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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Estética e Teoria do Teatro


Conceitos de História
Prof. Marina Vianna

Thatiana Vieira Maciel

“A Missão: Lembrança de uma revolução”, de Heiner Müller

Um olhar sobre a história

Rio de Janeiro – RJ
Maio / 2017
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INTRODUÇÃO:

“Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo a


embriaguez, o atordoamento, o esquecimento, o prazer e o
sofrimento dos corpos. O meu discurso é o silêncio, o meu cântico
o grito. Na sombra das minhas asas habita o medo. A minha
esperança é o último fôlego. A minha esperança é a primeira
batalha. Eu sou a faca com que o morto abre a sua urna. Eu sou
o que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de
amanhã.”

“A Missão”, Heiner Müller

Assim se apresenta o “Anjo do Desespero” na peça “A Missão”, escrita por


Heiner Müller, em 1978/1979. Em um apelo desesperado, convoca o leitor e/ou o
espectador a não se quedar inerte frente às crueldades do mundo e à desumanização,
resultantes de valores estéreis inscritos na face do sujeito. A missão: mobilizar-se. Não
entregar ao fatalismo as (in)ações humanas, guiadas por “poderes invisíveis” que
tornam o homem escravo de sua própria história.

A peça em análise é uma releitura não apenas da peça “A Morte de Danton”,


escrita em 1835, por Georg Buchner, mas uma releitura histórica da própria Revolução
Francesa e de outros processos revolucionários que se desenvolveram a partir de então,
marcando o fim da idade moderna e início da contemporânea.

"É paradoxal a atualidade de A missão, peça de Heiner


Müller sobre o fracasso da revolução nas Antilhas, no rastro da
Revolução Francesa e de seus desdobramentos. Paradoxal
porque se trata de uma peça histórica que problematiza um outro
espaço e um outro tempo, e não o Brasil do primeiro quartel do
século XXI. No entanto, choca o leitor perceber que duas de suas
questões centrais — o sentido da traição e o sentido da
escravidão — nos interpelam diretamente, como se a obra
focalizasse o nosso próprio espaço-tempo, nosso inferno aqui e
agora." - Laymert Garcia dos Santos
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Francamente influenciado por Brecht e Artaud, Heiner Müller expõe em “A


Missão” os cadáveres da revolução e, com este odor putrefeito - por vezes, de forma
literal -, exala os fantasmas da história – “Eu sou a faca com que o morto abre a sua
urna” - propondo a sua releitura com o assombro que lhe é inerente e necessário.

Este novo olhar, que resgata a memória relegada ao esquecimento pela


automação humana, visa não apenas dissecar as feridas ainda abertas do passado, mas
também tornar consciente o mito da revolução, em suas diversas faces, afinidades e
paradoxos. À semelhança da guerra, toda revolução é trágica, fundada no sacrifício, na
deformidade, na violência que depõe e institui um “novo” poder dominante.

É sobre este poder transfigurado, o que precede e o que sucede a revolução, que
Heiner Müller se debruça em teatralidade, desvelando de forma espetacular seus
bastidores, e expondo as agruras políticas dos constituídos que, sob a máscara da
revolução, disfarçam o sangue de suas mãos: “MORTE É A MÁSCARA DA
REVOLUÇÃO, A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE”.

Como já nos alertava Maquiavel, “o Príncipe deve se comportar como ator


político para conquistar e conservar o poder” (Balandier, Georges. In “O Poder em
Cena” – p.6). Desta colocação, suscitamos um atalho para compreender o que
denominamos de “teatrocracia”. Os arranjos sociais e a organização dos poderes postos
em cena iluminam o fenômeno político.

Em “A Missão”, objeto do nosso estudo, Heiner Müller reúne de forma


fragmentada e livre estruturação uma infinidade de signos que convida a refletir, de
forma crítica e ativa, cada passagem da dramaturgia trágica da revolução.
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MEMÓRIA, DOCUMENTO E MONUMENTO NO TEATRO DA REVOLUÇÃO:

Perpassando por fatos e imprimindo no palco memória, monumentos e


documentos históricos, o leitor e/ou espectador se vê confrontado com verdades sabidas
e escondidas, com a realidade em frangalhos dos assuntos humanos, com o seu “Anjo
do Desespero” interior.

