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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE PATOS DE MINAS – UNIPAM

CURSO: HISTÓRIA
DISCIPLINA:
PROFESSOR:

O PROTESTANTISMO NO BRASIL:
Da Reforma Protestante até sua chegada em Patos de Minas

DAVID ROSSINI DE SOUSA ALVES

PATOS DE MINAS
2021
DAVID ROSSINI DE SOUSA ALVES

O PROTESTANTISMO NO BRASIL:
Da Reforma Protestante até sua chegada em Patos de Minas

Trabalho apresentado como requisito


parcial de avaliação na disciplina
Projeto Integrador do curso de História
do Centro Universitário de Patos de
Minas, sob orientação do professor
Me. Marcos Antônio Caixeta Rassi

PATOS DE MINAS
2021

1
SUMÁRIO

OBJETIVOS .................................................................................................................. 4

OBJETIVOS GERAIS ...................................................................................................

OBJETIVOS ESPECÍFICOS .........................................................................................

METODOLOGIA .........................................................................................................

INTRODUÇÃO .............................................................................................................

1 A REFORMA PROTESTANTE .............................................................................. 5

1.1 CONTEXTO, CAUSAS E ANTECEDENTES ...................................................... 6

1.2 LUTERO E AS TESES ......................................................................................... 15

1.3 CALVINO E GENEBRA ...................................................................................... 19

2 A REAÇÃO CATÓLICA ....................................................................................... 21

3 MUNDUS NOVUS ...................................................................................................22

4 O PROTESTANTISMO NO BRASIL COLÔNIA .............................................. 24

4.1 OS PRIMEIROS PROTESTANTES EM SOLO BRASILEIRO .......................... 25

4.2 A FRANÇA ANTÁRTICA.................................................................................... 14

4.3 O BRASIL HOLANDÊS........................................................................................ 17

4.4 A "IDADE DAS TREVAS" DO BRASIL COLONIAL .........................................39

5 AS IMIGRAÇÕES E O PROTESTANTISMO..................................................... 19

5.1 A ABERTURA DOS PORTOS, O TRATADO DE 1810 E A "LIBERDADE


RELIGIOSA"...................................................................................................................

5.2 OS IMIGRANTES ANGLICANOS E LUTERANOS ........................................... 21

5 OS AMIGOS DO BRASIL ...................................................................................... 22

2
5.1 DANIEL PARISH KIDDER ................................................................................... 23

5.2 JAMES COOLEY FLETCHER .............................................................................. 26

5.3 ROBERT RIED KALLEY ...................................................................................... 30

6 A IMPLANTAÇÃO DE IGREJAS E AS MISSÕES NO INTERIOR ................ 34

6.1 O PRESBITARIANISMO BRASILEIRO .............................................................. 35

6.2 A CHEGADA DO PROTESTANTISMO EM MINAS GERAIS .......................... 37

CONCLUSÃO................................................................................................ ...............38

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 39

3
Objetivos

Objetivos Gerais: Relatar a implantação do protestantismo no Brasil, traçando seu


caminho desde a Reforma Protestante até sua chegada em Minas Gerais. Compreender
as diversas manifestações do protestantismo que ocorreu ao longo da história do país,
seus diferentes personagens, contextos e lugares em que foi manifesto.

Objetivos Específicos: Examinar o protestantismo no Brasil Colônia e suas duas


manifestações. Entender a relação entre os imigrantes do Brasil oitocentista e a religião
protestante. Debater sobre a presença de missionários protestantes fortemente ligados
aos governantes e a políticos de viés liberal. Discorrer acerca da liberdade religiosa e
suas controvérsias no Brasil. Analisar a implantação e fixação das igrejas protestantes
no país, sobretudo na região de Minas Gerais.

Metodologia

A metodologia nos mostra o caminho a ser percorrido até o resultado obtido,


sem ela o projeto ficaria à deriva. Com ela podemos chegar ao resultado dos objetivos
propostos e suas intencionalidades com uma base sólida.

O presente projeto tem como metodologia a pesquisa bibliográficas de autores


que balizam os argumentos e questionamentos de cunho acadêmico. A priori foram
utilizados estudos com autores que fomentam  o tema proposto, assim o leitor terá
informações claras e objetivas para maior compreensão do tema apresentado.

Introdução

O artigo tem como principal objetivo apresentar de forma contextualizada de que


maneira o protestantismo chegou ao Brasil e em Minas Gerais. Com esse objetivo em
mente, foi escolhido um período temporal que vai desde a Reforma Protestante em 1517
até fins do século XIX, quando o protestantismo se estabelece no Brasil. Além de
apresentarmos relatos históricos da trajetória do protestantismo no Brasil,
apresentaremos também algumas figuras fundamentais que contribuíram para a sua
consolidação.

4
De tal modo, inicialmente contextualizaremos de que forma a Reforma
Protestante preconizada por Martinho Lutero na Alemanha, cindiu a Igreja Católica e
abriu uma janela de oportunidades para uma reforma eclesiástica e, automaticamente,
para novas religiões e novos modos de adoração ao sagrado, novas epistemologias e
interpretações da Bíblia. Abordaremos os antecedentes da reforma, e as teses luteranas
que a fundamentou, os sucessores de Lutero e a própria contrarreforma católica.

Posteriormente, abordaremos as primeiras missões não católicas em solo


brasileiro, ainda no período colonial, destacando a participação dos protestantes
franceses num primeiro momento, e dos holandeses num segundo momento. A relação
com os franceses sempre mais acirrada, o que contribuiu para que o protestantismo
tivesse dificuldades de penetração no país. Com os holandeses, diferentemente, em
especial na experiência de Nassau em Pernambuco, foi o momento áureo do
protestantismo no período colonial.

No período pré-independência, mais precisamente na abertura dos portos às


nações amigas, destacamos a importância do tratado de 1810 e da vinda de muitos
ingleses e imigrantes alemães, de tradição protestante, que contribuíram enormemente
para a expansão deste aqui no Brasil, por meio de duas expressões: o luteranismo e o
anglicanismo.

Por fim, discorremos no período imperial, falaremos sobre os “amigos do


Brasil”, isto é, missionários estrangeiros que tinham vínculos de amizade com
autoridades públicas brasileiras, o que favoreceu o fortalecimento, a tolerância e a
expansão das ideias protestantes em solo tupiniquim, e também sobre a fixação das
Igrejas protestantes no Brasil e suas missões nacionais. Ao cabo deste projeto, teremos a
pretensão de identificar de que forma essas ideias preconizadas na Alemanha do século
XVI evoluíram e criaram eco no território nacional dos dias contemporâneos.

1 – A Reforma Protestante

De acordo com a sistematização periódica da história, a Reforma Protestante foi


um movimento do início da Idade Moderna. Entretanto, os acontecimentos que
marcaram o surgimento da modernidade e de suas singularidades, se estendem desde o
século XI. São movimentos que, ou aconteciam subitamente, ou na medida em que
amadureciam serviam como base para alguns e para outros como motivação, até a

5
consolidação da modernidade. De todos esses acontecimentos históricos que
representaram a passagem do modo de vida medieval para o moderno (veremos sobre
eles adiante), julgo o principal ser a Reforma Protestante. Fruto de uma série de
movimentos intelectuais que serviram de motivação e que selou o declínio medieval.
Foi também, sem dúvida, o movimento que mais impactou, tanto em termos sociais,
como políticos e econômicos. Segundo o sociólogo Max Weber, a influência do
protestantismo, em termos econômicos, foi de tamanha relevância que colaborou para o
surgimento de um novo modo de produção: “a fé reformada parece ter promovido o
desenvolvimento do capitalismo” (WEBER, 2001, p. 41).

Portanto, é um tema que necessita de cuidados em sua análise, pois em seu


contexto, ainda que inicialmente fosse um movimento estritamente religioso, a Reforma
veio a tomar proporções muito além da religião, graças ao papel que essa desenvolvia
na sociedade pré-reforma. Devido à complexidade de fatos que a Reforma Protestante
proporciona, é necessário um olhar geral da sociedade, se desvencilhar de visões
estigmatizadas acerca do tema e se abster de deduções. Quanto a isso, o historiador
Jacob Burckhardt, ao comentar acerca da Reforma, afirma:

Em seus detalhes, eclosão e em sua marcha, os acontecimentos


colossais como a Reforma do século XVI escapam a toda dedução
histórico-filosófica, por mais claramente que se possa, em linhas
gerais, demonstrar sua necessidade. Os movimentos do espírito, seu
súbito cintilar, sua propagação, seu estancamento, são e permanecem
sendo um enigma a nossos olhos, quando menos porque, das forças
que neles atuam, sempre nos é dado conhecer apenas esta ou aquela,
jamais todas.1

A Reforma Protestante carrega seu peso na história, e muitas vezes esse peso é
reduzido, mal compreendido ou compreendido apenas em partes, da qual comumente
fogem do contexto e da totalidade dos eventos, fortalecendo assim, visões
preconceituosas e equivocadas sobre o tema. Em vista disso, é necessário e
imprescindível não reduzir o protestantismo a isto ou aquilo, a fim de evitar equívocos
comuns, pois: “É bem verdade que os caminhos do destino humano só podem
amedrontar a quem dele observa apenas um segmento” (WEBER, 2001, p. 32).

1.1 Contexto, Causas e Antecedentes

1
BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 407.

6
Toda quebra de paradigma sócio-político gera uma instabilidade e consequências
inevitáveis, tanto em níveis políticos como sociais, assim como, toda ruptura de tradição
religiosa gera um cisma e novas interpretações acerca da doutrina. Tratando-se da
Europa do século XVI, em que havia uma forte união estabelecida há séculos entre
Igreja e Estado, uma ruptura religiosa abalaria não somente a Igreja, mas
consequentemente toda a estrutura social, política, econômica e cultural. A Igreja
Católica, institucionalizada e aparelhada ao Estado desde os tempos de religião oficial
do Império Romano e desde as alianças com a dinastia Carolíngia, aproveitando-se da
legitimação concedida pelo Estado, usando de sua autoridade religiosa e de sua
dominação social, tornou-se o principal aparelho ideológico da sociedade europeia,
vindo a se tornar a condutora da vida medieval em todos os aspectos: classes sociais,
educação, política, tudo estava sob o controle direto, ou indireto, da Igreja Católica. À
vista disso, a Reforma Protestante ao confrontar a autoridade da Igreja, ataca
consequentemente também tudo que dela deriva, abalando as bases medievais da qual
ela se sustentava. Em virtude do importante papel exercido pela religião e pela Igreja,
inaugurar uma nova, com novas teorias políticas, novas visões acerca do papel do
Estado, novas epistemologias, novas pedagogias, além de uma nova Teologia, era um
ato sem precedente.

Na conjuntura da Reforma, o clero católico já se encontrava em pleno estado de


corrupção, visto que, a dominação ideológica atrai o poder político, e o poder espiritual
do Papa somado a seu poder temporal, induzia a corrupção. Na altura do século XVI às
esferas já se confundiam e sobrepujavam seus limites. Corrompida, a Igreja e seu clero,
via-se extrapolando cada vez mais do seu poder político e de sua dominação ideológica
(discorreremos adiante). Quando a Reforma eclode, a sociedade até então conduzida
pelo catolicismo sentiria inevitavelmente o impacto das mudanças.

A sociedade europeia viveu esse impacto, iniciado após os acontecimentos


seguintes ao dia 31 de Outubro de 1517, quando o monge agostiniano Martinho Lutero
convocou a comunidade acadêmica da cidade de Wittenberg, na Alemanha (na época
Sacro Império Romano-Germânico), para um “debate para o esclarecimento do valor
das indulgências”. A indulgência era um perdão não sacramental concedido pela Igreja,
na promessa de amenizar o castigo temporal divino2, uma espécie de “venda do perdão”.
2
A absolvição desse castigo não era garantido totalmente pela penitência, a indulgência oferecia meios de
cumpri-lo somente durante sua vida terrena, e não mais após a morte, no purgatório. Kent,
W. (1910). Indulgences. In. The Catholic Encyclopedia. New York: Robert Appleton

7
Esse documento convocativo continha 95 teses a serem debatidas, e as indulgências
foram um dos principais fatores que levaram Lutero a elaborar as teses, uma vez que
eram exploradas de forma comercial pela Igreja, afins lucrativos, e o comércio delas era
sua principal fonte lucrativa, sendo comumente vendida de forma corrupta e abusiva aos
fiéis. A fixação das 95 teses na catedral de Wittenberg por Lutero marca o estopim da
Reforma Protestante.

Apesar das teses, Lutero não foi o primeiro a se descontentar da forma como a
Igreja estava sendo conduzida nem o primeiro a denunciar as práticas corruptas do
clero. Os chamados pré-reformadores, clérigos como: John Wycliffe na Inglaterra, John
Huss na Boêmia, e Jerônimo Savonarola na Itália já denunciavam os abusos da Igreja
séculos antes. Os três não foram contemporâneos, viveram entre os séculos XIV e XV,
momentos conturbados na história da Igreja Católica, e não seguiam uma única linha de
raciocínio, porém, tiveram pontos de convergência: atacaram a autoridade papal,
defenderam a utilização da Bíblia e da pregação em língua vernácula 3, discordavam do
celibato clerical, da simonia4, da venda de indulgências, e defendiam reformas morais
no clero. Os ensinamentos e os próprios pré-reformadores foram condenados por
concílios, os três sofreram martírio. A ação deles foi imprescindível para o advento da
Reforma.

Entretanto, Lutero, assim como os pré-reformadores, tentou um debate sobre os


dogmas e doutrinas da Igreja, mas desta vez acabou por desencadear uma série de
revoltas e guerras de uma magnitude nunca vista anteriormente. De maneira audaciosa,
com uma convicção de caráter único, e com o apoio de simpatizantes da causa
reformista, ele e os demais obtiveram o sucesso que os pré-reformadores, fortemente
reprimidos, nunca obtiveram. As 95 teses mudariam os rumos daquela sociedade, ainda
que contivesse um caráter muito mais reformista do que revolucionário, como observa o
teólogo Timothy George:

Lutero não via a si mesmo como agente de uma revolução eclesiástica,


um Lenin ou um Robespierre do século XVI que abalaria o mundo e
derrubaria reinos. O fato de o papado e o império terem sido abalados,
se não destruídos, pelas palavras de um simples monge alemão,
Company. Retrieved August 29, 2020 from New Advent: http://www.newadvent.org/cathen/07783a.htm
3
A Bíblia e as missas eram feitas somente em latim, língua desconhecida do povo.
4
A venda de cargos eclesiásticos, de bens espirituais, de objetos sagrados, entre outros, assim como as
indulgências, afins lucrativos. Weber, N. (1912). Simony. In The Catholic Encyclopedia. New York:
Robert Appleton Company. Retrieved August 29, 2020 from New
Advent: http://www.newadvent.org/cathen/14001a.htm

8
segundo ele foi apenas um subproduto providencial de uma vocação
anterior.5

O sucesso dos ideais luteranos e da Reforma Protestante se dá por motivos


variados. De fato, o século XVI pode ser considerado um século “maduro” para um
movimento reformista na Igreja. Esses motivos se estendem desde o século XIII, em um
contexto de agravamento de fortes crises econômicas, políticas, e espirituais. Dentre
esses vários motivos, podemos citar: a teologia escolástica; a epidemia da peste negra; a
guerra dos cem anos; o cisma do ocidente; o advento da burguesia; a criação dos estados
nacionais; o humanismo e a forte cultura do renascimento, tanto comercial e urbano,
como cultural. Sobre essas mudanças, principalmente políticas e econômicas, afirma o
historiador Justo González:

A economia europeia, que antes estivera em expansão, estancou em


princípios do século XIV, começando a declinar em meados desse
século. Isso era causado pela instabilidade política, o fim das cruzadas
e a decadência da agricultura. A causa principal foi a epidemia de
peste bubônica que açoitou repetidamente a Europa ocidental a partir
de 1347.6

As crises econômicas, causadas não somente pela peste, mas também por uma
série de colheitas ruins e uma elevada alta dos preços que ocorreu entre 1315 e 1317,
levaram as monarquias a se aliarem a recém-formada burguesia em busca de recursos
financeiros:

Do ponto de vista da alta burguesia, um governo centralizado e forte


que protegesse o comércio, erradicasse o banditismo, regulamentasse
a moeda e evitasse as constantes guerras entre pequenos vizinhos era
altamente desejável. [...] Os reis também recebiam benefícios com
essa aliança. O único meio eficaz de valer sua autoridade [...]. 7

Essa aliança envolvendo monarquia, nobreza e burguesia, resultaria num forte


sentimento de nacionalismo, não existente até então devido à descentralização política
do modelo feudal. Esse sentimento patriótico nacionalista consequentemente culminaria
em guerras, motivadas por causas territoriais; sucessórias; patrióticas e motivadas
principalmente pela crise econômica, a observação do medievalista Jacques Le Goff nos
ajuda a entender:

5
GEORGE, T. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994. p.56.
6
GONZÁLEZ, J. L. A era dos sonhos frustrados. In: _____. História ilustrada do cristianismo: a era
dos mártires até a era dos sonhos frustrados. 2. ed. rev. São Paulo: Vida Nova, 2011. p. 449.
7
Ibid. p. 454.

9
Sem dúvida, finalmente, o feudalismo atacado pela crise recorre
à solução de facilidade das classes dominantes ameaçadas: a
guerra. O exemplo mais notável disso é Guerra dos Cem Anos,
confusamente buscada pelas nobrezas inglesa e francesa como
solução para suas dificuldades. Mas, como sempre, a guerra
acelera o processo e dá origem à economia e à sociedade novas
[...].8
Guerras que envolviam as causas mencionadas também envolviam
inevitavelmente e diretamente a Igreja. O exemplo posto por Le Goff é a Guerra dos
Cem Anos entre Inglaterra e França (1337-1453), onde o papado esteve em diversos
momentos diretamente ligado aos interesses da monarquia francesa, chegando a ser
forçado a mudar a localização da residência papal de Roma, para Avinhão, na França
(período que ficou conhecido como cativeiro babilônico). Esse acontecimento acabou
por envolver outros países na guerra, que se aliaram a Inglaterra ou França de acordo
com seus interesses políticos. A Inglaterra e seus aliados não apoiavam nem se
submetiam ao papado em Avinhão, acontecimento esse que culminaria futuramente no
cisma do ocidente (1378), chegando a dado momento em que três papas clamavam a
autoridade sobre a Igreja no século XV9. Acontecimentos dessa natureza colocavam
dúvidas sobre a autoridade papal e as guerras impulsionavam o sentimento nacionalista,
sobretudo, estimulavam a autoridade na figura do rei. Além da guerra, havia outra
consequência: “O cisma em si estimulava a simonia. Os dois rivais tentavam vencer seu
adversário e, para isso, precisavam de dinheiro. Por essa razão, a igreja se transformou
em um sistema de impostos e exploração [...]”. (GONZÁLES, 2011, p. 477). As
consequências da guerra ecoavam até os concílios da Igreja, que passaram a se alertar
da ação dos papas:

[...] com as experiências tristes do “cativeiro babilônico” e do Grande


Cisma do Ocidente, começou a predominar a ideia de um concílio que
não somente julgasse as ações dos papas, mas reformasse a igreja,
resolvendo os problemas que os papas criaram com suas ambições,
disputas e corrupção.10

8
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Rio de Janeiro: Vozes, 2016. p. 96.
9
Devido ao Cisma, que dividiu a autoridade da Igreja Católica a dois papas, estava Bento XIII em
Avinhão e Gregório XII em Roma, quando ocorreu um concílio em Pisa na Itália em 1409, que nomeou
Alexandre V como papa legítimo, visando solucionar a questão. Porém Bento XIII e Gregório XII ainda
contavam com grande apoio em suas regiões, indicando que havia três papas ao mesmo tempo, a questão
foi resolvida de fato somente no concílio de Constança (1414-1418), quando os três pretendentes (na
época Alexandre V de Pisa já havia falecido, no seu lugar ficou João XXIII), foram depostos e foi
nomeado Martinho V como papa legítimo, dando fim ao cisma do ocidente. Este mesmo concílio
condenou John Huss à fogueira. GONZÁLES, op. cit., p. 482-485.
10
Ibid. p. 479.

