - 142
Teresa Cruz e Silva
1964-65
Algumas implicações dos possíveis
cenários pós-apartheid para a região da 143 - 192
Rob Davies
Africa Austral

Encontramos nos artigos de Thomas Ohlson, como também de Sérgio Vieira, uma
alusão (pela primeira vez abordado pelo CEA), ainda que breve, ao tema da “guerra de
desestabilização”. Até então, esta questão nunca tinha sido, abordada como objecto

682
“Gestão econômica e política de reajustamento em Moçambique”.
236

epistémico relevante. De facto, para alguns investigadores do CEA, a RENAMO, como um


movimento político, nem sequer existia683. Ambos a FRELIMO e os cientistas sociais do
CEA, olhavam para a guerra em Moçambique como um fenómeno estritamente exógeno à
realidade moçambicana.

Para a maioria dos investigadores do CEA, em Moçambique havia apenas “bandidos


armados”, ao serviço do regime do apartheid, tendo como um dos objectivos principais a
destruição de alvos econômicos, como transportes, vias de comunicação, etc. Notamos ainda
este tipo de interditação do conceito de “guerra civil” nos artigos publicado pela Estudos
Moçambicanos. O MNR/RENAMO,684 era assim interpretado tendo somente em conta as
dinâmicas externas da sua emergência.

O artigo de Thomas Ohlson e Sérgio Vieira vão reflectir nitidamente esta ênfase nas
dinâmicas externas da guerra civil em Moçambique. Ohlson discute alguns aspectos das
estratégias regionais em confronto (na sua dimensão militar, econômica e politica) utilizadas
tanto pelo “inimigo comum” a África do Sul, como pelos países vizinhos. Estes autores dão
maior ênfase ao contexto regional, examinando a politica de desestabilização econômica e
militar do regime sul-africano. Segundo eles essa estratégia tinha como objectivo enfraquecer
a economia do país e perpetuar a sua dependência em relação ao governo de minoria branca
sul-africana, “forçando a FRELIMO a seguir uma política mais submissa aos desejos de
Pretoria”685.

A criação do MNR, na óptica de Thomas Ohlson, fazia parte de uma estratégia militar
“para impedir a recuperação econômica de Moçambique e tornar inviável a cooperação
econômica regional686.” Daí Thomas Ohlson, afirmar que os instrumentos de desestabilização
usados pela África do Sul contra Moçambique serem uma mistura de coerção econômica e
agressão militar. Para Thomas Ohlson este movimento de resistência, não passava de
“bandidos armados”, “terroristas” debaixo do controlo da África do Sul, sem nenhuma base

683
Segundo Colin Darch, José Mota- Lopes que chegou a ser Editor da Estudos Mocambicanos tinha declarado
a um Diário português em Maio de 1986, “ que a Renamo não existia e que era uma “ficção, servindo a
política sul-africana”. Ver, DARCH, Colin. Are warlods in provincial Mozambique? Questions of the social
base of MNR banditry. Review of African Political Economy ,nº 45/46, Militarism, Warlods and problems of
Democracy, 1989, p.34-49.
684
A questão do nome da organização foi amplamente discutida por vários autores. Segundo, Darch
(1989),HALL, (1990), e YOUNG (1990), até 1982, a organização era referida como MNR um acrónimo
inglês para Movment of National Resistence. A designação de RENAMO é vista por esses autores como uma
forma desta organização politica mocambicanizar-se.
685
ESTUDOS MOÇAMBICANOS, nº 8, 1990, UEM, CEA, p.41.
686
Ibidem, Idem.
237

social de apoio no campo. Na mesma senda, Sérgio Vieira, no seu artigo também publicado
neste número, vai utilizar a mesma linguagem ao falar deste movimento, definindo a situação
de guerra em Moçambique como de “banditismo”. Como afirmou Sérgio Vieira, “não existe
qualquer programa ou esforço de mobilização política quer da população, quer dos próprios
recrutas.687”

Assim, podemos então considerar que até aos anos 1990, a pesquisa sobre as
dinâmicas internas e a antropologia da guerra contra a RENAMO era de facto um tema “tabu”
no CEA. O mais surpreendente é que este tipo de abordagem tenha se mantido dominante
dentro do CEA, mesmo depois de autores como Christian Geffray e Morgens Pedersen, terem
conduzido trabalho de campo688 no distrito de Erati na província de Nampula, onde acabam
argumentando de que, (pelo menos nesse distrito,)689 havia evidências que a RENAMO
poderia ter sido capaz de assegurar algum tipo de base social. Segundo estes autores, a
politica de reunir os camponeses em aldeias comunais do governo teria criado
descontentamento das populações rurais do distrito e levado a uma crise social. A RENAMO,
explorava estes potenciais conflitos ao prometer por exemplo a restauração do poder para os
antigos chefes tradicionais ou incentivando as populações a deixarem as aldeias comunais e
regressarem as suas terras antigas.690 Michel Cahen, também tinha sustentado
(cautelosamente, no entanto), em 1987, que a guerra em Moçambique estava num processo de
mudança de uma guerra de agressão para guerra civil691.

8.3 Estudos Moçambicanos: Uma Revista Interdisciplinar?

A Estudos Moçambicanos desde a sua fundação que procurou ser uma revista
interdisciplinar. Os textos publicados cobriam, de facto, uma gama variada de áreas
disciplinares tradicionais: abordagens mais do campo da sociologia sobre a transformação
687
Ibidem, p.78.
688
Foram mais posteriormente publicados como, Transformação da organização social do campo e diferenciação
social, Maputo, Março 1985, e, Nampula en Guerre, Politique Africaine 29, MarÇO, 1988. também
publicado como Sobre a guerra na província de Nampula, Revista Internacional de Estudos 4/5, Janeiro –
Dezembro 1986, apud, DARCH, Colin (1989).
689
Segundo, autores como DARCH (1989), HALL (1990) YOUNG (1990), Geffray foi muito cauteloso em
termos que querer generalizar o que aconteceu em Erati para todo o país.
690
Ver, YOUNG (1990), HALL (1990).
691
Vide, CAHEN, Michel. Check on Socialism in Mozambique: What Check? What Socialism?. Review of
African Political Economy, nº 57, julho, 1993, p. 46-59.
238

social da produção, pesquisas exclusivamente históricas, estudos sobre a economia política do


colonialismo português, como também questões do âmbito da história oral na forma por
exemplo de canções e entrevistas. A revista não deixou também de publicar documentos
oficiais, discursos políticos e resenhas científicas.

Dentro desta diversidade temática podemos surpreender duas tendências principais, e


que poderiam, ambas, constituir-se numa espécie de arcabouço metodológico da revista.
Encontramos assim a presença dominante do paradigma da “economia política marxista”, que
focalizava através de método interdisciplinar no domínio da produção como a última instância
da realidade. Como afirmaram os pesquisadores do CEA,

Não se pode separar a economia da política; rejeitamos


veementemente a noção de economia “pura” ou técnica, concebendo-a
antes como uma economia política em que a esfera política – as
condições em que se desenrola a luta de classes e o papel do Estado –
é uma componente que faz sempre parte da análise.692”

Eram utilizados conceitos como forças e relações de produção, socialização dos meios
de produção, Estado, relações de classe, etc. Asseverava ainda o CEA, “uma análise
materialista assenta, afinal, numa insistência de que é artificial e arbitraria a separação entre
os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais de um mesmo todo.”693 Em segundo
lugar, notamos também a preocupação da revista em estabelecer uma ligação íntima entre a
teoria e prática, através da produção de estudos de caso, indo desde a análise da performance
de uma machamba colectiva até por exemplo a investigação do sistema de transporte na
região da África Austral. Como vimos na secção anterior, estes estudos envolviam pesquisa
de campo aliado a um trabalho de arquivo e análise documental colectiva.

Podemos por outro lado surpreender também três grandes temas predominantes no
percurso intelectual da revista, desde a sua fundação até aos finais dos anos 1990. O primeiro
tema estava relacionado com a reconstrução da história de Moçambique, a partir da presença
colonial portuguesa em Moçambique, culminando com um especial enfoque na experiencia da
luta de libertação nacional desencadeada pela FRELIMO. É dentro deste tema que

692
ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 1, 1980, Editorial.
693
Ibidem, Idem.
239

encontramos por exemplo os artigos sobre a “economia política do colonialismo português”,


“capitalismo na Zambézia”, etc. Encontramos, na mesma senda, artigos sobre a história da
FRELIMO, como foi o caso do texto de Teresa Cruz e Silva, sobre a rede clandestina da
FRELIMO em Lourenço Marques694.

O segundo tema girava em torno das dinâmicas econômicas e políticas dos países da
região austral, tendo como principal vector a sua integração na economia sul-africana. Este
tema vai-se desdobrar também em estudos sobre as estratégias políticas e econômicas e
militares, usadas pelo regime do apartheid, como forma de garantir a sua hegemonia regional,
como também, em última instancia, de desestabilizar todos os Estados da região que não
entrassem em “sintonia” com as suas políticas. Encontramos assim, artigos como, “A luta
pelo futuro da África Austral: As estratégias dos CONSAS e SADCC,”695 do Núcleo da
África Austral, como também artigos individuais, como foi o caso da análise de Mac Maharaj
sobre as dinâmicas internas da política externa da África do sul.