“A história – forma científica da memória coletiva – é


resultado de uma construção, sendo que os materiais que a
imortalizam são o documento e o monumento. (...) O que
sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas
uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos
que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os
historiadores. Estes materiais da memória podem apresentar-se
sob duas formas principais: os monumentos, herança do
passado, e os documentos, escolha do historiador” . (LE GOFF,
Jacques. História e Memória. 4.ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 1996. p.535, 1996).

O monumento é tudo àquilo que enaltece o passado, legado à memória coletiva,


por meio de testemunhos normalmente não escritos (Jacques Le Goff), contendo, assim,
de forma intrínseca, o poder de perpetuar valores de dada sociedade. O documento, que
ganha novo olhar a partir dos positivistas, deve funcionar como fundamento do fato
histórico, tendo sob si o olhar crítico do historiador (problematização), sobretudo no que
se referem às condições de sua produção histórica e as relações de poder que ali se
estabeleciam.

Tal aparato formador da memória coletiva de uma sociedade, em constante


construção e desconstrução também através de novos testemunhos e na voz – outrora
silenciada – dos vencidos e dos mortos, pode revelar outro olhar sobre a história e,
quando este processo de perene reflexão e reanálise se expressa no THEATRUM
(“lugar de onde se vê”), ressurge a esperança de mobilização para um novo futuro para a
humanidade, partindo não só de ideais seculares, mas do questionamento destes ideais:
“Liberdade, Fraternidade e Igualdade” para quem?
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Aberto o “Teatro da Revolução”, Heiner Muller questiona as formas e ideais


da(s) revolução(ões), jogando para o leitor/espectador, por meio de metáforas e
passagens históricas, lembranças e reflexões sobre acontecimentos passados, suas
consequências, configurações, métodos e implicações.

“Quando tentamos identificar a desordem que está na raiz da


nossa experiência trágica, tendemos a encontrar elementos
análogos aos sistemas trágicos anteriores, da maneira como a
ideologia os interpretou.” (WILLIANS, Raymond. Trágédia
Moderna. P.89).

Vejamos agora alguns trechos em que “A Missão” nos revela ou desvela a


história, resgatando MEMÓRIA, MONUMENTOS e DOCUMENTOS, reconhecidos e
identificáveis por gerações posteriores, justamente porque firmados na memória
coletiva:

“Você tem visita. Eu vendi uma condecoração. Aquela de Vendéia, onde vocês
massacraram os camponeses pela república.” - MULHER

Sobre a Revolução em Vendeia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vendeia

“A França não é mais uma república, nosso cônsul tornou-se imperador e conquista a
Rússia. De boca cheia é mais fácil falar sobre uma revolução perdida. Sangue,
coagulado em medalhas de metal. Os camponeses também não tinham uma solução
melhor, não é. E talvez tivessem razão, não é. O comércio floresce. Quanto aos do
Haiti, agora entregamos a eles terra para comer. Era a república dos negros. A
liberdade leva o povo às barricadas, e quando os mortos ressuscitam, veste
uniforme. Agora vou lhe confessar um segredo, ela também não passa de uma puta. E
já consigo rir disso tudo. Ahahah. Mas agora, aqui, há uma coisa vazia, que antes
vivia. Eu estava lá quando o povo assaltou a Bastilha. Eu estava lá quando a cabeça do
último Bourbon caiu na cesta. Nós colhemos a cabeça dos aristocratas. Nós colhemos a
cabeça dos traidores.” - ANTOINE

Sobre a conquista da Russia por Napoleão Bonaparte:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Campanha_da_R%C3%BAssia_(1812)
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Sobre a Revolução no Haiti:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Haitiana

“Nossa missão uma revolta de escravos contra o domínio da coroa britânica em nome
da República da França. Que é a mãe-pátria da revolução, o terror dos tronos, a
esperança dos pobres. Onde todos os homens são iguais sob a arma da justiça. Que não
tem pão para aplacar a fome de seus subúrbios, mas tem mãos suficientes para levar a
tocha da liberdade igualdade fraternidade a todos os países. (...) Dissemos: isto é
Jamaica, vergonha das Antilhas, navio negreiro no mar do Caribe”.