10
O fortalecimento das monarquias nacionais e da burguesia, graças à guerra, já
não era mais compatível com o modelo feudal clássico da Idade Média e da qual a
Igreja se sustentava. A burguesia, produto do renascimento comercial e urbano, lucrava
desenfreadamente, porém, o lucro era condenado pela Igreja: “Todo cálculo econômico
que vá além do necessário é severamente condenando”. (LE GOFF, 2016, p. 211). A
burguesia nasce nas cidades e as mudanças causadas pelo urbanismo já indicavam uma
nova sociedade: “A emigração do campo para a cidade entre os séculos X e XIV é um
dos fenômenos principais da Cristandade. Dos diversos elementos humanos que recebe,
a cidade faz uma nova sociedade”. (LE GOFF, 2016, p. 67)

O fortalecimento da monarquia e do Estado também constituía outro risco, além


dos monarcas estarem interessados nas várias e enormes terras que a Igreja possuía, esse
fortalecimento concedia um poder centralizado na coroa, dando autonomia ao rei, oque
inevitavelmente afrontava o domínio, o poder, e a autoridade papal, que já vinham
abalados desde a peste negra (1347-1353), que causou um sentimento de desamparo e
insegurança nos fiéis em relação às milhares de mortes que varriam a Europa, e que a
Igreja pouco agiu. O descontentamento popular em relação à Igreja crescia:

Os últimos anos da Idade Média foram caracterizados por um grande


descontentamento popular, que combinava causas sociais com
motivos religiosos. Os oprimidos viam que a vida dos opressores não
só era injusta, mas também se vestia de piedade cristã, e até mesmo se
apoiava na autoridade da igreja.11

O descrédito em relação à Igreja Católica intensificava, um vazio espiritual


tomava conta de uma sociedade regida espiritualmente em todas as esferas da vida
cotidiana, e um vazio espiritual dos fiéis em uma sociedade regida pela Igreja, já era
indícios de uma mudança inevitável.

Com o advento do renascimento e do humanismo nos séculos anteriores à


Reforma, os alicerces da Igreja se abalariam ainda mais, uma crítica à cultura religiosa
era na época uma crítica a todo um modelo social instituído há séculos, valorizar a
centralidade do homem e colocar em dúvida a centralidade de Deus, em uma sociedade
plenamente religiosa, era questionar o inquestionável. De fato, a Igreja já não mais
conseguia limitar o comportamento secular das pessoas em relação à vida espiritual, o
cotidiano da sociedade medieval nos fins da Idade Média era uma mistura do sagrado
com o profano, como observa o historiador medievalista Johan Huizinga:
11
Ibid. p. 508.

11
A vida estava tão saturada de religião que o povo corria
constantemente o risco de perder a distinção entre o espiritual e o
temporal. Se, por um lado, todos os pormenores da vida ordinária
podem santificar-se, por outra parte tudo o que é sagrado cai na
banalidade pelo fato de se misturar a vida cotidiana. Na Idade Média a
demarcação da esfera do pensamento religioso e das preocupações
mundanas estava quase obliterada. Acontecia por vezes que as
indulgências figuravam como prêmio de uma loteria. 12

Em uma sociedade plenamente religiosa, se a demarcação do sagrado e do


profano não estiver claramente nítida, a sociedade corre um risco altíssimo de cair em
profanação, essa não demarcação levou a nobreza e até mesmo o alto clero a cometê-las,
vários papas tinham filhos ilegítimos e até lideravam seus próprios exércitos, outros
como Alexandre VI ficaram marcados na história pelas suas histórias de profanação
sexual, padres se casavam, clérigos acumulavam cargos e riquezas, e a nobreza
esbanjava da blasfêmia: “No fim da Idade Média a blasfêmia é ainda uma espécie de
divertimento ousado, mas do domínio da nobreza”. (HUIZINGA, 1985, p. 170).

A Igreja, por fim, tolerava muitas coisas, mesmo que em alguns casos
soubessem da necessidade de mudança, a corrupção já estava impregnada e
incontrolável, mas ainda sim resistiam a mudanças morais e doutrinárias:

A Igreja na Idade Média tolerava muitas extravagâncias religiosas


desde que não conduzissem a novidades de espécie revolucionária em
pontos de moral ou de doutrina. Enquanto se confinasse dentro dos
limites das fantasias hiperbólicas e dos êxtases a emoção
superabundante, não constituía perigo.13

Foi nesse cenário e exatamente isso que Lutero fez ao publicar as 95 teses,
conduziu novidades de espécie revolucionária em termos de moral e doutrina,
principalmente ao questionar a venda das indulgências e da simonia, as principais
formas de lucro da Igreja até então. Nisto, chegamos ao ponto crucial da Reforma, a
doutrina (Teologia). Ainda que as mudanças sociais, políticas e culturais tivessem
colaborado para o advento da Reforma, “a Igreja se adapta a evolução da sociedade e
lhe fornece as palavras de ordem espirituais de que ela precisa”. (LE GOFF, 2016, p.
73). Portanto, é sempre necessário lembrar que apesar das mudanças sociais, o motivo
base e as causas essenciais para qual a Reforma aconteceu, foi, sobretudo, a Teologia. E
nesse ponto, a ação dos humanistas foi imprescindível.

12
HUIZINGA, J. O declínio da idade média. 2. ed. [S.I]: Ulisseia, [1985?]. p.164
13
Ibid. p. 202

12
O humanismo é um dos movimentos frutos do Renascimento na Itália, e possui
uma duplicidade de significado: o primeiro está relacionado à centralidade e ao valor da
criatura humana em si (como já mencionamos), e o segundo, a qual nos interessa agora,
está relacionada a um movimento literário surgido na aristocracia intelectual italiana,
que valorizava os estudos das letras clássicas, aquelas produzidas nos tempos áureos da
Grécia antiga e da Roma republicana. Esse movimento confrontou diretamente a
teologia da baixa Idade Média, chamada de teologia escolástica, em dois aspectos:
primeiro pelo movimento Ad fontes (de volta as fontes), do qual questionava a tradução
de textos em latim e confrontava um ditado medieval que dizia: graecum est, non
legitur (é grego, não se lê), e segundo, pela sua crítica à própria teologia escolástica,
seus métodos educacionais rígidos e a reclusão monástica. O escolasticismo é o termo
que se refere à teologia das escolas (Scholae) e se fixou nas recém-criadas universidades
a partir do século XI, a teologia escolástica sofreu forte influência dos textos de
Aristóteles, que havia recém-chegado na Europa vindo do oriente após as cruzadas. O
estudo de Aristóteles acabou por se tornar um culto a sua figura. Devido à influência
aristotélica, o escolasticismo se agarrou no uso exacerbado da razão em relação à fé. Os
teólogos escolásticos focavam em solucionar problemas filosóficos e teológicos muitas
vezes inúteis, produziam sumas imensas e que pouco influenciava na vida prática de
uma Igreja que já se encontrava em decadência. “O problema do escolasticismo não era
sua ênfase sobre o aprendizado, mas sim suas especulações áridas, que levavam mais a
um labirinto intelectual do que a uma reforma da igreja e da sociedade”. (GEORGE,
1993, p. 49).

A ação dos humanistas serviu como uma forma de crítica severa as instituições
eclesiais e a teologia escolástica. Lutero, antes das famosas 95 teses, havia escritos
outras 97 teses direcionadas contra a escolástica, entre elas, algumas questionavam esse
culto a Aristóteles:

43. É um erro dizer que nenhum homem pode se tornar um teólogo sem Aristóteles.
44. O fato é que ninguém pode se tornar um teólogo a menos que ele rejeite Aristóteles.

Todavia, “Lutero não tinha nada contra Aristóteles em si. O que ele rejeitava era
todo o esforço da teologia escolástica de fazer da filosofia aristotélica a pressuposição da
doutrina cristã” (GEORGE, 1993, p. 59).

13
Inicialmente, Lutero recebeu o apoio dos humanistas na sua causa reformista,
chegou a trocar cartas com Erasmo de Roterdã, o mais famoso deles, e com o qual se
desentendeu futuramente devido a uma divergência acerca de qual reforma era mais
importante, Erasmo defendia uma reforma nos costumes e na prática, já Lutero defendia
uma reforma teológica. Apesar das disputas, em linhas gerais o humanismo foi o
principal aparelho intelectual para a Reforma Protestante. Sobre a importância do
humanismo para a Reforma, George destaca:

Sem o apoio dos humanistas a Lutero, principalmente seu aliciamento


das 95 teses, é duvidoso que o ataque de Lutero contra Roma tivesse-
se tornado a causa célèbre que incendiou as mentes e as energias de
toda a Europa. [...] O humanismo, assim como o misticismo foi parte
da estrutura que possibilitou aos reformadores questionar certas
suposições da tradição recebida.14

Vários reformadores utilizaram da técnica dos humanistas, se debulhavam nos


clássicos, e Lutero não foi diferente, utilizando de uma revisão de tradução feita pelo
humanista Lorenzo Valla, da chamada “Doação de Constantino”, em que Valla
questiona a tradução da palavra grega metanoia, utilizada na época como “fazer
penitência”, Valla provou que o termo significa na verdade: “arrependimento”. Esta
revisão de tradução influenciou Lutero logo na primeira das suas 95 teses, um ataque
direto a indulgência: “Quando nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo disse: arrependei-vos
[Mt 4:17], queria que a vida inteira dos crentes fosse de arrependimento”. 15 Segundo
Huizinga:

A alma da Cristandade Ocidental tentava libertar-se das formas e dos


modos de pensamento que a agrilhoavam. A Idade Média sempre
vivera à sombra da Antiguidade, sempre se servira dos seus tesouros,
interpretando-os segundo os verdadeiros princípios medievais:
teologia escolástica e cavalaria, ascetismo e cortesia. 16

Neste contexto está inserido a Reforma Protestante: num mundo em que a


autoridade do Papa e da Igreja estava sendo confrontada pelos reis que almejavam o
absolutismo e se interessavam pelas terras da Igreja; a burguesia se fortalecia, clamava
participação na política e procurava meios de romper com as doutrinas católicas que
repreendiam o lucro; o apreço popular pela Igreja estava em baixa e os movimentos
intelectuais questionavam a teologia escolástica, além das grandes navegações que
contagiavam a Europa (veremos adiante). As 95 teses de Lutero estavam à porta, e esta
14
GEORGE, op. cit., p. 50.
15
Ibid. p. 49.
16
HUIZINGA, op. cit., p. 342.

14
iminente reforma seria um baque para o catolicismo. A partir das teses e dos
acontecimentos vindouros, a Igreja Católica perderia seu monopólio sobre o
cristianismo.

1.2 Lutero e as Teses

Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, na


Alemanha. Seu pai, Hans Luther, desejava que o filho fosse um estudante de direito, por
isso aos 18 anos, em 1501, foi enviado para a Universidade de Erfurt. Até 1505, Lutero
tornou-se bacharel em artes e recebeu o título de mestre. Todavia, ainda em 1505, no
caminho da universidade para casa, (outros dizem que no caminho de uma festa para a
casa), Lutero deparou-se com uma violenta tempestade, e estremecido prometeu que se
saísse vivo dali entraria em um mosteiro e se dedicaria a vida eclesiástica, da qual já
tinha demonstrado interesse na Universidade. Esse episódio marcaria profundamente a
vida de Lutero, o medo da morte e a preocupação com a salvação eram indícios de
como seria sua futura teologia. Lutero cumpriu sua promessa e se ingressou no
Convento dos Eremitas Agostinianos no dia 17 de julho de 1505, a ordem dos
agostinianos se distinguia pela rigidez da regra e pela seriedade teológica. Foi ordenado
sacerdote em 1507, graduou-se em Teologia um ano depois em 1508, e após alguns
conselhos de Johann Von Staupitz, seu mentor na ordem dos agostinianos e com quem
se confessava, tornou-se doutor em Teologia no ano de 1512.

A vida monástica de Lutero foi marcada por profundas crises espirituais, estava
sempre atormentado, triste, angustiado, e passava grande parte do tempo no
confessionário. O asceticismo monástico não diminuía suas crises, pelo contrário, só as
agravava. Lutero era um homem de seu tempo: “Quem não tiver em mente a obsessão
pela salvação e o medo do inferno que povoava os homens da Idade Média jamais
compreenderá sua mentalidade [...]”. (LE GOFF, 2016, p. 174). Uma vez que esse medo
da morte e a assombração do pecado o assolava, Lutero tornou-se amigo íntimo do
confessionário:

Ele se confessava a Staupitz durante horas, ia embora e depois voltava


correndo com alguma pequena fraqueza que havia esquecido de
mencionar. Certa vez, Staupitz, bastante exasperado, disse: “Olhe
aqui, irmão Martinho. Se você vai confessar tanto assim, por que não
faz algo digno de ser confessado? Mate sua mãe ou seu pai! Cometa
adultério! Pare de vir aqui com tais tolices e pecados falsos!”. Então
Lutero foi assolado por outra dúvida: “Será que fui verdadeiramente

15
contrito em minha confissão, ou meu arrependimento foi motivado
pelo medo?”.17

Além de suas crises espirituais que o deixavam à deriva e sem repostas, outro
ocorrido marcou a vida de Lutero, uma viagem que fez a Roma em 1510, enviado pela
ordem dos agostinianos para tratar de negócios. Ao ter contato com os escândalos
cometidos pelo clero e com os abusos da venda das indulgências Lutero ficou
horrorizado: “É sabido o quanto o comportamento desrespeitoso dos padres romanos ao
celebrar a missa escandalizou Lutero”. (BURCKHARDT, 2009, p. 433).

Em 1512, já doutor, Lutero foi indicado para ser professor de Teologia da


Universidade Wittenberg, onde sucedeu Staupitz. Como teólogo, Lutero começou a
preparação de uma série de sermões, e consequentemente sua teologia era afetada pelos
acontecimentos que já havia o sucedido. Dedicava-se cada vez mais ao estudo da Bíblia,
e influenciado pelo humanismo começou a estudar as línguas originais da Bíblia
(hebraico e grego). Entre 1513 e 1517 deu aulas sobre Salmos, Romanos, Gálatas e
Hebreus. Entretanto, a sua alma atormentada e angustiada, só encontraria repouso após
os estudos da carta de São Paulo aos Romanos, quando teve contato com o trecho de
Romanos 1:17: “O justo viverá pela fé”, acontecimento que marcaria profundamente
sua vida, como ele mesmo destaca:

“Noite e dia eu ponderei até que vi a conexão entre a justiça de Deus e


a afirmação de que o “justo viverá pela fé”. Então eu compreendi que
a justiça de Deus era aquela pela qual, pela graça e pura misericórdia,
Deus nos justifica através da fé. Com base nisso eu senti estar
renascido e ter passado através de portas abertas para dentro do
paraíso”.18

O fato de Lutero ter encontrado a resposta de sua angústia ao entender que a


reclusão monástica, o asceticismo, o flagelamento, e as suas próprias obras não
salvariam sua alma, mas sim a sua fé, foi de encontro direto com a indulgência, já que
essa garantia seu perdão pela simples compra de uma carta de absolvição assinada pelo
papa. Lutero passou então a pregar e ensinar sua “nova descoberta”, no mesmo tempo
em que o papa Leão X aumentava a venda das indulgências, pois a Igreja Católica
buscava recursos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Foi quando em
1517 o indulgente Johannes Tetzel, enviado pelo arcebispo Alberto de Mogúncia,
passou pela cidade de Wittenberg entoando o clássico cântico da venda das
17
GEORGE, op. cit., p. 66.
18
FERREIRA, F. Servos de Deus: espiritualidade e teologia na história da igreja. São Paulo: Editora Fiel,
2014. p. 172.

16
indulgências: “Na hora que a moeda no cofre cai, uma alma do purgatório sai”. Para
Lutero, que já havia tido contato com essa prática corrupta na sua viagem a Roma, e
agora já com suas convicções teológicas da salvação pela fé, planejou uma resposta
contra as indulgências, e segundo se conta, afixou na porta da Igreja do Castelo de
Wittenberg um “debate para o esclarecimento do valor das indulgências”, as 95 teses.

Publicadas em uma data estratégica, 31 de outubro, um dia antes do feriado do


dia de todos os santos, dia de agitação da igreja e dos fiéis, as teses era um ataque direto
ao papado e suas práticas corruptas, estas são algumas das teses:

36. Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão plena de pena
e culpa, mesmo sem carta de indulgência.
52. Vã é a confiança de salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o
comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.
86. Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos crassos, não constrói
com seu próprio dinheiro, ao menos esta basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com
o dinheiro dos pobres fiéis?

Nessa altura, em meados do século XV, outro alemão, Johannes Gutemberg


(1396-1468), já havia inventado a imprensa, um sistema mecânico que facilitava a
disseminação em massa de livros e afins. Sem a imprensa dificilmente a Reforma teria
tido sucesso, pois em pouco mais de dois meses as teses já haviam se alastrado por toda
a Europa chegando a vários outros países. Para os reis e as monarquias nacionais, apoiar
uma reforma religiosa significaria uma escapatória da autoridade papal, uma saída de
interesse político e econômico, camuflado de religioso. Porém, para os fiéis comuns e
aqueles que não se contentavam mais com seus vazios e perturbações espirituais, como
o próprio Lutero, era a emancipação de um cativeiro, uma alforria da alma, era a
salvação pela fé raiando novamente. Podemos afirmar que: “Lutero não se tornou
reformador porque atacou as indulgências. Ele atacou as indulgências porque a palavra
já havia criado raízes profundas em seu coração”. (GEORGE. 1993, p. 56).