Por fim, encontramos o tema sobre Moçambique contemporâneo, com bastante


incidência na zona rural, e em estudos sobre a transformação da produção e socialização (no
sentido de quebrar com o sistema de produção capitalista herdado do período colonial e criar
um novo sistema de produção colectiva baseado nas machambas estatais e cooperativas de
produção e consumo). Daí então encontramos nesta revista artigos como “A questão agrária
em Moçambique”, de Bridget O'Laughilin, o artigo de Mackintosh sobre a comercialização
do milho da Alta Zambézia696 ou mesmo o artigo de Judith Head sobre a Sena Sugar States697.
Estes estudos, que mais do quaisquer outros, reflectiam nitidamente esta característica do
trabalho de investigação do CEA, de subordinar as suas prioridades de pesquisa às prioridades
políticas da FRELIMO para o desenvolvimento rural de Moçambique. Como afirmaram os
investigadores do CEA, no seu texto sobre as estratégias de pesquisa do CEA, “ a pesquisa do
Centro sentiu a necessidade de responder directamente, através da sua escolha dos problemas
às questões cruciais que a FRELIMO teria que confrontar na implementação da sua estratégia
da transição [ socialista]”.698

694
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº8, 1990.
695
Ibidem, nº3, 1981.
696
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº 4, 1983.
697
Ibidem, nº2. 1980
698
Vide, CEA. Strategies of Social Research in Mozambique”, Review of African Political Economy nº 25,
1982, p.29-39, p.35.
240

A tentativa de Ruth First de, através da revista, “construir uma economia política de
Moçambique699” privilegiando temas directamente ligados à transformação socialista da
produção, não permitiu de facto uma abordagem holística da sociedade, para além daquela
prometida pela economia política. Esta abordagem holística iria permitir por exemplo olhar
para a guerra pós-colonial em Moçambique, não só a partir dos seus factores externos, mas
também, e mais importante ainda, a partir das suas dinâmicas internas envolvendo assim
factores culturais, sociais, econômicos e políticos no interior do campesinato moçambicano.
Portanto, podemos então argumentar, que mesmo apesar de os seus fundadores reiterarem que
a revista utilizaria “um método interdisciplinar, tentando efectuar uma análise integrada da
sociedade moçambicana700”, a Estudos Moçambicanos não conseguiu reconhecer os méritos
de uma abordagem, “não-marxista”, ligada por exemplo aos estudos culturais, antropológicos,
da teoria da ordem social etc. Podemos até surpreender este exclusivismo no uso da análise
materialista da sociedade moçambicana, quando o reitor da UEM e fundador do CEA,
Fernando Ganhão, afirmava que “teoria da ordem social”, era “uma das teorias mais
reaccionárias da ciência social burguesa.701”

699
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1, 1980, (o “Editorial” foi escrito por Ruth First).
700
Vide, “Editorial”, Estudos Moçambicanos nº1, 1980.
701
Idem.
241

9. O TRABALHO CRÍTICO E POLITICAMENTE ENGAJADO DO CEA

9. 1 A emergência de Culturas Epistémicas no Centro: “Facções” e Versões Contestadas

Durante as entrevistas efectuadas aos investigadores do CEA, um dos tópicos mais


referenciados por estes, tinha sido, de facto, a relação de “complementaridade” (mas também,
como veremos, de “ambiguidade”), entre Aquino e Ruth, na liderança do CEA. Para a maior
partes dos entrevistados, o “motor” do CEA era encarnado pela figura de Ruth First. Foi
recorrentemente referenciado as suas capacidades de liderança e de organização do trabalho
de pesquisa e ensino no CEA. Dan O’Meara, por exemplo, não hesitou em reiterar que, “
todos no CEA, incluindo Aquino, claramente perceberam que era a Ruth quem comandava o
lugar, quem tomou quase todas as decisões e quem angariava a maior parte do dinheiro para
financiar os trabalhos do CEA”.702 Ana Maria Gentili, foi também uma das investigadoras que
destacou a capacidade de liderança de Ruth First, “ a Ruth First era uma pessoa que tinha uma
grande qualidade de investigadora, jornalista e uma grande capacidade de investigação e de
organização. Com ela não se brincava, tinhas que demonstrar que eras bom investigador, que
tinhas tudo terminado dentro dos prazos”.703

É ainda Teresa Cruz e Silva quem não deixa de reconhecer a mais-valia que tinha sido
a presença de Ruth First no CEA, “com Ruth First nós aprendemos o método, como trabalhar,
como interrogar (…) ela era organizada, metódica, sistemática, exactamente o oposto de
Aquino de Bragança”704. Os entrevistados, não deixaram também de relacionar a sua
“personalidade forte” com o aparecimento de ressentimentos e tensões entre os investigadores
do Centro, como também com outros departamentos de pesquisa e ensino da UEM. A
propósito, Teresa Cruz e Silva vai afirmar que, “ havia uns certos conflitos por causa da
personalidade dela. Ruth First, com aquele seu feitio e aquela sua maneira de comando, não
aceitava muito bem as pessoas da Faculdade de Letras, como também da Faculdade de
Economia”.705

702
Entrevista com Dan O'Meara.
703
Entrevista com Ana Maria Gentili, Junho, 2007.
704
Entrevista, Agosto, 2007.
705
Entrevista com Teresa Cruz e Silva, agosto, 2007.
242

E O’Meara vai ainda mais fundo afirmando que Ruth chegou ao ponto de conotar uma
provável posição contrária à sua, como um indicador de que o interlocutor não estava
suficientemente comprometido com o socialismo e a “linha de classe” da FRELIMO. Num
contexto de Moçambique profundamente politizado, um tipo de refutação com esta tinha
indubitavelmente um poder de intimidar qualquer um dos participantes. É de referir que não é
intenção deste estudo discorrer sobre questões de foro psicológico sobre a personalidade de
Ruth First, mas tão-somente, tentar compreender como o contexto social e político da
construção do socialismo em Moçambique e ao mesmo tempo da luta de libertação nacional
do ANC teriam jogado um papel fundamental na forma como esta investigadora levou a cabo
o seu trabalho na direcção científica do CEA. Não podemos assim separar a Ruth First,
activista política, membro do ANC e do partido comunista sul-africano de Ruth First
investigadora e directora científica de um Centro de investigação e pesquisa. Esta intelectual
procurou sempre conciliar o seu trabalho de pesquisa e ensino em prol da “revolução
moçambicana”, com os objectivos da sua luta como militante do ANC. João Paulo Borges
Coelho sintetizou de forma clara a influência destas duas personas de Ruth First quando
afirmou,

Dentro do CEA vão-se criando tensões quando chega a Ruth First em


meados de 79 e quando ela chega, ela entra como investigadora para
montar um projecto, mas que ela há-de ter trazido também uma
agenda própria relativamente a este núcleo acadêmico do ANC que se
criou aqui, uma espécie de actividade de contra-inteligência ou de
investigação da situação a partir de um ponto de observação muito
mais próximo da África do Sul706.

Dan O’Meara, investigador sul-africano, que juntou-se em 1981707 ao “Núcleo da


África Austral”, aludiu também a esta ligação entre o trabalho politicamente engajado de Ruth
na construção do socialismo em Moçambique.

Nós estávamos em Londres num aniversário para celebrar o 70º


706
Entrevista com o autor, agosto, 2007.
707
O´Meara, referiu que tinha sido convidado, em 1979 por Ruth First para trabalhar no CEA, mas devido aos
seus compromissos académicos na Universidade de Dar es Saalam, Tanzânia, só viria a fazer parte do CEA
em 1981.
243

aniversário de Yussuf Dadoo, na altura Secretário -Geral do Parido


comunista sul-africano. Joe Slovo e Ruth estavam lá. Ruth chama-me
à parte e pergunta-me se eu estava interessado em vir trabalhar para o
CEA. Ela explicou que ela tinha o apoio do presidente Machel e o
vice-presidente, Marcelino dos Santos e que o entendimento da
política e sociedade sul-africana, era vital para o sucesso do
socialismo em Moçambique708.

Ruth acreditava que o seu trabalho na direcção da pesquisa no CEA iria também
contribuir para a luta do ANC. Estando de facto num país independente e engajado numa
alternativa socialista, esta experiência política dos moçambicanos de gerir um país soberano
poderia ser instrutivo para os membros do ANC na luta clandestina e no futuro almejado de
uma África do Sul livre. O trabalho de pesquisa do Núcleo da África Austral iria também
produzir “inteligência política”, para o governo moçambicano e para o ANC709, uma vez que
Moçambique tinha assumido como sua a luta do povo sul-africano. A propósito desta ligação
entre pesquisa cientifica e luta política, O’Meara afirmou mais uma vez que Ruth First,

Também enfatizou que sentia que era importante que analistas do


ANC deveriam estar no CEA por duas razões. Primeiro, os problemas
que Moçambique enfrentava ofereciam uma “ante-estreia” útil que iria
ajudar-nos a ganhar uma experiencia útil nos tipos de problemas que o
ANC iria se confrontar depois que a África do Sul fosse libertada.
Segundo, ela disse que os intelectuais de esquerda estavam tão
acostumados a estar na oposição, e que era importante que nós
aprendêssemos a temperar o nosso criticismo natural com um
entendimento dos dilemas de estar no poder710.