Sobre a história da Jamaica e a disputa entre França e Gra-Bretanha sobre a colônia:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_Jamaica

Nomes de ruas, praças e monumentos em Paris, rememorando a Revolução Francesa.


Assim, o poder político se inscreve duravelmente na história, é imortalizado, cria
condições para não ser esquecido, marcando o território com símbolos e significações.

“Meu nome está no panteão da história.” -SASPORTASROBESPIERRE

“Eu estava lá quando o povo assaltou a Bastilha. Eu estava lá quando a cabeça do


último Bourbon caiu na cesta.” - ANTOINE
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“Onde todos os homens são iguais


sob a arma da justiça”.

“Talvez seja melhor nós instalarmos


uma guilhotina. E mais limpo. A
Viúva Vermelha é a melhor mulher de
limpeza.” – GALLOUDEC

Sob o crivo da lei. A legitimação da barbárie. A guilhotina limpa, instaura o processo.

“A amada dos subúrbios”. – DEBUISSON

O “pão e circo” que aplaca a fome, que espetaculariza, que distrai.

“O vapor de sangue da nova filosofia” – DEBUISSON

A “nova filosofia” – “Liberdade, Fraternidade, Igualdade”

“Um camponês da Bretanha que aprendeu a odiar a Revolução na chuva de sangue da


guilhotina, que queria que a chuva tivesse sido mais abundante e não somente sobre a
França, fiel servidor do senhor Debuisson, creio na ordem sagrada da monarquia e da
igreja. Espero não ter que rezar demais por isso.” – GALLOUDEC

“ Onde todos os homens são iguais sob a arma da justiça. Que não tem pão para
aplacar a fome de seus subúrbios, mas tem mãos suficientes para levar a tocha da
liberdade igualdade fraternidade a todos os países.”
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A Estátua da Liberdade foi um presente dado aos


Estados Unidos pelo povo da França. É um ícone
da liberdade e dos Estados Unidos.

(https://pt.wikipedia.org/wiki/Est%C3%A1tua_da
_Liberdade)

“A liberdade leva o povo às barricadas, e quando


os mortos ressuscitam, veste uniforme.”

“Da Bastilha à Conciergerie, o libertador passa


a ser guarda da prisão. MORTE AOS
LIBERTADORES essa é a última verdade da
revolução.” – DEBUISSON

“Tua morte se chama liberdade,


Sasportas, tua morte se chama
fraternidade, Galloudec, minha
morte se chama igualdade. Como
foi bom montar nelas enquanto
ainda eram nossos corcéis,
envolvidos pelo vento do amanhã.
Agora sopra o vento de ontem. E
os corcéis somos nós. Vocês
sentem as esporas na carne.
Nossos cavaleiros têm bagagem:
os cadáveres do terror, as pirâmides da morte. (...). Uma revolução não tem tempo
para contar seus mortos.” - DEBUISSON
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“Esse gemido é a
Marselhesa dos
corpos, sobre os quais
será construído um
mundo novo. “-
DEBUISSON

http://aulasonlinedehistoria.blogspot.com.br/2015/11/a-africa-e-o-trafico-de-
escravos.html

“A liberdade mora nas costas dos escravos, a igualdade sob o machado.” –


PRIMEIRO AMOR

“Os nossos nomes não estarão nos livros escolares e o teu libertador do Haiti, onde
agora os nossos libertados investem contra os mulatos libertados, ou vice-versa, vai ter
que esperar muito para ter o seu lugar no livro da história.” - DEBUISSON
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“Durante o sono dos povos, os generais


se levantam e quebram o jugo da
liberdade, que é tão pesado de carregar.”
– DEBUISSON

“Enquanto isso, Napoleão vai


transformar a França numa caserna e a
Europa talvez num campo de batalha, de
qualquer forma o comércio floresce, e a
paz com a Inglaterra não vai tardar, o
que une a humanidade são os negócios. A
revolução não tem mais pátria” -
DEBUISSON

“Cada pulsação da revolução fará renascer carne em seus ossos, sangue em suas veias,
vida em sua morte. A revolta dos mortos será a guerra da paisagem, nossas armas as
florestas, as montanhas, os mares, os desertos do mundo. Eu serei floresta, montanha,
mar, deserto. Eu, isto é, a África. Eu, isto é, a Ásia. As duas Américas sou eu.” –
SASPORTAS

“Talvez a traição já o tivesse abandonado. Suas mãos ávidas recusavam obedecer.