Lutero pretendia inicialmente uma reforma doutrinária e espiritual na Igreja, pois


ele mesmo era um clérigo católico. Entretanto, ele não contava que a sua proposta de
reforma se tornaria um cisma, o maior da história da Igreja, que depois de iniciado, seria
um caminho sem volta, e Lutero aceitou esse caminho, os tumultos causados pelas teses
não se dissipavam, ele defendeu suas teses contra os abusos e corrupção da Igreja

17
firmemente, desde a disputa de Heidelberg19; o debate de Leipzig 20; até a dieta de
Worms, em 1521, em que defendeu publicamente sua posição diante de Carlos V,
imperador do Sacro Império Romano-Germânico, oque resultaria na sua excomunhão e
na proibição de seus ensinamentos.

A doutrina luterana foi proibida oficialmente até 1526, no ano em que houve
outra dieta, agora na cidade de Espira, essa dieta revogou o edito de Worms que proibia
os ensinamentos de Lutero, agora cada príncipe teria a liberdade de escolha para definir
as doutrinas permitidas ou não em suas regiões. Essa decisão foi alterada três anos mais
tarde, em 1529, quando houve outra dieta, novamente em Espira, essa nova dieta
revogou as decisões tomadas em 1526, e novamente proibiu a propagação das ideias
luteranas. Vários príncipes que já haviam se aderido ao luteranismo se descontentaram
da decisão e formularam um “protesto” contra as decisões da dieta de 1529, esse
documento ficou conhecido como o Protesto de Espira, daí emana o termo
“protestante”. Esse grupo de príncipes protestantes formou a Liga de Esmalcada em
1531, uma aliança contra o Imperador Carlos V do Sacro Império, após períodos de
guerra entre a Liga e o Imperador, a questão foi resolvida apenas em 1555, com a Paz
de Augsburgo, que reconhecia a liberdade de religião dos príncipes em seus territórios.

A Reforma Protestante não foi um movimento homogêneo, Lutero não estava


sozinho e houve discordâncias doutrinárias entre os próprios reformadores, porém,
todos concordavam com os ideais da Reforma em sua essência. Lutero faleceu aos 62
anos em 1546, sua Bíblia traduzida para o alemão se tornou um marco para a língua
nacional, e seus vários outros textos em relação ao estado, a educação e entre outros,
foram amplamente estudados e são até hoje. Suas últimas palavras estavam escritas num
papel à beira de sua cama e resume toda sua teologia, escrito metade em alemão, metade
em latim: “Wir sein Pettler, Hoc est Verum” (Somos mendigos, essa é a verdade).

Assim sucedeu a primeira geração de reformadores; entre acordos e desacordos,


momentos de perseguição, de paz, e principalmente convictos das ideias da Reforma: a
19
Ocorrida em abril de 1518 no salão de leitura da ordem dos monges agostinianos (ordem da qual fazia
parte), foi a primeira oportunidade de apresentar e explicar suas teses. Martin Bucer, um importante
reformador esteve presente no debate. JAHR, H; HAUG, H. Martinho Lutero: sua vida, sua teologia.
Introdução à bíblia de estudo da reforma. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017. p.8.
20
Ocorrido em junho de 1519, Lutero debateu com John Eck, professor da Universidade de Ingolstadt,
neste debate Lutero concordou publicamente que o papa e os concílios podem errar. John Eck, seu
debatedor, ajudaria na elaboração da bula “Exsurge Domine”, de 1520, que ameaçava Lutero de
excomunhão caso não se retratasse de 41 das 95 teses, Lutero queimou essa bula em praça pública em
dezembro do mesmo ano. Ibid. p.10.

18
salvação pela fé e pela graça divina, a livre interpretação da Bíblia, o perdão gratuito e
outros vários temas. Os lemas da Reforma Protestante são comumente conhecidos como
os cinco solas (Sola, palavra em latim que significa Somente): Sola Fide, Sola
Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria21. Essa geração contou com
grandes nomes que exerceram importantes papéis na disseminação da Reforma pela
Europa, como: Felipe Melanchton, principal discípulo de Lutero, humanista e ícone da
educação na Alemanha; Martin Bucer, reformador de Estrasburgo; Ulrich Zwinglio,
autor dos 67 artigos que culminariam na adesão da Reforma na Suíça; Tomas Cranmer e
William Tyndale, importantes reformadores na Inglaterra, e entre outros.

1.3 Calvino e Genebra

No entanto, o grande nome da Reforma Protestante ainda estava por vir, o de


João Calvino, nascido em 1509 em Noyon, na França. Pertenceu à segunda geração de
reformadores e foi o grande sistematizador da Reforma. Humanista, teólogo brilhante e
formado em direito, se converteu ao protestantismo entre 1527 e 1534 de forma súbita
(conversio sibita), como ele mesmo descreveu. Publicou a primeira edição de sua obra
magna, a “Instituição da Religião Cristã”, ou somente “As Institutas”, quando tinha
apenas 27 anos em 1536, essa que seria a obra que sistematizou a teologia da Reforma,
um tratado de quatro extensos volumes, que percorria assuntos desde ética cristã até
política. Calvino publicou a última edição revisada das Institutas em 1559. Sobre as
Institutas, George descreve:

O propósito básico das Institutas, porém, era catequético. Desde a


época de sua conversão, Calvino fora pressionado a atuar como
professor daqueles que estavam famintos pela fé verdadeira. [...] Ele
sabia, de primeira mão, a necessidade urgente de um manual de
instrução claramente escrito, que apresentasse os rudimentos de uma
teologia bíblica e levasse os jovens cristãos a uma maior compreensão
da fé.22

As Institutas é a primeira teologia sistemática da Reforma que abrange uma


totalidade da teologia e da cosmovisão reformada, é também um das mais usadas até
hoje pelos protestantes reformados.

Calvino nunca se encontrou com Lutero, esteve maior parte de sua vida em
Genebra, na Suíça, fugindo da forte perseguição aos protestantes que ocorria na França.

21
Somente a Fé, Somente a Escritura, Somente Cristo, Somente a Graça e Glória somente a Deus.
22
GEORGE, op. cit., p. 178.

19
Em Genebra, Calvino transformou as políticas públicas da cidade, fundou escolas,
hospitais e ajudou na elaboração das leis. (É de extrema importância nos atentarmos que
no contexto do século XVI, Igreja e Estado não eram esferas plenamente autônomas, o
laicismo estatal era inexiste, por isso Calvino juntamente com a Igreja Reformada teve
tamanha influência). Já se tratando de assuntos teológicos, Calvino solucionou vários
problemas doutrinários, mas também criou alguns, como o da predestinação, tema
amplamente debatido e muitas vezes mal interpretado. Apesar dos resultados finais
serem positivos, em Genebra Calvino passou por períodos conturbados, certa vez foi
expulso da cidade, depois chamado de volta, e se envolveu em algumas polêmicas em
relação à política e a religião.

Por fim, Calvino juntamente com outros grandes nomes da segunda geração
como: John Knox, Guilherme Farel, Pierre Viret e Teodoro de Beza, consolidaram o
movimento reformista, desenvolveram uma teologia sólida e fundamentada que deu
base para a fé reformada. Fizeram de Genebra uma espécie de Roma do Protestantismo.
John Knox, certa vez atribuiu a Academia de Genebra, escola fundada por Calvino,
como “a mais perfeita escola de Cristo desde o tempo dos apóstolos”.

Calvino, assim como Lutero, são clássicos, o pouco que discorremos de ambos
mal tocou a superfície de seus escritos e o oceano de ideias e interpretações de cada um
deles. Pela genialidade de ambos, Lutero e Calvino se tornaram os líderes de suas
gerações, um por iniciar e outro por consolidar a Reforma, oque não os coloca em
algum tipo de pedestal sagrado, ambos cometeram erros e não escapam do julgamento
da história, como destaca o teólogo Wilson Castro Ferreira:

Lutero é o gênio explosivo..., Calvino é, depois dele, o sistematizador


da Reforma, em que se encontra o espírito formado na escola de Belas
Letras e de Direito. [...] “Nem Calvino nem Lutero foram santos, no
sentido evangélico do termo. A violência de Lutero contra os
camponeses insurretos, o endurecimento de sua posição no final da
sua carreira e, anteriormente contra os suíços a propósito da Santa
Ceia, denuncia nele um elemento de fanatismo que se emparelha ao
autoritarismo de Calvino na perseguição de hereges”. 23

Apesar das divergências, que não foram poucas, no fim do século XVI e em
meados do século XVII, a Reforma Protestante já estava consolidada e o protestantismo
alcançara grande parte da Europa. Em suas diferentes manifestações, já havia: luteranos,
de forte presença na Alemanha; anglicanos, a religião inglesa fruto dos atos do Rei
23
FERREIRA, W. C. Calvino: vida, influência e teologia. São Paulo: LPC, 1985. p. 242.

20
Henrique VIII; morávios, na região da Boêmia; menonitas, seguidores de Menno
Simmons, expoente dos anabatistas, vertente que surgiu da ala radical da Reforma
Protestante, e principalmente pela influência de Calvino e seus escritos: os calvinistas,
também conhecidos como reformados. Em geral, na ótica da Igreja Católica todos eram
hereges protestantes, essa que seria a “nova religião”.

Devido à maturidade teológica e, sobretudo, ao caráter missionário, os


reformados calvinistas se estabeleceram em muitos países da Europa: na Suíça, berço do
calvinismo; na Escócia, como presbiterianos; na Inglaterra, como puritanos; e na
França, como huguenotes, sendo estes últimos, os primeiros a realizar uma tentativa de
implantação do protestantismo em terras brasileiras.

2 - A Reação Católica

É lícito mencionar que desde a segunda metade do século XV a Igreja Católica


flertava com uma reforma, o clero e os papas sabiam dessa necessidade, porém, essa
reforma não poderia ser feita radicalmente, e após 1517, sob nenhuma hipótese em
concordância com os ideais protestantes, nisto, após o sucesso dos reformadores
protestantes, a Igreja Católica iniciou um processo interno de reformas, a Reforma
Católica, mais conhecida como Contrarreforma.

Podemos destacar três principais investidas desse movimento: a criação da


Companhia de Jesus em 1534, na França, por Inácio de Loyola, os membros dessa
ordem monástica ficaram conhecidos como jesuítas, e se dedicariam principalmente na
área da educação, evangelização e combate às doutrinas protestantes, também faziam
votos de pobreza e castidade, de obediência integral ao papa e disponibilidade para
serem enviados ao trabalho estrangeiro nos recém-descobertos países. Outra reação foi a
reorganização do Tribunal do Santo Ofício, popularmente conhecida como Inquisição, a
retomada das atividades desse opressor sistema jurídico católico reprimiu fortemente as
ações dos protestantes na França, Itália, Portugal e Espanha, países que se mantiverem
firmemente católicos. Por fim, a outra medida foi a criação do Índice dos Livros
Proibidos, o Index, que proibia a circulação de escritos considerados heréticos. Vários
autores caíram no Index, não somente livros de cunho religioso eram banidos, filósofos
e cientistas famosos como: Rene Descartes, Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Erasmo
de Roterdã, John Milton e Nicolau Maquiavel também sofreram censura.

21
As medidas tomadas pela Contrarreforma foram de extrema importância para
impedir a penetração do protestantismo em territórios católicos. Essas e outras decisões
foram ratificadas pelo Concílio de Trento, que ocorreu em três sessões de 1545 a 1563.
Esse mesmo concílio também aprovou algumas reformas práticas na organização da
Igreja: foram condenados os abusos em relação à venda das indulgências, as práticas
corruptas de colecionar cargos e se casar, e os seminários se atentariam para uma
melhor formação de seus alunos. Apesar do teor reformista do concílio, toda a doutrina
protestante foi condenada como heresia e deveria ser combatida. Os resultados da
contrarreforma foram positivos, como destaca o historiador Carter Lindberg:

[...] o catolicismo romano foi revitalizado pelo surgimento de diversas


ordens novas, especialmente a Companhia de Jesus: pela ênfase em
um clero educado em seminários; pela formação de leigos por meio do
novo catecismo; e pela liderança exemplar de uma geração de bispos
que, agora, residiam em dioceses e pastoreavam o rebanho. 24

3 – Mundus Novus

No século XV, o comércio já era a principal fonte de renda dos estados-nações


da Europa. As famosas especiarias vindas da Índia circulavam pelo velho continente a
todo vapor e os principais centros comerciais eram as províncias italianas de Genova e
Veneza, que controlavam o mar Mediterrâneo. Porém, com a queda de Constantinopla
no ano 1453, agora sob domínio dos Turcos Otomanos, de religião Islã, as rotas
comerciais com o oriente se estreitaram, tanto por terra como por mar. A expansão
marítima em busca de novas rotas comerciais se tornou uma realidade para os reinos
europeus.

Favorecidos pela posição geográfica da península ibérica e banhados pelo


oceano Pacífico, Portugal e Espanha foram os pioneiros a se lançarem ao mar em busca
das novas rotas, Portugal já se lançara aos oceanos antes mesmo da queda de
Constantinopla. A cultura artística oriunda do renascimento colaborou para avanços
tecnológicos, esses avanços permitiram a criação da caravela e com a caravela os
navegadores se aventuraram cada vez mais longe e desbravaram cada vez mais
territórios. A expansão marítima forjaria Portugal e Espanha como os mais ricos
Impérios do século XVI. Essas expedições são conhecidas como Grandes Navegações,
eram financiadas pela coroa e pela alta burguesia (ambos interessados nos resultados
econômicos que a expansão oferecia), contavam também com o apoio da Igreja
24
LINDBERG, C. História da reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017. p. 405.

22
Católica, interessada não somente na parte econômica, mas também na difusão e na
expansão da religião.

Nesse período, o feudalismo passava por transformações; essas transformações


indicavam rupturas do sistema feudal, por outro lado indicavam também uma
continuidade, porém, uma continuidade transicional, que já preparava novos modos de
produção e de relação, uma espécie de pré-capitalismo, pois é nesse período que a base
da mentalidade capitalista é formada. Portanto, é necessário reconhecer ainda a
existência do feudalismo, mas também a existência de relações de cunho capitalista.
Esse período de transição, conhecido como mercantilismo, é marcado pela acumulação
de metais preciosos, prática chamada de metalismo. Uma vez que todas essas mudanças
estavam no mesmo contexto, os países não mais buscavam somente novas rotas
comerciais, mas também o acumulo de metais preciosos extraídos nas colônias.

Em 1492, em expedição pela coroa recém-formada da Espanha, o italiano


Cristóvão Colombo chegou ao que ele jurava ser a Índia, entretanto, aquelas terras eram
desconhecidas, era um novo continente, futuramente chamado de América. Dois anos
depois, em 1494, foi assinado o Tratado de Tordesilhas entre a coroa de Portugal e
Espanha. Com o aval do papa, esse tratado dividia as descobertas do “novo mundo”
entre as duas nações. Portugal, que ficou com a parte oriental do mapa, finalmente
completara a rota marítima até a Índia em 1498 com o navegante Vasco da Gama. A
Espanha, com o lado ocidental, já conquistava terras e explorava recursos na América.

Sem colônias e inconformados com o Tratado de Tordesilhas, outros países


como: Inglaterra, França e Países Baixos, questionaram a exclusividade Ibérica na
partilha do mundo e logo se lançaram aos oceanos em busca de novas rotas e novas
colônias, como muitas já estavam sob domínio dos ibéricos, começaram então promover
práticas de pirataria, corso, tráfico e contrabando nas regiões já descobertas, como
destaca o historiador Francisco Falcon:

Duas situações aparecem então com nitidez: a dos Estados que podiam
obter ouro e prata diretamente, extraindo-o das minas ou trocando-o,
por quase nada, no ultramar, e a dos Estados que, não podendo fazer
nada disso, só podiam tentar capturar o metal precioso através do
comércio e da pirataria. A primeira situação caracteriza, no século
XVI, os países ibéricos, enquanto que a segunda descreve a posição da
Inglaterra, França, Países Baixos, Estados alemães, repúblicas e
principados italianos, etc.25
25
FALCON, F. Mercantilismo e transição. São Paulo: Brasiliense. 1981. p. 84.

23
Uma das regiões que mais sofriam esses ataques eram as terras achadas por
Portugal no sul do continente americano, o Brasil. Achado em 1500 por Pedro Álvares
Cabral em expedição pela coroa portuguesa, era uma região constantemente afetada
pelas práticas corsárias dos europeus, principalmente da França, a mais revoltada com o
Tratado. A ideia de uma invasão francesa em terras colonizadas por Portugal fluiu e a
França financiou uma invasão oficial em 1555. Dessa invasão tivemos a primeira
influência direta da Reforma Protestante, o primeiro culto, e os primeiros mártires do
protestantismo em solo brasileiro. Outra invasão ganhou destaque, agora promovida
pelos Holandeses, em 1630, também com influências religiosas. Mas esses não foram o
primeiros protestantes em solo brasileiro.

4- O Protestantismo no Brasil Colônia (1500-1808)

22 de abril de 1500, os navegantes portugueses chegavam à terra de Santa Cruz,


o Brasil. Aqui pouca coisa chamou atenção, nenhuma civilização com potencial de
comércio, nenhuma especiaria ou metal precioso à primeira vista, apenas tribos nativas
que praticavam antropofagia e uma abundante madeira usada para atividade comercial
futuramente, o já conhecido pau-brasil. Após essa passagem, Cabral se rumaria à Índia
novamente, do qual sempre fora o destino dessa expedição.

Durante anos a metrópole portuguesa não investiu na colonização do Brasil,


essas expedições que levavam o pau-brasil para a Europa sofriam muitas vezes ataques
de corsários e piratas. Esse período de “descaso” com o Brasil ficou conhecido como
período pré-colonial. Com receio de perder a colônia devido aos ataques e invasões
estrangeiras que avolumavam a primeira medida administrativa tomada pela coroa
portuguesa foi à criação das capitanias hereditárias em 1534, esse sistema
descentralizado de governo dividiu o Brasil em 14 latifúndios (capitanias), porém,
devido precarização de recursos e a má administração, faliu rapidamente. Apenas duas
capitanias prosperaram: Pernambuco e São Vicente, uma pela produção do açúcar e
outra pelo comércio escravista, duas práticas predominantes ao longo do período
colonial.

Após a experiência negativa das capitanias, a coroa portuguesa decidiu


centralizar o poder com a criação do Governo-Geral em 1549, sendo Tomé de Sousa o

24
primeiro administrador. Ainda em 1549 chegaram também os jesuítas, para o trabalho
catequético com os nativos.