Ruth First, conhecida nos corredores do CEA como “a dama de ferro711”, com a sua

708
Entrevista com o autor, agosto, 2007.
709
O’Meara mencionou a propósito que muitas das pesquisas realizadas pelo Núcleo eram usadas como fonte de
debate e discussão dentro do ANC sobre a evolução da sociedade sul-africana e, particularmente, as reformas
a serem introduzidas pelo governo de P.W. Botha. Entrevista com o autor, Julho, 2007.
710
Entrevista com O'Meara, agosto, 2007.
711
Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007.
244

capacidade organizativa e disciplina férrea, acabou sendo o “motor” desta instituição,


dirigindo a grande maioria dos projectos de investigação como também do Curso de
Desenvolvimento. Aquino de Bragança iria ter um papel mínimo na definição, formulação,
organização e aprovação da pesquisa. O “capital intelectual” de Aquino de Bragança estava
mais ligado ao seu volume de conhecimento e experiência sobre a história dos movimentos de
libertação em África, como também na sua proximidade com os “bastidores” do poder
político. Daí então Isabel Casimiro afirmar que,

A morte da Ruth teve um impacto muito grande porque o Aquino era


uma pessoa maravilhosa, mas ele não tinha capacidade de gestão, de
organização. Ele era uma pessoa de conseguir contactos, para fazer
diplomacia junto do partido e lá fora. Era uma pessoa para conversar
conosco aqui, para nos ouvir. O assassinato da Ruth foi terrível,
porque ela era uma pessoa que tinha todas essas tarefas organizativas
em termos de pesquisa712.

E de facto, esta predominância de Ruth First na direcção científica do CEA iria, de


alguma forma, ter repercussões na relação profissional com o director do Centro. Dan
O’Meara ilustrou muito bem a fonte destas clivagens, quando afirmou que,

Aquino frequentemente dizia que tinha uma relação problemática com


Ruth First. Ele respeitava profundamente o trabalho dela e as análises
levadas a cabo pelo CEA, mas ele sentiu que ela tinha lhe levado
demasiado poder e melindrava-se, várias vezes, com o tratamento
brusco em relação à sua pessoa e às suas sugestões.713.

No seu trabalho de direcção da pesquisa através principalmente do Curso de


Desenvolvimento, Ruth First confiou quase totalmente num pequeno “circulo interno” de
pesquisadores do CEA. Três destes se sobressaem: Marc Wuyts, Bridget O'Laughilin e Kurt

712
Entrevista, agosto, 2007.
713
Entrevista com Dan O´Meara, julho, 2008.
245

Habermeier. No entanto, este último iria deixar o CEA mais cedo, nos princípios dos anos
1980.

De uma forma geral, Marc Wuyts e Bridget O´Laughlin eram de longe a grande
influência intelectual de Ruth First. Quer dizer, enquanto Ruth First fornecia a linha política e
disciplina (muito do respeito nutrido por ela advinha disso), a análise da sociedade
moçambicana vinha fundamentalmente de Marc Wuyts e Bridget O´Laughlin. Marc, como
macro-economista, segundo Luís de Brito, a “alma teórica do CEA,714fornecia um
entendimento coerente sobre a evolução econômica de Moçambique e dos problemas criados
pela economia colonial, como também pelas políticas da FRELIMO.

Bridget O´Laughlin, antropóloga, providenciava à Ruth um entendimento convincente


de como a sociedade rural funcionava. Helena Donly, agrónoma inglesa, que no entanto
chegara ao Centro mais tarde, em 1980. Era de facto, o “trio715” Ruth/Marc/Bridget, quem em
última instância, decidia sobre a natureza da pesquisa e ensino que o CEA deveria
desenvolver, principalmente no que concernia ao Curso de Desenvolvimento. Ruth First deu a
estes dois investigadores uma nítida preeminência e confiava-os plenamente. Foi então a este
três investigadores que Isabel Casimiro se referiu quando a certa altura, durante a entrevista,
disse: “os temas a pesquisar eram discutidos por todos, mas era o “núcleo duro” quem
dirigia716.

Uma segunda “facção,” a Oficina de História, que esteve organizada a volta de


pessoas como Aquino de Bragança, Jacques Depelchin, Ana Maria Gentili, Valdemir
Zamparoni e o grupo dos jovens historiadores moçambicanos, Luís de Brito, Teresa Cruz e
Silva, Marco Teixeira, Yussuf Adam, Alexandrino José e Isabel Casimiro. Este grupo
procurava afastar-se do controle de Ruth First, onde muitos destes investigadores achavam
que Ruth abusava do seu poder e se ressentiam da sua atitude em relação ao Aquino de
Bragança. Como afirmou Judith Head, “Ruth não queria saber da Oficina de História, o seu
trabalho era o Curso de Desenvolvimento717”.

A criação da Oficina de História, pode então ser lida como uma forma de Aquino de

714
Entrevista com o autor, março, 2010.
715
Poderíamos também acrescentar a agrónoma inglesa Helena Donly, não obstante ter chegado ao Centro muito
mais tarde, em 1980. Donly também providenciou à Ruth, um melhor entendimento da agricultura em
Moçambique.
716
Entrevista com Isabel Casimiro, agosto, 2007.
717
Entrevista com a autora, agosto 2007.
246

Bragança garantir um espaço de manobra, (fora da alçada de Ruth), nas escolhas dos objectos
de pesquisa do Centro e parafraseando Pierre Bourdieu, se concentrar na produção de capital
simbólico, ao fazer também pesquisa científica. No mesmo diapasão, os pesquisadores do
“Núcleo da África Austral”, que sob iniciativa de Ruth First produziram “dossiers” sobre a
análise política na África austral, para serem distribuídos aos membros do governo, lutavam
constantemente para adquirir um espaço próprio, livre do comando de Ruth First e, onde
pudessem desenvolver outro tipo de abordagens sobre África Austral, com particular
incidência para as questões sul-africanas.

Uma terceira e última “facção” era formada pelos restantes investigadores do CEA.
Investigadores como Robert Davies, Dan O´Meara, Sipho Dlamini, Gottfried Wellmer e
Alpheus Manghezi e Yussuf Adam que constituíam o “Núcleo da África Austral”. Em relação
a este grupo, a sua principal luta estava relacionada com a garantia/manutenção de um espaço
de pesquisa próprio e que não tivesse o controlo de Ruth First. O depoimento de O´Meara é
elucidativo desta tensão,

Nós sentíamos, (O Núcleo da África Austral) que Ruth não seguia as


questões políticas sul-africanas tão profundamente como nós
seguíamos e que o entendimento dela sobre alguns aspectos da luta na
Africa do sul não estava actualizado, o que se resumia em repetir uma
linha política em vez de uma análise detalhada da evolução de vários
aspectos da luta dentro da Africa do Sul718.

É assim, que o CEA pode então ser definido como um “sistema cognitivo” que
incorporava distintas “culturas epistémicas”, quer dizer, espaços de lutas, tensões criativas719
onde diferentes pessoas e grupos com distintas praticas, crenças, estratégias, objectos de
pesquisa e metodologias, cujos interesses eram por vezes distintos720 (sem contudo ab-rogar
do objectivo primordial de apoiar, através da produção de conhecimento socialmente
relevante, para o desenvolvimento socialista de Moçambique no contexto da África Austral).

718
Entrevista com Dan O’Meara, julho, 2009.
719
Termo usado por João Paulo Borges Coelho, durante a entrevista, por mim efectuada. Maputo, Agosto, 2007
720
Vide, de BRITO, Ângela Xavier. Rei morto, rei posto? As lutas pela sucessão de Pierre Bourdieu no campo
académico francês. Revista Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002, nº19, p.5-19.
247

9.2 Intelectuais orgânicos e a legitimação do Estado

Como vimos anteriormente, os pesquisadores do CEA, em vários lugares e de formas


distintas, estiveram engajados na mudança social, e acreditaram na via socialista proposta pela
FRELIMO. Alguns deles tinham tido já nos seus países experiências de luta pela emancipação
social, estavam ligados a campanhas contra o colonialismo português, como também
consideravam-se de “esquerda”, “progressistas” e “anti-imperialistas”.

Muitos destes pesquisadores souberam combinar de forma única um trabalho, avant la


lettre, de “advocacia” política com o ofício de pesquisador. Ruth First é, de facto, um
exemplo paradigmático. Nos seus anos de exílio na Inglaterra, esta intelectual trabalhou em
campanhas políticas e de consciencialização sobre a necessidade das independências das ex-
coloniais portuguesas, onde também conduziu pesquisa sobre as dinâmicas de integração
econômica na região austral de África. Em Moçambique já sob um novo contexto pós-
colonial e da possibilidade da construção de um sistema alternativo à hegemonia capitalista,
estes acadêmicos e pesquisadores iriam se engajar e apoiar à causa da “revolução
moçambicana” e ao projecto socialista da FRELIMO da construção de uma nova sociedade e
do “homem novo”.

Por outro lado, o trabalho científico do CEA procurou sempre responder aos interesses
das várias instituições estatais, como também colocar questões chaves relevantes para a
emancipação de toda a África Austral, nomeadamente nas lutas de libertação nacional que se
desencadeavam na região austral, com particular destaque para a África do Sul, Zimbabwé e
Namíbia. Os dirigentes do CEA partiam do pressuposto de que um estudo profundo e
sistemático da “anatomia do poder branco da África do Sul “era vital", tanto para o sucesso do
socialismo em Moçambique, como também para o êxito da luta política do ANC. Só assim,
poderemos compreender, por exemplo, a preocupação de Ruth First em ter no CEA,
pesquisadores sul-africanos e membros do ANC721.