Abriu os olhos. A traição mostrava seus seios, em silêncio abria as coxas. Sua beleza
atingiu Debuisson como um machado. Ele esqueceu a tomada da Bastilha, a marcha da
fome dos oitenta mil, o fim da Gironda, sua ceia, um morto à mesa, Saint Just, o anjo
negro, Danton, a voz da revolução, Marat curvado sobre o punhal, o queixo quebrado
de Robespierre, se ai grito, quando o carrasco lhe arrancou a venda, seu último olhar
de compaixão sobre o júbilo da multidão.”
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“Há mil anos que riem das nossas três amadas. Rolaram em todas as sarjetas, jogaram
esgoto abaixo em todo mundo, arrastaram por todos os bordéis, nossa puta a liberdade,
nossa puta a igualdade, nossa puta a fraternidade. Agora eu quero estar sentado lá
onde há riso, livre para tudo que me aconteça, igual a mim mesmo, irmão de mim
mesmo e de mais ninguém. Tua pele continua preta, Sasportas. Você, Galloudec,
continua um camponês. Riem de vocês. Meu lugar é lá, onde riem de vocês. Eu rio de
vocês. Rio do negro. Rio do camponês. Rio do negro que quer ficar branco com a
liberdade. Rio do camponês que anda com a máscara da igualdade. Rio da
imbecilidade da fraternidade que me deixou cego, a mim, Debuisson, senhor de
quatrocentos escravos, que só tenho que dizer sim, sim e sim, à ordem sagrada da
escravatura; cego, Sasportas, à tua pele suja de escravo, à tua rotina quadrúpede de
camponês, Galloudec, tendo no pescoço o jugo com o qual os bois caminham sobre os
sulcos dó teu campo, que não te pertence. Quero a minha fatia do bolo do mundo. Vou
cortar da fome do mundo, a minha fatia do bolo. Vocês, vocês não têm faca.” –
DEBUISSON
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CONCLUSÃO:

Verificamos no texto de Heiner Müller referências sobre revoluções, conquistas


e mobilizações (Ex. Vendeia, Haiti, dentre outras) que marcaram a história dos
países/colônias envolvidos, da humanidade, sempre às custas de muito sangue e a
substituição de poderes.

A tragédia é sempre associada a estes movimentos, assim como, a instituição de


monumentos que perpetuam os ideais e firmam o poder constituído para futuras
gerações.

Por trás destas “conquistas”, Heiner Müler nos alerta sobre as diversas faces dos
massacres e suas consequências, bem assim, questiona os verdadeiros beneficiados com
os “ideais revolucionários” (vencedores), sempre ancorados pela justiça e lei que
legitimam as ações (ex. Guilhotina).

De forma espetacular, verificamos que todo poder político se utiliza da


teatralidade para marcar a sua entrada na história, expor seus valores e afirmar a sua
força.

“Cada “reinado”, mesmo republicano, marca de um modo novo um


território, uma cidade, um espaço público (...) para não ser esquecido e
para criar condições para suas comemorações futuras”.

(BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Editora Universidade de


Brasília. P. 10)

Nesta esteira, verificamos que emprestar à teatralidade a evidência do “teatro


político” não constitui apenas a abertura de novas possibilidades para a reflexão e
construção da história sob a batuta do encenador, mas também de revelar a realidade
social e ações políticas até então construídas e manipuladas, muitas vezes de forma
ilusória, pelo poder dominante. Dar ao público a oportunidade de ouvir e ver outros
testemunhos, outros pontos de vista acerca do já sedimentado, é importante função do
teatro que, inobstante ter em seu histórico a influência nefasta do sistema em vigor, a
este sempre sobreviveu, e impôs o seu poder de arte milenar formadora de novas ideias
e questionamento das relações em sociedade.
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BIBLIOGRAFIA:

LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas, SP:


Editora Unicamp, 1994.

WILLIANS, Raymond. Tragédia Moderna.

BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Editora Universidade de Brasília.

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