4.1 Os Primeiros Protestantes em Solo Brasileiro

Foi neste período, durante a primeira metade do século XVI, que passou por aqui
os primeiros protestantes. Foram dois luteranos: Heliodoro Heobanus e Hans Staden,
ambos alemães.26 Segundo o portal oficial dos luteranos no Brasil, Heliodoro Hessus, ou
Heliodoro Heobanus, era filho de Heobano Hessus, um famoso humanista e amigo de
Lutero27. Heliodoro chegou ao Brasil por volta de 1532, com a esquadra de Martin
Afonso de Sousa e residiu na capitania de São Vicente, em certa ocasião se encontrou
com Staden. Podemos confirmar a existência de Heliodoro, pois no prefácio do livro
escrito por Staden, em que ele relata suas duas viagens feitas ao Brasil, o prefaciador
Johannes Dryander, usa o encontro dos dois, relatado por Staden, como justificativa da
veracidade dos relatos sobre suas viagens ao Brasil:

Vejo provas bastante claras para a confiabilidade de seus dados no


fato de ele reportar lugar e hora onde se encontrou com Heliodoro,
filho do famoso Heobano Hessus, na terra dos selvagens. Heliodoro,
que já há muito nos deixara para terras distantes e que já
considerávamos morto, deve ter visto como este Hans Staden foi
impiedosamente feito prisioneiro e levado. Este Heliodoro, no entanto,
pode cedo ou tarde, como seria de desejar, retornar, e, se a história de
Hans Staden fosse falsa e mentirosa, este poderia desmascará-lo como
uma pessoa desonrosa.28

Esse encontro é relatado por Staden da seguinte maneira:

Certo dia, veio me ver na fortificação onde eu morava um espanhol da


ilha de São Vicente, que fica a cinco quilômetros. Com ele veio um
alemão de nome Heliodoro Hessus, filho do falecido Heobano Hessus.
Heliodoro trabalhava num engenho em de São Vicente [...]. Ele era
escrivão e tesoureiro dos comerciantes do engenho. Eu já tinha

26
Há supostamente mais um protestante alemão que esteve em solo brasileiro, o viajante e cronista Ulrich
Schmidl (1510-1579), Schmidl esteve no que seria futuramente o Rio de Janeiro entre 1534 e 1535, seus
relatos foram escritos na obra "História verdadeira de uma viagem curiosa feita por U. Shmidel",
publicada em Frankfurt em 1567. No entanto, não se sabe ao certo se Schmidl já era protestante quando
esteve no Brasil, ou se converteu após seu retorno a Europa em 1554. FIORETO, T. “Verissima et
ivcvndissima descriptio...” , de Ulrico Schmidl: literatura de viagem ou relato de viagem?. 2015.
245f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, São
Paulo, 2015. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/139419/000864898.pdf?
sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 26 jan. 2021. p. 205, 209-210.
27
A CAMINHO EM TERRAS BRASILEIRAS: A criação de comunidades evangélicas no Brasil. Portal
Luteranos. Disponível em: https://www.luteranos.com.br/conteudo/a-caminho-em-terras-brasileiras .
Acesso em: 12 jan. 2021.
28
STADEN, H. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2020.
p. 20.

25
travado conhecimento com Heliodoro anteriormente; quando
naufraguei com os espanhóis e o encontrei na ilha de São Vicente,
ajudou-me amigavelmente. Veio ao meu encontro para ver como eu
estava, pois tinha ouvido falar que eu adoecera. 29

Portanto, Heliodoro Heobano, segundo os registros, é o primeiro protestante em


terras brasileiras. Já o segundo, Hans Staden, é mais famoso e as fontes são mais
acessíveis.

Hans Staden nasceu em Hesse na Alemanha em 1524, era um aventureiro nato,


mercenário e arcabuzeiro, esteve duas vezes no Brasil. A primeira, em 1549, onde
passou por Pernambuco e Paraíba, e a segunda, em 1550, passando na ilha de Santa
Catarina e pela capitania de São Vicente (onde se encontrou com Heliodoro), nessa
segunda viagem, Staden foi preso por Tomé de Sousa, e depois levado prisioneiro pelos
índios tamoios. Suas aventuras e situações em que beirou a morte são muitas, Staden
sobreviveu e as relatou minuciosamente no seu livro com o imenso título de: “História
Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres
Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus
Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de
Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público
com essa Impressão”, ou resumidamente chamado de “Duas viagens ao Brasil”,
publicado em 1557. Este livro serviu de maneira fundamental para compreendermos os
rituais antropofágicos dos nativos, e se tornou um best-seller na Europa do século XVI.

Mas como sabemos sobre a religiosidade de Hans Staden? Primeiro: podemos


deduzir logo na dedicatória de seu livro, pois é dedicado a Filipe de Hesse, um
importante príncipe protestante, uns dos assinantes da carta de protesto ao imperador
Carlos V, e o líder da já mencionada Liga de Esmalcada. Segundo: as várias passagens
do livro em que Staden conta que orava e cantava hinos nos momentos em que se sentia
desamparado, no posfácio do livro, em que Staden deseja ao leitor a misericórdia e a
paz de Deus, ele escreve da seguinte maneira:

[...] Quis mostrar como o Salvador de todos os males, Nosso Senhor e


Deus, com seus poderes libertou-me, sem que eu pudesse esperá-lo,
do domínio dos selvagens. Cada qual deve ouvir como Deus todo-
poderoso protege e conduz seus cristãos detentores da fé, como desde
sempre o fez. Todos deverão ser gratos a Deus e confiar nele nos

29
Ibid. p. 61.

26
tempos de desgraça. Pois Deus ele mesmo diz: clama por mim na
desgraça, que virei salvar-te, e terás de me louvar. 30

Hans Staden se tornou um personagem ímpar na cultura e na história do Brasil,


várias foram as adaptações de suas aventuras, o escritor Monteiro Lobato, usou a
trajetória de Staden e publicou “As Aventuras de Hans Staden”, em 1927, livro
destinado ao publico infantil em que alegoriza as aventuras de Staden.

Hans Staden é, sobretudo, um exemplo daqueles europeus que escutavam sobre


o novo mundo e se arriscava vim conhecê-lo. As histórias fascinantes sobre o “Mundus
Novus” repercutiam pela Europa e criavam visões mirabolantes por lá, a intensa
movimentação nos portos, as ideias líricas de uma terra paradisíaca e de abundância
criava expectativas na mentalidade dos aventureiros europeus, um deles, o almirante
francês Nicolas Durand de Villegagnon.

4.2 A França Antártica

Não submetidas ao Tratado de Tordesilhas, as coroas europeias se sentiram


livres para a exploração das terras e para a conquista de territórios no novo mundo. Do
ponto de vista econômico, especificamente para a França, que jamais reconheceu a
divisão do mundo feita pelo papa, a presença estabelecida nas terras americanas era
fundamental para se inserirem nas novas rotas comerciais 31. A ideia de uma invasão
ganhava força, e “Desde o início do século XVI, havia na corte francesa vários
defensores de uma ofensiva militar nas Américas, após bem-sucedidas viagens de
navegadores franceses ao norte do Brasil”. (MARIZ, PROVENÇAL, 2005, p. 80).

A ideia de estabelecer aqui no Brasil uma colônia francesa parte do almirante


Nicolas Durand de Villegagnon, um das figuras mais controversas na história do Brasil.
Villegagnon nasceu em Provins, na França, em 1510, não nasceu nobre, entretanto, seu
pai, Louis Durand, recebeu o título de seignur de Villegagnon, oque melhoraria a
qualidade de vida de sua família, possibilitando educação de qualidade e casamentos
nobres. Villegagnon mudou-se para Paris em 1521, onde recebeu o ensino intelectual,
dominava pelo menos cinco línguas e se formou em direito no ano de 1530 aos 20 anos.
Villegagnon decidiu não seguir a carreira jurídica e se ingressou na escola de navegação
30
Ibid. p. 179.
31
EULER, R. W.; ARLINDO F.J.; ROBERTA B. M. A reforma chega à América: o pioneirismo da
França antártica. Ciências da Religião: história e sociedade, São Paulo, v. 15, n.1, p. 36-58, jan./jun.
2017. Disponível em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cr/article/view/10169 . Acesso em: 28
ago. 2020. p.38-39.

27
da Ordem de Malta, uma antiga e respeitada ordem advinda dos tempos das Cruzadas, a
ordem exigia clássicos votos de renúncia: pobreza, castidade e obediência, votos que,
com exceção da pobreza, ele guardaria por toda sua vida, Villegagnon recebeu
treinamento da ordem por nove anos no período de 1531 a 1540.

Após o fim do período de treinamento, Villegagnon foi enviado para Veneza e o


embaixador da França aproveitou de seus serviços, e partir dali começou um período
como diplomata. Na carreira de diplomata Villegagnon obteve respeito do imperador do
sacro-império Carlos V e do rei Francisco I da França, bem como de Henrique II,
monarca francês que assumiu o trono após a morte de Francisco. Durante seu período de
diplomata Villegagnon enriqueceu-se e tornou-se amigo de dois famosos poetas: Fraçois
Rabelais e Pierre de Ronsard, esse último certa vez compôs um poema em sua honra 32
e
lhe forneceu informações preciosas sobre a Escócia, e foi na Escócia que Villegagnon
entrou para a história.

Com o falecimento de Jaime V rei da Escócia, sua herdeira Maria Stuart estava
destinada a casar-se com Eduardo, filho do rei Henrique VIII da Inglaterra, entretanto,
Maria de Guise, mãe de Maria Stuart, não estava contente em entregar sua filha para
uma aliança com os ingleses, rivais históricos da Escócia e, além disso, uma nação
protestante. O rei da França Henrique II, sabendo disso, ofereceu um casamento entre
Maria Stuart e seu filho, futuro herdeiro da França, país extremamente católico, Maria
de Guise aceitou a oferta, porém, como tirar Maria Stuart da Escócia cercada por
ingleses? Esta foi a missão de Villegagnon. Informado sobre a Escócia através de sua
amizade com Ronsard, que havia trabalhado na embaixada francesa na Escócia,
Villegagnon contornou a Escócia e sorrateiramente “sequestrou” Maria Stuart
entregando-a sã e salva em solo francês. Este acontecimento colocou Villegagnon entre
os mais respeitados da Europa, e após sucesso em várias outras batalhas, em 1552 o rei
Henrique II o concedeu o título de vice-almirante da Bretanha.

Portanto, cavaleiro, diplomata, intelectual e vice-almirante da Bretanha,


Villegagnon “não era um pirata ignorante ou um aventureiro vulgar, mas sim uma
personalidade altamente estimada na corte francesa por sua valentia, habilidade
diplomática e preparo intelectual” (MARIZ, PROVENÇAL, 2005, p. 66), e o ambicioso
Villegagnon estava longe de encerrar sua carreira, o mesmo espírito aventureiro que o
32
MARIZ, V.; PROVENÇAL, L. Villegagnon e a França Antártica. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005. p. 61-62.

28
levou a ingressar na Ordem de Malta, o trouxe a uma rápida viagem ao litoral brasileiro
no Cabo Frio em 1554, se informando do que era necessário para fundar ali uma
colônia. A inciativa de fundar uma colônia francesa no Brasil é de fato uma ideia de
Villegagnon, e houve consenso na corte francesa de encarrega-lo da importante missão:
“O cavaleiro de Malta era, sem dúvida, o melhor chefe possível, dada sua bravura,
preparo militar, experiência nas lutas do mar, inteligência e cultura superior” (MARIZ,
PROVENÇAL, 2005, p. 81).

Após a viagem ao litoral brasileiro, Villegagnon voltou a Europa e começou a


articular suas ideias, motivando fiadores e homens para sua empreitada, conseguiu forte
apoio da coroa francesa por intermédio do ministro chefe da marinha, o almirante
Gaspar de Coligny. Entretanto, Villegagnon teve dificuldades ao montar sua tripulação:

A tripulação da pequena frota era a mais heterogênea, já que foi difícil


encontrar voluntários. Villegagnon percorreu as prisões do norte da
França, prometendo a liberdade aos que aderissem à expedição, e essa
baixa qualidade de seus seguidores iria causar-lhe não poucas
dificuldades.33

Villegagnon e sua tripulação heterogênea que ia de nobres, clérigos e até presos,


partiram do porto de Dieppe em 14 de agosto de 1555 e chegaram ao Brasil em 10 de
novembro de 1555, desembarcando na Baía de Guanabara, para fundar ali a França
Antártica. Estabeleceram-se numa ilha, a ilha de Serijipe (hoje ilha de Villegagnon), ali
levantaram casas, praças, e uma embrionária cidade que a nomearam de Henriville, em
homenagem ao Rei Henrique II, e para a defesa da ilha construíram um forte, chamado
Forte de Coligny, em homenagem ao ministro, conquistaram também a cumplicidade
dos índios Tamoios, que odiavam os portugueses. “Villegagnon esforçou-se por
conseguir o melhor relacionamento possível com os indígenas, [...] fator decisivo para o
sucesso inicial da implantação da colônia francesa” (MARIZ, PROVENÇAL, 2005, p.
78).

Pouco tempo após o período inicial de acomodação começaram a surgir vários


problemas na colônia, podemos destacar três principais causas: primeiro a péssima
qualidade do elemento humano. Os homens que Villegagnon recrutou nas prisões da
França eram indisciplinados e insubmissos, a rigidez que Villegagnon aprendera na
Ordem incomodava esses homens, era uma constante luta para que trabalhassem. A
segunda causa foi a drástica mudança climática que causou doenças e numerosas baixas
33
Ibid. p. 78-79.

29
na frota, Villegagnon que já tinha poucos homens de confiança, perdera alguns devido
às doenças. E por fim, a inflexibilidade religiosa de Villegagnon que refletia na
sexualidade dos homens de sua frota. Em grande maioria jovens e solteiros, Villegagnon
proibiu o contato com as indígenas, exigia o casamento para manterem relações sexuais,
para ele era inconcebível o casamento fora do matrimônio. Essas dificuldades de
relacionamento somadas a falta de recursos criou um estranho e pesado clima na
colônia, o intenso trabalho motivou conspirações contra o vice-almirante. A França
Antártica não sobreviveria sem ajuda da coroa, e:

[...] após poucos meses na Guanabara, Villegagnon já reconhecia a


precariedade de sustentação do empreendimento que propusera ao rei
Henrique II. Ele necessitava, e solicitou, três a quatro mil soldados
profissionais, bem treinados e disciplinados, centenas de mulheres
para se casarem aqui e operários especializados para construírem um
verdadeira cidade [...].34

Essas solicitações de Villegagnon não foram atendidas, Henrique II deixou claro


que era impossível enviar os reforços que o almirante pedira. Entretanto, um sobrinho
de Villegagnon que esteve com ele na primeira expedição e retornara a Europa,
chamado Boissy, seignur de Bois-le-Comte, que esteve na audiência em que Henrique II
recusou a solicitação de Villegagnon, se encontrou com o ministro Gaspar de Coligny e
pediu para que pensasse acerca dos pedidos de Villegagnon, sensibilizado com o pedido
o ministro prometeu pensar no assunto. Outra famosa carta teria sido escrita por
Villegagnon em 31 de março de 1557 e destinada ao reformador francês João Calvino,
com quem Villegagnon estudara na Universidade de Paris. Villegagnon teria solicitado
o envio de homens para ajudar na organização e no crescimento intelectual da colônia,
no entanto, é questionado entre os historiadores se essa carta foi realmente designada
diretamente a Calvino35, e se foi enviada antes, ou depois, do recebimento dos reforços.
Nesse meio tempo, o ministro Coligny se converteu ao protestantismo, passando a olhar
para a França Antártica como um refúgio aos protestantes franceses que sofriam forte
perseguição na ali. Em vista disso, Coligny atendeu a proposta de Bois-le-Comte e
aderiu à ideia da nova frota na intenção de uma futura escapatória dos protestantes,
logo, entrou em contato com Philippe de Carguilleray seignur de Du Pont, e pediu para
que organizasse um grupo de protestantes para serem enviados para o Brasil. Essa
segunda leva de homens partiu em 19 de novembro de 1556 e chegaram a Guanabara
em7 março de 1557. A frota comandada por Bois-le-Comte levava medíocres reforços,
34
Ibid. p. 94.
35
EULER.; ARLINDO.; ROBERTA. op. cit., p. 40, 41-42.

30
cerca de 300 pessoas e entre eles cerca de treze protestantes enviados por Coligny e
Calvino, entre eles os huguenotes: Pierre Richier, teólogo formado; o estudante de
Genebra Guilherme Chartier; o próprio Du Pont, amigo de Coligny; o luterano Jean
Contait; e Jean de Léry, que futuramente escreveria uma obra polêmica e indispensável
sobre a França Antártica36.

À primeira vista os protestantes foram bem recebidos por Villegagnon, que


mesmo descontente com os reforços o aceitou de bom grado. As fontes históricas
passam a divergir a partir daqui, pois não se sabe se Villegagnon de fato convidou
protestantes para sua colônia, visto que era católico e na primeira frota estava apenas o
clérigo André Thevet, que também escreveria uma obra sobre a França Antártica 37, e
alguns beneditinos que fundaram uma pequena escola católica. Tudo indica que a
inciativa de enviar protestantes para a França nunca veio de Villegagnon e nem de
Calvino, mas sim de Coligny. Todavia, os huguenotes se acomodaram e no dia 10 de
março de 1557 foi realizado o primeiro culto protestante em solo brasileiro, os
historiadores dão pouca ênfase ao fato de que entre a primeira missa 38 e o primeiro
culto, houve um espaço de apenas 57 anos.

O bom convívio de Villegagnon com os protestantes durou pouco, na páscoa de


1557 começou um debate sobre a eucaristia e a natureza da ceia de Cristo, os debates
acerca da eucaristia acirravam os nervos no século XVI. Tudo indica que ocorria
discussões generalizadas e havia discordâncias entre os próprios protestantes, visto que
havia aqui calvinistas e luteranos, que divergem no tocante a eucaristia até hoje. Os
debates entre Villegagnon e Cointat inauguraram o clima de disputas na colônia, além
do mais, as práticas dos reformados não agradavam ao almirante, os calvinistas eram
missionários, inquietos, pregavam não apenas aos nativos, mas também aos franceses
que ali já estavam.

Villegagnon e os protestantes vivam se provocando, esses debates ocorriam


costumeiramente em casamentos, e em um desses a discussão se acalorou ainda mais,
dessa vez em relação ao batismo, pois Richier alegou que os noivos deveriam se
rebatizar antes do casamento, e desta vez: “Villegagnon perdeu as estribeiras e
36
Traduzido como “Viajem a Terra do Brasil”, publicado originalmente em 1578.
37
Traduzido como “As singularidades da França Antártica”, publicado originalmente em 1557.
38
Celebrada por Dom Henrique Soares de Coimbra no dia 26 de abril de 1500, quatro dias após o
“descobrimento” do Brasil. CÉSAR, E. M. L. História da evangelização do Brasil: dos jesuítas aos
neopentecostais. 2. ed. Viçosa: Ultimato, 2000. p. 20.