Como podemos depreender, a partir dos vários “Relatórios de Investigação”


apresentados neste estudo, os investigadores do CEA sempre procuraram aliar as suas

721
Dan O'Meara, na entrevista por mim realizada, lembrava-se claramente de Ruth First lhe ter dito dizer,
(quando lhe convidou em 1981 para vir trabalhar no Centro) que “ o nosso grupo iria produzir “inteligência
política” para o governo moçambicano e para o ANC”.
248

prioridades de pesquisa às prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento


socialista de Moçambique. Daí então a produção de estudos focalizados (alguns destes, como
vimos, directamente solicitados por vários órgãos do Estado, como ministérios, direcções
nacionais, presidência da república, etc.), sobre a transformação socialista da produção,
socialização do campo, construção das aldeias comunais, reestruturação da rede de transportes
na África Austral, dentre outros.

Era, de facto, um Centro focalizado aos objectivos concretos da luta, onde o trabalho
intelectual era subsidiário dos objectivos dessa mesma luta e não o inverso. E foi
precisamente aqui nesta ligação entre trabalho intelectual e “revolução” que residiu a maior
parte das críticas dos seus detractores, (principalmente de Christian Geffray e Michel Cahen).

Michel Cahen, deu o exemplo dos relatórios de “difusão restrita” do CEA (que
segundo ele eram “controlados” pela FRELIMO por razões políticas) para mostrar que o CEA
se encontrava “refém” do poder722. De facto, as publicações saídas fundamentalmente,
durante os vários “Cursos de Desenvolvimento” tinham duas características. Eram por um
lado trabalhos que seguiam uma dinâmica interna do próprio “Curso”, e por outro lado havia
também pesquisas que eram “encomendadas” por vários órgãos do Estado, como ministérios,
direcções províncias, presidência da República etc. Alguns destes trabalhos, apareceram com
o carimbo de “difusão restrita”, mas como iremos discutir mais adiante, os conteúdos destes
relatórios de pesquisa, não tinham nada que pudesse ameaçar a soberania do Estado ou algum
tópico “tabu” para o poder. Não poderíamos deste modo, falar num organismo do Estado com
mecanismos de censura no concernente ao que era produzido ou publicado. No entanto, não
podemos descurar do facto que o CEA esta situado dentro de num campo de relações de
poder, onde ao mesmo tempo que lutava por conquistar um espaço onde pudesse exercer um
trabalho crítico, estava também engajado na legitimação de um projecto que se pretendi
hegemónico na sociedade: a tentativa da construção do socialismo em Moçambique.

O binómio saber/poder de Michel Foucault poderá ser útil aqui para clarificar melhor
este situação. Assim, para este o poder não apenas reprime, censura, exclui, controla e pune,
mas também produz realidades, campos de saber, objectos e rituais de verdade723. Este aporte
teórico permitirá compreender as dinâmicas de pesquisa do CEA e como essa mesma

722
Vide, CAHEN, Michel. Publicações do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane.
Politique Africaine, II (5), Fev. 1982, pp.113 – 115, Mimeo (Tradução ano oficial do texto feita por Calisto
Pachaleque do CEA, Abril de 1997).
723
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
249

produção científica se relacionava com o contexto social e político do Moçambique pós-


colonial e com a estratégia do desenvolvimento socialista da Frelimo. Pois que, como
asseverou este pensador,

O conhecimento científico estaria primariamente estruturado pelos


limites do que é possível dizer, em um dado ponto histórico, a respeito
de um sistema particular de discurso. O conhecimento científico
repousaria sobre um suporte institucional, sendo reforçado e
acompanhado por outros estratos e práticas sociais, tais como a
política, pedagogia, o sistema de comunicação do conhecimento,
incluindo as instituições de produção do saber, sistemas de
editoração.”724

É no entanto, o antropólogo francês Christian Geffray quem elaborou mais sobre a


ligação entre o CEA e o poder725. Christian Geffray, que escreveu também um livro sobre a
guerra civil em Moçambique, “a convite da Frelimo726”, fez uma critica ao trabalho do Centro
de Estudos Africanos, pois que segundo o autor, houve uma submissão dos objetos de
pesquisa às prioridades definidas pela linha política do Partido-Estado. Christian Geffray teve
uma posição peremptória em relação ao trabalho do CEA. O antropólogo francês via esta
instituição simplesmente como uma espécie de braço intelectual do poder, onde o seu trabalho
se resumia em “caucionar” cientificamente a ideologia do partido. Afirmava ainda Christian
Geffray que o trabalho científico do Centro estava assente na “ideologia da página branca”;
quer dizer, os seus investigadores, ao analisarem o campesinato moçambicano, não tinham
prestado a devida atenção às especificidades culturais deste grupo social727.

Uma limitação da crítica de Christian Geffray, liga-se ao facto de não conseguir


perceber as mudanças fundamentais que o trabalho científico do CEA sofreu, desde a sua
fundação em 1976 até ao momento da sua vinda a Moçambique (1984-85). Um contexto do
724
ALVARENGA, Lídia. Bibliometria e arqueologia do saber de Michel Foucault - traços de identidade
teórico-metodológica. s/d., Disponível em: « (http://www.ibict.br/cionline/270398/-22k)», .p.15, Acesso em
março, 2007.
725
Vide, GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d’une
meconnaissance scientifique. Politique Africaine nº 29, 1988.
726
CABAÇO, op. cit., p.245.
727
Vide, GEFFRAY, Christian. Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d’une
meconnaissance scientifique. Politique Africaine n.29, 1988.
250

recrudescimento da guerra contra a RENAMO, do escalar da crise econômica e que culminou


com a assinatura dos acordos de Nkomati e dos seus efeitos na rede clandestina do ANC em
Maputo. Por outro lado, esta situação levou a que Christian Geffray não conseguisse
destrinçar uma diferença pequena, mas vital, entre um “órgão do Estado” e uma instituição de
pesquisa comprometida em apoiar os objectivos desse Estado. Um órgão do Estado, estaria
assim, directamente sob alçada de um comando legalizado, estruturas de coerção e
mecanismos desse Estado. Não era claramente o caso do CEA (pelo menos durante os
primeiros 10 anos após a independência nacional).

A proposta analítica de António Gramsci pode aqui ser mais uma vez útil para
esclarecer melhor esta questão. Como sabemos, na óptica deste autor, havia uma diferença
nítida entre “hegemonia política”, um conceito leninista que implicava a ditadura do
proletariado, da “hegemonia ideológica”, que significava em Gramsci, uma “liderança
intelectual e moral" conseguida através do “consentimento ideológico das massas”728. Neste
sentido, os investigadores do CEA seguiram a linha política da FRELIMO, não porque eram
“coagidos” (como aconteceria se o CEA fosse de facto um órgão do Estado), mas porque
“consentiram espontaneamente”, uma vez que, parafraseando António Gramsci, eles tinham
“internalizado” o projecto hegemónico da FRELIMO729, ou pelo menos a interpretação que se
dava a esse projecto frelimista, e o seu trabalho crítico servia, em última instância como um
factor legitimador do Estado. Só deste modo poderemos então compreender a “organicidade”
destes intelectuais. Daí Dan O’Meara, investigador do Núcleo de Estudos da África Austral,
reiterar,

Cada um dos pesquisadores empregados pelo CEA via o seu trabalho


“acadêmico” como profundamente, politicamente engajado. Nós todos
acreditávamos que tínhamos um compromisso com o socialismo
moçambicano e para a libertação da África do Sul e Namíbia, e tudo o
que nós fazíamos era moldado por isso730.

728
Vide, SALAMINI, Leonardo. Gramsci and Marxist Sociology of Knowledge: An Analysis of Hegemony-
Ideology-Knowledge. The Sociological Quarterly, vol. 15, nº 3, 1974, p. 359-380.
729
Realçamos aqui a ideia de “projecto”, como algo dinâmico, em construção e não propriamente de uma
“hegemonia” da Frelimo. É problemático afirmar que a Frelimo foi de facto hegemónica em Moçambique.
Vimos anteriormente que autores como OTTAWAY (1988), SCOTT (1988), CAHEN (1993), questionam até
a possibilidade do socialismo em Moçambique e de se conceber a Frelimo como um “partido de vanguarda
marxista-leninista”.
730
Entrevista com Dan O'Meara, julho, 2009..
251

Um outro indicador desta diferença entre “dominação” e “consentimento”, ou mesmo


entre poder coercivo do Estado moçambicano e a ideologia consensual da FRELIMO, que
levou a muitos destes investigadores a aceitarem a linha do partido, foi a revolta de alguns
investigadores do CEA contra a decisão do reitor da UEM de nomear Marc Wuyts para
“director científico” do CEA, que deveria ocupar o lugar deixado vago por Ruth First, após o
seu assassinato731. Uma situação destas, em que vários investigadores (nacionais e
estrangeiros), assinam uma petição contra a decisão de um superior hierárquico, seria
impensável nas estruturas do Estado e do Partido. Neste sentido, o Reitor não poderia
“coagir” os investigadores a aceitarem Marc Wuyts como novo director de investigação.
Estávamos no ano de 1982, e de facto a estruturação do CEA em facções, as tensões entre os
investigadores, derivada em parte pela postura de “dama de ferro732” associada à Ruth First,
mas também da percepção de alguns investigadores do CEA de que havia sido dada uma
ênfase excessiva num programa de pesquisa virado para a economia política, comandado pelo
“trio” (Ruth First, Marc Wuyts e Bridget O'Laughilin), e de uma o geral todo o contexto da
limitação da dissensão e da pesquisa sobre o ANC, levariam então a esta objecção em relação
a eleição de Marc Wuyts. Assim, é nomeada no seu lugar, principalmente pela vontade de
Aquino de Bragança, a investigadora moçambicana Isabel Casimiro. A percepção que Isabel
Casimiro teve na hora em que tomou posse como a nova directora científica, leva-nos
nitidamente a pensar na definição Bourdesiana do campo científico, dos seus actores, suas
tensões, disputas, capitais diversos, lutas pelo monopólio da autoridade e competência
científica733. Senão vejamos, “eu era nova, estava no meio de tubarões científicos, quer dizer
eram pessoas que tinham uma grande experiência de pesquisa e eu não tinha, mas eu tive que
fazer isso, e fiquei durante um ano”.734