31
respondeu-lhe que depois dessa tolice não faria mais as refeições em companhia dos
calvinistas e os proibia de administrar os sacramentos” (MARIZ, PROVENÇAL, 2005,
p. 113). A ruptura de Villegagnon com os protestantes se deu de fato após Du Pont
declarar que Coligny havia o enviado para fundar uma colônia calvinista no Brasil.
Villegagnon já havia limitado o tempo dos cultos e aumentado a repressão aos
protestantes, que já aguardavam ansiosos para retornar a Europa 39, Chartier retornou a
Europa em 4 de junho para ter com Calvino, e os que aqui ficaram comunicaram a
Villegagnon que desejavam retornar a Europa. Ficou decidido que na embarcação que
Chartier partiu, assim que voltasse eles poderiam ir embora, no entanto, não queriam
esperar e embarcaram na primeira nau francesa que apontou na região, o velho navio
Jacques, que partiu dia 4 de janeiro de 1558 carregando pau-brasil, animais e etc. Após
algumas dificuldades na embarcação, o capitão da nau não permitiu que cinco deles
reembarcassem, e esses voltaram a Guanabara. Villegagnon disse que poderiam ficar
desde que “se portassem bem”, mas desconfiados tentaram fugir e Villegagnon
conseguiu aprisionar quatro deles na acusação de traição e deserção. Jacques Le Balleur,
o outro dos cinco que retornaram conseguiu escapar antes de ser preso.

Como era de direito e de costume, Villegagnon solicitou a eles a resposta de um


“questionário teológico”. A elaboração de um novo documento explicando a doutrina da
qual acreditavam, veio a ser conhecida, segundo Erasmo Braga 40, como a Confissão de
Fé Guanabara, primeira confissão de fé em terras brasileiras, elaborada e assinada por
quatro leigos calvinistas presos: Jean de Bourdel, Matthieu Verneruil, Pierre Bourdon e
André Lafon, esse último era o único alfaiate da colônia, e foi poupado por falta de
provas (muitos dizem que na verdade ele se apostatou), os outros três signatários foram
mortos em 9 fevereiro de 1558, por ordem de Villegagnon e do conselho da colônia, se
tornando, segundo Jean Crespin, os primeiros mártires do Brasil. Esse acontecimento
seria uma prévia do que aconteceria na França anos depois, uma perseguição religiosa
que matou mais de 30 mil protestantes no massacre de São Bartolomeu em 1572, entre
eles o ministro Gaspar de Coligny.41

Sobre Villegagnon, ficaram eternas dúvidas em relação a sua pessoa e suas


atitudes. Foi acusado pelos calvinistas que retornaram a Europa de “Caim das

39
EULER.; ARLINDO.; ROBERTA. op. cit., p. 43-45
40
Erasmo Braga (1877-1932) foi pastor, professor, escritor e tradutor. Traduziu o livro de Jean Crespin
“A Tragédia de Guanabara”.
41
CÉSAR, op. cit., p. 38-39.

32
Américas”, exageraram na propaganda difamatória sobre o almirante, sobretudo, após a
publicação do livro de Jean Crespin: A TRAGEDIA DE GUANABARA ou Historia dos
Protomartyres do Christianismo, publicado em Genebra entre 1558 e 1570, em que é
descrito de maneira impiedosa a forma como Villegagnon tratou os protestantes, como
se fosse ele um inquisidor. O livro de Jean de Léry: Viajem a Terra do Brasil de 1558,
também não poupou ataques a Villegagnon. De fato, houve vários escritos apaixonados
que colocavam Villegagnon como vilão, ou como herói. João Calvino, do qual não sabe
se trocou ou não cartas diretamente com Villegagnon, teve contato com as noticias e se
irritou profundamente com seu antigo colega de faculdade, certa vez disparou que se
Villegagnon fosse a Genebra, não sairia de lá vivo. A história de Villegagnon com os
protestantes na França Antártica é “sombria”, cheia de incertezas que abrem portas para
inúmeras interpretações. Herói ou vilão, Villegagnon era rígido, inflexível, e por vezes
debochado. A confissão de fé exigida existe de fato, mas há dúvidas quanto à acusação
dos calvinistas de que o almirante havia se convertido ao protestantismo, no entanto se
apostatou e cometeu martírio. Segundo o historiador Osvaldo Henrique Hack:

[...] conclui-se que o grupo de protestantes europeu foi apenas um


joguete político nas mãos do ambicioso Villegagnon. [...] que não
estava interessado na instalação de uma nova igreja para adotar
princípios religiosos diferentes, mas queria resolver os problemas da
nova colônia pela imposição de leis religiosas. 42

Sob todos os aspectos a França Antártica foi um fracasso, Villegagnon errou


mais do que acertou na Guanabara, apesar de seu brilhantismo como diplomata, sua
ótima relação com os nativos e a ótima escolha do Forte Coligny, sua inflexibilidade
que quase sempre reagia com violência a discordâncias foi seu infortúnio, tivesse sido
ele mais flexível e tivesse recebido as demandas que solicitou, certamente a história do
Brasil, ou pelo menos do Rio de Janeiro, não fosse como conhecemos hoje. Cansado de
pedir recursos à coroa, retornou a Europa em maio em 1559 após as acusações do
suposto martírio chegar por lá. Respeitado, porém difamado, Villegagnon retomou sua
vida na Europa, e retomou também sua disputa com Calvino, infelizmente esse debate
nunca aconteceu. Villegagnon faleceu em 1571 sem deixar uma grande herança, legou
seus bens aos “pobres de Paris”. Os franceses foram expulsos da baía em 1567, na
vitória portuguesa comandada por Mem de Sá.

42
HACK, O. H. Implantação do protestantismo. In: _____. Protestantismo e educação brasileira. 2. ed.
São Paulo: Cultura Cristã, 2000. cap.1, p.14.

33
A França voltou a invadir o Brasil em 1612, dessa vez no Maranhão, para fundar
a França Equinocial. Há relatos de protestantes nessa ocasião, no entanto, mantiveram
sua fé no âmbito individual sem causar alvoroços como na França Antártica. Segundo
(MENDONÇA, 2008, p. 41) “[...] é possível que os protestantes tenham se limitado às
devoções particulares domésticas. A curta existência da França Equinocial encarregou-
se também de eliminar as futuras influências protestantes no Maranhão”.

O protestantismo em Guanabara foi então a primeira manifestação da Reforma


em solo brasileiro, e foi também o retrato perfeito do que era a religião do século XVI:
disputas teológicas ferrenhas, disputas entre os próprios protestantes e suas doutrinas,
acusações de ambos os lados, martírio, e guerra. Indiscutivelmente, é legado aos
calvinistas na França Antártica o primeiro culto, a primeira confissão de fé, e os
primeiros mártires do Brasil.

4.3 O Brasil Holandês

Quando tratamos da Holanda no século XVI e XVII, estamos falando de várias


províncias unidas chamadas de Países Baixos, localizadas na Europa ocidental e que
iniciaram seu processo de independência da Espanha a partir de revoltas em 1568,
processo que entre guerras e tréguas duraria 80 anos. Os Países Baixos se tornou uma
região de pouca influência católica, nisso, o protestantismo alcançou certa liberdade
religiosa, passando a exercer forte influência na região, tanto em decisões políticas,
como econômicas, e obviamente religiosas.

Parceiros comerciais de Portugal de longa data, a Holanda, ainda em guerra de


independência com a Espanha, viu em 1580 a incorporação do reino de Portugal a coroa
espanhola na União Ibérica, devido à crise dinástica de sucessão do trono português
após a morte de Dom Sebastião. A partir dali, Portugal, sob comando da Espanha do rei
Felipe II, começa a atingir a Holanda criando vários impostos em relação ao comércio
com os portugueses, como destaca o especialista Evaldo Cabral de Mello:

Tais relações não poderiam escapar às consequências do conflito


hispano-neerlandês, a começar pelos sucessivos embargos sofridos por
navios batavos em portos da Península, medidas que afetavam o
suprimento de certos produtos indispensáveis à economia das
Províncias Unidas, em especial o sal português [...]. 43

43
MELLO, E, C de. O Brasil holandês (1630-1654). São Paulo: Penguin Classics, 2010. p. 11-12.

34
A Holanda, considerada a “primeira economia moderna”, para manter-se ativa
no comércio, promove uma expansão colonial financiada pelas suas companhias de
comércio, sociedades fundadas por burgueses e outorgadas pelo Estado que buscavam
investimentos e lucros nas regiões coloniais, a primeira delas foi a Companhia das
Índias Orientais (VOC)44, fundada em 1602, e depois, a Companhia das Índias
Ocidentais (WIC)45, em 1621, fundada por comerciantes calvinistas emigrados na
Holanda. A WIC foi fundada no mesmo ano em que acabara a trégua hispano-
neerlandesa (1609-1621), e no mesmo ano que a coroa espanhola proibiu o comércio
entre Portugal e Holanda. Em resposta, a WIC financiou uma invasão ao Brasil em
1624, em Salvador, sede do governo colonial. Atacar o Brasil, colônia de Portugal, era a
forma indireta de atacar a Espanha.

Há motivos nítidos para entender porque o Brasil foi o alvo: primeiro por não ser
a principal fortaleza defensiva dos espanhóis; segundo pela ótima localização do
Nordeste brasileiro; por fim e o mais importante fator, o montante lucro que o açúcar e
o pau-brasil oferecia, estima-se que “uma vez conquistada a um custo máximo de 2,5
milhões de florins, a colônia renderia anualmente cerca de 8 milhões de florins”
(MELLO, 2010, p. 29). Além do mais, “A estratégia holandesa de combate ao Império
Espanhol era atacar o ponto forte, não o fraco. A riqueza espanhola àquelas alturas
provinha do açúcar brasileiro” (SOUZA, 2013, p. 29). A Holanda, graças ao constante
contato com os portugueses, conhecia bem as condições econômicas e geográficas do
Nordeste, por isso Bahia e Pernambuco foram desde o início os alvos. No entanto, essa
primeira invasão de 1524 foi reprimida pelos resistentes colonos e pela marinha
espanhola, Salvador foi reconquistada pelos portugueses em 30 de abril de 1625.

Após lucrar com práticas corsárias depois da expulsão, a WIC voltou a financiar
outra invasão, no ano de 1630, agora em Pernambuco e adjacências, com uma armada
maior e melhor preparada apontaram em 14 de fevereiro nas portas de Olinda.
Conquistaram grandes terras do Nordeste brasileiro em uma guerra que durou longos
sete anos e passaram a dominar a produção do açúcar e as rotas comerciais que dele
derivava. Os holandeses estiveram no Brasil de 1630 a 1654, nesse período podemos
tripartir as fases: uma fase inicial e de guerras de conquista, que demorou mais que os
holandeses imaginavam (1630-1637), uma fase de paz e prosperidade, sobretudo

44
Vereenigde Oost-Indische Compagnie
45
West Indische Compagnie

35
associada ao governo de João Maurício de Nassau (1638-1645), e uma fase final de
guerra de reconquista dos portugueses (1645-1654).

É no governo de Maurício de Nassau que o Brasil Holandês tem seu ápice.


Nassau era calvinista, e graças a uma longa tradição familiar de erudição era também
um humanista, amante das artes, da fauna e da flora, e um homem preocupado com a
visão dos europeus em relação ao Brasil. “Nassau fez-se acompanhar ao Brasil de uma
comitiva de pintores e cientistas, pagos do seu bolso, com o objetivo de documentar a
vida na colônia, suas raças, sua flora e sua fauna” (MELLO, 2010, p. 162).

Graças ao espírito nassoviano, se gozou de um período em moldes renascentistas


no Nordeste brasileiro, a presença de vários artistas, a reconstrução da cidade em
moldes europeus, e principalmente a liberdade religiosa, não só para os protestantes,
que eram maioria na Holanda, como para judeus46 e católicos. A liberdade era um
princípio básico de sua administração, Nassau tratou de libertar os negros que havia
lutado na guerra de conquista com a Holanda, e lutou pela liberdade econômica de
investimento (já que o monopólio pertencia a WIC). No entanto, a liberdade religiosa
era para Nassau uma base para o Brasil, como ele mesmo expõe em suas
recomendações ao governo que o substituiu: “No eclesiástico ou nas coisas da Igreja, a
condescendência ou tolerância é mais necessária no Brasil do que qualquer outro povo a
quem se tenha concedido liberdade de religião”. (MELLO apud NASSAU, 2010, p.
219).

Para entender a liberdade religiosa no Brasil Holandês é necessário nos


atentarmos para a própria formação da Holanda, que em seu processo de independência
lutava obviamente pela emancipação política e econômica, mas paralelamente lutava
também pela emancipação religiosa, pois em grande maioria já eram calvinistas e se
viam subjugados pela coroa católica e perseguidora da Espanha. Com a independência,
a Holanda se tornou o primeiro Império Protestante da Europa, o próprio fundador da
nação, Guilherme de Nassau, príncipe de Orange, ou Willem D’Orange, foi considerado
um mártir e sua morte é relatada por John Foxe no “Livro dos Mártires”:

[...] Ao ser alvejado, o príncipe apenas disse: “Senhor, tenha piedade


de minha alma e dessas pobres pessoas”, e expirou imediatamente. As
lamentações em todas as províncias unidas foram gerais [...] O funeral
do príncipe de Orange foi o maior já visto nos Países Baixos, e talvez

46
Fundada em 1637 em Pernambuco, a Sinagoga Kahal Zur Israel foi a primeira sinagoga das Américas.

36
a tristeza por sua morte tenha sido a mais sincera, pois deixou para
trás reputação que lhe fazia jus, a saber, a de pai do seu povo. 47

A Holanda se tornou um verdadeiro “centro de refugiados”, calvinistas,


luteranos e outras minorias migravam para lá fugindo das perseguições religiosas
atenuantes no século XVII e encontravam proteção do Estado holandês. Isso nos leva a
outro fator, a relação entre Estado e Igreja na Holanda. No século XVII era impossível
pensar uma Igreja autônoma, pois sem a proteção do Estado ela mesmo não
sobreviveria. Portanto, na Holanda, se tinha em comum a defesa e a aceitação de que era
dever do Estado proteger a Igreja, e esse ideal, é transportado para o Brasil:

Os pastores que chegaram ao Brasil no século XVII acreditavam


piamente que era dever do Estado proteger a Igreja, pois era uma
época em que a união de ambas em um Estado que não fosse
protestante era quase impensável para a sobrevivência dessa igreja.
Não é à toa que a experiência de tolerância religiosa durante o
governo de Nassau é admirada por todos.48

À vista disso, a Igreja reformada holandesa no Brasil desenvolveu essas mesmas


características, “O protestantismo no Brasil Holandês foi um fator de inclusão, não de
exclusão. A religião foi usada para incluir os índios na cultura, na sociedade e no Estado
Holandês.” (SOUZA, 2013, p. 53). A Igreja desenvolveu um trabalho missionário
exemplar entre os indígenas, durante sua estadia no Brasil, estima-se que foram
fundadas 22 igrejas, que contaram com 54 pastores e 120 presbíteros e diáconos. Foi
escrito até mesmo um catecismo em língua tupi, publicado na Holanda em 1641, e
chegado ao Brasil em 1642. Essa influência chegou a ganhar admiração dos jesuítas, e
também sua preocupação:

Os jesuítas viam a expansão apreensivos e reconheciam a influência


protestante na Província. O padre André de Barros refere-se ao
trabalho dizendo: Estavam os índios tão calvinistas e luteranos como
se nascessem na Inglaterra ou Alemanha.49

Podemos destacar a multiplicidade étnica no Brasil Holandês e seu reflexo na


Igreja reformada, lá se encontrava: franceses, ingleses, alemães, belgas, poloneses,
portugueses, judeus, índios e africanos. A Igreja Reformada Potiguara, segundo
Jaquelini de Souza, é a primeira Igreja Protestante brasileira, e em especial, uma igreja
indígena, que contou com famosos nomes como o de Pedro Poty e de Antônio
47
FOXE, J. O livro dos mártires. São Paulo: Principis, 2020. p. 240-241.
48
SOUZA, J de. A primeira igreja protestante do Brasil: igreja reformada potiguara (1625-1692). São
Paulo: Editora Mackenzie, 2013. p. 34.
49
HACK apud RODRIGUES, op. cit., p.16.

37
Paraupaba, “pode-se afirmar que a igreja indígena nasceu com a conversão de Pedro
Poty e Antônio Paraupaba na Holanda e que eles são, portanto, os primeiros cristãos
protestantes brasileiros e, talvez, não europeus da história”. (SOUZA, 2013, p. 92).

Em vários momentos a WIC se desentendeu com a Igreja, como uma companhia


que visa o lucro, se interessavam na mão de obra indígena, entretanto, estes índios se
viam protegidos pela Igreja, que por sua vez era protegida pelo Estado, a proteção
desses nativos levava a fidelidade dos mesmos, que até lutavam em nome da Holanda e
acreditavam no projeto colonial. Diferente do que se imagina, devido a multiplicidade
de povos e culturas, a Igreja Reformada Holandesa era rígida, havia silêncio
generalizado ao redor das reuniões, guardavam o domingo, havia reuniões do sínodo
duas vezes ao ano para debaterem problemas apresentados, e as atas que eram redigidas
dessas e outras reuniões serviram como fonte documental primária, graças a isso,
segundo Evaldo Cabral de Mello: “O domínio holandês no Nordeste é seguramente o
período mais bem documentado da história colonial do Brasil, tanto do ponto de vista
do volume das fontes bem como da variedade de seus gêneros”. (MELLO, 2010, p. 14)

De fato, com a presença protestante no Nordeste brasileiro, podemos dizer que a


primeira colônia protestante e a primeira experiência de liberdade religiosa das
Américas foi o Brasil, não os EUA. A diferença é que o projeto colonial brasileiro é
interrompido, já nos EUA não há interrupção. Apesar de todas essas características, esta
ressalva do pastor e jornalista Elben Lenz César é válida:

Embora tenha desenvolvido um trabalho missionário principalmente


entre os indígenas, a Igreja Reformada Holandesa se estabeleceu no
Nordeste brasileiro não como resultado do anúncio do evangelho. Ela
foi simplesmente transportada para cá por ocasião da ocupação
holandesa, em 1630, e desapareceu em seguida à expulsão dos
invasores, em 1654.50

A Igreja Reformada Holandesa, como parte do Brasil Holandês, refletiu seus


altos e baixos assim como o governo holandês enquanto presente no país. A União
Ibérica terminou em dezembro de 1640 após um golpe de Estado que encerrou os 60
anos da dominação espanhola de Portugal, a partir dali, entre negociações e guerras de
reconquista, os holandeses foram expulsos por Portugal em 1654, encerrando os 24 anos
de domínio holandês no Nordeste brasileiro. Com o fim do Brasil Holandês, foi

50
CÉSAR, op. cit., p.50.

38
dizimada aos poucos a tradição calvinista, rejeitada por motivos óbvios pelos católicos
luso-portugueses.