Christian Geffray acabou assim fazendo uma leitura do CEA como se fosse uma
instituição de pesquisa homogénea e unívoca guiada pelo Partido/Estado. Não conseguindo
deste modo captar as diferentes e múltiplas (algumas vezes, conflitantes) “vozes” no interior
do Centro sobre temas ligados aos objectivos da pesquisa, metodologias, finalidades e formas
de engajamento político distintos. Por exemplo, o engajamento dos investigadores do “Núcleo
de Estudos da África Austral” (particularmente dos pesquisadores membros do ANC) ao

731
Entrevista com Dan O´Meara e Bridget O'Laughilin, agosto, 2007.
732
Nas entrevistas por mim realizadas, investigadores como Isabel Casimiro, Teresa Cruz e Silva, Calisto
Pachaleque e Alexandrino José, mencionaram este termo ao falar sobre Ruth First.
733
BOURDIEU, Pierre. A dissolução do religioso: Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
734
Entrevista com a autora, agosto, 2007.
252

projecto socialista em Moçambique, esteve baseado não somente num compromisso em


seguir a linha da FRELIMO, mas em avaliar, através de uma análise individual e colectiva, o
grau em que o partido e o governo moçambicano continuavam a avançar nos objectivos
políticos que eram em última instância, a luta clandestina do ANC e a libertação nacional da
África do Sul.

Só a partir desta lógica, poderemos então compreender a saída vertiginosa (ver


gráfico1) de grande parte destes investigadores com a assinatura dos acordos de Nkomati em
1984, uma situação que se ira manter definitivamente. Muitos destes investigadores olharam
para os “Acordos” como uma espécie de “traição735” do governo moçambicano a causa do
ANC que era a da libertação nacional da África do Sul, e uma vez que o trabalho político
clandestino deste movimento em Moçambique tinha sido interdito, acreditavam que não
restaria outra alternativa senão deixar o país. Como afirmara, O’Meara, “ a nossa lealdade
política primária era para o ANC e o nosso apoio a FRELIMO estava dependente da sua
relação com o ANC e a sua atitude para com a luta no interior da África do Sul”.736

Encontrávamos também uma outra diferença subtil entre alguns dos investigadores do
CEA, que vinham de meios acadêmicos que defendiam o “apoio crítico” e a análise a partir de
um marxismo não ortodoxo, como foi o caso, por exemplo de Marc Wuyts e de Bridget
O’Laughilin, mas também de alguns investigadores sul-africanos como Dan O’Meara, Davies
e Manghezi, que não tinham desenvolvido a sua maturidade intelectual dentro de um partido
comunista e de luta revolucionária. De outro lado, encontrávamos intelectuais como Ruth
First, profundamente influenciada pela socialização política e disciplina férrea, no interior do
partido comunista sul-africano. Foram então estas realidades que Christian Geffray e Cahen
não conseguiram captar quando analisaram criticamente o trabalho intelectual do CEA no
pós-independência e dentro do contexto da tentativa da construção do socialismo.

9.3 Engajamento Critico: Um Oxímoro?

No cerne destas assumpções críticas ao trabalho de investigação do CEA, estava


subjacente um dilema clássico das Ciências Sociais, nomeadamente se a pesquisa científica
deveria guiar-se por uma suposta “neutralidade à valores,” ou se pelo contrário deveria ser

735
Vide, MANGHEZI, Nadja. Amizade Traída e Recuperada. Maputo : Promédia, 2007.
736
Entrevista com Dan O'Meara, agosto, 2007.
253

“politicamente “ engajada, no sentido de levar em conta na produção do conhecimento,


questões políticas, éticas, sociais etc. Os proponentes da “neutralidade à valores”, defendem
que a pesquisa social é considerada como sendo eticamente e politicamente neutra, livre de
valores, objectiva e que desenvolve em termos da sua própria racionalidade e lógica
autónoma737.

As suas prioridades de pesquisa seriam então geradas internamente, e não pelas


necessidades práticas ou por considerações ideológicas. Para estes proponentes, à ciência
deveria ser garantida protecção da intervenção política. Esta é a posição por exemplo
defendida pelo clássico da sociologia, Max Weber738, mas também por autores
contemporâneos como Alan Bloom739 e Dinesh D´Souza740. No outro extremo encontramos a
perspectiva que nega a possibilidade da “neutralidade à valores” nas Ciências Sociais e
defende que a pesquisa social deve ser relevante para as preocupações políticas e sociais da
sociedade. Karl Marx pode ser considerado como um dos principais proponentes que desta
concepção de ciência, e mais recentemente, Karl Popper741. Llewellyn Gross742 e Jürgen
Habermas743.

Na visão do historiador sul-africano, Harold Wolpe (1985), ambas as perspectivas são


defeituosas, porque elas assumem que os tópicos da pesquisa são derivados numa forma pura,
pela “lógica” do trabalho científico. Elas diferem, segundo este autor, apenas no facto de que
a segunda perspectiva defende que a pesquisa científico-social produz as questões que
precisam de ser politicamente respondidas.

O problema com ambas abordagens, na óptica de Wolpe, é o seu falhanço de


compreender as condições para as quais todos nós somos sujeitos, que afecta a prática da
pesquisa social. Ainda segundo Harold Wolpe, teoria social e modos de investigação, não

737
Para uma discussão sobre estas duas formas de concepção da ciência, vide, WOLPE, Harold. The Liberation
Struggle and Research. Review of African Political Economy, nº 32, Abril, 1985, pp.72-78, e também,
ISAACMAN, Allen . Legacies of Engagement: Scholarship Informed by Political Commitment. African
Studies Review, vol. 46, nº. 1, Abril, , 2003, p. 1-41
738
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais. Sao Paulo : Ed. Unicamp,1992, (2vols).
739
BLOOM, Allan. The Closing of the American Mind. New York : Ed. Simon and Schuster, 1987.
740
D'SOUZA, Dinesh. Illiberal Education. Atlantic Monthly , nº 267, p.51-79, 1991.
741
Vide por ex., POPPER, Karl. O Mito do Contexto”, Lisboa: Ed.70, 2009.
742
GROSS, Llewellyn. Values and Theory of Social Problems. Applied Sociology:
Opportunitiesa nd Problems edited by Alvin Gouldner and S. M. Miller, New York: Free Press,1995.
743
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia”. Lisboa : Ed. 70, 1994.
254

menos do que os tópicos de investigação são condicionados pelo contexto social, como
também pela estrutura interna da ciência. O estabelecimento de teorias dominantes e práticas
de pesquisa, a selecção dos objectos da pesquisa e o conhecimento gerado são o resultado de
lutas dentro da ciência através do qual pressões extra-cientificas são mediadas.744

Daí então tornar-se necessário, ao analisar-se as dinâmicas de pesquisa do CEA,


abandonar a simples oposição entre autonomia da pesquisa social e a sua redução a uma
função ideológica. Neste sentido, a exigência de uma pesquisa “pura”, “objectiva “ e livre de
valores, não nos permitiria compreender todo um contexto social e politico que foi
determinante na definição das prioridades de pesquisa do CEA. Foi pois este “engajamento
crítico” do CEA na produção de conhecimento cientifico-social, que iria tornar o seu trabalho
relevante e importante para um audiência vasta, dentro e fora da academia. Por exemplo, o
discurso do Reitor da UEM Fernando Ganhão sobre os “problemas e prioridades na formação
em Ciências Sociais745”, reflectiu nitidamente esta escolha de um tipo de ciência social virada
para a mudança das condições sociais e tendo como paradigma teórico a análise marxista da
sociedade. Na mesma senda, o CEA, também advogou que a “pesquisa deveria ter um papel
imediato e activo no processo de transformação socialista746”. Afirmou ainda, que era preciso
“fazer da pesquisa social um instrumento prático para a revolução moçambicana.747”

Podemos assim encontrar três características principais deste “engajamento crítico” do


CEA (que estão intimamente relacionadas com as três inovações que a pesquisa do Centro
trouxe para o campo da pesquisa no pôs – independência, discutidas no capitulo três). Em
primeiro lugar, foi desenvolvido no Centro um trabalho de pesquisa, predominantemente
colectivo, que dava ênfase à “unidade entre a teoria e a prática748”, demonstrando, que as
“soluções” para desenvolvimento socialista de Moçambique residia numa ruptura com toda a
historiografia colonial e na escolha de uma nova “teoria para a mudança social749.” Este
binómio teoria-prática significava também uma ligação estreita entre ensino teórico e
pesquisa empírica da realidade sócio-econômica moçambicana. Era, por outro lado, uma

744
Vide, WOLPE, Harold. The Liberation Struggle and Research. Review of African Political Economy, nº 32,
p.72-78, Abril, 1985.
745
Vide, ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº4, 1983.
746
CEA. Strategies of Social Science Research in Mozambique. Review of African Political Economy, nº. 25
Set. - Dez., 1982, p. 29-39.
747
Idem.
748
GANHÃO, Fernando. Sobre a Formação em Ciências Sociais. Estudos Moçambicanos, nº4, 1998, p.9.
749
Idem, ibidem .
255

pesquisa colectiva que estava preocupada com a libertação nacional dos países da África
Austral sob domínio da África do Sul e do regime rodesiano. Daí então a grande divisa do
CEA ser o de ”analisar Moçambique no contexto da África Austral”.

Em segundo lugar, foi uma pesquisa com um carácter urgente e actual e que procurou
examinar as estratégias de desenvolvimento do Partido/Estado e a sua validade para a
transformação social de Moçambique. Uma pesquisa científica com um propósito de no final,
esse conhecimento produzido ter uma função prática na sociedade. Os relatórios “restritos”,
solicitados pelos vários órgãos do aparelho do Estado são um exemplo eloquente da escolha,
por parte do CEA, de uma ciência social aplicada e que pudesse reflectir sobre os desafios da
“transição socialista”.

E, por último, foi uma pesquisa que pretendeu ter um compromisso social com a
sociedade moçambicana como um todo: na formação de estudantes universitários e quadros
do aparelho do Estado, através do Curso de Desenvolvimento também na criação de formas de
disseminação e debate dos resultados das suas pesquisas, através da revista Não Vamos
Esquecer! e Estudos Moçambicanos, como também da distribuição em vários órgãos dos
Estados, como os ministérios, dos seus relatórios de investigação.

O grande desafio do CEA foi assim o de manter em aberto um espaço analítico para a
dúvida e de estar predisposto a olhar criticamente as causas e movimentos que eles apoiavam.
E aqui o papel deste “engajamento crítico”, não é unicamente o de revelar as injustiças do
imperialismo e no caso moçambicano da desestabilização promovida pelo regime do
apartheid, mas de formular questões cruciais de como este regime poderia ser aniquilado e
como construir uma sociedade socialista em Moçambique. Por outras palavras, não somente
apoiar o modelo de desenvolvimento proposto pela FRELIMO, mas de mostrar, quando for o
caso, os seus pontos fracos ou as suas incongruências.

Por outro lado, pesava também o facto de o CEA ter tido uma autonomia financeira
tanto em relação à universidade como ao governo moçambicano. Não foi preciso apoio
financeiro algum das instituições estatais para pôr a “máquina” da pesquisa e do ensino (no
Curso de Desenvolvimento), a funcionar. Estas instituições colaboraram de outro modo. Por
exemplo, em questões logísticas, e no caso particular do governo, fundamentalmente na
facilitação do trabalho de campo com as comunidades rurais, juntos às estruturas
administrativas locais, ou mesmo providenciando transporte para o contacto com as
comunidades rurais. Em termos financeiros o CEA, recebia apoio de instituições
governamentais mas também não governamentais estrangeiras. Segundo Teresa Cruz e Silva,
256

O CEA tinha dois financiadores privilegiados e incondicionais, que


estiveram sempre com o CEA, a SIDA750 e a SAREC751 que deu um
financiamento institucional que foi até aos tempos do Sérgio Vieira752.
O CEA recebia o dinheiro e fazia o que queria com dinheiro e não
prestava contas. A ideia da SAREC, que os suecos sempre foram
amigos da FRELIMO; a ideia da SAREC era permitir que houvesse
uma instituição que desempenhasse um papel pivô na transformação
da visão do que eram as Ciências Sociais e principalmente permitir
que houvesse uma investigação e sem imposição de temas de
pesquisa753.

Isabel Casimiro, acrescenta ainda,

Era o Centro que geria os seus dinheiros e as suas pesquisas, não


precisava reportar à reitoria e tinha controlo sobre os seus fundos. O
dinheiro estava no Centro. Isso foi uma das coisas que Ruth First
conseguiu com seu capital social e o Aquino também. E havia
dinheiro para capacitação, para a pesquisa depois isso deixou de
acontecer anos 90754.

Foram então todas estas características (a presença de investigadores com sentido


critico, autonomia financeira do Centro em relação ao governo e a universidade), que
tornaram o trabalho de investigação do CEA, no pós-independência, único e que deveria ser

750
SIDA – Swedish Internacional Development Cooperation Agency (Agência internacional Sueca para o
Desenvolvimento Internacional)
751
SAREC – Swedish Agency for Research Cooepratiom with Developing Counties (Agência Sueca para a
Cooperação na Pesquisa com os Países em Desenvolvimento.
752
Sérgio Vieira, Coronel na reserva e membro do “núcleo duro” da FRELIMO, tornou-se director do CEA,
depois da morte de Aquino de Bragança em 1986. Fica no seu lugar Mota Lopes, que era director-adjunto, e
nos finais dos anos 1980, a FRELIMO nomeia Sérgio Vieira como director. Este período pós- 1990, como
sabemos, não faz parte do escopo de análise desta Tese. Fica assim uma divida para um posterior estudo sobre
a fase mais contemporânea da historia intelectual do CEA.
753
Entrevista com a autora, agosto, 2007.
754
Entrevista com a autora, agosto, 2007.
257

visto não como um fim em si mesmo, mas como um ponto de partida para a investigação
científica755. Quer dizer, o CEA começava por apoiar e fazer das directivas econômicas e
sociais do partido FRELIMO, as suas prioridades de pesquisa756 e, no final, acabava pondo
em questão aquelas políticas, quando os resultados das suas pesquisas empíricas
demonstravam os equívocos quer na concepção quer na aplicação das mesmas. Não obstante
sabermos, que havia também limites impostos pelo contexto social e político e que
estruturavam a formação discursiva do CEA. Pois que como assegurou Michel Foucault,

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, seleccionada, organizada e redistribuída por certos
números de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade757.

Assim, o paradigma da economia política marxista que o CEA (fundamentalmente


através do Curso de Desenvolvimento), acabou sendo mais “economicista” que “politico”,
pois o CEA nunca se propôs a abordar questões relacionadas por exemplo com uma análise
empírica na realidade moçambicana sobre “como aqueles que governam, governam? Ou
mesmo “como os dominantes e os dominados percebem essa mesma dominação? Poderíamos
também incluir o tema sobre o conflito armado contra a RENAMO. Como sabemos, para esta
instituição como também para o partido no poder, a RENAMO era vista unicamente como
uma força desestabilizadora criada fora de Moçambique.

Durante este período da “transição socialista”, era de facto, improvável a discussão,


nos círculos acadêmicos moçambicanos, a existência de uma “guerra civil” em Moçambique,
ou mesmo dos factores internos associados, por exemplo, àquilo que Geffray com a
publicação d´A causas das Armas em 1990, se referiu como o descontentamento popular

755
Harold Wolpe, sociólogo sul africano e ativista anti-apartheid, defendia esta posição. Ele insistia que o
trabalho intelectual e investigativo tinha que produzir conhecimento para a política, sem, no entanto desligar-
se da investigação objetiva e cientifica do mundo. Ver, ALEXANDER, Peter. Harold and History. Keynote
delivered at the Harold Memorial Trust’s Tenth Anniversary Colloquium, “Engaging silences and unresolved
issues in the political economy of South Africa”, 21-23 de setembro 2006, Cape Town, South Africa.
756
Christian Geffray tinha também chegado a este argumento porém este autor não conseguiu captar na sua
totalidade as duas facetas do trabalho crítico do CEA.
757
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo :Loyola, 1996.
258

advindo da ineficácia das políticas agrárias da FRELIMO no campo e da desconsideração


pelas tradições locais e estruturas de autoridade758. Podemos então argumentar, que o CEA
permanecia ainda “refém” de uma “ordem do discurso”, que implicava procedimentos de
exclusão e interdição do que deveria ser dito, onde ainda existiriam os tabus, o direito
isentado ou absoluto de um sujeito particular ou de um grupo. Enfim, uma produção cientifica
que tinha sido “estruturada pelos limites do que era possível dizer, em um dado ponto
histórico.759”

Como afirmou Michel Foucault (1981), o poder não apenas reprime, censura, exclui,
controla e pune, mas também produz realidades, campos de saber, objectos e rituais de
verdade.760 A produção científica do CEA durante o período de 1976-1986, não pode assim
ser analisada e compreendida desligada do seu contexto social, político e econômico. Os seus
produtores, parafraseando Gramsci, “consentiram”, de facto, o projecto hegemónico da
FRELIMO da construção de uma alternativa socialista em Moçambique e, a partir daí, as
prioridades definidas ao nível político tornaram-se também prioridades da pesquisa, embora,
não raro, os resultados (como vimos ao longo deste trabalho), questionassem aspectos
específicos e concretos de tal política. Pode-se então dizer que esta instituição de pesquisa e
ensino, acabaria por funcionar mais como um leal e responsável crítico do governo do que
como um agente autónomo de mudança radical.

758
GEFFRAY, Christian. A Causa das Armas – Antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Porto:
Afrontamento, 1991.
759
ALVARENGA, Lídia. Bibliometria e arqueologia do saber de Michel Foucault - traços de identidade teórico-
metodológica, Disponível em: (http://www.ibict.br/cionline/270398/-22k, , s/data, .p.15
760
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
259

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando Moçambique se tornou independente em 1975, o partido no poder, a


FRELIMO, tentou reestruturar e redefinir uma nova sociedade, livre da opressão colonial e
guiada por objectivos relacionados à construção do Estado-Nação moderno. Uma das
prioridades da FRELIMO foi então, a tentativa, de “destradicionalização761” do mundo social,
que se reflectiu no combate aos líderes “tradicionais”, práticas religiosas, ritos de iniciação,
estatuto subordinado da mulher, bem como na extinção de todo o aparelho colonial
“retrógrado”, para que uma nova sociedade liderada pelo homem novo pudesse emergir. Por
outro lado, o “projecto modernizante” da FRELIMO propunha também uma profunda reforma
agrária, com a proibição da propriedade privada e a introdução de cooperativas de consumo e
produção colectiva. Estávamos assim em presença de uma tentativa de constituição de uma
nova ordem social. Como observou Carlos Serra, “trata-se para os camaradas da utopia, de
fazer tábua rasa do passado, de destradicionalizar a colonização e de descolonizar a tradição
[...] se na era colonial o objectivo central era o de gerir corpos úteis produtores de matérias-
primas, agora o objectivo central é de gerir mentalidades revolucionárias produtoras de uma
sociedade nova”762.