Os nativos que haviam se convertido não se “desconverteram”, no entanto,


segundo o especialista Frans Leonard Schalkwijk, o famoso Padre Antônio Vieira
enviou os jesuítas com a missão “de cuidar espiritualmente dos índios em geral, com
uma recomendação especial pela “reformação” dos índios influenciados pelos
holandeses”. (SOUZA apud SCHALKWIJK, 2013, p. 118). A missão pode ser
considerada um sucesso, muitos índios se adaptaram a obediência católica e aos poucos
a influência reformada foi desaparecendo. Apesar desse “desbatismo” da fé reformada,
a mentalidade protestante pode ter criado raízes profundas na vida dos índios
nordestinos.

Se é legado a França Antártica as experiências do primeiro culto, confissão e


martírio, é legado ao Brasil Holandês as primeiras Igrejas; os primeiros “brasileiros”
convertidos; e a primeira experiência de liberdade religiosa das Américas.

4.4 A “Idade das Trevas” do Brasil Colonial

“Idade das Trevas” foi o nome que Erasmo Braga deu ao período que vai da
expulsão dos holandeses até a chegada da Família Real no Brasil em 1808. Durante esse
período não há registro algum de influência do protestantismo no Brasil. A forte
presença dos jesuítas e a “caça as heresias” foi um fator, no entanto, a principal causa
desse desaparecimento foi uma série de leis sancionadas pelo rei dom João V em
Portugal.

No início do século XVIII, a corrida pelo ouro já estava lançada no Brasil e


atraía milhares de pessoas vindas de Portugal para a colônia. Essa migração em massa
obrigou a coroa a criar leis contra a entrada de pessoas no Brasil, segundo o historiador
Lucas Figueiredo:

[...] a migração foi tão intensa que a coroa se viu obrigada a baixar
três leis proibindo que moradores da região se mudassem para o
Brasil. [...] “Meio Portugal” se transplantou para o Brasil. [...] A cada
ano, de 8 mil a 10 mil portugueses trocavam o reino pela colônia. 51

51
FIGUEIREDO, L. Boa ventura!, A corrida do ouro no Brasil (1697-1810): a cobiça que forjou um
país, sustentou Portugal e inflamou o mundo. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 145.

39
Essas leis foram sancionadas em 1709, 1711 e a última em 20 de março de 1720,
essa última, para suprir a ineficácia das anteriores, obrigou o uso do passaporte em
Portugal e também limitou a entrada de qualquer pessoa no Brasil se não fosse a serviço
da coroa ou da Igreja, a lei também previa multas para quem não tivesse o passaporte,
oque não garantiu sua eficácia, pois a lei foi amplamente desobedecida.

Todavia, em Portugal não havia protestantismo atuante que pudesse constatar


perigo, o efeito dessa lei acabou por afastar imigrantes vindo de países protestantes,
como é o caso do alemão Barão von Humboldt, que foi impedido de entrar no Brasil em
1800 por seu suposto protestantismo:

[...] Desde o século XVI a caça a heresias foi constante. “Por toda
parte surgiram suspeitas de que se espalhava o mal de Lutero”. Em
1800 ainda o Governo português alertava as autoridades do Pará para
a hipótese do desembarque de “um tal Barão de Humboldt”. Oque
mais alarmava o Governo era a possibilidade de o Barão espalhar na
terra “novas idéias de falsos e capciosos princípios”. 52

O único relato de algum protestante no Brasil nesse período é a curta presença


do missionário anglicano Henry Martin, que foi o primeiro anglicano a pisar no Brasil
no ano de 1805:

Em viagem para a Índia, seu navio aportou durante 15 dias em


Salvador, Bahia, onde manteve contato com padres, falando em
francês e latim. Encantado com as belezas naturais do país, escreveu
em seu diário: “Quem será o ditoso missionário que irá trazer o nome
de Cristo a esta região ocidental? Quando será este país libertado da
idolatria e do Cristianismo espúrio? Cruzes há em abundância, mas
quando será aqui anunciada a doutrina da Cruz?”53

Após esse curto período, Martin retomou seu caminho para a Índia, onde fez um
trabalho missionário exemplar e é até os dias atuais lembrado pela Igreja Anglicana por
seu vigor evangelístico e sua disposição. O missionário mal saberia que suas objeções
estavam perto de serem respondidas. Com a chegada da Família Real em 1808 as portas
do Brasil paulatinamente se abririam para novos povos, com novas doutrinas e formas
de crenças acatólicas, era o fim da “Idade das Trevas” colonial.

4- O Protestantismo de Imigração

52
FERREIRA, J. A. Religião no Brasil. Campinas: LPC, 1992. p. 40.
53
KICKHOFEL, O. Notas para uma história da igreja episcopal anglicana do Brasil. Porto Alegre:
Secretaria Geral da IEAB, 1995. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/historiadaigreja/
apontamentos_de_historia_da_%20ieab.pdf . Acesso em: 03 fev. 2021. p. 5

40
Ao final da Revolução Francesa (1789-1799), o general Napoleão Bonaparte
após o golpe de 18 de Brumário se tornou o imperador da revolucionária França.
Inimigos históricos da Inglaterra, que já estava avançada no processo de industrialização
e do comércio dessas mercadorias industrializadas, era um impedimento para a
expansão territorial que Napoleão e os franceses desejavam. Em guerra, Napoleão usa
então de estratégias para atingir sua potente rival, uma dessas, o Bloqueio Continental
de 1806, uma medida que proibia os países a comercializar com a Inglaterra, visando
desestrutura-los economicamente.

Um dos principais aliados e dependentes comerciais da Inglaterra era Portugal,


que na prática não se aderiu ao bloqueio, e por isso recebeu um ultimato de Napoleão
caso não encerrasse suas atividades comerciais com os ingleses, que por sua vez, através
do ministro diplomata Lorde Strangford, insistiam para que a monarquia portuguesa se
refugiasse na sua principal colônia, o Brasil, a fim de evitar conflitos futuros, e para
manter suas relações comerciais. Temendo uma invasão das tropas napoleônicas, dom
João VI, regente do Império português, então foge estrategicamente para o Brasil em 29
de novembro de 1807, com uma escolta oferecida pelos ingleses, que com sua Marinha
dominava os mares, era a maior e mais bem preparada. A corte real portuguesa chega ao
Brasil em 22 de janeiro de 1808, com sua monarquia salva e em dívida com os ingleses.
Napoleão futuramente mencionaria dom João VI como o “único que o enganou”.

4.1 A Abertura dos Portos, o Tratado de 1810 e a “Liberdade” Religiosa

Ao Brasil, era permitido o comércio único e exclusivamente com sua metrópole,


Portugal. Essa foi a primeira decisão revogada por dom João VI em solo brasileiro,
ainda na presença dos ingleses ao fim da escolta, e sob pressão dos favores a serem
pagos, foi decretado a Abertura dos Portos as Nações Amigas, garantindo a Inglaterra o
livre comércio com o Brasil, como observa o jornalista Laurentino Gomes:

Em 1808, o recém-aberto mercado brasileiro tornou-se um alvo


natural dos interesses dessa florescente potência mundial. Depois de
escapar de Napoleão sob a proteção da Marinha britânica, dom João
devia imensos favores a Inglaterra.54

Os favores não pararam por aí, os ingleses sabiam da fragilidade da coroa


portuguesa e aproveitaram disso, em 1810 foi assinado um tratado entre as duas coroas,
54
GOMES, L. A senhora dos mares. In:_____. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma
corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. 3. ed. rev. ampl. São
Paulo: Globo, 2014. cap.17, p.192.

41
tratado esse que dava vantagens ultra especiais aos ingleses, como o baixíssimo valor
alfandegário de suas mercadorias, fixação residencial de ingleses no país, entrada e
saída a qualquer momento, a produção de navios de guerra com madeira brasileira, e
entre outros. Surpreendentemente também o direito de liberdade religiosa:

Aos ingleses era garantido também o direito de liberdade religiosa.


Numa decisão até então inédita nos domínios de Portugal na América,
os protestantes ingleses passavam a ter autorização para erguer
templos religiosos, desde que essas capelas e igrejas se assemelhassem
a domicílios particulares e não tocassem sinos para anunciar cultos
religiosos.55

Essa decisão afrontou o catolicismo brasileiro, muitos clérigos se revoltaram


com dom João, porém sem nenhum resultado, as decisões do tratado não era um simples
contrato temporal, eram perpétuas e imutáveis. Tais decisões influenciariam mais tarde
na independência do Brasil em 1822, o mantimento do tratado de 1810 foi o pedido dos
ingleses para reconhecerem a independência56, pedido esse que foi aceito, oque nos
mostra que os protestantes, ainda que não plenamente, gozam de uma liberdade
religiosa no Brasil desde 1810; no seio de um Brasil governado por Portugal, duas
regiões de maior influência católica, e menor influência iluminista no Ocidente.

O catolicismo em geral, desde a Revolução Francesa estava em decadência, aqui


no Brasil, graças à proteção garantida pelo tratado, e uma certa desarmonia com a coroa,
devido as relações de padroado e beneplácito na constituição de 182457, a Igreja
Católica acabou por não perseguir os protestantes, pelo menos não aos moldes europeus,
o sociólogo francês Émile G. Leonard afirma:

O catolicismo que, de um modo geral, jamais foi obrigado, no Brasil,


a lutar contra a Reforma [...] não apresentou, e hoje apresenta menos
que nunca, esse aspecto de contrarreforma que assumiu na Europa no
século XVI.58

Acontecia por vezes apenas debates e desavenças pela presença dos protestantes,
mas nunca uma perseguição propriamente dita. Ao final do processo de independência e
a elaboração da constituição de 1824, o texto constitucional no artigo 5º dizia: “A
religião católica apostólica romana continuará a ser a religião oficial. Todas as demais

55
Ibid, p.194.
56
Ibid, p. 195
57
Essas relações colocavam a Igreja sob as ordens do Imperador, e não diretamente de Roma. Com o
padroado ele delegava cargos eclesiásticos e com o beneplácito avaliava a aprovação de bulas papais.
58
LÉONARD, E. G. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de
Janeiro: JUERP; São Paulo: ASTE, 1963. p.36.

42
serão admitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas destinadas a esse fim,
que não possuam forma exterior de templo”.59

Anos depois, o missionário Daniel Kidder, do qual trataremos adiante, ao ser


citado por Leonard, afirma em um de seus relatos: “Estamos firmemente convictos de
que nenhum outro país católico existe onde seja maior a tolerância ou liberdade de
sentimentos para com os protestantes”. (LEORNARD apud KIDDER, 1963, p. 41).

Entre 1810 e 1831, o período da presença de Dom João VI, depois Dom Pedro I
no Brasil, tivemos duas manifestações protestantes no Brasil, os anglicanos, 60 no
contexto da presença da corte portuguesa no país, e os luteranos, que vieram de uma
guinada imigratória de alemães a partir de 1824.

4.2 Os Imigrantes Anglicanos e Luteranos

Desde 1810 os anglicanos realizavam cultos no Brasil a bordo de navios, e


também na residência do Visconde Lord Strangford, um diplomata e embaixador da
coroa inglesa no Brasil. A partir de 1819 a Igreja Anglicana começou a construção de
sua primeira capela no Rio de Janeiro. O crescimento da comunidade anglicana no
Brasil foi vagaroso, não eram interessados em evangelização, e ainda que livres para
realizarem seus cultos, não permitiam a frequentação de brasileiros.61

Os luteranos chegaram a partir de 1824 vindos de uma onda imigratória de


alemães, buscando escapar das péssimas condições sociais na Alemanha viam no Brasil
um escape, eram pequenos empresários e produtores rurais, e a imigração era
incentivada pelo governo brasileiro. Dessas imigrações alguns foram para Nova
Friburgo no Rio de Janeiro, e outros para São Leopoldo no Rio Grande do Sul. Dentre
os imigrantes estava o pastor Friedrich Oswald Sauerbronn que ficou em Nova
Friburgo, e mais tarde, entre 1824 e 1825 chegaram dois pastores em São Leopoldo,
Johann Georg Ehlers e Carl Leopold Voges. Essas imigrações foram pausadas em 1830,
quando o governo cortou a ajuda aos imigrantes na chamada lei de orçamento 62. Nesse

59
BRASIL, Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1824.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm . Acesso em: 28
ago. 2020.
60
O anglicanismo é a religião oficial da Inglaterra, surgiu nos tempos da Reforma Protestante de um
rompimento da Igreja inglesa com Roma, e sua doutrina combina elementos do protestantismo com o
catolicismo.
61
FERREIRA, op. cit., p. 230.
62
CÉSAR, op. cit., p.72-73.

43
período inicial de luteranismo no Brasil, inauguraram uma capela no Rio de Janeiro
(estima-se que entre 1837 e 1845). Os luteranos e os anglicanos, não estavam
interessados no trabalho evangelístico:

Esses estrangeiros, entretanto, não pareciam absolutamente desejosos


tornar seus cultos conhecidos dos brasileiros que, por sua vez, não se
mostravam curiosos no conhecimento dessa fé que ninguém lhes
transmitia [...].63

O anglicanismo e o luteranismo estão presentes no Brasil até os dias atuais, e o


luteranismo é uma das religiões com maior número de adeptos no sul do Brasil.
Entretanto os primeiros trabalhos caracteristicamente missionários começaram a partir
da criação das sociedades bíblicas na Inglaterra e EUA, a Sociedade Bíblica Britânica
criada em 1804 e a Sociedade Bíblica Americana em 1816, que não tardaram em
começar a distribuição de bíblias no Brasil através de representantes enviados.

5- Os Amigos do Brasil

Diferente dos anglicanos e luteranos, que de grosso modo apenas transportaram


suas igrejas para o Brasil, um missionário é alguém incumbido de realizar tal tarefa, e
essa tarefa era; evangelizar o Brasil e os brasileiros, levando novos fiéis ao
protestantismo. O protestantismo, de fato, nunca foi uma religião homogênea, e no
século XIX já se manifestava de forma multifacetada, com várias denominações e
tradições teológicas diferentes. Os missionários que estiveram no Brasil, no que abrange
o período regencial e do segundo reinado (1831-1889), não pertenceram a uma única
denominação, e muitos não vieram com intenções de fundarem igrejas, é a partir de
1860 que os missionários passam a atuar no Brasil com o intuito de implantar igrejas, a
saber, a primeira igreja fundada por um missionário foi somente em 1858. Antes disso,
nas décadas de 1830, 40 e 50, destaca-se a atuação de três missionários no Brasil, os três
com algo em comum e que nos chama a atenção; suas ótimas relações com o governo
brasileiro e amizades íntimas com os governantes. Suas posições privilegiadas
favoreciam-os na difusão e na tolerância de suas ideias. Foram eles, o já mencionado
Daniel Parish Kidder, James Cooley Fletcher e Robert Reid Kalley.

5.1 Daniel Parish Kidder

63
LÉONARD, op. cit., p.42.

44
Daniel P. Kidder nasceu nos EUA em 1815, foi um missionário metodista 64 e um
dos representantes enviados da Sociedade Bíblica Americana ao Brasil. A Igreja
Metodista dos EUA estava em alta no século XIX, a Conferência Geral desta Igreja
enviou em 1835 o reverendo Foutain Elliot Pitts para a América do Sul, a fim de sondar
possíveis trabalhos evangelísticos no Brasil, Uruguai e Argentina. Pitts retornou aos
EUA em 1836, e neste mesmo ano os metodistas enviaram ao Brasil o missionário
Justin Spaulding e sua família, que começaram um pequeno trabalho com crianças
estrangeiras e brasileiras no Rio de Janeiro.65

Um ano mais tarde, em 1837, Spaulding recebeu o reforço de Daniel Kidder, de


22 anos, missionário enviado da Sociedade Bíblica Americana, juntamente com sua
esposa Cyntia Russel e seus filhos. Kidder permaneceu no país até 1840, quando sua
esposa faleceu ainda jovem e ele retornou aos EUA, nesse período distribuiu Bíblias em
quase todas as províncias do Rio de Janeiro, a distribuição de Bíblias era o principal
trabalho das sociedades, muitas eram distribuídas gratuitamente, ou então vendidas com
preços mais baixos, essas Bíblias não possuíam comentários ou notas, a fim de evitar
conflitos com o catolicismo. Os educadores eram os principais clientes de Kidder, haja
vista, a Bíblia era comumente usada no processo de alfabetização de crianças, como
salienta Leonard: “Os mais solícitos clientes de Kidder, e talvez os mais sérios [...]
foram os educadores que viam, nessas distribuições, um meio de obter gratuitamente
livros de leitura para seus alunos”. (LEONARD, 1963, p.43,44)

A postura adotada por esses missionários representantes das sociedades eram


tradicionalmente pacíficas, evitavam conflitos e oposições, e aproveitavam de situações
ocasionais para promover sua evangelização. O conflito de Kidder com a Igreja Católica
brasileira não foi acalorado, apenas alguns artigos de jornal, e uma controvérsia sobre as
Bíblias que ele distribuía, como veremos adiante. Muitas vezes alguns clérigos eram na
verdade favoráveis ao trabalho de Kidder, que durante suas viagens acabaria ganhando
o apoio de grandes nomes do cenário nacional, dentre eles, o antigo regente e nobre
figura política, o sacerdote e estadista padre Diogo Antônio Feijó, um importante liberal
brasileiro, e com quem se encontrou duas vezes em 1839, uma em São Paulo e outra no
Rio de Janeiro.66
64
A Igreja Metodista surgiu na Inglaterra no século XVIII, emana de uma ramificação do anglicanismo,
John Wesley (1703-1791) liderou o movimento de origem desta doutrina, que devido seu caráter mais
abrangente em relação a salvação, eram mais dispostos ao trabalho missionário.
65
CÉSAR, op. cit., p.91,
66
LÉONARD, op. cit., p.43.