O papel das Ciências Sociais para a “reconstrução nacional” se pôs também com a
maior acutilância nesta fase ”revolucionária”. A FRELIMO defendia uma ciência social
armada com a teoria do marxismo-leninismo, que privilegiasse a teoria da transformação
social e excluísse peremptoriamente, a “teoria da ordem social”, encarada como “reaccionária
e burguesa.763” Fernando Ganhão, reafirmava assim o que era na altura a “visão de mundo”
do poder político em relação ao modelo de sociedade a construir. Todos os sectores da
sociedade, e o meio acadêmico não era excepção, teriam que unir forças para um único
objectivo: a construção de um Moçambique socialista. Vale a pena voltar a mencionar as

761
Des-tradicionalização é usado aqui no sentido de uma tendência a romper com o passado colonial e com os
valores considerados retrógrados” tanto as herdadas do poder colonial como também das tradições
“obscurantistas” e “supersticiosas” das comunidades locais. Veja, SERRA, Carlos. Novos combates pela
mentalidade sociológica. Maputo : Livraria Universitária, 1997, p.97.
762
SERRA, op.cit, p.97.
763
Veja, GANHÃO, Fernando. Sobre a formação em ciências sociais. Estudos Moçambicanos, nº 4, CEA,
Maputo, 1983. p.7 (Fernando Ganhão, primeiro Reitor da Universidade Eduardo Mondlane. Este texto é o
“discurso de abertura da Reunião de peritos sobre os problemas e prioridades na Formação em Ciências
Sociais na Africa Austral”, organizado pela UNESCO e CEA, em Agosto de 1982.
260

palavras do Reitor,

Numa universidade como a nossa pretende ser, numa sociedade


em transição para o socialismo, os problemas das Ciências
Sociais são bastante diferentes. A universidade é uma estrutura
organizada para produzir conhecimento; para a formação de
estudantes e professores em métodos científicos; para a
produção de intelectuais que estejam decididos a engajar-se no
processo prático de transformação social. No caso de
Moçambique, capazes de construir e consolidar a aliança com
outras classes e grupos, as bases duma sociedade socialista.764.

O desenvolvimento do ensino e pesquisa em Ciências Sociais no novo Moçambique


implicou na sua génese, uma tentativa de romper com o sistema de ensino colonial e das suas
limitações. O sistema de educação colonial, porque baseado em princípios discriminatórios,
racistas e elitistas, esteve mais ao serviço dos filhos dos colonizadores portugueses do que da
maioria africana. A fundação da primeira Universidade em Moçambique em 1962, data de um
tempo onde o próprio sistema colonial começava a ruir, abalado pelo desabrochar dos
movimentos anti-colonialistas e das lutas pelas independências nacionais africanas. No fim do
sistema colonial, como vimos ao longo do estudo, mais de 90% da população moçambicana
não tinha tido nenhum acesso à educação formal765. Este facto pode nos ajudar a compreender
melhor os constrangimentos que os “revolucionários” da FRELIMO se depararam no
processo de transição socialista e na tentativa da construção do Estado-Nação.

Com a independência nacional, a educação iria ser concebida como instrumento


fundamental para reverter os constrangimentos da herança colonial, de resgatar a dignidade
do povo moçambicano, a sua cultura e, ao mesmo tempo, dar sustentação ao projecto
sociopolítico da FRELIMO766. Como vimos, por exemplo, através da criação da Oficina de
História, era preciso de um lado reescrever a “verdadeira” História de Moçambique, onde
africanos não seriam mais “objectos”, mas sim sujeitos activose onde através da experiência

764
Ibid.loc.cit.p.12
765
BUENDIA, Miguel. Educação Moçambicana – História de um processo: 1962-1984. Maputo: Livraria
Universitária, UEM, 1999, p.218.
766
Ibidem, p.223.
261

da luta de libertação armada construiriam uma História “revolucionária” e dignificante767.

A própria fundação da Oficina de História, por Aquino de Bragança teve como


objectivo também de ir para além de um marxismo abstracto, e assim fazer uma reflexão
crítica sobre a história da FRELIMO, “uma tentativa de ir mais fundo numa certa concepção
da história “oficial” da FRELIMO”768, uma interrogação, um contacto com os antigos
combatentes das antigas zonas libertadas de Cabo Delgado, para que a partir dessas narrativas
orais se pudesse “usar o passado769” de forma revolucionária.

O que implicava ir para além de um “passado útil” para o orgulho e dignidade dos
moçambicanos, mas que fosse útil na estratégia do desenvolvimento socialista, tendo agora
como sujeito activo da história, os “operários e camponeses”, que tinham sido “silenciados”
pela historiografia colonial. A universidade, neste período de transição socialista, e mais do
que nunca nos primeiros anos da independência, também tinha um papel decisivo, tanto como
formadora de uma nova mentalidade, do “homem novo”, como também na produção de
conhecimento, de soluções para a transformação das condições sociais dos moçambicanos.

O CEA iria, de facto, assimilar profundamente este princípio marxista da


“transformação social” e do carácter urgente da solução dos problemas sociais770, fazendo
então emergir no contexto moçambicano uma nova forma de pesquisa social, com o
desenvolvimento da sua primeira pesquisa colectiva, que foi o estudo, “A Questão
Rodesiana”. Mesmo que este estudo não possa ser considerado como a melhor produção
científica do CEA, uma vez que, nenhum dos seus investigadores na altura, era especialista
em assuntos ligados à realidade Zimbabweana, tentamos mostrar, que mesmo assim, “A
Questão Rodesiana” teve o condão de mudar radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro e
permitiu a emergência de um novo campo da pesquisa no pós-independência, ao introduzir
três inovações: (1) uma abordagem no “actual” (sem contudo deixar de levar em consideração
as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história como tal; (2) uma mudança de uma

767
A Frelimo não fez menção de forma insistente ao passado pré-colonial, diferentemente por exemplo de alguns
líderes africanos, como Senghor, Nyerere que glorificavam uma África, “tradicional”, comunitária, solidária,
onde não existiriam conflitos de qualquer ordem. O novo poder político em Moçambique apelou mais por um
projecto modernizante, que procuraria construir o “homem novo” e uma sociedade “socialista sem exploração
do homem pelo homem.”
768
Idem.
769
RANGER, Terence. “Toward a Usable African Past,” in FYFE, C.H. (ed.) African Studies since 1945: A
Tribute to Basil Davidson. London: Longman, 1976, p. 28-39.
770
Em alusão à máxima de Marx, de que não devemos satisfazer-nos em interpretar o mundo – precisamos
ajudar a transformá-lo. Vide, POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações, Brasilia: ed. Universidade de
Brasilia, 1972.
262

pesquisa individual para uma pesquisa colectiva; e (3) a introdução de um sentido de urgência
na pesquisa para responder a preocupações imediatas. Este último ponto, também significava
que o tempo para se fazer uma determinada pesquisa era restrito e que os resultados desta
tinham que se sujeitar a prazos muito claros.

A partir daí, o CEA iria se tornar na principal instituição de pesquisa e ensino (através
por exemplo do Curso de Desenvolvimento) em Ciências Sociais no pós-independência
trazendo para o contexto moçambicano não só na vanguarda na produção e difusão de
conhecimento científico, como também na construção de um novo método e abordagem
científica. E de facto, o paradigma da economia política e da análise de classe marxista
acabou sendo a principal referência teórica, fundamentalmente a partir do Curso de
Desenvolvimento (que como vimos, produziu a maior partes dos trabalhos científicos do
CEA), como também na liderança da pesquisa levada a cabo pelo “trio” dirigente do CEA:
Ruth First/Marc Wuyts/Bridget O’Laughilin. Um modelo teórico, diga-se de passagem, que
estava profundamente em sintonia com o projecto ideológico da FRELIMO da transformação
social rumo ao socialismo

Podemos então falar de uma dupla vinculação da maioria dos investigadores do CEA
a um contexto particular de Moçambique pós independente. Por um lado houve uma simpatia
geral com o projecto frelimista da construção de uma alternativa socialista para Moçambique,
e por ouro lado, houve também uma adesão, destes investigadores ao contexto intelectual do
paradigma da economia política marxista e da análise de classes, fundamentalmente através
do privilégio de uma ciência social aplicada focada nas questões da transformação social e das
condições de vida dos moçambicanos. Daí então, depararmo-nos logo depois da criação da
Oficina de História (que tinha como um dos seus objectivos principais construir de facto essas
narrativas do passado), a questão de saber “quem irá controlar o que a história771” é era uma
das preocupações centrais dos historiadores da Oficina de História772, o que implicava muita
apreensão por parte tanto do poder, como também do próprio CEA de quem controlaria essa
história.

A apreensão do poder em relação a quem deveria produzir a nova história, era de facto
devido ao objecto primordial deste empreendimento, que estavam directamente relacionados

771
Vide, Revista, NÃO VAMOS ESQUECER! nº1, CEA,1980.
772
Vide, JEWSIEWICKI, Bogumil. African historical studies – Academic knowledge as “usable past” and
radical scholarship. African Studies Review, vol.32, nº3, 1989, p.1-76.
263

com a questão da manutenção de uma “visão de mundo” que se ambicionava hegemónica773.


Pois que, como afirmou o sociólogo Richard Roberts, “as narrativas estatais, servem para
promover um sentido de poder de Estado e legitimação, e como consequência silenciar
leituras alternativas e narrativas do passado”. As alianças com o poder serviam tanto para
criar confiança institucional e assim participar mais directamente nos desafios da “transição
socialista”, como também para demarcar um espaço em que os investigadores do CEA
pudessem exercer, de forma autónoma, a crítica e a dúvida na análise do social. Bridget
O'Laughilin, dá-nos uma imagem desta articulação ao afirmar, “quando nós íamos ao campo,
nós não tínhamos um mandato do partido. Quando estávamos a fazer investigação as pessoas
pensavam que nós vínhamos do governo e nós repetíamos sempre: não somos do governo.”774

O grande desafio do CEA foi assim o de manter em aberto um espaço analítico para a
dúvida e de estar predisposto a olhar criticamente as causas e movimentos que eles apoiavam.
E aqui o papel deste “engajamento crítico”, não é unicamente o de revelar as injustiças do
imperialismo e, no caso moçambicano da desestabilização do regime do apartheid, mas de,
colocar questões cruciais para o desenvolvimento socialista de Moçambique e da eliminação
do apartheid na África do sul. E, foi de facto esta característica, que tornou o trabalho de
investigação do CEA, no pós-independência, sui generis e, que deveria ser visto, não como
um fim em si mesmo, mas como um ponto de partida para a investigação científica775. Quer
dizer, o CEA fazia das directivas econômicas e sociais do partido FRELIMO, as suas

773
O projecto político da Frelimo nunca foi absolutamente hegemónico (pelo menos no sentido gramsciniano do
termo).Como sabemos para Gramsci, Hegemonia envolvia uma combinação de liderança (ou direção moral,
política e intelectual) com dominação, onde estaria presente também uma supremacia exercida através do
consentimento e da força, da imposição e da concessão, de e entre classes e blocos de classes e fracções de
classe. A tentativa de construção do socialismo em Moçambique pela Frelimo, estava mais assente na
“dominação” e “coerção” do que propriamente no “consentimento espontâneo das massas”, basta para isso
lembrar, as rusgas, os campos de reeducação e a guerra civil. Para mais, os projectos nacionais, mesmo no
concernente ao controlo social ou da história, nunca são hegemónicos, pois que as narrativas estatais
estimulam o aparecimento e desenvolvimento de narrativas contra - hegemônicas. O exemplo da guerra civil
em Moçambique é eloqüente deste argumento. Para uma leitura mais atenta deste conceito na perspectiva
gramsciniana, vide, GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo: Civilização
Brasileira,2004; FATTON, Robert. Gramsci and the legitimization od the State: The case of the Senegalese
Passive Revolution. Canadian Journal of Political Science, vol.19, nº.4, 1986; SANTOS, João de Almeida. O
princípio da Hegemonia em Gramsci. Col. Vega Universidade, Lisboa, s.d; SHUMWAY, David. Review:
Intellectuals in the University. Poetcis Today, Vol.11, nº.3, 1990, p.673-688; KARABEL, Jerome. Towards a
theory of intellectuals and politics. Theory and Society, vol. 25, nº.2, 1996, p.205-233.
774
Entrevista com Bridget O'Laughilin, agosto, 2007.
775
Harold Wolpe, sociólogo sul-africano e activista anti - apartheid, defendia esta posição. Ele insistia que o
trabalho intelectual e investigativo, tinha que produzir conhecimento para a política, sem no entanto desligar-
se da investigação objectiva e científica do mundo. Ver, ALEXANDER, Peter. Harold and History. Keynote
delivered at the Harold Memorial Trust’s Tenth Anniversary Colloquium, “Engaging silences and unresolved
issues in the political economy of South Africa”, Cape Town, South Africa, 12pp., 21-23, Setembro, 2006.
264

prioridades de pesquisa776 sem contudo deixar de analisar criticamente a sua pertinência e a


validade para o contexto moçambicano.

A criação das machambas estatais e colectivização dos camponeses, por exemplo, que
segundo a FRELIMO (profundamente influência pelo pensamento de Lenine, que acreditava
que o caminho principal dos camponeses para o socialismo era a formação de cooperativas de
produção777), iria não só permitir a criação de um proletariado rural, como também a
introdução da mecanização, foi sustentada também pelos investigadores do CEA que a
tornaram num dos temas mais pesquisados778. No entanto, o CEA acabou criticando a grande
ênfase nos grandes projectos e a subestimação do sector familiar. Encontramos esta posição
por exemplo, nos artigos de Marc Wuyts, “Camponeses e Economia Rural em
Moçambique779” e “On the Question of Mechanization of Mozambican Agriculture
Today780”. Como vimos ao longo deste trabalho, não obstante o CEA defender a posição da
FRELIMO das aldeias comunais como a base da transformação rural em Moçambique, os
investigadores advertiram ao governo, que a escolha de técnicas de mecanização não era uma
simples questão técnica, mas sim uma opção política, que afectava a estrutura social da
economia rural. Para o CEA, não existia um modelo qualquer de escolha de técnicas; pelo
contrário, a escolha envolvia uma investigação concreta da estrutura da economia rural, que
implicava necessariamente um estudo da crise da economia capitalista, a quebra da
comercialização e a redução do trabalho assalariado para os chefes de família camponesa781.

Encontramos também esta postura crítica do CEA, em relação, por exemplo, à


estratégia política de privilegiar as machambas estatais e a organização dos camponeses em
“aldeias comunais”. Os investigadores do CEA mesmo concordando na sua totalidade com
estas políticas agrárias, argumentavam que as orientações da FRELIMO para a agricultura,
subestimavam a real contribuição dos excedentes comercializados por parte da produção
familiar; e, que a política estatal incentivava a concentração da ajuda às cooperativas e
machambas estatais, mais do que a produtividade do sector familiar (para o CEA, o sector

776
Christian Geffray tinha também chegado a este argumento, porém este autor não conseguiu captar na sua
totalidade as duas facetas do trabalho crítico do CEA.
777
Vide, LENINE, Vladimir. A Questão Agrária. Lisboa:Avante! 1975.
778
Vide Quadro nº2.
779
Wuyts, Marc, op.cit, CEA, 1978, 31p.
780
Wuyts, Marc, op.cit, 1979.
781
Vide, Wuyts, Marc, op.cit, 1978, 1979; O Mineiro Moçambicano: Um Estudo Sobre a Exportação de Mão-
de-obra , 1978, Wuyts, Marc, op.cit, 1979.
265

familiar era a principal base produtiva para as culturas alimentares essenciais)782. Em suma,
mesmo apoiando a ênfase da FRELIMO nas machambas estatais e produção colectiva dos
camponeses, o CEA também se debateu com a questão de como transformar o sector familiar,
ao mesmo tempo que reconheceu a importância de agricultura familiar (considerada pelo
CEA, como a principal base da produção e o garante do abastecimento alimentar).

Esta prática científica do CEA, de olhar de forma não-dogmática as causas que


apoiava, como também de analisar a realidade social de forma crítica, com o objectivo último
da transformação social das condições de vida dos moçambicanos, começou (gradualmente) a
declinar com a morte de Ruth First em 1982 e se agravou após a morte de Aquino de
Bragança em 1986. No entanto, outros eventos - no entremeio – também iriam concorrer para
este declínio, reflectindo-se, por exemplo, na saída de vários dos investigadores cooperantes
do CEA (particularmente daqueles ligados ao ANC): a assinatura dos acordos de Nkomati, a
crescente crise económica e o agravamento da guerra civil no país. A FRELIMO se tornou
assim cada vez mais coerciva e dominante na sociedade, apertando ainda mais o espaço de
discussão aberta, que o CEA tinha conquistado na primeira década da independência nacional.
Não que a pesquisa crítica tivesse desaparecido completamente, mas tinha-se tornado mais
difícil e requeria agora uma grande coragem para aqueles que ainda continuavam a fazê-lo.
Foi então neste ambiente que investigadores como Dan O’Meara, Sipho Dlamini, Judith
Head, dentre outros, decidiram sair de Moçambique, abandonando o seu trabalho de pesquisa
e ensino no CEA. E este talvez tenha sido o momento em que o CEA se tornou num “órgão
do Estado,” como foi caracterizado por Christian Geffray.
Este período “pós-Nkomati”, ou ainda “pós-Aquino de Bragança”, até aos dias de hoje
- no que concerne as dinâmicas de pesquisa em ciências sociais do CEA - fica ainda por se
estudar.

782
Vide, os seguintes “Relatórios de Investigação” do CEA, apresentados neste estudo: Wuyts, Marc, op.cit,
1978, 1979; O Mineiro Moçambicano: Um Estudo Sobre a Exportação de Mão-de-obra , 1978; CEA,
Problemas de Transformação Rural na Província de Gaza – Um Estudo sobre a Articulação entre Aldeias
Comunais seleccionadas, Cooperativas Agrícolas e a Unidade de Produção do Baixo Limpopo (uplb), 1979;
CEA, A Transformação da Agricultura Familiar na Província de Nampula; 1980.
266

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ANEXOS

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