45
Diogo Feijó foi regente do império de outubro de 1835 a setembro de 1837, o
período de sua regência e da estadia de Kidder no Brasil foi marcado por uma crise da
Igreja Católica brasileira, com um Brasil ainda em formação, as pautas cobravam uma
reformulação nas instituições, e com os ideais liberais em alta, existia uma enorme
preocupação com assuntos como a educação, liberdade e justiça, tópicos de extrema
importância nos ideais progressistas que os liberais adotavam, e esses debates
envolviam diretamente a Igreja, como instituição. Essa crise do catolicismo se parece
com a que assombrava a Igreja Católica antes da Reforma Protestante, crise moral e
espiritual, incapacidade do clero, e entre outros. Porém no Brasil, com alguns traços
exclusivos, com as afirmações de Leonard podemos concluir:

A insuficiência numérica do clero brasileiro se fez acompanhar de um


enfraquecimento de sua vida espiritual. Embora não fosse de se
esperar, porque a falta de sacerdotes deve aumentar o seu prestígio,
constituiu ela, entretanto, um elemento ativo desse enfraquecimento. 67

A insuficiência numérica do clero foi um dos fatores de agravamento dessa crise,


podemos destacar também a despreparação do clero, a importância exacerbada que se
dava para festas e comemorações luxuosas, e a pouca atenção na área educacional.
Diogo Feijó sabia dessa situação, como afirmou em um encontro com Daniel Kidder na
cidade de São Paulo em 1839: “Em toda província dificilmente encontraríamos um
sacerdote que cumprisse seus deveres como a Igreja ordena” (LEONARD, 1963, p.32)

Como um expoente do liberalismo brasileiro, Diogo Feijó propôs reformas, e


suas importantes funções (entre 1826 e 1837 foi deputado, senador, ministro da justiça e
regente) ajudaram na difusão de suas ideias, sua tentativa de elevar o nível espiritual,
intelectual, e moral do país, passava diretamente pela reformulação e modernização de
políticas sociais e também de dogmas da Igreja, acreditava que o Estado deveria garantir
as liberdades individuais, e que o Estado tinha autoridade sobre a Igreja. Uma de suas
propostas foi o fim do celibato clerical, pois acreditava que além de inútil, por ser uma
eterna e cansativa luta contra a natureza humana, esse dogma não havia sido dado aos
padres por lei divina ou sacramento apostólico, Feijó propôs também uma separação da
Igreja brasileira com Roma, numa espécie de “anglicanismo brasileiro”. Em 1836, já
regente, solicitou a um diplomata que estava em Londres que providenciasse a vinda de
alguns Irmãos Morávios68 para atuar na educação dos nativos. Um sacerdote católico,
67
Ibid., p.30.
68
A Igreja dos Irmãos Morávios (os moravianos), era uma comunidade protestante que emergira com
raízes desde o pré-reformador John Huss, e se firmou nos ideais do protestantismo na região da Boêmia, e

46
reformista, recorrer em nome do Estado à ajuda de missionários protestantes, nos mostra
suas fortes disposições em ver mudanças práticas na sociedade e na religiosidade
nacional, pois para Feijó o declínio moral e espiritual do clero, refletia no declínio moral
e espiritual da sociedade, já que estes eram os condutores morais do país.

Daniel Kidder louvara como já mencionamos a tolerância religiosa no Brasil, e


também apoiava as reformas de Feijó, no entanto, seguia seu trabalho na difusão das
Bíblias, pois se para Feijó, a abolição do celibato e uma separação da Igreja de Roma
era a solução, para Kidder a solução era a mesma de Lutero, o contato direto do povo
com a Bíblia69, Kidder sabia que muitas propostas de Feijó eram consideradas apenas
pelo viés político, e não espiritual, por isso a Bíblia, como verdade espiritual, era a
maior e mais importante fonte de mudança. O trabalho de Kidder por parte dos liberais
era bem aceito, não só por Diogo Feijó, como também pelo famoso Senador Nicolau
Pereira de Campos Vergueiro e pelo jurista José Maria de Avellar Brotero.70

Daniel Kidder seguia distribuindo e anunciando as Bíblias, em 1839 propôs a


Assembleia Legislativa de São Paulo o uso da bíblia para o ensino infantil e se
comprometeu a doar 12 exemplares para cada escola caso aceita a proposta, anunciava
também seu material em jornais e ia obtendo êxito na sua missão. Como a leitura bíblica
não era estimulada pela Igreja Católica, a distribuição delas muitas vezes incomodavam
alguns clérigos. A principal controvérsia durante a presença de Kidder no Brasil vem
dos boatos que diziam serem falsas as bíblias distribuídas pelos protestantes, após a
proposta enviada a Assembleia de São Paulo sobre a doação das bíblias, ela foi
inicialmente bem vista pelo Bispo da cidade, porém a situação desandou após um
sacerdote anglicano do Rio de Janeiro insinuar ao Bispo de São Paulo que as traduções
das Bíblias poderiam ter sofrido alterações, Kidder propôs um exame das traduções,
porém após a controvérsia a proposta foi deixada de lado, Kidder salienta que apesar de
arquivada, para o bem da província, nunca foi abertamente rejeitada.71

foram os primeiros a se encarregarem de missões protestantes. NOMURA, M. do P.G.M. Os relatos de


Daniel Kidder e a polêmica religiosa brasileira na primeira metade do século XIX. 2011. 128f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História Social,
São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-03052012-
163744/publico/2011_MiriamdoPradoGiacchettoMaiaNomura_VRev.pdf . Acesso em: 28 ago. 2020.
p.91-92.
69
Ibid, p.80-81.
70
LÉONARD, op. cit., p.43.
71
Ibid, p. 44

47
Outro importante difusor da ideia de “bíblia falsa” foi o arcebispo da Bahia
Romualdo de Seixas, este dizia ser as bíblias distribuídas “truncadas e manipuladas”,
essas acusações tinham como intenção criticar a distribuição das bíblias e o governo
liberal no qual permitia essa atividade. Romualdo se refere aos protestantes como
“inimigos implacáveis” da Igreja Católica, e disse haver até uma perseguição contra o
catolicismo por parte dos liberais. A acusação das bíblias protestantes serem falsas foi
comum durante todo o século XIX.72

Apesar desses embates, podemos concluir que Kidder obteve sucesso no curto
período de tempo que esteve no Brasil, a Bíblia foi aos poucos circulando e se
infiltrando no cotidiano do brasileiro, os exemplares eram vendidos ou doados
rapidamente, não só nas cidades, mas também nas províncias.

O trabalho foi interrompido após o falecimento prematuro de sua esposa devido


a não adaptação da mudança climática. Daniel Kidder e Justin Spaulding retornaram aos
EUA em 1840, e em 1845 Kidder publicou sua obra, Sketches of Residence and Travel
in Brazil (Reminiscências de viagens e permanência no Brasil) um dos primeiros relatos
de viajantes americanos sobre o Brasil, e obra que chamaria atenção de missionários
futuramente. Kidder também traduziu para o inglês em 1844 o artigo de Diogo Feijó
“Demonstração da Necessidade de Abolir o Celibato Clerical”, e também colaborou
com suas observações na obra que outro importante missionário, que trataremos a
seguir, James Cooley Fletcher, publicaria em 1857. Daniel Parish Kidder faleceu nos
EUA em 1891.

5.2 James Cooley Fletcher

James C. Fletcher nasceu nos EUA em 1823, filho de pais metodistas, teve
contato com a religião desde cedo, no entanto, seguiu rumos diferentes da tradição
religiosa de sua família, e se tornou membro da Igreja Presbiteriana. Após ter decidido
viver para o ministério, se ingressou na Universidade de Princeton em 1847, e foi
ordenado pastor em 1851, neste mesmo ano foi enviado ao Rio de Janeiro pela
American Seamen’s Friend Society, e pela American and Foreign Christian Union 73,
com o objetivo de exercer o trabalho de capelania entre os norte-americanos que viviam

72
MAIA. H. P da C. O protestantismo e a palavra impressa: ensaios introdutórios. Ciências da Religião:
história e sociedade, São Paulo, v.7, n.2, p. 90-115, 2009. Disponível em:
http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/cr/article/view/1182 . Acesso em: 28 ago. 2020. p. 97-98.
73
LÉONARD, op. cit., p.49.

48
ou passavam pelo Rio de Janeiro. Fletcher esteve no Brasil cinco vezes entre 1852 e
1869, e exerceu um importante trabalho na difusão do protestantismo no Império, e
além de missionário, foi também um importante diplomata, como veremos adiante.

Fletcher chegou ao Rio de Janeiro em 1852 com sua esposa e filho. O envio de
um missionário para o Brasil foi resultado de uma negociação do diplomata norte-
americano Robert Cumming Schenck com o governo brasileiro, Schenck nomeou
Fletcher capelão da legação americana no Brasil. Pouco tempo depois recebeu também
o convite para se tornar secretário da legação, cargo que o colocava na rota de
importantes membros do governo, e assim como Daniel Kidder, começou a fazer
amizades com liberais, que por tendência, eram mais suscetíveis às ideias de Fletcher,
que nesse tempo já não se limitava somente ao trabalho da capelania.

No tempo que Fletcher esteve no Brasil, o Império já não era mais governado
por regências, e sim pelo legítimo herdeiro, Dom Pedro II, que seria um fator
importante na difusão do protestantismo no Brasil. Durante a ocupação do cargo de
secretário por Fletcher, seu mais importante trabalho foi guiar o Imperador a uma
viagem aos EUA:

Um dos pontos altos deste período se deu em setembro de 1852,


quando lhe foi designada a tarefa de guiar o imperador em uma visita
ao City of Pittsburg, um vapor mercante norte-americano no porto do
Rio a caminho da California. Foi seu primeiro encontro com Dom
Pedro II.74

Esse tempo com o Imperador foi de extrema importância para Fletcher, dali
surgiria uma amizade que duraria a vida toda, e para Fletcher se iniciaria também um
novo trabalho; encurtar as distâncias entre os EUA e o Brasil. Porém essa primeira
investida de Fletcher não duraria muito, em 1853 o diplomata que tramitou sua vinda foi
substituído. O novo ocupante do cargo e Fletcher não se deram muito bem, e em 1854
foi demitido do seu posto. Neste mesmo ano, devido a problemas de saúde da esposa,
Fletcher voltou aos EUA.

Enquanto isso, no Brasil, os fatores colaboravam grandemente para a difusão do


protestantismo, não somente pela ideologia dos liberais, que sempre defendiam a
liberdade de expressão, o ideal democrático e entre outros, mas também pela

74
ROSI, B. G. James Cooley Fletcher, o missionário amigo do Brasil. Almanack. Guarulhos, n.05, p. 62-
80, jan./jun. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/alm/n5/2236-4633-alm-05-00062.pdf .
Acesso em: 28 ago. 2020. p. 64-65.

49
personalidade ímpar de Dom Pedro II, que apesar de ser respeitar as instituições e
práticas católicas, nunca foi um entusiasta da religião, Osvaldo Hack ao citar João
Dornas Filho, expõe um comentário feito por Joaquin Nabuco a respeito disso:

D. Pedro possuía um espírito profundamente imbuído do preconceito


anti-sacerdotal. Não era, propriamente, anti-clerical, não vendo perigo
por parte do clero. Mas o que não lhe inspirava interesse era a vocação
religiosa deste. A seus olhos de homem de estudo, insaciável de
conhecimento, o clérigo e o militar eram, evidentemente, se não duas
inutilidades, pelo menos necessidades que ele queria utilizar, a
primeira para mestre de escola, ou professor de Universidade; a
segunda para transformar em um matemático, químico ou
engenheiro.75

O imperador apesar de não interessado no trabalho religioso dos clérigos, e


pouco preocupado com a mensagem espiritual deles, via com bons olhos a Igreja ao que
esses clérigos poderiam oferecer, principalmente na área educacional. Para o imperador
pouco importava se católico ou protestante, o proselitismo dos missionários protestantes
não o incomodava, e essa atitude de “usar” a igreja no âmbito social sem grande
interesse pela sua mensagem, facilitava a presença dos missionários protestantes e a
difusão do protestantismo no Brasil, e isso também levava o Brasil a ver o imigrante
como um amigo.76

James Cooley Fletcher retornou ao Brasil em 1855, desta vez como missionário
da Sociedade Bíblica Americana, e permaneceu no país de abril a julho deste ano, nesta
segunda passagem pelo Brasil, distribuiu bíblias pelo interior do Brasil, chegando a
distribui-las entre imigrantes luteranos no sul. Além da distribuição, organizou uma
exposição de produtos norte-americanos no Rio de Janeiro, onde se encontrou
novamente com o imperador, que o recebeu cordialmente. Fletcher retornou aos EUA e
ficou por lá no período de 1856 a 1862, neste período ele e o Imperador trocaram
correspondências e visitas, e essa amizade se manteve até o fim de suas vidas. 77

Fletcher voltou ao Brasil em mais três oportunidades, uma entre 1862 e 1863,
como agente da American Sunday School Union, outra entre 1864 e 1865, como
enviado do Departamento de Estado norte-americano, e a última entre 1868 e 1869
como agente da American Tract Society. Na primeira destas três, e ao todo a terceira ao
Brasil, ele trabalhou como missionário e teve um breve contato com missionários já

75
HACK apud DORNAS FILHO, op. cit., p.26.
76
HACK, op. cit., p.26-27.
77
ROSI, op. cit., p.67-68.

50
fixados aqui. Na quarta viagem, como diplomata, suas ligações com Dom Pedro se
fortaleceram ainda mais, se encontrou com o imperador várias vezes, e se rumou para a
Europa em 1864, onde mediou a indicação de Dom Pedro II ao Royal Geographic
Society de Londres, na Inglaterra. E na sua última passagem pelo Brasil, acabou sendo
enviado como cônsul para Portugal, onde recebeu Dom Pedro certa vez em uma
viagem.78

James Cooley Fletcher foi um importante personagem no Brasil oitocentista,


pelo seu vigor missionário, por sua amizade com o imperador, por sua diplomacia, que
aproximou o Brasil e os EUA, e pela sua influência na política nacional. Sua
distribuição de bíblias, assim como a de Kidder, contribuiu na difusão do protestantismo
e na preparação do campo missionário para outros virem ao Brasil, como destaca Hack:

[...] O volume de exemplares de Bíblias, do Novo Testamento e de


separatas dos livros sagrados foi bem representativo. No período de
1822 a 1856, foram distribuídos cerca de quatro mil exemplares; em
1859, o número já se elevava para vinte mil exemplares. Tudo isso
significava uma boa divulgação e um preparo para a chegada dos
imigrantes americanos e missionários que iriam fundamentar suas
doutrinas e comportamento ético em interpretações bíblicas. 79

Fletcher escreveu seu livro “Brazil and the brazilians : portrayed in historical
and descriptive sketches” (Brasil e os Brasileiros: esboço histórico e descritivo) em
1857, com as contribuições de Daniel Kidder, este livro tornou-se um dos livros mais
lidos nos EUA. Em 1853 enviou uma carta para a Sociedade Bíblica Americana
solicitando o envio de missionários refugiados da Ilha da Madeira para o Brasil, deste
pedido, e influenciado pelos escritos de Kidder, outro importantíssimo missionário,
Robert Reid Kalley, que veremos a seguir, chegou ao Brasil em 1855. James C. Fletcher
faleceu nos EUA em 1901.

5.3 Robert Reid Kalley

Robert R. Kalley nasceu na Escócia em 1809, era filho de pais protestantes


membros da Igreja Presbiteriana. Inicialmente, formou-se como cirurgião e
farmacêutico, e em 1838 como doutor em medicina pela Universidade de Glasgow.
Após um período de contestação de sua fé, Kalley se envolveu com o ministério
evangelístico após uma conversa com uma paciente em meados de 1835, nesse tempo

78
Ibid, p. 71-80.
79
HACK, op. cit., p.27-28.

51
começou a exercer como missionário e sua profissão era um gatilho para a difusão da
sua fé. Em 1837 Kalley desejava ser missionário na China, no entanto, nesse período se
casou com Margareth Crawford de Paisley, e devido a problemas de saúde de sua esposa
se fixaram na Ilha da Madeira em Portugal no ano de 1838, onde existia grande
dificuldade de propagação do evangelho devido à força do catolicismo no país. Mesmo
nas dificuldades, no período que estiveram na Ilha da Madeira, Kalley em parceria com
outros pastores fundaram uma igreja, uma escola, e uma pequena clínica onde atuava
como médico e costumava falar do evangelho para seus pacientes.80

A perseguição aos protestantes se acentuava na Ilha da Madeira, em 1843 Kalley


esteve preso por cinco meses devido aos embates com os católicos, e entre 1846 e 1847
se desencadeou uma perseguição que o obrigou a deixar Portugal juntamente com vários
outros protestantes, que se rumaram aos EUA em busca de liberdade religiosa. No
período entre sua fuga de Portugal e sua chegada ao Brasil (1846-1855), Kalley exerceu
o trabalho missionário em Malta e na Palestina, e também visitava seus colegas
protestantes refugiados nos EUA, foi lá onde leu Sketches of Residence and Travel in
Brazil (Reminiscências de viagens e permanência no Brasil) de Daniel Kidder. 81 Kalley
foi convidado a enviar para o Brasil alguns missionários protestantes, mas devido à
leitura dos relatos de Kidder, acabou ele mesmo por vim em 1855 com sua esposa e
outros fiéis. Naquele tempo Kalley já havia se casado novamente, sua primeira esposa
Margareth Crawford faleceu em 1852, e sua nova cônjuge era Sarah Poulton Wilson,
com quem se casara ainda em 1852, Sarah era dedicada e apoiava Kalley em seu
trabalho missionário, Kalley e Sarah chegaram juntamente com alguns outros
protestantes ao Rio de Janeiro em 1855, em nome da Sociedade Bíblica Americana.

Devido à perseguição sofrida na Ilha da Madeira, a primeira medida tomada por


Kalley no Brasil foi garantir a integridade de sua família e amigos, graças a sua
profissão, diferentemente de alguns missionários, mas não diferente dos que aqui
estiveram antes dele, Kalley tinha condições financeiras abastadas, logo alugou uma
casa em Petrópolis, e se estabeleceu com as autoridades locais do mais alto escalão,
como destaca Léonard:
80
ALCÂNTARA, P. S. M de. O missionário e intelectual da educação Robert Reid Kalley (1855-
1876). 2012. 104f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Tiradentes, Mestrado em Educação, Aracaju,
2012. Disponível em: https://mestrados.unit.br/wp-content/uploads/sites/2/2015/07/DISSERTA
%C3%87%C3%83O-O-MISSION%C3%81RIO-E-INTELECTUAL-DA-EDUCA%C3%87%C3%83O-
ROBERT-REID-KALLEY-1855-1876.pdf . Acesso em: 05 set. 2020. p. 32-35.
81
CÉSAR, op. cit., p.85.

52
Ele próprio, antes de mais nada, dedicou-se a estabelecer, com as
autoridades mais elevadas e com a alta sociedade brasileira, contatos
que garantiriam sua obra e seus convertidos. Instalou-se, com suas
duas camareiras alemãs e seu jardineiro português, em Petrópolis, na
casa de verão que alugara do embaixador dos Estados Unidos. 82

Graças ao seu nível cultural e econômico, Kalley poderia difundir o evangelho


entre a elite brasileira, logo chamou a atenção também de seu vizinho, ninguém menos
que o Imperador Dom Pedro II, que o visitava vez ou outra para conversarem sobre a
Terra Santa: “Recebia aí algumas vezes a visita do imperador que vinha de improviso,
ouvi-lo contar suas viagens pela Terra Santa” (LÉONARD, 1963, p.50)

Após o período de fixação, Kalley passou a se utilizar dos jornais como meio de
difusão do protestantismo, publicou pelo “Correio Mercantil” e pelo “Jornal do
Commercio”, sobre essas estratégias de Kalley, afirma Priscila de Alcântara em sua tese:

Para Robert Reid Kalley, a publicação em jornais foi fundamental para


divulgar suas ideias e propagar o Protestantismo, pois, dessa forma,
conseguiria alcançar grande parcela da população. Todavia, foi
principalmente por meio da circulação de impressos, também
importante veículo de divulgação e informação, que se tornou possível
a muitos brasileiros a acessibilidade ao conhecimento bíblico e,
consequentemente, à leitura e à escrita, permitindo, assim, a
aproximação com as ideias do Cristianismo protestante. 83

Kalley não se limitou a publicar apenas escritos relacionados ao seu interesse


religioso, mas também a sua profissão, em um desses artigos orientava a população a se
prevenirem da febre amarela, e em outro oferecia orações às pessoas doentes, e
espalhava esses artigos em forma de folheto. Kalley ajudou no combate a epidemia da
cólera e da febre amarela no Rio de Janeiro.

Além de seus trabalhos profissionais e suas publicações nos jornais, Kalley


seguia difundindo o evangelho, pregando em casas, lojas, lutando pelo direito a plena
liberdade religiosa e dirigindo seus cultos domésticos, mas sempre com cautela pra não
infringir as leis brasileiras de liberdade de culto. No dia 11 de julho de 1858 Kalley
batizou o primeiro convertido e primeiro brasileiro pertencente a sua congregação, era
Pedro Nolasco de Andrade, e esta data é considerada a fundação da primeira Igreja
protestante no Brasil, que contava com 14 membros, entre eles americanos, portugueses

82
LÉONARD, op. cit., p.50.
83
ALCÂNTARA, op. cit., p.47.

53
e o recém-batizado brasileiro, esta igreja veio a se chamar Igreja Evangélica
Fluminense.84

A Igreja inicialmente parecia insignificante, mas logo aumentava o número de


prosélitos e batizados, e pelo seu ciclo social Kalley alcançava membros da elite, oque
atraía negativamente a atenção do clero católico, que acentuava a perseguição ao
médico, em uma dessas ocasiões, acusado de usufruir de uma liberdade religiosa não tão
plena como se pensava, foi:

Convidado a deter sua propaganda ou retirar-se de Petrópolis, [porém]


Kalley obteve dos três maiores juristas da época, Nabuco, Urbano S.
Pessoa de Melo e Caetano Alberto Soares, um parecer provando que
ele não havia violado as leis brasileiras. 85

A perseguição continuava, durante as reuniões na igreja eram atiradas pedras,


promoviam insultos, ameaças, e sem a intervenção policial. Kalley passou então a
ameaçar retornar a Europa e denunciar a ausência de liberdade religiosa no Brasil, e
estas ameaças produziam efeito, e as perseguições perdiam sua força, mas não
desapareciam. Em 1861 os protestantes obtiveram a regularização de seus casamentos,
que até então era aceita apenas o casamento católico, em 1862 Kalley iria passar um
tempo na Europa, e promoveu uma eleição de presbíteros para cuidarem da Igreja, que
já contava com mais de 50 fiéis.86 Graças as suas origens presbiterianas, Kalley
promoveu o modelo presbiteriano de governo, porém sua Igreja não estava ligada com a
missão presbiteriana, e ficou conhecida como Igreja Congregacional.

Kalley retornou ao Brasil em setembro de 1863, e foi eleito pastor oficial da


congregação. As atividades dos protestantes ainda em processo de estabelecimento
continuavam a sofrer ataques, desta vez, vindo de jornais católicos que repudiavam as
ações do governo em relação à liberdade de culto protestante. Em uma dessas ocasiões
chamou a atenção do cronista brasileiro Machado de Assis, que saiu em defesa da
liberdade de religião, que está indispensavelmente ligada ao proselitismo: “Mas, a
Constituição garante a liberdade religiosa, e não há liberdade religiosa [...] sem
proselitismo – de outro modo fora burlar o princípio” (ASSIS, 2008, vol. 4, p. 229).

84
LÉONARD, op. cit., p.51.
85
Ibid, p. 51.
86
Ibid, p. 53.

54
Machado de Assis ainda se referindo ao ataques que os jornais católicos
promoviam ao governo e a aos protestantes, como liberal que foi, estendeu sua crítica à
própria constituição do país: “o defeito da constituição está em não ter completado a
liberdade, tirando os entraves que lhe impõe, e em declarar a religião católica como
religião do Estado” (ASSIS, 2008, vol. 4, p. 231).

Podemos ver claramente a movimentação que Robert Kalley causou no Brasil,


chamou a atenção das elites, foi amigo do Imperador, obteve a defesa dos melhores
juristas de sua época, e uma apologia de Machado de Assis. Kalley seguiu suas
atividades convidando missionários, enviando-os ao trabalho para todo o Brasil, ele
mesmo esteve no Recife em 1868, após enviar um missionário para preparar o campo. 87

Kalley esteve no Brasil até 1876, quando retornou a seu país natal, a Escócia, devido a
sua idade avançada e saúde fragilizada, mesmo assim, continuava a trocar cartas com os
que aqui ficaram e continuaram o trabalho. Entre os ajudadores de Kalley, estavam
nomes importantes como o de Manuel José da Silva Viana, João Manuel Gonçalves dos
Santos e de Richard Holden. Kalley e sua esposa exerceram um papel fundamental na
história do protestantismo brasileiro:

Deve-se ao casal Kalley a publicação do primeiro hinário brasileiro


chamado Salmos e hinos, publicado em 1861, a princípio com 18
salmos e 32 hinos. [...] Na tiragem de 1959, com 608 hinos a autoria
de 72 desses hinos era da Sarah Kalley e 13, do próprio Kalley.
Embora fosse congregacional, mas de origem presbiteriana, Kalley era
alheio a estreitos denominacionalismos e a fórmulas rígidas de credo.
A Igreja Evangélica Fluminense, por ele fundada, veio a ser a matriz
da União das Igrejas Evangélicas Congregacionalistas do Brasil. 88

Robert Reid Kalley faleceu na Escócia em 1888, aos 79 anos, seu legado será
eternamente lembrado na história da Igreja protestante brasileira, sua evangelização, sua
dinâmica entre trabalho profissional e evangelismo, a distribuição de bíblias, envio de
missionários, e a fundação oficial da primeira igreja protestante brasileira, abriu
caminho para novos missionários exercerem o papel de implantadores de igrejas em
solo brasileiro: “O caminho estava aberto e os concorrentes do Dr. Kalley já se achavam
em trabalho” (LÉONARD, 1963, p.54).

6 - A Implantação de Igrejas e as Missões no Interior

87
ALCÂNTARA, op. cit., p.61.
88
CÉSAR, op. cit., p.86.

55
Em todo território que o Estado adere uma religião oficial, a tendência é que
tenha perseguição religiosa em tal lugar, no Brasil não foi diferente, enquanto houve
Império o catolicismo foi religião oficial. Todavia, devido aos fatores já mencionados,
podemos concluir que o catolicismo não assumiu no Brasil uma face totalmente
opressora, houve por vezes uma “perseguição à brasileira”, preconceito, acusações,
folhetos, motins, publicações em jornais, mas nada em moldes inquisitórios. As forças
da Igreja Católica, nunca assumiram papel principal no período do segundo reinado, e
na verdade a organização se via cada vez mais fraca, o envolvimento com a maçonaria e
a polêmica “questão religiosa” a partir de 1870 deixa nítido esse declínio.

O trabalho precursor de Kidder, Fletcher e Kalley abriu caminho para as missões


estrangeiras olharem para o Brasil como um campo prodígio para implantarem suas
igrejas, visto que a liberdade de culto era assegurada constitucionalmente e a
perseguição não tomava moldes drásticos, as Igrejas protestantes passaram então a
enviar missionários não mais com visões conservadoras como a dos precursores, mas
para aceitar o desafio da fixação de Igrejas em território brasileiro. Nisto, os
presbiterianos chegaram em 1859, os metodistas retomaram o trabalho em 1867, os
batistas em 1881, e os luteranos fundaram seu primeiro sínodo em 1886.89 Os mais
ativos no trabalho missionário foram os presbiterianos, que foram também precursores
da chegada do protestantismo em Minas Gerais.

6.1 O Presbiterianismo Brasileiro

Durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), a Igreja Presbiteriana havia se


divido em Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), no Sul, e Igreja
Presbiteriana dos Estados Unidos da América, (PCUSA), no Norte. Essa divisão
envolveu também as missões, os primeiros missionários presbiterianos a chegarem ao
Brasil foram enviados pela Igreja do Norte, em 1859, o primeiro deles foi o jovem
Ashbel Green Simonton de 26 anos. Simonton nasceu em 1833 na Pensilvânia, se
ingressou no seminário de Princeton em 1855 e foi ordenado em 1859, neste mesmo ano
em 12 de agosto, desembarcou no Rio de Janeiro.

Simonton passou o primeiro ano se fixando e dedicando a aprender a língua


nacional, um ano após sua chegada recebeu a ajuda de seu cunhado e também

89
FERREIRA, op. cit., p.229-231.

56
missionário Alexander Blackford, e em 1861 chegou também outro missionário, Francis
Schneider, para trabalhar entre os alemães. Simonton tinha a missão de fundar uma
Igreja, e isto acabou por deixar Robert Kalley receoso do papel que Simonton iria
exercer no Brasil, aconselhou que ele fosse moderado em suas ações, entretanto, o
jovem astuto Simonton registrou em seu diário:

Kalley insiste em que eu trabalhe em segredo e julga aconselhável às


sociedades mantenedoras de missões em terras papistas a organização
de fundos secretos. Nisto não posso concordar com ele. Minha
presença e minhas intenções não podem ser ocultadas. 90

Em 12 de janeiro de 1862, Simonton batizou os primeiros convertidos, esta é a


data de organização da Igreja Presbiteriana do Brasil. Neste mesmo ano o jovem
missionário retornou aos EUA para se casar com Helen Murdoch, e voltou ao Brasil em
1863. Um acontecimento trágico no primeiro semestre de 1864 abalou Simonton,
poucos dias após o nascimento da primeira filha do casal, sua esposa Helen Murdoch
veio a falecer. Simonton seguiu sua missão mesmo viúvo, e sua filha ficou sob os
cuidados do cunhado.

Ainda em 1864, ele fundou o primeiro jornal de orientação protestante do Brasil,


o Imprensa Evangélica, que duraria até 1892. Simonton prosseguiu e até 1867 fundaria
ainda uma pequena escola, um pequeno seminário, e o primeiro presbitério. No entanto,
assim como sua esposa, Simonton faleceu muito jovem, aos 34 anos, em 1867, devido à
malária. Ashbel Green Simonton é o fundador da Igreja Presbiteriana Brasileira, sua
vida e seu legado são exemplo:

Quando Simonton morreu, em 1867, com apenas 34 anos de idade,


sendo oito de trabalho missionário no Brasil, deixou o saldo positivo
do ideal que trouxe dos Estados Unidos e o levou a viver e morrer em
terras brasileiras. No curto período de oito anos, recebeu 80 pessoas
por profissão de fé, organizou a primeira igreja, a primeira escola
presbiteriana, o primeiro jornal, o primeiro presbitério e o primeiro
seminário. Deixou dezenas de sermões escritos e folhetos
evangelísticos, além de um comentário inacabado de Mateus. O
Jornal, O Apóstolo, de orientação católica, registrou esta nota, quando
Simonton faleceu: “sempre mantivemos o devido respeito por nosso
ilustre adversário e é de coração nossa tristeza pela morte do ilustre
editor da Imprensa Evangélica”.91

Se tivesse tido a oportunidade de viver por mais tempo, Simonton certamente


teria continuado sua missão com todo vigor que o fez em apenas oito anos. O primeiro e
90
HACK, op. cit., p.25.
91
Ibid, p. 33.

57
maior fruto da obra de Simonton foi a conversão de um ex-padre, chamado José Manoel
da Conceição, este ficou conhecido como o “padre protestante”, e exerceu missões
importantíssimas, inaugurando as missões protestantes no interior brasileiro.

Já pela Igreja Presbiteriana do Sul (PCUS), os primeiros missionários chegaram


em 1869, foram eles Edward Lane e George Nash Morton, ambos haviam se formado
pelo Seminário Union em 1868, Edward Lane, George Nash Morton e a esposa de
Morton, chegaram ao Rio de Janeiro em 17 de agosto de 1869, um mês depois se
fixaram em Campinas. A presença dos missionários presbiterianos causou impacto no
protestantismo brasileiro, em pouco menos de cinco anos de trabalho, fundaram uma
Igreja presbiteriana em Campinas no ano de 1870, organizaram o presbitério de São
Paulo em 1872, e um colégio, chamado Colégio Internacional em 1873, este colégio
futuramente exerceria importante função entre a sociedade e a Igreja protestante. Vários
missionários já estavam presentes aqui na década de 70 no Brasil oitocentista, e os
pioneiros Edward Lane e George Nash Morton já contavam com uma série de
missionários para colaborar no trabalho, entre eles, o pioneiro do protestantismo em
Minas Gerais, o missionário John Boyle.92

6.2 A chegada do protestantismo em Minas Gerais

O protestantismo de missões chegou a Minas Gerais através dos trabalhos do


missionário americano John Boyle, nascido em Kentucky no ano de 1845. Boyle foi
ordenado missionário em 1872 pela PCUS, e chegou a Recife no dia 15 de abril de
1873, dois anos depois, em 1875, Boyle se transferiu para Campinas para ajudar Edward
Lane no trabalho missionário e educacional.

A primeira visita de Boyle a Minas Gerais é datada de 1879, acompanhado de


um colportor chamado Jacob Filipe Wingerther estiveram em Cabo Verde para pregar
numa reunião da maçonaria a convite de um recém leitor autônomo da Bíblia . Em 1881
e 1882, Boyle fez suas primeiras viagens no até então Brasil Central, chegando até
Uberaba. Mas foi em 1884 que Boyle e Wingerther chegaram a Araguari, Bagagem,
Paracatu, Santa Luzia de Goiás e Formosa. Os primeiros recebidos por profissão de fé
em Minas Gerais são de Araguari, foram os primos Tertuliano e Querubino Goulart,
92
IGREJA PRESBITERIANA EBENÉZER DE SÃO PAULO. Missionários da Igreja presbiteriana
dos Estados Unidos ou Igreja do Sul - PCUS (1869-1900). 2015. Disponível em:
http://www.ebenezer.org.br/wp-content/uploads/2015/09/Parte-2-Mission%C3%A1rios-PCUS.pdf .
Acesso em: 13 set. 2020. p. 9-12.

58
estes e alguns outros parentes se professaram no dia 13 de julho de 1884, Sendo os
primeiros protestantes de todo o Triângulo Mineiro.

A partir daí o evangelho foi lançado, Boyle retornou aos EUA de férias em 1885,
e quando voltou ao Brasil em 1886 trouxe consigo o missionário George Wood
Thompson, e passou a residir em Bagagem (atual Estrela do Sul) no ano de 1887. Neste
mesmo ano, em 14 de abril, juntamente com Edward Lane, John Dabney, George Wood
Thompson e Delfino Teixeira, foi criado o primeiro presbitério em Minas Gerais, que
era composto pela região de Campinas até o Oeste de Minas. Em 1888 Boyle seguia
fazendo viagens, pregou em Catalão, Caldas Novas, Morrinhos, Santa Luzia, Formosa,
Jaraguá, Entre Rios, Curralinhos, e Goiás Velho. Os frutos do seu trabalho foram
colhidos e o protestantismo se espalhava por toda Minas Gerais. Em 1889 Boyle foi
eleito vice-moderador do Sínodo Presbiteriano e neste mesmo ano lançou seu jornal,
chamado de O Evangelista. (Neste mesmo ano também que as primeiras famílias
protestantes chegam a Patos de Minas).

Sobre a memória de John Boyle, Maria de Melo Chaves, escreve em seu livro
Bandeirantes da Fé, onde conta relatos de como o evangelho se espalhou em Minas
Gerais, a seguinte frase:

Abençoada seja a memória de John Boyle, o homem que residiu em


Estrela do Sul onde, a princípio chamado de “galego” e de estrangeiro
pela população, ali viveu de tal modo, até sua morte, dando um
exemplo tão vivo e tão estupendo do evangelho que pregava, que
passou a ser uma das criaturas mais estimadas pela população da
lendária cidade.93

John Boyle foi convidado para se transferir para São Paulo, porém preferiu
continuar na sua missão pelo interior de Minas Gerais, onde permaneceu até sua
repentina morte em 1892, vítima de um infarto quando tinha apenas 47 anos. Além de
seu chamado missionário e da fundação do jornal, Boyle escreveu sermões e hinos, dos
quais muitos são entoados hoje nas Igrejas protestantes, vários de seus filhos e netos
também foram missionários. John Boyle é gigante, seu legado é eterno, e Minas Gerais
o deve.

Conclusão

93
CHAVES, M. M. Bandeirantes da fé. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 23.

59
Chegamos ao fim deste artigo com bases para se concluir que o Brasil, que se
manifesta de maneira tão peculiar em vários aspectos, como nossa cultura sincrética,
nossa independência e nossa república, não seria diferente no tocante a religião. Como
colônia de um Portugal que sofria fortíssima influência papista, as manifestações
religiosas surpreendentemente tiveram em dados momentos da nossa história um campo
frutífero, no entanto, a perseguição exercida pelo catolicismo nunca se dissipou
plenamente até meado das décadas de 40 e 50 do século XX. O protestantismo que se
difundiu numa velocidade absurda por toda a Europa após o cisma de Lutero, chegou ao
Brasil em diversas ocasiões e contextos, porém encontrou um descanso somente após a
Proclamação da República. A pluralidade religiosa, e a liberdade de pratica-la é um dos
principais aspectos democráticos e de avanço social de uma nação, a liberdade religiosa
é a mãe de todas as liberdades. Por onde o protestantismo passou foi fundado escolas,
creches, hospitais e, sobretudo, foi manifestado a democracia religiosa, os impactos que
o protestantismo causou podem ser perceptíveis até os dias atuais e poderão ser
eternamente lembrados.

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